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    1 INTRODUO

    Definida, de modo geral, como a propriedade que tem uma palavra de possuir variados

    sentidos relacionados entre si, a polissemia considerada, de acordo com a abordagem cognitiva,

    um fenmeno semntico que no s exprime necessidades pragmtico-discursivas dos usurios

    de uma lngua como reflete a sua forma de perceber a realidade, de categorizar seres, eventos e,

    por conseguinte, de interpretar o mundo.

    Admitindo que o verbo uma categoria polissmica e que o significado perspectivista,

    subjetivo, enciclopdico, flexvel e deve ser examinado em situaes reais de uso, busca-se

    analisar a polissemia do verbo tomar, nesta tese, levando em considerao os mecanismos

    conceptuais que esto envolvidos na formulao dos sentidos que integram o seu complexo

    semasiolgico, como isso acontece e por qu. Para tanto, recorre-se teoria experiencialista da

    linguagem, orientao hermenutica do significado e aos pressupostos tericos da Lingustica

    Cognitiva.

    Parte-se do princpio de que os mltiplos valores semnticos do verbo tomar

    organizam-se, sincrnica e diacronicamente, em torno de um ou mais centros prototpicos, dos

    quais outros usos derivam, por meio de transformaes de esquemas imagticos, instanciaes

    (especificaes/generalizaes) e extenses metonmicas e/ou metafricas. Para confirmar tal

    hiptese, adota-se o modelo baseado no uso e aplicam-se mtodos empricos de anlise

    qualitativa, quantitativa, variacional e multidimensional a um corpus constitudo por alguns

    textos falados, restritos ao sculo XX, e por vrios textos escritos nos trs perodos da lngua

    portuguesa arcaico, clssico e contemporneo.

    Tem-se por objetivos principais identificar as provveis tendncias de uso do verbo

    tomar nos perodos j citados; discutir os mecanismos cognitivos possivelmente envolvidos na

    conceptualizao dos sentidos desse item lexical; detectar os valores semnticos mais

    prototpicos e os mais perifricos no decorrer dos sculos, representando-os por meio de

    complexos multidimensionais e radiais, e apontar exemplos de variao, mudana e conservao

    de sentidos nos diferentes estgios da lngua portuguesa bem como nas variedades europeia e

    brasileira. Para isso, levam-se em conta as dimenses semntico-sinttica e pragmtico-discursiva

    que fundamentam a rede de significao de tomar e tambm os fatores scio-histricos e

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    culturais que podem ter contribudo para a prototipizao ou desprototipizao de determinados

    usos.

    A anlise interpretativa dos dados do corpus fundamenta-se nos princpios e postulados

    das Teorias do Prottipo, da Metfora Conceptual, dos Esquemas de Imagens, dos Frames e nos

    estudos realizados por Langacker (2006, 1999, 1991), Talmy (2000, 1988), Silva (2006a,1999),

    Geeraerts (2006a) Newman (1996), Lakoff e Johnson (1980, 2002), Lakoff (1987), Johnson

    (1987), Taylor (1996), Heine (1997), Batoro (2000), Teixeira (2000), Fernandes (2000),

    Coimbra (1999), Miranda e Name (2005), Castilho (2001), Salomo (1999, 2008), Almeida

    (2009), dentre outros.

    Portanto, nessa perspectiva que est elaborado o presente trabalho, o qual foi orientado

    pela Prof. Dr. Therezinha Maria Mello Barreto, integrante do Programa de Ps-Graduao em

    Letras da Universidade Federal da Bahia- UFBA, e coorientado pelo Prof. Dr. Augusto Soares da

    Silva, integrante do Programa de Ps-Graduao em Lingustica Cognitiva da Faculdade de

    Filosofia da Universidade Catlica Portuguesa, por meio do Programa de Doutorado com Estgio

    no Exterior PDEE - financiado pela Capes. Os seis captulos que o constituem intitulam-se: 1

    Introduo; 2 A polissemia sob o enfoque cognitivo; 3 Aspectos metodolgicos; 4 Fundamentos

    tericos para anlise semasiolgica do verbo tomar; 5 A polissemia do verbo tomar nos

    diferentes perodos da lngua portuguesa e 6 Consideraes Finais.

    Na Introduo, indicam-se o tema, a justificativa, os objetivos, a metodologia adotada, os

    pressupostos tericos e a estruturao do trabalho.

    No segundo captulo, traa-se um breve histrico acerca do estudo da polissemia, sob o

    enfoque da Lingustica Cognitiva, destacando o contexto do seu surgimento, os postulados que

    fundamentam esse modelo terico, suas linhas de investigao, suas principais teorias e o seu

    objeto de estudo. Tecem-se tambm, nesse captulo, algumas consideraes sobre categorizao,

    prottipo e prototipicidade, metfora e metonmia conceptuais, esquemas de imagens, modelos

    cognitivos idealizados e frames.

    No terceiro captulo, especificam-se os procedimentos estruturais e metodolgicos

    adotados para a realizao da pesquisa, a exemplo da escolha do mtodo de anlise, da

    constituio do corpus de lngua escrita selecionado, de sua caracterizao e tratamento.

    No quarto captulo, trata-se, em linhas gerais, dos fundamentos tericos que subsidiam a

    anlise semntica de tomar. Inicialmente, discute-se a sua provvel origem latina, buscando-se

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    pistas em obras lexicogrficas sobre um possvel sentido prototpico desse item lexical desde as

    suas origens. Depois, parte-se para a indicao do(s) frame(s), do(s) modelo(s) cognitivo(s)

    idealizado(s), dos domnios conceptuais bsicos que fundamentam os usos fsico-espaciais do

    referido verbo e dos domnios no bsicos para os quais esses sentidos se estendem metonmica

    e/ou metaforicamente. Por ltimo, procede-se descrio dos esquemas de imagens configurados

    pelo ato de tomar, indicam-se as dimenses que embasam as relaes estabelecidas no seu

    complexo semasiolgico e o seu provvel significado esquemtico.

    No quinto captulo, expe-se a anlise da polissemia do verbo tomar nos trs perodos

    da lngua portuguesa: o arcaico, o clssico e o contemporneo. Para isso, adota-se a abordagem

    multidimensional e a representao esquemtica por meio de redes radiais. Seguindo uma linha

    cronolgica, analisam-se os usos fsico-espaciais e destacam-se aqueles mais salientes bem como

    suas provveis instanciaes em cada fase da lngua portuguesa. Na sequncia, examinam-se as

    projees desses usos em domnios abstratos da experincia humana e identificam-se as relaes

    que estabelecem entre si e com os demais. Ao final, apontam-se os casos de verbo-suporte, de

    formas fixas e de sentidos vagos ou opacos.

    Por ltimo, no sexto captulo, antes das Referncias, tecem-se as Consideraes Finais,

    onde so sintetizados os resultados obtidos, a partir da anlise das ocorrncias encontradas no

    corpus.

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    2 A POLISSEMIA SOB O ENFOQUE COGNITIVO

    2.1 ALGUMAS BREVES PALAVRAS SOBRE O ESTUDO DA SIGNIFICAO AO LONGO

    DA HISTRIA

    A investigao sobre a natureza da linguagem e a origem do significado no recente.

    Muitos pensadores, desde a Antiguidade Clssica, j se interessavam por estudar fenmenos

    referentes significao. Questes sobre a mudana semntica e sobre a multiplicidade de

    sentidos das palavras, incluindo aspectos relativos homonmia, polissemia (antes mesmo de

    esse nome existir) e metfora inquietaram vrios filsofos, que, para explic-las, recorreram

    Filosofia Especulativa e Retrica. Segundo Ullmann (1964, p. 8), [...] no ser talvez exagero

    afirmar que muitos dos assuntos fundamentais da semntica moderna se anunciam j em

    observaes espordicas de escritores latinos e gregos.

    Tambm, na Idade Mdia, perodo extenso que vai do sculo V d.C. ao XV, alguns

    estudiosos investigaram o significado das palavras, voltando-se para o pensamento religioso, para

    a busca do sentido literal ou figurado, nico ou mltiplo dos textos bblicos e para a etimologia,

    sem demonstrar um maior aprofundamento sobre essas questes. Mais tarde, nos sculos XVII e

    XVIII, embora pesquisadores de diferentes reas do saber tenham dado continuidade ao estudo da

    significao e dos problemas que a cercam, as iniciativas foram espordicas. Contudo, foi no

    sculo XIX e, mais especificamente, depois da publicao do livro intitulado Essai de

    Smantique, Science des significations1, do francs Michel Bral, em 1897, que as pesquisas

    relativas ao significado, incluindo a investigao da polissemia, tiveram uma maior

    proeminncia.

    Ainda que esse autor tenha deixado um importante legado para a histria da Semntica e

    ele tenha sido um dos precursores dos estudos semntico-lexicais sob os enfoques histrico,

    psicolgico e hermenutico, antecipando questes e princpios relativos investigao do

    significado das palavras e do fenmeno polissmico que s voltaram a ser revistos quase um

    sculo mais tarde2, os estudiosos que o sucederam preferiram seguir outros caminhos. As

    1 A obra consultada para a realizao do presente trabalho foi a traduo para o portugus, intitulada Ensaio de

    Semntica: cincia das significaes (1992). 2 Dentre as vrias questes abordadas por Bral (1992, p. 103) relativas polissemia, que foram retomadas

    posteriormente por tericos funcionalistas e cognitivistas, est a ideia de que o sentido novo, qualquer que seja ele,

    no acaba com o antigo. Ambos existem um ao lado do outro. O mesmo termo pode empregar-se alternativamente

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    primeiras dcadas do sculo XX, por exemplo, apresentaram diferentes tendncias para os

    estudos da significao, dando lugar a distintas semnticas3 relacionadas s teorias a que se

    filiaram. Pode-se afirmar, em consonncia com Pires de Oliveira (2006, p. 18), que cada

    semntica elegeu a sua noo particular de significado, atendendo s premissas tericas e

    metodolgicas sobre as quais se apoiavam; ora retomando, ora negando algumas posturas e

    modelos j verificados em outros momentos. O estudo da polissemia no ficou indiferente a essas

    alternncias.

    Prevaleceram, nessa poca, as tendncias formalistas, como o Estruturalismo e o

    Gerativismo, as quais deram nfase ao estudo das relaes sintagmticas e paradigmticas

    estabelecidas pelas unidades lingusticas. Ainda que o fenmeno polissmico tenha sido

    analisado, segundo essas abordagens, por meio da identificao de traos distintivos mnimos ou

    semas, no houve um interesse mais direcionado para o referido tema. Esse quadro s comeou a

    mudar, quando, nas dcadas de 60 e 70, alguns linguistas inconformados com a pouca ateno

    destinada s pesquisas sobre a significao mobilizaram-se em favor de uma teoria interpretativa

    do significado, na tentativa de integrar os estudos semnticos aos sintticos priorizados at ento.

