O Direito da União Europeia e o Direito Europeu dos Direitos do Homem – uma defesa do “triângulo judicial europeu”
Maria Luísa Duarte
(Professora Associada da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa)
Sumário:
1. Apresentação do problema. 2. União Europeia e protecção dos Direitos
Fundamentais: debilidades e contradições de um modelo de fonte
pretoriana. 3. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 4. O
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o controlo do Direito da União
Europeia. 5. Conclusão.
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1. Apresentação do problema
1.1. Imagine-se um triângulo: em cada um dos ângulos está instalado,
preparado para exercer as suas competências, um juiz, integrado numa das
três possíveis instâncias judiciais – o tribunal nacional (qualquer tribunal de
um Estado-membro da União Europeia), o tribunal comunitário (o Tribunal de
Justiça ou o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias) e o
tribunal europeu (o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem). No meio
deste triângulo imaginário, encontra-se um indivíduo, cidadão da União
Europeia ou cidadão de Estado terceiro, que hesita quanto ao caminho que
deverá tomar para invocar judicialmente um direito proclamado pelo Direito
Europeu dos Direitos do Homem1 e cujo exercício teria sido restringido ou
1 A expressão Direito Europeu dos Direitos do Homem que ilustra uma situação de convergência de vontades na Europa no que toca à protecção dos Direitos do Homem, pode, contudo, apresentar-se sob diferentes sentidos: 1) pretende designar o acervo de direitos previsto na Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e nos seus protocolos adicionais; 2) este acervo nuclear tem sido completado e desenvolvido através da aprovação pelo Conselho da Europa de outros importantes instrumentos convencionais (v.g. a Carta Social Europeia, de 18 de Outubro de 1961; a Convenção Europeia para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, de 26 de Novembro de 1987; a Convenção-quadro para a protecção das minorias nacionais, de 10 de Novembro de 1994; a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, de 4 de Abril de 1997); 3) num sentido ainda mais amplo, o Direito Europeu dos Direitos do Homem integra também os direitos e liberdades de fonte comunitária, previstos nos Tratados institutivos, reconhecidos pelo Juiz comunitário e recentemente vertidos na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Ao longo do texto, a expressão é utilizada, salvo indicação em contrário, no seu sentido mais restrito. Por outro lado, e sem prejuízo dos critérios que tradicionalmente têm servido para explicar a distinção entre Direitos do Homem e Direitos Fundamentais (v. Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., Coimbra Ed., 2000, Tomo IV, p. 52-55), entendemos que esta dicotomia deixou de fazer sentido no quadro europeu, orientado por um desígnio político de protecção – interna e internacional – de um rol de direitos de âmbito cada vez mais alargado. Esta convergência que singulariza o modelo europeu no contexto mais geral do Direito Internacional Público justifica, quanto a nós, a equivalência semântica das duas designações – Direitos do Homem e Direitos Fundamentais. A evolução do Direito Europeu dos Direitos do Homem permitiu, por um lado, o alargamento contínuo do âmbito substantivo dos direitos e liberdades proclamados e, por outro lado, uma modificação qualitativa no sistema judicial de protecção introduzida pelo Protocolo n.º 11 (1 de Novembro de 1998), que fez do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem uma instância judicial permanente, de competência obrigatória. Em contrapartida, o Direito Europeu dos Direitos do Homem de fonte complementar não beneficia desta protecção judicial, embora as convenções prevejam outros mecanismos de queixa e de controlo.
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violado por acto ou omissão imputáveis ao decisor da União Europeia.
Pergunta-se: qual será o tribunal competente para conhecer a sua queixa,
de acordo com o conhecido princípio do “juiz natural”?2 Em abstracto,
abrem-se várias hipóteses:
- o tribunal nacional no caso de existirem actos nacionais de aplicação do
acto comunitário alegadamente contrário aos Direitos Fundamentais. A
decisão do Juiz nacional sobre a suposta ilegalidade do acto comunitário
exigiria, de harmonia com a jurisprudência comunitária, a colocação de
uma questão prejudicial de invalidade ao Tribunal de Justiça (v. artigo
234º.CE)3;
- o Tribunal de Primeira Instância (TPI), chamado a pronunciar-se no
quadro de um recurso de anulação do acto comunitário em causa (v.
artigo 230º, parágrafo quarto, CE) ou de um recurso por omissão
instaurado contra as instituições ou órgãos comunitários alegadamente
responsáveis pela abstenção que viola Direitos Fundamentais (v. artigo
2 O princípio do “juiz natural” – também conhecido pela expressão “juiz legal” utilizada pelo artigo 101º, n.º 1, da Lei Fundamental de Bona: “É vedada a instituição de tribunais de excepção. Ninguém pode ser subtraído do seu juiz legal” – constitui uma importante garantia processual que confere ao indivíduo o direito de ser julgado ou de ver a sua petição apreciada por um tribunal previamente definido pela Lei (a Constituição, a lei ordinária ou um tratado internacional) como competente. O ordenamento jurídico português acolhe expressamente esta exigência, cuja previsão consta do artigo 32º, n.º 9, da Constituição: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. No que respeita ao fundamento e aos limites do reconhecimento do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) como “juiz natural”, a resposta deve ser procurada nas disposições constantes dos Tratados institutivos da União Europeia e das Comunidades Europeias e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) que definem o respectivo âmbito de jurisdição – em relação ao Tribunal de Justiça, v. artigos 68º e 220º e seguintes do Tratado da Comunidade Europeia, e artigos 35º e 46º do Tratado da União Europeia; no que se refere ao TEDH, v. artigos 32º e seguintes da CEDH. 3 O Tribunal de Justiça interpreta a sua competência de controlo da legalidade dos actos comunitários no sentido de vedar ao Juiz nacional a possibilidade de declarar a invalidade do acto comunitário, pelo que, neste caso, deverá suscitar a adequada questão prejudicial (v. Acórdão de 22 de Outubro de 1987, Proc. 314/85, caso Foto-Frost, Col. 1987, p. 4199).
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232º, parágrafo terceiro, CE). Da sentença proferida pelo TPI, poderia
ainda o particular recorrer para o TJCE.
Esta hipótese, a da via judicial comunitária, pode, contudo, revelar-se
impossível no caso de o particular pretender impugnar um acto
comunitário ou contestar a legalidade de uma omissão que relevam do
âmbito da função normativa. O texto das disposições relativas à
legitimidade activa dos particulares no recurso de anulação e no recurso
por omissão limitam, em princípio, a sua iniciativa contenciosa aos actos
de que sejam destinatários e às omissões relativas a actos que lhe
seriam dirigidos. Se assim não for, o particular recorrente terá de
demonstrar que o acto tomado “sob a forma de regulamento ou de
decisão dirigida a outra pessoa” lhe diz directa e individualmente
respeito. Sobre o alcance desta exigência processual, o TJCE mantém
desde a sentença Plaumann, proferida há mais de trinta anos4, uma
interpretação considerada restritiva e que foi recentemente reafirmada no
caso Unión de Pequeños Agricultores5, depois de uma tentativa do
TPI de viragem jurisprudencial sobre esta matéria através do caso
Jégo-Quéré6. Da conjugação de um texto que é intencionalmente
restritivo com uma interpretação jurisprudencial que se propõe respeitar a
letra do Tratado sobre esta matéria, regista-se, na prática, a
impossibilidade de o particular recorrer aos tribunais comunitários quando
estão em causa actos ou omissões do âmbito da função normativa. Uma
vez verificada esta impossibilidade, é legítimo ao particular invocar o
direito à tutela judicial efectiva. O problema que, então, se coloca é o
seguinte: se os tribunais comunitários não lhe garantem o exercício deste
direito, qual será, neste caso, o tribunal vocacionado para “corrigir” este
4 V. Acórdão de 15 de Julho de 1963, Proc. 25/62, Rec. 1963, p. 199. 5 V. Acórdão de 25 de Julho de 2002, Proc. C-50/00 P, Col. 2002, p. I-6677. 6 V. Acórdão de 3 de Maio de 2002, Proc. T-177/01, Col. 2002, p. II-2365.
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desvio a um princípio elementar do funcionamento da “União de Direito”,
directamente relacionado com a protecção dos Direitos Fundamentais?
- o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, competente para apreciar as
petições individuais com fundamento em violação da CEDH (v. artigos
32º e 33º), poderá, em princípio, exercer esta competência em relação às
queixas dos particulares fundadas na alegação de inobservância do
princípio da tutela judicial efectiva no quadro da ordem jurídica da União
Europeia ou baseadas na suposta violação do âmbito de outros direitos
previstos na CEDH, resultante de interpretação restritiva do Juiz
comunitário. Em qualquer uma destas hipóteses, a petição individual
envolveria uma acusação directa de violação do Direito Europeu dos
Direitos do Homem que poria em causa uma decisão anterior do TPI ou
do TJCE, levando, por consequência, o TEDH a controlar a interpretação
e a aplicação preconizadas pelo Juiz comunitário.
