EDER DA SILVA RIBEIRO
O Conselho de Estado no tempo de D. Pedro I: um estudo da poltica e da sociedade no Primeiro Reinado
(1826-1831)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao de Histria Social da Universidade
Federal Fluminense (PPGH/UFF) como requisito
parcial para a obteno de grau de Mestre em
Histria.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimares
Niteri 2010
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EDER DA SILVA RIBEIRO
O Conselho de Estado no tempo de D. Pedro I: um estudo da poltica e da sociedade no Primeiro Reinado
(1826-1831)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao de Histria Social da Universidade
Federal Fluminense (PPGH/UFF) como requisito
parcial para a obteno de grau de Mestre em
Histria.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimares (UFF)
_____________________________________________ Profa. Dra.. Gladys Sabina Ribeiro (UFF)
_____________________________________________ Profa. Dra. Maria Fernanda Vieira Martins (UFJF)
_____________________________________________ Prof. Dr. Tho Lobarinhas Pieiro (UFF)
Niteri 2010
3
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
R484 Ribeiro, Eder da Silva. O Conselho de Estado no tempo de D. Pedro I: um estudo da poltica e da sociedade no Primeiro Reinado (1826-1831) / Eder da Silva Ribeiro. 2010. 197 f.
Orientador: Carlos Gabriel Guimares. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2010. Bibliografia: f. 183-197.
1. Brasil Histria I Reinado, 1822-1831. 2. Brasil, Conselho de Estado, 2, 1823-1834 - Histria. 3. Poltica Imprio. I. Guimares, Carlos Gabriel. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 981.04
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minha me, por tudo.
rsula Lopes Neves, pelos momentos de infinita felicidade.
5
AGRADECIMENTOS
Muitas vezes no conseguimos perceber a dimenso daquelas pequenas coisas que
no fundo so as partes constitutivas da nossa prpria histria de vida. Todas as dificuldades,
incertezas e temores pelos quais passei ao longo da elaborao dessa dissertao no
poderiam ter sido vencidos sem o amor, o carinho e a amizade de personagens que, mesmo
sem notar, contriburam imensamente para o resultado final deste trabalho. Com cada uma
delas eu divido o que h de melhor no apenas nas linhas que estampam as pginas que se
seguem, mas na prpria essncia do que sou. So pessoas que de alguma forma
possibilitaram que a alegria estivesse sempre presente, independentemente dos obstculos
que necessariamente encontramos em nossas trajetrias. Aos que no tiveram seus nomes
lembrados eu peo desculpas pela falta. Saibam que vocs foram tambm muito
importantes.
minha pequena, rsula Lopes Neves, eu agradeo pela histria de amor que
estamos escrevendo juntos. Nada do que aqui se encontra teria sido possvel se eu no
pudesse contar com seus carinhos, suas palavras doces, seus beijos e seus abraos, fortaleza
indestrutvel que me abrigou nos momentos de maiores dificuldades. voc, confio os
meus sonhos e meu futuro.
Aos meus pais, ngela e Agnaldo, faltam palavras para expressar meus
agradecimentos. Exemplos de honestidade e dedicao, no mediram esforos emocionais e
materiais para possibilitar que eu vencesse todos os obstculos que apareceram pela frente.
A eles sei que nunca poderei retribuir tudo o que me proporcionaram, mas ofereo todo o
amor e gratido de um filho.
Com cada um da minha extensa famlia, tios, tias, primos e primas, compartilho a
felicidade e agradeo pela torcida e apoio incondicional que dispensaram a mim. Ao
Fernando sou ainda grato pela ajuda em alguns momentos da pesquisa. minha av
Tereza, que sempre uma das mais entusiasmadas com as minhas conquistas, espero estar
correspondendo ao enorme amor e carinho que venho recebendo desde os primeiros
momentos da minha existncia.
dona Marli, seu Carlos, Penelope e Bruno sou agradecido pelos incentivos e
apoios que sempre fizeram questo de demonstrar. Da minha pequena afilhada, a
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migobrinha Lavnia, nascida nos meses finais de escriturao dessa dissertao, lembrarei
sempre dos momentos de descontrao que sua presena me proporcionou.
dona Sarinha, Dr. Roberto, dona Regina, seu Jorge, Lucas, Pedro e todos que
fazem parte dessa famlia, pessoas de valor inestimvel na minha vida, sou eternamente
agradecido pela amizade e convivncia que sempre ensejaram grandes alegrias minha
histria.
Tambm aos amigos devo meus mais sinceros obrigados, pois eles so uma parte
essencial dessa minha trajetria. Suportando as faltas e o mau-humor, Rafael, Gisela, Cris e
Luizinho sempre ajudaram de algum modo na realizao deste trabalho. E como me
esquecer do privilgio que tive de reforar, durante os anos do mestrado, laos de amizades
construdos ainda nos tempos da graduao? Por isso, aos meus grandes amigos Fbio e
Tonho, Larissa, ao Emiliano, Izabela, ao Rodrigo, Letcia, Vanessa, ao Luiz filsofo,
ao Lusitano, Ludimila, Camila, Ceclia, ao Marcos Felipe, ao Leito e Lucrecia
agradeo profundamente pelos momentos venturosos e inesquecveis desses ltimos anos.
Tambm ao amigo Diego agradeo pela fora dada na leitura dos Dirios da Cmara dos
deputados, uma tarefa bastante inglria, que contou ainda com a ajuda do colega Pedro
Frana.
Igualmente no poderia deixar de fora os amigos da Escola Bianor. A todos sou
grato pela ajuda e interesse, especialmente direo, que cooperou sempre no que foi
preciso, professora Teresa, pela ajuda no ingls, e ao professor Fbio, que muitas vezes
foi obrigado a ouvir a histria dos conselheiros na viajem entre Petrpolis e a cidade das
guas de maro, to querida do poeta Tom Jobim. Lembro ainda dos incentivos dos colegas
do Ciep Ceclia Meireles e do Colgio Walter Francklin.
Ao meu orientador, professor Carlos Gabriel Guimares, devo meus mais profundos
agradecimentos pelos comentrios sempre pertinentes e por toda ajuda, pacincia, confiana e
ateno que me foram generosamente concedidos desde a poca da graduao.
s professoras Gladys Sabina Ribeiro e Maria Fernanda Martins sou grato pelas
valiosas contribuies apresentadas na banca de qualificao e pelo acolhimento carinhoso que
dispensaram ao trabalho.
Ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Universidade Federal
Fluminense e ao CNPq, por tornarem possvel a concretizao dessa pesquisa.
7
RESUMO
Este trabalho trata do papel que teve o Conselho de Estado ao longo do reinado de D. Pedro
I. Criada com o objetivo de auxiliar o monarca no uso das atribuies do Poder Moderador,
a instituio se mostrou um espao privilegiado para o exerccio da dominao poltica e
para a reiterao das hierarquias sociais, sobretudo na medida em que possibilitou aos seus
membros reproduzirem no interior do Estado uma antiga prtica institucional baseada nos
relacionamentos diversos de carter pessoais. Apreendendo as origens e as trajetrias
individuais dos conselheiros, bem como as redes sociais das quais eram provenientes, o
estudo procurou contribuir tanto para um melhor entendimento das esferas mais bsicas do
jogo poltico existente no Primeiro Reinado, quanto para a compreenso dos embates
parlamentares que contriburam decisivamente para a abdicao do primeiro Imperador.
Palavras-Chave: Primeiro Reinado, Conselho de Estado, campo poltico.
8
ABSTRACT
This work is about the role that the State Council had during D. Pedro I reign. Created with
the objective to help the monarch with the Moderate Power attributions, the institution
turns to be a special place to exercise political domination and to reiterate the social
hierarchy, meanly by given their members the possibility to reproduce in the State county
an old institutional practice based on several personal relations. Assimilating the origins
and individual ways of the councils, as well as the social webs of which they had came
from, the study had the purpose to contribute to best understanding the basic points of the
political game already present in the first reign, as well as to the parliamentarian fights that
made their decisive contribution to the abdication of the first emperor.
Key words: First reign, State Council, political camp
9
SUMRIO:
Introduo.............................................................................................................................10
Captulo 1 O Conselho de Estado: espao de diferenciao social....................................31
1.1 A Soberania em foco: da Revoluo do Porto dissoluo da Constituinte em
1823..............................................................................................................................32
1.2 Origem, organizao e funcionamento do Conselho de Estado..........................55
1.3 O Conselho de Estado como importante espao de distino social no Primeiro
Reinado........................................................................................................................64
Captulo 2 Conflitos e disputas polticas no Primeiro Reinado: as divergncias entre os
ilustrssimos senhores deputados e os excelentssimos conselheiros de Estado...................84
2.1 O discurso como prtica social no Primeiro Reinado.........................................85
2.2 O poder em disputa: desenvolvimento e irradiao dos conflitos a partir da
Cmara dos deputados.................................................................................................94
Captulo 3 Os conselheiros de Estado como artfices de novas estratgias para
manuteno e reproduo de antigas redes polticas e sociais............................................132
3.3 - O papel das redes nas estratgias de reproduo das hierarquias de poder.......133
3.2 Famlia e poder: redes sociais que fazem homens de Estado............................140
3.3 O percurso do poder: os conselheiros e os campos sociais.....................................162
Concluso.....................................................................................................................................179
Fontes e Bibliografia....................................................................................................................182
Anexos.................................................................................................................................197
10
INTRODUO
Minha fora no o desejo de poder. Este cargo no me acrescenta nada seno agruras, injustias, decepes e trabalho, mas minha certeza de que nada fiz de errado1.
Jos Sarney
Ao longo da elaborao deste trabalho rebentou no Senado uma das mais graves
crises polticas de sua histria, tendo como personagem central nada menos que um ex-
presidente da Repblica que poca ocupava a cadeira da presidncia daquela Casa. As
principais acusaes estavam vinculadas aos possveis favorecimentos articulados por
Sarney em prol de parentes e amigos para a ocupao de cargos na instituio atravs de
atos secretos, ao suposto trfico de influncia exercido por ele para beneficiar a fundao
que leva o seu nome no Maranho, alm de denncias de sonegao fiscal relacionadas
omisso de algumas de suas propriedades.