    Contudo, o propsito dessa iniciativa no alcanou o xito esperado, uma vez que a

    anlise semntica, nessa perspectiva, servia to somente para auxiliar a interpretao da estrutura

    sinttica das sentenas (principal objeto de investigao do modelo gerativista), persistindo ainda

    as hipteses da autonomia da linguagem (considerada um sistema auto-suficiente e independente

    dos seus usurios) e da modularidade da mente. Tratava-se, conforme define Geeraerts (2009, p.

    97), da combinao de um mtodo estruturalista de anlise, com um sistema formalista de

    descrio e com uma concepo mentalista de significado4, o que j havia sido notado por

    Taylor (1989, p. 16), ao assinalar que o estudo do significado, segundo esse enfoque, era

    descritivo e, ao mesmo tempo, por influncia do modelo chomskyano, altamente formal, pois o

    sujeito era concebido como um indivduo dotado de uma competncia gramatical, lingustica, que

    lhe permitia apenas interpretar sentenas como formas lgicas. O crebro humano era, portanto,

    no sentido prprio ou no sentido metafrico, no sentido restrito ou no sentido amplo, no sentido abstrato ou no sentido concreto. 3 As vrias designaes que acompanham o nome Semntica podem comprovar a diversidade de linhas de

    investigao semntico-lexical surgidas nesse perodo (muitas ainda hoje em vigor), uma vez que mudam de acordo

    com as diferentes maneiras de abordar os fenmenos relativos significao. Tm-se, como exemplos, a Semntica

    Estrutural, a Semntica Formal ou Semntica das Condies de Verdade, a Semntica Argumentativa, a Semntica

    da Enunciao, a Semntica das Condies de Uso, a Semntica Cognitiva, dentre outras possibilidades. 4 Segundo Geeraerts (2009, p. 97), o enfoque interpretativo dado semntica era uma combination of a structuralist

    method of analysis, a formalist system of description, and a mentalist conception of meaning.

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    considerado uma mquina, um mdulo independente das outras partes do corpo, cuja interao

    com o que est no seu entorno pouco relevante. Nesse sentido, a linguagem era vista como uma

    faculdade no relacionada ao desenvolvimento cognitivo e sensrio-motor dos indivduos e de

    outros aspectos relativos experincia humana.

    Diante desse cenrio e da insatisfao com os rumos que os estudos lingusticos,

    sobretudo os semnticos, estavam assumindo, alguns gerativistas insurgiram-se contra a teoria

    chomskiana. Tais embates epistemolgicos, ocorridos entre fins dos anos 70 e comeo dos anos

    80, culminaram na organizao de um novo modelo terico para o estudo da significao, que

    recebeu o nome de Semntica Gerativa, o qual, posteriormente, deu origem Semntica

    Cognitiva. No texto intitulado Is deep structure necessary?, escrito em 1967, Lakoff e Ross

    definem as bases desse novo modelo, ao apontarem que uma das principais diferenas entre a

    anlise interpretativa do significado e a gerativa reside no fato de que, para a primeira corrente, o

    componente semntico independente do sinttico e, para a segunda, o componente sinttico

    gera as estruturas que so interpretadas como sintticas e semnticas ao mesmo tempo.

    (LOBATO,1986, p. 267). Essa distino passa a ser crucial para os estudos que iro se

    desenvolver, a partir desse momento, sob a gide do Cognitivismo. Merecem destaque as

    palavras de Salomo (2009, p. 20-21), quando descreve as causas dessa ciso e do consequente

    surgimento da Lingustica Cognitiva:

    De fato, um dos mais expressivos prceres da lingustica cognitiva, o linguista

    americano George Lakoff, da Universidade da Califrnia, em Berkeley, identifica

    o programa intelectual da lingustica cognitiva como herdeiro da semntica

    gerativa, movimento cismtico do paradigma gerativo-transformacional, emergente no decurso das chamadas guerras lingusticas, travadas nos

    belicosos, ainda que romnticos, anos sessenta.

    As razes substantivas do cisma, para alm das mais triviais (de poltica acadmica), residem em duas dificuldades objetivas: de um lado, a relutncia de

    Chomsky em abordar a questo do sentido com a mesma energia e audcia que

    devotara questo da sintaxe e, de outro lado, a intratabilidade, no interior do paradigma gerativo, de uma caracterstica indescartvel das lnguas humanas

    como produes histricas sua idiomaticidade. Em ambos os casos, ameaando

    a elegncia das solues formais, avultava a feia cabea do uso lingustico, que se

    tentara escantear para a no-rea da performance.

    Com a finalidade de mostrar quais os contributos da Lingustica Cognitiva para os estudos

    semntico-lexicais e qual a sua importncia para o estudo da polissemia, tecer-se-o, a seguir,

    algumas consideraes (sem nenhuma pretenso de serem exaustivas ou minuciosas, uma vez que

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    alguns manuais de Introduo Semntica j o fazem) sobre o contexto de seu surgimento, seus

    princpios e as linhas de investigao que enfocam a polissemia.

    2.2 O CONTEXTO DE SURGIMENTO DA LINGUSTICA COGNITIVA E O INTERESSE

    PELA INVESTIGAO DA POLISSEMIA

    Nem sempre possvel afirmar com preciso quando comea e quando termina um

    modelo terico. O nascimento de uma teoria lingustica, normalmente, o resultado da

    convergncia de uma srie de trabalhos, de influncias e de condies externas durante um

    perodo de gestao mais ou menos extenso5. (CUENCA; HILFERTY, 1999, p. 11).

    No foi diferente com a Lingustica Cognitiva. Muitas so as hipteses para indicar uma

    data precisa para o seu surgimento, pois no se tem um fato concreto e isolado para demarc-lo.

    Sabe-se, de modo geral, que esse modelo terico teve incio na segunda metade do sculo XX, na

    Califrnia, de onde se estendeu para outras localidades, tornando-se um importante movimento

    internacional. Sabe-se, tambm, que se enquadra no campo das cincias cognitivas que se

    desenvolveram nesse perodo, com a finalidade de estudar os diferentes aspectos da cognio

    humana, cujo marco inaugural costuma ser considerado o livro Methaphors we live by6,

    publicado por George Lakoff, em parceria com Mark Johnson, em 1980.

    Para alguns autores, entretanto, o nascimento dessa teoria ocorreu em 1987, quando foram

    publicados o primeiro volume de Foundations of cognitive grammar, de Langacker, e o livro

    Women, fire and dangerous things, de Lakoff, obra que, segundo Batoro (2000, p. 131), uma

    importante referncia para outros trabalhos produzidos nessa rea. Silva (2004, p. 1; 2006b,

    p.52), por sua parte, concorda que os primeiros estudos em Lingustica Cognitiva surgiram, no

    incio da dcada de 80, tanto nos EUA como em alguns pases da Europa. Contudo, tanto o

    referido autor como Geeraerts (2006a, p. 22) asseveram que a institucionalizao e a

    consolidao desse modelo terico como paradigma cientfico s ocorreu um pouco depois, a

    partir da criao da International Cognitive Linguistics Association e da realizao do primeiro

    International Cognitive Linguistics Conference, fatos ocorridos em Duisburg, na Alemanha, em

    5 Casi siempre resulta difcil y hasta cierto punto arbitrario situar la fecha y el lugar de nacimiento de um modelo

    lingustico, puesto que no se trata de um hecho concreto y aislable, sino que, normalmente, es el resultado de la

    convergencia de uma serie de trabajos, de influencias y de condiciones externas durante um perodo de gestacin

    ms o menos largo (CUENCA; HILFERTY, 1999, p. 11). 6 Esse livro foi traduzido para o portugus, em 2002, com o ttulo de Metforas da vida cotidiana.

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    1989, seguidos da fundao da revista Cognitive Linguistics e da coleo Cognitive Linguistics

    Research, publicada pela Mouton de Gruyter, em 1990.

    Independentemente de possveis discordncias para determinar quando iniciaram os

    estudos lingusticos no mbito da Semntica Cognitiva, cabe registrar que o contexto scio-

    histrico em que esse modelo terico surgiu foi favorvel ao seu desenvolvimento, uma vez que,

    conforme se ressaltou, era notria a insatisfao de alguns linguistas ante as teorias formalistas

    vigentes. Dentre os que se manifestaram contrrios a essa postura, destacam-se Mark Johnson,

    Leonard Talmy, Ronald Langacker e, sobretudo, George Lakoff, j citado anteriormente.

    Influenciados pelas cincias cognitivas, que buscavam entender e descrever os mecanismos de

    funcionamento da mente humana e, mais especificamente, instigados pelos avanos da

    Inteligncia Artificial e da modelagem computacional, esses autores passaram a tratar os

    fenmenos semntico-lexicais sob a tica cognitivista e a considerar que a experincia e a

    cognio esto intrinsecamente implicadas na estrutura e no funcionamento da linguagem,

    definindo assim alguns princpios bsicos para essa nova teoria, que viriam a nortear o estudo de

    fenmenos semnticos, como a polissemia.

    Convm destacar que, embora a Lingustica Cognitiva represente um movimento terico

    oponente alegada autonomia da gramtica e posio secundria atribuda ao significado pelo

    Gerativismo chomskiano, ambas as abordagens so mentalistas e, portanto, cognitivas na sua

    essncia, porque concebem a linguagem como faculdade mental e procuram estudar as estruturas

    mentais responsveis pelo conhecimento. Alm disso, o surgimento da Lingustica Cognitiva

    deve-se existncia e aos desdobramentos da Lingustica Gerativa. Contudo, no se pode

    esquecer que as duas apresentam diferenas cruciais em relao ao tipo de mentalismo que

    adotam.

    Ao referir-se a essa questo, Geeraerts (2006a, p. 3) adverte, sob pena de se cometerem

    equvocos com generalizaes, acerca do cuidado que se deve ter ao empregar o epteto

    cognitivo para esses dois modelos, ressaltando ainda que a teoria cognitiva interessa-se por

    explicar a relao entre conhecimento e linguagem em termos semnticos e funcionais, ao passo

    que a teoria gerativa procura saber como esse conhecimento adquirido em termos formais. Dito

    de outro modo, o que distingue o sentido atribudo ao termo cognitivo parece ser a forma como

    a trade conhecimento, significado e linguagem abordada pela Gramtica Gerativa e pela

    Lingustica Cognitiva.

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    Sem se opor ao que j foi dito, mas antes complementando, Salomo (1999, p. 74)

    argumenta que a determinao de tratar a linguagem como capacidade de conhecimento do

    sujeito e do mundo que o cerca define o programa cognitivista, contrapondo-o inacessabilidade

    da cognio experincia defendida pelo formalismo e pelo cognitivismo modularista praticado

    por Noam Chomsky, Jerry Fodor e Stephen Pinker. Por outro lado, a autora supracitada ressalta

    que a nfase no uso da linguagem aproxima o programa cognitivista da tradio funcionalista,

    fato que j havia sido destacado por Langacker (1999, p. 14), ao considerar essas duas

    abordagens complementares, apesar da existncia das variadas linhas metodolgicas e vises

    tericas que as caracterizam.

