Sabedoria
Volume 1
O Filósofo e o Caminho
para Sabedoria
Diálogo entre a filosofia Grega e a Budista sobre os
estágios do caminho da sabedoria
Elton Oliveira
Figura da capa 1: Representação Grega do Buda do reino de
Ghandara
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Gandhara,_testa_di_buddha,_I-
III_sec.JPG
Figura da capa 1: Símbolo popularmente conhecido como guarda
pampa, de origem Mapuche tribo que habita a cordilheira dos
Andes. A Chakana ou cruzada é um símbolo inca, no qual vários
significados são incluídos. Alguns dos princípios da cruz Chakana
são: unidade na diversidade, complementaridade de opostos e
equilíbrio. O círculo do meio significa vazio, nenhum conhecimento,
insondável, impensável, verdadeiro, sagrado, representa a imagem
ideal do divino.
©EltonOliveira2019
Dedicação
Que esta obra inspirada no trabalho
do Venerável Segyu Choepel Rinpoche
possa apoiar seu projeto e engajar
muitos seres no caminho da iluminação.
Coleção Meditação & Sabedoria
Volume 1 – O Filósofo e o Caminho da Sabedoria
Volume 2 – Meditação e o Treinamento da Mente
Volume 3 – Epistemologia: Ciência e o Caminho para a Verdade
Volume 4 – Ontologia e Metafísica: Natureza da Mente e da
Realidade
Principais pensadores budistas e ocidentais que
embasaram o trabalho
Budismo. Ocidente
Buda Shakyamuni (563 a 483 a.C.) Pitágoras (570 a. C. a 495 a. C.)
Nagarjuna (150 a 250) Parmênides (530 a. C. a 460 a. C.)
Dignāga (480 - 540) Heráclito (540 a.C. a 470 a.C)
Dharmakīrti (660 d.C.) Sócrates (470 a. C. a 399 a.C.)
Chandrakirt (600 a 650) Platão (428 a.C. a 347 a.C.)
Shantideva (685 a 763) Aristóteles (384 a. C. a 322 a. C.)
Atisha (982 a 1054) Sêneca ( 4 a. C . a 65 d.C.)
Tsongkhapa (1357 a 1419) Epicuro (341 a.C. a 340 a.C)
Pabongka (1878 a 1921) Epiteto ( 50 a 138)
14º Dalai Lama (1935) Marco Aurélio (121 a 180)
Geshe Acharya Thubten Loden
(1924 a 2011)
Plotino ( 204 a 270)
Segyu Choepel Rinpoche (1950) Freud (1856 a 1939)
Jung (1875 a 1961)
Carl Roger (1902 a 1987)
Popper (1902 a 1994)
ÍNDICE
Prefácio 12
Introdução 14
Parte 1 – O Filósofo
1 A natureza e as divisões dos praticantes 21
1.1 O Filósofo como guerreiro interno 21
1.2 O engajamento no caminho 24
1.3 Conversão e renuncia 30
Parte 2 – Os Estágios do Caminho
2. Uma visão geral dos estágios de progresso no caminho 38
2.1 Os estágios na filosofia grega antiga 38
2.2 Os estágios na filosofia budista 40
2.3 Diálogo e sinergia entre as duas visões 41
Parte 3 – Preparação e Ingresso no Caminho
3.1 Desafios à prática 49
3.2 Metodologias de aprendizagem: “A sala limpa” 49
3.2.1 O que é aprendizagem no contexto do caminho 51
3.2.2 Estudo, análise, contemplação e escuta 51
3.3 Papel e importância do mestre 69
3.3.1Sócrates o parteiro de almas 69
3.3.2 Confiar no mestre 72
3.4 Valorizar a vida humana 79
3.4.1 “Uma vida sem exame não é digna de ser vivida” 79
3.4.2 Valorizar as condições e as potencialidade da vida 80
Parte 4 – O Caminho como Proteção da Consciência
4. O caminho como proteção da consciência 92
4.1. O refúgio no caminho: a filosofia, o mestre e a comunidade 93
4.1.1 Refúgio no Buda, o estado iluminado 93
4.1.2 O Mestre e diretor espiritual 95
4.1.3 O estilo de vida do sábio 105
4.1.4 O refúgio nos ensinamentos e na filosofia 109
4.1.5 A Comunidade de prática 113
4.1.6 Comunidades na Grécia antiga e nos tempos atuais 114
4.2 Consciência da morte e da impermanência 116
4.2.1 Impermanência dos objetos e dos fenômenos 117
4.2.2 O mundo dos fenômenos como devir eterno 118
4.2.3 Filosofar é aprender a morrer 120
4.2.4 A meditação na morte e na impermanência 128
4.3 Proteção do estado mental e da consciência 151
Parte 5 – O Caminho como liberação do sofrimento
5. O caminho para liberação da existência cíclica 198
5.1 A roda da vida e o mito da caverna 198
5.2 Aspirar a liberação da existência cíclica 204
5.3 As quatro nobres verdades 207
5.4 Os Sofrimentos da existência cíclica 215
5.4.1 As aflições que nos prendem na existência cíclica 215
5.4.2 Os sofrimentos inerentes 220
5.4.3 Os sofrimentos como humano 221
5.5 Os elos que nos prendem ao ciclo de renascimento 231
5.6 O ciclo de morte e renascimento 239
5.6.1 A mente na hora da morte 239
5.6.2 A transmigração da alma 242
5.6.3 Os estágios intermediários depois da morte 242
5.6.4 Como se renasce 243
5.7 O caminho que conduz a liberação da existência cíclica 244
5.7.1 A ascensão da alma a si mesma 244
5.7.2 A natureza do caminho da liberação 248
Parte 6 – O Caminho para Sabedoria
6.1 Iluminar-se para o benefício dos outros 252
6.2 "Viva para o outro se quiseres viver para si." 255
6.3 Desenvolver equanimidade, equilíbrio e justiça 257
6.3.1 Equalizar o “eu” com os “outros” 257
6.3.2 “Na Justiça estão todas as virtudes” 258
6.3.3 O Ego como fonte de todos os problemas 260
6.4 Desenvolver amor e compaixão 263
6.5 Engajar-se em uma vida virtuosa 266
6.5.1 Acumular mérito e sabedoria 266
6.5.2 Virtudes cívicas e virtudes purificadoras 267
6.6 Engajar-se em ações virtuosas 271
6.6.1 Ética é a base de todas as virtudes 271
6.6.2 A ética como função psíquica superior 279
6.7 Paciência, temperança e a justa medida 282
6.7.1 A natureza da paciência 282
6.7.2 Temperança e a justa medida 295
6.8 Generosidade como causa de todas as riquezas 298 6.8.1 A natureza e a motivação da generosidade 298
6.8.2 As divisões da generosidade 302
6.9 A força do entusiasmo 307 6.9.1 A natureza e a motivação do entusiasmo 307
6.9.2 Remover os impedimentos ao entusiasmo 309
