Fernando Ildio da Silva Ferreira
O ESTUDO DO LOCAL EM EDUCAO Dinmicas Socioeducativas em Paredes de Coura
Instituto de Estudos da Criana
UNIVERSIDADE DO MINHO Braga Janeiro de 2003
II
Fernando Ildio da Silva Ferreira
O ESTUDO DO LOCAL EM EDUCAO Dinmicas Socioeducativas em Paredes de Coura
Dissertao de Doutoramento
em Estudos da Criana
Instituto de Estudos da Criana
UNIVERSIDADE DO MINHO Braga Janeiro de 2003
III
IV
Agradecimentos
Um percurso de investigao de mbito de doutoramento contm perodos
longos de recolhimento, principalmente na fase de escrita da dissertao. Porm, tal
no significa que o percurso se converta num empreendimento solitrio, por maioria de
razo, tratando-se, no presente trabalho, de uma investigao etnogrfica, que , na
sua essncia, colectiva e colaborativa. Neste tipo de pesquisa de terreno, o relatrio
final conta uma histria, na qual o investigador o narrador-escritor, mas tambm
um actor que contracena com outros actores no palco da aco concreta. Neste
sentido, o trabalho tem as marcas da colaborao de muitas pessoas, a quem deixo
aqui expresso o mais profundo reconhecimento.
Agradeo, em primeiro lugar, a abertura e disponibilidade manifestadas por
diversos profissionais, servios e instituies que desenvolvem, ou desenvolveram, a
sua actividade no concelho de Paredes de Coura. No podendo nome-los a todos,
agradeo, de uma maneira geral, aos professores do 1 ciclo do ensino bsico e
educadores de infncia, aos profissionais e dirigentes que trabalham ou trabalharam
no OUSAM, ao Centro de Formao das Escolas de Paredes de Coura, aos membros
do Conselho Executivo do Agrupamento Territrio Educativo de Coura, aos
profissionais envolvidos no Projecto de luta contra a pobreza e a excluso social
Terras de Coyra, a outros profissionais que trabalham no Centro de Sade e nos
servios locais do Centro Regional de Segurana Social, Cmara Municipal de
Paredes de Coura e a vrias Juntas de Freguesia. Agradeo, em particular, ao Manuel
Monteiro, pois foi ele quem, em grande medida, facilitou o acesso e a ligao
prolongada ao terreno, principalmente, no mbito do Centro de Formao, do OUSAM
e do Projecto Terras de Coyra, tendo-se cimentado ao longo do processo de
investigao laos de amizade, com muitas pessoas, que perduram para alm dele.
Finalmente, destaco o papel de familiares, amigos e colegas, com quem tenho
partilhado este e outros caminhos. Dirijo um agradecimento especial a Joo
Formosinho, meu orientador, pelos diversos projectos em que temos estado
envolvidos e que tm constitudo importantes factores de desenvolvimento
profissional. Ao meu irmo Jos Ferreira, agradeo a disponibilidade que prontamente
revelou para fazer uma reviso do texto desta dissertao. Isabel, Dnia e ao
Daniel, dedico este trabalho, pela sua presena constante e afectuosa e por terem
sabido conviver com a minha presena, algumas vezes ausente, diante do
computador.
V
N D I C E
INTRODUO .. 1
PRIMEIRA PARTE
CONSTRUINDO UMA PROBLEMTICA E UM OBJECTO DE ESTUDO: O LOCAL COMO UNIVERSO COMPSITO
CAPTULO I As trs ltimas dcadas do sculo XX: o local e o global nas sociedades contemporneas
1. Sinais de um tempo de transio: a mudana de paradigma 19
2. Dois temas em debate: as classes sociais e as instituies .... 30
2.1. O tema das classes sociais: das desigualdades excluso . 32
2.2. O tema das instituies: o caso da escola pblica . 41
3. O local, o global e o nacional em recomposio . 48
3.1. Os fenmenos de globalizao e de localizao 51
3.2. A questo do Estado nacional, da poltica e da democracia 58
3.3. A anlise das polticas e da aco pblicas 63
CAPTULO II Para o estudo das polticas e das dinmicas socioeducativas a partir de um contexto de aco concreta
1. O estudo do local em educao . 69
1.1. A educao no apenas a escola e o local no apenas o lugar ................. 75
1.2. A territorializao das polticas e da aco educativas 91
2. Posicionamento epistemolgico: prioridade descoberta do terreno .. 101
2.1. Os conceitos de autonomia relativa e de lgicas de aco . 106
2.2. Prioridade descoberta do terreno .. 114
3. O contexto e a metodologia do estudo .. 123
3.1. O mtodo: o estudo de caso etnogrfico . 124
3.2. O dispositivo de colheita e anlise de dados .. 132
3.3. Um contexto e dois pontos de entrada para a realizao do estudo 137
3.3.1. O contexto: o concelho de Paredes de Coura ................................................ 137
VI
3.3.2. Primeiro ponto de entrada: o OUSAM e as dinmicas locais de animao
infantil e comunitria ..
152
3.3.3. Segundo ponto de entrada: a escola rural e as dinmicas locais de
reordenamento da rede escolar .................
159
SEGUNDA PARTE
O CONTEXTO E A NARRATIVA: ESTUDO DAS DINMICAS SOCIOEDUCATIVAS NO CONCELHO DE
PAREDES DE COURA
CAPTULO III O OUSAM e as dinmicas de animao infantil e comunitria
1. A gnese do OUSAM como Projecto: descoberta do ser criana
construindo a comunidade no meio rural .
169
2. De projecto a servio: a institucionalizao .. 190
3. Desafios e tenses de um processo de mudana ................. 209
4. Excesso de passado e dfice de presente: o fim dos militantes? . 238
5. A impregnao do social pela forma escolar ....... 253
6. O trabalho de educao de infncia: entre a sala e a comunidade .... 262
7. O trabalho social: entre o projecto e o programa ... 288
CAPTULO IV A escola rural e as dinmicas de reordenamento da rede escolar
1. No princpio era a EBI: o Projecto da Escola Bsica Integrada .. 317
2. Do projecto Comisso de Reestruturao da Rede Escolar: as
ambiguidades da participao ......................
333
3. Da EBI ao Agrupamento de Escolas: excesso de futuro e dfice de presente 353
4. O Agrupamento de Escolas Territrio Educativo de Coura: a azfama
burocrtica ..
370
5. As mudanas vistas pelos professores: o imaginrio da forma escolar disciplinar 386
6. A concentrao vista: a controvrsia .............. 405
VII
TERCEIRA PARTE
TRS PROBLEMTICAS, TRS PALAVRAS-CHAVE: ANIMAO, GESTO E PARCERIA
CAPTULO V Educao e desenvolvimento local. Palavra-chave: animao
1. O conceito de desenvolvimento e a abordagem do Desenvolvimento Local ... 431
2. Um debate sobre o mundo rural, a partir da anlise crtica de um estudo de
oportunidades de desenvolvimento realizado em Paredes de Coura .
438
3. Uma anlise crtica da viso escolocntrica da relao entre educao e
desenvolvimento .
451
4. Palavra-chave: animao .. 460
CAPTULO VI As reformas educativas dos anos 80-90. Palavra-chave: gesto
1. A propagao de um esprito gestionrio: a onda neoliberal e a ideologia da
modernizao .......................................
473
2. A persistncia da lgica de reforma, no contexto das polticas de autonomia e
gesto da escola ..
488
3. Palavra-chave: gesto .................. 503
CAPTULO VII O novo esprito das polticas sociais pblicas. Palavra-chave: parceria
1. A formao de um mundo conexionista: a metfora da rede . 517
2. A poltica do dilogo, no perodo de governao do Partido Socialista 531
3. Transformaes na esfera do Estado e da aco pblica: a lgica contratual 536
3.1. As novas estratgias de aco estatal ... 537
3.2. A lgica contratual das polticas sociais pblicas . 542
4. Palavra-chave: parceria . 552
CONCLUSO ... 567
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS . 593
RESUMO/ABSTRACT... 631
1
INTRODUO
O objecto: o estudo do local em educao
As trs ltimas dcadas do sculo XX foram palco de um renovado
interesse pelo local, em termos polticos e cientficos. Este interesse no
novo, pois trata-se de um ressurgimento, ou de uma redescoberta, num
contexto em que se verifica, por um lado, uma crise de legitimidade do Estado
nacional e de procura, por parte deste, de novas estratgias de relegitimao e,
por outro, a ocorrncia de fenmenos simultneos de globalizao e de
relocalizao. Este renovado interesse pelo local est associado, igualmente,
crescente complexidade dos problemas sociais do desemprego, da pobreza, da
excluso e da sua tambm crescente visibilidade social, poltica, cientfica e
meditica , os quais emergiram ou se agravaram durante este perodo, e
incapacidade demonstrada e reconhecida pelos prprios poderes pblicos
centrais de encontrarem solues para os mesmos. Assim, se, por um lado, o
renovado interesse pelo local dos prprios actores locais, fomentando o
associativismo e desencadeando diversos tipos de iniciativas, por outro, do
prprio Estado, que tem vindo a assumir-se como uma instncia de regulao e
de mobilizao, procurando veicular a mensagem de que passa a
desempenhar um papel mais perifrico e a conferir o papel central aos actores
locais tradicionalmente perifricos.
Neste perodo em que o Estado se proclama como regulador,
animador, supervisor e avaliador, renunciando, tendencialmente, ao uso da
noo de controlo e utilizando, preferencialmente, noes como pilotagem,
superviso e monitorizao, torna-se necessrio que a anlise sociolgica
se interesse pelas novas estratgias de aco estatal, designadamente pelas
que tm vindo a fazer apelo descentralizao, territorializao e
contratualizao das polticas pblicas. Associadas a estes fenmenos,
diversas noes, como, autonomia, participao, projecto, contrato, parceria,
partenariado, territrio e comunidade, tm sido abundantemente utilizadas,
quer no plano da aco local quotidiana, quer ao nvel das polticas pblicas
que se tm voltado para o local como forma de relegitimao da aco estatal.