1.2. Nos termos sumariamente expostos, o “triângulo judicial europeu”
deveria funcionar com base no princípio do “juiz natural”, assegurando o
respeito da exigência relativa ao esgotamento prévio das vias internas de
recurso (v. artigo 35º CEDH). A possibilidade de recorrer ao TEDH para
apresentar uma queixa relativa a uma decisão comunitária, tomada pelo
Juiz comunitário ou pelos órgãos comunitários de autoridade política, com
fundamento na alegada violação da CEDH, não deveria suscitar quaisquer
dificuldades do ponto de vista da lógica interna de funcionamento do sistema
europeu de protecção dos Direitos Fundamentais. No entanto, estas
dificuldades existem e têm sido determinantes no sentido de inibir o Juiz
europeu de exercer a sua “competência natural” ou, pelo menos, de o limitar
fortemente quando está em causa a tutela dos Direitos Fundamentais no
quadro da União Europeia. Os defensores desta excepção ou imunidade que
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resguarda o Direito da União Europeia do controlo exercido pelo TEDH
invocam dois argumentos principais:
- as Comunidades Europeias não aderiram à CEDH e dela não sendo
partes contratantes a ela não estão vinculadas;
- a autonomia da ordem jurídica comunitária é incompatível com o
reconhecimento ao TEDH de uma competência de controlo judicial
que pertence, em exclusivo, aos tribunais nacionais e aos dois
tribunais comunitários; associada à ideia da autonomia anda a defesa da
auto-suficiência do sistema comunitário, alegadamente equivalente no
que toca à protecção judicial que é assegurada pelo sistema europeu.
Estes são argumentos que, como teremos oportunidade de assinalar,
ignoram a importância de certos aspectos que se tornaram decisivos em
consequência da própria jurisprudência comunitária ou que se impõem por
força de uma dinâmica contínua de aprofundamento da integração política
no seio da União Europeia.
1.3. Depois de uma breve descrição do actual modelo comunitário de
protecção judicial dos Direitos Fundamentais, incluindo uma referência à
relevância jurídica da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,
importa conhecer os critérios que têm orientado o TEDH no que toca à
delimitação e fundamentação da sua competência de controlo do Direito da
União Europeia.
7
2. União Europeia e protecção dos Direitos Fundamentais: debilidades e contradições de um modelo de fonte pretoriana
2.1. O texto originário dos Tratados institutivos das três Comunidades
Europeias omitiu qualquer referência ao princípio da tutela dos Direitos
Fundamentais. Várias das suas disposições, em particular do Tratado de
Roma, estabeleciam regras de conformação das liberdades económicas
que, indirecta e instrumentalmente, se repercutiam na esfera jurídica dos
cidadãos europeus sob a forma de direitos – v.g. o direito à não
discriminação em razão da nacionalidade; a igualdade de remuneração entre
homens e mulheres; o direito de livre circulação e de acesso ao exercício de
uma profissão ou actividade económica no território de um Estado-membro
diferente do Estado de nacionalidade7.
2.2. O Acto Único Europeu inscreveu, pela primeira vez, na matriz institutiva
das Comunidades Europeias, uma fórmula genérica de declaração de
direitos. No Preâmbulo, os Estados-membros comprometeram-se “a
promover conjuntamente a democracia, com base nos direitos fundamentais
reconhecidos nas Constituições e legislações dos Estados-membros, na
Convenção de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais e na Carta Social Europeia, nomeadamente, a liberdade, a
igualdade e a justiça social”.
O verdadeiro salto qualitativo seria dado com o Tratado de Maastricht, em
virtude de duas alterações fundamentais:
7 Sobre a importância destes direitos, e da interpretação que deles foi feita pelo Tribunal de Justiça com vista ao reconhecimento de um verdadeiro estatuto de cidadão comunitário que sucedeu ao estatuto de mero agente económico, v. Maria Luísa DUARTE, A liberdade de circulação de pessoas e a ordem pública no Direito Comunitário, Coimbra, 1992, p. 241 e segs.
8
- o (então) artigo F, n.º 2 (actual artigo 6º.UE) passou a vincular a União
Europeia ao respeito dos “direitos fundamentais tal como os garante a
Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais (...) e tal como resultam das tradições
constitucionais comuns aos Estados-membros, enquanto princípios
gerais do direito comunitário”;
- a previsão de um estatuto de cidadania da União, reconhecido a todos os
cidadãos dos Estados-membros e envolvendo a titularidade de certos
direitos, incluindo direitos políticos (v. artigos 17º a 22º do Tratado da
Comunidade Europeia).
2.3. Foram modificações importantes, alargadas no seu âmbito de aplicação
pelos Tratados de Amesterdão e de Nice, mas que falharam o objectivo de
dotar as Comunidades Europeias de um catálogo de Direitos Fundamentais.
Na ausência de uma declaração de direitos, coube ao Juiz comunitário,
partindo de uma apreciação casuística, a definição de um modelo
comunitário de tutela dos Direitos Fundamentais. É este modelo, na sua
génese e contornos actuais, que passaremos a descrever de forma
sumária8.
2.4. O aprofundamento normativo do processo de integração, estreitamente
ligado à afirmação do primado e do efeito directo como critérios básicos de
articulação entre a ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas
nacionais, inculcou na generalidade das normas comunitárias a
8 Sobre esta evolução, v. Maria Luísa DUARTE, “A União Europeia e os Direitos Fundamentais. Métodos de protecção”, in Studia Iuridica, n.º 4, Colóquio Portugal-Brasil Ano 2000, p. 34 e segs., e bibliografia aí citada.
9
característica da imediatividade. O primado e o efeito directo da norma
comunitária conferem ao particular o direito de exigir a sua aplicação em
detrimento da norma nacional contrária. Acontece, porém, que, como
destinatário directo do comando normativo comunitário, o particular pode vir
a ser afectado na sua qualidade de titular de direitos reconhecidos pela
Constituição nacional ou pelas convenções internacionais aplicáveis.
2.5. Colocado perante o dilema de ceder sobre a questão do primado para
abrir espaço à vinculatividade dos Direitos Fundamentais ou de não abdicar
da natureza incondicional e absoluta da exigência do primado, o Tribunal de
Justiça escolheu a via do que temos designado por agnosticismo valorativo – por mais relevantes que fossem os Direitos Fundamentais na
sua fenomenologia constitucional ou internacional, o Juiz comunitário não os
reconhecia como parâmetro de apreciação da validade dos actos
comunitários9.
O que preocupava, então, o Tribunal de Justiça era a imposição do
primado e a eliminação de quaisquer excepções que o pudessem relativizar,
ainda que derivadas de preceitos constitucionais sobre Direitos
Fundamentais ou regras internacionais sobre Direitos do Homem.
Não permitindo ao indivíduo a invocação da sua Constituição ou de
instrumentos internacionais para se opor à aplicação de uma acto
comunitário potencialmente restritivo de Direitos Fundamentais, nem
garantindo a sua tutela autónoma, o Tribunal violava o próprio Tratado. O
artigo 220º.CE concebe o Tribunal como o órgão de “garantia do respeito do
direito”. Por legado histórico e por força da experiência constitucional
contemporânea, o Direito incorpora a própria ideia de liberdade,
9 Esta orientação foi seguida nos casos Stork, de 4 de Fevereiro de 1959, Proc. 1/58, Rec. 1959, p. 45 e Comptoirs, de 12 de Fevereiro de 1960, Procs. 36, 37, 38 e 40/59, Rec. 1960, p. 851.
10
concretizada esta na proclamação e na tutela efectiva dos Direitos
Fundamentais10.
2.6. O Acórdão de 12 de Novembro de 1969, proferido no caso Stauder11,
marca a passagem de uma fase “agnóstica” para uma fase de
reconhecimento activo dos direitos fundamentais, “compreendidos nos
princípios gerais do direito comunitário, cujo respeito é assegurado pelos
tribunais”. A “comunitarização” dos direitos fundamentais pelo recurso aos
princípios gerais de Direito fora já proposta pelo Advogado-Geral Lagrange
no caso Comptoirs. O próprio Tratado, no artigo 288º.CE remete para os
“princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-membros” em matéria de
responsabilidade extracontratual.
No domínio sensível e primordial dos Direitos Fundamentais ir-se-ia
revelar muito profícuo o recurso aos princípios gerais de Direito como
técnica de integração e autonomização de direitos e liberdades garantidos
pelos sistemas nacionais. A representação abstracta de uma ideia
normativa, a função de arquétipo de soluções jurídicas concretas não
impede o princípio geral de garantir uma tutela idêntica à da regra de direito.
Trata-se mesmo de uma protecção reforçada, dado que os princípios gerais
primam sobre o Direito Comunitário derivado sobre os próprios Tratados
sempre que acolham direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, os
quais pela sua fundamentalidade ético-jurídica são insusceptíveis de
derrogação.
10 Cfr. Maria Luísa DUARTE, “O Tratado da União Europeia e a garantia da Constituição. Notas de uma reflexão critica”, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, 1995, p. 677. 11 V. Proc. 26/69, Rec. 1969, p. 419.