6.9.3 Cultivar mérito para nutrir entusiasmo 314
6.10 A prática da concentração 318
6.10.1 A natureza e as divisões da concentração 318
6.10.2 Condições e causas para atingir concentração sustentada 322
6.10.3 Como meditar na concentração sustentada 324
6.10.4 Obstáculos à concentração e seus antídotos 326
6.10.5 Os nove estágios da concentração mental 335
6.10.6 O critério para atingir concentração sustentada 346
6.10.7 A concentração, o silêncio e a contemplação criadora 348
6.11 A prática da sabedoria 364
6.11.1 A natureza e as divisões da sabedoria 365
6.11.2 A natureza da introvisão 365
6.11.3 Compreender da natureza do eu e da realidade 365
6.11.4 Como você sabe que atingiu a introvisão 371
6.11.5 Meditação de união da concentração e da sabedoria 372
6.11.6 – A construção da sabedoria a Grega antiga 377
6.11.7 A união transcendente do Intelecto com o Uno 386
Parte 7 – A consciência do Absoluto
7.1 A mente desperta convencional e última 391
7.1.1 Cultivar a mente desperta convencional 391
7.1.2 Cultivar a mente desperta última 399
7.2 O Potencial da mente iluminada 402
7.3 As três potências: O Uno, o Inteligível e a Alma 415
7.3.1 Introdução: Plotino e a refundação da metafísica clássica 415
7.3.2 O Uno como Primeira Potência 420
7.3.2.1 Infinitude, absoluta transcendência e inefabilidade 420
7.3.2.2 Características positivas do Uno 423
7.3.2.3 Livre e autoprodutor: Por que o Uno é o que é? 426
7.3.2.3 Tudo procede do Uno 428
7.3.3 A segunda potência: O Nous ou o Intelecto 431
7.3.3.1 A relação dupla entre Inteligível e o Uno 431
7.3.3.2 O Inteligível como Existência, Pensamento e Vida 433
7.3.4 A terceira potência: a Alma ou Psyché 435
7.3.4.1 Características essenciais e papel da Alma 437
7.3.4.2 A posição intermediaria da Alma 439
7.3.5 O retorno e a união com o Absoluto 440
Glossário 447
Bibliografia 457
Prefácio
Venerável Segyu Choepel Rinpoche
Introdução
Em 1996 conheci meu mestre Venerável Segyu Choepel
Rinpoche em São Paulo quando assisti seus ensinamentos, no ano
seguinte esteve em Porto Alegre quando, sob sua inspiração e
orientação nasceu um grupo de prática e estudo, no ano de 2000 este
grupo evoluiu para o Centro Budista Lama Je Tsongkhapa que foi
inaugurado em uma sala de meditação instalada com padrões
similares ao estilo tibetano. O objetivo era difundir o budismo
segundo a linhagem de Tsongkhapa (1357-1419), importante mestre
budista tibetano que reformou o budismo e criou a escola Geluga, e
dessa forma, traduções, estudos e práticas desta tradição eram
realizados. No mesmo ano da inauguração da sede começamos a
traduzir um longo comentário ao Grande Tratado nos Estágios do
Caminho do filósofo Tsongkhapa (Tib. Lam Rim Chen Mo). A
orientação de Segyu Choepel Rinpoche levou a uma visão: Estruturar
um currículo similar ao utilizado nas Universidades Monásticas
Gelupas. Motivados por este desafio onze livros (3.285 páginas) foram
traduzidos, revisados, estudados e na grande maioria recebemos
ensinamentos do nosso mestre Segyu Choepel Rinpoche e outros
mestres convidados, envolvendo a dedicação voluntária de treze
pessoas em tradução e revisão.
O estudo e o domínio de conceitos faz parte de diversas
tradições ao longo da história, podemos citar como exemplo os
Pitagóricos e Platônicos na Grécia antiga e na preparação de monges
nos monastérios da escola Gelupa. Este domínio forma a base para a
meditação. Por essa razão, além das traduções, o estudo foi outra
marca central do nosso trabalho. Todas as obras traduzidas foram
estudadas em grupo. Fizemos avanços em metodologias que
transformaram o estudo em meditação analítica. Esta metodologia foi
baseada em quatro princípios: 1) Conhecer os conceitos e não
especular sobre eles; 2) Dialogar e não debater visando a aumentar a
atenção, o entendimento e a troca entre os membros; 3) Realizar
apresentações individuais dos temas visando aumentar o
engajamento dos participantes, pois em cada sessão de estudo um
membro do grupo ficava responsável pela apresentação do tema
proposto, técnica esta também usada pelo filósofo tibetano
Tsongkhapa, fundador da escola Gelupa, com seus discípulos
desafiando e apoiando a aprendizagem e o desenvolvimento
individual e por final 4) Combinar o estudo com a prática de
meditação em concentração e análise durante as sessões visando
aumentar a atenção e facilitar a internalização e o insight dos temas.
A partir de 2010 estendeu-se o estudo para temas ocidentais
como neurociência, filosofia ocidental contemporânea e filosofia da
mente visando um diálogo comparativo com os temas clássicos
budistas.
A história do budismo desenvolve-se desde século VI a.C. até
ao presente, começando com a iluminação de Sidarta Gautama,
transformado em Buda, o desperto. Durante este período adaptou-se
à medida que encontrou diferentes países e culturas na Ásia,
acrescentando a base da filosofia elementos culturais de cada lugar
em que se implantou. No ocidente o budismo despertou interesse
durante os movimentos de contra cultura na década de 60 e 70 além
de ser trazido pelos movimentos migratórios da Ásia, neste caso
ficando sua prática na maior parte restrita a estas comunidades. Esta
história começaria a mudar com a diáspora tibetana a partir da
invasão chinesa em 1950 forçando a fuga do governo e milhares de
monges inicialmente para Índia. Um governo tibetano é instalado no
exílio e diversos monastérios são reconstruídos na Índia e no Nepal.