Diante de todas essas delaes, e visivelmente transtornado, Jos Sarney se viu
obrigado a se defender por meio de um discurso que entrou para a histria, no qual fez
questo de lembrar a sua trajetria poltica e de enfatizar que estava sendo vtima de uma
campanha sistemtica e agressiva da imprensa, cujas reportagens eram a base das
representaes impetradas contra ele com o intuito de se criar luta eleitoral, coisas
menores, segundo ele, que no representam nenhuma queda de padro tico, podendo
inclusive serem jogadas e manipuladas por estarem exatamente respaldadas por recortes
de jornal2. Procurou tambm compartilhar com os demais senadores e com os seus
antecessores na presidncia do Senado a responsabilidade pelos atos secretos, afirmando
no possuir culpa por eles no terem sido divulgados e se esforando por fazer transparecer
uma naturalidade quanto existncia desses atos no cotidiano da instituio.
A despeito do resultado das investigaes conduzidas pelo Conselho de tica do
Senado que, diga-se de passagem, arquivou todas as denncias o que chama ateno o
1 Jornal O Globo. 06 de agosto de 2009, p. 03. Esse trecho, bem como os demais citados adiante, foram extrados pelo jornal do discurso pronunciado por Sarney na tribuna do Senado no dia anterior. 2 Idem, pp. 03 e 08.
11
objeto das representaes contra o ex-presidente e o fundamento que deu substncia
oratria do velho poltico representante do Estado do Amap. Tal como no momento de
fundao das instituies polticas do Brasil independente os relacionamentos pessoais e os
apadrinhamentos polticos tm grande peso no trato e no modo de se lidar com a coisa
pblica, sem que com isso se alterasse de forma profunda os alicerces fundamentais dos
discursos parlamentares, que terminantemente no encontram paralelo com suas prticas
polticas.
J no primeiro ano de legislatura, em 1826, os parlamentares em diversas falas
proferidas na Cmara dos deputados declaravam que no estavam ali por interesses
particulares, mas para o bem da nao. Raymundo Jos da Cunha Mattos, quando da
discusso do projeto de lei que dispunha das providncias a serem tomadas contra os
senadores e deputados eleitos que no se apresentassem para ocupar seus lugares na
representao nacional, afirmava ter deixado 10 mil cruzados de rendimento para trs em
Gois para ir tomar assento sem saber e mesmo sem querer saber quanto receberia ali.
Nada me embaraou, tudo desprezei para obedecer voz do governo e da nao.
Opinando sobre esse mesmo assunto, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro foi taxativo ao
defender que no se deveria considerar naquele momento o lugar de representantes da
nao como uma honra, ou como um emprego lucrativo: tenhamo-lo como verdadeiro
nus3.
As semelhanas entre as peas oratrias apresentadas pelo presidente do Senado em
2009 e pelos deputados eleitos para a primeira legislatura imperial expressam, com as
devidas nuanas e em que pese as rupturas ocorridas na organizao institucional do
Estado, uma continuidade inequvoca no que se refere s preocupaes por parte dos
representantes eleitos para o Congresso Nacional em passar uma imagem de integridade e
retido quando o assunto so as acusaes de desvios de conduta na tica pblica, desvios
estes que no fundo no se constituem em singularidades especficas de determinados grupos
polticos que compem o universo da poltica brasileira, mas antes so a regra de uma
formao estatal que no se desvencilhou completamente dos antigos laos que amarravam
as relaes pessoais poltica, mesclando permanentemente os interesses privados com os
3 Anais do Parlamento Brasileiro. Cmara dos deputados. Sesso ordinria de 03 de junho de 1826.
12
da administrao pblica, deixando as marcas de um patrimonialismo4 arraigado que se
esconde atrs de discursos e por sob o manto de campanhas publicitrias e de esquemas
clientelsticos bem-sucedidos que garantem a perpetuao dos envolvidos no poder em suas
diferentes esferas, seja no nvel local, regional ou nacional.
Se assim acontece porque nos embates que constituem e fornecem o dinamismo
necessrio ao campo poltico aqueles setores que se encontram mais distantes dos centros
decisrios tendem a se utilizar de estratgias que procuram fornecer uma imagem de
compromisso com os interesses da maioria e com os do prprio Estado, mas que na
realidade no podem ser caracterizadas como diferenas de grande alcance em relao aos
demais, haja vista a existncia de um espao de disposies de aes que fornece os
contornos do que vlido no jogo e que impede o transbordamento de seus procedimentos
para alm das fronteiras que constituem o campo. A Lei de Responsabilidade dos Ministros
e Conselheiros de Estado e os objetivos ensejados com a sua criao um bom exemplo
disso, pois se inicialmente ela aparecia para os legisladores temporrios da primeira
legislatura apenas como um meio de se evitar os possveis desmandos por parte dos
ministros e conselheiros de Estado, o crescente afastamento e a conseqente percepo por
parte desses indivduos que suas participaes eram reduzidas nas tomadas de decises do
governo fizeram com que ela fosse vista cada vez mais como uma eficiente arma poltica
capaz no apenas de coibir os abusos empreendidos por essas autoridades dentre os quais
certamente estavam compreendidos os favorecimentos que os homens de confiana de
Pedro I dispensavam aos integrantes das suas redes sociais , mas tambm de aproxim-los
dos crculos mais restritos do poder. Como buscaremos sugerir no decorrer do trabalho, eles
de fato conseguiram alcanar o objetivo principal de participao mais efetiva no exerccio
do poder, mas sem que isso, no entanto, alterasse de forma radical as bases da vida poltica
imperial5.
Refrear os excessos dos que ocupam os mais importantes cargos deliberativos do
pas sempre foi, portanto, um dos principais objetivos daqueles que almejam ter maior
4 Patrimonialismo usado aqui de maneira ampla, no tendo a fora conceitual que este termo adquiriu, por exemplo, nas anlises de Raymundo Faoro, no obstante seja inegvel que guarde uma relao inequvoca com as prticas de apropriao da coisa pblica em benefcio de interesses particulares. 5 As continuidades da cultura poltica colonial brasileira no perodo do Segundo Reinado, pautada, sobretudo, nos relacionamentos familiares e clientelsticos, foram amplamente discutidas por Maria Fernanda Martins. Cf. MARTINS, Maria Fernanda V. A Velha Arte de Governar: um estudo sobre poltica e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.
13
participao nas diretivas do Estado, o que fica evidente, por exemplo, se levarmos em
conta que para a confeco dessa mesma Lei de Responsabilidade dos Ministros e
Conselheiros de Estado foi criada at mesmo uma comisso especial na Cmara dos
deputados com esta finalidade, ficando inclusive facultado aos seus membros se isentarem
dos trabalhos em outras comisses6. O interessante, contudo, que se realizarmos anlises
mais profundas poderemos perceber que as denncias e acusaes muitas vezes recaem
sobre as aes que na realidade so as prticas que constituem as prprias trajetrias
polticas dos acusadores.
O estudo do Conselho de Estado se constituiu, assim, no ponto de partida para que
ns examinssemos justamente essas dinmicas polticas e sociais do Primeiro Reinado,
seja no mbito mais elementar ou nas mais elevadas esferas da vida poltica, acompanhando
a atuao dos membros que fizeram parte dessa instituio e o lugar social que a
participao no rgo era capaz de lhes propiciar. Tanto mais relevante se considerarmos
que boa parte dos ministros de D. Pedro I fez parte de seu Conselho vitalcio, alm do que
todos os conselheiros foram eleitos tambm para os cargos senatoriais. Com isto, no fica
difcil perceber a relevncia, de um lado, dos debates parlamentares da poca, principal
palco no qual eram externados os ideais e as argumentaes da alta poltica, e, de outro, do
cotidiano das relaes tecidas pelos integrantes de uma das mais significativas parcelas dos
homens que compunham a sociedade imperial do perodo.
Todavia, o tempo em tela guarda ainda indefinies tanto quanto ao entendimento
dos princpios polticos que sustentaram a monarquia constitucional do primeiro Imperador
brasileiro, bem como daqueles que tinham a funo de aconselhar Sua Majestade
privativamente. De um modo bastante geral, pode-se dizer que os estudos sobre as
atribuies do Conselho de Estado ao longo do Brasil imperial recaram sobre o Conselho que
funcionou durante o reinado de D. Pedro II, com especial destaque para os trabalhos de Jos
Honrio Rodrigues, Jos Murilo de Carvalho e, mais recentemente, Maria Fernanda Vieira
Martins7. bem verdade que em trabalho recente Joo Victor Caetano Alves8 procurou atenuar
6 Anais do Parlamento Brasileiro. Cmara dos deputados. Sesso ordinria de 09 de maio de 1826. 7 RODRIGUES, Jos Honrio. O Conselho de Estado: O Quinto Poder? Disponvel em www.senado.gov.br; CARVALHO, Jos Murilo de. A Construo da Ordem: a elite poltica imperial. Teatro das Sombras: a poltica imperial. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003; MARTINS, Maria Fernanda V. A Velha Arte de Governar...op. cit.
14
essa carncia, alm do que o primeiro dos autores citados elaborou tambm uma introduo
histrica para o Conselho que funcionou entre 1823 e 1834, mas que no fugiu muito da anlise
desenvolvida por Augusto Tavares de Lyra9, preocupada com um balano descritivo e
associando a instituio sempre uma suposta faceta absolutista que marcou o governo de D.
Pedro I, no obstante confira um papel relevante a ela. Tal associao, alis, freqente numa
historiografia dita mais tradicional que abordou o funcionamento do Conselho no Primeiro
Reinado quando procurou proceder a um exame do perodo sob a luz das aes pessoais do
monarca, facilitadas, segundo essas vises, pela recepo desfigurada em um sentido
absolutista que teve a doutrina do Poder Moderador de Benjamin Constant no Brasil10.
Um poder que, de acordo com Christian Lynch, estava nos planos dos principais lderes
polticos desde a Assemblia Constituinte de 1823, os quais viam-no como o instituto
constitucional que asseguraria Coroa o poder de preservar no Imprio o interesse pblico,
entendido como imparcialidade, equilbrio institucional ou interesse nacional, contra o
interesse particular. Nesse sentido, em funo do objetivo maior de realizar a consolidao
do Imprio, essas lideranas compreendiam este Poder como a expresso do poder pessoal
do monarca no controle estrutural da constitucionalidade, ao que se empenharam em
colocar em prtica o reforo da autoridade do Imperador por meio, inclusive, da montagem
de um aparato simblico que visava a instigar o povo a aceitar as hierarquias e a ordem
estabelecida11.