2
O seu uso tem-se generalizado de tal modo que parece ter-se tornado num
vocabulrio obrigatrio para formular, descrever e analisar os problemas
sociais e educativos contemporneos.
certo que a mudana dos tempos costuma trazer consigo novas
linguagens, mas o que mais caracterstico neste perodo o seu alargamento
aos mais diversos domnios da aco humana, a sua utilizao pelos mais
diversos actores sociais e a sua no circunscrio a um pas ou sector
especfico. Trata-se de um fenmeno que atravessa os discursos oficiais, os
media e o debate pblico, em diversas partes do mundo, nomeadamente, na
Europa. Para alm disso, este vocabulrio tem sido abundantemente utilizado,
quer pelos actores que intervm nas esferas nacional e europeia, quer pelos
actores locais; quer no domnio cientfico, quer na linguagem comum,
revelando um aparente consenso sobre a realidade social. necessrio, por
isso, analisar as lgicas que subjazem utilizao destas noes e
compreender no apenas o que elas revelam, mas tambm o que escondem.
As polticas socais pblicas, ditas territoriais e contratuais, tm vindo
a fazer apelo iniciativa local e ao trabalho em rede e em parceria, quer no
domnio escolar, atravs, por exemplo, das polticas de autonomia e de gesto
local da escola, quer noutros domnios da aco social, atravs de projectos de
luta contra a pobreza e a excluso, de iniciativas de desenvolvimento local, de
polticas municipais, de dinmicas de animao comunitria. O local parece ter-
se tornado, assim, o horizonte privilegiado das polticas e da aco
socioeducativas.
, em grande medida, em resposta s crticas ao centralismo e
burocratizao do Estado, reproduo das desigualdades e a outras crticas
que durante os anos 60 e 70 tiveram como alvo as instituies em geral e, em
particular, a Escola, que surgem as ideias descentralizadoras e os apelos aos
dinamismos locais. Porm, a proclamada devoluo de poderes ao local no se
traduz, de forma linear, como entendido e sugerido frequentemente, num
reforo do princpio da comunidade, em detrimento dos princpios do Estado e
do mercado. O mesmo fenmeno abre caminho, sobretudo a partir da dcada
de 80, a uma propagao das polticas neoliberais. Se bem que proliferem,
desde ento, os apelos autonomia, participao, democracia e
3
cidadania locais, isso acontece num contexto dominado por uma vaga de
reformas educativas assentes em lgicas de compatibilizao problemtica,
como a democratizao, a modernizao e o neoliberalismo (Lima e Afonso,
2002).
At aos anos 60, o acordo sobre as questes da Educao no era
difcil de alcanar, pois o Estado era reconhecido como a nica instncia
legtima de definio do bem comum, com base num nico princpio de justia
a igualdade de oportunidades. A partir do final dos anos 60, os princpios de
justificao pluralizaram-se, a legitimidade do Estado comeou a ser posta em
causa e tornou-se visvel a dificuldade de o acordo ser alcanado a nvel
nacional. neste contexto que se difundem as ideias de devoluo de poderes
ao local, supondo-se a possibilidade de o designado sistema educativo
nacional funcionar a partir de reajustamentos e compromissos locais, isto , a
partir da definio de um bem comum local. No entanto, tal como comeara a
revelar-se difcil alcanar o acordo a nvel nacional, tambm comeou a
verificar-se a dificuldade de ele ser alcanado a nvel local, pois este
atravessado igualmente por uma pluralidade de mundos os mundos cvico,
domstico, industrial, de mercado, da comunidade.
Tendo em conta esta complexidade, que caracteriza as sociedades
locais de hoje, Jean-Louis Derouet (2000) sustenta que uma das questes
essenciais que se coloca investigao sociolgica a da natureza das
montagens que se recompem localmente a partir dessa pluralidade de
mundos. Neste sentido, o estudo do local em educao j no pode ser feito
num registo de justificao simples, em torno de dicotomias como Estado e
mercado, centro e periferia, actor e sistema. Em grande medida, estas
dicotomias derivam de uma abordagem tradicional estadocntrica, quer em
termos polticos, quer em termos cientficos, e a superao desta abordagem
implica a utilizao de um registo de justificao compsita que articule a
observao local com a reflexo sobre os aspectos mais globais do mundo em
que vivemos, incluindo a dimenso scio-histrica, de modo a contextualizar,
no espao e no tempo, o estudo das polticas e da aco educativas.
Do mesmo modo como se operaram, ao longo das trs ltimas dcadas,
profundas mudanas societais, tambm se verificaram mudanas do ponto de
4
vista epistemolgico, com implicaes na anlise, interpretao e explicao
das dinmicas sociais e educativas. A reemergncia da problemtica do local
na investigao sociolgica em educao, a partir dos anos 70 e, sobretudo,
durante os anos 80, est vinculada, por um lado, s transformaes
econmicas e sociais e do prprio Estado e da aco pblica, e, por outro, a
transformaes internas prpria disciplina, com o retorno do actor, o
interesse pelos estudos microssociolgicos, o desenvolvimento do trabalho de
terreno e a passagem de uma abordagem causal para uma abordagem
Interpretativa (Van Zanten; Derouet e Sirota, 1987a e 1987b). Sobretudo
atravs de abordagens etnogrficas, assiste-se a uma renovao dos estudos
empricos e constituio de novos problemas e objectos cientficos
transestatais, transnacionais e transeducativos, que fazem apelo a um novo
registo em que os microfenmenos, embora possam ser encarados como micro
do ponto de vista geogrfico, no o podem ser do ponto de vista analtico.
Como tal, o seu estudo pode tornar-se possvel operando analiticamente
atravs de uma descoincidncia articulada entre uma problemtica terica
extensa e um objecto emprico intenso (Correia, 1998). Para alm disso, como
diz Sousa Santos, os objectos tm fronteiras cada vez menos definidas; so
constitudos por anis que se entrecruzam em teias complexas com os dos
restantes objectos, a tal ponto que os objectos em si so menos reais que as
relaes entre eles (2000: 70). Trata-se, portanto, de um registo hbrido que
define os objectos mais pela mestiagem do que pela pureza terica e analtica
(Ardoino, 1992).
Apesar de se tornar cada vez mais visvel esta hibridez e mestiagem no
campo educativo, designadamente, nos territrios locais, onde se organizam
dinmicas associativas, relaes inter-institucionais, redes e parcerias
envolvendo profissionais de diversos sectores, a Escola e as suas questes
internas continuam a manter um lugar preponderante nos estudos
educacionais. Num trabalho sobre as Cincias da Educao em Portugal,
Antnio Nvoa (1991) conclui que os estudos mais interiores ao campo
educativo revelam uma clara predominncia das questes do ensino e da
formao de professores, fazendo das Cincias da Educao sobretudo
cincias da escolaridade e do ensino. Os temas mais abordados passam pela
5
sala de aula (o ensino-aprendizagem, as didcticas, a relao pedaggica),
pela formao de professores e por um discurso genrico em torno dos
fundamentos da educao e do sistema educativo, verificando-se, no entanto,
a ausncia de uma reflexo sistemtica sobre os campos no-escolares das
Cincias da Educao. Antnio Nvoa considera, por isso, que constitui um
desafio para as Cincias da Educao o reforo da interveno nestes campos,
que vo desde as Cincias da Formao at s problemticas da Educao
e Desenvolvimento ou da animao comunitria e educativa. No mesmo
sentido, Rui Canrio (1996) defende que a territorializao das prticas e das
polticas educativas pode construir-se a partir de distintos pontos de entrada
e no, necessariamente, a partir da escola. Entre outros exemplos, a
interveno no campo da sade, a reabilitao de ofcios tradicionais, a luta
contra a pobreza, o combate e preveno da iliterao, o apoio criao de
emprego, constituem outros tantos pontos de partida para construir dispositivos
integrados de educao e formao, a nvel local, com a emergncia do
carcter estratgico e estruturante de modalidades educativas no formais e
informais.
A incluso, no presente trabalho, dos temas da animao comunitria e
do desenvolvimento local, bem como das relaes entre as dimenses sociais
e educativas, formais e informais, numa perspectiva de globalizao da aco
educativa (Pain, 1990), tem em vista, exactamente, provocar uma
descentrao do universo escolar, no o ignorando, mas analisando-o em
confronto com outras lgicas, pretendendo-se, assim, questionar e superar a
tradicional viso escolocntrica, da qual tem estado prisioneira, em grande
medida, a abordagem dos fenmenos educativos. De igual modo, ao optar-se
pela realizao do estudo num concelho rural Paredes de Coura pretende-
se questionar uma viso urbanocntrica que tem remetido o mundo rural, em
termos polticos, sociais e cientficos, para a periferia. Considera-se que o
questionamento e a superao desta viso cntrica pode tornar-se possvel
atravs de um pensamento reticular crtico que permita analisar, interpretar,
compreender e explicar as dinmicas sociais em diferentes escalas e nas suas
interconexes.
6
Assim, num contexto em que se afirma o ressurgimento do local como
palco das polticas e da aco socioeducativas e a emergncia da parceria e
da rede como modalidades de interveno, necessrio, por um lado,
compreender como se comportam os centros tradicionais, designadamente, o
Estado e a Escola, e, por outro, como se desenvolvem novas dinmicas e
interconexes entre os domnios escolar e social e entre os nveis local,
nacional-estatal e global.
Embora diversos autores defendam que as profundas mudanas
operadas ao longo das trs ltimas dcadas geraram um novo mundo um
mundo conexionista, organizado em rede (Castells, 1998; Boltanski e
Chiapello, 1999), a viso cntrica estadocntrica, urbanocntrica,
escolocntrica parece continuar a dominar o modo de agir e de pensar sobre
os fenmenos sociais contemporneos. Tomemos como exemplo trs centros
historicamente consolidados, cuja legitimidade comeou a ser posta em causa
a partir dos anos 60: o Estado, a Sociedade e a Escola. A ideia de sociedade,
tal como a de Estado, surgiu e desenvolveu-se com base numa viso unitria e
homognea, do mesmo modo que a de Escola, que se tornou de tal modo
central que passou a confundir-se a noo de educao com a noo de
educao escolar. Face a esta crise de legitimidade das instncias constitudas
historicamente como centros, foi conferida uma nova centralidade ao local
e ao estabelecimento de ensino, mas, aparentemente, sem se operar uma
desvinculao de um pensamento cntrico.