11
O Acórdão seguinte, no caso Internationale Handelsgesellsschaft de 12
de Dezembro de 197012, lança alguma luz sobre a noção material de
princípios gerais de Direito, inspirados nas tradições constitucionais comuns
aos Estados-membros, mas enquadrados na estrutura e objectivos
específicos da obra comunitária.
2.7. A estratégia de recurso aos princípios gerais de Direito seria
aprofundada no caso Nold II13 que inaugura uma terceira fase na
jurisprudência comunitária, caracterizada pela determinação de um critério
materialmente amplo de Direitos Fundamentais. As tradições constitucionais
comuns (i), as próprias Constituições dos Estados-membros (ii), bem como
os instrumentos internacionais relativos aos Direitos do Homem, aos quais
os Estados-membros hajam aderido ou cooperado (iii) formam um vasto
conjunto normativo de revelação dos Direitos Fundamentais que devem ser
garantidos pelo Juiz comunitário, em cooperação com os tribunais nacionais.
2.8. O caso Nold II é o expoente de uma concepção que é, particularmente,
favorável a uma garantia efectiva dos Direitos Fundamentais. Como
princípios gerais de Direito, a sua vinculatividade na ordem jurídica
comunitária não depende de um qualquer “mínimo denominador comum”. O
critério de identificação do direito não é o da sua maior ou menor aceitação
nos ordenamentos constitucionais dos Estados-membros. O critério
relevante é o da “adequação funcional”. Sendo as Comunidades Europeias
entidades de poderes limitados, segundo o princípio da competência por
12 V. Proc. 11/70, Rec. 1970, p. 1125. 13 V. Acórdão de 14 de Maio de 1974, Proc. 4/73, Rec. 1974, p. 491.
12
atribuição14, o âmbito de protecção dos Direitos Fundamentais há-de
corresponder a esse espaço de actuação normativa15.
O critério da “adequação funcional” tem, quanto a nós, um duplo alcance:
1) determinados direitos não integram o bloco de super-legalidade
comunitária e não são invocáveis como parâmetro de apreciação da
validade dos actos comunitários pela razão singela que as Comunidades
Europeias não poderão, no quadro dos seus poderes, adoptar
comportamentos potencialmente contrários a tais direitos – v. g., o direito à
vida ou o direito de contrair casamento. A integração material do direito
fundamental invocado na ordem jurídica comunitária pressupõe uma
avaliação do seu conteúdo garantístico à luz dos fins e objectivos das
Comunidades; 2) por outro lado, a invocação de certos direitos, junto dos
tribunais nacionais ou junto dos tribunais comunitários, a título de princípios
gerais de Direito como fundamento de um juízo de desvalor sobre a
legislação nacional aplicável só é procedente na exacta medida em que a
matéria regulada pelo decisor nacional integra o âmbito material de
aplicação do Direito Comunitário.
Sem a preocupação da exaustividade, de resto injustificada num trabalho
desta natureza, passaremos em análise alguns arestos que ilustram esta
precompreensão do Juiz comunitário sobre as fontes e os limites do seu
próprio poder de sindicância em matéria de Direitos Fundamentais.
14 V. Maria Luísa DUARTE, A Teoria dos Poderes Implícitos e a Delimitação de Competências entre a União Europeia e os Estados-membros, Lisboa, Lex, 1997, p. 213 e segs. 15 Ao discorrer sobre a formação dos princípios gerais de Direito, Denys SIMON considera com razão que “o Tribunal de Justiça reconheceu a si próprio uma grande liberdade na selecção de normas susceptíveis de serem transpostas para o ordenamento comunitário, em função da sua compatibilidade virtual com os fundamentos do sistema instituído com base nos Tratados” (in “Y-a-t-il des principes généraux de droit communautaire?”, in Revue Française de Théorie Juridique, 1991, n.º 4, p. 79).
13
2.9. Em acórdãos posteriores ao caso Nold II, o TJCE fez referências
directas ao Direito Internacional como fonte de direitos fundamentais
garantidos pelo Juiz comunitário16. No caso Van Duyn17, caracterizou-se o
direito de entrada e de residência dos nacionais no seu próprio Estado como
um princípio de Direito Internacional. Mas foi no caso Rutili18 que o TJCE fez
a primeira menção expressa à CEDH, considerando que as limitações aos
poderes dos Estados-membros em matéria de polícia de estrangeiros são a
manifestação de um princípio mais geral consagrado nos artigos 8º, 9º, 10º e
11º da CEDH e no artigo 2º do Protocolo n.º 4.
Para além das múltiplas referências expressas à CEDH e/ou aos seus
Protocolos Adicionais19, o TJCE reconheceu num acórdão de 1991 que a
CEDH “reveste um significado particular” entre os princípios gerais de Direito
cujo respeito é assegurado pela ordem jurídica comunitária20.
2.10. A imperatividade dos Direitos do Homem na ordem jurídica
comunitária alicerça, igualmente, o poder do Juiz comunitário para, em
cooperação com o Juiz nacional, proceder à fiscalização dos actos
legislativos e regulamentares dos Estados-membros.
Como critério de conformação dos comportamentos do decisor nacional,
os Direitos Fundamentais não gozam de um âmbito de aplicação geral e
autónomo. A natureza funcional das Comunidades Europeias limita a 16 Sobre a fenomenologia dos Direitos Fundamentais na ordem jurídica comunitária, v. Maria Luísa DUARTE, A liberdade..., cit., p. 248 e segs. 17 V. Acórdão de 4 de Dezembro de 1974, Proc. 41/74, Rec. 1974, p. 1337. 18 V. Acórdão de 28 de Outubro de 1975, Proc. 36/75, Rec. 1975, p. 1219. 19 Para uma visão exaustiva dos Direitos do Homem que têm merecido da parte dos tribunais comunitários a sua judiciosa consideração como critério de interpretação ou de apreciação de validade de normas comunitárias, v. Ángel G. Chueca SANCHO, Los Derechos Fundamentales en la Unión Europea, 2ª ed., Barcelona, Bosch, 1999, p. 79 e segs. 20 V. Acórdão de 18 de Junho de 1991, Proc. C-260/89, caso ERT, Col. 1991, p. I-2925, consid. 41.
14
impositividade dos Direitos Fundamentais às áreas ou matérias que relevam
da competência prevista nos Tratados.
2.11. O Tribunal de Justiça enunciou, pela primeira vez, esta sua
competência de controlo no caso Cinètheque, de 11 de Julho de 1985: “(...)
se é certo que incumbe ao Tribunal de Justiça garantir o respeito pelos
direitos fundamentais no âmbito próprio do direito comunitário, já não lhe
cabe, porém, examinar a compatibilidade, com a Convenção Europeia, de
uma lei nacional que se situa, como no caso concreto, num âmbito da
competência do legislador nacional”21.
Em jurisprudência posterior, o TJ confirmou o seu propósito de limitar a
fiscalização da compatibilidade do direito nacional com a CEDH àquelas
disposições que executam normas comunitárias22 ou que estabelecem
excepções às liberdades comunitárias com base em cláusulas dos Tratados
que admitem esses regimes nacionais derrogatórios23.
2.12. A relevância dos Direitos do Homem no ordenamento comunitário
como parte integrante dos princípios gerais de Direito cujo respeito é
assegurado pelos tribunais comunitários, em cooperação com os tribunais
nacionais, estará próxima, senão mesmo coincidente, com a noção de
recepção material.
Verifica-se, com efeito, que as disposições relativas a Direitos
Fundamentais, vertidas em normas constitucionais, consolidadas por
tradições constitucionais comuns, inscritas em convenções internacionais -
21 V. Procs. 60 e 61/84, Col. 1985, p. 2605, consid. 26. 22 V. Acórdão de 13 de Julho de 1989, caso Wachauf, Proc. 5/88, Col. 1989, p. 2609. 23 V. Acórdão de 18 de Junho de 1991, caso ERT, Proc. C-260/89, Col. 1991, p. I-2925.
15
em particular, a CEDH - foram recebidas e incorporadas na ordem jurídica
comunitária como princípios gerais de Direito24. Mercê deste exercício de
ficção jurídica, o Juiz comunitário interpreta e aplica os Direitos
Fundamentais, de fonte nacional e convencional, segundo as regras e os critérios próprios do Direito Comunitário. O Juiz comunitário não se
compromete com uma qualificação jurídica rigorosa do título de vigência dos
Direitos Fundamentais no ordenamento comunitário25, mas a sua
jurisprudência constante sobre a relevância e o sentido dos Direitos
Fundamentais parece-nos apontar, com maior propriedade, para a recepção
material.
