Departamento de Direito
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O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO
PENSAMENTO POLÍTICO-JURÍDICO MODERNO
Aluna: Gabriella Corbella Neves Fortes
Orientadora: Ana Luiza Saramago Stern
1. Introdução
O Direito de Resistência é um fenômeno histórico que acompanha o desenvolvimento
das sociedades políticas, e se apresenta de maneira difusa de acordo com as situações políticas
concretas e as experiências vivenciadas por diversos autores ao longo dos séculos.
Para entender esse fenômeno da resistência é necessário compreender que o dever
fundamental de cada indivíduo, inserido em um ordenamento jurídico, é o de obedecer às leis.
Conforme Norberto Bobbio, “Este dever é chamado de obrigação política. A observância da
obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos (...) é, ao mesmo tempo, a
condição e a prova da legitimidade do ordenamento”1.
Essa obediência às leis por parte da sociedade comprova a legitimidade do
ordenamento jurídico e de seus governantes, e permite a convivência harmoniosa entre os
indivíduos, pois estes passam a não mais temer uns aos outros e nem o próprio Estado. O
consentimento popular é o responsável por conferir legitimidade a esse governo, uma vez que
admite que o poder e as leis estão de acordo com a vontade do povo.
Esse poder legítimo representa um governo autorizado pela vontade do povo, no qual
o direito posto é concebido como justo e de acordo com o interesse público, o que estimula o
dever de obediência às normas. Dessa maneira, o Direito atua como regulador de condutas e
estabelece limites para a atuação do Estado, o seu cumprimento assegura a ordem social,
sendo capaz de regular a relação entre indivíduo e Estado, e as relações entre os próprios
indivíduos.
No entanto, segundo os teóricos do direito de resistência, quando há no governo um
rompimento com a legitimidade, quando o poder público passa a não mais atender aos anseios
da sociedade, governando através de atos arbitrários, e o Judiciário não atende às suas
funções, torna-se legítimo descumprir com a obrigação política.
A desobediência civil, forma de exercício do direito de resistência, é um caminho para
implementar o exercício da cidadania e reivindicar a garantia de direitos frente à insatisfação
quanto as atitudes do poder público. Para os indivíduos que exercem a desobediência civil só
existe a obrigação política quando as leis promulgadas são justas e constitucionais. O objetivo
do descumprimento às leis injustas é evidenciar o descontentamento da sociedade com as
decisões tomadas pelo governo, e dessa forma identificar as modificações necessárias para o
aperfeiçoamento do Estado.
2. Objetivos
O presente trabalho visa analisar as transformações ocorridas no Direito de Resistência
e o surgimento da desobediência civil, desde a experiência individual como a proposta por
1 BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p.335.
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Henry David Thoreau até as grandes manifestações coletivas como as de Gandhi e Martin
Luther King Jr. Neste diapasão visa ainda avaliar a legitimidade da desobediência civil e a
maneira como os ordenamentos jurídicos tem lidado com esse fenômeno.
3. Metodologia
A pesquisa inicialmente se deu com a análise das obras referentes ao Direito de
Resistência, com o intuito de compreender as bases teóricas que fundamentaram o
desenvolvimento da desobediência civil. Posteriormente, foi aprofundada a leitura em textos
específicos de desobediência civil, de diversos autores, em busca das características comuns
às manifestações coletivas defendidas por Gandhi e Martin Luther King. E por fim,
acrescentou-se as análises de Hannah Arendt e Herbert Marcuse apresentando uma visão
crítica mais contemporânea com relação ao tema.
4. A Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie
As teorias acerca do direito de resistência como afirma Nelson Nery Costa, receberam
a influência de vários autores como Étienne de La Boétie, mas somente alcançaram sua
maturação teórica com os contratualistas, por meio da figura do pacto social que representa o
consentimento popular.2
A compreensão do fenômeno da resistência ocorre juntamente com as diversas
interpretação acerca do direito fundamental à liberdade, quanto ao seu significado e a
possibilidade de sua concretização, que sofre inúmeras modificações de acordo com as formas
de governo apresentadas ao longo dos séculos.
Antes do argumento contratualista, ainda no século XVI, a análise da sociedade
realizada por Étienne de La Boétie a respeito da servidão voluntária, na qual o tirano não
consegue exercer a opressão sem a tolerância dos oprimidos, é de fundamental importância
para examinar o porquê dos homens obedecerem à autoridade, mesmo que em detrimento de
sua própria liberdade, sendo a monarquia absolutista o resultado desta submissão passiva.
A obra de La Boétie evidencia o papel da liberdade como essencial para existência do
homem, e busca compreender como esta é abdicada por seus titulares, os indivíduos, em prol
do tirano, o detentor da autoridade: “É a liberdade, todavia, um bem tão grande e tão aprazível
que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois
dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão”.3
Ao observar o comportamento da sociedade com uma obstinada vontade de servir, La
Boétie questiona como é possível tantos homens e até mesmo nações inteiras se subordinarem
ao julgo de um tirano, que possui apenas o poder que os súditos lhe conferem, e que não seria
capaz de prejudicá-los, senão enquanto os mesmos apoiarem a tirania. Indaga-se La Boétie:
“infeliz ver um número de pessoas não obedecer mas servir, não serem governadas mas
tiranizadas, não tendo nem (...) a própria vida que lhes pertença; aturando os roubos, os
deboches, as crueldades, não de um exército, (...) mas de um só”.4
A tirania se instituía inicialmente pela força, mas o que espanta La Boétie é o que
ocorre quando os súditos vêm-se vencidos e se sujeitam, o que faz a liberdade cair em
esquecimento e a servidão voluntária se instaurar. Questiona: “Que mau encontro foi esse que
2 COSTA, Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p.3 3 BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo: Brasiliense, 1999. p.15.
4 Ibid, p.13.
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pôde desnaturar tanto o homem, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo
perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retorná-lo?”5
O autor busca verificar o esquecimento do desejo de liberdade, que se dá através da
sujeição perante o tirano, e acontece de maneira tão profunda que os súditos passam a servir
como se fosse natural esse comportamento, “dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim
ganhou sua servidão”.6 Sendo assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume,
responsável por fazer os homens, tanto os vencidos pela força quanto aqueles que já nasceram
sob o domínio do tirano, acreditarem que este comportamento era na realidade a condição
natural, acostumando-se com a sujeição e esquecendo-se da liberdade original.
Outro ponto que assegura a servidão são os estímulos que os governantes oferecem
aos súditos, com os teatros e espetáculos, que despertam a luxúria tornando as pessoas
acovardadas, anulando o ímpeto de lutar pela liberdade. O encantamento pelas distrações
impede que os súditos se deparassem com a realidade, na qual todos esses benefícios
oferecidos pelo governo não passam de frações irrisórias daquilo que lhes imputavam.7
No entanto, segundo La Boétie, a supremacia e manutenção da tirania reside no apoio
dos próprios homens, que através da ilusão de poder se beneficiar e adquirir vantagens da
corte se submetem a subjugar os outros por estarem seduzidos pela vontade de dominar.
