ISSN 2176-1396
O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA DOS ANOS
INICIAIS SOB A PERSPECTIVA DA SOCIOLINGUÍSTICA
Bianka de Abreu Severo1 - UFSM
Eixo – Alfabetização, leitura e escrita
Agência Financiadora: não contou com financiamento
Resumo
Considerando as inquietações, os questionamentos e as reflexões suscitadas frente às práticas
educativas que fomentam desigualdades e estereótipos em torno da língua portuguesa, foi
proposta a análise do livro didático de Língua Portuguesa na disciplina de “Oralidade, leitura
e escrita”, realizada durante o segundo semestre de 2015, ofertada pelo curso de Licenciatura
em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Desta forma, este trabalho
busca analisar o livro didático de Língua Portuguesa dos anos iniciais do ensino fundamental
sob a perspectiva da sociolinguística. Para isso, destacam-se quatro atividades de um livro
pertencente ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O referencial teórico utilizado
para a análise dos dados deste trabalho conta com Bagno (2007), Bagno e Rangel (2005),
Bakhtin (2011), Dias (2010), Freitas e Rodrigues (2008), Oliveira (2010), Soares (1993),
entre outros. A partir disso, percebe-se que a maior parte das atividades do livro didático
contemplam os gêneros discursivos literários, fazem uso da variedade padrão da língua
portuguesa, não estão explicitamente inseridos em uma prática social discursiva e, ainda,
algumas se limitam a questões mecânicas no qual o gênero discursivo é utilizado somente
como recurso. Contudo, o livro didático também apresenta em certas atividades a intenção de
abordar outros gêneros discursivos e a variedade não-padrão, bem como propor o estudo da
língua vinculado aos seus usos e funções sociais. Em virtude do que foi analisado ao longo do
trabalho, pode-se inferir que o livro didático ainda possui um grande caminho a ser percorrido
no sentido de uma aproximação mais intensa com a ótica da sociolinguística. Portanto, o uso
do livro didático na prática educativa sob a perspectiva da sociolinguística demanda o
questionamento de concepções, práticas e posturas até então institucionalizadas com respeito
ao estudo da Língua Portuguesa na escola.
Palavras-chave: Sociolinguística. Livro didático. Anos iniciais.
1 Acadêmica do curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista
PIBIC/CNPq do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Imaginário Social (GEPEIS). E-mail:
8142
Introdução
Ao longo do segundo semestre do ano de 2015, na disciplina de “Oralidade, Leitura e
Escrita”, ofertada pelo curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), a sociolinguística predominou no norteamento dos diversos diálogos e
reflexões empreendidos entre os acadêmicos. A partir disso, diversas relações foram feitas
com as experiências escolares de cada um, sejam elas oriundas da própria escolarização, ou
das observações realizadas durante a formação inicial do curso de Pedagogia. Assim, o estudo
deste ramo da linguística foi de extrema importância na compreensão de certas práticas
educativas que fizeram parte da nossa história de vida na educação básica e que ainda
permeiam as escolas.
Considerando as inquietações, os questionamentos e as reflexões suscitadas frente às
práticas educativas que fomentam desigualdades e estereótipos em torno da língua
portuguesa, foi proposta a análise do livro didático de Língua Portuguesa circulante nos anos
iniciais do ensino fundamental, tendo em vista a perspectiva da sociolinguística. Compreende-
se que uma análise desta espécie é oportuna, visto o lugar que o livro didático ainda ocupa no
cotidiano da educação básica, atuando sobre a subjetividade dos estudantes, construindo
conhecimentos acerca dos mais variados assuntos e contribuindo na criação de uma
concepção de língua.
