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A ti, com amor!!!
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DEDICATRIADedico este trabalho cientfico a algumas pessoas especiais:
Em primeiro lugar, quero fazer uma homenagem pstuma a meu pai, homem
negro, pobre, operrio explorado e com pouca instruo erudita, que fez seus filhos
crerem que a transformao social, seja ela coletiva ou individual, s possvel atravs
de processos educativos.
minha me, guerreira incansvel.
Raissa, uma menina iluminada, que com sua curiosidade me estimula aquerer buscar mais conhecimento.
Aos meus irmos Gabriel e Guilherme e suas respectivas famlias, pela
disposio e carinho em me acolher em suas casas neste perodo e por todo apoio e
incentivo, sempre demonstrados, com suas palavras de motivao e suas atitudes de
desprendimento.
A ti, que reconheces o quanto este texto importante na minha trajetria.
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AGRADECIMENTOSO caminho do conhecimento rduo e solitrio, mas muito e infinitamente
gratificante. Inicio meus agradecimentos primeiramente pela pessoa que confiou em
mim desde o comeo, demonstrando interesse em minha proposta de pesquisa e, acima
de tudo, sempre buscando despertar o senso de pesquisador em seus alunos. Ao
professor, orientador, mestre Professor Doutor Jos Carlos Gomes dos Anjos, pela
competncia, seriedade, disciplina, pacincia, companheirismo e, principalmente,
confiana depositadas em mim ao longo da orientao desse trabalho, a quem dedico o
resultado desse esforo.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Sociologia por seu
comprometimento na formao de profissionais capacitados e por seu companheirismo
ao longo dessa caminhada denominada mestrado.
Raissa, minha filha e grande incentivadora, que muitas vezes, com suas
doces palavras, me mostrou o quanto importante minha formao.
Por fim agradeo Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior (CAPES) pela concesso de uma bolsa de estudos que permitiu a realizao
desta pesquisa de forma plena e com dedicao exclusiva.
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RESUMO
A presente dissertao tem como tema o pensamento social e poltico na obra de Abdiasdo Nascimento. A ideia que norteia este trabalho visa demonstrar a importncia daproduo intelectual de Abdias do Nascimento no quadro analtico do pensamentosocial brasileiro. A pesquisa busca apresentar, a partir de sua obra, a forma peculiarcomo este intelectual compreende os fenmenos sociais no seio da sociedade brasileira.Dono de um estilo prprio de escrita, Nascimento foi um crtico contumaz da estruturasocial do pas, alicerada no processo escravagista. O que este trabalho prope que sepense sua obra para alm do militantismo, j bastante analisado por diversos autores.Pretende-se evidenciar, ao longo do texto, a forma como esse modelo analtico produzido. Primeiro, com a crtica a um padro genocida de organizao da sociedade,que de forma sutil busca subtrair as possibilidades de acesso aos afrodescendentes,
jogando-os marginalidade dos processos sociais estabelecidos no pas desde aconstituio do sistema escravagista e aps sua supresso. Em seguida a ideia explorar, de forma sociolgica, o significado do quilombismo como modelo de (re)organizao social.
Palavras chaves: Abdias do Nascimento, pensamento social, relaes raciais.
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ABSTRACTThis dissertation deals with the social and political thought in the work of Abdias do
Nascimento. The idea behind this paper demonstrates the importance of intellectualproduction of Abdias do Nascimento in the analytical framework of Brazilian socialthought. The research seeks to present, from his work, the peculiar way this intellectualunderstand social phenomena within the Brazilian society. Owner of a style of writing,Nascimento was a fierce critic of the country's social structure, rooted in slavery case.What this study suggests is that they think his work beyond the militancy, alreadyextensively analyzed by several authors. It is intended to show, throughout the text, howthis analytical model is produced. First, the criticism leveled against a genocidal patternof social organization, which seeks subtly circumvent the possibilities of access ofAfrican descent, throwing them to the marginalization of social processes established inthe country since the establishment of the system after slavery and its abolition. Thenthe idea is to explore, in a sociological significance of the Quilombo as a model of (re)social organization.
Keys words:Abdias do Nascimento, social thought, race relations.
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LISTA DE ABREVIATURAS
AIB Aliana Integralista Brasileira
FNB Frente Negra Brasileira
TEN Teatro Experimental do Negro
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SUMRIOINTRODUO ............................................................................................................... 8
I. Breve relato bibliogrfico de Abdias do Nascimento .......................................... 10
II. Contexto de anlise .............................................................................................. 14
III. A obra de Abdias do Nascimento uma brevssima introduo ........................... 15
IV. Objetivos do estudo ............................................................................................ 16
V. Hipteses do estudo ........................................................................... ..................17
VI. Breve nota metodolgica....................................................................................18CAPTULO 01. O GENOCDIO DO NEGRO BRASILEIRO OU O PROCESSODE UM RACISMO MASCARADO............................................................................22
CAPTULO 02. O QUILOMBISMO: UMA ALTERNATIVA DEORGANIZAO SOCIAL..........................................................................................40
2.1 O quilombismo como projeto de nao............................................................53
CAPTULO 03. O DEBATE EM TORNO DE UM PENSAMENTO SOCIAL
ALTERNATIVO...........................................................................................................583.1 Ps-colonialismo e crtica social: uma possibilidade ao pensamento de Abdias
do Nascimento.................................................................................................................72
CAPTULO 04. GUISA DE CONCLUSES.........................................................83
REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................89
ANEXOS.........................................................................................................................93
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INTRODUO
A importncia dos intelectuais militantes, nos diversos movimentos sociais
contemporneos, no pode ser medida apenas por sua atuao frente s organizaes ou
instituies concebidas pela sociedade civil. Muitos deles tendem a estabelecer novas
formas de percepo e anlise da realidade social em que esto inseridos. Tais formas
de percepo propiciam anlises que se encontram a margem do espao acadmico
sobre os fenmenos sociais, os quais merecem um tratamento sociolgico que busque
contemplar a lacuna deixada no debate sobre o pensamento social brasileiro.