Dessa forma, o poder é distribuído de maneira hierarquizada, o rei cercava-se de cinco
pessoas mais próximas, que teriam os seus favores concedidos, e estes por consequência
aproximavam-se de mais seiscentos abaixo deles, que assim controlavam outros seis mil;
como exemplifica o autor: “Assim o tirano subjuga os súditos uns através dos outros e é
guardado por aqueles de quem deveria se guardar, se valessem alguma coisa”.8
Ainda segundo La Boétie, o tirano se sustenta a partir da imagem que impõe perante o
público e pela incitação à discórdia entre os homens, o que impede que estes se enxerguem
como semelhantes e impossibilita as relações diretas, assim, há uma centralização do Estado,
e um distanciamento entre os súditos. O monarca enfeitiçava com a sua imagem, vestimenta, e
buscava aparentar ter todas as qualidades almejadas, portanto, despertava nos súditos os
sentimentos de medo e cobiça.9
A ideia de igualdade entre os homens seria a responsável por possibilitar a amizade, o
afeto fraternal como se refere La Boétie, o que uniria a sociedade no movimento de se impor
frente ao domínio do soberano, na renúncia a servidão: “decide não mais servir e sereis livres;
não pretende que o empurreis ou sacudais, somente não o sustentai, e o verei como um grande
colosso, de quem subtraiu-se a base, desmanchar-se com o próprio peso e rebentar-se”.10
O Discurso da Servidão Voluntária busca refletir sobre as contradições presentes no
Estado Moderno, o monopólio da força atrelado unicamente a vontade do soberano, sem
qualquer forma de limitação, o que impede a existência da vontade dos indivíduos, que
consequentemente passam a obedecer passivamente às leis do Estado perdendo
completamente a sua liberdade.
5 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit., p.14. 6 Ibid, p.15. 7 COSTA, Nelson Nery. op. cit. p.8 8 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit.p.15 9 COSTA, Nelson Nery. op. cit. p.8 10 BOÉTIE, Étienne de La, op. cit.p.16.
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Para La Boétie, os homens somente conseguiriam reestabelecer sua liberdade quando
assimilassem que a amizade é o vínculo capaz de uni-los para resistir às arbitrariedades do
tirano e assim pôr fim a servidão voluntária.
5. O Direito de Resistência na Teoria de John Locke
O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil de John Locke, concebido como uma
exaltação à revolução gloriosa, apresenta diversas críticas acerca da monarquia absolutista,
ressaltando a importância do governo estar subordinado ao consentimento popular para assim
possuir legitimidade.
John Locke por ser um autor contratualista elabora sua teoria a partir do pressuposto
do estado de natureza, momento anterior à formação do Estado, no qual o indivíduo é
proprietário de si mesmo conforme a vontade do Criador, e consequentemente livre e igual
perante os demais. Como afirma Locke: “O estado de natureza é composto por um direito
natural que favorece a todos os homens. A razão que ensina a toda humanidade, (...) não
devemos fazer mal ao próximo, atentando contra sua saúde e liberdade, ou seus bens”.11
John Locke é um grande defensor do direito de propriedade, afirma que cada indivíduo
“é proprietário de si mesmo”, e que o trabalho legitima a propriedade, pois “àquilo que tira do
estado que a natureza provê e lega, ele mescla e acrescenta algo que é seu, e, assim, torna tal
coisa propriedade sua”.12 O mesmo direito natural que garante a aquisição da propriedade,
também estabelece limites com relação ao seu uso, sendo legítimo tudo aquilo que conseguir
usar de modo a facilitar sua vida, sem desperdícios.
O estado de natureza como define o autor é: “condição natural de todos os homens;
(...) condição de perfeita liberdade que os possibilite ditar suas ações, e dispor de seus bens e
pessoas como bem entenderem, e dentro dos limites do direito natural”.13 Esse estado é
essencialmente marcado pela liberdade, sendo assim, o indivíduo pode dispor de sua
propriedade de acordo com a sua vontade. No entanto, deve obedecer o direito natural, dado
que o indivíduo, que atente contra a lei da natureza, poderá ser punido por todos os homens, já
que todos têm o poder executivo.
Há no estado de natureza um impasse, no qual não existe uma garantia que assegure
efetivamente a paz e a preservação da humanidade, pois a execução do direito natural está nas
mãos de cada homem, e segundo Locke: “em um estado de perfeita igualdade, não havendo
superioridade nem jurisdição de uma pessoa sobre a outra, o que alguém fizer em busca de
justiça também poderá ser feito por todos”14. O problema ocorre quando os indivíduos
movidos por suas paixões exageram em suas punições e passam a agir com parcialidade e
violência, para coibir essas inconveniências o melhor remédio é o governo civil.
Para a instituição do governo civil é necessário a formulação do pacto social entre os
indivíduos, no qual estes abrem mão do seu poder executivo individual em prol da sociedade
política, com o intuito de assegurar a tranquilidade e garantir sua propriedade. Os indivíduos
ao decidirem realizar o pacto se unem em um corpo único composto por homens livres e
racionais, que buscam solucionar os conflitos existentes no estado de natureza, os quais
11 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. 1ª.ed. São Paulo: EDIPRO, 2014. p.30.
12 Ibid, p.44. 13 Ibid, p.29 14 Ibid, p.31.
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tornam o exercício de seus direitos inconstantes e sujeitos a violação dos demais homens. Para
Locke: “sempre que houver um grupo de homens unidos em uma única sociedade, sendo que
cada um renuncie seu poder executivo em favor do direito natural, e o submeta ao público,
(...) haverá uma única sociedade civil ou política”.15
O homem nasce com direito à liberdade, à propriedade e à vida, e com o poder inato
de preservar esses direitos em face de quem atentar contra eles. Com a formação da sociedade
civil os homens renunciam a esse poder executivo resultante do direito natural, deixando-o
nas mãos da sociedade. A principal função da elaboração do pacto é a busca pela preservação
desses direitos fundamentais. Dessa maneira, o que garante a legitimidade do governo para
Locke, é o pacto social elaborado a partir da manifestação de consentimento dos homens
livres: “Quando um grupo de homens, com o consentimento de seus indivíduos, forma uma
comunidade, está formando também um corpo único, com poder de representar a vontade e
determinação da maioria; pois uma comunidade age somente com o consentimento da maioria
de seus indivíduos”.16
A sociedade civil tem como principal objetivo a preservação dos bens de todos os
membros da comunidade. Isso ocorre por meio do legislativo e do executivo, que devem
julgar conforme as leis, os crimes cometidos na medida em que devem ser punidos. O marco
de passagem do estado de natureza para a sociedade civil é a determinação de um magistrado
local, que deve ser investido de autoridade, devido a renúncia dos homens em executar
individualmente seu direito natural, submetendo-o ao público. Esse magistrado terá
autoridade para ajuizar ações sobre todas as controvérsias, e corrigir as ofensas, promovendo
a justiça: “Aqueles que estão unidos em uma sociedade e têm leis e justiça devidamente
estabelecidas às quais apelar, com autoridade para decidir controvérsias entre eles e punir os
transgressores, estão em plena sociedade civil”. 17
Locke realiza uma forte crítica à monarquia absolutista, ao afirmar que nessa forma de
governo não há espaço para uma sociedade civil, visto que sua função é justamente evitar a
subjetividade autoritária do soberano, na qual não há juiz imparcial, não cabe apelar a outra
autoridade que decida de forma justa e também não há garantia que assegure a proteção dos
direitos naturais. Sendo assim, Locke afirma que o absolutismo: “sem a existência de leis, e
de um juiz comum ao qual possam apelar para arbitrar contendas de direito (...), ali eles ainda
estão no estado de natureza”.18
Os cidadãos estão obrigados a obedecer o governo, na medida que este não abuse de
suas prerrogativas e não interfira nos direitos individuais. Assim, o modelo proposto por
Locke busca assegurar a estabilidade do governo que cumpre com a sua função, mas também
garantir aos indivíduos o direito de resistência contra aquele que demonstre tendências
arbitrárias. “O legislativo não é exercido de forma absoluta e arbitrária sobre as vidas e o
destino do povo, (...) sendo ele o poder conjunto de cada membro da sociedade que renunciou
em favor da pessoa ou da assembleia que legisla, ele não pode exceder o que aquelas pessoas
tinham quando no estado de natureza”.19
A obrigação política desaparece quando o governo descumpre o que foi acordado
anteriormente no pacto, dando lugar ao exercício do direito de resistência: “Sempre que os
legisladores planejam tomar e destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão por
15 LOCKE, John. op. cit. p. 79 16 Ibid, p.85 17Ibid, p. 78 18 Ibd, p.80 19 Ibid, p.108
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um poder arbitrário, eles ficam em estado de guerra com o povo, que por causa disso, fica
isento de qualquer obediência”.20
Na elaboração do pacto os indivíduos renunciaram apenas ao direito de executar a
punição, por essa razão o Estado deve proteger os direitos naturais que os homens já gozavam
desde o estado de natureza. Segundo Nelson Nery, o pacto social defendido por Locke
representa os compromissos fundamentais do Estado liberal: “garantia dos direitos
elementares de cidadania e limites e responsabilidades do governo”.21
O diferencial na teoria de Locke, como sintetiza a autora Maria Garcia é que: “O povo
é, assim, soberano, pois não abdicou de todos os direitos que lhe são inerentes em favor de
nenhuma pessoa ou assembleia. Pelo contrato social, não se despojou do poder, cujo exercício
apenas delegou”.22 Dessa maneira, o indivíduo pode retomar esse poder uma vez que o
governo descumpra o pacto, o que consequentemente gera a perda da sua legitimidade.
