UFRRJ
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO,
AGRICULTURA E SOCIEDADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE CINCIAS
SOCIAIS EM DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA
E SOCIEDADE
TESE
O Encantamento como Campo Simblico: uma
abordagem esttica sobre a experincia do
Fantstico
Andr Bazzanella
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E
SOCIEDADE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO DE CINCIAS SOCIAIS EM
DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA E SOCIEDADE
O ENCANTAMENTO COMO CAMPO SIMBLICO
Uma Abordagem Esttica das Narrativas sobre a Experincia do Fantstico
ANDR BAZZANELLA
Sob a Orientao da Professora
Eli de Ftima Napoleo de Lima
Paraty, RJ
Fevereiro de 2013
Tese submetida como requisito parcial
para a obteno do grau de Doutor em
Cincias Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade.
Classificao
dada pela
Biblioteca
T
Bazzanella, Andr O Encantamento como Campo Simblico: Uma abordagem esttica das narrativas sobre a experincia do Fantstico / Andr Bazzanella, 2013 190 f. Orientador: Eli de Ftima Napoleo de Lima Tese Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Cincias Humanas e Sociais. Bibliografia: f. 182 - 190
1. Identidades. 2. Esttica. 3. Encantamento. 4. Caiaras. I.
Bazzanella, Andr e Eli Napoleo de Lima. II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Instituto de Cincias Humanas e Sociais. III. O Encantamento como Campo Simblico: Uma abordagem esttica das narrativas sobre a experincia do Fantstico.
ii
Para meus pais Waldemiro e Norita
que moram na imensido
iii
Agradecimentos
Ao corpo docente do CPDA, por aprovarem meu reingresso no Programa aps minha estadia
no Estado do Amazonas a servio do IPHAN.
Agradeo especialmente minha orientadora Eli de Ftima Napoleo de Lima pela enorme
pacincia.
Ao professor Roberto Moreira pelas aulas mgicas
professora Maria Jos Teixeira Carneiro pelas dicas sempre pertinentes
A todos os colegas, professores e alunos, do CPDA pelas contribuies valiosas durante todo
o curso.
comunidade do Sono, mas especialmente aos amigos Jardson, Leila, Fafinha, seu Dcio,
dona Iracema, Jonas e Val.
Aos colegas da Coordenao de Pesquisa e Documentao COPEDOC do Iphan pelos debates, discusses, amizade e companheirismo.
Ao Cosme e Joaquim de Vargem Grande, Rio de Janeiro, meus primeiros parceiros no estudo
dos grupos tradicionais e sua viso sobre o mundo.
Ao seu Guilherme Oy, Laureano Dessana, Eliana Saldanha Arapao, Rosa Piratapuia,
DensioTikuna.
A todas as comunidades ribeirinhas e indgenas onde fui recebido no Amazonas e Roraima.
Aos amigos da arqueologia, especialmente os professores Eduardo Ges Neves e Helena
Lima, dos quais aprendi enormemente sobre as relaes entre o homem e o ambiente.
Aos colegas do Escritrio Tcnico II da Costa Verde do Iphan-RJ em Paraty.
Aos amigos e parceiros Hlio Viana e Djalma Paiva que j partiram para outras realidades.
Agradeo principalmente queles que mais prximos estiveram durante estes longos anos de
trabalho: minha esposa Janana e meus filhos Isabel, Miguel e Anita.
iv
RESUMO
BAZZANELLA, Andr. O ENCANTAMENTO COMO CAMPO SIMBLICO: Uma
Abordagem Esttica das Narrativas sobre a Experincia do Fantstico. 2013 200 p. Tese
de Doutorado (Programa de Ps-Graduao de Cincias Sociais em Agronomia,
Desenvolvimento e Sociedade/CPDA Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, RJ.
Este trabalho defende a incorporao dos instrumentos da teoria esttica nas abordagens das
narrativas tradicionais que relatam as experincias com o Malassombra e Encantes.
Fundamental para o entendimento das relaes entre as pequenas comunidades caiaras o
meio e sua identidade, a interpretao esttica das crenas populares deve ser considerada
como um elemento central das aes de entidades pblicas e privadas que lidam com
processos de desenvolvimento e sustentabilidade em grupos sociais, especialmente para
aqueles situados margem dos processos de transformao econmicos e sociais da sociedade
industrial. Fundamenta-se esta discusso atravs de uma discusso sobre a conceituao da
Esttica e suas mltiplas leituras, levando compreenso da funo do imaginrio como
elemento primordial para a leitura dos vnculos afetivos que fazem do territrio e da paisagem
parte indissocivel da identidade das comunidades litorneas de Paraty/RJ a partir do caso da
populao da Praia do Sono.
Palavras chave: Identidades, Esttica, Encantamento, Caiaras
v
ABSTRACT
BAZZANELLA, Andr. THE ENCHANTMENT AS A SYMBOLIC FIELD: An
Aesthetic Approach of Narratives about the Experience with Fantastic. 2013 199 p.
Doctoral thesis (Postgraduate Program in Social Sciences in Agronomy, Development and
Society/CPDA Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropdica, RJ. This study advocates the incorporation of the tools of aesthetic theory in the approaches of
using traditional narratives to describe the experiences with ghosts and entities as
Malassombras and Encantes. Fundamental to the understanding of the relationships between
small caiara communities, the environment, and their identity, aesthetic interpretation of
popular beliefs should be regarded as the main reason behind the actions of public and private
entities. These public and private entities creates processes that facilitates development, and
forms social group which help to maintain overall sustainability, especially for those at the
margins of the economic and social transformation into a modern industrial society. Based on
this reasoning, the use of Aesthetics and its various understanding the emotional bonds that
make the land and scenery inseparable from the identity of the coastal communities of
Paraty/RJ, as demonstrated in the case of the people who live in Praia do Sono.
Key words: Identities, Aesthetics, Enchantment, Caiaras.
vi
Lista de fotografias e imagens:
Interior de rancho de canoas na Praia do Sono.........................................................................42
Vila de Paraty em 1827. Jean Baptiste Debret..........................................................................45
Vista da comunidade a partir do mar........................................................................................50
Localizao da Praia do Sono na pennsula da Juatinga ..........................................................51
Situao de Laranjeiras em relao ao Sono ............................................................................57
Botes utilizados para a pesca e para o transporte de turistas entre o Sono e Laranjeiras..........58
III FEST JU ...........................................................................................................................60
Bar e restaurante na Praia do Sono...........................................................................................61
Via principal da comunidade do Sono .....................................................................................64
Via lateral perpendicular praia ..............................................................................................64
Camping cercado para atender s necessidades de privacidade dos hspedes......................65 Distribuio das moradias com a separao entre os quintais feita com cercas vivas..............65
Distribuio espacial da comunidade........................................................................................67
A trilha para o Sono aps as melhorias.....................................................................................69
Horta em quintal .......................................................................................................................71
Pequena lavoura de mandioca na beira de um caminho lateral................................................71
O cerco e o caminho do cerco ..............................................................................................73 Companhia trabalhando no cerco .........................................................................................73 Redes secando ao sol ................................................................................................................74
Consertando a rede ...................................................................................................................74
Tacho para tingir as redes .....................................................................................................75 Pesca com rede em canoa de um pau s ...............................................................................75 Covo..........................................................................................................................................76
Trabalhos das Bordadeiras da Praia do Sono ...........................................................................79
Retirada das pesadas canoas tradicionais..................................................................................81
Cemitrio da Comunidade da Praia do Sono ...........................................................................83
Praa central da comunidade, com a escola ao fundo e restaurantes ...................................84 Assembleia de Deus da Comunidade da Praia do Sono ...........................................................86
Canoa caiara............................................................................................................................87
Remo caiara.............................................................................................................................88
Principais rotas tradicionais citadas nas entrevistas..................................................................89
Vista da Praia do Sono a partir da trilha de Laranjeiras ...........................................................91
Santinho.................................................................................................................................91 Ilha das Peas ou do Rato vista da Praia do Sono ................................................................92 Cruz na Barra............................................................................................................................93
Cruz na Barra e pegada..........................................................................................................93 As Amendoeiras da Praia do Sono ...........................................................................................94
rvores casadas ....................................................................................................................94 Praia dos Antigos, com a Pedra da Ona .................................................................................96
Pedra da Ona ..........................................................................................................................96
Praia de Antiguinhos ................................................................................................................97
A Barra....................................................................................................................................118
Esquema da reduo das reas Encantadas na Praia do Sono ................................................168
vii
SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................................01
2 MUDANA E PRESERVAO ......................................................................................15
2.1 Incluso e excluses .............................................................................................. 23
2.2 Um exemplo distante, os Wajpi do Amap ..........................................................32
3. A COMUNIDADE..............................................................................................................37
3.1 Contexto Histrico do Povoamento de Paraty .......................................................37
3.2 As Identidades Caiaras..........................................................................................40
3.3 Uma identidade em construo...............................................................................45
3.4 A Comunidade da Praia do Sono............................................................................48
3.5 O Conflito pela Terra..............................................................................................52
3.6 Os Conflitos com o Condomnio Laranjeiras .........................................................55
3.7 Nativos ou Moradores?............... ...........................................................................60
3.8 O Espao Fsico da Comunidade............................................................................62
3.9 Os Modos de Vida...................................................................................................66
3.10 A Subsistncia...................................................................................................... 69
3.11 Manifestaes Culturais........................................................................................77
3.11.1 A Canoa de Um Pau S......................................................................................87
3.12 O Sono: lugares e primeiras histrias ...................................................................88
3.12.1 Antigos...............................................................................................................95
3.14 O Reconhecimento do Espao ..............................................................................97
4 TRADICIONAIS E INTEGRADOS ...............................................................................100
4.1 Literatura Oral e Discurso ....................................................................................107
5 O SONO ENCANTADO..................................................................................................110
5.1 Encantes, Aparies e Malassombras ..................................................................110
5.2 Antigos .................................................................................................................116
5.3 A Barra .................................................................................................................117
5.4 As Matas e os Caminhos ......................................................................................119
5.5 Os Causos .............................................................................................................119
6 O FANTSTICO, O ESTRANHO E O MARAVILHOSO ..........................................126
7 VISES DO MARAVILHOSO........................................................................................132
7.1 Esttica .................................................................................................................132
7.2 Esttica e Magia ...................................................................................................139
7.3 Esttica e Fantstico .............................................................................................148
7.4 Esttica e Pertencimento ......................................................................................151
7.5 Esttica e Transgresso ........................................................................................160
8 A PRAIA MGICA: ALGUMAS CONSIDERAES FINAIS..................................166
9 REFERNCIAS BIBLIOGRFICA S............................................................................182
1 INTRODUO
Muitas das ideias aqui contidas surgiram do contato com diversos grupos sociais com
os quais tivemos oportunidade de trabalhar, antes de chegarmos aos caiaras1 de Paraty. Ao
longo destes contatos, verificamos que poderamos traar inmeros paralelos entre as relaes
destas diversas comunidades com as aes do poder pblico e organizaes no
governamentais concernentes s aes de identificao, preservao e salvaguarda ou resgate
de manifestaes culturais consideradas relevantes para a manuteno de suas identidades
frente s presses oriundas da dinmica socioeconmica e cultural da sociedade brasileira. Se
procurssemos fazer deste trabalho um estudo com esta abrangncia, cairamos
provavelmente em uma rede infindvel de exemplos e comparaes que demandariam
esforos impossveis de serem executados no mbito deste trabalho. Assim sendo, foi
fundamental centrarmos o foco desta nossa investigao em uma nica localidade.