Este o caso de Abdias do Nascimento, considerado internacionalmente1como
um dos principais pensadores pan-africanistas. Sua obra representa um aporte central
para a anlise da natureza orgnica e estrutural do racismo latino-americano,
especialmente a partir da perspectiva da poltica regional. Neste sentido, seus escritos
foram decisivos para avanar a premissa terica de que na Amrica Latina se formou
um sistema de dominao tnico-racial e socioeconmico especfico, baseado
precisamente na "mestiagem programada" entre raas e etnias situadas em posies
fixas de inferioridade e de superioridade. Esta tese encontra-se na obra O genocdio do
negro brasileiro (1978), que pode ser classificada como um trabalho seminal no que
tange ao debate sobre a questo racial e a condio poltica dos diversos segmentos
afrodescendentes no Brasil.
1
Abdias do Nascimento Professor Emrito da Universidade do Estado de Nova York e Doutor HonorisCausa pelas Universidades de Braslia, Federal e Estadual da Bahia, Estado do Rio de Janeiro, e ObafemiAwolowo da Nigria. Hoje ele indicado oficial ao Prmio Nobel da Paz em funo de sua defesaconsistente, desde o sculo passado at hoje, dos direitos civis e humanos dos afrodescendentes no Brasile no mundo. Vem sendo agraciado com honrarias nacionais e internacionais, como por exemplo, oPrmio Mundial Herana Africana do Centro Schomburg para Pesquisa da Cultura Negra, BibliotecaPblica de Nova York (2001); o Prmio Toussaint Louverture (2004) e o Prmio Direitos Humanos eCultura da Paz (1997), ambos da Unesco; e o Prmio de Direitos Humanos da ONU (2003). AUniversidade Obafemi Awolowo, de Il-If, Nigria, outorgou-lhe, em 2007, o ttulo de Doutor emLetras, Honoris Causa. O Conselho Nacional de Preveno da Discriminao, do Governo Federal doMxico, outorgou a Abdias do Nascimento o seu prmio em reconhecimento contribuio destacada preveno da discriminao racial na Amrica Latina (2008). Fonte:http://www.ipeafro.org.br/home/br/personalidades
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Esta pesquisa visa demonstrar a importncia da produo intelectual de Abdias
do Nascimento no quadro analtico do pensamento social brasileiro2e, a partir de sua
obra, apresentar a forma peculiar como este intelectual compreende os fenmenossociais. Dono de um estilo prprio de escrita, Nascimento foi um crtico contumaz da
estrutura social brasileira, alicerada no processo escravagista. O que este trabalho
prope que se pense sua obra para alm do militantismo, j bastante analisado por
diversos autores (vide os trabalhos de POLICE, 2000; MACEDO, 2005; CEVA, 2006;
SILVA, 2010), localizando sua contribuio analtica ao pensamento social brasileiro.
Dois trabalhos seus so os subsdios basilares desta pesquisa, a saber: O Genocdio do
Negro Brasileiro (1978); e O quilombsimo (1980). O primeiro traz ao debate sobre asrelaes raciais e as formas como o africano e, posteriormente, o afrodescendente foi,
sistematicamente, alijado de qualquer possibilidade de insero na dinmica social
brasileira e latino-americana, se assim quisermos, por obra de polticas de segregao
velada, mas no menos depreciativas do que o racismo legitimado cientfica e
juridicamente nos Estados Unidos e diversos pases da Europa. O segundo demonstra
um projeto poltico alternativo sociedade brasileira, sintetizando um modelo de
reorganizao social onde as prticas coletivistas oriundas da herana africana no Brasile na Amrica Latina so as bases de uma nova dinmica social multicultural e
multirracial.
O que se pretende evidenciar ao longo deste trabalho a forma como esse
modelo analtico produzido. Inicialmente, com a crtica a um padro genocida de
organizao da sociedade que, de forma sutil, busca subtrair as possibilidades de acesso
aos afrodescendentes, jogando-os marginalidade dos processos sociais estabelecidos
no pas desde a constituio do sistema escravagista e aps sua supresso. Em seguida aideia explorar, de forma sociolgica, o significado do quilombismo como modelo de
(re) organizao social.
2O pensamento social brasileiro caracteriza-se pela vasta produo intelectual que tem buscado desenhar,orientar, compreender e conceber a dinmica social no Brasil. Na acepo de Maia (2010) o pensamentosocial brasileiro no pode ser concebido como um conjunto de textos e intelectuais clssicos associados auma tradio pretrita, mas como o campo contemporneo de estudos sobre essa tradio. Logo, opensamento social brasileiro no um ponto de chegada, mas um modo de construo do discurso
terico, que se orienta para o desvendamento da modernidade no Brasil, entendida a partir de suainscrio perifrica no mundo ocidental. (MAIA, 2010).
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O mote de discusso que orienta a argumentao de Abdias do Nascimento
refere-se s formas de participao poltica da populao negra, bem como, s
alternativas encontradas por este grupo sua insero na estrutura social brasileira.
I. BREVE RELATO BIOGRFICO DE ABDIAS DO NASCIMENTO
Abdias do Nascimento nasceu aos 14 dias do ms de maro de 1914, em
Franca, cidade situada no nordeste do Estado de So Paulo, a 395 quilmetros da capital
paulista. Filho de uma doceira e um sapateiro o segundo de uma famlia de sete
irmos. A famlia de Nascimento no possua muitos recursos, e ele foi obrigado a
conciliar trabalho e estudos durante a infncia e adolescncia. Teve ocupaes comoentregador de po, leite e carne nas casas das famlias ricas da cidade e ajudante em
uma farmcia (NASCIMENTO, 2006).
Aos sete anos, entrou para a escola primria no Grupo Escolar Coronel
Francisco Martins (POLICE, 2000), a primeira escola pblica da cidade, fundada em
1905. Em 1928, ingressou no curso de contabilidade no colgio Ateneu Francano.
Segundo Nascimento (2006), s lhe foi possvel estudar nessa escola devido
interveno da me com o prefeito da cidade, o qual lhe arranjou uma bolsa de estudos.
Nessa mesma poca, comeou a trabalhar em um consultrio mdico como atendente. O
vizinho, um dentista, possua uma biblioteca que Nascimento viria a frequentar. No seu
depoimento a Police (2000), ele afirma que passava o tempo lendo autores como
Euclides da Cunha, Flaubert e clssicos da literatura internacional.