A expansão para o ocidente foi uma questão de tempo. O interesse de
uma espiritualidade mais genuína pelo ocidente e a necessidade dos
tibetanos em propagar sua causa levou muitos mestres a estabelecer
diversos tipos de contato no ocidente, foi então que o budismo
tibetano se propagou em diversos países ocidentais, talvez pela
primeira vez a expansão da filosofia budista se misturou ao
movimento legítimo de sobrevivência da cultura e até do estado
tibetano.
Levou-se algum tempo para entender os riscos e limitações
deste esforço e decidir por construir um caminho que considerasse as
questões culturais centrais do ocidente e da vida moderna, além de
um diálogo com o pensamento ocidental. Concluímos, então, que a
bibliografia traduzida e estudada precisaria passar por uma
adequação de linguagem e de abordagem para que servisse como um
currículo base para estruturar uma instituição filosófica voltada para
o treinamento da mente através de estudo e meditação.
Foi com este objetivo que Segyu Choepel Rinpoche, em 2003,
liderou o início de um trabalho visando construir uma nova
abordagem que abandonasse os aspectos religiosos e culturais do
passado e abraçasse novos conhecimentos e descobertas mais
alinhadas com os tempos contemporâneos. Este livro, e a série que
seguirá, tem como objetivo contribuir com este trabalho através da
elaboração de uma bibliografia básica que contemple um diálogo dos
aspectos essenciais da filosofia budista com o pensamento e cultura
ocidental. Este desafio, para nós em Porto Alegre, levou ao
fechamento em 2015 do Instituto Tsongkhapa, trabalho que
desejamos reiniciar com uma nova abordagem.
Como o leitor poderá verificar este trabalho não se trata de
uma simples adequação do pensamento ocidental à filosofia budista
ou o contrário, mas de um diálogo que considera a força e o potencial
transformador da filosofia budista e do pensamento ocidental,
principalmente a filosofia antiga que se desenvolveu a partir da
Grécia e que infelizmente se distanciou da sociedade devido ao
domínio da escolástica a partir da idade média e da revolução
cientifica do século XVI.
Este primeiro volume “O filósofo e o caminho da sabedoria”
trata da natureza do praticante e da extensão do caminho que conduz
à sabedoria. É um tema essencial em qualquer pensamento filosófico
seja qual for a sua linha ou abordagem. Ao longo da confecção deste
trabalho foi possível verificar que a busca pela sabedoria é o objetivo
máximo tanto no budismo como na filosofia grega antiga e ambas as
abordagens seguem basicamente os mesmos desafios e estrutura. A
busca pela sabedoria é a razão de ser de uma filosofia, a própria
palavra filosofia tem em sua formação etimológica o amor ou desejo
pela sabedoria e, portanto deveria ser considerado não como algo
meramente teórico, mas como uma maneira de viver.
Começamos a nos tornar sábios quando aprendemos a ter
uma visão correta da realidade em que vivemos, este pequeno passo
traz grandes benefícios para nossa vida, cessamos a criação de causas
que poderão nos trazer confusão e sofrimento. No ponto mais alto da
sabedoria realizamos o potencial máximo da mente (ou da alma) e
atingimos uma percepção direta da realidade, sem a intermediação
dos nossos conceitos e crenças, uma realidade inefável. Ambas as
linhas de pensamento aqui estudadas afirmam que a sabedoria, na
sua essência é não conceitual e seu estado é inefável, ou seja, segundo
o dicionário, é aquilo que não se pode nomear ou descrever e que em
razão de sua natureza, força, beleza; é indizível ou indescritível.
Dessa forma a sabedoria enquanto um caminho que busca a verdade
não imputa uma essência imutável ao que é transitório, mas por
outro lado, esta atitude não significa a negação da vida transitória. O
leitor pode estar se indagando: Mas o que isto importa para a minha
vida? Tanto par o budismo como para o pensamento grego vivemos
preso neste ciclo de nascimento e morte devido a nossa ignorância, ou
seja, ausência de sabedoria. Muitas vezes nossas atitudes, devido à
ignorância e apego a esta vida, causam sofrimento e não felicidade
como esperávamos o que conduz a continuarmos presos nesta roda
de nascimento e morte. Um caminho verdadeiramente de sabedoria
objetiva trazer paz e tranquilidade para a mente/alma e o desejo e
apego ao transitório ao contrário produz sofrimento e confusão. A
sabedoria como conhecimento da verdade tem como função principal
iluminar a experiência, similar a uma lâmpada que ao ser acessa
torna o ambiente claro e por isso podemos enxergar adequadamente
seus objetos e transitar sem risco por eles. Iluminando a experiência
mental permite que possamos transitar pela vida gerando atitudes
que conduzem a felicidade e da mesma forma evitando atitudes que
criarão causas para o sofrimento.
O leitor pode estar se indagando sobre as diferenças entre a
filosofia ocidental e a Budista, visto que do ponto de vista cultural
existe um abismo entre as sociedades, embora com a globalização
estas diferenças, para o bem ou para o mal estejam diminuindo. Um
dos meus aprendizados com este trabalho foi entender um pouco
como cada pensamento filosófico se formou. É provável que esta seja
a maior diferencia. Enquanto o Budismo nasce da experiência de
iluminação de um ser humano que é transmitida e revigorada ao
longo da história e por isso é mais unificada. A filosofia ocidental, por
outro lado, foi construída gradualmente ao longo da história por
diversos filósofos, por essa razão exige um estudo e análise desta
evolução e poderemos encontrar algumas divergências entre seus
protagonistas que necessariamente se tornará diferença também com
o budismo. Abordar as diferenças dentre os filósofos e as escolas não
foi o objetivo central deste trabalho. Questões mais fundamentais
unificam os dois pensamentos: a busca pela sabedoria e o
entendimento sobre a natureza desta vida humana que poderão ser
verificado pelo leitor. Estes fatores, no meu entendimento não só
legitimam o presente trabalho, mas permitiram a sua realização. Se
olharmos por outro ângulo, a busca pela felicidade e pela sabedoria
são fatores que motivam todos os seres humanos e aqueles que já
avançaram neste caminho passam a desejar, também, a felicidade dos
outros, tal como demonstra a visão budista do caminho do bodisatva,
o herói-desperto, que por amor e compaixão busca a iluminação para
o benefício de todos os seres. Motivação esta encontrada também nos
que conseguem, segundo Platão, escapar da “caverna” e retornam
para convidar os que nela permanecem ensinando-lhes a quebrar os
grilhões e assim evoluir no caminho.