Portanto, sempre que o governo descumpra a sua função de assegurar os direitos
fundamentais e extrapole suas prerrogativas, perde o poder que o povo lhe concedeu, e este
retorna para a sociedade política que tem o direito de retomar sua liberdade e instituir novos
representantes para desempenhar as funções estabelecidas. Segundo Locke: “A comunidade
detém de forma contínua um poder supremo capaz de salvá-la das garras de qualquer um, até
mesmo dos seus legisladores, sempre que forem tolos ou fracos a ponto de legislar contra as
liberdades e propriedades de um indivíduo”.23
No entanto, para que a resistência seja legítima é essencial observar três requisitos;
que o poder exercido de maneira arbitrária esteja colocando os indivíduos em situações que
efetivamente causem maus-tratos; que o motivo não se baseie em apenas uma infração, mas
em uma longa sequência de infrações; e que os indivíduos não utilizem a força para resistir,
pois estariam correndo o risco de serem considerados rebeldes. Essas ressalvas impedem que
o direito de resistência culminasse em instabilidade e possíveis estados de guerra.24
O direito de resistência aparece como um instrumento político que proporciona o
aperfeiçoamento do Estado, visto que não rompe completamente com as instituições, mas
possibilita a escolha de novos representantes, mudanças no processo legiferante e também
quanto ao sufrágio. O direito de resistência seria um método excepcional de restauração da
ordem política, que deveria ser utilizado somente quando se esgotassem todos os meios
legais, e os processos institucionais fossem insatisfatórios.
O Segundo Tratado Sobre o Governo Civil de Locke é uma obra essencial para o
modelo liberal, no qual a análise acerca do consentimento do povo como o responsável por
conferir legitimidade ao governo, e possibilitar o rompimento com a monarquia absolutista, e
as arbitrariedades do soberano, o que assegurou a existência de uma nova ordem, através da
figura do parlamento e da limitação ao poder dos governantes.
20 LOCKE, John. op. cit. p.162. 21 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.10.
22 GARCIA, Maria. Desobediência civil. Direito fundamental. SP: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p.144.
23 LOCKE, John. op. cit. p. 119 24 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.14.
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6. A Desobediência Civil
O desenvolvimento das teorias a respeito da resistência proporcionou consideráveis
modificações na sociedade política, pois conferiu ao povo um instrumento adequado para
confrontar os atos arbitrários dos governantes. Por intermédio da resistência o indivíduo
começou a tomar ciência de seu papel na vida política, mediante a busca por assegurar seus
direitos fundamentais e a necessidade de fiscalizar o funcionamento do Estado, efetivando a
sua cidadania.
No entanto, o direito de resistência era compreendido somente como a expressão da
vontade da maioria, conforme apresentou Locke em seus ensaios. Caso o governo cometesse
infrações apenas contra um súdito, sem afetar os demais membros da sociedade, cabia a eles
continuar prestando obediência às instituições. Posto que, a manutenção do Estado civil ainda
era considerada mais benéfica para a maioria, por trazer segurança e estabilidade superiores à
experimentada no estado de natureza.
A determinação do direito de resistência como uma expressão necessariamente
coletiva, suscitava inúmeras dificuldades para sua implementação enquanto garantia jurídica
de cidadania. Essa limitação gerada pela obrigatoriedade da atuação coletiva, dificultava a
efetivação do movimento de resistência, tornando os homens mais propensos a optar pela
revolução radical como meio de alcançar suas reivindicações frente às instituições.
Outro aspecto que impedia a ampla realização das reivindicações era a retirada da
legitimidade das minorias, enquanto participantes das manifestações de resistência. As
minorias não podiam manifestar suas insatisfações para com o governo, e nem pleitear os seus
direitos, mesmo que estes fossem assegurados pelo pacto social, já que não eram considerados
legitimados para exercer o direito de resistência.
A institucionalização dos Estados, mediante a influência da Independência dos
Estados Unidos e das experiências revolucionárias burguesas, transformou a participação do
indivíduo na vida política, assim como a sua maneira de externalizar suas insatisfações. Essa
transformação tornou-se evidente por meio da teoria da Desobediência Civil proposta pelo
jovem autor norte-americano Henry David Thoreau.
Na desobediência civil o autor ampliou a atuação da cidadania e tornou o direito de
resistência uma ferramenta mais maleável e acessível, ao romper com a obrigatoriedade da
resistência ser uma expressão da vontade da maioria. A obra de Thoreau foi inspirada no
direito natural à vida, à propriedade e à liberdade, também defendido por Locke; e
fundamentou-se com base na busca pela liberdade presente na Declaração de Independência
dos Estados Unidos, de Thomas Jefferson.
Outros autores que realizaram colaborações essenciais para a desobediência civil no
século XX, foram Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. Gandhi incorporou o conceito
da não-violência nas grandes manifestações que realizou na luta pela independência indiana.
Martin Luther King Jr. introduziu a noção de ação direta e a necessidade de atrair a
mobilização da sociedade, sendo capaz de dar visibilidade ao movimento negro americano
com a resistência pacífica.
6.1. Henry David Thoreau e a Desobediência Individual
Thoreau inicia sua obra observando a democracia americana que, segundo ele, estaria
doente devido à atuação do governo que se distanciou do que foi almejado na época da
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independência, ao manter a escravidão e ao invadir o território mexicano com os seus
soldados. Logo, Thoreau concorda com a afirmação de Thomas Jefferson sobre o melhor
governo ser aquele que governa menos, e ainda admite: “O melhor governo é aquele que não
governa”.25 A intenção de Thoreau com essa declaração não é extinguir o governo, apenas
deseja que este funcione de forma mais rápida e sistemática.
O autor condiciona a atuação do governo ao comportamento da sociedade, sendo este
composto pela somatória das individualidades. O governo é tido como meio, através do qual o
povo executa sua vontade: “O governo em si, que é apenas o modo que o povo escolheu para
executar a sua vontade, é igualmente suscetível de ser abusado e pervertido antes que o povo
possa agir por meio dele”.26
A principal função do governo, segundo o autor, é assegurar a liberdade, conforme
estabelecido na Constituição americana. No entanto, encontra-se passível de ter sua finalidade
desviada, quando preocupa-se apenas com sua permanência no poder. Em razão dessa
manutenção do controle, o governo se sobrepõe ao real interesse da sociedade para atuar em
benefício próprio, descumprindo a sua finalidade e afastando-se de sua integridade.27
O autor entende que a maioria governa por possuir mais força, e não necessariamente
por ser correta e justa, o que torna impossível assegurar a justiça no governo que se sustenta
apenas pela vontade da maioria, “não há como um governo ser baseado na justiça quando, em
todos os casos, ele é comandado pela maioria”.28
Thoreau valoriza a individualidade e questiona o modelo proposto pela doutrina
liberal, no qual a minoria deveria se submeter a vontade da maioria, capaz de decidir em
nome de todos, para que assim a sociedade política se mantivesse coesa. Nelson Nery afirma:
“Para Thoreau, porém, o argumento liberal da necessidade de preservar a comunidade de
rupturas não significava que fosse o mais justo, pois se tratava somente de um cálculo de
interesse, não de um critério de justiça”.29
A lei está à mercê da vontade do legislador, que representa apenas a vontade da
maioria, portanto, este pode elaborar leis injustas, que não estão fundamentas na justiça.