Vinte e seis anos separam a abolio da escravido do nascimento de
Abdias. Seus pais, porm, no haviam sido escravos, diferentemente de sua av
materna. Isso demonstra que as feridas oriundas do mundo escravista ainda se
encontravam abertas e podiam ser sentidas (MACEDO, 2005). Aos dezesseis anos
deixou Franca para prestar o servio militar em So Paulo. Vindo do interior
completamente ignorante, tolo, sem meios de se orientar em assuntos polticos, como
ele mesmo admite (NASCIMENTO, 2006), j trazia em sua essncia a vontade de atuar
em defesa da cidadania dos afro-brasileiros. Contudo era muito arriscado participar dos
movimentos de reivindicao negra, por que os soldados estavam proibidos de
envolverem-se com a poltica ou qualquer atividade de cunho social. Em 1930,
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Nascimento entrou para o Exrcito. Esta foi a sua estratgia para sair de casa e ir para a
capital paulista. Alterou a sua idade no documento, aumentando-a, e conseguiu a
passagem de trem entre Franca e So Paulo por meio de um conhecido de sua me naCmara Municipal da Cidade.
Chegando a So Paulo, apresentou-se como voluntrio no Exrcito, sendo
designado para o Quartel Militar de Itana, atual Osasco, onde comeou a servir como
recruta no 2 Grupo de Artilharia Pesada. Ali ficou durante seis anos e galgou vrias
posies, chegando ao posto de Cabo e realizando servios administrativos, devido ao
seu grau de instruo o qual era mais elevado do que o da maioria do contingente.
Todavia, sua iniciao na instituio militar no foi tranquila. Conheceu a vida dura e
disciplinada das Foras Armadas atravs dos trabalhos que era designado a fazer. Ainda
em 1930, sua me faleceu em Franca, algo marcante para o jovem, que havia fugido
dias antes para visitar a me que se encontrava enferma (NASCIMENTO, 2006).
Na verdade a carreira militar descortinou para Abdias a primeira percepo de
como funcionavam as relaes raciais no Brasil. Ele percebeu que existia um racismo
camuflado, velado entre a ridicularizao de tudo aquilo que o negro produzia e atolerncia paternalista para com os negros engajados no servio militar. O tratamento
diferenciado entre negros e brancos no exrcito, apenas refletia o funcionamento da
sociedade brasileira.
Entre julho e setembro de 1932, o autor combateu na Revoluo
Constitucionalista de 1932, no batalho do General Euclides Figueiredo, atuando como
cabo pelo lado de So Paulo. Durante a batalha, Nascimento ficou a par da existncia da
Legio Negra, nome dado aos batalhes compostos somente por negros e que atuaramnos conflitos de 1932, em So Paulo. A Legio era formada por indivduos que se
desligaram da Frente Negra Brasileira pelo fato de a entidade se posicionar de maneira
neutra em relao ao movimento revolucionrio.
Abdias do Nascimento se engajou na Frente Negra Brasileira (FNB) que foi um
importante movimento, iniciado em So Paulo em 1931, que tinha como princpio o
enfrentamento das atitudes racistas produzidas pela sociedade para alcanar a igualdade
social. A Frente, como era chamada por seus associados considerada a primeira
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organizao poltica e racial dos negros brasileiros (GUIMARES, 1999, 2002, 2003;
BUTLER, 1998; ANDREWS, 1991; SANTOS, 1985; MITCHEL, 1977). A ideologia
que embasava a FNB era uma ideologia nacionalista de integrao e assimilao, ouseja, visava incorporao dos negros na sociedade brasileira que se constitua naquele
momento histrico e objetivava a apropriao dos valores da sociedade dominante.
Em 1933, Nascimento filia-se Aliana Integralista Brasileira (AIB). Tinha
apenas 19 anos poca da adeso e circulava por um ambiente de classe mdia urbana,
pois se tornara instrutor do Tiro de Guerra, lidando com jovens oriundos desta classe
social, alm de estabelecer contato com os oficiais. O integralismo, segundo o prprio
autor, teve uma influncia bem maior na formao poltica e intelectual do ativista
negro, se comparado Frente Negra. Contudo, preciso ter em mente que os projetos
polticos destas duas organizaes eram bastante prximos, alm de vrios integrantes
da Frente Negra terem uma posio simptica ao integralismo ou participarem
simultaneamente em ambas as organizaes.
Em 1936, em decorrncia de uma srie de perseguies policiais, por causa de
sua militncia, Abdias resolveu ir morar no Rio de Janeiro o que foi de grandeimportncia sua constituio intelectual. Neste estado, os negros estabeleceram formas
diferenciadas de relao com sua cultura, atravs, principalmente, de seus terreiros de
candombl e isso foi uma nova perspectiva educacional para Abdias do Nascimento,
pois, em So Paulo a reao era mais instintiva contra a discriminao, se dava atravs
de um enfrentamento direto, de uma atitude de guerra, sem outro fundamento que no
fosse a justia, os direitos dos cidados. No Rio de Janeiro, Abdias pode entrar naquilo
que para ele era outra dimenso da cultura negra, outra forma de intelectualidade, ele
entrou naquilo que seria a alma negra e pode compreender as tradies culturais
africanas com mais profundidade.
Foi tambm no Rio de Janeiro que Abdias terminou o curso de economia,
iniciado na Escola de Comrcio Alves Penteado de So Paulo, uma Faculdade de
Administrao e Finanas. Tendo transferido sua matrcula para a Universidade do Rio
de Janeiro, especificamente, para a Faculdade de Economia onde concluiu sua formao
(NASCIMENTO, 2006).
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A dcada de 1940 marcou o incio da produo intelectual de Nascimento.
Nesse perodo o autor comeou a sistematizar suas primeiras ideias no papel. Grande
parte deste material composta por artigos de jornais (Dirio Trabalhista, FolhaCarioca, Folha do Rio, Quilombo, A Situao, Dirio do Rio, O Jornal e o Sol), de
revistas (Senzala, Vamos Ler, The Crisis e Himalaya) e alguns manuscritos inditos
(MACEDO, 2005).