Deste modo, este trabalho busca analisar um livro didático de Língua Portuguesa do 2º
ano do ensino fundamental de acordo com a perspectiva da sociolinguística, procurando
aproximações ou distanciamentos do material didático com tal ramo de estudo. Para tanto,
recorre-se à 3ª edição do livro intitulado “Projeto Pitanguá: português”, organizado pela
Editora Moderna, tendo como editor responsável Leandro Henrique Mantovani e, ainda,
datado no ano de 2011. Logo, na capa vê-se que a obra é voltada ao componente curricular
“letramento e alfabetização”.
O livro didático “Projeto Pitanguá: português”, em sua contracapa, brevemente exibe a
sua origem e algumas orientações de cuidado e preservação do material. Segundo essas
informações, a obra pertence ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), adquirido e
distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) através do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE).
De acordo com a apresentação do livro didático, este é organizado em 9 unidades,
compostas cada uma por um tema diferente, como: casas; nomes; alimentos; animais; plantas;
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brincadeiras e confusões; no mundo da fantasia; corpo humano; e escola. Ademais, as
unidades possuem a seguinte estrutura: abertura; para ler; estudo da língua; produção de texto;
descobrindo livros; e projeto em equipe. Para melhorar a identificação dos itens da estrutura
das unidades, este trabalho procura se referir a eles como subunidades.
Cabe lembrar que, com fins de aprofundamento da análise, mas sem a pretensão de
limitá-la ao que está exposto, destacam-se quatro atividades do livro para o desenvolvimento
deste trabalho. A primeira atividade está na subunidade “para ler”, a segunda na subunidade
“estudo da língua” e as duas últimas na subunidade “produção de texto”.
O livro didático de Língua Portuguesa dos anos iniciais sob a perspectiva da
sociolinguística
O livro didático, um dos materiais do trabalho pedagógico, também se transformou ao
longo do tempo, assim como a educação. Segundo Freitas e Rodrigues (2008), a origem do
livro didático é datada no século XV, antes da invenção da imprensa, quando cadernos de
textos eram produzidos pelos próprios estudantes universitários da Europa. O advento da
imprensa trouxe a produção em série dos livros e, com o passar do tempo, solidificou-se a
ideia do material impresso como depositário de verdades científicas.
O período entre 1929 até os anos de 1990 marcou o início da trajetória do livro
didático no cenário educacional brasileiro, no qual várias ações políticas foram executadas e
substituídas ao longo dos anos. Os primeiros passos da inserção do livro didático nas escolas
se deram através da criação de políticas e legislações referentes à legitimação e a expansão
das obras até o controle destas, que, frente a respostas insuficientes, levaram a seguidas ações
substitutivas. Tais ações foram motivadas por críticas de diversas naturezas, como por
exemplo: o controle das obras sendo mais político-ideológico do que uma função didática, a
detenção do controle somente nas mãos de órgãos internacionais, a insuficiência de recursos,
o não cumprimento dos prazos de entrega dos livros, a pressão política das editoras, e o
autoritarismo na seleção dos livros (FREITAS; RODRIGUES, 2008).
Freitas e Rodrigues (2008) afirmam que apenas em 1985, com o atual PNLD, ocorreu
a instituição de alterações significativas, como o critério de seleção dos livros pelos
professores, a reutilização do livro por alunos dos anos subsequentes, o aperfeiçoamento das
especificações técnicas para a produção das obras, a ampliação da oferta a todo o ensino
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fundamental e a distribuição gratuita de livros às escolas públicas através de recursos do
governo federal.
Entretanto, foi somente a partir de 1997 que começou a produção e distribuição
massiva e contínua de livros didáticos, no qual a política de execução do PNLD ficou sob o
comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Antes, em 1996,
iniciou-se a avaliação pedagógica dos livros didáticos como nos dias de hoje, levando em
conta seus aperfeiçoamentos ao longo dos anos, e, dois anos depois, foi criado o Guia de
Livros Didáticos, em que consta a síntese da avaliação dos livros didáticos aprovados ao
PNLD. Esse guia é distribuído às escolas e atualmente também se encontra disponível na
internet, tendo como finalidade auxiliar os professores na escolha dos livros que mais
atendem as necessidades da escola, sendo válida a seleção de livros por 3 anos (DIAS, 2010).