Convm recordar, contudo, que, ao contrrio do que havia ocorrido na Frana, onde
a doutrina liberal do Poder Moderador tinha a inteno de anular o autoritarismo que os
ultras faziam das prerrogativas da Coroa, no Brasil o 4 poder no permitiu que a oposio,
estabelecida principalmente na Cmara dos deputados, se utilizasse dele para inviabilizar o
poder centrado na pessoa do Imperador, levando-a a identific-lo como contrrio ao bom
funcionamento do sistema representativo e no como seu rbitro12.
8 ALVES, Joo Victor Caetano. O Conselho de Estado e o princpio da diviso de poderes (1828-1834). Dissertao de Mestrado em Histria. UNESP, 2008. 9 LYRA, Augusto Tavares de. Instituies Polticas do Imprio. Braslia: Fundao Universidade de Braslia, 1978. 10 LYNCH, Christian Edward Cyril. O momento monarquiano: o poder moderador e o pensamento poltico imperial. Tese (Doutorado em Cincia Poltica). Instituo Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007, p. 137. 11 Idem, pp. 126 e 148. 12 Idem, pp. 157 e 158.
15
Note-se que essa perspectiva compreende a utilizao do Poder Moderador no
sentido de ampliar a autoridade do monarca, respeitando, todavia, a diviso dos poderes
constitucionais, o que questiona aquelas concepes mais freqentes que enxergam as
atribuies do Moderador, bem como o rgo poltico responsvel por zelar pelo seu bom
uso, como a fonte do absolutismo de D. Pedro I. Compreenso esta que tributria em
muitos sentidos da obra do comerciante, viajante e historiador ingls Joo Armitage, cuja
primeira edio brasileira de 1837. Nela, Armitage, que era ligado aos liberais moderados,
atribui o fracasso do governo do primeiro Imperador a uma srie de confuses e a uma
administrao pautada pelos sucessivos erros de clculo e pela ineficcia de suas tomadas de
posies polticas, sobretudo no tocante escolha daqueles indivduos que, de uma parte,
compuseram o seu crculo de amizades mais ntimas e lhe instavam a adotar medidas
absolutistas e, de outra, ocuparam os cargos de maior importncia para a conduo da poltica
estatal sem que conseguissem governar com a maioria liberal instalada na Cmara. Dentre
esses, certamente o autor no absolve os conselheiros de Estado, quase todos ocupantes em
algum momento de pastas ministeriais, com a exceo, talvez, de Jos Joaquim Carneiro de
Campos, o marqus de Caravelas, que ele prprio reputa como um liberal de fato13.
Dessa forma, grande parte dos historiadores que se seguiram a Armitage, como j
observado por Izabel Marzon, e reforado por Joo Victor Caetano Alves, vislumbrou a
impossibilidade da concretizao do sistema parlamentar durante o perodo em que o Brasil foi
governado por D. Pedro I, privilegiando os atritos inevitveis entre um Imperador que, rodeado
de pessoas propensas ao gosto pelo mando e pelo despotismo, sucumbiu sua ndole
absolutista contra uma parcela de indivduos detentores de idias avanadas cuja
implementao de um regime constitucional era o que orientava e regulava suas prticas e
aes polticas atravs da Cmara dos deputados. 14
Ainda no sculo XIX, Joo Manuel Pereira da Silva atribua Cmara vitalcia no
Primeiro Reinado na qual tomaram assento todos os conselheiros de Estado o espao por 13 ARMITAGE, Joo. Histria do Brasil: desde o perodo da chegada da famlia de Bragana em 1808 at a abdicao de D. Pedro I em 1831, compilada vista dos documentos pblicos e outras fontes originais formando uma continuao da Histria do Brasil de Southey. So Paulo: Martins, 1972 14 No entender de Izabel Andrade Marzon o livro de John (Joo) Armitage se constituiu numa das matrizes interpretativas dos conflitos polticos e sociais do Imprio. Cf. MARZON, Izabel Andrade. O Imprio da Revoluo: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monrquica. In: FREITAS, Marcus Cezar (org). Historiografia Brasileira em perspectiva. So Paulo: Contexto, 1998. pp. 73-101; ALVES, Joo Victor Caetano. O Conselho de Estado e o princpio da diviso de poderes (1828-1834). Dissertao de Mestrado em Histria. UNESP, 2008, pp. 34-45.
16
excelncia de irradiao de percepes e vises de mundo ligado h um tempo passado
marcado pelo absolutismo, e onde se encontravam por isso as figuras mais retrgradas da
sociedade que no mediriam esforos para causar embaraos e tolher a real implementao do
sistema constitucional em favor de um governo pessoal e desptico.15 Por ter sido igualmente
nesse mesmo tempo que o prprio Pedro I havia sido educado e vivido grande parte de suas
experincias, Tobias Monteiro ai encontra as razes de sua contraditoriedade, de um leitor voraz
das obras liberais, mas um tirano em suas aes pessoais que no poderia jamais ver sua
autoridade diminuda frente aos dispositivos constitucionais que ironicamente ele prprio havia
outorgado ao Imprio. Era isso que conferia, segundo o autor, um temperamento absolutista ao
primeiro Imperador.16
Essa tambm a opinio de Octavio Tarqunio de Souza, posto que, conforme sustenta,
o imperante desamava outro poder que no fosse o seu, embora inerente ao sistema de
gverno de que se declarara adepto. E desde a abertura da Assemblia Geral, em 1826, D.
Pedro prevenia-se contra a Cmara em vez de dispor-se a proceder em harmonia com ela.
Teria sido ainda em funo das prerrogativas que lhe concedia as atribuies do Poder
Moderador, ou melhor, a soma dos poderes que o projeto constitucional do Conselho de Estado
deixava em suas mos que despertou os seus pendores de mando e o zlo com que
defenderia sempre sua autoridade.17
Para explicar essas contradies e incoerncias das atitudes de D. Pedro I, Pandi
Calgeras recorre aos conflitos psicolgicos do imperante, permanentes, segundo ele, nas suas
tendncias e heranas. Embora verdadeiramente liberal, mas criado em ambiente absolutista,
nem sempre soubesse como provar seu liberalismo, e por vezes se embaraasse na escolha
entre impulsos autocrticos e normas constitucionais. Por ser um ignorante no tocante s leis,
direito pblico e nos modos de se governar, o Imperador interpretava e punha em prtica as
clusulas constitucionais segundo processos absolutistas. O autor conclui, afinal, que o
15 SILVA, Joo Manuel Pereira da. Segundo perodo do reinado de Dom Pedro I no Brazil: narrativa histrica. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1871. 16 MONTEIRO, Tobias. Histria do Imprio: O Primeiro Reinado. Belo Horizonte/So Paulo: Ed. Itatiaia/USP, 1982. Vol. 2, pp. 184 e 185. 17 SOUZA, Octavio Tarquinio. A Vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro, Editora Livraria Jos Olympio, 1952, pp. 668 e 669; pp. 593 e 594, respectivamente.
17
movimento que levou abdicao do primeiro Imperador foi o resultado da repulsa do pas,
tranqila e unnime, contra o absolutismo.18
Vicente Tapajs ainda mais incisivo quando trata dos motivos que ocasionaram a
queda de D. Pedro I. Afirma que suas veleidades absolutistas, seu carter desptico e autoritrio
foram algumas das mais fortes causas que motivaram sua impopularidade, ao que acrescenta
que seu liberalismo no passava de atitude poltica, pois s se manifestava quando queria algo
do povo, uma espcie de spro de morcgo, segundo ele. Declarava, outrossim, que a
Constituio podia realmente transform-lo em um liberal, caso quisesse, mas as prerrogativas
que lhe proporcionava o Poder Moderador fornecia-lhe igualmente a oportunidade de ser
absoluto. Foram esses rasgos absolutistas do primeiro Imperador que, provocando dios e
desconfianas, levaram a que a Assemblia Legislativa se levantasse contra ele.19
Convm destacar, entretanto, que nem mesmo alguns trabalhos recentes fugiram da
caracterizao mais recorrente de associar D. Pedro I imagem de um monarca absolutista.
Isabel Lustosa, por exemplo, ressalta a diviso vivida pelo Imperador entre os ideais que
apontavam na direo do liberalismo e aqueles que o empurravam para a forma absolutista,
decorrentes, no primeiro caso, da sua cultura que, embora escassa, era basicamente liberal e, no
segundo, como fruto da tradio da sua dinastia. Assim, quando da instalao da Assemblia
Geral, o imperante a combateria por diversos meios, expressando de maneira clara a
contradio intrnseca entre o prncipe liberal e o autoritrio, sendo este ltimo cioso do seu
poder e das prerrogativas do cargo.20
Isso o que parece informar ainda, a compreenso que tem Lcia Neves a respeito da
constituio dos poderes no Primeiro Reinado. A opo por uma forma de governo de cunho
mais moderado acabou direcionando a monarquia constitucional de Pedro I para aquelas que a
Europa da Restaurao conheceu a partir de 1815. De acordo com a autora, desde ento os
acontecimentos internacionais, incluindo o retorno do absolutismo portugus em 1823, no
apenas despertaram, como estimularam, o lado mais autoritrio do carter de D. Pedro,
18 CALGERAS, J. Pandi. Formao histrica do Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945, pp. 96, 118 e 143. 19 TAPAJS, Vicente. Histria do Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 309 e 310. 20 LUSTOSA, Isabel. D. Pedro I: um heri sem nenhum carter. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 172 e 226.
18
possibilitando a instalao de um Estado cuja concepo no se afastava tanto das prticas do
absolutismo ilustrado.21
Em comum a todas essas interpretaes est a idia de que boa parte das principais
figuras do reinado de D. Pedro tinha tendncias ao absolutismo. Os conselheiros de Estado,
obviamente, no fugiriam a esse estigma, sobretudo em virtude de que todos eles em algum
momento de suas trajetrias ocuparam postos tanto no mais alto escalo do Estado, bem como
na Cmara dos senadores, afora o prprio fato de que seus conselhos de maneira ampla
conduziam o monarca em direo a um regime cada vez mais absoluto, pessoal e desptico.