Recorde-se, por exemplo, um acórdão recente sobre matéria de
concorrência no qual, estando em causa o direito de não testemunhar contra
si próprio, protegido pela presunção de inocência prevista no artigo 6º, n.º 2,
da CEDH, o TPI concluiu que “não tem competência para apreciar a
legalidade de um inquérito em matéria de direito da concorrência à luz das
disposições da CEDH, na medida em que estas não fazem parte, enquanto tais, do direito comunitário”, ressalvando, contudo, e segundo a
jurisprudência constante que “os direitos fundamentais são parte integrante
24 Dando como pressuposta a pluralidade de ordenamentos jurídicos (comunitário, nacional e europeu), a jurisprudência comunitária, primeiro, e numa fase posterior os próprios Tratados (v. art. 6º, n.º 2.UE), atribuíram aos princípios gerais de Direito a função de normas de “referência” ou de instrumentos de recepção de conteúdos normativos sobre direitos fundamentais que, deste modo, se incorporam no “bloco de legalidade comunitária”. Sobre o conceito de recepção material, cfr., em especial Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, 4ª ed., Coimbra Ed., 2000, Tomo II, p. 33. 25 No Acórdão de 18 de Junho de 1991, caso ERT (v. supra nota 20), o TJ defendeu que era dever do Juiz nacional aplicar o Direito no caso concreto “tendo em conta todas as regras de direito comunitário, incluindo a liberdade de expressão, consagrada pelo artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (...)”, mas logo acrescenta que este artigo 10º é aplicado enquanto “princípio geral de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça” (v. consid. 44). No contexto comunitário, os princípios gerais de Direito são arquétipos de configuração funcional de uma “Comunidade de Direito” que não se confundem com o Direito Comunitário positivo - nem pela sua fenomenologia, nem pela sua força conformadora.
16
dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Juiz
comunitário”26.
2.13. No respeitante à relevância, verifica-se que a parametricidade dos
Direitos Fundamentais pode não ser equivalente àquela que os caracteriza
nos sistemas originários.
Sobre o espaço de significação deste ou daquele direito, o Juiz
comunitário não se considera necessariamente vinculado pelo sentido que
no ordenamento originário prevalece sobre esse direito. Embora o Juiz
comunitário assuma como missão garantir ao titular do direito uma protecção
equivalente àquela a que ele pode aspirar no ordenamento originário, pode
acontecer – e tem acontecido – que uma mesma disposição da CEDH
suscite interpretações distintas, senão mesmo divergentes, opondo o
Tribunal do Luxemburgo ao Tribunal de Estrasburgo27.
2.14. Concluindo: o trabalho realizado pelo Tribunal de Justiça desde o caso
Stauder até aos nossos dias é notável, porque “abriu” a ordem jurídica
comunitária à relevância conformadora dos Direitos Fundamentais e
procurou, no quadro das vias processuais previstas nos Tratados, garantir o
seu respeito em caso de violação imputável ao decisor comunitário ou ao
26 V. Acórdão de 20 de Fevereiro de 2001, Proc. T-112/98, caso Werke, Col. 2001, p. II -729, consid. 59 e 60. 27 No caso Hoechst (Acórdão de 21 de Setembro de 1989, Procs. 46/87 e 227/88, Col. 1989, p. I-2859), o TJ recusou interpretar o artigo 8º da CEDH como reconhecendo o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio no caso das instalações de empresas comerciais. Alguns meses antes, no caso Chappel / Reino Unido (sentença de 30 de Março de 1989, 17/1987/140/194, série A, vol. n.º 152), o TEDH aceitara a invocação desse direito em relação a um local que era utilizado como domicílio pessoal e como instalação comercial. No caso Niemietz / Alemanha (sentença de 16 de Dezembro de 1992, 72/1991/324/396, Série A, vol. nº 251-B), o TEDH assumiu expressamente a divergência de interpretação com o TJ, ao considerar que o artigo 8º da CEDH proibia medidas de busca decretadas por um tribunal em relação ao escritório de um advogado.
17
decisor nacional sobre matérias que integram o âmbito de aplicação do
Direito da União Europeia. Este modelo de protecção, urdido e aplicado pelo
Juiz comunitário, padece, contudo, do casuísmo próprio dos sistemas de
fonte pretoriana e da imprevisibilidade que, regra geral, lhe anda associada.
A incerteza jurídica torna-se particularmente nefasta quando o que está em
causa são os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas. Para
ultrapassar a debilidade própria do assinalado casuísmo, gerador de dúvidas
sobre se determinado direito fará ou não parte integrante do Direito da União
Europeia e, no caso afirmativo, como virá a ser interpretado, têm sido
apontadas duas soluções, cuja aplicação poderia ser cumulativa: 1) a
aprovação de um catálogo próprio da União Europeia, que se concretizou
com a Carta dos Direitos Fundamentais, nos termos que veremos no ponto
seguinte; 2) a adesão formal das Comunidades Europeias à CEDH,
hipótese em aberto, como veremos no ponto 4.
Finalmente, a contradição fundamental do actual sistema pretoriano de
tutela comunitária dos Direitos Fundamentais reside no facto de o Juiz
comunitário acreditar que pode assegurar uma “protecção equivalente” de
um direito previsto na CEDH sem abdicar das prerrogativas que considera –
erradamente, em nossa opinião – como pressupostos da autonomia da
ordem jurídica comunitária: por um lado, a recepção material do direito que
torna possível a sua aplicação segundo uma interpretação diferente daquela
que lhe é garantida pelo TEDH; por outro lado, a convicção, ainda que não
expressamente formulada, sobre a sua competência definitiva de controlo do
Direito Comunitário à luz dos Direitos Fundamentais, insusceptível de
escrutínio a posteriori pelo TEDH, exercido por este segundo os princípios e
os critérios sobre os quais assenta o modelar e original sistema europeu de
protecção dos Direitos do Homem.
18
3. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia
3.1. No Conselho Europeu de Colónia foi tomada a decisão de elaborar uma
carta de direitos na qual deveriam ficar consignados “com toda a evidência,
a importância primordial de tais direitos e o seu alcance para os cidadãos da
União”. O conteúdo da futura Carta deveria reflectir o “adquirido comunitário
e europeu”28 em matéria de direitos fundamentais, assinalando
especificamente três categorias de direitos: os relativos à liberdade e
igualdade, completados pelos direitos processuais fundamentais, previstos
na Convenção Europeia dos Direitos do Homem ou decorrentes das
tradições constitucionais comuns aos Estados-membros (i); os direitos
associados ao estatuto de cidadania da União e, por esta razão, reservados
aos cidadãos dos Estados-membros (ii); e, finalmente, os direitos de
natureza económica e social que resultam da Carta Social Europeia e da
Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores(iii).
3.2. Debatida e elaborada pela Convenção, o projecto final da Carta foi
submetido à apreciação dos Estados-membros no Conselho Europeu de
Nice (7 e 8 de Dezembro de 2000) que se decidiram pela fórmula sui generis
da sua proclamação solene pelos presidentes do Parlamento Europeu, do
Conselho e da Comissão. A questão fulcral relativa ao estatuto da Carta
(força jurídica e modo de incorporação no Direito institutivo da União
Europeia) foi remetida para uma fase ulterior29.
28 Cfr. Conclusões da Presidência, Colónia, 3 e 4 de Junho de 1999, Anexo IV. 29 O projecto de Constituição para a Europa dedica a Parte II à Carta dos Direitos Fundamentais da União, reproduzindo, com pequenas alterações o texto proclamado em Nice.
19
3.3. Com cinquenta e quatro artigos, a Carta divide-se em sete capítulos:
Dignidade; Liberdade; Igualdade; Solidariedade; Cidadania; Justiça; Disposições gerais30.