A motivação, ao escrever este livro, foi a de compor um
material de formação, estudo e meditação visando estruturar uma
comunidade de prática para que este estudo e meditação possam
gerar benefícios para seus integrantes e muitos outros seres. O
propósito é que este diálogo entre o budismo e o pensamento
ocidental possa enriquecer o estudo e a contemplação e dessa forma
potencializar o aprendizado. A experiência em combinar estudo e
meditação tem provado que a riqueza de linguagem dinamiza o
aprendizado. Envolver a mente numa variação de abordagem e
linguagens coerentes e corretas do ponto de vista lógico pode exercer
grandes resultados no desenvolvimento da meditação e
consequentemente tornar a mente mais estável, tranquila e capaz de
enfrentar os desafios da vida.
Metodologia aplicada neste trabalho
Considerando o objetivo de compor um material de
contemplação a partir do diálogo entre o budismo e o pensamento
ocidental, a metodologia principal utilizada foi a pesquisa
bibliográfica. Dessa forma não me considero o autor das ideias
exposta aqui e sim os grandes filósofos ao longo da história, seus
comentadores e historiadores. Dentre os historiadores ocidentais
gostaria de referenciar principalmente Marilena Chaui, Giovanni
Reale e Pierre Hadot que foram os mais pesquisados. Do budismo a
fonte foi o Lam Rim Chen Mo, O Grande tratado nos estágios do
caminho para a iluminação, tendo a própria obra de Tsongkhapa
como base, mas principalmente o extenso comentário dos estágios
realizado por Geshe Acharya Thubten Loden. Meu trabalho consistiu
em propor uma estrutura que abrangesse as duas abordagens e que
fosse compatível com a utilizada nos grandes temas filosóficos atuais.
A pesquisa envolveu uma adaptação dos textos e da linguagem
visando os seguintes objetivos: a) diminuir consideravelmente
comparações entre escolas e filósofos, tanto nos textos budistas
quanto na filosofia grega visto que o interesse deste trabalho é
apresentar a uma visão final mais dominante dos temas abordados,
desta forma não é objetivo, por exemplo, discutir as divergências
entre Heráclito e Parmênides, as formulações entre as escolas
filosóficas budistas, mas compor o que cada parte contribuiu; b)
alinhar terminologia e linguagem utilizadas pelos filósofos ao longo
da história, por tradutores e pesquisadores visando eliminar
variações que dificulte a compreensão, além de tornar a linguagem
utilizada pelos textos budistas clássicos mais reflexiva e menos
imperativa; c) eliminar abordagens que não interessam ao objetivo,
tais como a preocupação com a formulação politica e social que os
filósofos gregos tiveram na fase considerada clássica, principalmente
em Platão que mais tarde, com o neoplatonismo e neopitagorismo
perderam totalmente a importância
Por final desejo que o leitor/estudante utilize este material
para que possa desenvolver seu potencial e dessa forma possa ajudar
outras pessoas neste mesmo desafio.
Elton Oliveira
Porto Alegre, 28 de Março de 2019.
Parte 1
O Filósofo
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
21
1 A natureza e as divisões dos praticantes
1.1 O Filósofo como guerreiro interno
No contexto da Grécia antiga o herói cumpriu um papel
fundamental na mitologia, muitas vezes situava-se na posição
intermediária entre deuses e os homens, era tradicionalmente a
pessoa capaz de vencer todos os inimigos, os perigos, as adversidades
e as fadigas externas. O novo herói, pelo contrário, tinha como
desafio vencer seus inimigos internos e exercer, segundo Sócrates, o
autodomínio (enkráteia), ou seja, o domínio das paixões e impulsos,
da racionalidade versus a animalidade e fazer a alma ser a senhora do
corpo e dos instintos.1
Este novo herói recebeu o nome de filósofo, aquele que ama a
sabedoria. De maneira geral, desde Homero as palavras compostas
em philo- serviam para designar a disposição de alguém que encontra
seu interesse , sua razão de viver, na dedicação a essa ou aquela
atividade: philo-posia, por exemplo, é o prazer e o proveito que se tem
ao beber, philo-timia é a propensão para angariar honras, philo-sophia
será, portanto, o interesse pela sophía. Também desde Homero as
palavras sophía e sophós foram empregadas em vários contextos
visando mostrar um determinado saber fazer, mas não qualquer
saber, mas pelo nível de excelência era considerado uma saber fazer
inspirado por um Deus ou uma Musa. A partir do século VI, outras
acepções são acrescidas ao seu significado, neste caso envolve um
saber específico, um “especialista”, seja ele na politica, na
matemática, geometria, medicina, etc. 2 Segundo Houaiss (2019) a
palavra filósofo significa quem ama a sabedoria, movido pela
consciência lúcida da ignorância inerente à condição humana. O
sentido remonta ao filósofo grego Pitágoras (VI a.C.), citado pelos
antigos como o inventor da palavra.
1 Adaptado de Reale e Antiseri. Filosofia Volume 1. Página 88. 2 Conforme Hadot, Pierre. O que é a filosofia antiga. Capítulo 2.
Parte 1 – O Filósofo
22
O filósofo não substitui somente o herói, mas também o mago
e o poeta que através dos seus oráculos acessavam a verdade até
então presente somente nos deuses e musas. A fundação da filosofia
visa então desenvolver novos caminhos até então estruturados
somente nos mitos, estes caminhos incluem necessariamente o
domínio de si e a evolução do conhecimento.
Poderíamos pensar então que o filósofo é um sábio por conter
no seu significado o amor pela sabedoria? A resposta é não. Ele está
no caminho entre o ignorante, aquele que não reconhece a sua não
sabedoria, e o sábio. No diálogo expresso no Banquete Platão não
define exatamente o que é sabedoria mas dá a entender que que se
trata de um estado transcendente, visto que somente os deuses a
possuem de maneira plena. Pode-se admitir também a sabedoria
como a perfeição do saber está identificada como virtude. Esta
divisão entre os seres está relatada também no Banquete, nele, a
interlocutora Diotina afirma que existem duas categorias de seres que
não filosofam: os deuses e os sábios, por serem eles precisamente
sábios, e os ignorantes, por crerem ser sábios:3
Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio (sophós)-pois já é-
assim como, se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois
é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar
quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente,
que lhe basta assim. Não deseja, portanto, quem não
imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
Podemos concluir pelo exposto acima que o filósofo está
engajado em um caminho que conduz a sabedoria como uma virtude
transcendente e por esta razão é fundamental compreender a
natureza deste engajamento.
No Budismo, diferente da Grécia antiga, os praticantes eram
inspirados nos ensinamentos de Buda. Shantideva (685 a 763 dC –
3 Conforme Hadot, Pierre. O que é a filosofia antiga. Capítulo 4
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
23
India), autor do texto O Caminho do bodisatva, um dos textos mais
importantes da filosofia budista afirma4:
Todos esses ramos da doutrina,
O poderoso Senhor explicou por amor à sabedoria.