Em geral, o livro didático selecionado para a análise – Projeto Pitanguá: português –
apresenta pouca diversidade de gêneros discursivos2 nas subunidades “pra ler” de cada
unidade, visto que a maioria pertence ao gênero discursivo literário. Logo, somente dentro da
subunidade “produção de texto” é possibilitado aos estudantes o contato e a experimentação
de diversos gêneros discursivos. Se por um lado a subunidade “para ler” repete-se entre duas e
quatro vezes em cada unidade, por outro, a subunidade “produção de texto” aparece apenas
uma vez. Deste modo, ainda é visível uma grande diferença em termos de abrangência entre
os gêneros literários e outros gêneros discursivos, restringido a presença destes em atividades
pontuais.
Apesar da abordagem tímida direcionada aos diversos gêneros discursivos no livro,
observa-se que a proposta curricular contemporânea para os anos iniciais do ensino
fundamental tenciona envolver esta diversidade, indo ao encontro do que Dias (2010, p. 138)
diz:
com o advento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa,
os livros didáticos atuais estão fundamentados basicamente na teoria dos gêneros
textuais/discursivos e sugerem que o trabalho com a língua materna, no que se refere
ao ensino de recursos expressivos da linguagem, tanto oral quanto escrita,
desenvolva o conhecimento necessário para que os participantes envolvidos nos
processos de ensino e aprendizagem saibam adaptar suas atividades linguísticas,
2 Os gêneros discursivos são tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados em cada esfera da atividade
humana. Desse modo, eles estão sempre presentes na comunicação, o que revela que as pessoas dominam um
vasto repertório de gêneros que muitas vezes são utilizados inconscientemente. Cabe lembrar que os gêneros
discursivos sofrem constantes atualizações ou transformações para atender as necessidades das esferas da
atividade humana, logo, não podem ser pensados fora da dimensão sócio-histórica (BAKHTIN, 2011).
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com sucesso, aos eventos sociais, comunicativos de que já participam e também para
participarem de novos.
Na página 15 do livro didático há um poema de Pedro Bandeira chamado
“Resolução”, como mostra a imagem 1:
Imagem 1 – Poema apresentado na subunidade “para ler”
Fonte: Mantovani (2011, p. 15).
Este poema está dentro da unidade 1 com o tema “casas” e da subunidade “para ler”.
Aqui, evidencia-se o processo inicial de leitura, denominado de pré-leitura (BRAGA;
SILVESTRE, 2011), efetivado pela pergunta “o que levaria um menino a fugir de casa?”,
visto sua importância por estimular o prosseguimento do processo de forma autônoma através
da aproximação dos conhecimentos prévios dos estudantes. Porém, o poema se insere no
gênero discursivo literário e, como já foi dito anteriormente, este gênero predomina no livro.
Ele emprega o uso da variedade padrão da língua portuguesa e não está explicitamente
inserido em uma prática social discursiva, deixando vaga a ideia do que se pretende, a função
deste tipo texto, a quem se destina, entre outras informações primordiais se tratando do
trabalho com gêneros na prática educativa.
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Levando em conta a presença expressiva do gênero literário com o uso da variedade
padrão da língua, é preciso uma mediação cautelosa destes textos que podem implicitamente
fomentar o mito da unidade linguística brasileira (BAGNO, 2007). Segundo a
sociolinguística, o reconhecimento da diversidade linguística no Brasil é primordial. As
variedades linguísticas encontram sustentação na grande extensão territorial brasileira e nas
desigualdades sociais, sendo que esta última acaba por criar uma divisão entre os que
dominam a variedade padrão e os que não a dominam – sendo desprestigiados e
marginalizados (BAGNO, 2007).