Os direitos recolhidos pelos primeiros seis capítulos esgotam
praticamente o elenco de direitos políticos, económicos e sociais constante
de instrumentos internacionais, com particular destaque para a CEDH,
previstos nos textos constitucionais, decorrentes das tradições
constitucionais dos Estados-membros ou ainda vertidos na letra dos
Tratados institutivos. Os direitos inerentes ao estatuto de cidadania da União
(v. artigos 39º a 46º) traduzem a especificidade de um objectivo de
integração política associado à existência e natureza própria da União
Europeia, enquanto entidade política emergente. Outros direitos, como o
30 Sobre a Carta, v., na doutrina portuguesa, Jorge MIRANDA, “Sobre a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Parecer breve”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2000, vol. XLI, nº 1, p. 17 e segs.; AA.VV., Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra Ed., 2001; Miguel GORJÃO-HENRIQUES, “Uma Carta sem destino? Breve nota sobre a Carta de Direitos Fundamentais da UE”, in Temas de integração, 2000, 5ª vol., n.º 9, p. 113 e segs.; Ana M. Guerra MARTINS, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e os direitos sociais”, in Direito e Justiça, 2001, Tomo 2, p. 189 e segs.; António VITORINO, “La Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne”, in Revue de Droit de l’Union Européenne, 2001, nº 1, p. 27 e segs.; Rui M. Moura RAMOS, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a protecção dos Direitos Fundamentais”, in Cuadernos Europeos de Deusto, 2001, p. 161 e segs.; Rui MEDEIROS, “A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Estado Português”, in AA.VV., Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa de 1976. Evolução constitucional e perspectivas futuras, Lisboa, AAFDL, 2001, p. 227 e segs.; Maria Luísa DUARTE, “A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – natureza e meios de tutela”, in Estudos em homenagem à Professora Isabel Magalhães Collaço, Coimbra, 2002, vol. I, p. 723 e segs.; António Goucha SOARES, A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Coimbra 2002. Na doutrina estrangeira, v., entre muitos, F. BENOÎT-ROHMER (dir.), La Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne, Actes des journées d’études de Strasbourg, 2000, Kehl Strasbourg Arlington, 2000 ; G. Franco FERRARI (dir.), I diritto fondamentali dopo la Carta di Nizza, Milão, Giuffrè, 2001; L. FERRARI BRAVO, e outros, Carta dei diritti fondamentali dell’Unione europea, Milão, Giuffrè, 2001; K. LENAERTS e outro, “A “bill of rigths” for the European Union”, in Common Market Law Review, 2001, vol. 38, p. 273 e segs.; Panebianco MASSIMO (dir.), Repertorio della Carta dei diritti fondamentali dell’Unione europea, Milão, Giuffrè, 2002; P. Alonso GARCÍA, “La Carta de los derechos fundamentales de la Unión Europea”, in Gaceta Jurídica de la Unión Europea, 2000, nº 209, p. 10; J. A. Carrillo SALCEDO, “Notas sobre el significado político y jurídico de la Carta de Derechos Fundamentales de la Unión Europea”, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, 2001, nº 9, p. 7 e segs.; M. WATHELET, “La Charte des Droits Fondamentaux: un bom pas dans une course que reste longue”, in Cahiers de Droit Européen, 2000, nºs 5-6, p. 585 e segs.
20
previsto no artigo 21º sobre a não discriminação, no artigo 23º sobre a
igualdade entre homens e mulheres e no artigo 36º sobre o acesso a
serviços de interesse económico geral, correspondem a um exercício de
evidenciação de direitos já formalmente reconhecidos nos Tratados
comunitários.
3.4. Ao negarem o esperado reconhecimento de força vinculativa às
disposições da Carta, remetendo para momento ulterior a clarificação do seu
estatuto na ordem jurídica comunitária, os Estados-membros não vedaram a
possibilidade de a Carta vir a assumir relevância jurídica indirecta.
No contexto singular do sistema comunitário de tutela dos Direitos
Fundamentais, e atendendo à redacção da Carta como se esta fosse
vinculativa, urge distinguir entre, por um lado, a força jurídica formal ou
directa – de que a Carta carece – e, de outro lado, a relevância jurídica
mitigada, compatível com a produção de certos efeitos jurídicos.
Do ponto de vista estritamente formal, a Carta pode ser qualificada como
um acordo interinstitucional31. Será razoável supor que o Juiz comunitário
não invocará, nem aplicará a Carta enquanto instrumento autónomo de
revelação de direitos. Neste sentido, as disposições substantivas da Carta
terão uma natureza de fonte complementar de direitos já reconhecidos e
recebidos pela ordem jurídica comunitária e funcionarão, eventualmente,
como directriz de interpretação de normas comunitárias e nacionais em
caso de dúvida sobre o respectivo grau de conformidade com os “princípios
da liberdade, da democracia, do respeito pelos Direitos do Homem e pelas
liberdades fundamentais” (v. artigo 6º, n.º 1, UE)32.
31 V. Maria Luísa DUARTE, “A Carta...”, cit., p. 738. 32 No seu acórdão de 30 de Janeiro de 2002, o TPI, citou o artigo 41º, n.º 1, da Carta a título de explicitação do princípio geral que confere aos administrados o direito a um tratamento diligente e
21
3.5. No que toca às relações entre a Carta e a CEDH, o artigo 52º, n.º 3, da
Carta determina:
“Na medida em que a presente Carta contenha direitos
correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção europeia
para a protecção dos direitos do Homem e das liberdades
fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos
conferidos por essa convenção, a não ser que a presente Carta
garanta uma protecção mais extensa ou mais ampla. Esta disposição
não obsta a que o direito da União confira uma protecção mais
ampla.”
Por seu lado, o artigo 53º reforça o sentido desta garantia ao dispor:
“Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no
sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades
fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação,
pelo direito da União, o direito internacional e as convenções
internacionais em que são partes a União, a Comunidade ou todos os
Estados-membros, nomeadamente a Convenção europeia para a
protecção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais,
bem como pelas Constituições dos Estados-membros”.
imparcial de uma denúncia apresentada junto da administração comunitária (v. Proc. T-54/99, caso max.mobil, Col. 2002, p. II-313). Para o Advogado-Geral Antonio TIZZANO, a Carta impõe-se como “parâmetro de referência substancial para todos os actores – Estados-membros, instituições, pessoas físicas e colectivas – da cena comunitária” (v. Conclusões no Proc. C-173/99, de 26 de Junho de 2001, caso BECTU, Col. 2001, p. I-4881).
22
Trata-se, na verdade, de uma importante clarificação com um duplo
significado: 1) a interpretação e a aplicação dos direitos decalcados da
CEDH devem respeitar o sentido e o alcance que lhe são atribuídos pelo
TEDH, o que, excluindo o critério da recepção material, deve ser suficiente,
em princípio, para prevenir jurisprudências discordantes entre o TJCE e o
TEDH; 2) a interpretação da Carta em conformidade com a CEDH na parte
relativa aos direitos comuns fundamenta, em nossa opinião, a competência
do TEDH para controlar o modo como o Juiz comunitário – tal como o faz em
relação ao Juiz nacional – interpreta e aplica tais disposições.
Assinale-se, por fim, que a própria CEDH explicita a sua natureza de
padrão mínimo de protecção dos Direitos do Homem, reconhecendo aos
Estados o poder de estabelecer, de modo unilateral ou convencional,
patamares superiores de protecção dos direitos e liberdades fundamentais
(v. artigo 53º.CEDH).
4. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e o controlo do Direito da União Europeia
4.1. O acórdão de 18 de Fevereiro de 1999, proferido pelo TEDH sobre o
caso Matthews c. Reino Unido33 constitui um ponto de viragem na
jurisprudência até essa data seguida a respeito das relações entre o Direito
da União Europeia e a CEDH.
33 V. Petição n.º 24833/94, série A.
23
4.2. Os problemas resultantes das relações inevitáveis entre o sistema
comunitário e o sistema europeu de protecção dos Direitos Fundamentais34
estiveram na origem de várias petições individuais submetidas aos órgãos
de controlo instituídos pela CEDH.
Até aos finais da década de oitenta, os órgãos de Estrasburgo seguiram
uma orientação contrária a esse controlo, embora fossem diversas as razões
de ordem processual que, caso a caso, fundamentaram o veredicto da
inadmissibilidade35.
Em 1990, a decisão tomada pela Comissão Europeia dos Direitos do
Homem sobre o caso M & Co c. Alemanha36 clarificou dois pontos nodais
directamente condicionantes do modelo de coexistência entre o sistema
europeu e o sistema comunitário de tutela dos Direitos Fundamentais: 1) os
Estados-membros mantêm intacta a sua responsabilidade pelas eventuais
violações da CEDH, mesmo que cometidas pelos órgãos comunitários. A
delegação de competências pelos Estados-membros em favor das
Comunidades Europeias não é proibida pela CEDH, mas, em caso algum,
pode diminuir ou excluir a responsabilidade originária dos Estados-membros
como Partes Contratantes da CEDH; 2) as vias de recurso previstas nos
Tratados comunitários de acesso ao Tribunal de Justiça (e ao Tribunal de
Primeira Instância) são consideradas recursos internos, na acepção do
artigo 35º, n.º 1, da CEDH. Esta qualificação importa duas relevantes
consequências: em primeiro lugar, entende-se como subsidiária a actuação
34 Podemos ver esta relação entre o Conselho da Europa e as Comunidades Europeias, como sugestivamente é proposto por P. LEUPRECHT (v. “La coopération européenne dans le domaine des droits de l’homme”, in AA.VV., L’Europe dans les relations internationales, Paris, Pedone, 1982, p. 166), pelo prisma dos círculos concêntricos: todos os Estados-membros das Comunidades Europeias são Partes Contratantes da CEDH, de onde resulta uma sobreposição parcial do âmbito de aplicação quanto ao critério territorial e pessoal; por outro lado, um e outro sistema partilham os mesmos valores do ideário político e têm como objectivo subordinante da sua actuação a protecção dos Direitos Fundamentais. 35 Sobre esta fase, v. Ángel G. Chueca SANCHO, Los derechos fundamentales, cit., p. 243 e segs. 36 Decisão de 9 de Fevereiro de 1990, petição n.º 13 258/87, série B, vol. 64.
24
do TEDH em relação aos tribunais comunitários, pelo que os particulares
devem previa e necessariamente a estes recorrer; em segundo lugar, no
caso de um tal recurso não ser viável, o TEDH poderia, em princípio,
conhecer o recurso relativo a uma violação de direitos resultante de acto
comunitário.