    Como se v, foi nesse cenrio ecltico, heterogneo e, ao mesmo tempo, interdisciplinar

    que a Lingustica Cognitiva nasceu e que as pesquisas sobre a polissemia ampliaram-se e

    consolidaram-se, aps um longo tempo de pouca ou quase nenhuma visibilidade, conforme

    ressalta Silva (2006a, p. 26) no excerto transcrito a seguir:

    Finalmente, a semntica cognitiva, que emerge no incio dos anos 80 e tem nos trabalhos de Lakoff, Langacker e Talmy as suas referncias mais

    representativas, redescobre a polissemia. Explorando a tendncia

    mentalista aberta por Katz, mas rompendo com o princpio, tanto

    generativista como estruturalista, da autonomia do significado e da linguagem e com o modelo chomskyano de competncia, a semntica

    cognitiva redescobre a importncia da polissemia, quer nos seus aspectos

    qualitativos, quer, e sobretudo porque praticamente ignorados at ento, nos seus aspectos quantitativos. E no s a redescobre como a coloca no

    centro da sua investigao, a qual, ao contrrio de outras correntes

    lingusticas, comeou justamente pela semntica lexical.

    Assim, consolidada como uma teoria cientfica que, embora no tenha um nico fundador

    nem uma rea de pesquisa especfica, ao longo dessas trs dcadas, apesar da sua grande

    diversidade terica e metodolgica, a Lingustica Cognitiva vem se firmando, paulatinamente,

    com variadas linhas de investigao, distribudas em diferentes partes do mundo que se dedicam

    a estudar no s a polissemia como outros fenmenos semnticos. Entre os modelos tericos e os

    nomes mais representativos, no cenrio mundial, destacados por Silva (2004, p. 1722; 2007, p.

    53), esto: I) a Semntica Cognitiva, que estuda, em linhas gerais, o significado como

    conceptualizao e tem como representantes George Lakoff, Ronald Langacker e Leonard

    Talmy; II) a Gramtica Cognitiva, que investiga as construes como objeto primrio de

    descrio e o conhecimento gramatical que est representado na mente dos falantes, cujos

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    modelos mais elaborados so a Gramtica Cognitiva, de Ronald Langacker, e a Gramtica das

    Construes, de Adele Goldberg e de William Croft; III) a Teoria do Prottipo, que se dedica a

    estudar a categorizao lingustica, a polissemia, a mudana semntica, a variao lxica, a

    anlise das categorias em forma de redes radiais e redes esquemticas, que tem por representantes

    John Taylor, Dirk Geeraerts, George Lakoff e Ronald Langacker; IV) a Teoria da Metfora

    Conceptual, que apresenta estudos sobre metfora e metonmia conceptuais, tanto no nvel do

    lxico como nos da gramtica e do discurso, e tambm se dedica a estudar os esquemas de

    imagens ou padres de movimento no espao, a manipulao de objetos e interaes perceptivas,

    cujos expoentes so George Lakoff e Mark Johnson, dentre outros; V) a Teoria dos

    Marcos/Quadros Conceptuais ou Frame Semantics, com Fillmore e sua implementao no

    projeto FrameNet; VI) a Teoria dos Espaos Mentais, com Gilles Fauconnier; VII) a Teoria da

    Integrao Conceptual ou Blending Theory, considerada complementar Metfora Conceptual,

    com Gilles Fauconnier e Mark Turner; VIII) a Teoria dos Modelos Culturais e o desenvolvimento

    da Lingustica Cultural, com Gary Palmer, George Lakoff, Michael Tomasello e Zoltan

    Kvecses; IX) a Teoria da Gramaticalizao, com Paul Hopper e Elizabeth Trougott, Elizabeth

    Trougott e Richard Dasher; X) a Teoria da Subjetivao, com Ronald Langacker, e desenvolvida

    mais recentemente por Angeliki Athanasiadou, Costas Canakis e Bert Cornillie; e XII) a Teoria

    Neural da Linguagem, com George Lakoff, que tem como ramificao a Lingustica

    Neurocognitiva.

    Nos espaos lusfonos, Brasil e Portugal, as pesquisas em Lingustica Cognitiva tm se

    mostrado tambm abrangentes e centram-se na anlise do lxico, com nfase no estudo da

    polissemia e de fenmenos que a propiciam, voltando-se ainda para a gramtica e para o discurso.

    So muitos os nomes que se destacam e vrios os grupos de pesquisas que vm desenvolvendo

    estudos nas diferentes linhas mencionadas.

    No Brasil, os pesquisadores cognitivistas fundaram a Associao Brasileira de Lingustica

    Cognitiva, consolidando essa rea de estudos no pas, que conta com vrias publicaes. Entre os

    nomes e grupos de pesquisa (GP) que se destacam, podem-se citar: Maria Margarida Salomo e

    Neusa Salim Miranda, integrantes do GP de Gramtica e Cognio, que vm desenvolvendo um

    programa cientfico, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), articulado com o

    paradigma da Lingustica Cognitiva implantado na Califrnia, e tm como projeto a Hiptese

    Sociocognitiva da Linguagem, em que instauram uma perspectiva social, cultural e interacional

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    sobre a cognio e a linguagem; Maria Lcia Leito de Almeida, Lilian Ferrari e Carlos

    Alexandre Gonalves, dentre outros, tambm integrantes do GP de Gramtica e Cognio e

    pesquisadores das Universidades Estadual e Federal do Rio de Janeiro (UERJ e UFRJ), os quais

    tm se dedicado a distinguir polissemia/indeterminao, flutuao categorial e construo

    morfolgica de palavras, de compostos e mesclas lexicais; Mara Zanotto e Heronides Moura que

    compem o grupo de Indeterminao e metfora; Edwigs Morato e Rosana Novaes Pinto

    inserem-se em Prticas Disursivas, Processos de Significao e Afasia; Eleonora Albano lidera o

    grupo Modelamento de Texto e Sinal Acstico em Portugus e Loureno Chacon Jurado Filho, o

    grupo Oralidade e Letramento. Ana Cristina Macedo e Paula Lenz Lima, Emlia Farias e Aline

    Bussons, por sua vez, integram a equipe de Cognio e Lingustica e Metfora e Cognio;

    Cristina Magro lidera Cognio, Linguagem e Cultura; Heliana Mello, Tommaso Raso, Maria

    Luiza Lima, Adrtiana Tenuta, Ulsike Schroeder e Jnia Ramos fazem parte do grupo

    INCOGNITO Interfaces Linguagem, Cognio e Cultura; Lucienne Espndola coordena

    Metforas, Gneros Discursivos e Argumentao; Srgio Nascimento, Ricardo Almeida, Luiz

    Souza, Solange Faraco, Lucilene Bronzato e Carmen Lima constituem o grupo de

    Indeterminao e Metfora no Discurso; Mrcia Zimmer dirige o grupo Processos Cognitivos de

    Leitura em Lngua Materna e Lngua Estrangeira, e Helosa Moraes Feltes, Carina Granzoto,

    Morgana Kich e Gabriela Vial integram o grupo de Lngua, Sociedade e Cognio.

    No que se refere aos estudos desenvolvidos em Portugal, seus principais representantes

    distribuem-se em diferentes centros de pesquisa e enquadram-se nos domnios da Semntica

    Cognitiva, da Gramtica Cognitiva, da Gramaticalizao e Discurso e de estudos

    interdisciplinares, conforme ressalta Silva (2007, p.57-60). H, portanto, nomeadamente: Isabel

    Hub Faria, Jos Pinto de Lima e Clotilde Almeida, na Faculdade de Letras de Lisboa e Hanna

    Batoro, na Universidade Aberta de Lisboa; Mrio Vilela, na Faculdade de Letras do Porto; Ana

    Macrio Lopes, na Faculdade de Letras de Coimbra; Rosa Ldia Coimbra, na Universidade de

    Aveiro; Jos Teixeira, na Universidade do Minho, e Augusto Soares da Silva, na Faculdade de

    Filosofia da Universidade Catlica Portuguesa, do Centro Regional de Braga.

    Os inmeros encontros, simpsios, workshops, conferncias e congressos realizados em

    diferentes continentes, no mbito dos estudos cognitivistas, evidenciam o seu processo rpido e

    contnuo de crescimento, que se confirma pelo volume de publicaes disponveis (artigos,

    papers, livros, dissertaes, teses etc.). Essa rea do conhecimento dispe hoje de um importante

  • 32

    acervo de obras eletrnicas e bibliogrficas7, o que constitui uma forte evidncia da importncia e

    da notoriedade atribudas ao estudo da linguagem sob o enfoque cognitivo nos ltimos tempos.

    Para melhor compreender como a polissemia estudada sob essa abordagem, sero

    apresentados, a seguir, alguns princpios e postulados da Lingustica Cognitiva que fundamentam

    o estudo do referido fenmeno.

    2.3 PRINCPIOS E POSTULADOS DA LINGUSTICA COGNITIVA QUE NORTEIAM O

    ESTUDO DA POLISSEMIA

    Acredita-se que um dos grandes desafios das cincias cognitivas foi e ainda explicar

    como o homem transforma em modelos mentais as informaes e o conhecimento adquiridos, por

    meio das suas experincias e das suas percepes sensoriais, e depois os transmite atravs de

    diferentes linguagens. Psiclogos, linguistas e cientistas cognitivistas, de modo geral, buscam

    responder algumas das questes referentes ao assunto, defendendo que entre a linguagem e o

    mundo fsico existe um nvel intermedirio: o da cognio. Essa palavra de origem latina,

    definida por Cunha (1986, p. 193) como a aquisio de um conhecimento e, por extenso,

    conhecimento, percepo, outrossim conceituada por Batoro (2000, p. 63), com base no que

    afirma Pinker (1990), como o estudo da inteligncia humana em todas as suas formas.

    A capacidade do homem de pensar atravs do uso de linguagens, de conhecer, de perceber

    e de construir representaes mentais, a partir de percepes sensoriais e da formular conceitos

    pautados em experincias, confere cognio humana um grande poder e uma estreita relao

    com a linguagem e com os processos de construo de sentidos. Essa viso compartilhada por

    Svorou (1994, p. 2-3), que considera a cognio um nvel intermedirio entre o mundo fsico e a

    linguagem, por meio do qual possvel lembrar de eventos de percepo, manipulao e reao,

    armazenados na memria individual, que, por sua vez, retm conhecimentos sobre os efeitos do

    mundo fsico no indivduo e do indivduo no mundo fsico bem como sobre o sistema de valores

    7Dentre as obras indicadas por Geeraerts (2006a, p. 20-23), podem ser citados os manuais de introduo

    Lingustica Cognitiva, de Ungerer e Schmid (1996), de Violi (2001); de Taylor (2003); de Dirven e Verspoor (2004);

    de Croft e Cruse (2004) e de Evans e Green (2006); o Handbook of Cognitive Linguistics, editado por Dirk Geeraerts

    e Hubert Cuyckens, e os peridicos Cognitive Linguistics e a Annual Review of Cognitive Linguistics. Pode-se

    contar-se, ainda, com cinco sries especificamente dedicadas a trabalhos em Lingustica Cognitiva, a saber:

    Cognitive Linguistic Research ou CLR; Aplications of Cognitive Linguistics ou ACL; Human Cognitive Processing;

    Cognitive Linguistics in Practice e Constructional Approaches to Language.