Sendo assim, Thoreau defende que ser correto e justo está acima do respeito às leis injustas.
Se a lei é injusta, o homem justo e bem intencionado ao respeitá-la estará consequentemente
sendo injusto: “A lei nunca tornou os homens um pouco mais justos; e, por meio de seu
respeito a ela, mesmo os bem-intencionados são diariamente agentes da injustiça”.30
Se o indivíduo deixa de lado a sua consciência e obedece cegamente as leis postas pelo
governo, acaba perdendo sua humanidade e torna-se objeto a serviço dos governantes, como
pondera Thoreau: “Acredito que, antes de sermos súditos, devemos primeiramente ser
homens. Não é desejável cultivar um respeito maior pela lei do que um respeito pelo que é
correto. A única obrigação que tenho o direito de aceitar é fazer a qualquer momento o que eu
acredito ser correto”.31
Os homens que se deixam conduzir pelo governo em detrimento de sua própria
consciência, normalmente são reconhecidos como bons cidadãos. No entanto, perdem a
25 THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. 1ª. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016. 26 Ibid, p.48 27 Ibid, p.49 28 Ibid, p.50 29 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.27 30 THOREAU, Henry David. op. cit. p.50 31 Idem
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capacidade de exercer sua moral e tornam-se vulneráveis ao apoiar qualquer governo, o justo
ou o injusto, ainda que não percebam. Já os homens que servem ao Estado, mas não
abandonam sua consciência, e resistem ao governo quando necessário, recebem o título de
inimigos. Thoreau define o direito de resistência da seguinte maneira: “o direito de recusar
lealdade e de resistir ao governo quando sua tirania ou sua ineficiência são grandes e
insuportáveis”.32
Em sua obra Thoreau faz uma forte crítica às atitudes do governo americano,
demonstrando que são contraditórias com relação a sua finalidade, uma vez que, sua
Constituição defende a liberdade, e existem instrumentos legais com o intuito de legitimar a
escravidão e a guerra no México. Os grandes opositores ao fim da escravidão, são os
comerciantes e agricultores, que se beneficiam dela e estão mais interessados no lucro do que
na humanidade, o que faz da justiça algo indesejável.
O processo eleitoral é compreendido como uma espécie de jogo, com uma pequena
participação da moral, sem que o caráter dos eleitores corresse risco. Os cidadãos podiam
lançar seus votos sem se preocupar de fato com o resultado, dispostos a aceitar a decisão da
maioria. Essa atitude é criticada por Thoreau, dado que a maioria controla o governo, então,
deixar que a situação seja decidida somente através dos votos é o mesmo que não se
posicionar: “Um homem sábio não deixa o correto à mercê do acaso, nem deseja que ele
prevaleça pelo poder da maioria. Há pouca virtude na ação das massas”.33
Thoreau defende que o dever do indivíduo honesto é ao menos não oferecer seu apoio
prático para o governo tirânico e injusto. Quando o indivíduo oferece dinheiro ao governo,
por meio da figura dos impostos, estaria oferecendo o seu apoio tacitamente: “O maior e mais
permanente erro necessita da mais desinteressada virtude para que possa se sustentar”.34
A falta de atitude dos indivíduos com relação as ações do governo possibilita a
manutenção da vontade da maioria, ainda que seus efeitos sejam considerados injustos por
uma parcela da população. Para Thoreau, é somente através das ações que as mudanças
acontecem, mesmo que de maneira lenta e gradual. A democracia para funcionar plenamente
deveria ser participativa, na qual o voto somente teria significado enquanto motivado pelo
interesse público e consciência individual.
Thoreau percebe que normalmente a sociedade prefere respeitar às leis até que a
maioria seja persuadida e decida mudá-las. Isso ocorre devido ao medo de resistir e tornar a
situação pior. Mas, acredita que se for necessário descumprir uma lei para que a mudança
aconteça e a justiça seja feita, então é melhor transgredi-la. O Estado não oferece outras
alternativas para lidar com uma lei injusta, e esperar até que a maioria seja persuadida levaria
muito tempo, logo, quando a modificação na legislação fosse realizada já não importaria
mais.35
Ainda segundo o autor, o governo manipulava e iludia a sociedade, principalmente
com a imprensa, fazendo os indivíduos acreditarem que os benefícios adquiridos fossem o
suficiente para não se importarem com a opressão, situação bastante semelhante à descrita por
La Boétie tantos séculos antes ao observar a servidão voluntária. A Igreja anteriormente
ocupava esse papel agora comandado pela imprensa, na manipulação da vontade social, como
32 THOREAU, Henry David. op. cit, p.52 33 Ibid, p.55 34 Ibid, p.57 35 Ibid, p.55
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corrobora Nelson Nery: “A imprensa, para desempenhar sua função essencial de sustentar os
governos, não se importava de utilizar qualquer meio para garantir tal intento”.36
A desobediência civil decorre do direito de cidadania, e sempre deve ser empregada
quando o governo extrapole suas prerrogativas. Um grande diferencial na obra de Thoreau é a
importância que ele confere a atuação da minoria, que antes não era considerada participante
legítimo para o exercício do direito de resistência, como na teoria de Locke. Para Thoreau, a
ação de um homem honesto pode influenciar o comportamento dos demais: “Pois mesmo que
comece de forma muito pequena, o que se faz bem uma vez, está feito para sempre”.37
A maioria no entanto, não era considerada uma potencial praticante da desobediência
civil, pois nos governos liberais ela já representava o funcionamento do poder, com os votos
majoritários nas eleições dos representantes, e também por ser facilmente manipulável pelo
governo e pela imprensa.38
As mudanças no governo somente tornam-se possíveis mediante a ação: “Uma
minoria é impotente enquanto se conforma à maioria e, então, não é nem uma minoria; mas é
irresistível quando ela entope as tubulações com todo o seu peso”.39 A minoria encontra na
desobediência civil a única solução para manifestar suas reivindicações, romper com o estado
de inércia em que se encontrava ao se submeter a vontade da maioria.
Além de viabilizar a participação da minoria, Thoreau também defende a ação de um
único indivíduo, sendo o próprio autor um exemplo dessa atuação isolada, quando o mesmo
foi levado a prisão ao se recusar a pagar os impostos que segundo ele, financiavam a
manutenção da escravidão e a invasão do território mexicano. O não pagamento do imposto é
uma ação que visa demonstrar a insatisfação para com o governo.
Para Thoreau, o dinheiro desse imposto é o responsável por financiar a guerra e apoiar
a escravidão, ao não pagá-lo, recusa-se a oferecer sua lealdade ao Estado: “Eu
silenciosamente declaro guerra ao Estado do meu jeito”.40 O ato individual realizado por
Thoreau, é uma forma de resistência pacífica, que não fere a integridade moral do participante
e tem por objetivo questionar pontos específicos do governo, sem ter a intenção de romper
radicalmente com todas as instituições.