Por seu lado, o Juiz de Estrasburgo, sem enjeitar a sua competência de
controlo sobre o Direito Comunitário, evidenciava a preocupação de não se
imiscuir nos critérios de interpretação e de aplicação das normas
comunitárias, confiando que o Juiz do Luxemburgo asseguraria uma
protecção equivalente37.
4.3. A pronúncia do Juiz de Estrasburgo sobre o caso Matthews assume a
ruptura com esta orientação. Vejamos, em breves linhas, o que estava em
causa38.
A uma cidadã residente em Gibraltar foi recusada a inscrição nos
cadernos eleitorais para as eleições europeias de Junho de 1994 com base
na Decisão de 1976 relativa às eleições directas para o Parlamento Europeu
que prevê expressamente a sua não aplicação ao território de Gibraltar. A
37 V., entre outras, sentenças do TEDH de 26 de Fevereiro de 1996, caso Pafitis e outros c. Grécia, série A, n.º 782; de 15 de Novembro de 1996, caso Cantoni c. França, série A, n.º 637. 38 Sobre o caso Matthews, v., entre vários, Susana Sanz CABALLERO, “El control de los actos comunitarios por el TEDH”, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, 2001, n.º 10, p. 498 e segs.; Olivier DE SCHUTTER, e outro, «La Cour Européenne des Droits de l ‘Homme et le Droit Comunautaire: Gibraltar, l’Union Européenne et la Convention Européenne des Droits de l’Homme », in Cahiers de Droit Européen, 2000, n.ºs 1-2, p. 141 e segs. ; F. KAUFF-GAZIN, “L’arrêt Matthews: vers une évolution des rapports entre la Cour européenne des droits de l’Homme et l’ordre juridique communautaire ?”, in ERA-Forum, 2000, n.º 1, p. 17 e segs.; A. POTTEAU, « L’article 3 du premier Protocole additionnel à la Conventio européenne de reconnaître le droit de participer aux élections au Parlement européen », in Revue Trimestrielle de Droit Européen, 1999, p. 873 ; J. RIDEAU, Les rapports entre les protections commmunautaires et internationales des droits fondamentaux, Sem. Colegio Libre de Emeritas, Madrid, 2001, p. 19; L. Sánchez RODRÍGUEZ, “Sobre el Derecho Internacional, de los Derechos Humanos y Comunitario Europeo”, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, 1999, p. 95 e segs.; J. L. Cruz VILAÇA, “A protecção dos Direitos Fundamentais na ordem jurídica comunitária », in Estudos em homenagem ao Prof. Rogério Soares, p. 426 e segs.
25
Sra. Matthews levou ao TEDH a sua queixa, considerando-se vítima de uma
violação do artigo 3º do Protocolo n.º 1 que obriga as Partes Contratantes a
“organizar, com intervalos razoáveis, eleições livres, por escrutínio secreto,
em condições que assegurem a livre expressão da opinião do povo na
eleição do órgão legislativo”.
Este pedido colocou ao TEDH uma dupla dificuldade: o estatuto sui
generis de colónia autónoma de Gibraltar nas suas relações com o Reino
Unido e, por outro lado, a autonomia da ordem jurídica comunitária e das
decisões que os Estados-membros adoptam no seu âmbito. Desta feita, o
TEDH revelou a determinação própria de um tribunal que é, na lógica do
sistema europeu, o garante último dos Direitos Fundamentais. O Reino
Unido foi considerado responsável pela violação do artigo 3º do Protocolo
n.º 1, a qual resultou, por um lado, da citada Decisão de 1976 que excluiu
Gibraltar da participação nos actos eleitorais europeus e, por outro lado, do
Tratado da União Europeia que, alargando as competências comunitárias,
não previu a inaplicabilidade dos respectivos actos comunitários ao território
gibraltino. Para chegar a esta conclusão, o TEDH não hesitou quanto à
necessidade de analisar o sistema institucional comunitário, concretamente
o papel e o estatuto do Parlamento Europeu na perspectiva da sua
qualificação a título de “órgão legislativo” (v. artigo 3º do Protocolo n.º 1).
Na extensa argumentação que sustenta a decisão de condenação do
Reino Unido ressalta, tanto pela sua expressão como pressuposto teórico
quanto pela sua relevância prática, a afirmação do princípio da
responsabilidade colectiva e solidária dos Estados-membros: “O Reino
Unido, conjuntamente com as outras Partes no Tratado de Maastricht, é
responsável rationae materiae à luz do artigo 2º da Convenção e, em
particular, do artigo 3º do Protocolo n.º 1 pelas consequências daquele
Tratado”. É esta responsabilidade internacional dos Estados-membros da
União Europeia que torna juridicamente admissível as petições individuais
que alegam uma violação da CEDH com fundamento em acto do Direito
26
Comunitário originário, como eram, no caso vertente, a Decisão de 1976 e o
Tratado de Maastricht. O TEDH é muito claro neste ponto: “(...) os actos da
Comunidade Europeia não podem ser atacados enquanto tais perante o
Tribunal, dado que a Comunidade enquanto tal não é Parte Contratante”.
Cumpre, então, perguntar se a posição do TEDH será diferente no caso de
queixas individuais que ponham em causa a conformidade com a CEDH de
actos do Direito Comunitário derivado, como regulamentos ou directivas?
4.4. A questão assim formulada aguarda a competente resposta do Tribunal
de Estrasburgo, junto do qual se encontram pendentes dois processos
instaurados por empresas comunitárias: 1) o caso Guérin Automobiles,
submetido na sequência de um despacho do Tribunal de Justiça que
recusou reconhecer a existência de um direito genérico à informação sobre
as vias de recurso disponíveis no sistema jurisdicional comunitário; 2) o
caso DSR - Senator Lines, baseado na alegação de violação do direito ao
recurso efectivo, previsto no artigo 13º da CEDH39. A empresa demandante,
destinatária de uma decisão da Comissão que lhe aplicou uma multa,
pretende que a recusa por parte da Comissão e dos tribunais comunitários
em aceitar o efeito suspensivo do recurso de anulação que instaurou viola o
seu direito de recurso, na medida em que o pagamento imediato da multa
terá a consequência certa de a levar à falência.
Com estes processos, surge com notável clareza a dimensão e a
natureza dos problemas relacionados com a existência de duas instâncias
judiciais europeias materialmente competentes para garantir o respeito dos
Direitos Fundamentais. Saber se o TEDH pode ou não controlar actos do
Direito Comunitário derivado, saber se pode ou não “rever” a jurisprudência
39 A audiência pública para julgamento deste processo está marcada para o dia 22 de Outubro de 2003.
27
definida sobre a matéria pelos tribunais comunitários, depende da resposta a
duas questões prévias:
a) Podem os Estados-membros ser responsabilizados pelos actos de
Direito Comunitário derivado? Existirão limites a esta
responsabilização?
b) Deverá o Tribunal de Estrasburgo auto-limitar a sua competência e
confiar que o Juiz comunitário aplica a CEDH e lhe assegura um nível
equivalente de protecção?
4.5. a) Os Tratados institutivos da União Europeia e das Comunidades
Europeias, bem como outros actos que integram a noção de Direito
Comunitário originário (v.g. as sucessivas decisões relativas aos recursos
próprios), são actos de Direito Internacional Público que exprimem, por via
da ratificação unânime, a vontade soberana de todos os Estados-membros,
envolvendo, por conseguinte, a sua co-responsabilidade pelos efeitos que
resultam da aplicação dessas normas.
No que tange o Direito Comunitário derivado, correspondente ao conjunto
de actos unilaterais adoptados pelos órgãos comunitários, o raciocínio não
pode ter contornos tão lineares. O Tratado da Comunidade Europeia prevê a
maioria como regra de deliberação no seio do Conselho (v. artigo 205º.CE).
Mesmo nos domínios da cooperação intergovernamental, conhecidos por II e
III Pilares, o Tratado da União Europeia dispensa em certos casos a
tradicional exigência da unanimidade (v. artigos 24º, n.º 3 e 34º, n.ºs 3
e 4.UE). Mais: boa parte dos actos que produzem efeitos jurídicos com
incidência directa e imediata na esfera jurídica dos particulares (pessoas
físicas ou colectivas) são adoptados pela Comissão que é, recorde-se, uma
instituição comunitária que não representa os Estados-membros. Nestas
28
circunstâncias, será exigível a um Estado-membro que se responsabilize
pela lesão de Direitos Fundamentais causada por um regulamento ou
por uma directiva aprovados por maioria e a cuja aprovação esse
Estado-membro se opôs, através de um voto contra ou, pelo menos, com a
abstenção? Será exigível ao conjunto dos Estados-membros que assumam
a responsabilidade pela violação da CEDH que resulta de uma directiva, de
um regulamento ou de uma decisão aprovados pela Comissão?