  • 33

    culturais vigentes e as interaes sociais estabelecidas pelos membros de uma determinada

    cultura.

    Todavia, o importante papel que a cognio desempenha no processamento do raciocnio

    e na elaborao da linguagem nem sempre foi reconhecido pelas teorias lingusticas que

    despontaram no sculo XX e que ainda hoje vigoram. Separar propriedades da linguagem de

    propriedades do pensamento humano e, por conseguinte, desvincular o seu estudo da cognio,

    na maioria das vezes, foi o caminho mais escolhido, o que no se aplica Semntica Cognitiva.

    Embora tributria de modelos tericos anteriores, dos quais herdou e tambm negou

    algumas das suas caractersticas, ao descrever alguns fenmenos semnticos, como a polissemia

    de itens lexicais e gramaticais8, explicando o que est subjacente sua concretizao, a

    Semntica, desenvolvida no enquadramento cognitivo, leva em conta fatores cognoscitivos,

    emocionais, sociais e culturais que interferem na formulao do pensamento e da linguagem.

    Esse tipo de abordagem contrape-se a teorias que veem o significado como reflexo da realidade

    objetiva ou o consideram impreciso, obscuro, uma incgnita, ambguo, de natureza

    controversa ou movedio, conforme destacaram autores como Marques (2003), Ilari e Geraldi

    (2006), entre outros9.

    Substituiu-se, assim, a concepo reificada de significado por uma concepo processual

    voltada para a criao de sentido: [...] os sentidos de um determinado item no so dados, mas

    construdos; so interpretaes que surgem de um contexto particular [...] (SILVA, 2003, p.

    150-151, grifo do autor). Essa maneira de analisar os fenmenos semnticos, a exemplo da

    polissemia, no s distingue a perspectiva cognitivista de outros modelos mentais ou tendncias

    dos estudos semntico-lexicais como fundamenta a base epistemolgica da Semntica Cognitiva,

    que se ancora em alguns princpios, sintetizados por Geeraerts (2006a, p. 4-6), a saber:

    a) o significado lingustico perspectivista, porque constri o mundo de um modo

    particular, segundo a perspectiva de quem o interpreta;

    b) o significado lingustico dinmico e flexvel, porque muda e acompanha as

    transformaes do mundo;

    8 Deve-se pontuar que o fenmeno da polissemia no se restringe ao lxico, pois se encontra, tambm, em categorias

    morfolgicas, sintticas, discursivas e fonolgicas do portugus. Estudos, como os de Almeida et al. (2009), sobre

    construes parassintticas do portugus, vogal temtica nominal e gnero, sufixos, dentre outros, tm evidenciado

    isso. 9 Essa postura parece justificar o comportamento receoso e, s vezes, refratrio de linguistas, como o norte-

    americano Bloomfield (1933), que excluiu do seu escopo de anlise as pesquisas referentes significao.

  • 34

    c) o significado lingustico enciclopdico e no-autnomo, porque construdo na e

    atravs da linguagem e reflete as experincias dos seres humanos, e

    d) o significado lingustico baseado na experincia e no uso, porque

    experiencialmente construdo, o que se evidencia no uso da linguagem.

    Conforme se pode perceber, a nfase dada ao estudo do significado como produto da

    conceptualizao humana e da experincia individual surge como refutao tese autonomista da

    linguagem, defendida principalmente pelas correntes tericas formalistas que se contrapem a

    uma nova perspectiva, segundo a qual, a linguagem passa a ser vista como uma faculdade

    integrada cognio e no mais como um mdulo isolado. Tal concepo, que constitui um dos

    postulados bsicos da Semntica Cognitiva, salientada por Pires de Oliveira (2006, p.43), ao

    afirmar que o significado est no corpo que vive, que se move, que experimenta vrias relaes

    com o meio (e no na correspondncia entre palavras e coisas simplesmente), o que tambm

    compartilhado por Silva (2004, p. 2), quando assevera que:

    [...] as mentes individuais no so entidades autnomas, mas corporizadas-encarnadas e altamente interactivas com o seu meio;

    e atravs dessa interao e acomodao mtua que a cognio e

    a linguagem surgem, se desenvolvem e se estruturam. No existe,

    pois, propriamente linguagem humana independentemente do contexto scio-cultural. Mas no menos verdade que a

    linguagem reside primeiramente nas mentes individuais, sem as

    quais a interaco no poderia ocorrer.

    Faz-se oportuno salientar que, nessa perspectiva de anlise da linguagem, os significados

    no resultam apenas de uma representao mental particular, e, portanto, subjetiva do mundo

    (decorrente apenas da ateno, da percepo, da memria do indivduo). Se assim o fosse,

    incorrer-se-ia no erro de considerar o mito do subjetivismo como a melhor opo para

    combater o mito do objetivismo, to difundido pela tradio filosfica ocidental10

    . Trata-se,

    pois, de uma viso muito mais ampla e integradora, uma vez que entra em questo, sobretudo,

    conforme j se destacou, a interao do indivduo com o que est sua volta. A proposta buscar

    10 O mito do subjetivismo inclui, segundo Lakoff e Johnson (2002, p. 340 e 341), as seguintes posies subjetivistas:

    o sentido individual; a experincia puramente holstica; os sentidos no tm qualquer estrutura natural; o contexto

    desestruturado e o sentido no pode ser natural ou adequadamente representado. J para as teorias objetivistas, o

    significado no passa de uma relao abstrata entre representaes simblicas e a realidade objetiva. Os conceitos,

    por sua vez, so entendidos como representaes mentais gerais ou entidades lgicas, altamente abstratas, bem-

    definidas e no se referem a experincias individuais, pois os conceitos bsicos independem das relaes

    estabelecidas entre os seres humanos e o mundo que os cerca.

  • 35

    um equilbrio entre a objetividade absoluta, de um lado, e a intuio puramente subjetiva, de

    outro, oferecendo, para isso, uma explicao experiencialista da compreenso e da verdade. Isso

    significa dizer que as verdades so relativas, na medida em que esto aliceradas no sistema

    conceptual dos indivduos, que, por sua vez, fundamentado nas suas experincias e nas de

    outros membros de sua cultura, em suas interaes dirias com outras pessoas e com os

    ambientes fsico e cultural em que esto inseridos. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 303).

    Resumidamente, pode-se afirmar que a explicao de significado perpassa uma longa

    tradio em filosofia da linguagem, em que se opem teorias referenciais e teorias conceptuais.

    De um lado, tem-se uma concepo de significado como algo diretamente conectado com

    elementos do mundo (e, por isso mesmo, objectivamente analisvel em termos de condies-de-

    verdade, atravs de uma lgica formal) e, de outro, uma concepo do significado como uma

    entidade mental e inevitavelmente conectada com a experincia humana11

    . (SILVA, 2006b, p.

    14).

    Em face disso, pode-se dizer que adotar uma perspectiva cognitiva e, portanto,

    experiencialista de significado, para explicar a polissemia, admitir uma postura conceptualista,

    como j enfatizou Langacker (2007, p. 431), o que implica defender uma concepo scio-

    interacional, ou melhor, uma integrao entre significado, cognio e experincia corprea,

    social, cultural e histrica. Ademais, sendo o significado baseado no uso e na experincia, entra

    em cena um princpio fundamental para a compreenso dessa abordagem, esquecido pelas teorias

    lingusticas proeminentes do sculo XX: a relao entre conhecimento lingustico e conhecimento

    enciclopdico; este ltimo, proveniente da interao humana e das relaes estabelecidas com os

    outros (experincia social) e com o mundo (experincia fsica).

    Por fim, como mais um princpio da Lingustica Cognitiva, considerado pedra angular

    da abordagem cognitiva, identifica-se a categorizao. Definida como a habilidade humana de

    identificar similaridades e diferenas entre entidades e, consequentemente, entre os grupos que

    essas entidades constituem, a categorizao est presente em todas as relaes dos indivduos

    com o seu meio fsico e interfere em seu convvio social e intelectual, de modo que, ao se

    11 Silva (2006b, p. 14) acrescenta que essas vises antagnicas acerca de um mesmo contedo de investigao

    refletem, portanto, o objetivismo e o experiencialismo ou realismo corporizado (embodied realism) que caracterizam,

    respectivamente, as teorias formalistas e as teorias funcionalistas da linguagem e, por conseguinte, do significado.

    Para as primeiras, a cognio uma atividade independente da mente, organizada em mdulos no formato de um

    programa de computador e o significado formal, objetivo, descontextualizado e autnomo. Para as ltimas, a

    cognio resulta da confluncia de elaboraes mentais integradas experincia, ao social, ao cultural, ao emocional

    etc., e, por conseguinte, o significado conceptual, psicolgico, fenomenolgico, experiencial e contextual.

  • 36

    moverem no mundo, automaticamente e, de forma inconsciente, os homens categorizam pessoas,

    animais, objetos fsicos e tambm eventos, aes, emoes, relaes espaciais, sociais e entidades

    cientficas. De acordo com Lakoff (1987, p. 5), no h nada mais bsico do que a categorizao

    para o pensamento, para a percepo, para a ao e para fala12

    .

    A ideia de que a categorizao envolve experincia, percepo e interao com o mundo

    est expressa tambm em uma passagem do livro Metforas da vida cotidiana transcrita a seguir:

    Para compreender o mundo e agir nele, temos de categorizar os objetos e as experincias de forma que passem a fazer sentido para ns. Algumas de

    nossas categorias emergem diretamente de nossa experincia, devido

    forma de nossos corpos e natureza de nossas interaes com as outras

    pessoas e com o nosso ambiente fsico e social. (LAKOFF; JOHNSON,

    2002, p. 218).

    Tal afirmao defendida por esses mesmos autores no livro Philosophy in the Flesh: The

    Embodied Mind and Its Challeng To Western Thought (1999, p. 19; 22), onde voltam a afirmar

    que os conceitos formulados pelo homem no refletem apenas a realidade externa, mas so

    crucialmente definidos pelo seu corpo, pelo seu crebro e, especialmente, pelo seu sistema

    sensrio-motor. A todo momento, so produzidas ou entendidas declaraes de extenses

    razoveis em que so empregadas categorias de sons da fala, de palavras, de frases, de oraes e

    categorias conceptuais. Segundo Ungerer e Schimd (1996, p. 38), essas categorias resultam de

    conceitos alojados na mente, ou seja, do lxico mental do indivduo e refletem a organizao de

    suas experincias. Devido a isso, linguistas, sobretudo cognitivistas, tm dado especial ateno a

    esses processos, j que produzir e entender uma lngua implica conceptualizar e categorizar.