Por isso, é importante problematizar os motivos que levam a perpetuação da
hegemonia da variedade padrão da língua, repercurtida nos livros didáticos. Mais ainda,
problematizar a concepção que ainda prevalece entre os brasileiros de que as variedades
menos prestigiadas caracterizam os sem língua, já que estes sujeitos não tem contato com a
variedade predominante e, ainda assim, às vezes a tomam como referência de ideal,
comungando com a desconsideração da gramática específica, lógica, coerente e funcional da
variedade não-padrão (BAGNO, 2007).
O preconceito linguístico denunciado por Bagno (2007) também é percebido por
Soares (1993) que, ao pensar na variedade padrão da língua, se refere a ela como dialeto de
prestígio, porque pertence aos grupos dominantes. Visando transformar a escola, para que
consequentemente transforme a luta dos estudantes contra a desigualdade social, Soares
defende o bidialetalismo, o que significa o domínio do dialeto de prestígio e do dialeto de
classe, este último pertencente aos grupos dominados.
Já na página 17 há uma atividade que solicita aos estudantes a seleção no poema por
palavras que iniciam com a letra B, com a sílaba BA, com a letra M e com a sílaba MA, como
mostra a imagem 2:
Imagem 2 – Atividade apresentada na subunidade “estudo da língua”
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Fonte: Mantovani (2011, p. 17).
Esta atividade encontra-se dentro da unidade 1 com o tema “casas” e da subunidade
“estudo da língua”. Ela se trata de uma atividade que se limita a questões mecânicas,
desestimulando o uso do livro didático, pois a única ação dos estudantes é completar o quadro
através da seleção de palavras com as iniciais indicadas, tendo o poema como um mero
recurso. Apesar do livro ter sido publicado em 2011, esta atividade remete a alguns aspectos
característicos dos livros didáticos de meados dos anos 70, quando “os exercícios cobravam
os fatos linguísticos em frases e enunciados e, em relação ao estudo do vocabulário, os
exercícios eram, em geral, confundidos com os exercícios de ortografia”, segundo Dias (2010,
p. 136).
Embora ainda haja nos livros didáticos a presença de atividades da mesma natureza
desta última, é visto que as obras têm buscado trazer propostas pedagógicas mais condizentes
com a proposta curricular contemporânea. Porém, Bagno e Rangel (2005) afirmam que os
professores se sentem pouco habilitados a tirar proveito dessas obras diante das novas
propostas trazidas por elas e, com isso, observa-se a lacuna entre as propostas oficiais de
ensino, a formação inicial dos professores e as demandas da educação básica. Desse modo,
Bagno e Rangel (2005, p. 67) apontam que:
[...] verifica-se uma situação de mal-estar em sala de aula, uma vez que o professor
sabe – ou pelo menos ouviu dizer – que não deve mais se limitar à transmissão da
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gramática normativa, executada por meio dos exercícios mecânicos de
classificação/reconhecimento de palavras/funções de palavras, mas não se sente
seguro para substituir essa prática por “outra coisa”.
Nas imagens 3 e 4, vê-se a imagem de uma atividade que está nas páginas 69 e 70 da
unidade 3 com o tema “alimentos” e da subunidade “produção de texto”.
Imagens 3 e 4 – Atividade apresentada na subunidade “produção de texto”
Fonte: Mantovani (2011, p. 69-70).
A atividade exemplifica a consonância com as iniciativas de trabalhar diferentes tipos
de gêneros discursivos nos livros didáticos, neste caso a receita culinária, mas não exibe
claramente o que a proposta solicita. A atividade se aproxima da sociolinguística ao envolver
os estudantes em uma ação no qual necessitam criar uma receita de um doce a sujeitos reais,
ou seja, aos seus colegas. Ainda que haja a inserção do gênero em uma prática social
discursiva, as orientações não indicam a variedade linguística a ser empregada. Desta forma,
aos professores incumbe situar a atividade para melhor explorá-la, evitando, assim, equívocos
quanto o gênero discursivo e à variedade linguística.