Brevitatis causa, a nossa resposta é afirmativa. O Direito Comunitário
derivado, ainda que relativo a actos que não exprimem de modo directo e
necessário a vontade de todos os Estados-membros, corresponde sempre
ao exercício de uma competência que tem como fundamento os Tratados
institutivos (v. artigo 5º, parágrafo primeiro, CE). Na sua qualidade de
entidades criadoras, os Estados-membros não podem negar ou inibir a sua
responsabilidade pelos actos e omissões da “criatura”40. Na verdade,
importa frisar, está sempre ao alcance dos Estados-membros alterar os
próprios Tratados institutivos, modificar e aperfeiçoar as regras que
submetem a actuação da “criatura”, maxime no que respeita ao âmbito e
modo de protecção dos Direitos Fundamentais. A este propósito, o Tribunal
de Justiça recordou por duas vezes aos Estados-membros que
determinadas adaptações do sistema comunitário de tutela judicial dos
Direitos Fundamentais não podem ser realizadas pela via pretoriana,
requerem a revisão expressa dos Tratados. No Parecer 2/94, referindo-se à
proposta de adesão formal das Comunidades Europeias à CEDH, o Juiz
comunitário concluiu:
“Uma tal alteração do regime de protecção dos Direitos do Homem
na Comunidade, cujas implicações institucionais seriam igualmente
40 Sobre os fundamentos contratualistas do Direito da União Europeia, v. apresentação e defesa que deles fazemos in A teoria dos poderes implícitos e a delimitação de competências entre a União Europeia e os Estados-membros, Lisboa, Lex, 1997, p. 357 e segs.
29
fundamentais tanto para a Comunidade como para os
Estados-membros relevância constitucional (...) Só poderia ser
realizada pela via de uma modificação do Tratado”41.
Em decisão mais recente, proferida sobre o caso Unión de Pequeños
Agricultores, pronunciando-se sobre a questão controvertida da legitimidade
activa dos particulares no contencioso de anulação dos actos comunitários,
o Tribunal de Justiça dirigiu aos Estados-membros uma mensagem de
sentido inequívoco:
“Embora seja obviamente possível contemplar a possibilidade de um
sistema de fiscalização da legalidade dos actos comunitários de
alcance geral diferente daquele que foi instituído pelo Tratado
originário e nunca alterado nos seus princípios, compete, se for caso
disso, aos Estados-membros, nos termos do artigo 48º.UE, reformar o
sistema actualmente em vigor”42.
4.6. (cont.) Acreditamos que a adesão formal das Comunidades Europeias
(ou da União Europeia se dotada de personalidade jurídica) seria a solução
mais adequada. O Projecto de Constituição para a Europa, tão voluntarista e
maximalista no seu desígnio federalizador, mostra-se ainda reticente sobre
este ponto. O artigo 7º, n.º 2, estabelece apenas que a União “procurará
aderir” à CEDH e não que vai ou deve aderir.
Se e enquanto não se verificar esta adesão formal, subsistem
problemas complexos, dos quais enunciamos apenas dois: 1) Poderá um
Estado-membro ser demandado conjuntamente com os restantes
41 V. Parecer 2/94, de 28 de Março de 1996, Col. 1996, p. I-1759, consid. 35. 42 V. supra nota 5, consid. 45.
30
Estados-membros perante o TEDH em relação a um acto do Conselho ou da
Comissão cuja legalidade esse Estado-membro impugnou através do
competente recurso de anulação instaurado junto do Tribunal de Justiça?
Por nós, defendemos que a iniciativa contenciosa deste Estado-membro
deve ser considerada causa suficiente de exclusão da responsabilidade
e, assim, a queixa não o deverá abranger; 2) se todos ou alguns
Estados-membros forem condenados pelo TEDH, urge determinar os meios
de execução da sentença. Na parte relativa ao pagamento da reparação
razoável (v. artigo 41º da CEDH), cada Estado-membro assumirá
solidariamente o seu dever de indemnizar. Se a condenação implicar uma
alteração do Direito da União Europeia43, os Estados-membros devem
promover a adaptação adequada, se necessário através do processo de
revisão dos Tratados. O problema pode revelar-se mais complicado se
respeitar à revogação de regulamentação aprovada pela Comissão. Neste
caso, a solução poderia passar pela instauração de um recurso por omissão
contra a Comissão (v. artigo 232º.CE), acusando-a no tribunal comunitário
de não cumprir a obrigação de revogação da regulamentação julgada
contrária à CEDH. Uma vez que as Comunidades Europeias não são parte
da CEDH, poder-se-ia, contudo, opor que as sentenças do TEDH não
vinculam directamente a Comissão e não são, por isso, fonte de obrigações
para esta instituição comunitária.
4.7. b) O problema de saber se o TEDH pode ou não exercer a sua
competência de garantia da CEDH em relação ao Direito Comunitário
convoca, na verdade, argumentos filiados em indagações diferentes: por um
lado, a questão jurídico-processual de saber se e em que medida podem os
43 Sobre os efeitos das sentenças do TEDH, v. Maria Luísa DUARTE, “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem – uma nova etapa (Protocolo n.º 11)”, in João Mota de Campos (coord.), Organizações Internacionais, Lisboa, 1999, p. 625 e segs.
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Estados-membros ser responsabilizados; por outro lado, a questão da
necessidade ou oportunidade de um controlo levado a cabo pelo TEDH.
Uma resposta afirmativa à primeira questão não implica, de modo lógico e
automático, a aceitação da necessidade da fiscalização exercida pelo
Tribunal de Estrasburgo.
Em escritos anteriores, a análise do sistema comunitário de protecção
dos Direitos Fundamentais erguido e mantido segundo critérios pretorianos
levou-nos a concluir no sentido da auto-suficiência deste sistema44. No
estudo que dedicámos à Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia45, posterior ao caso Matthews, admitimos o fundamento jurídico do
controlo e as vantagens da adesão formal das Comunidades Europeias à
CEDH. No estádio actual de evolução do Direito da União Europeia, e na
perspectiva da sua evolução futura, acreditamos que existem razões sérias
para, não apenas admitir, mas defender a necessidade de um controlo a
posteriori por parte do TEDH no quadro de um triângulo judicial activo sobre Direitos Fundamentais no espaço europeu. De modo sumário,
alinhamos aquelas que nos parecem ser as razões principais que sustentam
este entendimento:
- o princípio do juiz natural, manifestação típica no plano da tutela judiciária
do primado do Direito, que faz do TEDH o tribunal competente para julgar
as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção
submetidas por iniciativa de qualquer Parte Contratante (v. artigo 33º) ou
por iniciativa dos particulares, uma vez esgotadas as vias de recurso
internas (v. artigos 34º e 35º):
44 V. Maria Luísa DUARTE, A liberdade de circulação de pessoas e a ordem pública no Direito Comunitário, Coimbra, 1992, p. 266 e segs. 45 V. Maria Luísa DUARTE, “A Carta dos Direitos...” (2002), cit., p. 754.
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- a deficiente ou insuficiente garantia comunitária do direito à tutela judicial
efectiva, em virtude da dificuldade ou mesmo impossibilidade de um
particular impugnar a legalidade de um acto comunitário de natureza
normativa ainda que o fundamento se prenda com a alegada violação de
Direitos Fundamentais (v. supra n.º 1.1.);
- por razões históricas conhecidas, na última década do século passado
iniciou-se um processo político de aproximação acelerada entre a
“Pequena Europa”, do grupo restrito dos Estados-membros das
Comunidades Europeias, e a “Grande Europa”, que alberga quase todos
os Estados europeus. O elo mais forte e consequente do ponto de vista
jurídico que liga a Pequena à Grande Europa é, justamente, a vinculação
à CEDH e a sujeição ao respectivo sistema jurisdicional de garantia,
revigorado com a reforma de 1998 introduzida pelo Protocolo n.º 11. A
CEDH é o instrumento normativo que exprime de forma mais rigorosa e
exigente uma vontade política fundamental de convergência europeia no domínio dos Direitos Fundamentais, com uma dupla incidência: no
plano substantivo, a aceitação de um núcleo básico de direitos e
liberdades; no plano judiciário e processual, o reconhecimento da
competência natural do Tribunal de Estrasburgo, garantia efectiva de um
duplo grau de jurisdição.