    Convm ressaltar, no entanto, que a categorizao no privilgio da raa humana.

    Lakoff e Johnson (1999, p. 17-19) lembram que todos os seres vivos categorizam. At mesmo a

    ameba categoriza as coisas que encontra em comida e no comida, para mov-las ou no em sua

    direo. Todavia, a relao de dependncia entre a constituio biolgica dos seres humanos (o

    seu aparato sensorial e a sua habilidade para se movimentar e manipular objetos) e as

    peculiaridades do seu sistema conceptual (a capacidade de raciocnio do seu crebro) propiciam

    ao homem interagir com o mundo de forma diferente dos outros animais, facultando-lhe inmeras

    possibilidades de conceptualizao e de categorizao.

    12 Categorization is not a matter to be taken lightly. There is nothing more basic than categorization to our thought,

    perception, action, and speech (LAKOFF, 1987, p. 5).

  • 37

    Embora esses dois processos sejam o foco das investigaes da Semntica Cognitiva,

    como j destacou Feltes (2007, p. 108), a ideia de que as categorias so definidas por

    propriedades comuns acompanha a histria das sociedades h mais de dois mil anos. Sua

    explicao respalda-se em variados enfoques e teorias, no decorrer dos sculos. Existem,

    portanto, a Teoria Clssica, a Teoria Natural e, por ltimo, a Teoria do Prottipo, segundo o

    modelo desenvolvido por Rosch, na dcada de 70, e o de Lakoff, na dcada de 80. Para melhor

    entend-las, seguem alguns breves comentrios.

    A Teoria Clssica de categorizao ou Aristotlica13

    no foi o resultado de um estudo

    emprico, mas uma posio filosfica defendida, a priori, com base em especulaes e seguida

    como uma verdade inquestionvel. (LAKOFF, 1987, p. 6). Embora seu principal representante

    tenha sido Aristteles que, na Antiguidade Clssica, estudou, dentre outras coisas, as categorias

    gramaticais, seus reflexos ainda so percebidos em algumas correntes tericas contemporneas. A

    crena no significado autnomo, por exemplo, determinado por princpios lgicos e

    independentes de quaisquer mecanismos cognitivos, foi compartilhada (e pode-se dizer que ainda

    ) por variadas teorias de condies necessrias e suficientes (TCNS), incluindo o Estruturalismo,

    o Gerativismo e algumas correntes tericas da Psicologia e da Filosofia.

    Dentre os aspectos que se sobressaram no modelo clssico de categorizao, podem-se

    citar: a) a definio das categorias a partir de um conjunto fixo de propriedades consideradas

    necessrias e suficientes; b) o fato de as categorias possurem fronteiras claramente delimitadas e

    c) o fato de todos os membros de uma categoria apresentarem estatuto semelhante. (TAYLOR,

    1989, p. 22-24). Isso pressupunha que se um elemento no partilhasse traos comuns em relao

    a outros elementos no faria parte de uma mesma categoria.

    Nessa perspectiva, os conceitos eram objetivos e desembodied, ou seja, no corporizados,

    conforme designa Johnson (1987), pois no havia relao entre significado e experincia humana.

    Isso significa dizer que o conhecimento lingustico era dissociado do enciclopdico, o que refora

    a ideia autonomista da linguagem propagada pelas teorias formalistas, conforme j se ressaltou.

    Tal abordagem limitava-se s relaes internas ao sistema, ao contexto lingustico (sintagmtico,

    13 Embora seja empregado esse epteto para nomear o enfoque dado categorizao, na Antiguidade Clssica, Silva

    (1999, p. 17, nota 17) considera-o inapropriado, uma vez que, na obra de Aristteles e na tradio filosfica

    ocidental, j se encontravam reflexes ou mesmo concepes sobre a categorizao compatveis com a teoria do

    prottipo.

  • 38

    paradigmtico) e exclua o referente (a coisa qual o significado e o significante se referem), a

    histria, e, principalmente, a forma como o sujeito percebe e conceptualiza o mundo exterior.

    Devido ao rigor dos critrios estabelecidos e s suas incongruncias, o modelo baseado na

    proposta aristotlica no ficou inclume a crticas e a globalidade dessa abordagem foi posta em

    discusso por pesquisadores de diferentes reas do saber, incluindo os da Lingustica. Contudo,

    questionamentos mais acirrados s surgiram com os cognitivistas.

    Em 1953, uma nova concepo de categorizao, tambm conhecida como Teoria

    Natural, foi difundida por Ludwig Wittgenstein. O autor do livro Investigaes Filosficas14

    , ao

    questionar quais as propriedades definidoras da categoria jogo, notou, ao contrrio do que se

    pregava at ento, que os vrios membros que a integram no compartilhavam nem, muito

    menos, precisavam compartilhar de um conjunto de propriedades comuns, o que o levou a

    afirmar que uma categoria no estruturada em termos de caractersticas criteriais partilhadas,

    mas por uma rede de similaridades entrecruzadas.

    O referido filsofo concluiu que alguns conceitos encontrados para o termo jogo, mesmo

    sendo heterogneos, organizavam-se em grupos, cujos limites eram difusos e os seus membros

    podiam compartilhar ou no alguns atributos. A observao de Wittgenstein (1953, 1994, p. 51-

    52) resultou na constatao da existncia de uma rede de semelhanas entre os elementos de uma

    categoria, em pequena e/ou grande escalas, que se sobrepunham umas s outras e se

    combinavam, tal como ocorre entre os membros de uma famlia, quando se observam a estatura,

    os traos fisionmicos, a cor dos olhos, o andar, o temperamento, dentre outras caractersticas.

    A essas similaridades ele deu o nome de semelhanas de famlia ou parecenas de

    famlia (family resemblance). Tal noo, depois defendida por alguns pesquisadores que lhe

    sucederam, repercutiu consideravelmente na Semntica que veio a desenvolver-se, por volta dos

    anos 70, quando o estudo da categorizao ganhou uma explorao emprica mais ampla e

    sistemtica, tornando-se uma grande rea de estudo dentro da Psicologia e da Lingustica, devido,

    principalmente, ao trabalho pioneiro da psicloga Eleanor Rosch que, nesse perodo, em repdio

    viso objetivista clssica da categorizao, passou a dedicar-se ao estudo da estrutura interna

    das categorias, realizando vrias pesquisas que culminaram no desenvolvimento da Teoria do

    Prottipo.

    14 A traduo do livro citado utilizada neste trabalho datada de 1994.

  • 39

    Essa pesquisadora, juntamente com sua equipe, observaram, por meio de estudos

    baseados na aplicao de testes, inquritos e experincias com informantes, segundo preceitua a

    Psicolingustica, que as categorias, em geral, tinham melhores exemplares (muitas vezes

    definidos por critrios que iam desde a escolha dos falantes frequncia de uso) e organizavam-

    se, de forma gradual, em torno de um significado nuclear que era representado por um membro

    tpico, denominado prottipo15

    , com o qual outros membros, mais perifricos, se associavam

    por similaridade.

    Ao demonstrar que no necessrio haver uma nica propriedade comum a todos os

    elementos de uma categoria e que nem todos os seus membros precisam ser iguais, j que pode

    haver elementos mais caractersticos, mais representativos que outros e, portanto, mais

    prototpicos, a referida pesquisadora rompeu com a concepo clssica de categorizao,

    passando, ento, a considerar que o grau de similitude com um prottipo que determina se um

    elemento pertence a uma categoria e no mais condies necessrias e suficientes.

    Deve-se salientar, contudo, que, em decorrncia de o termo prottipo apresentar variados

    sentidos, como j afirmaram Wierzbicka (1985, p. 343), Vilela (2002, p. 19-26) e tambm

    Geeraerts (2006b, p. 18-22), a sua definio no est isenta de problemas. Para esse ltimo autor,

    a prpria noo de prottipo prototpica, visto que a prototipicidade no encerra apenas um

    fenmeno ou um nico efeito, como j se pensou, mas compreende um feixe de fenmenos, de

    caractersticas e de efeitos que se inter-relacionam, por compartilharem propriedades

    parcialmente semelhantes.

    Talvez por isso a Teoria do Prottipo, nos moldes psicolingusticos, embora tenha

    representado um grande avano em relao s teorias anteriores, no deva ser vista como uma

    soluo milagrosa, conforme pondera Kleiber (1995, p. 60): O erro da verso estndar est em

    ter intentado dar uma explicao nica formao de exemplares idneos16

    .

    Segundo ele, a falta de preciso terminolgica e o fato de considerar o prottipo uma

    entidade unificadora, organizadora da categoria ou ainda representante direta de um conceito

    15

    Embora em alguns dicionrios, lexicgrafos atribuam palavra prottipo a noo de primeiro tipo ou exemplar; original, modelo, a designao de prottipo est normalmente atrelada s acepes empregadas nas reas de

    Informtica e Tecnologia. Entre as definies dadas a prottipo, esto: Verso parcial e preliminar de um sistema de

    computador ou de um novo programa, destinado a teste e aperfeioamento; ou ainda, produto fabricado

    individualmente ou produzido de modo artesanal, e segundo as especificaes de um projeto para a fabricao em

    srie, com o propsito de servir de teste antes da fabricao em escala industrial, ou da comercializao.

    (FERREIRA, Aurlio, 1999, p. 1656). 16El error de la version estndar est en que ha intentado dar una explicacin nica, a la formacin de ejemplares

    idneos (KLEIBER, 1995, p. 60).

  • 40

    foram alguns dos equvocos daqueles que idealizaram e estudaram as categorias sob o enfoque

    psicolingustico.

    Em vista disso, ao final dos anos 70 e incio dos 80, as crticas manuteno do modelo

    clssico e da explicao psicolingustica para justificar a formao de categorias propiciaram o

    surgimento de uma nova proposta. Tentou-se, a partir dali, explicar o processo de categorizao,

    no mais por meio de condies necessrias e suficientes ou da simples depreenso de um

    prottipo, considerado, at ento, uma mera representao mental ou um simples exemplar

    padro, mas atravs do Experiencialismo de Lakoff17

    .

    O referido lingista, ainda que tenha preservado alguns aspectos das teorias

    wittegenesteiniana e roschiniana, evidenciando uma perspectiva metodolgica interdisciplinar18

    ,

    buscou fazer algo diferente, na tentativa de explicar, do ponto de vista lingustico e cognitivo,

    como o homem categoriza as coisas, por que motivos e quais as implicaes ou os efeitos disso,

    levando em conta, sobretudo, a relao entre cognio e experincia, antes esquecida.