Os desobedientes, entretanto, deveriam sempre estar preparados para lidar com as
consequências de seus atos, como no caso de Thoreau que culminou em sua prisão. Contudo,
quando o governo age injustamente a prisão de forma alguma atingiria a moral desse
indivíduo, pois conforme Thoreau: “Em um governo que aprisiona qualquer um injustamente,
o verdadeiro lugar de um homem justo também é a prisão”.41 Se submeter a um governo
injusto somente por medo de sua força superior é o mesmo que lhe entregar sua consciência,
algo que para Thoreau pode ser comparado a morte.
Portanto, a desobediência civil é o caminho para democratizar o Estado liberal,
aperfeiçoando-o com modificações especificas e periódicas: “O governo não tem qualquer
direito puro sobre minha pessoa e meus bens, exceto aqueles que lhe concedo. O progresso de
36 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.28 37 THOREAU, Henry David. op. cit. p.60 38 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.28 39 THOREAU, Henry David. op. cit,, p.60 40 Ibid, p.67 41 Ibid, p.60
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uma monarquia absoluta para uma limitada, de uma monarquia limitada para uma democracia
é o progresso em direção ao verdadeiro respeito ao indivíduo”.42
A teoria de Thoreau, limita a atuação do governo ao cumprimento de sua finalidade,
contribui para a análise do poder político enquanto meio de viabilizar melhores condições de
vida para a sociedade, mas nunca como um fim em si mesmo. Dessa maneira, a democracia
representa o modo mais adequado e capaz de permitir a participação popular nas questões de
interesse público.
6.2. Mahatma Gandhi e a Não-Violência
Mahatma Gandhi, “Grande Alma”, dedicou a sua vida em função do processo de
formação do Estado indiano. Formou-se em advocacia na Inglaterra, e iniciou sua carreira na
África do sul como defensor dos interesses dos emigrantes da Índia. Logo, começou a se
dedicar às atividades políticas. Liderou o movimento contra um projeto legislativo que
limitaria os direitos civis dos indianos, no qual realizou uma petição que alcançou o número
de dez mil assinaturas para entregar ao secretário britânico das colônias. Desde então, tornou-
se uma das personalidades de maior prestígio.
Gandhi deparou-se com a “Desobediência Civil”, de Henry David Thoreau, o que
influenciou a construção de sua estratégia política em busca da efetivação dos direitos dos
indianos, e mais tarde a independência perante a metrópole. A ação desobediente de Gandhi
consistia em duas táticas: a satyâgraha, que representa a resistência pacífica exercida através
de manifestações não-violentas, que pleiteavam os direitos civis e políticos; e a asahayoh, a
não-cooperação, na qual os indivíduos boicotavam a compra de alguns produtos para impactar
os produtores capitalistas, visando a conquista dos direitos sócias.43
A princípio Gandhi procurou assegurar os direitos civis dos indianos sem romper
completamente com o Império Britânico, realizou a “Marcha do Transvaal” com mais de dois
mil manifestantes, de forma pacífica, sem armas ou violência. Mesmo Gandhi sendo preso, as
desordens que ocorreram no estado acabaram modificando a legislação que prejudicava os
imigrantes.
Gandhi envolveu-se na defesa dos trabalhadores frente os conflitos sociais, na qual
definiu os requisitos para que uma greve obtivesse sucesso: nunca recorrer à violência, não
depender da caridade pública, não desanimar mesmo a greve se estendendo por um longo
período. A filosofia de Gandhi fundamentava-se na não-violência, ahimsa, que era apontada
como o único caminho efetivo para implementação de qualquer mudança social, em um
mundo infestado de violência e abusos.44
A não-violência é a responsável por garantir a honra e a integridade dos indivíduos,
contudo, para exercer a desobediência civil é fundamental a preparação dos participantes para
que pudessem se abster de reagir, mediante a provável repressão com o emprego de força
pelos adversários. Para Gandhi, a possibilidade de desobedecer às leis, é uma ferramenta
indispensável da cidadania, visto que almeja modificar, de maneira pacífica, a legislação e as
políticas do governo.
42 THOREAU, Henry David. op. cit, p.72 43 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.34 44 Ibid, p.35
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A resistência pacífica para o autor: “é o meio mais eficaz de exprimir a angústia da
alma e o mais eloquente para protestar contra a manutenção no poder de um Estado nocivo”.45
A desobediência civil permite que os indivíduos, as minorias e inclusive as maiorias
oprimidas, como a Índia naquele momento frente ao Império Britânico, passem a participar de
forma direta do processo político.
Gandhi liderou o movimento indiano com o propósito de obter autonomia política
através de inúmeras campanhas de desobediência civil, como a famosa caminhada pelo sal,
uma marcha com mais de setenta mil pessoas até a praia. Essa marcha pretendia extinguir o
imposto do sal, que era monopólio dos britânicos. A resistência pacífica juntamente com a
prática do jejum individual, realizado por Mahatma Gandhi, foram responsáveis na
constituição do Estado nacional, finalmente livrando a Índia da dominação exercida pela
metrópole.46
A obra de Mahatma Gandhi estruturou-se na ação política, através do exercício da
desobediência civil, responsável por renovar aspectos teóricos do movimento proposto
inicialmente por Thoreau, devido à sua natureza concreta e eficaz. Suas manifestações não-
violentas, e os boicotes da não-cooperação serviram de exemplo para comprovar que a
resistência pacífica realmente possui a capacidade de proporcionar transformações estruturais
no Estado.
6.3 Martin Luther King e a Ação Coletiva
A discriminação racial, na sociedade norte-americana, ainda existia mesmo tendo se
passado quase um século da violenta Guerra Civil (1861-1865) pelo fim da escravidão; no
qual o Sul agrícola e o Norte industrializado se dilaceraram em prol da hegemonia política,
sem integrar o negro na produção e nem nos benefícios sociais.47
Essa discriminação aos negros ocorria com a negação dos direitos civis e políticos, nos
estados sulistas, e também com a marginalização econômica, a restrição à aquisição de
posses, ou então, o abandono por parte do Estado nos guetos das grandes metrópoles. Nesse
cenário de negligencia do governo, as manifestações não-violentas despontaram como a
ferramenta adequada para a comunidade negra norte-americana reivindicar os seus direitos.
Conforme afirma Nelson Nery: “A desobediência civil situava-se como a opção entre
a obediência passiva e a militância revolucionária”.48 Nesse momento a sociedade estava
dividida entre duas perspectivas, os complacentes com a situação, englobando os próprios
oprimidos e a classe média insensível aos problemas coletivos; e a outra composta pelos
grupos nacionalistas negros, que se apropriavam da violência como mecanismo capaz de
solucionar o impasse existente.
Assim como na ação desobediente defendida por Thoreau, o movimento negro
liderado por Martin Luther King Jr., resistia a determinadas leis injustas e segregacionistas,
mas continuavam a obedecer à legislação geral, visto que o objetivo da manifestação não era
romper com o governo, mas lutar pela garantia e efetivação de seus direitos.
45 GANDHI, Mahatma, Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade, Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro,
1968, p.252 apud COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.36 46 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.35 47 Ibid, p.37 48 Ibid, p.36
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A principal característica da desobediência civil em Martin Luther King Jr. é a atuação
em massa, que se mantém organizada de maneira não-violenta. Com a ação de massas, o
número de pessoas atraia a atenção dos não participantes e tornava impossível a prisão de
todos os manifestantes, como ocorreu em Birminghan. Nesse episódio, o foco do protesto era
criticar a não integração das instalações públicas, que culminou na prisão de três mil
manifestantes pelas autoridades, superlotando os presídios, enquanto outros quatro mil
continuaram marchando pacificamente.49
As táticas de resistência pacífica utilizadas por Luther King Jr. foram o boicote, como
em Montgomery, no Alabama, com os boicotes aos transportes públicos onde havia
segregação. Os negros se locomoveram a pé durante vários meses evitando os ônibus
esperando que a discriminação cessasse. O sit-in que ocorre quando os manifestantes ocupam
um local, onde se sentam e permanecem como forma de protesto. E também a marcha, em
todas essas maneiras de exercer a resistência pacífica os indivíduos mantêm-se indiferentes à
repressão violenta, e sempre se abstêm de reagir.