Sobretudo a partir dos anos 80, diversos estudos passaram a focalizar-
se no local e no estabelecimento de ensino, mas ignorando ou
desvalorizando a aco estatal e outros dinamismos macro, bem como as
interconexes entre diversos fenmenos sociais que se revelam, tambm
escala local, cada vez mais reticulares ou conexionistas. Um dos objectivos
principais do presente trabalho , pois, proceder ao questionamento deste
modo cntrico de olhar o mundo, que a cincia moderna criou e que ainda
hoje est enraizado nas nossas representaes. Defende-se que no
possvel compreender as dinmicas sociais do nosso tempo utilizando os
mesmos instrumentos conceptuais e analticos construdos no tempo em que o
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funcionamento da sociedade, do Estado e das instituies era encarado luz
de uma viso cntrica, unitria e homognea.
O presente estudo desenvolve-se, pois, luz de um pensamento
reticular crtico e em torno de duas coordenadas: uma coordenada temporal,
luz da qual se discutem e analisam as profundas mudanas societais e
epistemolgicas operadas a partir do final dos anos 60, e uma coordenada
espacial, ou territorial, que corresponde ao contexto de aco concreta onde se
realiza o estudo das dinmicas socioeducativas locais o concelho de Paredes
de Coura. No se pretende realizar um estudo sobre o concelho, enquanto
unidade geogrfica e administrativa, nem se ambiciona estudar todas as
dimenses econmica, social, cultural e poltica das dinmicas locais.
Trata-se de um estudo de dinmicas socioeducativas que nele se tm
ancorado e desenvolvido ao longo das dcadas de 80 e 90, constituindo-se o
concelho como o contexto ou a plataforma de estudo das mesmas. Para o
efeito, foram definidos dois pontos de entrada. O primeiro diz respeito s
dinmicas locais de animao infantil e comunitria, que tiveram incio nos
anos 80 a partir do Projecto OUSAM1, e o segundo s dinmicas locais de
reordenamento da rede escolar, que tiveram incio nos anos 90 a partir de um
Projecto que comeou por envolver o Centro de Formao das Escolas de
Paredes de Coura e os professores, passando depois a ser conduzido e posto
em prtica pela autarquia municipal.
O mtodo: o estudo de caso etnogrfico
A presente investigao decorre de uma ligao ao concelho de Paredes
de Coura que ultrapassa a durao formal do projecto de doutoramento, que
teve incio em 1999. Ao longo de quase uma dcada, a observao e a escuta
do terreno foram sugerindo diversas pistas de investigao, temas para anlise,
perplexidades, contrastes e contradies, que iam remetendo o investigador
para um maior aprofundamento das questes de pesquisa, quer atravs da
continuidade da ligao ao contexto e da multiplicao e triangulao das
1 O OUSAM uma Instituio Particular de Solidariedade Social (IPSS), cuja sigla significa Organismo Utilitrio e Social de Apoio Mtuo, mas, como nos disseram alguns fundadores, foi pensada, tambm, como forma do verbo ousar.
8
fontes de informao, quer atravs da leitura de obras de reflexo terica,
epistemolgica e metodolgica e de trabalhos empricos, os quais, por sua vez,
no apenas ajudavam a compreender as dinmicas sociais em estudo, como
tambm suscitavam novas perplexidades e novas questes de pesquisa. A
teoria e a empiria interpelam-se, portanto, mutuamente, ao longo de todo o
trabalho.
O mtodo utilizado o estudo de caso etnogrfico. Uma das
caractersticas principais deste mtodo tem a ver com o facto de implicar a
presena prolongada do investigador nos contextos sociais em estudo e o
contacto directo com as pessoas, as situaes, os acontecimentos. Trata-se de
um mtodo de pesquisa de terreno, cuja essncia a observao participante,
mas recorre-se, tambm, na presente investigao, entrevista e anlise
documental. Embora algumas das caractersticas que permitem distinguir este
mtodo de outros mtodos de investigao decorram do facto de envolver um
conjunto especfico de tcnicas, estratgias e procedimentos, as maiores
diferenas so, no entanto, de ordem paradigmtica. Contrariamente ao
paradigma positivista em que assenta a investigao do tipo estatstico-
experimental, o paradigma interpretativo em que se insere o estudo de caso
etnogrfico no tem em vista a verificao de regularidades, mas a anlise de
singularidades. Enquanto que o primeiro est orientado para a prova e para a
generalizao, o segundo est orientado para a descoberta e constitui-se
como uma cincia do singular e do concreto. Por outro lado, enquanto que o
paradigma positivista postula a distino entre o sujeito e o objecto de
conhecimento, o paradigma interpretativo postula a interdependncia do sujeito
e do objecto, atravs de um trabalho de interaco entre o investigador e os
demais actores sociais.
Relativamente ao primeiro ponto de entrada, o estudo desenvolve-se
em torno de uma Instituio Particular de Solidariedade Social o OUSAM;
quanto ao segundo, desenvolve-se em torno de uma pluralidade de actores
individuais e colectivos, como o Centro de Formao das Escolas de Paredes
de Coura e o seu director, a Cmara Municipal, grupos de professores em
formao, o agrupamento de escolas Territrio Educativo de Coura, entre
outros. Porm, em ambas as situaes no uma entidade que se pretende
9
estudar, mas antes a rede de relaes que se tece num determinado contexto
e que se consubstancia como um processo ou dinmica social. O que define o
caso como unidade de anlise , pois, o espao social concelhio e, se bem que
cada um dos referidos pontos de entrada possa ser considerado um caso
diferente, ambos se desenvolvem em torno de um conjunto de actores, de
relaes e interaces ancorados num territrio e ambos concorrem para a
anlise e interpretao das diversas lgicas de aco e para a compreenso
holstica, e ao mesmo tempo heterognea, do universo local.
A estrutura da dissertao
Como se disse, a teoria e a empiria interpelam-se mutuamente, ao longo
de todo o trabalho, mas em cada captulo essas dimenses surgem de um
modo ora mais explcito ora mais implcito. A dissertao est organizada em
trs partes e cada uma delas em diferentes captulos, tal como a seguir se
apresentam, de forma sinttica.
A primeira parte composta por dois captulos, comeando-se, no
primeiro, por analisar as profundas mudanas operadas no mundo a partir do
final dos anos 60, em termos societais e epistemolgicos, e prosseguindo-se,
no segundo, a discusso e a elucidao conceptual e metodolgica tendentes
realizao do estudo das dinmicas socioeducativas em Paredes de Coura.
O trabalho desenvolve-se numa perspectiva sociolgica, mas considera-se que
o que mais distintivo de uma investigao no tanto o seu registo disciplinar
mas essencialmente as opes epistemo-metodolgicas tomadas, que so,
neste caso, o paradigma interpretativo e crtico e a pesquisa qualitativa
etnogrfica.
nesta primeira parte que se inicia o processo de construo da
problemtica e do objecto de estudo. Como explica Rui Canrio (1995a), o
objecto de estudo no preexiste nem se situa numa relao de exterioridade
relativamente aos investigadores, pois se assim fosse estaramos perante uma
espcie de catlogo de objectos de estudo disposio do investigador para
que ele pudesse fazer a sua opo. A construo do objecto de estudo
intrnseca a cada processo de investigao e, por isso, a cada investigao
10
concreta corresponde um objecto de estudo especfico, construdo com base
num olhar terico particular e enformado por um corpo articulado de teorias e
de conceitos, isto , por uma problemtica. Uma problemtica terica ,
portanto, um conjunto articulado de questes que estabelece um corte e
delimita zonas de visibilidade, fornecendo um cdigo de leitura e de traduo
da realidade que se pretende estudar.
No caso da presente investigao, o estudo do local em educao
refere-se ao estudo das polticas e da aco socioeducativas que tm vindo, ao
longo das trs ltimas dcadas, a fazer apelo e a sustentar-se, em termos de
discursos e de prticas, na dimenso local e territorial e na mobilizao dos
actores locais para a resoluo dos problemas que as nossas sociedades
enfrentam actualmente.
Argumenta-se, no entanto, que o local no apenas o lugar e que a
educao no apenas a escola. O local , hoje, penetrado e modelado por
influncias sociais muito distantes e, embora os processos educativos ocorram
entre pessoas e em situaes, grupos e instituies inseridos num determinado
contexto, as caractersticas deste entrelaam-se com caractersticas dos
contextos nacionais e transnacionais e com influncias do presente e do
passado (Stoer e Corteso, 1999). De igual modo, no campo educativo
participam hoje diversos profissionais, tais como, mdicos, enfermeiros,
terapeutas, psiclogos, socilogos, professores e educadores de infncia,
animadores socioculturais e comunitrios, tcnicos das reas de servio social,
da sade e da justia, trabalhando de uma forma individual ou em equipa. A
educao tem lugar em diversos contextos escolar, familiar, comunitrio e
esto ao seu servio, com finalidades educativas e sociais, diversas
instituies, servios, associaes, projectos, comisses, tais como escolas,
jardins de infncia, centros de sade, bibliotecas, ATLs, IPSSs, associaes,
autarquias, projectos de luta contra a pobreza e excluso social, comisses de
proteco de crianas e jovens, entre outros. Estes novos fenmenos colocam-
nos, portanto, num terreno mais hbrido e mestio do que o que nos
tradicionalmente proporcionado pela escola.
Contrariando-se uma lgica de justificao simples e alguns lugares-
comuns que tendem a encarar o local como sinnimo de comunidade
11
identificando-o, frequentemente, com as ideias de colaborao, consenso e
harmonia em oposio a um Estado dito centralista e burocrtico e a um
mercado concorrencial, conceptualiza-se o local como um universo compsito,
onde se entretecem lgicas de aco e de justificao diversas e se cruzam
influncias dos processos de globalizao e das polticas do Estado. Tal
implica perspectivar o local como palco de contrastes e contradies, sendo
necessrio submeter estes fenmenos ao escrutnio da anlise emprica. Neste
sentido, defende-se, de acordo com J. A. Correia (1998), uma epistemologia
da controvrsia, a qual, ao considerar a objeco e o conflito como elementos
essenciais de anlise, permite superar uma tendncia que aparentemente se
tem vindo a instalar nas lgicas das polticas sociais pblicas e da aco local,
designadamente, no campo da educao e de outros campos de interveno
social, com base na ideia de que o local o espao da redeno, onde o
acordo e o bem comum so consensualmente alcanados pelos actores
locais autnomos, atravs de modalidades flexveis de trabalho em
parceria, em rede e em projecto.