    Ao refutar a ideia do prottipo como melhor exemplar da categoria e consider-lo um

    efeito de prototipicidade (tese que j havia sido defendida por Rosch, nos estudos realizados em

    fins dos anos 70), a Teoria Experiencialista do Prottipo, difundida por Lakoff, ou Teoria do

    Prottipo na sua verso ampliada, revisada ou polissmica, conforme denomina Kleiber

    (1995, p. 159), props um novo olhar sobre o processo de categorizao e sobre os conceitos

    relativos ao prottipo, distinguindo-se, assim, no s da Teoria Clssica como da Teoria do

    Prottipo, na sua verso inicial ou stndar.

    Abandonou-se, pois, a tese da equivalncia entre grau de representatividade e grau de

    pertena a uma categoria similaridade com o prottipo, passando a v-lo como um elemento

    secundrio, uma vez que os efeitos de prototipicidade so mais relevantes. Nesse sentido, buscou-

    se levar em considerao alguns elementos que foram deixados de lado pela Semntica

    17 Deve-se salientar que o Experiencialismo, defendido por Lakoff (1987) e enfatizado na Semntica Cognitiva,

    refere-se a todo tipo de experincia humana: o movimento dos corpos, a percepo das coisas, a forma de ver o

    mundo e agir nele, a integrao social etc. 18Cabe aqui registrar que as noes de categorizao e de prottipo tais como so apresentadas por Lakoff e Johnson

    (1980) e por Lakoff (1987), mesmo tendo emergido das pesquisas realizadas, na dcada de 70, e tendo sido

    influenciadas por Rosch e por seus colegas, ganharam novos matizes, ao serem empregadas pela Semntica

    Cognitiva, de cunho experiencialista, nos anos 80. Mas, no se pode negar que os trabalhos realizados por

    Wittegeinstein (1953), no mbito da Filosofia; Berlin e Kay (1969), no mbito da Antropologia, e por Rosch e seus

    colegas (na dcada de 70), no mbito da Psicologia, desempenharam um papel determinante na construo do

    paradigma cognitivo, assim como a Teoria da Computao, a Inteligncia Artificial, dentre outras cincias

    cognitivas, que tm contribudo para explicar o fenmeno da prototipicidade.

  • 41

    Estrutural, como os limites difusos das categorias lexicais, a existncia de escalas de tipicalidade

    entre os seus membros, a natureza dinmica do significado das palavras e a importncia da

    metfora e da metonmia como fenmenos conceptuais e no apenas lingusticos. Tais

    caractersticas acabaram por criar um campo propcio e bastante fecundo para o estudo da

    polissemia, que passou a ser vista como um processo de categorizao prototpica fundamentado

    na experincia humana por relaes de natureza cognitiva.

    2.4 TEORIAS DA LINGUSTICA COGNITIVA QUE SUBSIDIAM PESQUISAS SOBRE A

    POLISSEMIA

    2.4.1 A Teoria do Prottipo

    Tanto Geeraerts (2006b, p. 7) quanto Kleiber (1995, p. 155) admitem que um dos grandes

    contributos da Teoria do Prottipo para a Lingustica Contempornea foi o desenvolvimento de

    um modelo vlido para explicar a polissemia dos itens lexicais. Posicionamento semelhante foi

    adotado por Lakoff (1987, p. 378), ao afirmar que esse fenmeno lingustico um caso especial

    de categorizao prototpica, em que os sentidos de uma palavra so considerados membros de

    uma categoria.

    Em face do que prope a Semntica Cognitiva e, por extenso, a Teoria do Prottipo,

    considera-se que a palavra polissmica apresenta um sentido prototpico com o qual outros

    sentidos mais ou menos salientes inter-relacionam-se, por similaridades parciais e por

    parecenas de famlia. Ao referir-se a um exemplo como AB-BC-CD-DE-etc., com base no que

    j haviam postulado Rosch e Mervis (1975), Coimbra (2002, p. 1) afirma que todos os

    significados que pertencem a uma mesma categoria polissmica ficam agrupados no apenas por

    algo em comum partilhado por todos eles mas a partir de associaes e encadeamentos sucessivos

    sobre um significado bsico, primeiro, mais representativo ou central, que o prottipo A.

    Em outras palavras, as categorias polissmicas so complexas, conforme define

    Langacker (1991a), porque apresentam uma estrutura interna que abarca mltiplos sentidos, com

    diferentes graus de representatividade, permitindo variadas interpretaes. Tal viso contrape-se

    ao modelo terico estruturalista, uma vez que a noo de polissemia associada da existncia de

    um ncleo comum de significao entre as palavras, depreendido por meio de anlises

  • 42

    componenciais e de campos lxicos19

    , d lugar ideia de que esse processo resulta de

    categorizaes prototpicas. Da, considerar-se que a estrutura semntica de uma categoria

    prototpica assume a forma de uma rede radial, conforme define Lakoff (1987), cujo membro

    central ou mais saliente o protttpico e os demais no centrais ligam-se a ele por generalizaes,

    especializaes, metforas, metonmias, transformaes de esquemas de imagens etc.

    A noo de salincia empregada em Lingustica Cognitiva, de acordo com Schmid (2007,

    p. 119-120), pode indicar salincia cognitiva e salincia ontolgica. No que se refere

    salincia cognitiva, unidades cognitivas podem ser ativadas, quando so requeridas no

    processamento da fala ou na produo textual, por exemplo. Nesses casos, ou a ativao de um

    conceito pode ser controlada por um mecanismo de seleo consciente, passando a ser o foco de

    ateno do indivduo que o processa na memria corrente, ou a ativao pode ser estendida

    (spreading activation), visto que um conceito, ao ser ativado, pode desencadear outros. J a

    salincia ontolgica refere-se ativao de propriedades inerentes e mais ou menos

    permanentes de entidades do mundo real. Em outras palavras, o autor explica que devido

    natureza de cada entidade, algumas apresentam qualidades que tm um potencial maior para

    atrair a ateno do que outras. Isso verificado na fase de aquisio da linguagem pelas crianas,

    em relao a pessoas, animais, cores, brinquedos. Como se observa, os dois processos interligam-

    se, visto que entidades mais salientes ontologicamente tm maior chance de serem o foco da

    ateno e, portanto, de apresentarem maior salincia cognitiva.

    Para Lakoff (1987, p. 280-281), o que propicia a categorizao a capacidade de

    conceptualizao do homem, evidenciada pela sua habilidade para formar estruturas simblicas

    correlacionadas a estruturas preconceptuais ou perceptuais da experincia diria; para fazer

    projees de um domnio fsico para um abstrato, e para construir conceitos complexos, usando

    esquemas de imagens. Da ser possvel depreender que a causa para a ligao entre os vrios

    sentidos de um item lexical polissmico bem como a identificao dos seus diferentes graus de

    salincia e de semelhana esto na natureza cognitiva da linguagem, isto , nos diferentes

    19

    Mesmo considerando as limitaes da abordagem smica ou distribucional, faz-se importante salientar que a anlise componencial proposta pelas Semnticas Formalistas, mais especificamente Estruturalista e Gerativista, para

    anlise semntica dos itens lexicais no foi de todo rechaada pela Semntica Cognitiva. Tal colocao,

    aparentemente paradoxal, fundamenta-se no posicionamento defendido por alguns cognitivistas, a exemplo de

    Geeraerts (1988, 2006b) e Silva (1999), que consideram esse tipo de anlise um instrumento heurstico indispensvel

    em uma primeira fase da descrio semntica. [...] a anlise componencial deve ser usada, no para definir os itens

    lexicais (nem muito menos como objecto final de anlise), mas antes para traar o seu campo de aplicao (SILVA,

    1999, p. 74).

  • 43

    modelos conceptuais construdos pelos usurios da lngua, denominados idealized cognitive

    model (ICM) ou modelos cognitivos idealizados (MCI), responsveis por estruturar o

    pensamento e embasar a formulao de conceitos. Esses modelos so tambm entendidos como

    culturais, uma vez que o sistema conceptual e vrias categorias geradas pelo ser humano so

    cognitivas e culturais20

    . Nesse caso, pode-se concluir, por extenso, que os prottipos refletem a

    flexibilidade dos sentidos e a sua intrnseca relao com as transformaes scio-histricas e

    culturais do mundo.

    Como possvel constatar, esses modelos no so entidades cognitivas isoladas, mas

    inter-relacionadas, que se combinam e interagem, quando a linguagem processada, formando

    networks. Silva (1997a, p. 14), tal como o fazem Ungerer e Schmid (1996, p. 48-49), cita o

    exemplo do modelo cognitivo estar na praia, que compreende vrios contextos e situaes

    associados a outros modelos cognitivos, a exemplo do mar, do sol, das frias, da areia, da pesca

    etc.

    importante ressaltar, contudo, que, mesmo sendo a polissemia um fenmeno dinmico e

    instvel de criao de sentidos, construdo a partir do conhecimento enciclopdico do indivduo e

    das suas necessidades sociocomunicativas, no catico, pois a flexibilidade que lhe inerente

    no ocorre de forma aleatria nem ilimitada, o que restringe e neutraliza a ampliao dos novos

    sentidos, estabilizando a mudana semntica. fora da flexibilidade [...] junta-se a fora da

    estabilidade (SILVA, 2006a, p. 61), ou seja, apesar da capacidade de fronteira elstica que os

    conceitos tm e da sua contnua reformulabilidade (TEIXEIRA, 2005, p. 26), as mudanas

    semnticas no so abruptas, mas graduais.

    Para ilustrar as correlaes mentais que se estabelecem entre os sentidos prototpicos e os

    sentidos perifricos dentro de uma categoria polissmica bem como para descrever a sua estrutura

    semasiolgica, podem ser utilizados diferentes modelos, a saber: a) redes esquemticas,

    propostos por Langacker (1987); b) redes radiais, difundidos por Lakoff (1987); c) grupos de

    sobreposio (overlaping set model), introduzidos por Geeraerts (1990), e d) complexos

    multidimensionais, defendidos por Silva (2006a).

    Embora a arquitetura da rede esquemtica de Langacker (1987, p. 371) seja alvo de

    crticas, por introduzir a dimenso hierrquica da esquematicidade, a sua vantagem ilustrar

    20 Esses modelos no so universais, porque dependem da cultura, da localidade em que a pessoa cresce e vive.

    (UNGERER; SCHMID,1996, p. 50).

  • 44

    como, possivelmente, se estabelecem as relaes entre significados esquemticos, sentidos

    prottipicos e sentidos perifricos21

    . Ao se optar por esse modelo para descrever um complexo

    polissmico, podem-se representar os vrios usos de um item lexical por meio de retngulos ou

    ns, que se interligam, reproduzindo diferentes relaes de elaborao, com vrios nveis de

    esquematicidade, representadas por setas contnuas, e vrias cadeias de extenso, indicadas pelas

    setas descontnuas, conforme se verifica na figura a seguir:

    Figura 1 - Modelo de Rede Esquemtica (network)

    Fonte: Silva (2006a, p. 71)

    Segundo Lakoff (1987, p. 69-70), em uma teoria esquemtica, cada esquema um

    network de ns e ligaes. Todo n em um esquema corresponde a uma categoria conceptual e as

    propriedades da categoria dependem do papel daquele n em um dado esquema, das suas relaes

    com outros ns no esquema, da relao daquele esquema com outros esquemas e da total

    interao daquele esquema com outros aspectos do sistema conceptual.