Educado em instituies e circulando por espaos onde sua condio racial era
sempre evidenciada, o jovem negro aos poucos foi construindo sua conscincia racial,
um processo que poderamos denominar de tornar-se negro (MACEDO, 2005). A
influncia mais forte sob Nascimento at aquele momento teria sido a da Ao
Integralista Brasileira (AIB), seu primeiro espao de atuao poltica, de modo que sua
passagem pela Frente Negra Brasileira soa como efmera, mas no pode ser
desconsiderada. Possivelmente, foi na Frente que Nascimento desperta para a
possibilidade de uma futura atuao poltica pela causa negra.
Ao sair da priso3, no incio de 1944, Nascimento estava decidido a
implementar sua ideia de fundar um teatro negro. Logo foi criada uma das maisexpressivas contribuies ao cenrio artstico, social e poltico brasileiro, o Teatro
Experimental do Negro (TEN)4. O TEN foi muito mais do que um grupo teatral
3O autor havia sido preso em duas ocasies e perodos diferentes. Em 1937, ao criticar a ditadura Vargas,Abdias foi preso distribuindo panfletos que criticavam a implementao do Regime do Estado Novo. Em1943, preso por insubordinao no Exrcito e pela confuso em um bar que havia causado suaexonerao da instituio. O perodo de encarceramento marcado por experincias como ator e diretorteatral.
4Nasceu, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha aresgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados poruma sociedade dominante que, desde os tempos da colnia, portava a bagagem mental de sua formaometropolitana europia, imbuda de conceitos pseudocientficos sobre a inferioridade da raa negra.Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorizao social do negro no Brasil, atravs da educao, da culturae da arte. O TEN visava a estabelecer o teatro, espelho e resumo da peripcia existencial humana, comoum frum de idias, debates, propostas, e ao visando transformao das estruturas de dominao,opresso e explorao raciais implcitas na sociedade brasileira dominante, nos campos de sua cultura,economia, educao, poltica, meios de comunicao, justia, administrao pblica, empresas articulares,vida social, e assim por diante. Um teatro que ajudasse a construir um Brasil melhor, efetivamente justo edemocrtico, onde todas as raas e culturas fossem respeitadas em suas diferenas, mas iguais em direitos
e oportunidades. (NASCIMENTO, Abdias do. Teatro Experimental do Negro: trajetria e reflexes.ESTUDOS AVANADOS 18 (50), 2004, p. 209-224.
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composto s por negros. Alm da parte artstica com vrias peas centradas na
temtica racial organizou concursos de beleza e artes plsticas, promoveu intensa
atuao poltico-social atravs de convenes, conferncias, congressos, seminrios,cursos de alfabetizao e iniciao artstico-cultural para negros, editou um jornal
intitulado Quilombo e alguns livros (MACEDO, 2005).
II. CONTEXTO DE ANLISE
Para que se possa compreender melhor a contribuio terica de Nascimento
necessrio esclarecer que se trata de uma obra que no s sintetiza um discurso crtico
estrutura social vigente, mas, que tambm prope uma reinterpretao da realidadebrasileira por meio da defesa do pan-africanismo. Dentre as diversas contribuies de
Nascimento destaca-se a proposta de pensar a situao dos afrodescendentes brasileiros
desde o prisma dos seus homnimos da Amrica Latina, problemtica que nos dias de
hoje vem sendo retomada sob a tica das teorias ps-colonialistas.
Alm disso, Abdias do Nascimento tambm foi poltico atuante no Congresso
Nacional, cumprindo mandato como Deputado Federal (1983-1987) e como Senador
(1997-1999). Desta atividade pode-se destacar, como subsdio ao debate sobre poltica e
raa, as diversas proposies interpostas por Nascimento que traziam no escopo de suas
justificativas a necessidade de se pensar a sociedade brasileira a partir de critrios
raciais.
Defensor da integrao social a partir de um princpio de organizao racial, na
qual a matriz identitria que origina a conformao da nao deve ser observada para
que se conceba uma perspectiva de cidadania, Abdias no postula a segregao, mas o
reconhecimento do negro enquanto ator relevante para a constituio de uma identidade
nacional. Ainda afirma que a histria do Brasil uma verso concebida por brancos,
para os brancos e pelos brancos, exatamente como sua estrutura econmica,
sociocultural, poltica e militar tem sido usurpada da maioria da populao para o
benefcio exclusivo de uma elite branca/brancide, supostamente de origem rio-
europia. A resistncia dos afrodescendentes a esse quadro de racismo, preconceito,
excluso e desigualdade discutida e perpassa toda a obra de Nascimento. Dentro de
sua perspectiva:
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[...] a tenaz persistncia da cultura africana no Brasil e em outras partes daAmrica do Sul no pode razoavelmente ser atribuda a uma supostabenevolncia dos rio-latinos, nem ao carter e cultura dos mesmos. Emqualquer caso, a falsa imagem de uma escravido humanizada, benemrita,com certa liberdade tem sido atribuda ao Brasil como tambm AmricaLatina, de modo geral. Porm, no foram menos racistas nem menos cruisdo que sua contraparte rio-anglo-saxnica. Da mesma forma que nosEstados Unidos, tambm na Amrica Latina ou do Sul, e no Brasil, nopermitiam aos africanos a prtica livre de seus costumes e tradies(NASCIMENTO, 1980 p. 16).
Percebe-se que a temtica da qual se ocupa Nascimento refere-se a importncia
da contribuio cultural negro-africana construo da identidade nacional. Mesmo que
diversos recursos intelectuais tenham sido usados para desconsiderar esta participao,
Nascimento um defensor deste fenmeno ancorado na resistncia dos povos africanosvindos Amrica, bem como, em sua efetiva manuteno do status cultural de matriz
africana.
Neste sentido, dada a complexidade da discusso proposta na obra de Abdias
do Nascimento, sem dvida alguma, ainda inexplorada pela sociologia brasileira e,
ainda mais, considerando-se sua ampla atividade militante e intelectual e, tambm em
face da crescente presena da questo racial como tema de destaque na agenda poltica
nacional, justifica-se que uma abordagem analtica se debruce sobre a sua obra.