4.8. (cont.) O critério da protecção equivalente, formulado pela Comissão
Europeia dos Direitos do Homem no caso M & Co46, tem sido, quanto a nós,
extrapolado e invocado com um alcance que não atende aos dados mais
recentes da evolução do sistema comunitário e do sistema europeu:
46 V. supra nota 36.
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- a decisão da Comissão é de 1990; depois disso, o sistema europeu foi
profundamente reformado, no sentido de uma genuína jurisdicionalização
do mecanismo da petição individual, com a possibilidade de recurso
directo para o TEDH, dotado de características de instância judicial
permanente e de jurisdição obrigatória. Desde Novembro de 1998, a
protecção dos Direitos Fundamentais assegurada através do TEDH
atinge níveis substancialmente superiores de garantia de uma tutela
judicial efectiva. Ao invés, o sistema comunitário não conheceu quanto a
este aspecto qualquer evolução substancial, tendo mesmo o Tribunal de
Justiça reiterado o sentido da sua jurisprudência que veda aos
particulares a impugnação contenciosa dos actos comunitários
normativos47. O mesmo se pode dizer em relação à orientação
jurisprudencial notoriamente restritiva sobre os fundamentos da
responsabilidade extracontratual das Comunidades Europeias;
- no caso M & Co, a Comissão admitiu que a atribuição de competências
pelos Estados-membros a uma organização internacional não é
incompatível com a CEDH desde que os Direitos Fundamentais recebam
no ordenamento dessa organização uma protecção equivalente. Esta
afirmação não legitima uma conclusão automática sobre a incompetência
do TEDH para proceder ao controlo dos actos comunitários. O critério da
protecção equivalente apenas fará sentido no quadro de uma relação
subsidiária entre o TJCE e o TEDH, sendo sempre possível a este
exercer a sua jurisdição natural se e quando entender que, no caso
concreto, não foi garantida pelo Juiz comunitário um nível equivalente de
protecção dos Direitos Fundamentais.
47 V. supra nota 5.
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4.9. (cont.) Não é desconhecida no Direito Comunitário a invocação do
critério da protecção equivalente para resolver conflitos positivos de
competência entre tribunais pertencentes a ordens jurídicas distintas. Com
efeito, foi a este critério que o Tribunal Constitucional alemão recorreu, em
momentos diferentes e subordinado a condições de exigência variável, para
estabelecer os pressupostos da sua relação com o Tribunal de Justiça no
domínio da tutela dos Direitos Fundamentais. No acórdão de 29 de Maio de
1974 (“Solange I”), o Tribunal de Karlsruhe declarou-se competente para
julgar inaplicáveis na Alemanha os actos comunitários contrários aos direitos
tutelados pela Lei Fundamental de Bona enquanto o sistema europeu não
garantisse um nível equivalente de protecção. Doze anos mais tarde, em
Outubro de 1986 (Solange II) , o Tribunal Constitucional inverteu o
raciocínio: com base numa avaliação positiva da jurisprudência comunitária
entretanto desenvolvida, e enquanto o Tribunal de Justiça assegurar uma
protecção efectiva e equivalente ao exigido pela Constituição alemã,
comprometeu-se a não fiscalizar a compatibilidade constitucional dos actos
comunitários48.
O acórdão de 12 de Outubro de 1993, proferido sobre o Tratado de
Maastricht, não põe em causa o voto de confiança no Tribunal de Justiça e
no exercício da respectiva jurisdição para garantir de um modo geral uma
protecção equivalente, mas reafirma e explicita o princípio de competência
de fiscalização do Tribunal Constitucional alemão sobre os actos
comunitários “ultra vires”. Foi, assim, aberta a porta ao exercício, em casos
concretos, da fiscalização constitucional dos actos comunitários49. O
Tribunal Administrativo de Francoforte colocou ao Tribunal Constitucional
uma questão a título prejudicial, sobre a aplicabilidade na Alemanha de um
48 Sobre o significado desta jurisprudência na perspectiva das relações entre o Juiz comunitário e o Juiz constitucional, v., em especial, Nuno PIÇARRA, O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como juiz legal e o processo do artigo 177º do Tratado CEE, Lisboa, 1991, p. 43 e segs. 49 V. Maria Luísa DUARTE, A teoria dos poderes implícitos..., cit., p. 397 e segs.
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regulamento comunitário regulador do comércio das bananas que,
supostamente, violaria direitos fundamentais de fonte constitucional. O Juiz
constitucional alemão recusou exercer o controlo no caso concreto e, em
bom rigor, regressou à posição de princípio vertida no caso Solange II50. O
Tribunal de Justiça deve exercer a sua competência de princípio para
efectivar a protecção dos Direitos Fundamentais, de modo que uma
intervenção do Tribunal Constitucional alemão terá sempre um carácter
excepcional, limitada a situações extremamente graves de violação
sistemática do padrão de protecção exigido ou pressuposto pela Lei
Fundamental de Bona.
Dir-se-ia, então, que este entendimento sobre as relações entre o
Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional alemão poderia servir para
enquadrar as relações entre o TJCE e o TEDH, levando este a auto-limitar a
competência que lhe é reconhecida pela CEDH nos casos de controlo dos
actos comunitários. Não nos parece legítimo este paralelismo. Importa ter
presente um aspecto decisivo: o Tribunal Constitucional alemão auto-limita a
sua competência de controlo com base no pressuposto da protecção
equivalente realizada pelo Tribunal de Justiça, mas também – e porventura
como razão determinante – para dar resposta a uma exigência
fundamental de primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito dos
Estados-membros, mesmo de estalão constitucional. De modo diferente se
estruturam as relações entre o Direito da União Europeia e a CEDH. Se o
critério for o do primado, é o Direito Europeu dos Direitos do Homem que
prevalece sobre o Direito da União Europeia, pelo que não faz sentido
esperar do TEDH uma declaração de confiança na orientação
jurisprudencial do Tribunal de Justiça em matéria de Direitos
50 V. Acórdão de 7 de Junho de 2000, BVerfG EuR 2000, p. 719. Sobre este aresto, v. C. GREWE, « Le traité de paix avec la Cour du Luxembourg: l’arrêt de la Cour Constitutionnelle allemande du 7 juin 2000 relatif au règlement du marché de la banane », in Revue Trimestrielle de Droit Européen, 2001, n.º 1, p. 1 ; I. PERNICE. « Les bananes et les droits fondamentaux : la Cour Constitutionnelle allemande fait le point », in Cahiers de Droit Européen, 2001, n.ºs 3-4, p. 427.
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Fundamentais, a qual constituiria, em última análise, uma auto-limitação de
competência contrária ao seu reconhecido estatuto de “juiz natural” para, na
derradeira instância, apurar a responsabilidade internacional dos poderes
públicos nacionais, incluindo na sua extensão comunitária, pelas eventuais
violações da CEDH.
5. Conclusão
No conhecido e glosado acórdão de 23 de Abril de 198651, o Tribunal de
Justiça definiu as Comunidades Europeias segundo o paradigma
fundamental da subordinação ao Direito e pelo Direito, concluindo que
devem funcionar como uma “Comunidade de Direito”. Com esta expressão,
cujo valor simbólico importa salientar, pretende-se adequar a actividade
jurídica da União Europeia e das Comunidades Europeias a uma dupla
exigência que, tradicionalmente, tem caracterizado o Estado de Direito: por
um lado, a declaração e a proclamação de direitos por forma adequada,
compatível com a função paramétrica que lhe está destinada na hierarquia
das normas; por outro lado, a existência de um sistema completo e eficaz de
vias processuais que garantam ao titular dos direitos o recurso aos tribunais,
necessariamente investidos com o poder de fiscalizar e controlar os actos de
autoridade dos poderes públicos.
Não se pode desvalorizar o significado dos passos que foram dados pela
União Europeia na direcção proposta de uma “União de Direito”. Neste
percurso, o Juiz comunitário desempenhou um papel determinante, tanto no
que respeita à evidenciação dos direitos fundamentais tuteláveis como no
51 V. Proc. 249/83, caso Os Verdes, Col. 1986, p. 1339.
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que se refere à sua garantia judicial na ordem jurídica comunitária. A
influência positiva exercida no passado não pode, contudo, legitimar a
perpetuação de um modelo baseado no monopólio da jurisdição comunitária.
A envolvente política e jurídica que propiciou a afirmação do “activismo
judicial” em matéria de Direitos Fundamentais conheceu uma profunda
mutação: ao silêncio dos Estados-membros sucedeu um desígnio político
assumido de declaração dos direitos, cuja concretização mais expressiva foi
a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. O projecto de
Constituição para a Europa integra a Carta no texto da futura lei fundamental
da União Europeia e antecipa como desejável a adesão formal à CEDH. Nas
suas múltiplas áreas de incidência, o Direito da União Europeia define regras
que interferem de modo directo com o exercício pelos cidadãos de direitos
civis e políticos. O alargamento das competências da União Europeia,
nomeadamente no âmbito da cooperação judiciária e policial e da regulação
da livre circulação de pessoas, acentuou a absoluta necessidade de
completar e aperfeiçoar o sistema judicial de fiscalização do Direito da União
Europeia. À medida que a União Europeia se aproxima, do ponto de vista da
latitude dos respectivos poderes e do conteúdo das regras que estabelece,
do modelo Estado torna-se imperativa a sua sujeição a um verdadeiro
controlo internacional, em tudo semelhante àquele que é exercido sobre os
Estados-membros.
Em síntese, o Direito Europeu dos Direitos do Homem não pode deixar
de se “encontrar” com o Direito da União Europeia segundo as regras
substantivas e processuais instituídas pela CEDH, a qual fundamenta e
renova a legítima aspiração de uma “Europa de Direito” – que partilha os
mesmos valores e converge sobre a necessidade de uma trincheira comum
de defesa da “Europa dos direitos”.