Escolhemos desenvolver nosso trabalho junto populao caiara na Praia do Sono
por diversos motivos, alm do fato de estarmos atualmente lotados no Escritrio Tcnico II
Costa Verde do Iphan-RJ em Paraty. Em primeiro lugar, levamos em conta a acessibilidade
do lugar e a existncia de uma trilha de acesso com aproximadamente sete quilmetros de
extenso em relevo relativamente acidentado, mas ainda assim bastante praticvel. Por outro
lado, a maioria das comunidades2 ditas caiaras da regio de Paraty so acessveis somente
por mar, o que dificultaria o trabalho de campo e demandaria recursos financeiros que
estariam alm de nossas possibilidades como servidor do Ministrio da Cultura. Se
preferirmos ir por mar, devemos atravessar um empreendimento de alto padro, o
1Nosso trabalho com a questo da relao sensvel entre o morador e seu meio ambiente em situaes
de contato com a cultura urbana inicia-se no Parque Estadual da Pedra Branca, com os sitiantes que
ainda habitam nesta unidade de conservao. O mote desta entrada no universo das ditas comunidades tradicionais foi um trabalho relacionado com os conhecimentos etnobotnicos da
populao local. Este trabalho foi orientado por mim e desenvolvido por alunos da Universidade da
Cidade, no campus de Vargem Grande, Rio de Janeiro (2001-2002). Em seguida fizemos uma
rpida aproximao com as alguns grupos de jongo na regio de Barra do Pira (2004-2005). Devido
ao meu ingresso no Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional transferi-me para Manaus,
Amazonas, onde passei a trabalhar com o patrimnio imaterial local (2006-2010). Nesta regio tive
oportunidade de fazer contato com diversos grupos em processo de reconstruo ou reafirmao de
sua identidade indgena, como os Bar do entorno de Manaus, alguns grupos Tukano e Tariana no
Alto Rio Negro, ribeirinhos em So Paulo de Olivena, Santo Antonio do I, no Rio Solimes, e
Carvoeiro, no Mdio Rio Negro, alm de participar de oficinas sobre patrimnio e identidade
cultural realizadas com as etnias Macuxi e Yanomami em Roraima. Estes contatos, ainda que
institucionais, deram origem a alguns dos questionamentos presentes neste trabalho. 2O termo comunidade empregado pelos moradores, talvez como um reflexo do sentimento de que
definir-se como uma comunidade sempre uma coisa boa, uma ideia de solidariedade, relaes sociais pacficas, algo distinto da realidade exterior. O termo foi utilizado neste vis idealizado para
definir diversos grupos com uma suposta autonomia e formas de socializao particulares em relao
sociedade envolvente. Porm, esta fico tambm representaria um mundo fechado em si mesmo
que no est lamentavelmente, ao nosso alcance (BAUMAN, 2003, p. 8-9). Na realidade, como afirma BAUMAN (2003, p.17), quando ela comea a versar sobre seu valor singular, a derramar-se lrica sobre sua beleza original e a afixar nos muros prximos loquazes manifestos conclamando seus
membros a apreciarem suas virtudes e os outros a admir-los ou calar-se podemos estar certos de que a comunidade no existe mais.
2
Condomnio Laranjeiras, que coloca significativas dificuldades de acesso ao visitante. Assim,
o melhor modo de chegar Praia do Sono seguir pela trilha e voltarmos por mar. Por isso a
praia manteve-se como um destino turstico menos visvel que a vizinha Trindade e pode
manter uma integridade de origem de sua populao; praticamente todos os moradores locais
so nascidos no Sono ou esto ali por terem se casado com moradores nativos.
Assim, a Praia do Sono, mesmo tendo se tornado atualmente um destino alternativo
vizinha Praia de Trindade, manteve sua ocupao restrita, tanto pela dificuldade de acesso
como pela resistncia dos moradores em deixar ou compartilhar suas terras. Isso contribuiu
para impedir o estabelecimento de empreendimentos de maior porte, com maior capacidade
de divulgao e atrao, mantendo sob o controle dos moradores a presso econmica
exercida pelo mercado do turismo sobre a praia.
O fato da Praia do Sono ser voltada para o mar aberto, estando sujeita s intempries,
tambm no favoreceu sua ocupao por veranistas de alto padro aquisitivo, uma vez que
no pode abrigar um porto permanente para embarcaes de recreio. Isso a torna diferente de
outras comunidades aparentemente mais isoladas, como as da Ponta da Cajaba, que, por
possurem bons atracadouros, tm que lidar com a ocupao de sua faixa costeira por
construes de veranistas.
Outro fator que favoreceu a preservao da paisagem humana e natural da Praia do
Sono foi a questo da propriedade da terra, pois toda a rea est situada dentro da
sobreposio de duas unidades de conservao da natureza (UCs): a Reserva Ecolgica da
Juatinga REJ, UC Estadual de conservao integral e a rea de Proteo Ambiental do Cairuu, UC Federal, de uso sustentvel. Alm de estarem localizadas em reas de
conservao, as terras do Sono no so, como muitas outras em Paraty, parte de inventrios
antigos ou glebas abandonadas h anos pelos antigos proprietrios e que foram griladas por
grandes proprietrios. Toda a rea reivindicada por um nico suposto proprietrio, que
supostamente a teria adquirido na dcada de 1950. Este proprietrio disputa a posse das terras
com o Estado do Rio de Janeiro que igualmente reivindica judicialmente a propriedade da
regio. Este interesse definido em torno de um nico proprietrio e seus descendentes
dificultou igualmente que qualquer ocupao ou desmembramento ocorresse na rea
tradicionalmente ocupada pela comunidade.
Ao reunirmos todos estes pontos com a vontade expressa dos moradores em
permanecer na rea, mantendo as propriedades sob o domnio das antigas famlias da
comunidade e impedindo a ao de especuladores e a instalao de pessoas de fora 3, vemos como um conjunto de fatores permitiu que se preservasse a populao original no lugar e suas
relaes tradicionais com a terra, no dando espao para a sua comercializao.
A comunidade representada por uma Associao de Moradores cuja diretoria eleita
para um mandato de dois anos e bastante atuante. Alm disso, existe o interesse da
Organizao no governamental Verde Cidadania, que coordenou a instituio do Frum das
Comunidades Tradicionais, voltado para a defesa dos interesses das populaes tradicionais
de Paraty. O Frum rene indgenas Mbya-Guarani, quilombolas do Campinho da
Independncia e as comunidades caiaras em Paraty, aumentando o poder de negociao
destas populaes com o poder pblico. A soma destes fatores faz da Praia do Sono, apesar
de ser uma comunidade de acesso relativamente fcil, e at por isso mesmo, um caso
particular de preservao dentro do universo das comunidades caiaras de Paraty. De fato,
atualmente podemos dizer que a ampla maioria dos moradores do Sono so nativos da
3Assim como aponta John Cunha Comerford, tambm no Sono e mesmo na prpria sede do municpio
de Paraty encontramos esta categoria dos de fora que, ao se fixarem no local e conseguirem se inserir na economia moral das relaes da localidade, passam a ser reconhecidos como antigos no lugar (COMERFORD, 2003, p. 45).
3
comunidade e, principalmente, que se conseguiu ali o domnio sobre o territrio fsico, no
existindo casa de veranistas ou empreendimentos administrados por pessoas de fora, de modo que atualmente no soubemos de nenhuma edificao que no pertena aos moradores
ou sirvam a seus usos.