    No muito diferente das redes esquemticas o modelo das redes radiais ou radial

    model, apresentado pelo prprio Lakoff (1987) e de grande aplicabilidade no estudo da

    polissemia. A configurao estrutural desse modelo pressupe a existncia de um centro

    prototpico em torno do qual outros elementos mais ou menos perifricos, mais ou menos

    salientes encontram-se inter-relacionados. Esses membros no centrais podem ser variantes do

    prottipo ou variantes de outras variantes (BRUGMAN; LAKOFF, 2006, p. 109) e podem

    interligar-se aos outros membros ou entre si, por meio de encadeamentos sucessivos. Na figura a

    21 Silva (2006a) pondera, entretanto, que o modelo da rede pode ser inadequado, se no for bem interpretado, ou seja,

    se os sentidos forem considerados isoladamente, como ilhas bem delimitadas, representando os nicos significados

    que uma palavra pode assumir, pois a estrutura de uma categoria polissmica no rgida.

    Prottipo Extenso

    Esquema

  • 45

    seguir, o elemento prototpico ocupa o crculo do meio, os menos centrais situam-se esquerda e

    o mais perifrico, direita. Em algumas redes, o ncleo prototpico pode vir destacado e a cadeia

    de relaes entre os elementos que a constituem pode assumir vrias direes, conforme se

    verifica na figura a seguir.

    Figura 2 - Representao de uma rede radial

    Fonte: Lewandowska-Tomaczczyk (2007, p. 156)

    Um outro modelo para ilustrar a categorizao prototpica o overlapping set model, isto

    , grupos em sobreposio, proposto por Geeraerts (1989). Nesse modelo, os elementos bsicos

    so agrupados com base nas caractersticas que compartilham e nos sentidos que expressam. As

    sobreposies desses elementos so apresentadas por meio de diagramas que mostram as

    salincias estruturais. Trata-se de uma ilustrao cuja rea de sobreposio mxima corresponde

    ao centro prototpico da categoria e as demais reas representam elementos de menor

    prototipicidade, conforme demonstram Geeraerts (1989, p. 599), Silva (1999, p. 42) e

    Lewandowska-Tomaczczyk (2007, p. 155), na figura reproduzida a seguir:

  • 46

    Figura 3 - Representao de redes de sobreposio ou overlapping

    Fonte: Silva (1999, p. 42)

    Por fim, uma outra maneira de representar a categorizao e de descrever as consequentes

    relaes prototpicas de um item lexical bem como a sua polissemia levar em considerao a

    sua multidimensionalidade, pois se entende que uma categoria polissmica um espao

    muldimensional e sua estrutura pode ser o resultado da combinao de duas ou mais dimenses

    que esto na base das suas ligaes semnticas. Na ilustrao exposta a seguir, Silva (2006a, p.

    247) busca mostrar, por meio de um complexo multidimensional, a polissemia do objeto indireto

    (OI), considerando a combinao das dimenses espacial e funcional. As linhas tracejadas que

    saem do crculo, embora no estejam especificadas, visam a mostrar que dali partem os distintos

    sentidos do OI:

  • 47

    Figura 4 - Representao do complexo multidimensional do prottipo do OI em portugus

    Fonte: Silva (2006a, p. 247)

    Essas diferentes possibilidades de explicar e representar a polissemia de um item lexical,

    sob o enfoque cognitivista, permitem depreender que as inter-relaes de sentidos podem ser

    provenientes de instanciaes ou elaboraes (especificaes, generalizaes, transformaes de

    esquemas imagticos) e de extenses semnticas (projees metafricas e/ou metonmicas). Da

    considerar-se que a anlise semasiolgica de uma categoria polissmica no pode prescindir da

    reviso, ainda que sucinta, das teorias que explicam qual a relao desses mecanismos

    conceptuais com a polissemia lexical.

    2.4.2 A Teoria da Metfora e da Metonmia Conceptuais

    O desenvolvimento da Teoria da Metfora Conceptual ou TMC deve-se aos estudos

    realizados por George Lakoff e seus colegas a partir da dcada de 70. O livro Methaphors we life

    by (1980), j citado, alm de ser considerado por muitos um ponto de partida para os estudos

    cognitivistas sobre a metfora e tambm sobre a metonmia (fenmeno semntico no menos

    importante), foi um dos marcos iniciais para a consolidao da TMC como uma das linhas de

    investigao da Lingustica Cognitiva.

    Para Zanotto et al. (2002, p. 11), ao proporem a reformulao do paradigma at ento

    vigente, Lakoff e Johnson romperam no s com o modelo objetivista da metfora e da

  • 48

    metonmia mas tambm com a tradio retrica, que, durante muito tempo, dominou a cultura

    ocidental. Nesse sentido, os processos metafricos e metonmicos deixaram de ser vistos como

    simples figuras de linguagem ou tropos, de natureza essencialmente lingustica, tpicos do texto

    literrio, para serem intrerpretados como fenmenos conceptuais, responsveis pela mudana de

    significados, pela gramaticalizao e pela polissemia, ocupando assim um lugar de destaque no

    campo dos estudos semnticos.

    A centralidade da metfora e da metonmia, na abordagem cognitiva da significao

    lexical, testemunhada por Silva (2006a, p. 111) na afirmao que se segue:

    Esta deslocao para o plano do sistema conceptual de fenmenos

    tradicionalmente identificados na linguagem e relegados para um

    nvel anormal e este reconhecimento da naturalidade e ubiquidade do pensamento metafrico e metonmico enformam a teoria

    cognitiva contempornea da metfora e da metonmia,

    inicialmente explorada no trabalho seminal de Lakoff e Johnson

    (1980) e, depois, em Lakoff (1987), enquadrando filosoficamente a nova abordagem [...]

    Como se pode constatar, no excerto transcrito, os fenmenos metafrico e metonmico so

    concebidos como elementos essenciais para a categorizao do mundo. Ambos evidenciam como

    aspectos da vida cotidiana podem associar-se a situaes mais complexas ou desconhecidas da

    experincia humana e refletir as formas de perceber, de pensar e de organizar o raciocnio. A

    interpretao desses fenmenos, antes considerados inerentemente lingusticos, segundo tal

    perspectiva, confirma a integrao entre corpo/mente e ilustra o experiencialismo ou realismo

    corporizado (embodied realism) do pensamento e da linguagem difundido por Lakoff e Johnson

    (1980, 2002), por Lakoff (1987) e por Johnson (1987). Em outras palavras, estudar a metfora e a

    metonmia, sob o enfoque cognitivo, representa conhecer a maneira como o homem que emprega

    esses mecanismos de construo de sentidos vive, como se relaciona em sociedade, como executa

    tarefas, como concebe a felicidade, a sade, o amor, o poder, dentre outros aspectos da vida.

    Segundo a Teoria da Metfora e da Metonmia Conceptuais (TMC), a relao entre

    conceitos concretos e abstratos estabelece-se por meio de um processo de transferncia nomeado

    mapping22

    , que significa projeo entre domnios conceptuais e resulta da conceptualizao de

    um domnio mental ou de experincia, em lugar de outro. Para explicar como isso ocorre, pode-se

    22 O termo mapping, segundo Grady (2007, p. 190), foi emprestado da matemtica, para referir-se s

    correspondncias metafricas sistemticas entre ideias relacionadas entre si.

  • 49

    reportar a trs princpios da teoria: a unidirecionalidade, a motivao experiencial e a

    invarincia.

    Embora questionado por alguns estudiosos, o princpio da unidirecionalidade refere-se

    tendncia de se criarem metforas tpicas, ou seja, de se usar uma fonte mais concreta para

    descrever um alvo mais abstrato, que se deve, segundo Silva (2006a, p. 132), necessidade de

    simbolizar as conceptualizaes de uma maneira mais fcil de serem apreendidas durante a

    interlocuo, pois, ao falar do abstrato em termos do concreto, cria-se a iluso da objetividade e

    facilita-se a comunicao. O outro princpio o da motivao experiencial, segundo o qual, as

    associaes entre domnios no so arbitrrias, mas experiencialmente motivadas, uma vez que

    refletem a forma como os indivduos percebem e interpretam o mundo. (GRADY, 2007, p. 192).

    J o princpio da invarincia determina que a projeo do domnio fonte no pode violar a

    estrutura esquemtica do domnio alvo, de modo que, em uma mudana semntica, mesmo

    ignorando-se detalhes da imagem fonte, as estruturas esquemticas devem ser preservadas.

    (OAKLEY, 2007, p. 223).

    Em sntese, diz-se que a metfora estabelece uma relao de similaridade, envolvendo a

    interao entre diferentes domnios; enquanto a metonmia estabelece uma relao de

    contiguidade dentro de um mesmo domnio, isto , de um domnio matriz, ligando um contedo

    fonte a um contedo alvo menos acessvel, conforme definem Panther e Thornburg (2007, p.

    240). Para ilustrar tais relaes, veja-se a figura a seguir:

    Figura 5 - Metfora vs. Metonmia

    Metfora Metonmia

    Domnio Origem Domnio Alvo Domnio

    Fonte: Silva (2003, p. 28, adaptada de CUENCA; HILFERTY, 1999, p. 111)

    A B C

    A A

    1 2

    3

  • 50

    Tal distino, no entanto, no ponto pacfico. H tericos da Semntica Cognitiva que

    acreditam em uma oposio entre os dois fenmenos, outros, em um continuum (uma vez que as

    fronteiras entre ambos no so to rgidas), e outros ainda que veem na metonmia a primariedade

    cognitiva sobre a metfora, a exemplo de Taylor (1989, p. 124) e de Barcelona (2000, p. 4), para

    os quais, a metonmia um processo de extenso, provavelmente, mais bsico que a metfora.

    Panther e Thornburg (2007, p. 240), por seu turno, alm de citarem as contribuies de Ruiz de

    Mendoza e Otal Campo (2002) e de Geeraerts (2002) para a elucidao da polmica que circunda

    esse tema, fazem referncia a Goossens (1990, 2002) que, em seu estudo sobre a interao entre

    metfora e metonmia, a que denomina metaphtonymy ou metaftonmia, apresenta quatro tipos

    de interao, a saber: metfora proveniente de metonmia, metonmia dentro da metfora,

    demetonimizao dentro de uma metfora e metfora dentro da metonmia.