Assim, devem criar essa sabedoria,
Todos aqueles que desejam o fim do sofrimento.
A sabedoria plena também denominada de iluminação é o
objetivo máximo da pratica budista, todos os aspectos dos
ensinamentos têm como objetivo levar o praticante a este estado. Por
isso Shantideva afirma que todos os ramos conduzem a criação da
sabedoria. A iluminação é a liberação total do sofrimento produzido
principalmente pela nossa relação com a existência cíclica. A
ignorância é considerada o elo principal que nos mantem preso a um
ciclo de renascimento, desta forma sabedoria torna-se o principal
antídoto para a ignorância e todo o sofrimento que advém de nossas
ações equivocadas. O primeiro fator da ignorância é o
desconhecimento do nosso potencial interno. Buda significa aquele
que realizou o seu potencial máximo, desta forma o esforço de
qualquer pratica é direcionado à revelação deste potencial interno
que está obscurecido pela nossa incompreensão. O segundo aspecto
importante é a ignorância tanto das causas da felicidade como as do
sofrimento. Buscamos a felicidade em fatores externos que são
impermanente e insatisfatórios e com nossas ações não virtuosas nos
vinculamos mais ainda a uma existência de sofrimento.
Desta forma tanto a filosofia ocidental antiga quanto a budista
têm em comum a busca da sabedoria e a superação do inimigo
interno, a ignorância, como objetivos máximos. Este caminho inclui
uma vida virtuosa e uma qualidade de engajamento que inclui um
processo de purificação das paixões e o fim das relações que geram
apego a esta existência como veremos mais abaixo.
4 Lama, Dalai. Práticas de Sabedoria. Ed. Nova Era. Página 40.
Parte 1 – O Filósofo
24
2. O engajamento no caminho
Segundo Hadot5 é comum a todas as escolas filosóficas da
antiguidade a ideia de filosofia concebida como um discurso
vinculado a um modo de vida. A maneira filosófica de viver é o
comportamento do filósofo na vida cotidiana A filosofia, na
realidade, consiste em um exercício tanto no discurso do ensino
quanto o discurso interior que orienta nossa ação. Estes exercícios
servem para desprender do egoísmo provocado pela atração dos
prazeres ou pela preocupação com a vida mundana. A maioria dos
filósofos sempre fez um esforço para se desprender do eu
tendencioso e parcial para se elevar a um nível superior. A prática do
dialogo como exercício do caminho consiste justamente em
reconhecer o outro na discussão e, sobretudo, em reconhecer uma
norma superior cujo nível o eu deve se submeter para poder dialogar.
O verdadeiro saber, aos olhos dos filósofos tais como Platão
ou Aristóteles, por exemplo, só nasce por uma longa familiarização
aos conceitos, métodos, mas também os fatos observados. É
necessário experimentar demoradamente as coisas para conhecê-las,
para familiarizar-se tanto com as leis gerais da natureza como com as
necessidades racionais ou as exigências do intelecto. Sem este esforço
pessoal, o ouvinte não assimilará os discursos e eles lhe serão inúteis.
O modo de vida filosófico desta forma não é uma teoria, o discurso
sobre a filosofia não é a filosofia. Viver realmente como filósofo exige
transformar a si mesmo e corresponde a uma ordem de realidade
totalmente diferente daquela do discurso filosófico.
O pitagorismo, por exemplo, cultivava a ciência como meio
para alcançar um fim posterior, que consistia na prática de um tipo
de vida apto para purificar-se e para libertar a alma do corpo.
Pitágoras parece ter sido o primeiro dentre os filósofos a sustentar a
doutrina da continuidade da alma. O objetivo da vida é libertar a
alma do corpo, e para alcançar esse objetivo é preciso purificar-se. Os
5 Hadot, Pierre. O que é filosofia antiga. Página 49.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
25
pitagóricos apontaram sobretudo na ciência o caminho da
purificação, além de uma severa pratica moral. Visto que o fim último
era voltar a viver entre os deuses, os pitagóricos introduziram o
conceito de o reto agir humano como um tornar-se "seguidor de
Deus", como um viver em comunhão com a divindade. Um
testemunho relata: "Tudo aquilo que os pitagóricos definem a
respeito do fazer ou não fazer tem como escopo a comunhão com a
divindade: esse é o princípio toda a vida deles era coordenada para
esse escopo de deixar-se guiar pelo deus". Desse modo, os pitagóricos
foram os iniciadores daquele tipo de vida chamado (ou que já eles
chamaram) bios theoretikós, vida contemplativa ou vida pitagórica, isto
é, uma vida gasta na busca da verdade e do bem mediante
conhecimento, que é a mais elevada purificação (comunhão com o
divino)6.
Segundo Platão a purificação se realiza quando a alma,
transcendendo os sentidos, se apodera do puro mundo do inteligível
e do incorpóreo, a ele unindo-se como àquilo que lhe é congênere e
conatural. Aqui a purificação coincide com o processo de elevação ao
conhecimento do inteligível. E, assim, compreende-se perfeitamente
como, para Platão, processo do conhecimento racional seja ao mesmo
tempo processo de "conversão” moral: de fato, à medida que o
processo do conhecimento nos leva do sensível ao suprassensível, nos
converte do um ao outro mundo, nos leva da falsa à verdadeira
dimensão do ser. Portanto, a alma se purifica, se converte e se eleva
“conhecendo”. E nisso reside a verdadeira virtude e
consequentemente a prática do filósofo.
Plotino classifica o engajamento em três níveis: o músico, o
amante e o filósofo como vemos abaixo:
Qual é a arte, qual é o método, qual é a prática que nos
conduz aonde devemos ir? Aonde devemos ir? Ao Bem e
ao Primeiro Princípio. Eis o que colocamos como sabido e
demonstrado de mil maneiras, e as demonstrações que
6 Adaptado de Reale e Antiseri. Filosofia. Vol.1 páginas 43 e 44.
Parte 1 – O Filósofo
26
são dadas sobre isso também são meios de permitir a
elevação para ele. Mas que tipo de pessoas tomam esse
caminho ascendente? Aqueles que, como disse [Platão], já
viram todas as coisas ou a maioria delas. Esses, em seu
primeiro nascimento entram no germe de um homem
que se tornará um filósofo, um músico ou um amoroso.