Em geral, as tendncias absolutistas dos indivduos que formavam o crculo de conselheiros do
monarca so ainda apresentadas nesses estudos como indissocivel de uma predileo pelos
negcios de Portugal em detrimento dos assuntos e interesses brasileiros, contribuindo para
aflorar e desenvolver o sentimento lusitano presente no corao do prprio Imperador, e que
geraria, com o passar dos anos do seu governo, grandes desconfortos perante a opinio pblica,
sendo decisivo inclusive para a sua queda do poder em 1831.
Mas preciso fazer meno aos trabalhos de Neill Macaulay e Joo Victor Caetano
Alves, que, do mesmo modo que Christian Lynch, procuram atribuir uma imagem distinta aos
acontecimentos polticos do Primeiro Reinado. O primeiro, uma biografia do Imperador,
reconhece o liberalismo presente nas intenes e aes de D. Pedro I, talvez at mesmo de uma
forma exagerada, mas que no deixa de ser interessante, visto que o autor compreende que as
posies mais atrasadas da sociedade se encontravam na Cmara dos deputados e no na figura
do Imperador, bastando olhar as constantes defesas feitas pelo monarca em favor da cesso do
trfico de escravos e das propostas de imigrao de trabalhadores livres, mas que eram
reiteradamente obstrudas pelos escravocratas que ocupavam as cadeiras da Cmara
temporria.22 Macaulay, no entanto, parece no conseguir perceber que liberalismo e
escravido estavam em perfeita sintonia na sociedade imperial brasileira. O prprio
liberalismo europeu de meados do sculo XIX no teve a inteno de acabar com todas as
desigualdades jurdicas e polticas, o que fazia com que a aceitao da escravido como
parte integrante da economia fosse perfeitamente plausvel. Deste modo, conforme sugere
21 NEVES, Lcia M. B. Pereira das. Corcundas e constitucionais - a cultura poltica da independncia (1820-1822). Rio de Janeiro: Faperj, Revan, 2003, p. 411. 22 MACAULAY, Neill. Dom Pedro I: a luta pela liberdade no Brasil e em Portugal, 1798-1834. Rio de Janeiro: Record, 1993.
19
Ricardo Salles, o liberalismo incorporado pelas classes de senhores de escravos foi
largamente utilizado para a defesa dos seus interesses econmicos e polticos, alm do que
lhes forneceu os recursos necessrios para universalizar seu discurso.23
Joo Victor Alves, por seu turno, busca compreender o papel que teve o Conselho de
Estado no conjunto das relaes entre os poderes constitucionais presentes na Carta de 1824.
Atravs de anlise das Atas produzidas na instituio, o autor procura demonstrar que sempre
houve por parte dos conselheiros um respeito muito grande no que concerne s bases
constitucionais, o que, em geral, foi seguido pelo monarca, haja vista que a diviso de
poderes era um princpio sagrado da Constituio e foi efetivado na prtica poltica entre os
anos de 1828 e 1834. Deste modo, embora o governo de D. Pedro I tenha tido sim
aspectos de um autoritarismo que motivou graves crises polticas, as Atas do Conselho
revelam, entretanto, que no so verdadeiras as acusaes que insistem em estabelecer uma
correspondncia entre o Imperador e seus cortesos e o absolutismo24.
fora de dvida que essas duas ltimas percepes25 questionam a compreenso de
um Primeiro Reinado regido pelos ditames de uma monarquia absolutista, assim como no
permitem uma interpretao do perodo sob a luz das contraditoriedades e ambigidades do
primeiro Imperador, que to curiosamente historiadores do porte de Tobias Monteiro e
Octvio Tarqunio de Souza s para ficarmos em dois exemplos buscaram explicar
como conseqncia das afeces convulsivas que afligiam a vida do monarca, talvez at como
uma decorrncia do fascnio que muitas vezes causa a vida de um heri aos coraes e mentes
de seus bigrafos e estudiosos, o que pode acabar por obscurecer o empreendimento de 23 SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. O tema do lugar das idias liberais no Brasil oitocentista sempre geraram, e ainda continuam a gerar, longas discusses a seu respeito. O impulso primrio foi sem dvida dado por Roberto Schwarz em artigo publicado originalmente em 1973, onde as entendendo como advindas de correntes externas, este autor defendeu que o liberalismo brasileiro estaria fora do lugar, uma vez que no poderiam encontrar paralelos na realidade brasileira, sobretudo em funo da existncia do sistema escravista, e nem preencher suas funes ideolgicas de encobrir desigualdades sociais, tal como na Europa. Para tanto ver SCHWARZ, Roberto. As Idias Fora do Lugar. In: SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. So Paulo, Livraria Duas Cidades, 1981. A primeira crtica mais contundente a essa viso se encontra em FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. As idias esto no lugar. Cadernos de Debate, n. 1. So Paulo: Brasiliense, 1976. Uma interessante coletnea sobre o tema do liberalismo no Brasil Imperial pode ser encontrada em GUIMARES, Lcia Maria Paschoal e PRADO, Maria Emlia (orgs.). O Liberalismo no Brasil Imperial. Origens, conceitos e prtica. Rio de Janeiro: Revan / UERJ, 2001. 24 ALVES, Joo Victor Caetano. O Conselho de Estado...op. cit.. A citao se encontra na p. 107. 25 s quais poderamos acrescentar ainda muitas outras que no se ocuparam to diretamente do tema, como, por exemplo, aquelas que se encontram em RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construo: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume-Dumar/FAPERJ, 2002.
20
anlises mais sensatas. Decerto no h como caracterizar o reinado de D. Pedro I do ponto de
vista de um governo absoluto e nem muito menos taxar suas aes de ambguas ou
contraditrias.
Cumpre dizer, todavia, que nenhum desses trabalhos logrou elucidar uma real
caracterizao do mundo social no qual os conselheiros de Estado estavam envolvidos, seus
crculos de relacionamentos sociais, seus interesses e objetivos concretos, que foram de algum
modo sistematizados e levados a efeito a partir da posio de destaque que ocupavam nas altas
hierarquias do poder, e de onde puderam ajudar a construir e dar forma a um novo Estado,
colocando em execuo, mesmo em meio a rupturas, uma continuidade no que diz respeito a
uma antiga prtica de fazer poltica e a aspectos simblicos e ideolgicos, que tinham reflexos
concretos na vida das pessoas que participaram daqueles momentos que indubitavelmente eram
tambm tempos de mudanas nas mais variadas esferas da vida poltica e social. Permanncias
que extrapolaram os limites temporais do Primeiro Imprio e se prolongaram por longos anos
no Segundo Reinado26.
Mas para uma melhor compreenso desses aspectos fazia-se necessrio analisar
mais detalhadamente as prticas polticas efetivas desenvolvidas por aqueles indivduos que
detinham o poder e exerciam a hegemonia do campo poltico do Primeiro Reinado e que
determinavam em grande medida as diretrizes que o governo deveria seguir. Nesse sentido,
era conveniente no apenas definir de forma precisa os ideais e os procedimentos levados a
efeito pelos componentes do Conselho de Estado de D. Pedro I e as caractersticas da
prpria instituio, mas ainda buscar as origens e as trajetrias sociais dos membros que
nela tomaram assento.
Sendo assim, o acompanhamento das histrias individuais dos conselheiros, bem
como o mapeamento das suas relaes tecidas com a sociedade de maneira ampla,
poderiam ser capazes de revelar, entre outras coisas, at que ponto iam as estratgias do
Imperador e nos fornecer evidncias de uma poltica hbil e pautada pelo clculo no que
tange conduo dos negcios pblicos. S para termos uma pequena idia, e como
procuraremos demonstrar ao longo do trabalho, as escolhas dos componentes do Conselho
foram realizadas com base em critrios muito bem definidos, o mesmo podendo ser dito
26 HOLANDA, Srgio Buarque de. A herana colonial: sua degradao. In: IDEM (org.) Histria Geral da Civilizao Brasileira. t. II, v. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
21
com relao s escolhas dos nomes dos senadores, que eram selecionados pelo Imperador
atravs das listas trplices aps consulta ao Conselho de Estado, conforme determinava o
artigo 142 da Constituio27. Sintomtico disso e exemplar desse segundo ponto que
alguns conselheiros foram eleitos para o Senado por mais de uma provncia, como ocorreu
nos casos de Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta, marqus de Barbacena, e
Antnio Luiz Pereira da Cunha, marqus de Inhambupe. O curioso que ambos foram
escolhidos para representar provncias diferentes das quais eram oriundos, sendo o primeiro
escolhido por Alagoas e o segundo por Pernambuco. Tambm Joo Severiano Maciel da
Costa, o marqus de Queluz, teve a predileo de D. Pedro para que desempenhasse suas
funes por uma remota provncia do Imprio, a Paraba.
Ora, no nos parece mera coincidncia a escolha de conselheiros que eram tambm
senadores pelas provncias mencionadas nas linhas precedentes. Muito mais interessante
seria interpretar tais nomeaes como estratgias bem definidas de um projeto
centralizador, uma vez que isto poderia trazer um duplo benefcio: um deles era a maior
probabilidade, e mesmo uma maior facilidade, de se estabelecer um dilogo entre o poder
central e as lideranas locais, haja vista que os conselheiros foram eleitos pela populao
dessas provncias por terem em algum momento de suas vidas exercido nelas cargos
burocrticos ou desenvolvido quaisquer outros tipos de relaes com importantes e
influentes homens daquelas regies; um outro diz respeito ao fato de que ao proceder desta
forma D. Pedro conseguia manter afastado do Senado o mesmo valendo para o Conselho
de Estado possveis opositores descontentes com o projeto poltico que ento se
processava com sede no Rio de Janeiro.
Contudo, importante chamar novamente ateno para o fato de que as estratgias
do imperante se tornam ainda mais visveis quando se analisam as interaes e os
relacionamentos sociais engendrados pelos componentes da alta administrao do Estado
imperial, tanto nas esferas superiores do poder, quanto nos patamares mais elementares da
estrutura social. Vale a pena mencionar, nesse sentido, que fundamental para o
mapeamento dessas interaes e relacionamentos a recuperao de alguns procedimentos
da micro-histria, que procurou adaptar algumas concepes caras aos estudos
antropolgicos, como a noo de redes sociais. igualmente de grande valia o uso da
27 BRASIL. Constituio de 1824. http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao2.html
22
prosopografia, ou biografias coletivas, que na clssica definio de Lawrence Stone se
caracterizaria pela,
(...) investigao das caractersticas comuns do passado de um grupo de atores na histria atravs do estudo coletivo de suas vidas. (...) O propsito da prosopografia dar sentido ao poltica, ajudar a explicar a mudana ideolgica ou cultural, identificar a realidade social, descrever e analisar com preciso a estrutura da sociedade e o grau e a natureza dos movimentos que se do no seu interior28.