A segunda parte apresenta, em dois captulos, o estudo realizado em
Paredes de Coura, correspondendo cada um deles descrio densa
(Geertz, 1973) ou anlise narrativa (Becker, 1992) das dinmicas locais, a
partir dos dois pontos de entrada j referidos. Comea-se por analisar a
gnese do OUSAM como projecto, na primeira metade da dcada de 80, e a
forma como se desenvolveu at ao presente. Veremos que embora este
desenvolvimento tenha sido atravessado por lgicas distintas de interveno,
marcadas, designadamente, pela passagem progressiva, na esfera do trabalho
social, de uma lgica de projecto a uma lgica de programa e pela
tendencial fixao do trabalho de educao de infncia no espao da sala em
detrimento do trabalho na e com a comunidade, a instituio mantm-se
ainda hoje fiel a alguns princpios que nortearam a sua criao,
designadamente o envolvimento de crianas e adultos nas suas actividades, a
integrao das dimenses educativas e sociais, a interveno nas localidades
mais dispersas do concelho numa lgica de proximidade e de globalizao da
aco educativa. Em seguida, analisam-se as dinmicas de reordenamento da
rede escolar, que esto em curso neste concelho desde a primeira metade da
12
dcada de 90, envolvendo sobretudo o 1 ciclo do ensino bsico e a educao
pr-escolar. Veremos que, embora a problemtica da escola rural seja
frequentemente encarada, em diversos discursos, como uma questo que ope
apenas os poderes centrais aos poderes locais, pressupondo que os primeiros
pressionam no sentido do encerramento das escolas e que os segundos
promovem a sua defesa, o estudo levado a efeito em Paredes de Coura revela
uma maior complexidade da questo, pois so os prprios actores locais,
designadamente autarcas e professores, que decidem concentrar todas as
crianas do concelho que frequentam o 1 ciclo do ensino bsico e algumas
que frequentam a educao pr-escolar num nico edifcio escolar localizado
na Vila, com o consequente encerramento de todas as escolas e de alguns
jardins de infncia das freguesias.
Na terceira e ltima parte, procede-se a uma re-problematizao
alicerada nos resultados do estudo emprico, mas procurando-se ter em conta
outros planos de anlise que ajudem a compreender, interpretar e explicar
outros fenmenos associados ao ressurgimento do local nas sociedades
contemporneas. Incorporando os planos da aco local e das polticas do
Estado, os eixos sincrnico e diacrnico e, no menos importante, a
experincia construda pelo investigador neste e noutros trabalhos de pesquisa
dando expresso a um fenmeno que designamos por transversalidade
metodolgica esta reflexo final desenvolve-se em torno de trs
problemticas e trs palavras-chave: i) Educao e desenvolvimento local.
Palavra-chave: animao; ii) As reformas educativas dos anos 80/90. Palavra-
chave: gesto; iii) O novo esprito das polticas sociais pblicas. Palavra-chave:
parceria. Com o desenvolvimento destas trs problemticas, pretende-se
interpretar e compreender as dinmicas socioeducativas locais, mas tambm
construir hipteses explicativas das lgicas que se inscrevem mais
incisivamente em distintos perodos dos ltimos trinta anos. Salientaremos o
surgimento da animao e do desenvolvimento local, nos anos 60-70, a
difuso de uma lgica gestionria no mbito das reformas educativas dos
anos 80-90 e a emergncia de um novo esprito das polticas sociais
pblicas, nos anos 90, o qual obtm a mxima visibilidade, no nosso pas, no
perodo de governao do Partido Socialista.
13
O percurso da investigao e do investigador
A investigao sociolgica corresponde, na sua essncia, a um desejo e
a um esforo intelectual de compreenso do mundo, que revela, ao mesmo
tempo, a vontade de nos compreendermos a ns prprios. Neste sentido, ela
profundamente autobiogrfica e expressa um olhar particular sobre o mundo
em que vivemos.
Embora a neutralidade almejada pelo paradigma positivista, supondo
uma distino entre sujeito e objecto e entre factos e opinies, fosse, e seja
ainda hoje considerada por muitos, como uma condio de cientificidade, a
investigao social nunca neutra, pois sempre construda com base num
olhar e num cdigo de leitura particulares. Acresce que estes no so sempre
explicitados nas problemticas e nos objectos que se constrem, pois h
aspectos implcitos que esto impregnados das nossas prprias
representaes sociais e culturais. Por exemplo, as lentes com que, no
presente trabalho, se analisam as dinmicas sociais, quer as referenciadas a
uma escala mais global, quer as referenciadas empiricamente ao contexto
local, so as de um investigador social que est inserido na cultura ocidental e,
como tal, configuram um olhar culturalmente fundado.
Na sua dimenso autobiogrfica, que aqui reforada por se tratar de
uma investigao de longo curso, o trabalho contm as marcas de um trajecto
experiencial do investigador. No perodo de quase uma dcada em que a
investigao decorreu, estive envolvido em diversos projectos de investigao,
em encontros pedaggicos e cientficos, em actividades de orientao e
coordenao de projectos, em aces de formao contnua de professores,
em actividades de avaliao e consultoria de centros de formao, no apenas
no prprio concelho de Paredes de Coura, como tambm noutros locais. Todas
estas actividades contriburam, de diferentes modos, para o trabalho de
pesquisa, atravs de um intenso processo de impregnao.
Como j disse, o projecto de investigao de doutoramento teve incio,
formalmente, em 1999, mas o percurso que lhe subjaz mais longo e pode ser
comparado a uma bola de neve. Desde 1993 que tenho estado envolvido, no
14
concelho de Paredes de Coura, em diversos trabalhos de investigao e
interveno relacionados sobretudo com o centro de formao de associao
de escolas, enquanto consultor de formao, avaliador e formador. Numa fase
inicial, a ligao a este contexto no era sistemtica nem decorria de objectivos
relacionados com a presente investigao2. Tal aconteceu, sobretudo, a partir
da investigao que levei a efeito no mbito do mestrado em Cincias da
Educao, concludo em 1998 na Faculdade de Psicologia e de Cincias da
Educao da Universidade do Porto (Ferreira, 1998a)3, e em trabalhos de
avaliao que se seguiram, no Centro de Formao das Escolas de Paredes
de Coura (Ferreira, 1999b)4. Este carcter prolongado da investigao facilitou
no apenas o acesso ao terreno, no mbito do projecto de doutoramento, como
tambm o prprio processo de recolha e anlise de dados, tendo em conta a
familiaridade entretanto estabelecida com as pessoas e o conhecimento que foi
sendo progressivamente construdo. Portanto, o caso no foi escolhido
aleatoriamente, com propsitos de generalizao, mas deliberadamente, com
base quer no conhecimento anteriormente produzido quer na possibilidade de
acesso ao terreno que a realizao desses estudos permitiu.
Ao longo deste perodo de quase uma dcada, a minha ligao a este e
a outros casos, em diversos projectos de investigao e interveno, foi
consubstanciando o interesse aqui revelado pelo estudo do local em
educao na dupla perspectiva das polticas e da aco educativas, do local
e do global, dos campos escolares e no escolares, das dimenses educativas
e sociais e, em particular, pelo estudo etnogrfico das dinmicas
socioeducativas locais. Pela influncia que tiveram na emergncia deste
interesse, destaco os trabalhos realizados e/ou publicados em co-autoria com
Joo Formosinho, sobre polticas educativas (Ferreira e Formosinho, 1998 e
Formosinho e Ferreira, 1999), com Manuel Sarmento, sobre comunidades
educativas (Sarmento e Ferreira, 1995a e 1995b) e sobre a escola rural 2 O primeiro trabalho de investigao que deu incio a esta ligao ao concelho de Paredes de Coura foi
realizado ao longo do ano de 1993, tendo envolvido um conjunto de Centros de Formao de Associao de Escolas, no perodo em que se estavam a formar, do qual fazia parte o Centro de Formao das Escolas de Paredes de Coura (Ferreira, 1994). 3 O Mestrado foi concludo com uma dissertao intitulada As Lgicas da Formao: um estudo das
dinmicas locais, a partir de um Centro de Formao de Associao de Escolas. 4 Este trabalho tem o ttulo Formao e Envolvimento Local.
15
(Sarmento, Sousa e Ferreira, 1998), e com Antnio Sousa Fernandes, numa
colectnea em que este autor aborda os temas da descentralizao e da
regionalizao e onde incluo um texto intitulado O local, o global e a
territorialidade educativa (Formosinho, Fernandes, Sarmento e Ferreira, 1999).
Saliento, ainda, a publicao de um livro sobre Dinmicas Locais de
Formao (Ferreira, 1998b)5 e de artigos intitulados As parcerias educativas e
o caso da relao escola-famlias (Ferreira, 1999a) e A construo da
autonomia em redes educativas (Ferreira, 2000)6, bem como a oportunidade
de ter coordenado, ao longo do ano 2000, o Projecto de investigao-aco
Criar Laos Dinmicas de Educao de Infncia em Comunidades Rurais,
desenvolvido, tambm, em Paredes de Coura, no mbito do qual foram
apresentadas duas comunicaes em congressos (Ferreira, Monteiro e Cunha,
2000; Ferreira, 2000)7.
Finalmente, saliento mais dois factores, aos quais no alheia, tambm,
a biografia e a experincia do investigador, que contriburam para a
emergncia deste interesse pessoal, profissional e acadmico pelo estudo
do local em educao e, mais especificamente, pelas polticas sociais
territorializadas, pelas dinmicas locais que envolvem as crianas e os seus
mundos de vida, pela formao dos diversos profissionais que com elas
trabalham. O primeiro decorre do facto de ter iniciado e desenvolvido, ao longo
de quase dez anos, um percurso profissional ligado ao ensino primrio, que
permitiu ter trabalhado em vrias escolas rurais, desenvolvido processos de
animao comunitria e realizado uma experincia de alguns anos no campo
do associativismo docente. O segundo tem a ver com o facto de trabalhar,
desde 1992, numa escola universitria dedicada aos estudos da criana o
Instituto de Estudos da Criana da Universidade do Minho , no mbito da qual
tenho participado em diversos projectos e actividades de formao e
5 Esta obra corresponde, embora no inteiramente, ao texto da dissertao de mestrado. 6 A obra em que este texto est publicado tem o ttulo Polticas Educativas e Autonomia das Escolas (Formosinho, Machado e Ferreira, 2000).