O filósofo toma o caminho ascendente por natureza; o
músico e o amoroso precisam de um guia exterior.7
Plotino comenta que a dialética é a arte e o método que nos
conduz onde devemos ir, mas questiona que homens são capazes de
elevar-se e, portanto, de tornarem-se dialéticos. Segundo Plotino, tais
homens são de três espécies: os que têm natureza de músico, os que
têm natureza de amantes e os que têm natureza de filósofos. Trata-se,
em suma, de homens que aspiram ao imaterial e são capazes de
separar-se do sensível ou que, tais como os homens de natureza
filosófica, de alguma maneira já operaram a separação.
Pois bem, ao homem que tem a natureza de músico será
necessário, primeiramente, ensinar-lhe a passar dos sons sensíveis e
da beleza sensível que neles se exprime à beleza mais elevada do
inteligível que lhes é superior insinuando nele, deste modo, as razões
da filosofia. Ao homem que tem a natureza de amante será necessário
ensinar a passar além das belezas corporais que o perturbam e
inquietam e será necessário acostumá-lo a descobrir a fascinação
verdadeira das coisas incorpóreas e, assim, a subir ao mundo do
Inteligível. O homem que tem natureza filosófica já levou a cabo
aquela separação e já está pronto para o caminho ulterior, vem a ser,
para tornar-se dialético.
Assim como em Platão, também em Plotino as fases da
dialética são duas: a primeira consiste em passar do sensível ao
inteligível, a segunda consiste em subir, de degrau em degrau, no
mundo inteligível, até chegar a tocar o ápice do inteligível. e uma vez
7 Enéadas, I, 3, 1 pg. 45, tradução de Américo Sommerman, Polar.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
27
alcançado o inteligível, sabem elevá-lo de à realidade ao principio
imprincipiado, à condição incondicionada.
Mas, então, que é exatamente a dialética? Eis a resposta de
Plotino:
O que é essa dialética, que também deve ser ensinada ao
músico e ao amoroso? É uma ciência que pode-se
pronunciar a respeito da verdade final, da natureza e da
relação de todas as coisas. Pode dizer o que cada coisa é,
como difere das outras, que qualidade comum têm, a
qual espécie cada coisa pertence, onde cada espécie
reside, e se sua existência é em ato ou em potência. A
dialética também trata do Bem e do não-Bem, e das coisas
que são classificadas como boas ou como seu contrário, e
do que é eterno e do que não é eterno - não como uma
mera opinião mas com uma ciência autêntica. Ela detém
nossos desgarramentos no Mundo dos sentidos e nos fixa
no Mundo Inteligível, onde tem seu ato próprio,
afastando assim a mentira e alimentando a nossa alma,
como diz Platão “nas pradarias da Verdade”.8
Todos os ensinamentos do Buda foram destinados para o
benefício dos outros e têm dois objetivos: capacitar os seres a atingir
"status superior", a liberação do sofrimento da existência cíclica e
capacitá-los a atingir “bondade definitiva”, a iluminação. A realização
de “status superior” envolve necessariamente o engajamento em
renuncia e do ponto de vista da consciência é um pré-requisito à
geração da qualidade mental que aspira a iluminação para o beneficio
de todos os seres, a bodichita. Se você segue envolvido nas confusões
desta vida sua mente não despertará para a compaixão, a base mental
para gerar a bodichita. O caminho que conduz ao estado de renuncia
muitas vezes é denominado de pequeno veiculo ou hinayana em
comparação ao grande veículo que conduz a iluminação, o mahayana.
Os Budas primeiro geram bodichita, a qualidade mental que aspira a
8 Enéadas, I, 3, 4 pg. 48 e 49, tradução de Américo Sommerman, Polar
Parte 1 – O Filósofo
28
iluminação para o benefício de todos, e, por acumularem méritos
através das virtudes durante três incontáveis grandes eons, finalmente
alcançam a iluminação para o benefício dos outros.
Todos os ensinamentos que visam atingir status superior ( o
pequeno veículo, estão incluídos nos ensinamentos do grande veículo.
Há dois métodos para atingir a iluminação: a prática do caminho
vajrayana e a prática do caminho da perfeição ou virtude, também
denominado de mahayana. O caminho vajrayana é indicado apenas aos
praticantes avançados que já renunciaram à existência cíclica e
desenvolveram a bodichita e Esses grandes seres são motivados por
grande compaixão e praticam as seis perfeições9, os dois estágios do
tantra10, e assim por diante, para atingir a iluminação a fim de liberar
todos os seres do sofrimento. Tsongkhapa em Preparação para o Tantra
diz11:
Abençoe-me para que tendo bem praticado
Os caminhos partilhados e me tornado
Um recipiente adequado,
Possa eu ingressar com perfeita facilidade
No Caminho do Diamante (tantra),
O mais elevado de todos os caminhos,
A porta sagrada pela qual entram
Os afortunados e os bondosos.
Você deve primeiro praticar bem os estágios (Passos) gerais do
caminho que são “comuns”. Mais especificamente, tens que treinar sua
mente nos três principais caminhos: renúncia, o Desejo por iluminação e
a visão correta da realidade (sabedoria). Acima de tudo, deves ter uma
motivação que seja um “intenso” desejo de chegar à iluminação para o
benefício de todos os seres vivos. Isso então o transforma em um
9 As seis perfeições são: paciência, ética, generosidade, concentração, entusiasmo e sabedoria. 10 Os estágios são: geração e conclusão ou consumação. 11 TSONGKHAPA, Preparing to tantra. Paljor Publications. New Delhi. 1998 – Tradução pela
equipe do Instituto Tsongkhapa.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
29
recipiente (praticante) adequado para ingressar no Caminho da Palavra
Secreta. Tsongkhapa chama o tantra de Palavra Secreta, pois na tradição
budista em geral, similar aos ensinamentos dos mistérios no
pitagorismo, estes ensinamentos são restritos a praticantes que
atingiram realizações compatíveis com os caminhos, os três caminhos
expressos anteriormente. Mentes que não estão preparadas para receber
estas instruções poderão utilizá-las de forma inadequada trazendo
aflições e não realizações.
O caminho é naturalmente gradual e é dividido de acordo com o
nível de realização, todos têm potencialmente a capacidade de se
iluminar. Por ser gradual ele possibilita aos praticantes crescer
progressivamente. Lama Tsongkhapa explicou como as meditações
superiores são dependentes das intermediárias e das básicas, como
segue. Gerar bodichita é o portão para o mahayana. Quando se gera
essa mente da iluminação, mesmo seres na prisão da existência cíclica
são chamados os filhos dos Budas. Qualquer aprendizado ou
desenvolvimento fundamental é necessariamente gradual, ninguém
começa seus estudos em uma área especifica por um pós-doutorado, ou
se você estiver motivado a correr uma maratona e for uma pessoa
sedentária imagine quão gradual deverá ser o treinamento.