Dessa forma, a utilizao do mtodo prosopogrfico pode nos fornecer elementos
para a reconstruo dos perfis sociais dos conselheiros de Estado do Primeiro Reinado,
alm de nos auxiliar a desvendar as estratgias de reproduo das hierarquias que eles
colocaram em funcionamento a partir de suas posies no interior da instituio da qual
eram membros vitalcios. Possibilita-nos, outrossim, conhecer os modelos e suas aes no
sentido de solidificar suas carreiras ou evitar, por meio de mecanismos de reconverso
social, um declnio ou uma reclassificao social muito abrupta29.
O conceito de rede social, por sua vez, tem a caracterstica de fornecer os elementos
necessrios que vinculavam e davam sentido s prticas dos conselheiros, cujo uso se dar
justamente com o intuito de apreender como ocorriam suas ligaes com o restante da
sociedade no decorrer de suas trajetrias, o que no significa nos atermos unicamente s
conexes de cunho essencialmente polticas, ao menos no na acepo mais comum do
termo. Isso porque relaes como de amizade, compadrio, parentesco e clientelsticas
devem ser levadas em considerao para que seja possvel assimilar as diferentes
estratgias que esses indivduos procuraram pr em execuo para se manterem nos
principais postos da administrao estatal. Portanto, pretende-se com o emprego da noo
de redes desvendar o complexo de relaes sociais que envolvia os componentes do
Conselho de Estado de D. Pedro I nos anos que se seguiram independncia, ou, do modo
como sugere Carlo Ginzburg, buscar-se- reconstituir a imagem do tecido social nos quais
28 STONE, Lawrence. The past and the present. Boston: Routledg & Kegart Paul, 1981, pp. 45 e 46. Apud. HEINZ, Flvio M (org.) Por outra histria das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, Introduo, p. 9. 29 HEINZ, Flvio M (org.) Por outra...op. cit., Introduo, p. 9.
23
esses indivduos estavam inseridos por meio do acompanhamento das teias de malhas
finas que deles convergiam ou partiam30.
preciso deixar claro, entretanto, que a reduo da escala analtica, tanto em
direo ao particular, quanto ao local, no implicar a negao da explicao histrica ou o
abandono de uma perspectiva totalizante. Como observado por Giovanni Levi, a
diminuio do foco de exame tenta no rejeitar todas as formas de abstrao, pois fatos
insignificantes e casos individuais podem servir para revelar um fenmeno mais geral,
alm do que pode enriquecer a anlise social, tornando-a mais complexa ao considerar uma
gama variada e inesperada de aspectos da experincia coletiva31. Nesse sentido, a busca
pelos detalhes aparentemente sem importncia, pelas alianas de naturezas diversificadas
tecidas pelos homens que faziam parte da principal instituio poltica do Imprio, e que
poderiam passar despercebidas aos olhares mais desatentos, ganham relevncia no
emaranhado de relaes sociais.
Desta maneira, a opo pelas observaes mais minuciosas no podem prescindir
das estruturas que de extensa maneira englobam as prticas e as estratgias individuais ou
de grupos. Para alm do espao local e das aes individuais se encontram as normas
polticas, econmicas, culturais e sociais, que de forma dialtica influenciam e so
influenciadas pelos cdigos de comportamento e pelas atitudes daqueles sujeitos que de
modo imperceptvel so partes fundamentais das engrenagens sociais e da prpria histria.
Cabe fazer meno, por fim, que ao lado da utilizao das abordagens provenientes
da micro-histria sero tambm empregados conceitos sociologicamente mais estruturantes,
sobretudo aqueles originados nos trabalhos do socilogo francs Pierre Bourdieu, mas que
de nenhuma maneira devero ser lidos como peas que visam a reificao da anlise atravs
de compreenses pr-determinadas que no tm correspondncia com a realidade social.
Pelo contrrio, concepes como classes, habitus, campos sociais e outros sero evocados
com o intuito de apresentar uma caracterizao do Conselho de Estado, de seus membros e
do processo de disputas polticas pelo controle do aparato estatal, que acabou por dar forma
a segmentos diferenciados a partir das posies que ocupavam na sociedade e no interior do
30 GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiogrfico. In:____. A micro-histria e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, pp.173-174. 31 LEVI, Giovanni. Sobre a Micro-Histria. In: BURKE, Peter. A Escrita da Histria: novas perspectivas. So Paulo: UNESP, 1992, p.135. Ver tambm do mesmo autor: A herana imaterial: trajetria de um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000.
24
complexo institucional do prprio Estado, at mesmo porque o poder, de acordo com a
definio Hanneman, inerentemente relacional32 e sua reteno s acontece mediante um
processo de contnua interao com os grupos de agentes que compem o mundo social33.
O trabalho com as fontes e a organizao dos captulos
Inicialmente pareceu-nos que o principal corpus documental que orientaria este
trabalho seria constitudo pelo livro de Atas do Conselho de Estado, no qual era anotado o
essencial de cada uma das discusses produzidas pelos membros daquela instituio.
Todavia, muito embora viessem contidos um pequeno resumo das principais posies, a
apreciao das consultas submetidas aos conselheiros revelaram muito mais uma
homogeneidade de posies do que tendncias divergentes que pudessem elucidar os
aspectos da vida poltica e social do Primeiro Reinado. Tambm no era nossa inteno
estudar unicamente o pensamento do Conselho, at em funo de no ser possvel
identificar nas Atas um modelo definido de Estado e de nao, no obstante seja factvel
reconhecer um esforo em prol da manuteno da unidade poltica e territorial do Imprio
com base nos princpios de um governo liberal.
Igualmente cabe destacar que praticamente no houve momentos de franca
hostilidade em relao ao poder legislativo, nomeadamente com os representantes
temporrios, como, alis, j foi percebido por Joo Victor Caetano Alves. Isso fica claro se
considerarmos que j nos momentos de crise aberta, em idos 1830, os conselheiros, apesar
de acharem que nas sesses legislativas extraordinrias que era o caso naquele momento
os objetos a serem tratados pelos legisladores deveriam recair exclusivamente sobre os
assuntos indicados na Fala do Trono, consentiram em que se apresentasse Cmara dos
deputados a resposta requisio feita ao governo acerca se o Coronel Joaquim Pinto
Madeira ainda estava frente de suas tropas mesmo estando criminoso. O parecer do
Conselho objetivava com isso que no se alterasse a harmonia que devia reinar entre os
32 HANNEMAN, R. A. Introduccin a los mtodos del anlisis de redes sociales. Disponvel em: http://wizard.ucr.edu/~rhannema/networks/text/textlindex.html. Apud. GENOVEZ, Patrcia Falco. Os Bares e os trilhos: a estrada de ferro unio mineira e os laos de sangue na zona da mata de Minas Gerais. Disponvel em http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/seminario_diamantina/2008/D08A090.pdf 33 MARTINS, Maria Fernanda V. A Velha Arte de Governar...op. cit., p. 27.
25
Poderes Polticos34. Pouco depois os membros da instituio dariam nova prova de
respeito aos representantes do legislativo ao serem de opinio favorvel a que se realizasse
a reunio da Assemblia Geral legislativa para votao das emendas feitas pelos deputados
lei oramentria e que tinham sido rejeitadas pelos senadores, uma forma, conforme
expendeu o marqus de Maric, de fazer desaparecer esse terror pnico, que se tem
divulgado de que havia uma desinteligncia entre as duas Cmaras35, muito embora a
deciso a respeito da reunio no fosse uma atribuio do Poder Moderador, mas uma
situao prescrita no art. 61 da Constituio36.
O nico momento que houve um desencontro entre conselheiros de Estado e
deputados foi quando os deputados exigiram uma cpia da Ata em que se discutiu o
cerceamento das garantias constitucionais no Cear e provncias vizinhas aps a descoberta
e dissipao de uma rebelio que estava sendo articulada a partir do stio do Afogado, na
mesma Cear. Como suas repercusses foram abordadas no segundo captulo, no
trataremos dessa questo por agora37. Outros momentos que poderiam retratar divergncias
entre o Conselho de Estado e a Cmara temporria infelizmente no so conhecidos, como,
por exemplo, quando foram assinados os tratados para o reconhecimento da nossa
independncia por Portugal e os que fixaram as relaes comerciais com a Inglaterra e o
prazo para a cesso do trfico de escravos. Isso porque as Atas que se tm conhecimento
datam do ano de 1828, estando as anteriores desaparecidas, sendo, entretanto, fora de
dvida que elas eram produzidas antes desta data, como atestou o marqus de Maric na
reunio do Senado ocorrida em 18 de agosto de 1826 no momento em que se discutia a Lei
de Responsabilidade dos Ministros e Conselheiros de Estado naquela Casa: sobre o modo
de provar o crime do conselheiro de estado, no h de haver grande dificuldade que se diz,
porque existem as atas, onde vo as resolues, e pareceres do conselho38.
Todavia, o livro com as resolues dos conselheiros no deixam dvidas da
importncia da instituio. Os assuntos que l eram tratados diziam respeito alta poltica
34 BRASIL. Atas do Conselho de Estado. 49 Sesso. 25 de setembro de 1830. Disponvel em www.senado.gov.br. 35 BRASIL. Atas do Conselho de Estado. 52 Sesso. 11 de novembro de 1830. Disponvel em www.senado.gov.br. 36 BRASIL. Constituio de 1824. http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio/colecao2.html. 37 Este o mesmo ponto de vista de Joo Victor Alves. Para tanto cf. ALVES, Joo Victor Caetano. O Conselho de Estado...op. cit., p. 55. 38 Anais do Parlamento Brasileiro. Cmara dos senadores. Sesso ordinria de 18 de agosto de 1828.
26
do Estado e s podiam ser postos em execuo pelos ministros aps o Conselho ser ouvido.