Os temas sempre presentes na obra de Abdias do Nascimento sobre a
importncia do negro como ator social relevante sociedade brasileira, especialmente a
crtica a um modelo social construdo a partir de hierarquias raciais, podero contribuir
elucidao e compreenso sobre as reais consequncias da escravido aos negros
brasileiros, e talvez possam demonstrar tambm a atualidade do debate sobre a condio
social do negro no Brasil.
III.A OBRA DE ABDIAS DO NASCIMENTO: UMA BREVSSIMA
INTRODUO
So vrias as obras desse autor: da bibliografia de Abdias do Nascimento
constam, at 2002, cerca de 132 ttulos entre livros (22), artigos de jornais (43), revistas
(56), manuscritos inditos (03) e depoimentos (03) (Macedo, 2005). Tal produo
demonstra sua extrema capacidade de discorrer sobre temticas diversificadas. Pode-se
destacar como exemplo desta capacidade os seguintes livros: Sortilgio (mistrio negro)
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(1959), Racial Democracy in Brazil: Mith or Reality (1976), O genocdio do negro
brasileiro (1978), Mixture or Massacre (1979), O quilombismo (1980), Sitiado em
Lagos (1981), Povo Negro: a Sucesso e a Nova Repblica (1985), Africans in Brazil:a Pan-African Perspective (1991).
De forma inicial possvel indicar que uma primeira fase de sua produo
intelectual situa-se no final dos anos 1950 e est direcionada discusso sobre a
integrao efetiva do negro na dinmica social brasileira. Com a criao do TEN Abdias
produziu diversos textos para o teatro que posteriormente foram compilados e editados
no livro Sortilgio. Em geral estes textos tinham como principal objetivo dimensionar
os limites da integrao do negro sociedade brasileira.
A segunda fase de sua produo, localizada a partir de meados dos anos 1970,
j remete a diferentes perspectivas a respeito do negro enquanto ator social. Dado o
convvio de Abdias do Nascimento, em seu autoexlio, com diversos intelectuais pan-
africanistas e por sua experincia junto aos militantes negros pelos direitos civis nos
Estados Unidos, o autor passa a tratar a condio dos afro-brasileiros desde uma tica
de integrao dos mesmos luta global de reconhecimento dos africanos eafrodescendentes como o grupo social que sustentou fsica e economicamente a
formao do Novo Mundo. Temas como o pan-africanismo, o multiculturalismo e o
multirracialismo marcam os diversos textos que Abdias produziu neste perodo. Alis,
as obras analisadas e utilizadas na concepo deste trabalho fazem parte deste momento
de produo mais densa e crtica do autor.
O terceiro momento da produo de Abdias situa-se no perodo em que o
mesmo insere-se na arena da poltica formal. Seus textos so marcados pelaapresentao dos debates relacionados s suas proposies que tem como escopo a sua
luta pela implementao de polticas de igualdade racial e reconhecimento da populao
negra, de sua cultura e identidade.
IV.OBJETIVOS DO ESTUDO
O objetivo principal desta dissertao analisar parte da obra de Abdias do
Nascimento, fundamentalmente aquela que trata das questes relacionadas sconsequncias histrico-sociais da escravido para os afro-brasileiros e suas alternativas
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populao negra. Porm, a proposta para esta investigao no se restringe a expor a
importncia deste autor como militante, mas dispe-se a analisar a sua produo
intelectual desde uma perspectiva terica fundamentada no valor creditado atualmenteaos autores tidos como marginais ao pensamento social clssico de cunho cientfico-
acadmico.
Ao analisar a obra de Abdias do Nascimento, busca-se evidenciar a
preocupao contempornea do autor com o pensamento social que ainda concebe as
relaes raciais no Brasil de forma harmnica e no-conflitiva. E ainda, demonstrar que
alternativas so apresentadas pelo mesmo a um quadro de desigualdade social que, na
perspectiva de Nascimento, baseia-se na disparidade racial. Para tanto o trabalho tem
como objetivos:
a) Identificar as categorias analticas e os principais conceitos que esto
presentes em sua obra;
b) Analisar, em suas obras, qual a posio do autor em relao ao debate sobre
a questo racial no pas;
c) Identificar, a partir de sua produo, temas que o localizem em uma linha
terica do pensamento social que tem sido responsvel por abarcar as
perspectivas sociais ditas marginalizadas, a saber, o pensamento ps-
colonialista.
V. HIPTESES DO ESTUDO
Duas hipteses nortearam o trabalho: A primeira entende que a vinculao da
obra de Abdias do Nascimento teoria ps-colonialista se d atravs do projeto do
quilombismo como sistema social alternativo, pois este sintetiza a proposta de um novo
processo de organizao social, buscando nas razes da experincia histrica de luta
especfica dos africanos nas Amricas, e particularmente no Brasil, o modelo para a
articulao de uma ideologia capaz de reorientar a atuao poltica dos
afrodescendentes.
A segunda hiptese supe que o radicalismo exposto no conjunto de escritosproduzidos por Abdias do Nascimento, no que tange a transformao da sociedade
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brasileira, relegou sua obra ao ostracismo acadmico. Em funo de Nascimento no
estar atrelado rede de produo do conhecimento em cincias sociais, vigente no pas
entre os anos 1940-1980 sua obra no teve aceitao acadmica por sua postura crticaao modo de se fazer cincia no pas. Sua redescoberta s foi verificada muito
recentemente, por fora das inmeras mudanas: sociais, polticas, econmicas, entre
outras, sofridas pela sociedade brasileira.
VI.BREVE NOTA METODOLGICA
O processo de construo da pesquisa baseada em dados bibliogrficos requer
um questionamento sobre as fontes disponveis para a realizao do trabalho. Esseexerccio deve ser realizado levando-se em conta desde o tipo de fontes (livros tericos,
depoimentos, manuscritos pessoais, artigos de jornais e revistas, peas de teatro, obras
de arte etc.), at o acesso que se tem a elas (localizao das bibliotecas, acesso ao
acervo, estado das obras e a possibilidade de encontrar certos documentos mais antigos).
Esse questionamento torna-se necessrio devido ao fato de que o formato e os objetivos
da pesquisa esto diretamente relacionados ao tipo de fontes que se tem disponvel.