Foi tambm decisivo para a escolha da Praia do Sono como objeto deste trabalho o
fato de j termos nos encontrado algumas vezes com lideranas da comunidade. Estes
encontros ocorreram durante o trabalho de rotina do Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional Iphan devido ao fato da Praia do Sono abrigar a sede do Ponto de Cultura Caiaras da Juatinga
4. Esta aproximao anterior, no entanto, poderia representar tambm um
problema, uma vez que nossa funo no Escritrio Tcnico da Costa Verde do Iphan no Rio
de Janeiro inclui o trabalho com as culturas populares e com os Pontos de Cultura locais para
acompanhamento e apoio na elaborao de projetos e participao em editais.
Isso poderia causar certa confuso no momento em que passssemos a trabalhar no
mbito de uma pesquisa acadmica. Por isso, estabelecer esta diferena entre nosso papel
enquanto tcnico de uma instituio federal vinculada ao Ministrio da Cultura e o trabalho
pessoal de pesquisa foi objeto de ateno especial em nossos contatos com o grupo. Mesmo
assim o contedo de nossa pesquisa foi certamente influenciado pela expectativa da
comunidade, de forma que entendemos ser importante nos ocuparmos em narrara questo da
luta pela posse da terra e das relaes com as instituies pblicas e privadas.
Foi difcil encontrarmos um equilbrio em meio s diversas vises sobre as diferentes
questes que surgiram durante o trabalho de campo, questes que abordam os conceitos de
desenvolvimento, de identidade caiara, de preservao ambiental, de sustentabilidade e a
disputa em torno do poder simblico de que se revestem atualmente as identidades locais no
trato com os agentes externos. Dada a proximidade com os dois maiores centros urbanos do
pas, Rio de Janeiro e So Paulo, e a visibilidade da prpria cidade de Paraty como um
importante destino turstico nacional e internacional, so muitos os que chegam, por um
motivo ou outro, a entrar em contato com a comunidade trazendo consigo diferentes modos de
vida, mas tambm diferentes propostas de solues para os problemas locais e projetos de
desenvolvimento que raramente levam em considerao a situao particular da comunidade5.
Alm destes, existem aqueles outros, como ns, que buscam o conhecimento sobre as formas
de vida tradicional ou que buscam realizar pesquisas sobre a ecologia da regio, a Mata
Atlntica, reconhecida como Patrimnio Natural da Humanidade, e as Unidades de
Conservao. Tambm estes trazem consigo, talvez sem que o percebam, imagens e modos
de ser do mundo exterior para a comunidade.
4Pontos de Cultura uma ao do Programa Cultura Viva, que vem sendo desenvolvido desde2003
pelo Governo Federal. Trata-se de um a tentativa de organizao da cultura a nvel local, o centro de recepo e irradiao da cultura que vai articulando as aes e construindo uma rede local de
cultura (MIRANDA in MINC, 2006, p.114). Inicialmente os Pontos de Cultura estavam diretamente ligados ao Ministrio, mas a atualmente o programa foi encampado pelos governos
estaduais, que passam a ser responsveis pela gesto dos pontos criados pelos governos estaduais e
recebem repasse de verbas federais atravs de convnios (www.cultura.gov.br/culturaviva). O Ponto
de Cultura Caiaras da Juatinga faz parte desta rede estadual. 5Entre o que ouvimos em diversas reunies nas quais participamos como representantes do Iphan
temos, por exemplo, a proposta de fazer plantaes de coqueiros como forma de sustentabilidade
econmica, esquecendo que a rea de preservao permanente; organizar uma rede de turismo
solidrio, sendo que grande parte da renda da comunidade vem dos campings e aluguel de casas.
Tambm chamam a ateno os projetos-piloto, que so apresentados para a comunidade sem garantia
de continuidade ou manuteno, como ocorre atualmente com o projeto de esgotamento sanitrio da
vila. A queixa contra os projetos que vm prontos, sem discusso com a comunidade so frequentes e atingem no s as instituies pblicas como tambm organizaes no governamentais.
4
Alm deste contato permanente com a sociedade urbana, a comunidade da Praia do
Sono vem necessitando adequar-se s transformaes rpidas e profundas motivadas pelo
turismo sazonal, que, alm da pesca comercial, atualmente uma das principais fontes de
renda da comunidade. Esta adequao tensiona a comunidade em diferentes grupos que
possuem vises distintas a respeito das vantagens e desvantagens do desenvolvimento. A
avaliao que os moradores fazem entre as vantagens e desvantagens da insero da
comunidade no sistema econmico do turismo e sua diversidade de objetos (cultural,
ecolgico, de aventura, etc.), coloca tambm em questo o que define a identidade local e, em
decorrncia disso, o que pode e no pode ser objeto de negociao com os agentes pblicos e,
internamente, com os outros membros da comunidade que possuem projetos diferentes.
Para avaliar estas transformaes pesa tambm a necessidade cada vez maior de
insero dos jovens no meio urbano, uma vez que estes tm de continuar seus estudos na
cidade aps a concluso do ciclo fundamental I (5 ano). Mesmo com a relativa facilidade, a
cidade ainda distante. Isso impede que os jovens permaneam na comunidade, o que
compromete diretamente a transmisso oral da cultura, pois retira grande parte da juventude
do convvio dirio com o meio e com o cotidiano da comunidade.
Alm disso, favorece a introduo de novos valores comportamentais e de consumo no
cotidiano da comunidade. Estes novos hbitos so, por sua vez, reconhecidos como
associados a uma melhor situao social, pois encontram correspondncia nos modos de ser
de muitos turistas que chegam Praia do Sono e nos modelos de sucesso aceitos pelo pblico
em geral. A tudo isto se soma a presena frequente de agentes pblicos e Organizaes No
Governamentais que disputam o interesse do grupo para seus projetos polticos ou sociais de
desenvolvimento e incluso social, aliando-se ora a um ora a outro segmento da comunidade e
contribuindo para a sua desarticulao6.
Apesar da forte presena da Igreja Assembleia de Deus, o nico templo religioso
existente no local, cabe ressaltar que a f religiosa no representou qualquer empecilho para o
trabalho de levantamento das narrativas mgicas durante nosso trabalho de campo, apesar do
que havamos ouvido repetidamente antes de comearmos nosso trabalho. Esta f parece
inserir-se no contexto de uma cultura altamente receptiva s demandas que chegam do
exterior para a comunidade atravs do filtro de uma identidade caiara adquirida em funo
da valorao do espao fsico que ocupam e dominam: a sua praia.
Os principais problemas enfrentados pela populao para a definio de uma
identidade caiara se do a partir das linhas identificadas por Ferreira (2004), em sua
Dissertao de Mestrado Redefinindo Territrios: Preservao e Transformao no Aventureiro-Ilha Grande (RJ). Segundo a autora, a situao do caiara passaria por trs questes: o direito consuetudinrio propriedade da terra, a especificidade da relao que
estas populaes estabelecem com seu ambiente e a conservao da biodiversidade que
resultaria das tcnicas de manejo e plantio destes grupos.
A primeira questo estaria na prpria lgica da territorialidade do Estado-nao o qual
reconhece apenas duas categorias bsicas no regime de propriedade: a de terras privadas e a de terras pblicas (FERREIRA, 2004, p. 27). Isso contribuiria para a invisibilidade destes grupos e suas prticas no territrio.
6Pudemos listar as seguintes instituies agindo na Praia do Sono: Instituto Chico Mendes de
Conservao da Biodiversidade - ICMBio, Instituto Estadual do Ambiente - INEA, Ministrio da
Cultura - MinC, Prefeitura de Paraty, Associao Cairuu, Frum de Comunidades Tradicionais,
Associao Cultural Nhandeva, Ponto de Cultura Caiaras da Cajaba, Associao de Moradores da
Praia do Sono. Alm, claro, da famlia Tanus, a qual reivindica o direito de propriedade sobre a
regio.
5
A segunda questo diz respeito a um tipo de relao que estas populaes estabelecem com seu ambiente que nem sempre compreendido por quem v o mundo
atravs das lentes do pensamento moderno, racional, cientfico e burocrtico. No caso das populaes tradicionais no haveria uma ciso to marcada, como ocorre na sociedade
moderna, entre o que natural e o que social. Deste modo, citando Descola7, a natureza no
seria aqui uma instancia transcendente, mas sim um sujeito de uma relao social estabelecida entre o grupo e o ambiente. Deste modo, seria a partir da percepo que o homem
tem dele [ambiente] que capaz de perceber o seu prprio mundo e vice-versa. Em suma, existe uma relao de continuidade material e alteridade simblica que se conjugam
temporalmente e fisicamente como uma relao social entre o ser-homem8 e um ser-natureza
a partir do momento em que dada ao ambiente uma intencionalidade que o faz suplantar seu
papel de mero objeto de conhecimento.
A terceira questo diz respeito ao papel que as comunidades tradicionais tm na
conservao da biodiversidade, uma vez que de acordo com alguns estudos muitas florestas
consideradas intocadas so um mosaico de floresta primria com outras reas cobertas por sucesso vegetal em diversos estgios. Esta regenerao induzida da cobertura vegetal, com a introduo de espcies teis para a comunidade e a regenerao dos trechos desmatados
para o descanso da terra, repondo a biomassa e os nutrientes retirados pelo uso, enquanto outros trechos, j anteriormente cultivados e em estado de regenerao avanado so
novamente cultivados, caracteriza o sistema de pousio (FERREIRA, 2004, p. 28).
Chama a autora ateno para o fato de que esta tcnica de pousio, a qual teria
permitido a sustentabilidade agrcola da comunidade do Aventureiro na Ilha Grande/RJ por
mais de 150 anos, s poderia funcionar vinculada a uma baixa densidade demogrfica, com
suficientes terras disponveis. Estas condies esto em mudana por diversos fatores: a) pela
menor disponibilidade de terras, com a criao das reas de proteo ambiental b) pela
necessidade de impedir que as capoeiras se desenvolvam a ponto de serem consideradas florestas (a serem preservadas, portanto, pelos rgos ambientais), diminuindo o tempo de
descanso c) o aumento da populao de no agricultores pelo casamento com pessoas de fora e a disputa de espaos para construes e campings (FERREIRA, 2004, p. 29).