O imperador, segundo cremos, submetia as questes aos seus conselheiros privados no
apenas porque a Carta de 1824 assim determinava, mas tambm por segurana e confiana.
Para alm da influncia que tinham nas principais provncias do Imprio, eram homens
ilustrados e experimentados no trato da coisa pblica. Conheciam os trmites da poltica,
das leis e da administrao, frutos de suas convivncias na Europa e pelas passagens na
mquina burocrtica do Estado joanino.
No entanto, somente as Atas no eram capazes de oferecer os recursos necessrios
para se alcanar o objetivo central que norteou as questes iniciais colocadas para a
confeco deste trabalho, qual seja, a relao do Conselho de Estado e seus componentes
com a complexidade social que se constituiu na marca do Primeiro Reinado, tendo-se em
considerao os conflitos que ocasionaram a abdicao, os relacionamentos que
configuraram a imagem do Estado sob o governo do primeiro Imperador e as ligaes
engendradas pelos conselheiros nos mais diferentes campos, que acabaram por fornecer a
esses indivduos um capital social sem comparao durante os nove anos de reinado de
Dom Pedro I.
Neste quadro, necessrio era privilegiar outras sries documentais que viessem a se
adaptar e a iluminar de modo mais satisfatrio o plano estrutural pensado para a elaborao
dessa dissertao, no obstante fossem desde o incio fontes que seriam utilizadas na
confeco do trabalho. Por motivos diversos, suas leituras e anlises demandaram um
grande dispndio de tempo, que, dentre outras coisas, comportavam um enorme volume de
documentos.
Os Dirios da Cmara dos deputados e da Cmara dos senadores somaram juntos
algo em torno de umas nove mil pginas, que se encontram digitalizados nos domnios das
respectivas instituies na Internet. As leituras acompanharam todos os procedimentos dos
trabalhos dos representantes da nao entre os anos de 1826 e princpios de 1831, se bem
que a Assemblia Geral s retomou seus trabalhos ordinrios neste ltimo ano aps a
abdicao de D. Pedro I, portanto j depois do limite temporal que baliza esta obra. O
expediente das Cmaras contavam, na primeira parte das reunies, com a leitura e
aprovao da ata da sesso antecedente. Logo aps eram recebidas as indicaes, pareceres
das comisses, correspondncias oficiais, projetos de lei e emendas. Aps esses
27
procedimentos entrava-se na ordem do dia, quando eram discutidos os projetos de leis, os
pareceres, as emendas e as indicaes, ficando para o fim das sesses as resolues.
Os projetos passavam, comumente, por trs discusses, embora aqueles cujos
assuntos versassem sobre alguma lei regulamentar ficavam geralmente isentos da primeira.
Esta, a primeira, era uma discusso em globo, quando se definia se o projeto seria ou no
admitido. Depois disso, o prximo passo era a discusso dos artigos, momento no qual as
emendas eram propostas e os debates se tornavam mais interessantes. Terminada essa
etapa, entrava-se finalmente na terceira e ltima discusso. Neste ponto do debate voltava-
se a discutir o projeto em geral com as emendas e alteraes que tivessem sido aprovadas
no estgio precedente. Ao final, o projeto era encaminhado comisso competente com o
fito de redigi-lo e ser enviado para a outra Casa legislativa, onde seria emendado ou
aprovado tal qual foi enviado. Caso houvesse alteraes na proposta original, cabia
Cmara autora do projeto aceit-las ou rejeit-las, sendo que o segundo caso levaria fuso
das duas Cmaras, o que, como procuraremos discutir adiante, acabou se constituindo em
motivo de graves desavenas entre os legisladores.
Quanto aos pareceres e indicaes, passavam por apenas duas discusses, sendo que
somente nos casos de perigo segurana do pas que ambas poderiam ser realizadas no
mesmo dia. Vantuil Pereira observa que era exatamente na discusso dos pareceres que os
debates se tornavam mais francos e abertos39. Isso porque era neste momento que as
posies se mostravam mais claras no que concerne s posies e entendimentos que os
deputados e senadores tinham sobre o efetivo exerccio do poder e acerca do modo como
deveria se dar a relao entre os poderes. claro que os debates se mostravam muito mais
longos na Cmara temporria do que na permanente, uma vez que na primeira se
concentrava uma variedade muito maior de tendncias e opinies, alm de ter sido nela que
se articulou o principal grupo de oposio poltica de Estado de D. Pedro I e sua base
governista.
Um outro conjunto de documentos de grande valor para esta pesquisa consistiu nas
mercs e graas com que, primeiramente, D. Joo e, em seguida, D. Pedro contemplaram os
membros do primeiro Conselho de Estado, e que se encontram reunidos no Arquivo
39 PEREIRA, Vantuil. Ao Soberano Congresso: Peties, Requerimentos, Representaes e Queixas Cmara dos deputados e ao Senado Os direitos do cidado na formao do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). Tese de Doutorado em Histria. UFF/PPGH, 2008, p. 50.
28
Nacional do Rio de Janeiro nos fundos dos Registros Gerais das Mercs e do Ministrio do
Imprio. Essa foi tambm uma fase demorada, no tanto em razo da quantidade, mas por
conta do fato das catalogaes das fontes s estarem disponveis nos fichrios manuais da
instituio, muitas vezes fora de ordem ou contendo algumas informaes desencontradas,
o que exige um exame bem mais exaustivo, muito embora seja digno de meno que toda a
equipe do Arquivo no poupou esforos no sentido de facilitar o andamento dos trabalhos.
Estes registros foram ainda complementados com uma srie de outras fontes, como com as
colees particulares, com os recebimentos de honras das Ordens militares e com os
inventrios post-mortem e verbas testamentrias dos conselheiros encontradas nesse mesmo
arquivo, alm dos artigos genealgicos e dos documentos biogrficos existentes na sesso de
manuscritos da Biblioteca Nacional, que, em conjunto, acabaram sendo muito importantes
para a reconstituio das trajetrias individuais dos conselheiros e das vrias ligaes
familiares e de sociabilidade s quais eles estavam naturalmente vinculados ou que vieram
a desenvolver ao longo de suas existncias.
******
Do ponto de vista da estrutura organizacional, este trabalho est dividido em trs
captulos. No primeiro captulo O Conselho de Estado: espao de diferenciao social
buscou-se inicialmente apresentar o panorama poltico que acabou levando separao do
Brasil da sua antiga metrpole portuguesa. Procurou-se demonstrar que a independncia
categrica no fazia parte, num primeiro momento, dos planos da intelectualidade brasileira
da poca, sendo que a ruptura s pode ser corretamente apreendida no contexto da ecloso
da Revoluo portuense e a conseqente intransigncia dos constituintes portugueses em
aceitar a condio de Reino Unido alcanada pelo Brasil em 1815.
Consumada a independncia, uma ciso se mostrou presente no interior da classe
dominante40. Divergiam os coimbros e brasilienses acerca do modo como o Estado
deveria ser governado. Para os primeiros a soberania estatal deveria recair sobre a pessoa
do monarca, ou seja, defendiam uma concepo de poder estatal mais centralizada,
40 importante chamar ateno para o fato de que a aplicao que aqui se faz do conceito de classe dominante tem sem dvidas conexes com as condies materiais de existncia, embora a apreenso da classe necessite ainda levar em conta a posio dos indivduos na estrutura de relaes que constituem o espao social.
29
enquanto os segundos levantavam a bandeira de um poder mais pulverizado, onde os
rgos representativos teriam maior ingerncia sobre os assuntos do governo. Foi nesse
clima de teno e disputas que foi criado o primeiro Conselho de Estado, pouco depois da
dissoluo da Assemblia que havia sido convocada para maio de 1823. Aos conselheiros
de Estado coube a elaborao de um projeto constitucional, que efetivamente se tornaria em
1824 a primeira Constituio poltica do Brasil.
Apresentado o pano de fundo no qual foi criada a instituio que serviu de base para o
estudo que procuramos realizar da poltica e da sociedade no Primeiro Reinado, passamos a
analisar suas origens, organizao e funcionamento. Percorremos, ainda que no de forma
exaustiva, o longo caminho dessa instituio no velho continente, sugerindo ao final que o
Conselho de Estado brasileiro era ainda um rgo muito mais prximo do Antigo Regime
do que uma instituio de carter puramente liberal. Esforamo-nos, outrossim, em deixar
clara as atribuies que a Carta de 1824 demarcava para os conselheiros e o modo como o
Conselho cumpriu suas funes no decorrer dos anos de reinado de D. Pedro I, procedendo,
inclusive, a algumas comparaes com o Conselho de Estado do tempo do rei portugus D.
Joo IV para exatamente consubstanciarmos a idia de um modelo de instituio com fortes
vnculos na tradio colonial portuguesa.
A ltima parte do captulo ficou dedicada aos pressupostos tericos que
fundamentaram a pesquisa em sua essncia. Realizamos primeiramente uma apreciao da
maneira como o Conselho de Estado foi tratado pela historiografia e qual o seu papel no
processo de formao do Estado Imperial brasileiro, para, imediatamente aps, buscarmos
sustentar que durante o Primeiro Reinado essa instituio se constituiu em um espao
importante de diferenciao social que abrigou um grupo de indivduos que exerceu a
hegemonia do campo poltico do perodo. No entanto, faltava ainda comprovar a validade
analtica dos conceitos.
O captulo dois Conflitos e disputas polticas no Primeiro Reinado: as divergncias
entre os ilustrssimos senhores deputados e os excelentssimos conselheiros de Estado vem
em seguida exatamente com o objetivo de demonstrar como foram se configurando dois
setores bastante distintos da classe dominante no interior, por um lado, do Senado e do
prprio Conselho, j que os conselheiros se constituam nos mais importantes e poderosos
membros desse grupo, e, de outro, da Cmara dos deputados. Mas preciso chamar ateno
30
para o fato de que em 1826 essa oposio no existia ainda de forma generalizada. No
tanto pelo medo que os representantes temporrios tinham por conta da dissoluo da
Constituinte, mas, sobretudo, por terem a iluso de que a abertura dos trabalhos da
Assemblia Geral ia lhes possibilitar compartilhar a soberania estatal, o que implica nos
apartarmos das interpretaes da historiografia de um modo geral.