Com a bodichita você adquire o nome “Bodisativa”. Então
aqueles que desejam praticar o caminho mahayana deveriam exortar a
si mesmos a desenvolver essa mente da iluminação. Para gerar
bodichita você deve primeiro contemplar seus benefícios e desenvolver
uma forte aspiração de atingi-la enquanto pratica purificação e se
refugia nas três joias: nos ensinamentos de Buda (o Darma), no estado
de iluminação (estado búdico) e na comunidade de prática.
Para adquirir bodichita, devemos primeiro contemplar amor e
compaixão, que são as suas bases. Quando você contempla sua própria
situação na existência cíclica, privado de felicidade e atormentado por
sofrimento, se isso não o comove, então como você será afetado pela
visão do sofrimento dos outros?
Parte 1 – O Filósofo
30
Como Shantideva disse em seu O Caminho do bodisatva, verso
2412:
Se esses seres nunca tiveram uma mente destas
Para o seu próprio benefício, mesmo num sonho;
Como ela surgiria para o benefício dos outros?
Se você for um praticante que está iniciando agora no caminho
você de se concentrar principalmente na preparação e o ingresso como
abordado no capítulo 3. Compreender a importância da motivação, do
professor, valorizar sua condição e oportunidade de praticar além
proteger seu estado mental e sua consciência. Estude e contemple
principalmente estes tópicos e controle sua ansiedade intelectual por
“ensinamentos ditos avançados”.
3. Conversão e renúncia
Pitágoras nasceu por volta de 540 a.C. em Crotona (sul da
Itália) e influenciou toda a filosofia antiga, de Platão a Plotino vamos
encontrar suas marcas.
Atribui-se a Pitágoras a ideia de aumento da sabedoria graças
a regras de vida baseadas no silêncio, no isolamento e na abstinência
(abstinência sexual, abstinência de certos alimentos, como carnes e
favas, e de bebidas fortes, frugalidade, etc.). Nas comunidades
primitivas a escolha dos candidatos, o noviciado, consistia em um
silêncio de vários anos, havia comunidade de bens entre os membros
do grupo. Como adepto de Apolo, Delfos, o Pitagorismo propôs a
purificação da alma pelo conhecimento ou pela vida contemplativa,
isto é, pela theoria, única que poderia libertar-nos da “roda dos
nascimentos".
12 O Caminho do bodsatva, Shantideva, Editora Makara.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
31
A síntese dos ensinamentos de Pitágoras encontra-se num dito
que lhe é atribuído pelos doxógrafos. Segundo estes, ele teria dito que
aos Jogos Olímpicos comparecem três tipos de homens: os que vão
para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que vão
para competir e exibir suas qualidades em público; e os que vão para
contemplar o os torneios e avaliá-los. Assim também existem três
tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões; as mundanas, presas às
vaidades da fama e da glória; e as sábias, voltadas para a
contemplação13.
Na explicação sobre o Mito da Caverna dada por Sócrates a
Glauco ele denomina o filósofo como o prisioneiro curioso que deseja
escapar e após retornar para ajudar os demais na sua libertação. A
caverna, explica Sócrates a Glauco, é o mundo sensível onde vivemos.
O fogo que projeta as sombras na parede é um reflexo da luz
verdadeira (do Bem e das ideias) sobre o mundo sensível. Somos os
prisioneiros. As sombras são as coisas sensíveis, que tomamos pelas
verdadeiras, e as imagens ou sombras dessas sombras, criadas por
artefatos fabricadores de ilusões. Os grilhões são nossos preconceitos,
nossa confiança em nossos sentidos, nossas paixões e opiniões. O
instrumento que quebra os grilhões e permite a escalada do muro é a
dialética. O prisioneiro curioso que escapa é o filósofo. A luz que ele
vê é a luz plena do ser, isto é, o Bem, que ilumina o mundo inteligível
como o Sol ilumina o mundo sensível.
O esforço da alma para libertar-se representam anos
despendidos na criação do instrumento para sair da caverna.
Conhecer é, pois, um ato de libertação e iluminação. A paidéia
filosófica é uma conversão da alma voltando se do sensível para o
inteligível. Essa educação não ensina coisas nem nos dá a visão, mas
ensina a ver, orienta o olhar, pois a alma, segundo Platão por sua
natureza possui em si mesma a capacidade para ver. A libertação do
olhar intelectual que nos livra da cegueira para vermos a luz das
ideias. Mas descreve também o retorno do prisioneiro para convidar
13 Adaptado de Chaui, Marilena. História da filosofia. Vol. 1 – páginas 68 e 68
Parte 1 – O Filósofo
32
os que permaneceram na caverna a sair dela, ensinando-lhes como
quebrar os grilhões e subir o caminho que consiste em praticar com
outros o trabalho para subir até às ideias14.
Com efeito, a filosofia platônica é, totalmente, uma teoria da
conversão política: para mudar a cidade, é preciso transformar os
homens, mas somente o filósofo é realmente capaz disso porque ele
próprio está "convertido". Vê-se aparecer aqui, pela primeira vez,
uma reflexão sobre a noção de conversão (República, 518c). O próprio
filósofo está convertido porque soube desviar seu olhar das sombras
do mundo sensível para voltá-lo na direção da luz.
Depois de Platão, nas escolas estoicas, epicurista e
neoplatônica, tratar-se-á menos de converter a cidade que de
converter os indivíduos. A filosofia torna-se essencialmente um ato
de conversão. Essa conversão é um acontecimento provocado na alma
do ouvinte pelo discurso de um filósofo. Ela corresponde a uma
ruptura total com a maneira habitual de viver: mudança de costume e
frequentemente de regime alimentar, às vezes renúncia aos afazeres
políticos, mas sobre tudo transformação total da vida moral, prática
assídua de numerosos exercícios espirituais. Assim, o filósofo chega à
tranquilidade da alma, à liberdade interior; em uma palavra, à
beatitude.
Nessa perspectiva, o ensino filosófico, segundo Hadot, tende a
tomar a forma de uma predicação na qual os meios da retórica ou da
lógica são postos a serviço da conversão das almas. A filosofia antiga,
portanto, não é jamais a edificação de um sistema abstrato, mas
aparece como um apelo à conversão por meio da qual o homem
reencontrará sua natureza original (epistrophè) em um violento
desenraizamento da perversão na qual vive o comum dos mortais e
numa profunda reviravolta de todo o ser. Platão diz que a conversão
desvia a alma da obscuridade e os estoicos afirmam que a alma faz
uma mutação brusca, ela se transformará em sabedoria15.