Percebemos desde logo que a primeira e a terceira questo vem recebendo ateno por
parte da sociedade e tambm dos agentes pblicos. Como ressalva a autora (2004, p. 29),
[...] contrariando o entendimento dos tcnicos da FEEMA que idealizaram a
existncia da Reserva Biolgica Estadual da Praia do Sul considerando a
populao do Aventureiro como um empecilho para a conservao, um outro
grupo dentro do prprio rgo advogou a sustentabilidade da roa caiara,
apresentando, dessa forma, uma viso bastante diferenciada, no s da
sociedade na sua relao com o dito mundo natural, como tambm das propostas para a sua conservao. Esta segunda viso procura incluir os
habitantes do Aventureiro no projeto de conservao, pois percebe as
prticas tradicionais deste grupo como tendo, em si mesmas, um carter
conservacionista.
7DESCOLA, Philippe LAnthropologie et la Question de la Nature. In Abls, M.; Charles, L.; Jeudy, H.P. & Kalaora, B. LEnvironnement en Perspective. Paris: LHarmattan, 2000.
8Entendendo sempre homem no sentido de ser humano. Ou seja, na definio de Roberto Jos
Moreira, como um aparelho sensorial capaz de apreender a realidade e suas interpretaes, transformando-a ao exteriorizar-se, colocando-se em ltima instncia, como parte do real que ele
percebe como exterior a si mesmo. (definio apresentada em documento entregue em mos ao autor aps a defesa da Tese de Doutorado em 01 de abril de 2013)
6
Do mesmo modo, a questo da propriedade consuetudinria da terra vem sendo
enfrentada desde alguns anos. conhecida a questo do veto ao projeto de Lei que resultou
na Lei 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservao, onde pela
primeira vez foi tentada uma conceituao do termo populao tradicional no ordenamento legal brasileiro. A partir disso tivemos a Conveno 169 sobre povos indgenas e tribais da
Organizao Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em julho de 2002 e acolhida no
ordenamento jurdico nacional por meio do Decreto n 5.051/2004. Esta Conveno inova
por distinguir, como objeto de sua competncia, alm das populaes indgenas, os povos
cujas condies sociais, culturais e econmicas os distingam de outros segmentos da
coletividade nacional e cujos modos de vida sejam ordenados, mesmo que parcialmente, por
costumes e tradies prprias.
No esprito desta Conveno, em 2007, institudo no Brasil o Plano Nacional de
Desenvolvimento Sustentvel dos Povos e Comunidades Tradicionais atravs do Decreto
6.040/2007. Este Plano enfatiza especialmente a garantia dos direitos territoriais destes
povos, assim como seu direito ao desenvolvimento econmico e social, respeitando e
valorizando suas culturas e modos de organizao. No artigo 3 este Decreto define
Territrios Tradicionais como os espaos necessrios reproduo cultural, social e econmica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente
ou temporria. De certa forma, isso contribui decididamente para garantir a segurana jurdica para que as comunidades, que logrem ser reconhecidas como tradicionais,
reivindiquem o direito sobre os territrios que ocupam e usam. A definio de povos ou
comunidades tradicionais definida, no mesmo artigo como se referindo aos
[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas prprias de organizao social, que ocupam e usam
territrios e recursos naturais como condio para sua reproduo cultural,
social, religiosa, ancestral e econmica, utilizando conhecimentos, inovaes
e prticas gerados e transmitidos pela tradio (BRASIL, 2007).
Podemos perceber, portanto, que o ordenamento legal vem procurando formas de
garantir o direito terra e identidade dos povos ditos tradicionais, buscando fomentar
inclusive suas prprias formas e modos de viver. No entanto, no que concerne segunda
questo, a compreenso das especificidades no relacionamento entre estas comunidades e o
ambiente, Ferreira (2004, p. 27) identifica a necessidade ainda existente de um amplo remanejamento dos conceitos empregados para pensar as relaes entre os objetos naturais e
os seres sociais, ainda por ser realizado. Para Ferreira (2004, p.27),
Seria necessrio, portanto, despir-se dos pr-conceitos para poder entender
esta relao e ser possvel trabalhar com ela. Para Godelier, ao se pr em
prtica uma interveno que envolva os aspectos naturais e sociais de uma
determinada sociedade preciso analisar o sistema de representaes que os
indivduos e grupos fazem de seu meio ambiente, porque a partir dessas
representaes que eles agem sobre ele. O meio ambiente tem sempre uma
dimenso imaginria, como por exemplo, a morada de poderes sobrenaturais que controlam as condies de reproduo da natureza e da
sociedade. (Godelier9, 1984)
9GODELIER, Maurice, Le Idel e le Matriel. Paris: Fayard, 1984.
7
Estes poderes sobrenaturais habitam a natureza e do sentido ao mundo onde o caiara
se insere, mas ao mesmo tempo representam uma das redes de pertencimento que determinam
a complexidade de sua identidade. Lado a lado com as relaes do caiara com o no caiara,
do morador de um local com um no morador (mesmo que seja igualmente caiara) esta
relao com o ambiente surge como uma relao entre o humano e o no humano,
representado pelo ambiente dotado de volio, atravs do qual o caiara igualmente se define
em relao ao Lugar onde habita. Significa esta relao, no mbito da viso de mundo do
caiara, o sentido daquilo que Lima e Moreira (2008, p. 310) descrevem como o
objetivamente desconhecido (a realidade subjetiva) o qual, interagindo com aquilo que objetivamente conhecido (realidade objetiva), perfazem a totalidade significativa de onde o
caiara encontra os fundamentos e os sentidos de suas aes.
Entender a relao homem-ambiente como uma relao social subtende dar ao
ambiente uma capacidade de simbolizar, de colocar-se tambm simbolicamente frente ao
ordenamento simblico do grupo. necessrio, portanto, personificar quele que simboliza,
aquele que se coloca como o Outro, podendo esta personificao assumir as formas das
diversas entidades mgicas, os Encantes. So eles que representam a autonomia da natureza
frente ao universo de significados cotidianos, pois, ao mesmo tempo em que aproximam,
servem de ponte entre os dois mundos. Por outro lado, abre-se caminho para que o ambiente
aparea como um smbolo em si, surgindo como o no significado, como aquilo que deve ser
significado e traduzido atravs de um rearranjamento da ordem de significados que servem
para a interpretao do mundo. Abre-se caminho, portanto, para uma apreenso potica do
mundo que faz cooperar o real-conhecido e o irreal-desconhecido em um nico sentido ditado
pela experincia.
Sendo a identidade caiara um dos eixos que motivam este trabalho, devemos dizer
que consideramos extremamente relevante o fato das populaes tradicionais terem
conquistado, no contato com agentes externos, a conscincia dos direitos que decorrem de sua
prpria diferena cultural. A afirmao desta conquista um discurso que percorre todas as
conversas locais, seja para afirmar a posse da terra, seja para garantir a proteo legal s suas
reivindicaes em relao sade, educao e ao desenvolvimento. A identidade caiara ,
tambm, uma identidade poltica.
Esta identidade poltica no pode ser deixada de lado na aproximao com os
informantes e na interpretao dos dados obtidos e podemos considerar a conquista de direitos
diferenciados como um dos principais argumentos na luta pela terra. Ao mesmo tempo, a
identidade poltica tambm afeta profundamente as relaes do grupo com seu meio ambiente,
seus modos de abordagem da prpria cultura e seus modos de fazer tradicionais, uma vez que
se refere a um olhar dirigido sobre o que exterior comunidade. Ou seja, um olhar que tem
como referncia a situao da comunidade como um lugar imerso em um todo maior e
diverso.
neste todo que a circunda que ela precisa forosamente encontrar um campo comum
de discurso que legitime a preservao destes mesmos direitos sobrevivncia. Na prtica
destes direitos, portanto, est incorporada naturalmente tambm o olhar externo sobre o
grupo, como so vistos, como devem agir, como devem se afirmar diferentes. No pode, portanto, a identidade caiara deixar de trabalhar com a incorporao de conceitos que a
sociedade agrega identidade caiara. Isto no pode ocorrer sem o surgimento de diversos
pontos de tenso e conflitos onde a relao de poder bastante clara em favor da cultura
hegemnica.
Isso pode ser percebido claramente na relao entre a identidade caiara e a
preservao ambiental, a terceira questo colocada por Ferreira. Atualmente, um dos
principais discursos polticos sobre as comunidades tradicionais e seu direito permanncia
em suas reas tradicionais diz respeito ao suposto manejo tradicional e sustentvel do meio
8
ambiente natural onde vivem. Segundo esta viso, as comunidades tradicionais evitariam,
com sua presena, domnio e posse da terra, os danos que seriam causados ao meio ambiente
por especuladores imobilirios e o turismo predatrio. Esta uma questo recorrente entre os
caiaras de Paraty, incluindo-se a a Praia do Sono, por estar a maioria delas total ou
parcialmente em reas de conservao integral do ambiente e, por isso, sob a jurisdio direta
dos rgos ambientais federais e estaduais.
Entendem alguns, como Diegues, que a forma destas comunidades praticarem o
manejo dos recursos naturais disponveis de forma supostamente sustentvel seria no
somente algo que justificaria sua permanncia nos locais em que habitam, mesmo que estejam
em reas de preservao ambiental, mas tambm serviriam como um aprendizado para a
sociedade urbana e sua forma de compreender o desenvolvimento.