7 Este Projecto teve o apoio do IIE (Instituto de Inovao Educacional) e foi apresentado no Congresso Internacional Os Mundos Sociais e Culturais da Infncia, na Universidade do Minho, entre 19 e 22 de Janeiro de 2000, e na 10th European Conference on Quality in Early Childhood Education, no Instituto de Educao da Universidade de Londres, entre 29 de Agosto e 1 de Setembro de 2000.
16
investigao, que se exprimem, em grande medida, nesta dissertao, como
uma sntese.
17
PRIMEIRA PARTE
CONSTRUINDO UMA PROBLEMTICA E UM OBJECTO DE ESTUDO: O LOCAL COMO UNIVERSO COMPSITO
18
19
CAPTULO I
AS TRS LTIMAS DCADAS DO SCULO XX: O LOCAL E O GLOBAL NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS
1. Sinais de um tempo de transio: a mudana de paradigma
Todos os tempos so de mudana, mas h perodos em que as
transformaes so mais aceleradas e profundas. Pela sua dimenso e
complexidade, as mudanas que tm vindo a operar-se desde a II Guerra
Mundial e, particularmente, ao longo das trs ltimas dcadas, tm alimentado
amplos debates sobre as condies e caractersticas do mundo em que
vivemos. Boaventura de Sousa Santos (2000) argumenta que estamos a viver
num tempo de transio paradigmtica, em termos societais e epistemolgicos,
dizendo que a nossa sociedade uma sociedade intervalar, situada na
transio do paradigma da modernidade ocidental, sedimentado ao longo dos
ltimos duzentos anos, para um paradigma emergente ainda difcil de
identificar mas do qual se vislumbram alguns sinais. Sobre este tempo de
transio, o autor escreve, sugestivamente: H um desassossego no ar.
Temos a sensao de estar na orla do tempo, entre um presente quase a
terminar e um futuro que ainda no nasceu (Santos, 2000: 39).
Este perodo tem sido objecto de muitas anlises, que procuram dar
conta dos diversos fenmenos que tm vindo a ocorrer e que tm gerado
profundas transformaes cientficas, tecnolgicas, econmicas, polticas,
sociais, culturais. Em muitas destas anlises tem sido utilizada uma viso
vinculada ao calendrio, mais propriamente mudana de sculo e de milnio,
revelando essencialmente leituras profticas, apocalpticas ou esperanosas do
mundo. Mas, como esclarece Sousa Santos, o desassossego que
experienciamos neste perodo de transio nada tem a ver com lgicas de
calendrio, mas antes com a desorientao dos mapas cognitivos,
interaccionais e societais que nos eram familiares e que deixaram de o ser.
Esta desfamiliarizao torna difcil a nossa interpretao e compreenso do
mundo e dos fenmenos que nele tm lugar e mais difcil ainda a interveno
activa e lcida sobre os mesmos.
20
Do ponto de vista cultural, o Maio de 68 tem sido assinalado como o
incio deste perodo. O Maio de 68 simboliza a crise cultural, a concomitante
recusa de um modelo de civilizao baseado nos valores materiais do
consumo, a contestao radical da autoridade e a proclamao dos valores da
autonomia, da autenticidade, da livre expresso8. Do ponto de vista econmico,
a crise do petrleo da primeira metade da dcada de 70 e a crise financeira
dela decorrente tm servido, tambm, para assinalar o fim do perodo que se
seguiu II Guerra Mundial isto , o fim dos trinta gloriosos anos do fordismo
e o incio de uma nova era, que tem sido frequentemente designada como a
era da informao9. Portanto, no final dos anos 60, princpio dos 70, opera-se
uma dupla ruptura cultural e econmica na viso optimista do progresso
que se consolidara, com base numa ideologia desenvolvimentista, durante o
perodo do ps-Guerra. Em consequncia, as transformaes geradas na vida
social contempornea so profundas. As noes de sociedade ps-fordista ou
ps-industrial10 e, mais recentemente, a noo de globalizao, passaram a ser
muito utilizadas para dar conta destas transformaes.
Coabitam, portanto, nas nossas sociedades duas geraes que viveram
nos dois perodos distintos j referidos: o perodo que se seguiu II Guerra
Mundial e o perodo mais recente das trs ltimas dcadas (Baudelot e
Establet, 2000)11. Ambos esto marcados por acontecimentos que mudaram o
mundo. Relativamente aos acontecimentos dos finais dos anos 60,
protagonizados pelos movimentos de juventude, que proclamavam a libertao
e se insurgiam contra a guerra do Vietname, contra os privilgios sociais e
corporativos, contra os privilgios de classe, j conhecemos algumas
8 Alain Touraine escreveu na altura o seguinte sobre o Maio de 68: a grande palavra de ordem dos tecnocratas que dirigem a sociedade : adaptai-vos. O movimento de Maio respondeu: exprime-te (1972: 11). 9 Sobre a era da informao ver a importante obra de Manuel Castells, organizada em trs volumes, intitulados a sociedade em rede, o poder da identidade e fim de milnio (Castells, 1998, 1999a, 1999b) 10 Dois dos primeiros autores a sugerir a ideia de uma sociedade ps-industrial emergente foram Alain Touraine, em Frana (Touraine, 1970) e Daniel Bell, nos Estados Unidos (Bell, 1973). 11 Nesta obra, Christian Baudelot e Roger Establet analisam a evoluo da sociedade francesa no intervalo compreendido entre o final dos anos 60 e o final dos anos 90 e tem precisamente como ttulo Ter 30 anos, em 1968 e em 1998.
21
consequncias12; relativamente aos acontecimentos iniciados nos anos 90,
protagonizados sobretudo pelos movimentos antiglobalizao, ainda cedo
para as conhecermos em profundidade. Estes movimentos incluem
Organizaes No Governamentais (ONGs), pacifistas, ecologistas, activistas
dos direitos humanos e radicais das mais diversas causas e intervm
sobretudo quando as multinacionais, corporaes, instituies e grupos que
representam o capitalismo globalizado, como a Organizao Mundial do
Comrcio (OMC), o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Banco Mundial,
entre outros, organizam cimeiras13.
Embora sejam frequentemente designados por movimentos
antiglobalizao, nos seus fundamentos eles configuram antes exemplos do
prprio fenmeno da globalizao, pois os activistas obtm nos seus
instrumentos (tecnolgicos, de comunicao, de transporte, etc.) um forte apoio
para se organizarem. Organizam-se em rede e utilizam as tecnologias da
globalizao, como a Internet, tal como os outros agentes, designadamente os
que actuam escala mundial no plano econmico e financeiro. Em grande
medida, portanto, os motivos da luta contra a globalizao no tm a ver com a
globalizao em si mesma, pois esta tem diversas vertentes tecnolgica,
econmica, financeira, cultural, poltica, etc. mas antes com uma forma
especfica de globalizao a globalizao neoliberal. Protestando
essencialmente contra os efeitos da globalizao econmica e financeira,
assente na competio e no lucro, aquele movimento reclama uma
globalizao justa que no produza a destruio do planeta e a misria da
maioria da populao mundial.
Podemos encontrar explicaes comuns para estes movimentos os
movimentos de juventude do final dos anos 60 e os movimentos
antiglobalizao do final dos anos 90 mas eles tm motivaes e objectivos
12 Sobre o Maio de 68 e sobre os seus efeitos no perodo dos trinta anos que se lhe seguiram, ver a obra de Jean-Pierre Le Goff, publicada em 1998, na qual o autor argumenta que necessrio assumir de maneira crtica a herana do Maio de 68. Entre outros efeitos, incluem-se a fragilizao das instituies, como o Estado, a Escola, a Famlia, e a emergncia de novas formas de individualismo. 13 Recorde-se, por exemplo, as diversas manifestaes que tm vindo a ocorrer desde o final dos anos 90, designadamente, entre 1999 e 2001, as de Seattle, em torno da Conferncia da Organizao Mundial do Comrcio; de Washington, aquando da reunio do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional; de Davos, aquando do Frum Econmico Mundial; de Gnova, em torno da Reunio do G8.
22
muito diferentes. Enquanto que os movimentos de juventude do Maio de 68
ocorreram num tempo de crescimento econmico e de pleno emprego e, como
tal, no constituam uma reaco a uma crise econmica mas antes uma crtica
aos valores tradicionais da sociedade, os movimentos antiglobalizao surgem
numa altura de grande preocupao com o fenmeno do desemprego, com os
problemas ambientais, com a situao de extrema pobreza em que vive uma
grande parte da populao mundial e afirmam como seu objectivo principal
denunciar a injustia e as desigualdades geradas pelo capitalismo globalizado.
Os movimentos de juventude reclamavam, na poca, um modo de
desenvolvimento regido pelos princpios da flexibilidade, da mobilidade, da
autonomia no trabalho; protestavam contra as rotinas a que os trabalhadores
estavam sujeitos, contra a organizao hierrquica do trabalho, contra o
proteccionismo do Estado; valorizavam os valores da competncia e da
competitividade e rejeitavam os valores do corporativismo e do proteccionismo.
Entretanto, a partir dos anos 70, os valores associados ao Maio de 68 foram
sendo apropriados e incorporados pelo capitalismo e este mesmo, hoje, que
apregoa os princpios da polivalncia, da flexibilidade, da autonomia. Ora,
actualmente, os activistas dos movimentos antiglobalizao protestam,
exactamente, contra a precarizao e as novas formas de controlo e
explorao associadas ao modelo de organizao do trabalho baseado na
flexibilidade e na polivalncia e, de uma maneira geral, contra a injustia e as
desigualdades geradas pela globalizao neoliberal. Em grande medida,
portanto, os princpios e valores que eram defendidos no final dos anos 60
como condio de justia social, so agora apontados como factores de
desigualdade e injustia e contra eles que lutam, embora de modos e com
objectivos muito diferentes, os activistas dos movimentos antiglobalizao.
Muitos analistas tm afirmado que as mudanas operadas a partir do
final dos anos 60, princpio de 70, configuram a passagem de um modelo de
organizao fordista para um modelo de organizao ps-fordista, de uma
sociedade industrial para uma sociedade ps-industrial, de uma sociedade
moderna para uma sociedade ps-moderna. Mas as correntes tericas em que
estas perspectivas se baseiam no so homogneas. Enquanto umas tm
procurado denunciar a indiferena, o vale tudo, o kitsch, a uniformizao
23
(Lyotard, 1979), que se mantiveram e agudizaram na sociedade dita ps-
moderna, outras perspectivas tm apresentado uma verso mais doce desta
sociedade, depositando nela todas as esperanas para a resoluo dos
problemas do mundo. Os autores que rejeitam a ideia de que se operou uma
transio que possa ser caracterizada em termos de uma passagem da
modernidade para a ps-modernidade argumentam que as condies actuais
no diferem fundamentalmente das que dominaram o mundo durante os
ltimos dois sculos que estiveram na base da construo da modernidade.