Neste sentido, é importante o esclarecimento sobre o emprego da variedade linguística
mais adequada a cada situação comunicativa, impedindo a difusão de respostas que possam
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estimular a ideia da predominância do “português correto” e preconceitos contra as
manifestações linguísticas que não pertençam à norma culta “[...] extremamente idealizada e
rígida, composta, em boa parte, de regras de uso da língua já caídas em obsolescência e
preservadas, quando muito, em fórmulas fixas presentes em gêneros textuais bastante
ritualizados”, conforme Bagno e Rangel (2005, p. 68) defendem.
Na unidade 8 com o tema “corpo humano”, especificamente na página 175, localizada
dentro da subunidade “produção de texto”, há uma proposta articulada e clara, que vai ao
encontro do que a sociolinguística sugere. Na imagem 5, se observa como a atividade é
exibida:
Imagem 5 – Atividade apresentada na subunidade “produção de texto”
Fonte: Mantovani (2011, p. 175).
O primeiro aspecto positivo aqui levantado diz respeito à transparência do objetivo do
texto exigido na atividade, isto é, informar. Contudo, a atividade não fala exatamente sobre a
natureza do mesmo, deixando brechas para a criação de diversos gêneros discursivos que
tenham a mesma finalidade, os quais, dependendo do contexto, podem se mostrar
significativos ou não. Além disso, segundo o que a atividade menciona, a linguagem pode
conter palavras ou expressões informais, reconhecendo as variedades não-padrão também
como parte integrante do ensino de Língua Portuguesa.
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Por fim, o texto proposto pela atividade pode ser situado em uma prática social
discursiva no qual os estudantes possam compreender o mundo e intervir no mesmo, pois não
está restrito a uma situação genérica que tem os professores como os únicos leitores no papel
de leitores-avaliadores. Ao ser veiculado a possíveis leitores reais do mural, que entrerão em
contato com as pesquisas acerca das curiosidades, o texto levará em conta a dinâmica da
interação autor-texto-leitor.
Mesmo que os elementos destacados na última atividade representem tímidos passos
em direção ao que a sociologuística pretende como fim, não se pode negar suas contribuições
enquanto alternativas às novas propostas pedagógicas. Propostas semelhantes podem
assegurar o uso adequado dos gêneros discursivos e a não hierarquização destes e,
consequentemente, produzir o efeito pretendido com a linguagem em consonância com o que
cada situação comunicativa impõe. Enfim, estas propostas condizem com os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa, dado que:
toda educação verdadeiramente comprometida com o exercício da cidadania precisa
criar condições para o desenvolvimento da capacidade de uso eficaz da linguagem
que satisfaça necessidades pessoais — que podem estar relacionadas às ações
efetivas do cotidiano, à transmissão e busca de informação, ao exercício da reflexão
(BRASIL, 1997, p. 25).
De acordo com Bagno e Rangel (2005), o fato da escola trabalhar e valorizar as
variedades linguísticas estigmatizadas e a realidade multilingue do Brasil não exclui sua
responsabilidade pelo ensino sistemático de formas linguísticas faladas e escritas mais
prestigiadas que, historicamente, culturalmente e socialmente foram padronizadas a interações
sociais mais formais e monitoradas. Análogo a isso, se faz necessária a compreensão de que
os preconceitos contra as variedades linguísticas estão intimamente vinculados aos
preconceitos de natureza social e que a língua está em constante transformação, assim como a
sua variedade padrão que, por ser um constructo social, está sujeita à obsolescência, à crítica e
à reformulação.