Configura-se, nesse caso, o confronto de dois saberes: o tradicional e o
cientficomoderno. De um lado, est o saber acumulado das populaes
tradicionais sobre os ciclos naturais, a reproduo e migrao da fauna, a
influncia da lua nas atividades de corte da madeira, da pesca, sobre os
sistemas de manejo dos recursos naturais, as proibies do exerccio de
atividades em certas reas ou perodos do ano, tendo em vista a conservao
das espcies. De outro lado, est o conhecimento cientfico, oriundo das
cincias exatas que no apenas desconhece, mas despreza o conhecimento
tradicionalmente acumulado. Em lugar da etnocincia, instala-se o poder da
cincia moderna, com seus modelos ecossistmicos, com a administrao
"moderna" dos recursos naturais, com a noo de capacidade de suporte
baseada em informaes cientficas (na maioria das vezes, insuficientes)
(DIEGUES, 2001, p. 69, grifo nosso).
Deste modo, os modos com que estas comunidades lidam com os recursos naturais
poderiam revelar formas de integrao entre o homem e a natureza esquecidas pela sociedade
e pela cincia moderna. No poucas vezes ouvimos falar sobre o absurdo que seriam as
restries dos rgos ambientais que incidem sobre as comunidades caiaras, visto que estas
teriam sido as verdadeiras responsveis pela preservao da paisagem ao longo dos sculos,
antes de qualquer interveno do poder pblico. Considerando o ambiente que conhecemos a
partir de uma tica dinmica, onde a transformao e a sucesso so formas de preservao da
biodiversidade, esta uma verdade evidente, pois durante centenas de anos as populaes que
hoje conhecemos como tradicionais interagiram com o ambiente, explorando-o e formando-o
de acordo com suas necessidades.
No entanto, a simples ideia de que o ser humano capaz de cuidar da preservao da
natureza representa uma forma de relacionamento com o meio cujo conceito pode parecer
estranho para a maioria destas populaes que vivem h sculos em estreito contato com o
meio natural e suas incertezas. Nestes casos, onde a proximidade e a dependncia do meio
ambiente fazem parte do cotidiano das populaes, deveramos antes falar de uma relao de
interao do que de uma relao de cuidado. Isto porque cuidar implicaria em uma relao de poder de uma parte sobre a outra, no caso do homem sobre o meio. Esta relao de poder
impossvel, porm, de ser compreendida sem o acesso a um determinado tipo de tecnologia
indisponvel, pelo menos at recentemente, para o caiara. Ainda que houvesse este acesso,
esta relao seria singularmente diversa em um contexto histrico no qual o meio ambiente
surge como uma fonte aparentemente ilimitada de recursos. Alm disso, cuidar implicaria igualmente em uma ideia de separao entre aquele que cuida e o que cuidado, um conceito
de humanidade, portanto, bastante particular em relao ao ambiente. Um conceito que
implica na ideia de um sujeito e de uma sociedade autnomos em relao ao meio fsico onde
se inserem.
9
A introduo de conceitos como sustentabilidade, definida em relao a contextos
regionais ou globais, em si s altera significativamente a relao de interdependncia entre o
fazer humano e seu ambiente local, questionando a continuidade natural entre o indivduo e
seu entorno ao estabelecer uma separao e uma supremacia entre o homem e a natureza. O
reconhecimento de uma fragilidade da natureza frente ao fazer humano hierarquiza um mundo
no hierarquizado, estabelecendo uma relao de poder entre o fazer humano e o imaginrio
que representaria tradicionalmente o poder e a autonomia do mundo natural frente ao homem.
O ambiente, assim, destitudo de sua mtica, desencantando um mundo mgico onde o
caiara encontrava grande parte de sua identidade em uma relao dialgica de continuidade e
alteridade com a natureza.
Mantm-se, portanto a mesma lgica culturalista que tem por princpio a ruptura entre a sociedade e a natureza, repetida pela separao entre o homem e a natureza, entre a
histria e a natureza, entre as cincias do homem e as da natureza (DIEGUES, 2001, p. 48). Apenas acrescenta-se o conhecimento ecolgico sobre a fragilidade do planeta e a
necessidade fsica de manuteno de uma outra ordem de usos humanos da natureza.
Devemos considerar que, a despeito de qualquer viso do caiara como um bom selvagem ecologicamente correto, as comunidades caiaras, assim como outros grupos que hoje denominamos tradicionais, transformaram profundamente o ambiente natural onde
habitam. Deste modo, a suposta conservao ambiental atribuda ao manejo do ambiente por
parte destas populaes pode perfeitamente ser considerada como a conjuno de fatores
demogrficos, tecnolgicos e culturais particulares a um determinado processo histrico de
excluso. A conjuno destes fatores resulta na necessidade tradicional de preservao de um
determinado modo de vida cujas caractersticas so imanentes condio caiara, e no a uma
determinada atitude consciente, em termos de uma construo racionalista, sobre a necessidade de um manejo ambiental visando a preservao de uma natureza global.
Na medida em que o ambiente seja desencantado e que a populao se afaste da
relao de proximidade e dependncia em relao ao meio, que ele no seja mais o meio de
sustento destas populaes, que a construo de pousadas, casas, estradas e restaurantes
transforme-se na principal ocupao destes habitantes, a ideia de conservao do ambiente
abre espao para a transformao da tica culturalista em uma tica neonaturalista, que prope
[...] uma sociedade para a qual a natureza um lugar onde o homem pode
desabrochar; uma realidade aberta que ele pode ajudar a se
desenvolver.Nessa perspectiva, a sociedade pode descobrir que a natureza
no uma realidade plcida, uniforme, em perfeito equilbrio. Ao contrrio,
ela diversidade, criao constante de diversidades, existncia
complementar de cada fora e de cada espcie. A regra a divergncia, e a
evoluo se faz sob o signo da divergncia.Esse novo naturalismo ativo
incita a dar a palavra a cada cultura, a cada regio e a cada coletividade, a
deixar a cada um o que produziu. Trabalho, linguagem, costumes,tcnicas,
cincias podem ser emprestadas e se inter-cambiam, em vez de se
impor.Nesse sentido, se entende a necessidade de tornar a vida mais
"selvagem" (en sauvager la vie), estreitando os vnculos entre o homem e a
natureza (DIEGUES, 2001, p. 50).
O manejo dos recursos naturais pelo caiara implica em um determinado saber sobre o
meio, voltado para a preservao dos recursos necessrios manuteno da comunidade, mas
trata-se fundamentalmente de uma adequao a uma srie de fatores especficos e no
refletem uma concepo semelhante nossa concepo de sustentabilidade ou transcendncia
que partem de uma ideia global de natureza. Existe uma diferena fundamental entre uma
relao de domnio mtuo, implcito na relao social, onde o homem e o meio vivem em
10
uma simbiose estreita, influenciando-se mutuamente, e uma viso global desta mesma relao
como um parasitismo, onde a explorao dos recursos naturais e o domnio do homem sobre a
natureza pode vir a matar o hospedeiro do homem ou em relao natureza como jardim com o qual as coletividades passam se relacionar afetivamente
10.
Conceitos como desenvolvimento sustentvel e uso consciente fazem parte da maioria dos discursos que tm o desenvolvimento humano das populaes caiaras. Estas
polticas incluem, porm, profundas alteraes nos modos de produo local, condenando
prticas agrcolas seculares com a coivara e o pousio, estabelecendo novas relaes do
habitante da regio com seu fazer, com o espao. Este ltimo passa a ser percebido a partir de
sua insero em um contexto supralocal, enquanto o tempo fracionado em momentos
especficos para as prticas de produo de artesanato11
ou excedentes de produtos agrcolas
para a venda, atividades anteriormente mescladas ao cotidiano.
Mas, talvez o que deve ser considerado como mais problemtico nestas polticas, elas
estabelecem uma hierarquia entre aquele que conscientiza e detm o conhecimento da verdade sobre a crena e o costume pelos quais vivia o caiara, definindo os limites entre o que pode ser definido como conhecimento e superstio, trabalhando permanentemente para a separao entre homem e natureza, destruindo os mistrios e toda a potica tradicional
que determina uma experincia nica do mundo.
No podemos deixar de perceber que isso , pelo menos potencialmente, um fator que,
lado a lado com as necessidades criadas a partir do contato com a cultura urbana e seus
valores, contribui para a desestruturao das referncias culturais que balizam o mundo
caiara. O resultado desta duplicidade entre a valorao de aspectos da cultura local a partir
de sua adequao ideolgica12
aos padres globais de produo, direitos, trabalho e tcnica
contribui definitivamente para uma nova concepo de mundo baseada na construo de uma
identidade caiara abstrata e idealizada a partir uma sntese entre o que dado na cultura e as
expectativas prprias cultura urbana. Esta sntese parte, porm, de uma relao de poder
inequvoca onde o caiara representa a parte mais frgil, tanto pela instabilidade em relao
posse da terra, como em relao s vantagens oferecidas pela sociedade envolvente.
Naturalmente, esta identidade abstrata no corresponde realidade e diversidade das
identidades reais de cada comunidade, levando necessidade de contnuos esforos para que
os caiaras aprendam sobre sua identidade, uma vez que poucos acabam se adequando ou se reconhecendo nela.