Analisar as obras de autores que no s estudaram, mas vivenciaram a relao
colonizador-colonizado abre um espao de opes para discutir o ponto de vista, a
opinio, o olhar, ou, de modo mais cientfico, o discurso sobre as condies onde foram
geradas estas obras. Do ponto de vista metodolgico, a proposta deste trabalho ,
primeiramente, identificar os temas, os problemas levantados, as hipteses construdas
ao longo da produo de Abdias do Nascimento e com elas as principais categorias que
possibilitam descobrir a vinculao deste intelectual com a teoria ps-colonialista e a
influncia pan-africanista em sua obra.
A tcnica utilizada neste trabalho foi a pesquisa bibliogrfica, constituda,
principalmente, por livros e artigos publicados por Abdias do Nascimento. Procedeu-se,
inicialmente, uma pesquisa exploratria sobre a biografia do autor, bem como a
contextualizao da produo de suas obras. Esta etapa foi empreendida utilizando-se as
diversas biografias e anlises de trajetria existentes sobre o intelectual em questo,
assim como, recorreu-se tambm s informaes disponveis em diversos stios da
internet.
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Os dados, ou seja, os temas, conceitos e significados decorrentes da obra de
Abdias do Nascimento, foram organizados a partir de sua permanncia na produo
deste autor, por isso, este trabalho buscou identificar quais tpicos possuem maiorrelevncia na perspectiva do intelectual em discusso. Os conceitos e categorias mais
recorrentes foram elencados como elementos centrais que podero explicar tambm a
recorrncia a determinadas temticas. A proposta era verificar os termos do debate
inseridos na obra de Nascimento e como tais termos orientam-se em relao ao quadro
de referncia acerca dos fenmenos sociais observados por este autor.
Como proposta metodolgica este trabalho possui uma perspectiva qualitativa,
na medida em que visa perceber a reflexo terica exposta na obra de um intelectual. O
escopo metodolgico da pesquisa aduzir a viso de mundo de Abdias do Nascimento e
tentar demonstrar de forma compreensiva como este intelectual constri um modelo
analtico que visa expor as dificuldades dos segmentos afrodescendentes no Brasil e na
Amrica Latina.
Empreendeu-se uma pesquisa documental que na acepo de Neves (1996)
constituda pelo exame de materiais que ainda no receberam um tratamento analticoou que podem ser reexaminados com vistas a uma interpretao nova ou complementar
de determinado fenmeno social. Podendo oferecer base til para outros tipos de
estudos qualitativos e possibilitando que a criatividade do pesquisador dirija a
investigao por enfoques diferenciados.
Deste modo, foi possvel, tambm, procurar a teoria em lugares onde ela
parecia ausente e trazer para o centro da teoria social lugares e temas que antes
estavam nas suas margens, nomeadamente uma diversidade de formas de expressocultural oriundas das margens da cultura hegemnica, tanto nas sociedades centrais
como nas sociedades semiperifricas e perifricas (NUNES, 2005). Conforme
demonstra Nunes:
A fico cientfica, a literatura e o cinema de inspirao feminista, a literaturada Amrica Latina, a produo literria e ensastica dos intelectuaisdiaspricos ou o chamado Terceiro Cinema so apenas algumas dasexpresses desta dinmica. Pode-se dizer que a inveno terica, neste caso,recorre a uma apropriao heterotpicade linguagens e de narrativas que so
deslocadas e reconfiguradas das margens para o centro do discurso terico(NUNES 2005, p. 311).
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Apoiando-se nos estudos sobre o ps-colonialismo crtico esta pesquisa
vislumbra uma chave analtica qualitativa sua execuo. Da teoria ps-colonial acolhe
a informao acerca dos efeitos das prticas coloniais e neocoloniais na produo deconhecimento e de subjetividades multidimensionais.
Duas obras foram especificamente selecionadas para a elaborao desta
dissertao: O genocdio do negro brasileiro, obra publicada em 1978, como resultado
de um ensaio redigido pelo autor para o Colquio do Segundo Festival de Artes e
Culturas Negras em Lagos, Nigria, entre 15 de janeiro e 12 de fevereiro de 1977. O
trabalho deveria ser apresentado como conferncia pblica naquele evento. No entanto,
por imposio da comitiva oficial brasileira enviada ao evento da qual Abdias no
fazia parte, participando do mesmo a convite especial do ento diretor do colquio
Professor Pio Zirimu seu trabalho fora recusado pela comisso avaliadora do referido
evento.
A importncia deste texto encontra-se na minucia com que o autor discorre
sobre a condio do negro africano e do afrodescendente, desde o perodo da escravido
at os dias atuais, ilustrando com fatos e dados como o processo ao qual denominagenocdio foi implantando, e operacionalizado pelo establishmentpolitico e intelectual
no pas.
A outra obra que embasa esta pesquisa denomina-se O quilombismo. Neste
texto o autor prope a reorganizao social dos afrodescendentes na dispora, a partir
dos modelos sociais africanos que foram trazidos ao pas e a todo continente americano
com o trfico de escravos. O livro lana uma reflexo terica acerca da importncia de
se perceber o afro-brasileiro como um elemento fundamental constituio emanuteno da sociedade brasileira.
Buscando dialogar com o pensamento social da poca os dois textos procuram
em sua proposta terica repensar o negro, colocando-o como protagonista de sua prpria
histria e buscando desconstruir o pensamento j arraigado no senso comum da
sociedade brasileira de que o afro-brasileiro estaria em condio de inferioridade dado a
sua passividade e incapacidade de organizao social.
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A dissertao est estruturada em quatro captulos. No primeiro captulo
intitulado O genocdio do negro brasileiro ou o processo de um racismo mascarado
expe-se a forma como o autor articula a categoria genocdio ao sistema hierrquicoracial que estrutura a sociedade brasileira. O que se pretende demonstrar como o autor
operacionaliza esta categoria relacionando-a com um dos principais constructos
ideolgicos do pensamento social brasileiro, a saber, a noo de mestiagem.
O segundo captulo, O quilombismo: uma alternativa de organizao social
apresenta de forma minuciosa a proposta do autor de reorganizao da sociedade
brasileira. O que este captulo expe a crtica do autor aos modelos eurocntricos de
organizao seja no plano poltico ou em relao produo de conhecimento. Dado o
aspecto utpico identificado no quilombismo, seu principal mrito questionar o status
quo vigente, buscando oferecer alternativas a um sistema social marcado pela
dominao e explorao irrestrita do homem pelo homem.