Sem dispensar a formação técnica e especializada da língua por parte dos professores
de Letras, a capacitação de bons usuários da língua portuguesa não implica o conhecimento de
técnicas sobre a mesma. A metalinguagem técnica, estudada por Sírio Possenti e referenciada
por Bagno, distancia-se da necessidade da educação básica trabalhar o português de maneira
ampla, contextualizada e livre de preconceitos. Sendo assim, a lógica que se leva a crer que é
impensável extinguir o ensino da grámatica normativa da escola precisa ser contestada pelos
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próprios professores, seguindo o entendimento de que, quando se fala da aplicabilidade da
língua, esta não se limita aos aprendizados massantes e insignificantes da gramática
(BAGNO, 2007).
Sabe-se que a intenção dos atuais livros didáticos em contemplar diversos gêneros
discursivos e os contextualizar em suas propostas se deu graças as orientações dos PCNs em
relação ao texto como unidade de ensino unido ao letramento, o que corresponde ao trabalho
com os gêneros de maneira significativa, vinculados aos seus usos e funções sociais. Oliveira
(2010) fala que vários conceitos abordados nos PCNs, como gênero e letramento, por
exemplo, também ecooam nas falas dos professores da educação básica, mas o mesmo não é
observado em termos de práticas educativas. Com isso, a autora questiona-se se há a
apropriação destes conceitos ou apenas a “popularização” de certos referenciais teóricos.
Pensando nisto, ela destaca as concepções como norteadoras das práticas educativas:
se entendermos ensinar como ‘instrução’, julgamos que não podemos ensinar os
gêneros textuais. O objeto que permite ser ensinado é o texto ou, talvez melhor, os
mecanismos constitutivos do texto. Se ensinar é visto como um processo de
‘imersão’ na prática social, a resposta é positiva, tarefa que exige uma abordagem
contextualizada, ou mesmo, etnográfica. Nesta perspectiva, sugerimos os projetos de
letramento como práticas que contextualizam a leitura e a escrita, possibilitando
abordar os gêneros não como um ‘fim’, mas como um ‘meio’. Corresponde, noutros
termos, a ensinar com os gêneros e não sobre os gêneros, o que significa considerá-
los como o elemento organizador da ação de ensinar. Trabalhar, nesse sentido,
requer que se organize o currículo como algo flexível, dinâmico, voltado para a
realidade local (OLIVEIRA, 2010, p. 342).
Considerações finais
Em virtude do que foi analisado ao longo do trabalho, pode-se inferir que o livro
didático de Língua Portuguesa ainda possui um grande caminho a ser percorrido no sentido de
uma aproximação mais intensa com a ótica da sociolinguística. Apesar deste ramo de estudos
ganhar um espaço cada vez mais expressivo no campo de formação de professores, muito
pouco é concretizado nas práticas educativas das escolas e nos próprios materiais, como é o
caso do livro didático. Tendo em vista a inserção da escola em um contexto maior e
complexo, a resistência quanto a perpetuação da atual situação exige uma participação mais
ativa de toda a comunidade escolar, principalmente dos professores, no que tange a decisões
dos rumos que os materiais e práticas tomam cotidianamente.
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Sem dúvidas, é desafiador planejar, mediar e avaliar a prática educativa com o uso do
livro didático sob a perspectiva da sociolinguística, pois isto demanda o questionamento de
concepções, práticas e posturas até então institucionalizadas com respeito ao estudo da Língua
Portuguesa na escola. Em contrapartida, o enfrentamento deste desafio é enriquecedor à
educação na medida em que descontrói mitos, valoriza a diversidade inerente a toda e
qualquer sociedade e possibilita a compreensão e a intervenção do/no meio social.
REFERÊNCIAS
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Loyola, 2007.
BAGNO, Marcos; RANGEL, Egon de Oliveira. Tarefas da educação lingüística no Brasil.
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BRAGA, Regina Maria; SILVESTRE, Maria de Fátima Barros. Construindo o leitor
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PESQUISA DO NUPEPE, 2., 2010, Uberlândia. Anais... Uberlândia: Escola de Educação
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OLIVEIRA, Maria do Socorro. Gêneros textuais e letramento. Revista Brasileira de
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