10
Deste modo, no estranho que, como discurso, a demanda por uma relao sustentvel com o meio
ambiente, apesar da introduo de novas tecnologias e informaes, aparea para o caiara como
uma tentativa de mant-lo local, impedindo ou condicionando sua insero no global de onde, paradoxalmente, surgem os desafios para sua subsistncia coletiva. Assim, no podemos estranhar a
reao de alguns moradores do Sono que suspeitam da ideia de sustentabilidade, visto que ela parece
vir de encontro ideia de desenvolvimento e, portanto, parece estar associada perpetuao de sua
situao de carncia em relao ao acesso s benesses e aos servios da sociedade industrial. 11
Onde a simples passagem de um objeto utilitrio artesanal, cuja produo este conectada a uma
necessidade diria, para a classe de artesanato, j designa seu descolamento em relao sua funo e, mesmo, aos modos de produo que determinam sua forma. Isso, porque, na medida em
que o artesanato destina-se a um pblico no local, novos modos de fazer que agreguem uma
qualidade artstica (no sentido em que empregamos a palavra) ao objeto passam a ser valoradas em
detrimento dos modos de apreciao anteriores do valor da coisa em si. 12Ideologia aqui no tem um significado valorativo, mas simplesmente significa uma aproximao do
mundo feita a partir de determinadas premissas, resultantes de um julgamento anterior sobre a
realidade, em detrimento de outras, Ou seja, uma ao que parte de uma abordagem seletiva do real a
partir do sistema de ideias que um determinado indivduo partilha com um determinado grupo ao
qual ele se sente pertencente.
11
Podemos nos questionar sobre a inevitabilidade destas transformaes. No trabalhar
pela insero destas comunidades em nossos sistemas de produo e consumo, buscando a
melhoria das condies de vida destes grupos (como ns as entendemos a partir de nosso
olhar estrangeiro), seria permitir que os processos de incorporao destes indivduos
sociedade urbana se dessem atravs de sua marginalizao, nos moldes como ocorria antes da
valorao da diversidade cultural pelas elites intelectuais contemporneas.
preciso perceber que mesmo se tentarmos delimitar as fronteiras de uma localidade
caiara como a Praia do Sono, do mesmo modo como foi percebido nos estudos de
localidades rurais nos Estados Unidos e Gr-Bretanha (FEATHERSTONE, 1996, pp. 11-12),
logo fica claro que esta est firmemente inserida em seu entorno, em constante contato no s
com a cidade mais prxima, mas tambm com os grandes centros urbanos e com a sociedade
de massa. Sua incorporao, ainda mais habitando a orla de um dos mais belos pontos do
litoral brasileiro, parece ser, portanto, inevitvel. De certo modo, isto fica evidente na
migrao mais ou menos forada dos caiaras da regio costeira de Paraty para os bairros
perifricos das cidades vizinhas em busca de melhores condies de insero no mercado de
trabalho assalariado.
Mesmo assim, no h porque no fazer crticas s polticas pblicas e s aes bem-
intencionadas de organizaes no governamentais que visam controlar estes processos,
buscando, em seu entender, salvaguardar os direitos e as identidades locais. Uma primeira
crtica que podemos fazer diz respeito ao fato dos processos de incluso normalmente
partirem de categorias muito amplas, como caiaras, quilombolas, indgenas, ribeirinhos, que
no do necessariamente conta da complexidade das relaes sociais e da diversidade cultural
que existe dentro de cada uma destas denominaes.
Pela necessidade de criao de marcos legais que faam existir juridicamente estas
identidades13
, de modo a permitir que sejam objeto da ao ou do apoio governamental, estas
identidades generalistas gestadas fora das comunidades terminam por criar tambm junto s populaes, que querem ter acesso s polticas de incluso, a necessidade de identificar-se
com uma destas identidades-modelo. Esta busca pelo reconhecimento se d, muitas vezes,
atravs da recriao de manifestaes culturais e mesmo uma memria que permitam que elas
sejam percebidas como legtimas tanto pelo olhar dos agentes externos ao grupo como pelo
prprio grupo que se esfora em aprender como ser caiara para poder ser reconhecido14. Mas no necessariamente estas identidades genricas correspondem realidade local,
dada a diversidade de situaes que encontramos em cada grupo isolado. Durante este
processo de reconhecimento externo, existe, portanto, tambm um processo de adaptao,
levando os grupos a resgatar antigos hbitos j desaparecidos em funo da prpria dinmica
interna da comunidade, ou a inserir em sua realidade os traos culturais particulares desta
13
Ou os mediadores que fazem a interlocuo delas com os governos e a sociedade. 14
Um caso exemplar nos foi contado por uma liderana Tariana em Iauaret, no Estado do Amazonas.
Verificando que a escola Tariana estava inacabada, com as paredes de tijolo de cimento e telhas de
amianto, perguntamos se a construo da escola teria sido parte do programa de salvaguarda
conectado ao Registro da Cachoeira de Iauaret pelo Iphan como lugar sagrado das etnias indgenas
do Alto Rio Negro. Ele me respondeu que no, que a escola era resultante do interesse de uma
organizao sueca. Ele acrescentou que a escola no havia ficado pronta porque a entidade havia
constatado que os indgenas no estavam construindo uma casa tradicional, como a organizao
desejava, e que os indgenas estavam utilizando materiais industriais. Por isso os suecos teriam
suspendido a verba, deixando a escola inacabada. A prxima escola seria, portanto, construda de
modo tradicional. Se a histria verdica ou no algo que no sabemos, mas fica claro que aqueles indgenas em algum momento aprenderam que era esperado deles comportarem-se como
indgenas para serem reconhecidos como tais.
12
identidade abstrata que identificariam a tradio15
caiara para o olhar estrangeiro. Trata-se,
pois, de uma incluso excludente de todo um mundo e de toda uma lgica intrnseca
realidade de cada grupo considerado isoladamente em seu processo de formao histrica.
Em outras palavras, submete-se a dinmica local ao global.
Na regio da Costa Verde do Estado do Rio de Janeiro16
, temos como caso exemplar
que demonstra a complexidade que existe nos processos de reconhecimento e criao de
identidades o quilombo do Campinho e a transformao das identidades do caiara negro em
quilombola, com a ativa participao de agentes externos neste processo de construo de
uma nova identidade (RIBEIRO DE LIMA, 2008). Um aprofundamento nas questes
suscitadas por estas construes pode ser feita a partir da questo das prticas religiosas nestas
comunidades e a questo do resgate das religies de matriz africana que acompanham o que
pode ser considerado o esteretipo de uma identidade negra. Uma discusso a este respeito pode ser encontrada nos artigos de ODwyer (2005) e Campos (2009).
Este trabalho tem, assim, como objetivos:
1) Questionar as relaes de poder subjacentes s polticas de desenvolvimento
sustentvel e preservao de identidades;
2) Afirmar a necessidade de agregar outros instrumentos, como a compreenso dos
afetos e da sensibilidade particular aos grupos afetados pelas polticas de desenvolvimento,
analisando a importncia da compreenso da dimenso simblica do Encantamento e das
formas de juzo esttico envolvidos nas relaes entre o indivduo, o grupo e seu meio;
3) Demonstrar que a questo da identidade e continuidade cultural destes grupos que
permaneceram margem das principais correntes de desenvolvimento econmico vai alm
das abordagens seletivas que so construdas nas polticas de incluso social que se constroem
a partir da identificao de uma diversidade formal racionalmente objetivada;
4) Afirmar o carter potico das construes do espao sensvel e sua importncia para
compreendermos a cultura do grupo com o qual trabalhamos e os processos de mudana que o
contato, mesmo o mais bem intencionado, impe identidade e s estruturas atravs das quais
o grupo constri sua identidade.
Estas so questes importantes atualmente para a comunidade da Praia do Sono e
influenciam diretamente nas relaes que os moradores estabelecem com visitantes e
pesquisadores que chegam comunidade, pois eles so inevitavelmente vistos como possveis
aliados polticos na luta pela permanncia na terra e reconhecimento daquela populao como
caiara e, portanto, tradicional. A preocupao em no nos posicionarmos como um aliado poltico marcou profundamente o contato com os moradores e, talvez, tenha
representado a principal dificuldade metodolgica durante o trabalho de campo.
Diante deste contexto de aproximao entre a populao, agentes do poder pblico e
organizaes no governamentais, discutiremos como a experincia individual do
Encantamento do mundo pode ser considerada em si mesma, enquanto referncia cultural
primordial, como uma manifestao esttica particularmente relevante para as comunidades
tradicionais rurais17
, sendo determinante para a compreenso das dinmicas que regem as
interaes entre estas comunidades e a sociedade envolvente.
15Considerando tradio como um conjunto de mensagens que um grupo social considera ter recebido
de seus antepassados e que deve transmitir de uma gerao para outra (RONDELLI, 1993, p. 28). 16
Regio litornea que abrange os municpios da Mangaratiba, Angra dos Reis e Paraty. 17
No podemos definir um grupo ou espao como rural somente por uma determinada caracterstica,
mas por um somatrio delas. Segundo Jos de Souza Martins, o trao mais importante que distingue
o rural do urbano seria a diferena ambiental, onde a primeira seria caracterizada por uma viso de
natureza como entidade reificada, como coisa alheia interferncia e produo humanas, como dimenso causal (MARTINS, 1986, p. 29). Para este trabalho consideramos o termo rural como um
13
Pretendemos demonstrar como, incorporando nas polticas de incluso e preservao
os instrumentos fornecidos pela teoria esttica a toda uma srie de matrizes, hbitos e modos
de viver, o reconhecimento da relevncia do Encantamento do real contribui definitivamente
para a coeso e perpetuao do campo simblico. Para isso ser preciso verificar, fazendo um
paralelismo entre a experincia mgica e a esttica, como a experincia imediata e singular do
indivduo na Praia do Sono se traduz e reproduz coletivamente na forma de um campo de
significaes particulares que abriga a relao entre homem e ambiente na experincia
caiara.