Autores como Giddens (1984), Habermas (1987a; 1987b) e Beck (1992) no se
colocam na perspectiva da ps-modernidade, pois, segundo eles, as condies
actuais da modernidade, ou da modernidade tardia, como refere Anthony
Giddens, exprimem os mesmos traos tpicos da modernidade. Traos como a
racionalizao, a burocratizao, a uniformizao mantm-se e tendem at a
manifestar-se de uma forma mais radicalizada, aumentando as formas de
colonizao do mundo de vida (Habermas, id., ib.).
Assim, enquanto algumas perspectivas da ps-modernidade sustentam
que o projecto da modernidade deve ser abandonado, sugerindo
frequentemente que as promessas da modernidade, designadamente da
igualdade de oportunidades, esto cumpridas ou esgotadas, Habermas sugere,
pelo contrrio, que o projecto da modernidade contm ainda um potencial de
emancipao que necessrio explorar pela via da aco comunicativa e de
uma concepo deliberativa da democracia (Habermas, 1997). E, em casos de
pases como o nosso, de desenvolvimento intermdio, da semiperiferia do
sistema mundial (Santos, 1985; 1990) esta questo coloca-se de um modo
particular, pois as promessas da modernidade no foram cumpridas como
noutros pases centrais. Sousa Santos (1989) argumenta, porm, que a
sociedade portuguesa embora tenha ainda de cumprir algumas das promessas
da modernidade tem de as cumprir revelia da teoria da modernizao, pois
enfrentamos problemas modernos para os quais no h solues modernas.
Ora, este argumento vlido especialmente para as regies rurais como
o caso da que serve de palco ao estudo emprico que mais adiante ser
apresentado, pois nelas possvel observar hoje sinais de modernidade que se
misturam com sinais de pr-modernidade e de ps-modernidade. Nestas
24
regies, muitos municpios tm vindo a desenvolver um trabalho de criao de
infra-estruturas luz elctrica, gua e saneamento, estradas, plos industriais,
centros culturais, etc. tendo em vista a criao de condies de modernidade
nos seus concelhos. Mas quem observa estas regies por dentro depara-se
com profundos contrastes.14 Por exemplo, as casas das aldeias compradas e
recuperadas por pessoas das grandes cidades para passarem frias e fins de
semana um sinal dos novos estilos de vida da ps-modernidade situam-se
paredes meias com habitaes sem casa de banho, sem gua e saneamento,
sem luz elctrica, com o piso interior da habitao em terra batida, com o frio e
a chuva a cair dentro de casa, numa demonstrao viva da pr-modernidade.
As escolas tambm espelham estes contrastes. Actualmente, no concelho de
Paredes de Coura, como talvez noutras zonas rurais do pas, todas as escolas
primrias esto equipadas com computador e com ligao Internet,
permitindo aos alunos e professores viajarem pelo mundo, mas este cenrio
contrasta com as condies fsicas das instalaes e do equipamento
escolares, com as condies de vida de algumas pessoas que se dedicam
agricultura de subsistncia, com a existncia de pessoas, sobretudo idosas,
que vivem em redor da escola mas que no sabem ler nem escrever.
Argumentando que nos encontramos num perodo de transio
paradigmtica, Sousa Santos (2000) coloca-se na perspectiva da ps-
modernidade, mas estabelece uma distino entre o ps-moderno
celebratrio e o ps-moderno de oposio. A verso dominante do ps-
moderno , como diz, o ps-moderno celebratrio, isto , a verso de uma
ps-modernidade reconfortante, mas a perspectiva em se coloca a do ps-
moderno de oposio ou da ps-modernidade inquietante, pois considera
que ela permite articular a crtica da modernidade com a crtica da teoria crtica
da modernidade. A teoria crtica moderna, apesar de ser uma forma de
conhecimento-emancipao, ao negligenciar a crtica epistemolgica da cincia
moderna que se converteu em conhecimento hegemnico acabou por se
converter em conhecimento-regulao. Para a teoria crtica ps-moderna, pelo
14 Baseamo-nos nas observaes feitas no decorrer do estudo emprico que mais adiante ser apresentado, mas sobretudo nas visitas domicilirias que tivemos oportunidade de fazer com a equipa do Projecto de Luta Contra a Pobreza e a Excluso Social do concelho de Paredes de Coura, que tem a designao Projecto Terras de Coyra.
25
contrrio, todo o conhecimento crtico tem de comear pela crtica do
conhecimento. Enquanto que a cincia moderna se constituiu em oposio ao
senso comum, o conhecimento-emancipao tem de converter-se num senso
comum emancipatrio. Esta , pois, uma conceptualizao da actual condio
scio-cultural que, embora admitindo o esgotamento das energias
emancipatrias da modernidade, no celebra o facto, mas procura opor-se-lhe,
traando um novo mapa de prticas emancipadoras. Em sntese, a
complexidade da nossa posio transicional tem a ver com o facto de que
enfrentamos problemas modernos para os quais no h solues modernas,
pelo que, na perspectiva da ps-modernidade inquietante ou de oposio, esta
disjuno entre a modernidade dos problemas e a ps-modernidade das
possveis solues deve ser assumida plenamente. O que passa a definir a
teoria crtica , pois, o facto de ela no reduzir a realidade ao que existe e de
ser capaz de imaginar futuros possveis.
A frequente utilizao dos prefixos neo e ps (neo-taylorismo, ps-
taylorismo, ps-modernidade, neo-liberalismo, etc.) no vocabulrio das
Cincias Humanas e Sociais bem o sinal deste tempo de transio, de
incerteza e perplexidade em que nos encontramos; um tempo complexo, em
relao ao qual no existem ainda noes prprias que o possam caracterizar.
Abundam expresses como ps-modernidade, ps-industrial, ps-fordismo;
neo-liberal, neo-taylorismo, que procuram mostrar novas realidades mas sem
abandonar os termos mais antigos. O uso dos prefixos neo e ps de que a
literatura sociolgica frtil em exemplos ilustrativo desta situao de
encruzilhada. Alguns autores referem-se sociedade ps-moderna,
sociedade ps-industrial, ao ps-fordismo, ao mesmo tempo que outros
argumentam que os principais traos da modernidade se mantm, se
reconfiguram e at acentuam, utilizando, nestes casos, o prefixo neo: neo-
taylorismo, neo-liberalismo, etc. Os que advogam o fim do taylorismo baseiam-
se no pressuposto de que houve mudanas que permitiram a passagem de um
tempo em que predominavam os modos de produo manual, rotineira,
taylorista, para um tempo outro, de natureza intelectual, criativa, autnoma,
flexvel, polivalente e, como tal, ps-taylorista e ps-fordista. Para outros, trata-
se mais de um conjunto de metamorfoses que se operam por efeito de uma
26
mera reconceptualizao ou ressemantizao (Lima, 1994b). Noes como
as de modernizao, racionalizao e optimizao, por exemplo, tm
servido, como argumenta este autor, para a introduo de perspectivas neo-
taylorianas no campo da organizao e administrao da educao. Neste
sentido, o que muitas vezes apresentado como novidade fruto
essencialmente de invenes terminolgicas de algumas escolas que parecem
sofrer de amnsia, ou at de regresso terica (Alaluf e Stroobants, 1994:
53).
tambm frequente, na actualidade, o uso do prefixo re (re-
emergncia, re-valorizao, re-descoberta, re-surgimento, re-actualizao,
etc.), procurando mostrar que so retomadas e transfiguradas, na actualidade,
caractersticas de tempos anteriores. Ao longo das trs ltimas dcadas, o
conceito de local, por exemplo, tem sido frequentemente utilizado no sentido
de um re-surgimento, de uma re-descoberta, de uma re-localizao, o que
pretende significar que o nvel local volta a emergir, volta a ser valorizado, aps
ter sido abafado pelo centralismo do Estado. O renovado interesse pelo local
pelo poder local, pelo desenvolvimento local, etc. corresponde, assim, a
uma re-descoberta, no perodo em que se constata o esgotamento do modelo
administrativo centralizado vinculado ao nvel nacional-estatal, do paradigma
urbano-industrial de desenvolvimento e, de um modo geral, o esgotamento da
teoria da modernizao.
A ideia de que se opera este ressurgimento tem subjacente o
pressuposto de que o nvel local surge de novo como nvel relevante da aco
social, econmica, cultural, poltica, aps ter passado um perodo em que
esteve submerso pelo nvel nacional. No entanto, este ressurgimento do local
no corresponde a um regresso ao passado, pois o conceito de local surge
hoje com um significado diferente do que tinha antes da formao das
sociedades modernas. Enquanto historicamente o Estado se afirmou contra os
particularismos locais, de modo a criar uma unidade e uma identidade
nacionais, o local emerge actualmente atravs de um movimento de re-
localizao, mas que ocorre em simultneo e numa relao dialctica com um
movimento de globalizao. Face a este duplo movimento, o nvel nacional-
estatal tem sido profundamente questionado nos seus fundamentos, tendo
27
suscitado abundantes debates sobre a crise do Estado-nao ou do Estado-
providncia.
O uso recorrente de expresses como nova ordem mundial, nova
economia, nova era tecnolgica, da informao e do conhecimento so
tambm exemplos do tempo de mudana em que vivemos. E o mesmo
acontece em relao diversidade de termos que tm sido utilizados para
caracterizar as sociedades contemporneas. Individualismo, risco,
incerteza, todos eles procuram dar conta de um conjunto de caractersticas,
apontando em diversos sentidos, chamando a ateno para aspectos
diferentes, mas revelando em comum uma grande perplexidade face s
mudanas que estamos a viver. Ttulos de obras recentes como A era do
vazio (Lipovetsky, 1988), A grande ruptura (Fukuyama, 2000), A crise das
identidades (Dubar, 2000), A crise do Estado-providncia (Rosanvallon,
1992), O fim dos territrios (Badie, 1996), O fim da histria (Fukuyama,
1992), O fim dos militantes? (Ion, 1997), O fim da escola (liard, 2000), O
fim do trabalho (Rifkin, 1995), O fim das certezas (Beillerot, 1998), entre
muitos outros, ilustram bem a situao de transio, encruzilhada e
perplexidade em que nos encontramos.