    Uma outra questo de fundamental importncia para um melhor entendimento do

    processo de metaforizao distinguir metforas e metonmias conceptuais, como esquemas ou

    padres do sistema conceptual, de metforas e metonmias lingusticas ou expresses metafricas

    e metonmicas, como realizaes lingusticas desses padres de conceptualizao. Em linhas

    gerais, as metforas conceptuais so esquemas abstratos que servem para agrupar expresses

    metafricas. J essas ltimas podem representar casos individuais das primeiras.

    Barcelona (2000, p. 5), seguindo essa linha de raciocnio, assegura que a expresso

    lingustica pode, eventualmente, deixar de ser usada metaforicamente e metonimicamente, mas a

    projeo conceptual correspondente pode ainda viver e refletir-se em muitas outras expresses

    lingusticas. Quer isto dizer que as metforas conceptuais so mais estveis, ao passo que as

    expresses metafricas podem ser temporrias, pois os domnios de experincia em que so

    empregadas no so os mesmos em todas as culturas e variam, conforme a poca, a sociedade, a

    comunidade de fala em que surgiu ou o modelo cultural adotado.

    Para Lakoff e Johnson (2002, p. 71, 75, 134), h trs grandes grupos de metforas

    conceptuais: as ontolgicas, as orientacionais e as estruturais. As ontolgicas so bastante

    comuns no pensamento humano e relacionam eventos, atividades, emoes, ideias e processos a

    entidades e substncias. As orientacionais partem de experincias culturais e fsicas e esto

    associadas orientao espacial. Por ltimo, as estruturais, assim como as outras duas,

    fundamentam-se em correlaes sistemticas pautadas na experincia, o que permite usar um

    conceito estruturado e detalhado de maneira clara para estruturar um outro conceito.

  • 51

    A Teoria da Metfora Conceptual tem recebido, desde o seu surgimento com Lakoff e

    Johnson (1980, 1999), muitos contributos e algumas revises. Ao admitir que os mapeamentos

    metafricos so experiencialmente mais bsicos e no to complexos quanto o que propunha o

    modelo de anlise metafrica de Lakoff e Johnson (1980), Grady (1997), por exemplo, cria a

    Teoria das Metforas Primrias, com vistas a explicar a base experiencial do domnio origem e

    do domnio alvo bem como a analisar o que motiva a metfora e como ela acontece. Busca-se,

    assim, estabelecer a relao entre experincias acumuladas pelo homem e a gerao de metforas

    primrias (GRADY, 1997, 2007; LAKOFF; JOHNSON, 1999), consideradas naturais,

    provenientes de conexes neurais, e consequncias inevitveis de associaes que se repetem na

    vida diria, em contraposio s metforas complexas, convencionais e no experienciais, muitas

    vezes, originadas a partir da combinao das prprias metforas primrias. (GRADY, 2007, p.

    194).

    Alm de evidenciar como se do as motivaes e as correlaes experienciais no processo

    de formao de metforas, a Teoria Geral da Metfora Primria ou Teoria Integrada da Metfora

    Primria, busca explicar, dentre outras coisas, como ocorre a aquisio das projees metafricas

    pelas crianas. A referida teoria constitui-se de quatro componentes: a Teoria da Fuso, de

    Christopher Johnson, que diz respeito ao processo de aprendizagem, na fase da infncia, em que

    so fundidas experincias sensrio-motoras e no sensrio-motoras; a Teoria da Metfora de

    Grady (1997), que defende que as metforas complexas so moleculares e construdas por meio

    da integrao de metforas primrias; a Teoria Neural da Metfora, estudada por Lakoff e

    tambm por Narayanan, que se posiciona em favor de que as associaes feitas no perodo de

    fuso resultam em conexes neurais permanentes estabelecidas entre redes neurais que definem

    domnios conceptuais; e, por ltimo, a Teoria da Integrao Conceptual ou Blending, que defende

    a formao de mesclas conceptuais, a partir de conexes entre domnios conceptuais distintos.

    (FELTES, 2007, p. 163).

    Essa ltima teoria, desenvolvida por Fauconnier em parceria com Turner (2002),

    originria da Teoria dos Espaos Mentais do prprio Fauconnier, sendo complementar Teoria

    Contempornea da Metfora Conceptual, conforme descreve Silva (2006a, p. 147):

    Esta nova teoria procura explicar como que falantes e ouvintes registam

    correspondncias conceptuais e constroem novas inferncias durante o

    processo discursivo. A ideia nova e central a de que na projeo conceptual, tal como decorre no discurso, os domnios origem e alvo (ou

  • 52

    espaos input) so projetados num espao integrado (blend), cuja

    estrutura conceptual no deriva inteiramente dos espaos input.

    De acordo com essa perspectiva, a conceptualizao surge a partir da integrao ou

    mesclagem ou blending, em que so projetados elementos de diferentes espaos. Esse processo

    envolve no dois domnios, como na teoria da metfora conceptual, mas, pelo menos, quatro

    espaos mentais. (SILVA, 2006a, p. 148). H, nesse caso, um espao amlgama (blended

    space), tambm denomindado espao mescla, que integra, de modo parcial, estruturas

    especficas dos demais espaos e apresenta uma estrutura emergente prpria. (COIMBRA, 1999,

    p. 61).

    Embora a Teoria da Integrao Conceptual seja muito utilizada em estudos semnticos

    realizados no Brasil e Fauconnier e Turner (2002) busquem mostrar a importncia do processo de

    integrao conceptual no desenvolvimento da polissemia, seus princpios no foram seguidos na

    presente tese, diferentemente do que se fez em relao s Teorias do Prottipo, da Metfora e da

    Metonmia Conceptuais, j mencionadas, e dos Esquemas de Imagens e dos Frames, que, por

    exercerem tambm um importante papel nos estudos da mudana semntica, da gramaticalizao

    e de categorias polissmicas, fundamentam a anlise a ser apresentada.

    2.4.3 A Teoria dos Esquemas de Imagens

    Como j se sabe, um dos principais objetivos da Semntica Cognitiva mostrar que

    grande parte do conhecimento humano no esttico nem meramente proposicional ou apenas

    conceptualmente abstrato, mas embasado e estruturado por aes corporais que derivam de

    processos motores, perceptuais, conhecidos como esquemas de imagens, esquemas corporais

    ou esquemas imagticos.

    Segundo Heine (1997, p. 45), a Teoria dos Esquemas de Imagens tem sido aplicada em

    distintas reas, como a Psicologia Cognitiva, a Psicologia Social e a Antropologia. Oakley (2007)

    afirma que as suas noes so tambm empregadas nas investigaes psicolingusticas de Gibbs

    (1994) e Gibbs e Colston (1995), na crtica literria de Turner (1987), na gramtica de Langacker

    (1987) e de Talmy (1983), e em estudos relativos matemtica e modelagem computacional.

    Na Lingustica, a noo atribuda a esquemas surgiu a partir das pesquisas empricas

    sobre relaes espaciais, realizadas por Talmy e por Langacker, na dcada de 70. Mas, foi no ano

  • 53

    de 1987, que a designao esquemas de imagens, tal como se conhece em Semntica

    Cognitiva, apareceu simultaneamente, nos livros The body in the mind, de Johnson, e Women,

    fire, and dangerous things, de Lakoff, despontando como um tema de grande importncia23

    . O

    seu clssico locus , segundo Oakley (2007, p. 214), a Teoria da Metfora Conceptual,

    conforme assevera: Desde ento, esquemas de imagens tm ajudado Johnson (1987, 1993) a

    estabelecer uma epistemologia e uma filosofia moral e tem ajudado Lakoff (1987) a articular uma

    teoria de categorizao24

    .

    Alguns estudos, e mais precisamente os realizados por Johnson (1987), sugerem que

    diferentes esquemas de imagens e vrias de suas transformaes aparecem regularmente no

    pensamento, no raciocnio e na imaginao das pessoas, motivando a sua forma de pensar, de

    raciocinar e de imaginar. (GIBBS, JR.; COLSTON, 1995; 2006, p. 241). Tais rotinas envolvem a

    coordenao de mltiplos atos de sentir, perceber, mover, conceptualizar. Utilizando as palavras

    de Oakley (2007, p. 215, 218), esses esquemas glue, isto , colam, unem redes semnticas

    radiais complexas e embasam o conhecimento e os significados fundamentais construdos pelos

    seres humanos.

    importante salientar, entretanto, que o esquema propriamente dito no uma imagem

    rica, isto , no corresponde a uma imagem real, concreta ou a uma pintura mental. Como adverte

    Lakoff (1987, p. 444), o termo imagem, nesse caso, no se limita ao campo da viso e, por

    conseguinte, no meramente pictrico, visto que existem imagens auditivas, olfativas e imagens

    referentes dinmica de foras que atuam sobre o homem, sendo possvel at construir uma

    imagem mental de alguma coisa que nunca foi vista e da desenvolver conceitos.

    Trata-se, pois, de estruturas esquemticas, no proposicionais, que no se referem a uma

    representao semntica especfica nem a uma imagem esttica. Ao contrrio da fixidez que

    aparentam os diagramas que as representam, podem ser modelos dinmicos e flexveis, porque

    ilustram aes e adequam-se s situaes em que se manifestam, surgindo diretamente da

    experincia corprea com o mundo.

    Embora esses esquemas e subesquemas no constituam uma lista fechada, pois no h um

    consenso quanto ao nmero total existente, Johnson (1987), Hampe (2005, p. 2) e Oakley (2007,

    23 Vale ressaltar, entretanto, que foi Immanuel Kant, no sculo XVIII, um dos primeiros estudiosos a pensar sobre a

    relao entre conceito e percepo. Para ele, esquemas eram estruturas da imaginao. 24 The locus classicus of image schema theory is Lakoff and Johnsons (1980) conceptual theory of metaphor. Since

    then, image schema theory has helped Johnson (1987, 1993) establish an epistemology and moral philosophy and has

    helped Lakoff (1987) articulate a theory of categorization (OAKLEY, 2007, p. 214).

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    p. 217) citam os seguintes: continente/contedo, tambm conhecido como container ou

    recipiente, origem-percurso-meta, ligao, parte-todo, centro-periferia, balana, fora,

    possibilidade, bloqueio, contrafora, atrao, compulso, restrio, remoo, diverso, contato,

    escala, perto-longe, superfcie, cheio-vazio, processo, ciclo, interao, fuso, combinao,

    ruptura, objeto, coleo, para cima-para baixo, frente-trs, movimento inanimado, movimento

    inanimado, movimento prprio, movimento causado, locomoo e expanso, reta, resistncia,

    direita-esquerda.

    Alguns desses esquemas so mais gerais; outros, mais especficos. Alguns so mais

    primrios, porque so gestalts25

    experienciais; outros sugerem uma estrutura mais complexa.

    Alguns so construdos como cenas dinmicas ou estticas; outros, como processos ou estados.

    De modo geral, conectam-se a uma vasta gama de experincias que manifestam uma estrutura

    re


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