Desta forma, a percepo progressiva de suas distncias em relao ao efetivo
exerccio do poder por parte dos setores instalados na Cmara baixa fez com que eles cada
vez mais compartilhassem sentimentos comuns e passassem a fazer uma forte oposio que
culminou na abdicao do primeiro Imperador em sete de abril de 1831. Mas isso no
tudo: ao privilegiar os membros do seu Conselho de Estado, o Imperador privilegiou tambm
as redes sociais das quais eles faziam parte e eram seus principais representantes, obstruindo,
com isso, o acesso de outros grupos e suas redes s principais esferas de decises polticas e de
desempenho objetivo do poder, gerando grande hostilidade e contribuindo decisivamente para
sua queda.
O terceiro e ltimo captulo Os conselheiros de Estado como artfices de novas
estratgias para manuteno e reproduo de antigas redes polticas e sociais procurou
desvendar justamente as redes de parentesco e sociabilidade s quais os conselheiros
estavam ligados. Os trabalhos de genealogia foram muito relevantes para a confeco deste
captulo, posto que foi preciso buscar as origens familiares de muitos indivduos que faziam
parte das complexas alianas tecidas desde a poca colonial e que tinham como ponto de
convergncia os conselheiros de Estado de D. Pedro I. Sendo assim, suas trajetrias
pessoais tiveram que ser igualmente acompanhadas, tendo em vista que suas aproximaes
com os mais diversificados campos da vida social foi o que lhes deram a possibilidade de
acumular um volume de capital invejvel no perodo e ocuparem os mais altos postos na
administrao e na poltica do Estado imperial, exercendo, sem sombra de dvidas, o poder
e a hegemonia do campo poltico no Primeiro Reinado.
CAPTULO I
O CONSELHO DE ESTADO: ESPAO DE DIFERENCIAO SOCIAL
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1.1) A Soberania em foco: da Revoluo do Porto dissoluo da
Constituinte em 1823
Os indivduos que vivenciaram e acompanharam os tensos e incertos anos que
culminariam no desmoronamento do antigo ideal utpico de formao de um poderoso
Imprio luso-brasileiro, presente no projeto reformista ilustrado de homens como D.
Rodrigo de Souza Coutinho, e que de algum modo teria ganhado forma concreta com a
elevao do Brasil a categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves em 18151, viram-se na
contingncia inadivel de organizar e estruturar um novo Estado independente, cuja
discusso em torno da soberania geraria srios conflitos e daria o tom dos embates polticos
nos primeiros tempos de governo de D. Pedro I.
O movimento vintista, surgido das juntas revolucionrias que levaram ao movimento
de 24 de agosto de 1820 na cidade do Porto, repercutiu em todo Imprio portugus,
possibilitando que a idia de autonomia, j existente nas mentes de determinados grupos
dominantes que conduziram o Brasil em direo separao definitiva de Portugal, fosse
se metamorfoseando na de independncia. Esse movimento, concomitantemente,
possibilitou a consolidao de um novo vocabulrio poltico que brevemente alcanaria a
opinio pblica atravs de jornais, folhetos e em conversas nos mais diferentes espaos de
sociabilidade.2 Como observou Gladys Ribeiro, separao era palavra chave em ambos os
lados do Atlntico, mas sempre como hiptese, arma que servia para intimidar e ameaar
interlocutores.3
1 LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso imprio: bastidores da poltica, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. 2 NEVES, Lcia M.B. Pereira das. Corcundas e constitucionais - a cultura poltica da independncia (1820-1822). Rio de Janeiro: Faperj, Revan, 2003. A historiadora Maria Odila, em estudo clssico, identifica o incio do processo de independncia a partir da transformao do Rio de Janeiro em metrpole interiorizada e do conseqente enraizamento dos interesses mercantis portugueses no centro-sul da colnia. DIAS, Maria Odila da Silva. "A Interiorizao da Metrpole". In: MOTA, Carlos G. (org.). 1822. Dimenses. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1986. Para uma viso diferente acerca do processo de enraizamento dos interesses portugueses na colnia, cf. especialmente FRAGOSO, Joo Lus Ribeiro. Homens de Grossa Aventura: acumulao e hierarquia na praa mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; e FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma Histria do Trfico Atlntico de Escravos entre a frica e o Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. 3 RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construo: identidade nacional e conflitos antilusitanos no Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: Relume-Dumar/FAPERJ, 2002, p. 40 (o grifo na palavra hiptese da prpria autora).
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Nesse quadro, mesmo em 1822, a possibilidade de uma ciso para a intelectualidade
brasileira da poca mesclava-se com a de manuteno da unidade luso-brasileira, o que
pode ser verificado inclusive naqueles jornais considerados mais radicais e que comumente
so identificados com o grupo de Gonalves Ledo, como o Revrbero Constitucional
Fluminense no qual o prprio Ledo era redator ao lado de Janurio da Cunha Barbosa.4
Cabe lembrar, entretanto, que as medidas dos constitucionalistas portugueses em
relao ao Brasil concorriam cada vez mais para uma separao definitiva. Nesse sentido,
se entre agosto de 1820 e abril de 1821 a poltica dos vintistas5 era de conciliao no que
concerne ao Brasil, pautando sua inteno de domnio poltico e econmico na autoridade
real e no contra ela6, com as notcias da ecloso de movimentos constitucionalistas no
centro e norte brasileiro e de declaraes de simpatia advindas de tropas portuguesas
instaladas no Rio de Janeiro, aliadas ao silncio e reao do governo fluminense no tocante
s decises da Assemblia lisboeta, levaram as Cortes a mudar de posio, passando a
empreender uma poltica ofensiva atravs do envio de expedies Bahia para assegurar a
unio metrpole dessa regio, alm de procurar exercer uma presso sobre D. Joo VI.
importante destacar que em 23/02/1821, D. Joo VI nomeava uma Comisso da Junta
Governativa, criada pelo Decreto de 18/02/1821, composta exclusivamente de brasileiros
como Luiz Jos de Carvalho e Melo (futuro Visconde de Cachoeira), Joo Severiano
Maciel da Costa (futuro marqus de Queluz), Mariano Jos Pereira da Fonseca (futuro
marqus de Maric), Joo Rodrigues Pereira de Almeida (futuro Baro de Ub), Manoel
Jacinto Nogueira da Gama (futuro marqus de Baependi) e outros. Segundo Ceclia
Oliveira, essa junta consistiu numa reao de D. Joo VI e de seus conselheiros junto s
Cortes Constituintes da Nao Portuguesa, que iniciava seus trabalhos, e reverter para si
iniciativa das aes convocando os procuradores das Cmaras e Vilas do Brasil, Aores,
4 NEVES, Lcia M.B. Pereira das. Corcundas e constitucionais...op. cit., p. 199. 5 Segundo J J da Silva Dias, o Vintismo no foi produto somente de liberais rousseaunianos ou afrancesados 89. Constituiu-se de uma coalizo de descontentamentos com motivaes e tipificaes irredutveis, que iam da direita marginalizada esquerda irredenta, dos fidalgos transmontanos e beires inteligncia radical de Lisboa. DIAS, J J da Silva. O vintismo: realidades e estrangulamentos polticos. Anlise Social, vol. XVI (61-62), 1980- l.-2., 273-278. 6 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil Novas fricas. Lisboa, Edies Afrontamento, 2003. Neste livro, Valentim Alexandre retorna ao seu trabalho clssico Os sentidos do Imprio (...), destacando, principalmente, a nova poltica colonial portuguesa em direo frica com a perda do Brasil. ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Imprio. Questo Nacional e colonial na Crise do Antigo Regime Portugus. Porto: Ed. Afrontamento, 1993.
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Madeira e Cabo Verde para, juntamente com a junta de Cortes, sediada no RJ, e
encarregada de propor reformas poltico-administrativas e avaliar e adaptar, se fosse o caso,
s peculiaridades locais, a futura Constituio a ser feita em Lisboa7. No entender de
Manuel Oliveira Lima, a criao da Junta por D. Joo VI tratava-se de um projeto de
monarquia dual.8
Aps o retorno do rei em 3/04/1821, a coao poltica continuou sobre o regente D.
Pedro, visto que essa regncia foi instalada sem a interveno dos constitucionalistas
portugueses e funcionava fora do seu controle. Com o propsito de recuperar a hegemonia
que ocupavam antes do desembarque da famlia real em terras americanas, os constituintes
exigiram que D. Pedro jurasse as bases da constituio e modificasse o seu governo
provisrio, tendo por base as disposies das linhas gerais indicadas pelo parecer da
Comisso de Constituio.9
Embora atendidas essas exigncias, dentro em pouco a evoluo dos acontecimentos
polticos no Brasil levaria a novos impasses entre as Cortes e o governo interino
estabelecido no Rio de Janeiro, a despeito do fato de que desde maro de 1822 tivesse se
formado na Assemblia lisboeta uma comisso especfica com o objetivo de tratar dos
assuntos referentes ao Brasil e na qual a moderao e a conciliao eram o que orientavam
os trabalhos dos membros que a compunham. As evidncias disso se expressam por meio
das sugestes que os lderes dessa faco, tais como Francisco Manuel Trigoso Morato e
Jos Antonio Guerreiro10, fizeram no sentido de que houvesse uma reviso da poltica at
7 Cf. OLIVEIRA, Ceclia Helena L de Salles. Nao e Cidadania: a Constituio de 1824 e suas implicaes polticas. Horizontes, Bragana Paulista, v. 16, 1998, p. 16. 8 LIMA, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independncia, 1821-1822. Belm: NEAD, s.d. pp. 27-28. (www.nead.unama.br) 9 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil...op. cit. 10 Francisco Manuel Trigoso de Arago Morato foi lente de Direito Cannico na Universidade de Coimbra, deputado pela Beira das Cortes Gerais Extraordinrias e Constituintes da Nao Portuguesa, no qual entre outras importantes participaes, estava relacionado com a questo dos forais. Com a Vilafrancada de 1823, retirou-se de Lisboa, retornando a pedido de D. Joo VI para colaborar na elaborao da Carta Constitucional, que nunca foi outorgada. Com o absolutismo de D. Miguel, novamente se retirou da vida pblica, retornando com a Revoluo Liberal de D. Pedro IV. Com o afastamento desse por doena, e a ascenso de D. Maria II e a promulgao da Carta Constitucional, desempenhou importante papel sendo vice-presidente da Comisso dos Pares at o advento do Setembrismo em 1836. Era muito prximo do Duque de Palmela. Jos Antonio Guerreiro formado em Direito Cannico pela Universidade de Coimbra, foi deputado pelo Minho das Cortes Gerais Extraordinrias e Constituintes da Nao Portuguesa. Ministro da Justia em 1823 e na regncia de D. Izabel Maria em 1826. Exilado no absolutismo de D. Miguel, esteve na Ilha Terceira e fez parte da regncia coletiva estabelecida por D. Pedro I em 15/06/1829. Assim como Morato, sua vida poltica esteve muito ligada ao Duque de Palmela.