As noes de ambiguidade, caos, desordem, incerteza, tm sido muito
utilizadas para dar conta desta situao, mostrando que se vive hoje num
tempo com caractersticas diferentes de perodos anteriores, mas difceis de
apreender. Elas so reflexo de uma evoluo conceptual que se tem verificado
nos diversos domnios, desde as artes plsticas, com a insistncia nas
descontinuidades, nas incoerncias, nos laos aleatrios, nas associaes
livres, na montagem e no bricolage; passando pela msica, onde se afirma o
acaso e o aleatrio como princpio de composio; at s organizaes, onde
as teorias passaram a incluir noes como ambiguidade, sistemas caticos,
sistemas debilmente articulados, anarquia organizada. A fluidez destas
noes no permite, porm, interpretar com lucidez as dinmicas sociais que
tm lugar nas sociedades contemporneas, pois tanto podemos considerar que
elas explicam tudo como no explicam nada.
Esta situao tem conduzido frequentemente ao fatalismo e
resignao. Como diz Paulo Freire, a ideologia fatalista, imobilizante, que
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anima o discurso neo-liberal anda solta no mundo. Com ares de ps-
modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a
realidade social que, de histrica e cultural, passa a ser ou virar quase natural
(Freire, 1997: 21). A este respeito, tambm sugestivo o ttulo que Sousa
Santos atribuiu a uma das suas obras mais recentes, j citadas neste texto: a
crtica da razo indolente. Diz o autor que no contexto actual o que novo
que as classes dominantes se desinteressaram do consenso tal a confiana
que tm em que no h alternativa s ideias e solues que defendem. Com
isto, a hegemonia transformou-se e passou a conviver com a alienao social,
e em vez de assentar no consenso passou a assentar na resignao: o que
existe no tem de ser aceite por ser bom; bom ou mau, inevitvel, e nessa
base que tem de se aceitar. tambm significativo que Luc Boltanski e ve
Chiapello tenham includo na sua recente obra um post-scriptum intitulado a
sociologia contra os fatalismos (Boltanski e Chiapello, 1999). A resignao e o
fatalismo so, pois, uma consequncia das mudanas que ocorreram num
ritmo acelerado no mundo contemporneo e que deixaram as pessoas
desarmadas de instrumentos tericos e analticos que lhes permitam
compreend-las e agir criticamente sobre as mesmas. Perante este sentimento
de fatalismo, Eduardo Terrn (2000) recomenda uma linguagem da esperana
e no da resignao. Na sua opinio, a ps-modernidade no deve significar,
necessariamente, o fim da utopia educativa moderna, mas antes a sua
actualizao, isto , a renovao do ideal de emancipao que constitui a sua
essncia. Mais sucintamente, o que preciso no abandonar a utopia, mas
fundament-la (2000: 10).
Na obra j referida, que desenvolve e aprofunda trabalhos anteriores,
Sousa Santos (2000) procura exactamente compreender as razes que tm
conduzido resignao e ao fatalismo. O autor interroga por que razo se
tornou to difcil produzir uma teoria crtica vivendo ns, no incio do milnio,
num mundo onde h tanto para criticar. Como j se disse, este socilogo
defende que, para fazer face aos fenmenos complexos do mundo
contemporneo, necessrio produzir uma nova teoria crtica que no reduza
a realidade ao que existe. Na sua opinio, deixou de ser possvel conceber
estratgias emancipatrias genunas no mbito do paradigma dominante, j
29
que todas elas esto condenadas a transformar-se em outras tantas
estratgias regulatrias (id., ib.: 16). Enquanto que para a teoria crtica
moderna o objectivo do trabalho crtico criar desfamiliarizao, residindo a o
seu carcter vanguardista, a tese que este autor defende que, luz de uma
teoria crtica ps-moderna, o objectivo da vida no pode deixar de ser a
familiaridade com a vida e, como tal, a desfamiliarizao deve ser concebida
como um momento de suspenso necessrio para criar uma nova
familiaridade. Isto , o objectivo ltimo da teoria crtica transformar-se num
novo senso comum, um senso comum emancipatrio, do ponto de vista tico,
poltico e esttico. tico, porque se trata de um senso comum solidrio;
poltico porque se assume como um senso comum participativo; esttico,
porque se configura como um senso comum reencantado.
Como explica este autor, o projecto da modernidade foi definido, na sua
matriz, por um equilbrio entre os pilares da regulao e da emancipao. O
pilar da regulao constitudo por trs princpios: o princpio do Estado; o
princpio do mercado e o princpio da comunidade. O pilar da emancipao
constitudo pela articulao entre trs dimenses da racionalizao e
secularizao da vida colectiva: a racionalidade moral-prtica do direito
moderno; a racionalidade cognitivo-instrumental da cincia e da tcnica
modernas e a racionalidade esttico-expressiva das artes e da literatura
modernas. Porm, este equilbrio pressuposto pelo projecto da modernidade
nunca foi conseguido. O desequilbrio entre regulao e emancipao e o
consequente excesso de regulao em que veio a saldar-se resultou de
desequilbrios, tanto no seio do pilar da regulao, como no da emancipao.
No pilar da emancipao, a racionalidade cognitivo instrumental da cincia e da
tcnica desenvolveu-se em detrimento das demais racionalidades e acabou por
coloniz-las; no pilar da regulao, o desequilbrio consistiu no
desenvolvimento hipertrofiado do princpio do mercado em detrimento do
princpio do Estado e de ambos em detrimento do princpio da comunidade.
Em suma, do lado do pilar da regulao, o princpio da comunidade foi o
mais negligenciado, mas, em grande medida, por isso hoje o que est melhor
colocado para criar uma dialctica positiva com o pilar da emancipao, em
torno das dimenses da participao e da solidariedade. Do lado do pilar da
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emancipao, tanto a racionalidade moral-prtica como a esttico-expressiva
foram invadidas pela racionalidade cognitivo-instrumental, mas, na opinio do
autor, a racionalidade esttico-expressiva resistiu melhor cooptao total,
estando por isso em melhor posio para revalorizar o conhecimento retrico e
os conceitos de prazer e de autoria que a cincia moderna tentou fazer
esquecer, aproximando mais o discurso cientfico do discurso artstico e
literrio. , pois, em torno do princpio da comunidade e da racionalidade
esttico-expressiva que se vislumbram as possibilidades de mudana de
paradigma, neste tempo de transio em que vivemos. Mas trata-se de uma
mudana de paradigma que no busca o seu equilbrio entre os pilares da
regulao e da emancipao, como o pretendeu na sua matriz o projecto da
modernidade. Na prtica, esse equilbrio nunca foi conseguido, tendo-se
saldado por um excesso de regulao e por um abafamento do pilar da
emancipao. Depois de dois sculos de excesso de regulao em detrimento
da emancipao, a soluo procurada no hoje, portanto, um novo equilbrio
entre regulao e emancipao, mas antes um desequilbrio dinmico que
penda para a emancipao.
2. Dois temas em debate: as classes sociais e as instituies
O pensamento sociolgico clssico pretendeu, atravs da ideia de
sociedade, descrever e analisar a totalidade social como um conjunto ordenado
e coerente: a sociedade trabalho, Escola, Estado-nao (Dubet e
Martuccelli, 1998). Em grande medida, esta viso decorre de num modo
cntrico de olhar o mundo um modo eurocntrico, escolocntrico,
estadocntrico, urbanocntrico e est associada, por exemplo,
emergncia e consolidao das sociedades e dos Estados nacionais,
propagao de um modelo ocidental eurocntrico de desenvolvimento,
gnese da escola pblica como instncia educativa central. Esta viso
historicamente responsvel pela assuno, por parte do Estado, do controlo
centralizado e burocrtico das polticas sociais e educativas, pelo enraizamento
de uma representao homognea e unitria da sociedade, pela emergncia
de um modelo urbano-industrial de desenvolvimento baseado em grandes
concentraes.
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Desde os fundadores da sociologia at aos nossos dias, esta
representao tem influenciado fortemente o modo de encarar o mundo e a
vida social, verificando-se ainda hoje, apesar das transformaes que
entretanto ocorreram, uma forte resistncia intelectual a pensar a crise deste
tipo de sociedade. Isto acontece, em grande medida, porque as prprias
representaes dos tericos e analistas sociais se mantm muito vinculadas a
esta viso cntrica uma viso nacional-estatal e urbano-industrial da
sociedade. A prpria sociologia, enquanto disciplina, tem a sua gnese ligada
passagem das sociedades agrcolas a industriais e, como tal, a uma ideia de
sociedade vinculada ao processo de industrializao e urbanizao. Esta ideia
de sociedade manteve-se inquestionvel at final dos anos 60 do sculo XX e
de um modo particular no perodo desenvolvimentista que se seguiu II Guerra
Mundial, alimentada pela crena na modernizao e no progresso, na cincia,
na ordem, na estabilidade, na segurana.
A partir dos anos 60, ocorreram profundas transformaes no mundo,
que tm vindo a abalar esta representao unitria da sociedade (Dubet e
Martuccelli (id., ib.)15. Quer a Sociedade, quer o Estado, quer outras
instituies, como a Escola, no podem ser pensados hoje como eram at aos
anos 60-70, face s profundas transformaes que tm vindo a ocorrer no
mundo em que vivemos. As sociedades contemporneas tm sofrido
mudanas profundas e aceleradas gerando uma grande incerteza e
perplexidade e tornando difcil a sua compreenso. Estas mudanas no so
apenas tecnolgicas; elas so visveis nos diversos domnios da actividade
humana, desde o poltico ao social e econmico, do cultural ao ambiental, do
pblico ao privado, do material ao simblico. A perplexidade com que olhamos
15 Nesta obra, Franois Dubet reconhece que ele prprio participou, atravs de uma sua obra anterior (Dubet, 1994), de um movimento de desconstruo da ideia de sociedade, ao argumentar que o objecto da sociologia se deve constituir em torno do sujeito e da sua experincia, cabendo-lhe, portanto, a funo de descrever as experincias sociais, isto , as condutas individuais de cada um de ns. Nesta obra, onde o autor fala mesmo do desaparecimento da sociedade, Franois Dubet atribui grande centralidade ao sujeito e construo da sua experincia, numa assumida aproximao psicologia. Segundo o autor, luz de uma sociologia da experincia, o prprio objecto da sociologia muda: ela deve descrever as experincias sociais, isto , as condutas individuais de cada um de ns; condutas que combinam diversas racionalidades e lgicas, apresentando-se, pois, como a combinao de pertenas comunitrias, clculos de mercado e exigncias de uma autenticidade individual. Na obra mais recente (Dubet e Martucelli, 1998), Franois Dubet considera, no entanto, que as abordagens micro-sociolgicas, embora sejam frequentemente inventivas, apaixonantes e convincentes, no ajudam a explicar uma questo essencial que saber como se passa dos ajustamentos individuais aos mecanismos gerais.