A não-violência para Martin Luther King Jr., era de fundamental importância, pois
sempre que os presídios ficassem lotados com os participantes, o significado do movimento
ficaria mais evidente para a sociedade. Sobre a não-violência afirmava: “é uma arma poderosa
e justa. Ela é uma arma sem igual na história porque corta sem ferir e enobrece quem a
utiliza”.50
Assim como a experiência de Gandhi, os atos de desobediência civil deveriam ser
iniciados somente após uma longa preparação: coletar as informações do local e das causas
que seriam reivindicadas; sempre tentar a solução primeiramente por meio de negociação,
disciplinar os manifestantes para aceitar a punição; e ao final a ação direta para forçar a
abertura de conversações.
A resistência pacífica colocava o Estado em contradição, caso deixassem os
manifestantes atuarem, acabavam concordando tacitamente com as reivindicações, mas se
proibissem evidenciavam a injustiça cometida pelo governo. Esse impasse ficou perceptível
em Selma, onde os manifestantes protestavam de forma organizada e pacífica ignorando a
extrema brutalidade da repressão policial, o que sacudiu a opinião pública a favor do
movimento negro.
A ação não-violenta busca gerar uma empatia na sociedade, como analisa Nelson
Nery: “A violência da polícia recebida com passividade pelos manifestantes visava
sensibilizar os setores sociais indiferentes, brancos e negros, pela cobertura nacional da
imprensa. A mensagem pressionava as autoridades públicas, que tendiam a abrir concessões
pela impossibilidade de derrotarem pela força os movimentos pacíficos”.51
A resistência pacifica triunfou quando a Suprema Corte negou validade às leis que
impedissem a garantia dos direitos civis e políticos, eliminando as discriminações. No
entanto, a luta pelos direitos sociais ainda estava em seu início, e encontraria obstáculos quase
intransponíveis. Os protestos pacíficos passaram a sofrer ataques dos meios de comunicação,
não obtendo mais os mesmos resultados iniciais, consequentemente os movimentos radicais,
que se pautavam pelo uso da força, ganharam espaço causando perturbações.
49 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p.37 50 KING, Martin Luther. “Why We Can’t Wait”, New York, The American Library, 1996, p.26 apud COSTA,
Nelson Nery. op. cit. p. 38
51 COSTA, Nelson Nery. op.cit. p. 39
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Martin Luther King Jr. pretendia com a desobediência civil realizar transformações na
legislação segregacionista, com as reivindicações procurando assegurar as liberdades
individuas, os direitos políticos e o exercício da cidadania, para depois lutar pelos direitos
sociais.
Assim como Thoreau, Luther King distingue a lei justa da injusta, as primeiras devem
ser obedecidas, contudo, a lei injusta já estaria em desacordo com o direito natural, a moral do
indivíduo, logo deve ser descumprida. A desobediência civil justifica-se ao afirmar os valores
dos indivíduos em contra ponto às distorções causadas pelos governos.
Em sua obra Martin Luther King Jr., traz novas contribuições para a desobediência
civil, como a implementação da resistência com as minorias, através da ação de massa; assim
como Gandhi, defende a não-violência e a sujeição às sanções como consequência de seus
atos, o que pode gerar uma publicidade positiva para o movimento; e fundamenta a
justificativa à resistência a um conteúdo moral.
6.4 A Tolerância Repressiva de Herbert Marcuse
Herbert Marcuse analisa a ideia de tolerância na sociedade industrial, e conclui que os
governos, em sua maioria, não conseguem concretizá-la em suas ações. Sendo assim, a
tolerância torna-se um propósito político, no qual acaba contribuindo para a conservação da
opressão. Os governos distorcem o significado da tolerância em seu benefício, e cabe aos
estudiosos buscarem referências na história da humanidade, que comprovem essa falta de
efetiva tolerância, a fim de quebrar a concretude da opressão.52
O autor defende que a tolerância é um fim em si mesmo, e compreende a eliminação
da violência, que visa proteger o homem da crueldade e da opressão, como um requisito
essencial para instituição de uma sociedade mais humanizada. Embora, não acredite ainda na
existência dessa sociedade, visto que percebe um movimento crescente nos governos em
escala global, de práticas de violência e supressão de direitos.
Essas práticas são promulgadas e defendidas tanto por governos democráticos, quanto
por autoritários, nos quais a sociedade é educada a reproduzir determinado tipo de
comportamento com o intuito de preservar o status quo. Sendo assim, a tolerância estimularia
atitudes na população, que não são almejados pelos governantes, pois dificultaria a
manutenção da opressão.53
A tolerância tem mudado seu significado no campo da política, passando a representar
uma total complacência da sociedade para com as autoridades constituídas. A ideia de
tolerância aparece permeada de diversos valores imputados pelo próprio governo, que
representa a desigualdade institucionalizada, e visa atender apenas os seus interesses.
A liberdade para Marcuse, deve ser buscada mesmo na mais livre das sociedades
existentes. A tolerância é um requisito para que se possa alcançar a liberdade de expressão e
de pensamento. No entanto, o autor diferencia a tolerância indiscriminada, aquela semelhante
ao respeito a conteúdos diversos em conversas e debates inofensivos, da tolerância que
deveria estar presente na sociedade.54
52 MARCUSE, H. Repressive Tolerace. In: WOLFF, R.P. MOORE, B. MARCUSE, H. A Critique of Pure
Tolerance. Boston: Beacon Press, 1965. p.81
53 Ibid, p.82 54 Ibid, p.87
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Para o autor, a sociedade não pode utilizar a tolerância de maneira indiscriminada,
pois há certas ideias, políticas e comportamentos que não devem ser aceitos, uma vez que
transformam a tolerância em um instrumento de manutenção da servidão.55
A liberdade de expressão, mesmo a defendida pelos autores liberais, parte do
pressuposto do indivíduo ter a capacidade de aprender e desenvolver seus próprios
pensamentos, inclusive contra a autoridade estabelecida e opiniões divergentes. Sendo assim,
a tolerância indiscriminada torna-se questionável quando não assegura esse propósito. Nesse
caso, a tolerância será utilizada para manipular e doutrinar os indivíduos a reproduzirem as
opiniões do governo como se fossem suas, consequentemente a heteronomia passa a ser
internalizada pela sociedade.56
Marcuse direciona o foco de sua análise à tolerância com relação às maiorias e às
autoridades estabelecidas, sendo possível apenas nas sociedades democráticas, nas quais o
povo participa da política. Essa análise não poderia ser realizada perante os sistemas
autoritários, devido aos indivíduos não tolerarem as práticas do governo, senão estarem
submetidos a elas.57
Nos sistemas constitucionais, nos quais a liberdade e os direitos civis são assegurados,
a oposição ao governo é tolerada, a menos que utilize a violência. Então, conclui-se que as
sociedades estabelecidas usufruem da liberdade, e qualquer aperfeiçoamento no Estado,
mesmo provocando modificações na estrutura e nos valores sociais, ocorreriam conforme o
procedimento natural, previsto na Constituição ou obtido por meio de debates com a
população.58
Marcuse faz uma ressalva ao afirmar que essas modificações provavelmente seriam na
direção dos interesses particulares, que possuíssem maior influência na atuação do governo.
Contudo, as minorias que desejassem ter seus interesses atendidos, encontrariam certa
dificuldade em prevalecer frente a esmagadora maioria, que luta contra modificações no
status quo.