14 Adaptado de Chaui, Marilena. História da filosofia. Vol. 1 – Página 261. 15 Adaptado de Hadot, Pierre. Exercícios espirituais. Página.205, 206 e 207.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
33
Na Antiguidade, segundo Hadot, a filosofia era
essencialmente conversão, isto é, retorno a si, à sua verdadeira
essência, esta conversão significa um violento desenraizamento da
alienação da inconsciência. É a partir desse fato fundamental que a
filosofia ocidental se desenvolveu. Por um lado, ela se esforçou para
elaborar uma física ou uma metafísica da conversão. Por outro, e,
sobretudo, ela permaneceu sempre uma atividade no caminho que
tem a característica de uma verdadeira conversão. Como é possível
que uma alma possa regressar a ela mesma, retornar para si,
reencontrar sua essência original? Para os neoplatônicos, somente a
verdadeira realidade é capaz desse movimento de reflexividade. Para
se realizar, a alma sai de si mesmo para regressar a si mesmo, ele se
extasia na vida e se reencontra no pensamento. Esse esquema
dominará todas as filosofias dialéticas da antiguidade16.
Plotino em sua pratica e escritos revela a preocupação com o
aprimoramento no caminho de seus discípulos, ouvintes e leitores.
Considerando esta preocupação Plotino apresenta um tema que
conduz a uma reflexão, que o coloca em marcha na direção do
Princípio, do Bem ou do Um. E então através dessas conversas ele
indica a rota e as referências a respeito das condições do caminho,
oferecendo orientação a respeito daquilo que ele encontrará em cada
etapa e indicando, quando necessário, onde encontrara alimento e
descanso, de modo que possa verdadeiramente encontrara sua meta.
Em relação a este mundo Plotino apontava o caminho para escapar
dele, liberar-se das suas realidades:17
Estar liberado em relação às realidades deste mundo, viver sem
se deleitar com as realidades deste mundo fugir só na direção
do Uno. (9 [V19], 11, 49-51)
A forma de escapar, segundo Porfírio, principal discípulo de
Plotino é viver segundo o Intelecto. Plotino apresenta a filosofia como
um modo de vida que abrange todos os aspectos da existência.
16 Adaptado de Hadot, Pierre. Exercícios Espirituais. Página 211. 17 Adaptado de Bal, Gabriela. Silêncio e contemplação. Página 22.
Parte 1 – O Filósofo
34
Porfirio tem perfeita consciência do fato de que esse modo de vida
distingue-se radicalmente daquele do restante dos homens. Este
modo não se dirige aos homens "que exercem ofícios manuais, nem
aos atletas, nem aos soldados, nem marinheiros, nem ao orador", nem
aos políticos mas a quem refletiu sobre essas questões: "Quem sou
eu? De onde venho? Para onde vou?", e a quem se fixou no alimento e
em outros domínios, em princípios diferentes dos que regem os
outros gêneros de vida. O modo de vida que Porfirio recomenda
consiste em "viver segundo o Intelecto", isto é, segundo a parte mais
elevada de nós mesmos que é o intelecto. Segundo Hadot o
Platonismo e aristotelismo se fundem aqui. A vida segundo o
Intelecto não se reduz a uma atividade puramente racional e
discursiva. A theoría, a contemplação que nos conduz à felicidade,
não consiste em um acúmulo de raciocínios nem em uma massa de
conhecimentos aprendidos, como se poderia crer. Não basta adquirir
conhecimentos, mas ć necessário que esses conhecimentos "se tornem
natureza em nós", "que eles cresçam conosco"". Só há contemplação,
diz Porfírio, quando nossos conhecimentos se tornam em nós "vida" e
"natureza". Ele reencontra, por outro lado, essa concepção no “Timeu",
que afirmava que quem contempla se tornar semelhante ao que
contempla e fazer assim, um retorno a seu estado anterior. E por meio
dessa assimilação, dizia Platão, que se atinge o objetivo da vida. A
contemplação não é conhecimento abstrato, mas transformação de
si 18 . Este desenvolvimento natural exposto neste parágrafo é
fundamental no contexto tanto da conversão quanto da renuncia,
ambos os desenvolvimento precisam ser graduais e fruto de uma
pratica ao longo do caminho.
No contexto do caminho budista renuncia é considerado um
estágio fundamental. A fronteira que separa prática no caminho do
que não é, e a fronteira que separa a prática do caminho real de uma
que não é, é a atitude de abandonar essa vida. Livre dos Quatro
Desejos, o texto de treinamento mental, coloca isso da seguinte forma:
18 Adaptado de Hadot, Pierre. O que é filosofia antiga. Páginas 228 e 229.
Sabedoria – V. 1 – O Filósofo e o Caminho Para Sabedoria
35
Não é praticante, uma pessoa que ama essa vida.
Não existe renúncia, em uma mente que ama a existência
cíclica.19
“Ama essa vida” é o tipo de desejo por felicidade através de
fama, fortuna, poder e todos os mais variados objetos dessa vida
transitória e impermanente. Qualquer um que espera fazer alguma
prática do caminho tem que interromper seu desejo por essa vida.
Renúncia significa desistir ou abandonar. A renúncia falada
no Budismo é renunciar ao sofrimento, que é desistir do sofrimento
da existência cíclica abandonando suas causas. A razão pela qual
Buda ensinou primeiro sobre sofrimento, é que é necessário perceber
o verdadeiro sofrimento e suas origens para ser apto a gerar renúncia
e praticar puramente o caminho para liberação. Se você não gerar
profunda aversão pela existência cíclica, contemplando o verdadeiro
sofrimento; então, o desejo de alcançar a liberação não será nada além
de palavras e todas as suas ações tornar-se-ão simplesmente a
verdadeira origem. Se você não compreender e contemplar a
verdadeira origem que são as ações não virtuosas e a própria
ignorância e reconhecer que elas são a raiz da existência cíclica, é
como atirar sem enxergar o alvo. Se você não conhecer o verdadeiro
sofrimento e suas origens, não reconhecerá o estado de liberação, que
é o abandono do sofrimento, todos seus esforços na prática serão sem
sentido.
.
19 Não é praticante, uma pessoa que ama essa vida...Citação da p. 436 desse clássico “treinamento mental” texto do Venerável Drakpa Gyeltsen.
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