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hoje para o mundo resulta, portanto, de vrios fenmenos que tm vindo a pr
em causa uma representao unitria e ordenada que a modernidade
consolidou e que tem dominado as representaes sociais e cientficas ao
longo de sculos.
Ao longo dos ltimos trinta anos do sculo XX, e mais visivelmente
durante os anos 80 e 90, esta representao ordenada tem vindo a ser posta
em causa, de tal modo que se assiste mesmo ao declnio da prpria ideia de
sociedade vinculada a um espao nacional-estatal. Como sustentam Dubet e
Martuccelli (id., ib.), a ideia de sociedade moderna teve em vista descrever uma
realidade social que se pretendia unitria, substantiva, mas a sociedade que
hoje conhecemos j no pode ser pensada seno em funo da sua
interrogao sobre ela mesma e com a conscincia crescente da
impossibilidade de conseguir uma resposta definitiva. Assim, se possvel
continuar a falar hoje de sociedade porque ela prpria se concebe como uma
sociedade na sua vontade de ser uma sociedade (id., id.: 17). Neste sentido,
importa compreender a sociedade mais como uma dinmica, uma
autoproduo, do que como um todo societal.
Este declnio da representao unitria, nacional-estatal, da sociedade
responsvel, em grande medida, pelo esvaziamento de dois importantes temas
da anlise sociolgica: o das classes sociais e o das instituies.
Analisaremos, em primeiro lugar, as implicaes do esvaziamento do tema das
classes sociais, procurando mostrar que o fenmeno est associado ao
esboroamento da sociedade industrial-salarial e se traduziu num deslizamento
da problemtica das desigualdades para a problemtica da excluso social. Em
segundo lugar, analisaremos as implicaes do esvaziamento do tema das
instituies, tomando como exemplo a instituio escolar.
2.1. O tema das classes sociais: das desigualdades excluso
Na sociedade industrial-salarial (Castel, 1995), o tema das classes
sociais funcionou como um dos elementos federadores da anlise sociolgica.
Porm, as transformaes do capitalismo que ocorreram a partir dos anos 60-
70 contriburam para o debilitamento deste modelo. Antes, designadamente
33
entre a segunda metade dos anos 30 e os anos 60, a sociedade era encarada
essencialmente como um conjunto de grupos socioprofissionais, sendo o
Estado o garante das negociaes entre patronato e sindicatos e assumindo as
convenes colectivas um papel federador. As correspondncias entre as
posies sociais, os diplomas, os rendimentos e as origens sociais estavam no
centro de uma concepo meritocrtica da sociedade que, embora j existisse
anteriormente, se consolidou entre o fim da guerra e o final dos anos 60. Nos
anos 70, as representaes em termos de classes sociais ainda so visveis
nas cincias sociais, na literatura, nos media, no cinema, mas na segunda
metade dos anos 80 elas j no esto presentes, o que parece significar que o
modelo das classes sociais se esvaziou. Operou-se, pois, neste perodo, uma
mudana profunda em que o fenmeno da lute des classes deu lugar ao novo
fenmeno da lute des places (Gaulejac e Taboada-Lonetti, 1994). Num
mundo que se tornou intensamente competitivo e sustentado por um ideal de
sucesso, competncia, performance, realizao pessoal, apontando
apenas na direco do indivduo e da responsabilidade individual, a noo de
classe social, que fornecia uma representao de conjunto da vida social
parece ter perdido sentido.
Este esvaziamento do tema das classes sociais d-se com o prprio
contributo da sociologia. Se at final dos anos 70 o debate sociolgico se
estruturou sobretudo em torno do tema das classes sociais e das
desigualdades16, pouco a pouco ele passou a estruturar-se em torno do tema
da excluso. Ora, esta passagem do tema das desigualdades para o tema da
excluso tem consequncias. Como argumentam Luc Boltanski e ve
Chiapello, a excluso ignora a explorao (1999: 436), na medida em que a
excluso tende a ser encarada como um destino contra o qual cada um tem
que lutar e no como o resultado de uma assimetria social em que alguns
homens tiram lucro em detrimento de outros homens. Dizem estes autores que
contrariamente ao modelo das classes sociais, no qual a misria do
proletariado repousava sobre a designao de uma classe (a burguesia, os
detentores dos meios de produo) responsvel pela sua explorao, o 16 No campo da educao, este debate sobre as desigualdades, travado sobretudo a partir de meados da dcada de 60, deu origem a uma sociologia das desigualdades, de cujos resultados e orientaes nos do conta os trabalhos de Forquin (1979a, 1979b, 1980).
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modelo da excluso permite designar uma negatividade sem passar pela
acusao (id., ib.: 426). O tema da excluso releva, portanto, mais de um
tpico do sentimento do que de um tpico da denunciao (Boltanski, 1993).
Sem qualquer referncia s classes sociais, os excludos no so
considerados seno uma coleco de indivduos. A excluso, como outros
problemas sociais emergentes nas ltimas dcadas (o desemprego, a
pobreza, a toxicodependncia, a sida, etc.) tendem, assim, a ser considerados
como problemas pessoais e tcnicos, que fazem apelo implicao do
indivduo e interveno dos profissionais de ajuda, e no como problemas
estruturais, de natureza econmica, social e poltica.
Na passagem dos anos 80 para os anos 90 opera-se um deslocamento
das preocupaes com o fenmeno do desemprego para com o fenmeno da
excluso (Wull, 1991). A noo de excluso impe-se no mbito da reflexo
sociolgica sobre a questo social, deslocando o debate do tema da pobreza
para o tema da excluso (Strobel, 1996)17. A temtica da nova pobreza,
centrada nos anos 80 nos fenmenos econmicos e insistindo sobre os
processos de precarizao do mercado de trabalho, cede lugar, no incio dos
anos 90, problemtica da excluso, pondo em destaque o cmulo de
handicaps (ruptura dos laos sociais, participao social extremamente
limitada) e no apenas o aspecto econmico. Operou-se, assim, como diz
Cdric Frtign, uma passagem de testemunho dos economistas aos
socilogos (1999: 95). Alain Touraine (1992), o primeiro terico da excluso,
explica que este tema passou a ocupar, nos debates sobre a sociedade, o
lugar que era ocupado anteriormente pelas desigualdades na esfera produtiva.
A abordagem piramidal, da estratificao social, que se traduzia na oposio
alto/baixo, deu lugar, com a passagem de uma sociedade dita vertical para
uma sociedade dita horizontal, oposio in/out. Mas, como assinala Touraine,
enquanto que os in beneficiam de um movimento geral de elevao do nvel de
17 O conjunto de obras publicadas na dcada de 90 ilustram bem a centralidade que o tema da excluso passou a assumir no campo das polticas sociais e da reflexo sociolgica. Reportando-se Unio Europeia, ver Eurydice (1995) e Room et al. (1992). Entre muitas outras, ver sobre o contexto francs a obra de Donzelot (1993) e sobre o caso do Reino Unido a obra de Geddes (1997). Em Portugal, podem referir-se as obras de Almeida (1992), Almeida et al. (1994a), Arajo, Santos e Seixas (Coord., 1998) e Costa (1998). Destacam-se ainda outras obras que, de uma forma mais geral, abordam as teorias da excluso (Xiberras, 1996), o estado dos saberes sobre a excluso (Paugam (Dir., 1995) e a construo crtica de uma sociologia da excluso (Frtign, 1999).
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vida, ocupam um emprego, consomem os bens e servios e participam na vida
social, os out so vtimas das mutaes do sistema econmico.
O fenmeno contemporneo da excluso no se circunscreve, portanto,
s margens da sociedade. Com o processo de industrializao e da
modernidade liberal, a questo social deixou de se circunscrever a populaes
marginais, assumindo a forma de uma vulnerabilidade de massa (Castel,
1995: 160). Isto , embora a questo social se coloque explicitamente sobre
as margens da vida social sobre os vagabundos antes da revoluo
industrial, sobre os miserveis do sculo XIX, sobre os excludos de hoje
ela inscreve-se numa dinmica social global. H como que uma espcie de
efeito boomerang (Castel, id., ib.: 21), que faz com que os problemas postos
pelas populaes encalhadas na periferia de uma formao social faam
retorno para o seu centro. Esta vulnerabilidade de massa est, pois, associada
crise da sociedade industrial-salarial. O salariado, que ocupa hoje a grande
maioria dos activos e ao qual esto ligadas as proteces contra os riscos
sociais, constituiu durante muito tempo uma das situaes mais incertas e das
mais indignas e miserveis. Era salariado quem no tinha nada para trocar
para alm da fora dos seus braos. Cair no salariado era cair na dependncia.
Aps muitas transformaes, o salariado atingiu nos anos 60 o lugar de matriz
de base da sociedade industrial-salarial moderna, na medida em que passou a
envolver quase toda a populao e a definir a prpria identidade social a partir
da posio ocupada pelas pessoas no salariado. Na sociedade industrial, o
emprego salariado tornou-se, pois, o grande integrador (Barel, 1990).
A centralidade que o trabalho assumiu como mecanismo integrador na
sociedade industrial-salarial est, no entanto, fortemente abalada no mundo de
hoje, pois a precaridade est em toda a parte (Bourdieu, 1998: 113). Ela age
directamente sobre aqueles que toca (e que deixa sem condies de se
mobilizarem) e indirectamente sobre todos os outros, pelo medo que suscita e
que metodicamente explorado pelas estratgias de precarizao, como a
introduo do princpio da flexibilidade. Embora os autores de management
tenham comeado a proclamar, a partir dos anos 70, o fim do taylorismo,
anunciando uma nova era de flexibilidade, autonomia e cooperao no
trabalho, os analistas crticos tm vindo, no entanto, a chamar a ateno para