O terceiro captulo, que tem como ttulo, O debate em torno de um
pensamento social alternativobusca identificar as categorias elencadas nos textos de
Abdias do Nascimento no interior de uma matriz de produo de conhecimento queobjetiva se colocar de forma crtica e alternativa aos modelos clssicos de produo
do conhecimento acerca da realidade social.
O quarto e ltimo captulo, guisa de concluses, retoma a discusso sobre a
obra de Nascimento e busca concluir a argumentao indicando os alcances e limites do
texto de Abdias do Nascimento como contributo ao pensamento social baseado na
discusso sobre relaes raciais, tanto no Brasil como na Amrica de forma geral.
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CAPTULO 01.
O GENOCDIO DO NEGRO BRASILEIRO OU O PROCESSO DE UM
RACISMO MASCARADO
Este captulo tem como objetivo apresentar, de forma esquemtica e
pormenorizada, a discusso proposta por Abdias do Nascimento acerca do papel do
processo de mestiagem na efetivao de um genocdio racial imposto pela ideologia
eurocntrica, a qual orientou, durante longo tempo, as elites polticas e intelectuais no
Brasil e na Amrica Latina.
Segundo Florestan Fernandes, prefaciando a obra O genocdio do negro
brasileiro (1978), Abdias do Nascimento recoloca a importncia e a significao do
problema africano (e no mais do problema racial brasileiro) na agenda do debate
acerca da condio do afrodescendente brasileiro e latino-americano. Ainda conforme
Fernandes (1978) h trs novas contribuies colocadas por Nascimento, a saber:
a) A reconfigurao do protesto negro no contexto histrico do ltimo quartel
do sculo XX. Para Florestan, Nascimento reequaciona poltica e socialmente omovimento negro pondo em cheque os estigmas e esteretipos raciais admitidos at
ento pelo conjunto da sociedade. No h mais a meno a uma Segunda Abolio,
mas uma mudana de perspectiva em relao peculiaridade dos segmentos negros e
mulatos da populao brasileira, bem como, a sua contribuio cultural e histrica
formao da sociedade brasileira. Abdias aduz a ideia do que deve ser uma sociedade
plurirracial como democracia, ou ela democrtica para todas as raas e lhes confere
igualdade econmica, social e cultural, ou no existe uma sociedade plurirracial
democrtica. hegemonia da raa branca se contrape uma associao livre e
igualitria de todos os estoques raciais.
b) A segunda contribuio percebida por Florestan Fernandes refere-se ao uso
do conceito de genocdio aplicado populao que majoritariamente sofreu as
consequncias do processo colonialista, mesmo com seu trmino. Desde o perodo
escravocrata e, principalmente, com a abolio, as populaes negras e mulatas tm
sofrido um genocdio institucionalizado, sistemtico, embora silencioso. Portanto, ogenocdio ocorreu e est ocorrendo e com isso Abdias tem o mrito de suscit-lo como
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tema concreto. Com isso, ele concorre para que se d menos nfase desmistificao
da democracia racial, para se comear a cuidar do problema real, que vem a ser um
genocdio insidioso, que se processa dentro dos muros do mundo dos brancos e sob acompleta insensibilidade das foras polticas que se mobilizaram para combater outras
formas de genocdio.
c) A terceira contribuio encetada por Abdias do Nascimento, na viso de
Fernandes, diz respeito proposio de uma srie de medidas que poderiam configurar
a construo de um novo quadro social. Essas sugestes demarcam a diferena
essencial que existe entre uma pseudodemocracia racial e o que deveria ser uma
sociedade plurirracial democrtica. A tentativa de superao de uma condio de
desigualdade e opresso encontra-se na base das reivindicaes e proposies
apresentadas por Abdias do Nascimento.
Em O genocdio do negro brasileiro, Abdias do Nascimento busca criticar os
efeitos que a ideologia da democracia racial imps aos afrodescendentes brasileiros.
Segundo Nascimento (1978) o conceito de democracia racial erigiu-se no Brasil a partir
de especulaes e com o apoio das chamadas cincias histricas e refletiria determinadarelao concreta na dinmica da sociedade brasileira: que negros e brancos tm uma
convivncia harmnica, desfrutando de oportunidades iguais de existncia, sem
interferncia de origens raciais ou tnicas.
possvel perceber, nesta obra, a crtica ideologia do luso-tropicalismo
concebida por Gilberto Freyre. Nascimento demonstra que o luso tropicalismo prestou
efetivos servios ao colonialismo portugus.
A teoria luso-tropicalista de Freyre, partindo da suposio de que a histriaregistrava uma definitiva incapacidade dos seres humanos em erigircivilizaes importantes nos trpicos (os selvagens da frica, os ndios doBrasil seriam documentos viventes deste fato), afirma que os portuguesesobtiveram xito em criar, no s uma altamente avanada civilizao, mas defato um paraso racial nas terras por eles colonizadas tanto na frica como naAmrica (NASCIMENTO, 1978 p. 42).
Conforme demonstra Nascimento, o luso-tropicalismo a ideologia que levou
a elite intelectual a crer que os portugueses tiveram o mrito de colonizar o Brasil e
parte do continente africano, expondo ao mundo um novo modelo de sociedade baseada
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na superioridade racial portuguesa e em sua importncia concepo de uma civilizao
avanada fundada na mestiagem.
Ainda segundo Nascimento (1978), Freyre cunhou eufemismos raciais que
visavam racionalizar as relaes de raa no pas. O termo morenidade seria o maior
exemplo desta racionalizao que tem como objetivo o desaparecimento inapelvel do
descendente de africano, tanto fisicamente quanto espiritualmente, atravs do malicioso
processo de embranquecer a pele negra e a cultura do negro.