Com a liberdade de expressão assegurada pela democracia, todos os pontos de vista
podem ser exprimidos e longamente defendidos em debates organizados pelos meios de
comunicação. Marcuse critica o fato de discursos equivocados serem tratados da mesma
maneira que os coerentes, e das informações mentirosas serem disseminadas como
verdadeiras pela mídia.
A defesa dessa livre difusão de ideias dá-se por intermédio do argumento democrático
utilizando a tolerância indiscriminada criticada por Marcuse. Desse modo, nenhum indivíduo
ou grupo possuiria a verdade absoluta, não sendo capaz de determinar o que é bom ou mau, e
todas as discussões deveriam ser submetidas às deliberações da população.59
Todavia, já havia afirmado Marcuse, que na democracia o povo deve ser capaz de
refletir e tomar decisões com base na autonomia, e para isso, precisa ter acesso às informações
autênticas. Através dessa reflexão, o argumento democrático que justifica essa tolerância
abstrata tende a ser invalidado, o que expõe as falhas ocorridas nessa democracia.60
55 MARCUSE, H. op. cit, p.88 56 Ibid, p.90 57 Ibid, p.92 58 Idem 59 Ibid, p.94 60 Ibid, p.95
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16
A experiência democrática possibilita a representação da pluralidade de opiniões e de
setores da sociedade, o que permite diferentes configurações de governo e manifestações
culturais pelo mundo. No entanto, a crescente concentração econômica e política nas mãos de
grupos sociais fortes, que se apropriam da tecnologia como instrumento de dominação,
colocam em risco a representatividade, que não consegue mais cumprir com sua finalidade de
garantir os interesses distintos.
Há casos em que a democracia fica sujeita a organizações autoritárias, de modo que
grupos da sociedade unem-se para utilizar o monopólio dos meios de comunicação, que está
sob o seu domínio, para manipular a mentalidade dos indivíduos. Essa manipulação dá-se
através do controle ao acesso de informações, o que constitui a opinião pública. Ao moldar o
pensamento da sociedade sem que essa perceba, conseguem estabelecer conceitos pré
determinados acerca da definição do que é certo ou errado, a partir do interesse fundamental
de conservar a opressão.61
Nessa sociedade manipulada apenas as opiniões pertencentes a esses grupos, a maioria
conservadora, seriam consideradas coerentes e válidas, enquanto qualquer discurso
minimamente de oposição não mereceria atenção. Essa manipulação é responsável por
conceder um sentido próprio aos conceitos e valores. Dessa forma, a tolerância indiscriminada
não poderia ser aplicada, pois os indivíduos não teriam a capacidade de raciocinar para além
dos valores incutidos pela dominação.
Sendo assim, a liberdade de expressão não alcança sua plenitude, já que os discursos,
mesmo os concebidos pelos opositores, seriam baseados nos valores induzidos por meio da
manipulação. Diante disso, a complacência expressada pela sociedade apenas funcionaria
como instrumento de opressão, causando a ampliação da intolerância e da repressão por parte
do governo.
Esses indivíduos manipulados não poderiam ser considerados “tábula rasa”, uma vez
que são influenciados pelas condições às quais estão submetidos, perdendo a capacidade de
raciocinar empiricamente. Portanto, são privados de sua autonomia estando vinculados aos
ideais ditados pelo governo. Para que haja a efetiva liberdade de expressão é necessária uma
ruptura desses valores estipulados previamente, que são responsáveis por constituir a opinião
pública, e consequentemente aprisionam a sociedade.62
Quando a tolerância somente auxilia a preservação de uma sociedade repressiva, por
meio da anulação dos opositores, entende-se que esta foi pervertida. No momento em que essa
tolerância corrompida entra no inconsciente do indivíduo, os interesses almejados pelos
opressores tornam-se maiores que seus próprios desejos, impedindo que este se depare com a
sua servidão.63
Ainda segundo o autor, para romper com essa opressão é essencial combater o foco do
problema, as falsas informações que são oferecidas pelos manipulados meios de comunicação.
A percepção dessa falsa consciência, que foi implantada sistematicamente nos indivíduos pelo
governo, ocorrerá de forma lenta e gradual, mas representa a chance de cessar a dominação.
O progresso rumo a liberdade deve ser iniciado no campo da consciência, libertar a
mente manipulada da alienação que transforma a população em um objeto para as ações do
governo. Essa libertação da consciência dá-se através da educação, essa instrução busca
61 MARCUSE, H. op. cit. p.97 62 Ibid, p.98 63 Ibid, p.111
Departamento de Direito
17
afastar o ensino neutro e sem valor imposto pelos opressores, o que possibilita ao indivíduo a
compreensão dos fatos verdadeiros, e da dominação na qual esta inserido.64
Marcuse acredita ser improvável a criação de um direito específico que assegure a
possibilidade de resistir nos governos constitucionais sustentados pela maioria da sociedade.
No entanto, considera a existência de um direito natural de resistência, que possa ser usado de
forma extralegal pelas minorias oprimidas, quando todos os demais meios legais tornaram-se
ineficientes.65
O autor defende que a lei e a ordem sempre estarão a serviço da autoridade
estabelecida, sendo assim, seria sem sentido utilizá-la contra a minoria que está subordinada a
ela, mas busca maneiras de alcançar a sua dignidade. Para Marcuse, caso essa minoria
subjugada utilize violência como forma de resistência, uma vez que conhece os riscos e
mesmo assim está disposta a aceitá-los, não estaria desencadeando o ato violento, mas apenas
lutando para romper com a violência já estabelecida pelo governo.66
6.5 A Crise da Representatividade em Hannah Arendt
Hannah Arendt inicia suas considerações acerca da desobediência civil a partir do
pressuposto de uma crise instaurada nos governos representativos. Essa crise reflete a perda
dos meios de participação efetiva dos cidadãos na política, juntamente com o obstáculo da
burocratização e da extrema tendência ao bipartidarismo, que fortalece apenas a máquina
partidária sem conseguir representar ninguém.
Segundo Hannah Arendt, essa falta de representação culmina no: “desprezo pela
autoridade estabelecida, religiosa e secular, social e política, como um fenômeno mundial. (...)
Não se poderia imaginar evidência mais exposta, nem sinais mais explícitos da instabilidade e
vulnerabilidade interiores dos governos e sistemas legais”.67 A desintegração dos sistemas
políticos, corresponde a incapacidade de atuar adequadamente devido às leis parecerem ter
perdido seu poder, o que faz surgir nos cidadãos questionamentos quanto a legitimidade desse
governo.
A quebra da confiança no processo legal, devido à falta de consequências perante os
atos ilícitos, ocasiona um grave problema a respeito do sistema jurídico, no qual as
instituições mantenedoras da lei não conseguem assegurar o cumprimento delas:
A verdade simples e assustadora é que sob circunstâncias de permissividade social e legal as
pessoas se entregarão ao mais ultrajante comportamento criminoso; pessoas estas que em
circunstâncias normais talvez pensassem em tais crimes, mas nunca teriam realmente
considerado a possibilidade de cometê-los.68
Hannah Arendt faz uma forte crítica à resposta dada pelo governo, na qual passam a
compreender que a lei é violada da mesma maneira, tanto pelos criminosos, quanto pelos
manifestantes que exercem a desobediência civil. “Embora seja verdade que os movimentos
radicais (...) atraem elementos criminosos, não seria nem correto nem inteligente identificar os
64 MARCUSE, H. op. cit, p.101 65.Ibid, p.116 66 Ibid, p.117 67 ARENDT, Hannah. Crises da República. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. p.64
68 Ibid, p.65
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18
dois. Os criminosos são tão perigosos para os movimentos políticos quanto para a sociedade
em geral”.69
Segundo a autora, o único meio utilizado pelos contestadores civis que justificaria a
alcunha de “rebeldes” seria a violência. Sendo assim, é fundamental dentre as características
da desobediência civil a necessidade dos atos serem públicos e não-violentos. A
complexidade em estabelecer a distinção entre os revolucionários e os contestadores civis
ocorre devido a ambos os movimentos almejarem mudanças no governo. No entanto, as
transformações pretendidas pelos contestadores civis são específicas em busca do
aperfeiçoamento do Estado, enquanto os revolucionários ambicionam romper com todas as
instituições.70
A velocidade com que as transformações ocorrem atualmente foi objeto de análise
para Hannah Arendt:
“A transformação é constante, inerente à condição humana, mas a rapidez da transformação
não o é. (...) dificilmente se poderia dizer que o apetite do homem pela mudança cancelou sua
necessidade de estabilidade. É perfeitamente sabido que o mais radical dos revolucionários se
tornará um conservador no dia seguinte à revolução”.71
Um dos fatores estabilizantes da sociedade são os sistemas legais, que são mais
duradouros que modas, costumes e tradições. “Eis a razão porque a lei parece, numa época de
rápidas transformações, inevitavelmente uma “força repressiva, e desta forma uma influência
negativa num mundo que admira a ação positiva”.72 Apesar dos inúmeros ordenamentos
jurídicos existentes, todos têm algo em comum, terem sido planejados para assegurar a
estabilidade.