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ento seguida pelas Cortes, cujas diretrizes eram dadas pelo nacionalismo regenerador do
grupo de Fernandes Toms11, e que se ancorava em uma burguesia cada vez mais
fortalecida e autnoma, disposta a sacrificar a unidade do Imprio em nome da dignidade
da nao portuguesa e da proteo das conquistas constitucionais.12
As tendncias mais moderadas, por sua vez, vinham sem dvida atender aos anseios
de segmentos tradicionais da economia portuguesa, notadamente os negociantes do Porto e
de Lisboa e de setores da vinicultura portuguesa, que passaram a ver na manuteno da
integridade com o Brasil a chance de recuperar antigos privilgios ou ao menos minorar a
crise na qual estavam imersos desde a invaso de Portugal pelas tropas comandadas por
Junot em 1807.
As informaes das novas orientaes conciliatrias dos liberais portugueses
chegaram ao Rio de Janeiro atravs de uma correspondncia contendo uma cpia do
parecer apresentado pela Comisso Especial dos Negcios do Brasil, sendo recebidas com
grande entusiasmo pela populao carioca, que fez extern-lo por meio da iluminao de
suas casas e participando dos festejos que tiveram lugar na cidade. No entanto, apesar da
anuncia expressa no parecer com a permanncia de D. Pedro, as influncias e atuaes dos
setores contrrios s Cortes constituintes de Lisboa postas em execuo principalmente
por meio dos jornais que circulavam nas principais provncias do pas e que veiculavam a
opinio de que as recentes propostas poderiam ocasionar at mesmo a fragmentao do
territrio brasileiro logo fariam a opinio pblica mudar de opinio.13
A esse tempo o grupo liderado por Gonalves Ledo, que juntamente com Janurio da
Cunha Barbosa fundara o Revrbero Constitucional Fluminense, j despontava no cenrio
11 Pai do nacionalismo regenerador para Almeida Garret, Manuel Fernandes Toms cursou direito cannico na Universidade de Coimbra, ingressando na magistratura com o cargo de juiz de fora de Arganil em 1801. Superintendente das Alfndegas de Aveiro e do Porto em 1805, foi nomeado para desembargador da Relao do Porto em 1811, assumindo somente em 1817. Juntamente com Ferreira Borges, Silva Carvalho e Ferreira Viana, foi um dos fundadores do Sindrio, uma sociedade secreta que teve importante papel na Revoluo do Porto. Deputado pela Beira e presidente em vrias sesses das Cortes, constituiu-se numa das principais lideranas radicais das mesmas. Foi um dos integrantes da comisso encarregada de elaborar as bases da Constituio jurada por D. Joo VI, autor do Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino aos Portugueses e do Relatrio acerca do Estado Publico de Portugal. Faleceu em 1822. 12 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil... op. cit. 13 A respeito da construo de uma esfera pblica e do papel da imprensa na construo de uma opinio pblica no primeiro reinado e nas regncias cf. MOREL, Marco. As transformaes dos espaos pblicos: imprensa, atores polticos e sociabilidades na cidade imperial (1820 - 1840). 1 ed. So Paulo: HUCITEC, 2005.
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poltico e pressionava o prncipe regente pela convocao de uma Assemblia
Representativa neste lado do Atlntico para funcionar em consonncia com a de Lisboa, o
que se fez evidente por meio da redao e envio a D. Pedro de uma Representao
acompanhada de algumas milhares de assinaturas, o que conferia um carter popular
confeco do documento.
Percebe-se, assim, que ao lado dos ideais iluministas de liberdade, direitos do cidado
e igualdade de representao e de deciso que ganharam o mundo e alcanaram uma
generalidade nunca vista antes do incio da Revoluo Francesa, e que de alguma maneira
criaram um consenso e uma unidade de ao entre os elementos da intelectualidade que se
identificavam com as possibilidades e interesses especficos que uma separao categrica
do Brasil face Portugal podia oferecer14, principiavam as divergncias que
caracterizariam os momentos iniciais do reinado de D. Pedro I, polarizada entre os grupos
coimbros e brasilienses15. Muito embora ambos contassem com indivduos que
freqentaram os bancos escolares da Universidade de Coimbra, os momentos distintos de
suas formaes conferiam uma percepo diferenciada da realidade que os envolviam.
Os coimbros haviam se formado por volta de fins do sculo XVIII, quando as
repercusses da Revoluo de 1789 ainda no se faziam sentir com toda a fora e a solidez
do Antigo Regime portugus era ainda incontestvel, no obstante j circulassem algumas
propostas de reformas administrativas influenciadas pelas Luzes do sculo16. Os
brasilienses concluram seus estudos por volta da dcada de 1810, no momento em que a
sede da monarquia portuguesa j se achava estabelecida no Brasil e o contedo da
Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado j era amplamente conhecido e
propagado, a despeito da forma particular como esses conhecimentos penetraram no
14 H muito que a historiografia brasileira demonstrou que a independncia no coincidiu com a formao de uma identidade nacional, sendo mais correto entender a separao como o desdobramento de uma guerra civil entre portugueses do Brasil e do Reino, iniciada com a Revoluo do Porto. HOLANDA, Srgio Buarque de. A herana colonial: sua degradao. In: IDEM (org.) Histria Geral da Civilizao Brasileira. t. II, v. 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, p. 13. Isso no quer dizer, entretanto, que conflitos anti-lusitanos no tenham existido, porm existiram na medida em que os indivduos no eram identificados com a Causa do Brasil. Para maiores detalhes acerca da construo do ser brasileiro e do ser portugus no Primeiro Reinado, cf. RIBEIRO, Gladys Sabina. A Liberdade em Construoop. cit. 15 As definies de coimbros e brasilienses, amplamente utilizadas pela historiadora Lucia Neves em trabalho j citado, so de BARMAN, R. Brazil: the forging of a nation (1798-1852), Stanford, University Press, 1988. Uma sntese interessante das posies desses grupos pode ser encontrada em NEVES, Lucia M. B. P. das; MACHADO, Humberto F. O Imprio do Brasil. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999. 16 Sobre este assunto cf. LYRA, Maria de Lourdes Vianna. A utopia do poderoso imprioop. cit.
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interior da Universidade de Coimbra. Tais especificidades explicam em larga medida a
posio mais conservadora e menos afeita a mudanas mais profundas por parte dos
coimbros, expressas na maior resistncia aceitao da independncia e nas propostas de
cunho restritivas acerca do modo de conduo da poltica estatal.
Por isso mesmo que uma Assemblia Nacional no fazia parte dos planos de Jos
Bonifcio de Andrada e Silva, principal liderana coimbr. Rivalizando com Gonalves
Ledo e Janurio da Cunha Barbosa, lderes dos brasilienses, na conduo da poltica de
enfrentamento junto s cortes, Bonifcio conseguiu impor suas concepes de carter mais
moderado sobre a forma de organizao e funcionamento do Conselho dos Procuradores
Gerais das Provncias do Brasil, uma espcie de Conselho de Estado, que embora contasse
com a participao de representantes eleitos das provncias do Brasil, com um nmero
proporcional ao de deputados das referidas provncias nas Cortes de Lisboa, esteve
subordinado ao Prncipe regente e ao ministro e secretrio de Estado dos Negcios do
Reino e Estrangeiros, no caso Jos Bonifcio, o que na prtica limitava a liberdade de ao
de seus componentes, como consta na seguinte passagem do decreto:
Este Conselho se reunir em sala do meu Pao, todas as vezes que eu mandar convocar, e, alm disto, todas as outras mais que parecer ao mesmo Conselho necessrio de se reunir, se assim o exigir a urgncia dos negcios pblicos para que o dar parte pelo ministro e secretrio de Estado dos Negcios do Reino.(...).17
importante destacar que a prpria preferncia pelo termo Conselho ao de Junta
j demonstrava o triunfo das idias de Bonifcio sobre as propostas mais democrticas
dos brasilienses, uma vez que aquela segunda palavra indicava na poca uma maior
ingerncia de outros poderes sobre o executivo. Cumpre destacar, entretanto, que apesar de
algumas pequenas discordncias, oriundas principalmente de escritos contidos nos jornais
A Malagueta e Correio do Rio de Janeiro, a proposta de criao do Conselho foi bem
aceita, exceo de algumas provncias do norte, como Bahia e Maranho, que se
recusaram a mandar representantes por estarem completamente alinhadas poltica das
Cortes. Ver Quadro 1.
17 Decreto de S.A.R, 12/02/1822, o Prncipe Regente do Brasil, para a convocao de Procuradores dos Povos na Capital (n 168, volume XXVIII). In: PAULA, Srgio Goes de (org. e introduo). Hiplito Jos da Costa. So Paulo: Ed. 34, 2001, p. 615.
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Quadro 1: Conselho dos Procuradores (por ordem de nomeao)
Provncia Nome Cargos/titulao/Atuao Cisplatina D. Lucas Jos Obes Bacharel em Direito
Rio de Janeiro Mariano de Azeredo Coutinho
Autor de diversos manifestos e Representaes, alm de gozar de grande prestgio no Rio de Janeiro, o que se prova com seu primeiro
lugar na eleio dos Procuradores Rio de Janeiro Joaquim Gonalves
Ledo Eminente jornalista e deputado eleito para as duas legislaturas do
Primeiro Reinado Minas Gerais Jos de Oliveira Pinto
Botelho Mosqueira Desembargador do Pao, deputado da Mesa da Conscincia e Ordens, procurador da Real Coroa e Fazenda, chanceler da
Casa da Suplicao Minas Gerais Estevo Ribeiro de
Resende