Esta apropriao coletiva das experincias individuais permitiria a particularizao de
um espao vivencial da comunidade, construdo atravs de uma alteridade atravs do qual ele
mesmo definido enquanto territrio. Esta alteridade se encontraria na construo de uma
paisagem simblica atravs de narrativas particulares que permitem ao grupo uma passagem
por um segmento do real que poderamos caracterizar como um no-eu. Esta identificao coletiva com uma realidade fora do real complementar ao cotidiano definiria uma determinada formulao particular das identidades locais
18.
Alguns autores podem ser identificados claramente como centrais neste trabalho,
mesmo quando no diretamente citados, como o caso do pensamento do gegrafo Simon
Schama, cuja presena pode ser percebida na compreenso das relaes intersubjetivas entre a
experincia, a memria, o espao e a percepo esttica. Devemos acrescentar ainda que, at
pela dificuldade em obter fontes bibliogrficas em Paraty, este trabalho foi obrigado a utilizar-
se seguidamente de fontes eletrnicas para a leitura de artigos e mesmo livros inteiros, mas
sempre que possvel fomos diretamente ao original.
Nossa formao em artes e patrimnio cultural, disciplinas hoje organizadas pelas Cincias Sociais no mbito do Programa CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro19
, de modo que podemos encarar este trabalho pelo que ele ; uma pesquisa em torno
somatrio das condies ambientais, das condies econmicas e das referncias culturais de um
determinado grupo. Ou seja, aqui nos referimos a grupo rural considerando um determinado que
tenha como caractersticas fundamentais a) ser um conjunto de indivduos assentados h vrias
geraes em um lugar cuja morfologia ainda guarda suficientes referncias fsicas ao ambiente
anterior ocupao, seja em termos de relevo, seja em termos de vegetao b) ter a base econmica
de sua subsistncia relacionada com o uso dos recursos naturais do local, seja atravs da pesca, da
prtica agrcola, seja do turismo ecolgico; ter suas referncias culturais relacionadas com um ou
outro dos aspectos anteriores, meio ambiente ou modos de vida.
Para referncias culturais utilizamos a definio de Maria Ceclia Londres Fonseca (2001, p.113):
Falar em referncias culturais nesse caso significa, pois, dirigir o olhar para representaes que configuram uma identidade da regio para seus habitantes, e que remetem paisagem, s edificaes
e objetos, aos fazeres e saberes, s crenas, hbitos, etc. de modo que o ato de apreender referncias culturais pressupe no apenas a captao de determinadas representaes simblicas,
como tambm a elaborao de relaes entre elas e a construo de sistemas que falem daquele
contexto cultural, no sentido de represent-lo. Nessa perspectiva, os sujeitos dos diferentes contextos
culturais tm um papel no apenas de informantes como tambm de intrpretes de seu patrimnio
cultural. 18
Este processo encontra paralelo na formulao do indivduo burgus que dada a sua autonomia s
pode definir-se atravs do desvio pelo outro, pelos descaminhos da viagem de formao (SELIGMAN-SILVA, 2005, p. 270). Esta autonomia do indivduo de certa forma igualmente
experimentada pelo caiara, uma vez que este no est sujeito a uma coero social alm das
restries dos laos familiares e das relaes interpessoais imediatas. Mas, ao contrrio do sujeito
ocidental puro, a razo no ocupa um lugar especial na criao deste no-eu, realando a experincia
como forma de informao principal sobre a realidade. 19
No mbito das premissas da Linha de Pesquisa Estudos de Cultura e Mundo Rural que analisa os
processos de produo de significaes culturais sobre o mundo rural. Tais processos, constituintes
14
do imaginrio e as relaes de significado construdas e compartilhadas historicamente pelos
moradores da comunidade da Praia do Sono com os aspectos imaginrios da paisagem.
Este trabalho est dividido em trs partes: a primeira apresenta uma caracterizao da
comunidade da vila do Sono, comeando pelo povoamento de Paraty, passando por algumas
definies de identidade caiara chegando, finalmente, prpria descrio fsica do local.
Neste contexto, foi interessante poder contextualizar a populao com a qual trabalhamos em
relao ao ncleo urbano sede do municpio e em relao ao histrico de ocupao da rea da
Praia do Sono.
Nesta seco utilizamos os dados coletados no dossi submetido UNESCO pelo
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, visando a obteno do ttulo de
Patrimnio Cultural da Humanidade para a cidade e regio de Paraty. Utilizamos tambm a
excelente dissertao de Mestrado da Tcnica do Iphan, Isabelle Cury sobre a formao do
ncleo histrico de Paraty. Naturalmente existiram diversas conversas com antigos
moradores e conhecedores das histrias da cidade, como aquelas travadas com o senhor
Diurner Mello, ento presidente da Casa de Cultura de Paraty, que contriburam para dar um
aspecto mais humano e cotidiano ao texto escrito. Na caracterizao das populaes caiaras
nos apoiaremos principalmente em trabalhos de ADAMS (1999), NOGARA; CORTINES
(2011) e CARVALHO (2010) e GOMES JUNIOR (2005). Na relao destas populaes com
seu ambiente fsico nos referimos principalmente contribuio de DEAN (1996).
Discutiremos em seguida a questo da mudana sociocultural e as polticas de
preservao, fundamentando nosso pensamento em CANDIDO (2001), POLANYI (2000),
SANDRONI (2006), VIVEIROS DE CASTRO CAVALCANTI (2006), PORTO-
GONALVEZ (2010), HABERMAS (2002) e em documentos relativos s aes de proteo
do Patrimnio Imaterial produzidos pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Nacional IPHAN (2006, 2008, 2011, 2012). A segunda parte deste trabalho corresponde coleta de informaes de campo a partir
de entrevistas abertas com moradores da comunidade da Praia do Sono. Nela apresentaremos
algumas das narrativas existentes na Praia do Sono e os lugares de Malassombra20
, lugares
que prefiro chamar de Transformao21
, descrevendo a geografia sensvel que define os
das experincias e relaes sociais, so percebidos como espaos em disputa.Esta perspectiva inclui
discursos textuais e iconogrficos que constroem as definies de rural e urbano, do moderno e dos
processos de urbanizao, da noo de desenvolvimento e das estratgias e instituies condizentes,
da cultura poltica e do pensamento social.Ela tambm refere s consequncias dos processos de
constituio identitrias dos atores e das identidades sociais.Outorga ateno especial dimenso
histrica e atenta tanto para a recuperao de memrias e tradies como para a sua reinveno
permanente, a partir de processos complexos de criao/hibridizao (Fonte: http://r1.ufrrj.br/cpda/linhas-de-pesquisa/estudos-de-cultura-e-mundo-rural/)
20Malassombra um termo nativo que poderamos comparar ao que chamaramos popularmente de assombrao. No entanto, o Malassombra no tem necessariamente conexo com espritos ou entidades, restringindo-se ao ato de percepo de algo que, em um lapso de tempo, parece estranho
aos sentidos e interpretao normal de uma determinada situao. 21
As Casas de Transformao esto inscritas nas narrativas das etnias do Alto Rio Negro e descrevem
como os povos indgenas do Alto Rio Negro vo sendo paulatinamente transformados em gente,
adquirindo qualidades humanas, hbitos culturais e tornando-se visveis ao longo do percurso entre o
Lago de Leite (supostamente a Baa de Guanabara) e o Alto Rio Negro. Em algumas narrativas estes stios de parada onde ocorrem as fases desta metamorfose so chamados Casas de Transformao. Sobre a mitologia dos povos indgenas do Alto Rio Negro ver: Livro dos Antigos Desana Guahari Diputiro Por / narradores Trmu Bayaru/Wenceslau Sampaio Galvo), Guahari Te i (Raimundo Castro Galvo). So Gabriel da Cachoeira: FOIRN; comunidade
do Pato no Mdio Rio Papuri, AM: ONIMRP, 2004;
15
valores de Encantamento do espao e a possibilidade de uma percepo do Maravilhoso em
cada um deles. As abordagens sobre o tema do Encantamento so baseadas em HOEFLE
(2009), SLATER (2001) e DIEGUES (1998).
Continuando a segunda parte deste trabalho, discutiremos a questo da Esttica na
relao da subjetividade na percepo do corpo, do sagrado, da magia, do Fantstico e do
Maravilhoso, utilizando como referncia textos de BERGER e LUCKMAN (1985) SEEGER
et al.(1987), EVANS-PRITCHARD (s/d), DOUGLAS (1991) BOAS (1947), MAUSS (2003),
LVI-STRAUSS (1985, 1987, 1988, 2003), MARIN et KASPER (2009), BENJAMIN
(1977), TODOROV (2006) e EAGLETON (1993).
Trataremos do entendimento de uma abordagem esttica como instrumento atravs do
qual podemos entender o conceito de Encantamento como a crena em um campo simblico
socialmente construdo. Traremos, finalmente, a questo de como este campo poderia
legitimar uma fruio especial de determinadas situaes ou classes de objetos. As principais
referncias para esta discusso vamos encontraremos em KANT (1995),mas tambm
trabalharemos com autores ligados especificamente ao campo da crtica da Arte, como
GOMBRICH (1972), BARTHES (1970), MUKAROVSK (1993), DUVIGNAUD (1970,
1984), FRANCASTEL (1970).