Quando não há estabilidade quanto às normas impostas pelo governo, sobrevindo
constantemente novas alterações na validade destas, modificando completamente o seu
conteúdo, nos deparamos com a ilegalidade. De acordo com a teoria de Arendt: “A lei
realmente pode estabilizar e legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é
sempre resultado de ação extralegal”.73
A autora exemplifica essa situação através da 14ª Emenda da Constituição dos Estados
Unidos, que deveria garantir constitucionalmente as transformações ocorridas no período da
guerra civil norte-americana, mas os estados sulistas continuaram a aplicar as leis
segregacionistas durante cem anos; violando a Constituição sem que a Suprema Corte se
manifestasse. Esta somente se pronunciou após os atos de desobediência civil do movimento
negro.74
Ao examinar a obrigação política, Hannah Arendt afirma: “O compromisso moral do
cidadão em obedecer às leis, tradicionalmente provém da suposição de que ele, ou deu seu
consentimento a elas, ou foi o próprio legislador; sob o domínio da lei, o homem não está
sujeito a uma vontade alheia, está obedecendo a si mesmo”.75
A crise no governo representativo é o resultado da quebra desse consentimento tácito
da sociedade para com as ações tomadas pelos governantes, em parte devido a não
69 ARENDT, Hannah. op. cit, p.68 70 Ibid, p.70 71 Ibid, p. 71 72 Ibid, p.72 73 Ibid, p.73 74 Ibid, p.74 75 Ibid, p.76
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19
participação da população na política, e a burocratização da máquina partidária através do
bipartidarismo. Consequentemente, instaura-se uma crise constitucional, em virtude dos
constantes ataques à Constituição pelo governo, o que gera a perda da confiança da população
pelos processos democráticos ao não sentir-se representada pelos governantes.
O consentimento é o instrumento fundamental capaz de organizar as ações individuais
presentes na sociedade em forma de associações voluntárias que agem conjuntamente em
benefício de um interesse comum. Defende Arendt: “Associações voluntárias não são partidos
políticos; são organizações que perseguem objetivos a curto prazo e desaparecem quando o
objetivo é atingido”.76
Hannah Arendt, assim como Tocqueville, reconhece a associação entre os indivíduos
como a ampliação do interesse pela política, o que serve como garantia frente a possibilidade
de dominação pela maioria. Dessa maneira, a desobediência civil como apresenta a autora é
composta por: “minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente
inarticuladas, embora nada silenciosas”.77
Para a autora a desobediência civil é um instrumento essencial capaz de resgatar o
verdadeiro sentido da democracia, viabilizando a oportunidade das minorias se expressarem
diante do Estado. Os contestadores civis são minorias organizadas em benefício de uma
opinião comum, que se posicionam contra atos específicos praticados pelo governo, mesmo
que estes sejam endossados pela maioria.78
Hannah Arendt compreende a dificuldade dos ordenamentos jurídicos em incorporar a
desobediência civil, pois seria incompatível instituir uma norma que assegure a violação da
lei. No entanto, admite o papel crucial que a desobediência civil possui nos processos
democráticos ao garantir a manifestação do pluralismo político.79
7. Conclusão
A pesquisa possibilitou um maior entendimento acerca do exercício da cidadania
como característica fundamental para existência de um governo legítimo. Por meio desse
estudo, verificou-se o desenvolvimento do direito de resistência como um movimento que
ocorreu paralelamente à formação do Estado de Direito, agindo como ferramenta crucial para
assegurar as liberdades individuais.
Essa análise também permitiu a compreensão das características essenciais para a
atuação dos que exercem a desobediência civil, na qual a não-violência e a publicidade das
ações são imprescindíveis para alcançar a garantia dos direitos pretendidos. Constatou-se o
questionamento existente quanto à legitimidade dessas resistências pacíficas, e a dificuldade
do ordenamento jurídico em incorporar leis positivas, que assegurem o exercício desse direito.
A obra de La Boétie contribuiu para a análise do comportamento da sociedade com a
concepção da servidão voluntária, na qual os súditos esquecem o desejo pela liberdade em
decorrência da sujeição perante o tirano. John Locke, autor contratualista liberal, influenciado
por esse pressuposto, apresentou a noção do consentimento do povo como real fonte de
legitimidade para constituição do estado civil. Em Thoreau o direito de resistência teve sua
aplicabilidade ampliada, visto que diferentemente de Locke, defendeu a viabilidade das ações
76 ARENDT, Hannah. op. cit, p.84 77 Ibid, p.87 78 Ibid, p.89 79 Ibid, p.88
Departamento de Direito
20
individuais. Para Thoreau, o indivíduo sozinho seria capaz de manifestar sua insatisfação
frente ao governo, dando origem a desobediência civil. Mahatma Gandhi e Martin Luther
King, inspirados pela obra de Thoreau, conceberam novas características ao movimento, com
a premissa da não-violência, e da ação coletiva. Esses autores também observaram a
necessidade de organização prévia das manifestações, com o intuito de ensinar aos
participantes a submissão diante da repressão violenta do governo.
Seguindo o estudo quanto à legitimidade do governo, Marcuse apresentou o
argumento da tolerância enquanto, instrumento de manutenção da opressão nas sociedades
alienadas por organizações autoritárias. Já Hannah Arendt, demonstrou a crise instaurada nos
governos representativos, devido à quebra do consentimento popular e da falta de confiança
nas leis positivas. Da análise de todos os autores citados é possível identificar em quais
aspectos e fundamentos se desenvolve a desobediência civil como mecanismo capaz de
efetivar a busca pela democracia e aperfeiçoar o funcionamento do Estado.
8. Referências
1 – ARENDT, Hannah. Crises da República. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.
2 – ______________. Sobre a Violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
3 – BOÉTIE, Étienne de La. Discurso da Servidão Voluntária, São Paulo: Brasiliense,
1999.
4 - BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 11ª.ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1998.
5 – BUZANELLO, José Carlos. Direito de resistência constitucional. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2002.
6 – COSTA, Nelson Nery. Teoria e realidade da desobediência civil. 1ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1990.
7 – GARCIA, Maria. Desobediência civil. Direito fundamental. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1994.
8- LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. 1ª.ed. São Paulo: EDIPRO,
2014.
9 – MARCUSE, H. Repressive Tolerace. In: WOLFF, R.P. MOORE, B. MARCUSE, H. A
Critique of Pure Tolerance. Boston: Beacon Press, 1965.
10 – THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. 1ª. ed. São Paulo: EDIPRO, 2016.