2 A MUDANA E A POLTICADE PRESERVAO
Este um trabalho que surge de um questionamento anterior sobre o lugar da Arte e da
Esttica nas polticas de preservao da cultura e transmisso de saberes quando colocados
frente ao conceito de sustentabilidade e preservao da diversidade cultural. Esta
preocupao surge a partir dos casos de ao pblica ou privada (muitas vezes interligadas)
em comunidades que apresentavam como produo cultural um determinado saber fazer artesanal ou ainda preservavam determinados conhecimentos transmitidos oralmente que
foram valorados como importantes para o entendimento da identidade nacional ou por sua
especificidade.
Porm, nossa preocupao foi centrada especialmente naqueles grupos onde no eram
mais praticados os rituais considerados como tradicionais, ou nos casos em que estes apareciam desvalorizados. Nossa abordagem passa, portanto, pelo trabalho de
contextualizao dos processos de transformao dos grupos quando realizado a partir de uma
construo terica que parte do reconhecimento de traos de autenticidade, marcados pelo exerccio formal e cotidiano das referncias culturais, em direo dissoluo ou ameaa
Pamiri-Masa: A Origem de Nosso Mundo: revitalizando as culturas indgenas dos Rios Uaups e
Papuri. Crispiniano Carvalho (Org.). So Paulo:Sade Sem Limites, 2004.
No h como negar, porm, que se trata tambm de uma manifestao de reconhecimento para com
os indgenas do Alto Rio Negro, em especial os senhores Guilherme Oy e Laureano Maia Oy, e sua disponibilidade em travar extensas conversas sobre sua luta pela preservao e resgate das
identidades indgenas do Alto Rio Negro. Estas tentativas de resgate e revitalizao ocorrem aps
um longo perodo de estreito contato com as misses Salesianas, com entidades civis no-indgenas
de pesquisa e desenvolvimento, com os governos brasileiros e com as polticas pblicas de proteo
ao patrimnio cultural imaterial destes povos. No mbito deste esforo, a Cachoeira de Iauaret, no
encontro dos Rios Uaups e Papuri, na fronteira com a Colmbia Registrada como Patrimnio
Cultural Brasileiro desde 2006, inscrita Lugar Sagrado dos Povos Indgenas dos Rios Uaups e
Papuri (Fonte: www.portal.iphan.gov.br).
16
destas prticas. a partir deste reconhecimento que surge a identificao da necessidade de
processos de resgate e salvaguarda como forma de preservar a identidade coletiva. Com isso
pretende-se garantir no somente a preservao da diversidade cultural, mas, igualmente,
dirigir os processos de absoro descontrolada dos grupos perifricos, garantindo um
determinado controle sobre estes processos e a criao de identidades coletivas que possam
negociar suas prprias formas de incluso.
As diversas aes de resgate cultural entendem a valorao desta cultura material e
ritualstica como uma das principais formas de controle sobre os processos de mudana na
cultura de um determinado grupo frente dominao e marginalizao decorrentes da
incorporao de uma lgica hegemnica exterior ao grupo, lgica considerada superior e
normalmente trazida por contatos diretos com a sociedade envolvente.
A prpria visibilidade destas manifestaes, a sua recorrncia em grupos com
caractersticas semelhantes e a existncia de registros anteriores feitos por pesquisadores,
viajantes e folcloristas provavelmente contribui para esta nfase no que manifesto e material
na cultura. Estas manifestaes de identidade ganham, ento, um cunho singularmente
ahistrico, por desprendem-se da realidade contempornea das comunidades, de suas
transformaes e de seus sentidos particulares. Assim, existe frequentemente a necessidade
de ressignificao destas manifestaes em outro contexto cuja formatao decorre
igualmente das necessidade e valores da mesma lgica dominante.
Assim, a questo que se coloca uma avaliao do quanto estas aes de
salvaguarda da cultura local tambm poderiam representar uma adeso a uma lgica incorporada ao grupo atravs do contato com representantes legitimados da cultura
hegemnica, em detrimento dos contextos simblicos e mgicos que davam sentido a estas
manifestaes em seu contexto anterior na cultura.
Ou seja, a questo seria colocar at que o ponto o controle da mudana pela separao
moderna entre as essncias e os fenmenos (TOURAINE, 2002, p. 200), no seria, em si
mesmo, uma mudana, mesmo que socialmente mais justa, na direo da incorporao destas
mesmas identidades cultura dominante, pois se as obras culturais esto separadas do conjunto histrico onde elas aparecem, seu valor no pode mais ser definido seno pelo
mercado (TOURAINE, 2002, P. 201). Naturalmente, entende-se aqui como mercado no somente o valor monetrio, mas seu valor de troca simblica nos termos formulados por
Pierre Bourdieu em La Distintion (1982), especificamente no captulo relativo ao mercado de
bens simblicos.
Este trabalho , tambm, o resultado dos questionamentos que mais de trs dcadas
produzindo arte e convivendo com artistas fizeram surgir quando, a partir de 2006, passei a
acompanhar, no mbito do Programa Nacional do Patrimnio Imaterial PNPI do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional - Iphan, o trabalho de identificao do Patrimnio
Cultural Brasileiro de Natureza Imaterial junto diversas populaes que habitavam pequenas
comunidades da zona rural em diferentes recantos do pas.
Tambm no mbito do PNPI, tive a oportunidade de acompanhar diversas
apresentaes de trabalhos, realizados por equipes multidisciplinares contratadas pelo Iphan,
para realizar este trabalho de identificao. Estas contrataes so atualmente uma prtica
usual adotada pelo Instituto, visto a escassez de servidores em todas as reas e
especificamente de servidores habilitados nesta rea de atuao. Elas, porm, contriburam
para uma compreenso das polticas de incluso e desenvolvimento levadas a cabo por
pesquisadores pertencentes a outras entidades no ligadas diretamente ao servio pblico.
Estes trabalhos aumentaram ainda mais minha inquietao em relao ao lugar e
forma como o campo de reflexes pertencente ao domnio da Esttica desaparecia nas
discusses sobre os aspectos imateriais das culturas estudadas em busca dos traos de sua
especificidade, do tradicional, do objeto de arte e do o fazer artesanal.
17
Em sua ampla maioria, contudo, a questo das manifestaes culturais e a discusso
sobre a sensibilidade dos grupos ao meio cultural parece aproximar-se demasiado de uma
viso etnocntrica, viso ainda bastante centrada na questo da obra e da forma atravs da
identificao de padres, modos de fazer, objetos decorativos, msicas, danas, pinturas,
smbolos em busca da identificao de uma tradio particular da cultura material e imaterial
local, na busca de determinados estilos, ou fases. A presena da esttica surgia apenas nos aspectos visuais e narrativos das celebraes e modos de fazer, normalmente relacionados
com os modos de vida de um determinado segmento do grupo, como manifestaes coletivas
de identidade ou como trabalho de alguns mestres. Em suma, tudo se assemelhava por
demasia nossa prpria concepo de arte, partindo da definio de um grupo criador nos grupos estudados, ciente de sua memria, semelhante aos nossos artistas.
Esta atitude naturalmente excluiria praticamente todo este grupo de comunidades
perifricas onde estas manifestaes visveis no pareciam absolutamente existir a no ser como uma manifestao menor do gosto individual levando a uma diviso entre aqueles grupos que preservariam melhor suas tradies e aqueles outros onde estas tradies estariam
diludas ou teriam sido perdidas, como se com isso desaparecesse toda a forma de sensibilidade particular a estes grupos.
Para estes ltimos seria necessrio, portanto, um processo de resgate ou recuperao
de sua identidade tradicional, enquanto para os primeiros deveriam ser feitas aes de proteo contra a dissipao das manifestaes valoradas como estruturantes para a identidade
local. O artigo de Hoefle (2009) que inclumos entre as referncias deste trabalho discute este
problema com propriedade.
Devemos destacar que o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,
reconhece o carter dinmico e processual das manifestaes culturais fundadas na tradio e manifestadas por indivduos ou grupos de indivduos como expresso de sua identidade cultural e
social, devendo o termo tradio significar aqui as prticas produtivas, rituais e simblicas que so atravs do tempo constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um
vnculo do presente com o seu passado.22
No entanto, a documentao exigida pelo Iphan para a abertura de um processo de
Registro23
de um bem referente ao Patrimnio Cultural Brasileiro de Natureza Imaterial
indica claramente que este bem dever ser considerado prioritariamente a partir de sua
materialidade ou visualidade e no em relao aos aspectos intangveis atravs dos quais
estas manifestaes se relacionam com o grupo. Assim, considera-se que o vnculo entre o
passado e o presente parece poder ser percebido na identificao da permanncia formal de
um determinado ritual, prticas produtivas ou simblicas.
Isto pode ser perfeitamente inferido da exigncia, contida na mesma Resoluo Iphan
n 001 de 03 de agosto de 2006, de uma descrio pormenorizada do bem que possibilite a apreenso de sua complexidade e contemple a identificao de atores e significados atribudos ao
bem; processos de produo, circulao e consumo; contexto cultural especfico e outras informaes
pertinentes.
22
Resoluo Iphan 001 de 03 de agosto de 2006, publicada no Dirio Oficial da Unio no dia 23 de
maro de 2007, que regulamenta os processos de e instruo tcnica dos processos administrativos
de Registro. 23
Definio extrada do Decreto 3.551/2000, que institui o Registro dos Bens do Patrimnio Cultural
Brasileiro de natureza imaterial . Desde sua publicao o instrumento do Registro, incorporado a
diversas legislaes estaduais e municipais, passa a ser uma das principais polticas pblicas de
reconhecimento das manifestaes culturais consideradas como relevantes para a identidade
nacional.
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So solicitadas ainda referncias formao e continuidade histrica24 do bem, assim como s transformaes ocorridas ao longo do tempo [grifos nossos]. Tambm aqui est claramen
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