Nesta crtica ao pensamento social conservador, que via o negro como
componente menor da identidade nacional, Nascimento refuta a ideia de que o africanoseria um co-colonizadordo Brasil a despeito de sua condio de escravo, encetando
influncias culturais sobre o processo de formao da sociedade brasileira. Esta
perspectiva teria como nus a responsabilizao dos africanos, juntamente com os
portugueses pela sistemtica erradicao das populaes indgenas, fato criticado por
Abdias por entender que o genocdio indgena de nica e exclusiva responsabilidade
dos colonizadores europeus.
Nascimento critica tambm a fertilidade ideolgicade Gilberto Freyre que
no contente em simplesmente implicar os africanos no genocdio indgena no pas
ainda concebe a ideia de metarraacomo o produto da miscigenao ou do encontro
das trs raas fundadoras da identidade brasileira. A metarraa significaria o alm-
raa, suposta base de conscincia brasileira. Atingiramos neste ponto do nosso
desenvolvimento demogrfico uma sntese suprema: a morenidade metarracial, oposta
aos conceitos fornecidos por arianismo e negritude(NASCIMENTO, 1978).
Outra perspectiva decorrente da ideologia do luso-tropicalismo o mito
segundo o qual a escravido vivida pelos africanos e seus descendentes teria sido menos
sofrida pela benevolncia dos proprietrios de escravos. A proximidade entre estes e o
fenmeno do intercurso sexual entre senhores e escravas teria gerado um ambiente de
convvio harmnico. Segundo Nascimento (1978), durante sculos o sistema
escravocrata brasileiro desfrutou a fama de ser uma instituio benigna, de carter
humano. Isto graas ao colonialismo portugus que permanentemente adotou formas
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de comportamento muito especficas para disfarar sua fundamental violncia e
crueldade.
Neste ponto, Nascimento enfatiza o papel que instituies, como o Estado e a
igreja catlica, tiveram na ratificao das aes que oprimiram e obrigaram os
afrodescendentes servido e aceitao da explorao pretendida pelos detentores de
escravos poca. Como ele afirma:
A igreja catlica teria exercido a funo de principal idelogo e pedra angularpara a instituio da escravido em toda a sua brutalidade. O cristianismo, emqualquer de suas formas, no constitui outra coisa que aceitao, justificaoe elogio da instituio escravocrata, com toda sua inerente brutalidade e
desumanizao dos africanos (NASCIMENTO, 1978 p. 53).
A ideia de que a escravido foi um processo mais humanitrio no Brasil
tambm foi tema de que se ocuparam diversos intelectuais. Geralmente com o objetivo
de justificar alguma inferioridade africana, muitos autores produziram anlises nas
quais o negro descrito como ser dcil, no entanto, ingnuo e passvel de obedincia e
domesticao. Este teria sido o motivo que levou a um convvio harmnico entre os
escravos e seus senhores. A aceitao da religiosidade africana, a concepo do
sincretismo como forma de integrao desta matriz religiosa, so fenmenos quedemonstrariam a sobrevivncia cultural africana no seio da sociedade brasileira, Abdias
coloca-se radicalmente contra esta posio. Para ele, este fundamental argumento se
reveste de grave perigo, pois seu apelo tem sido sedutor e capaz de captar um amplo
suporte na elite intelectual e poltica que detm o domnio sobre a dinmica social no
pas. Afirma Nascimento que:
Postula o mito que a sobrevivncia de traos da cultura africana na sociedade
brasileira teria sido o resultado de relaes relaxadas e amigveis entresenhores e escravos. Canes, danas, comidas, religies, linguagem, deorigem africana, presentes como elemento integral da cultura brasileira,seriam outros tantos comprovantes da ausncia de preconceito ediscriminao racial dos brasileiros brancos (NASCIMENTO, 1978 p. 55).
Percebe-se que h, segundo Nascimento (1978), uma falsa ideia de
benevolncia, que justifica o sistema escravocrata e oblitera a real condio dos
africanos a fim de estabelecer mecanismos de dominao que no estimulem a oposio
entre os africanos e afrodescendentes. Nascimento crtica ainda o argumento de que a
escravido na Amrica Latina teria seus efeitos minimizados em funo de uma
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suposta distribuio de escravos em nmero relativamente pequeno numa extensa
rea geogrfica, o que s permitiria umas poucas peas para cada proprietrio.
Uma menor concentrao de escravos estimularia a proximidade entre senhor e escravo,propiciando um tratamento mais digno e humano ao africano e ao afrodescendente.
No entanto, no caso brasileiro, existem algumas peculiaridades que
demonstram uma relao diferenciada. A facilidade de acesso, em funo da
proximidade das costas brasileiras e africanas, reduzia o preo do escravo importado.
Logo, as plantaes brasileiras foram mais densamente povoadas do que sua contraparte
inglesa e espanhola. Como evidencia Nascimento (1978):
[...] to barato se conseguia escravos que mais fcil e econmico erasubstitu-los por outros quando imprestveis do que cuid-los e aliment-losconvenientemente. No Brasil uma fora braal de mais de duzentos escravosnuma s fazenda era fato comum, enquanto nos Estados Unidos mais decinqenta ou cem escravos reunidos numa nica propriedade era exceo. Ascondies de vida dos escravos no Brasil eram por isso menos cuidadas doque nos Estados Unidos, onde a substituio do escravo requeriarelativamente mais dinheiro (NASCIMENTO, 1978 p. 59) .
A assertiva acima demonstra que a tentativa de suavizar a condio do
escravo no Brasil no resiste a poucas demonstraes de dados que evidenciam acrueldade do processo escravagista tanto em sua vertente anglo-saxnica, quanto na
verso latina. A facilidade de aquisio de escravos e a possibilidade de manuteno de
uma fora de trabalho sempre renovada condicionaram o africano intil a uma
condio de marginalidade que resulta em um processo de excluso dos meios de
produo e, consequentemente, de espoliao social. Abdias afirma que desde o incio
da escravido os africanos confrontaram as instituies que visavam mitigar a real
condio dos escravos, como a igreja e o Estado. Segundo ele, os negros negavam a
verso oficial de sua docilidade ao regime, assim como sua hipottica aptido natural
para o trabalho forado. Eles recorreram a vrias formas de protesto e recusa daquela
condio que lhes fora imposta, entre as quais se incluam o suicdio, o crime, a fuga, a
insurreio, a revolta.
Outra crtica colocada por Nascimento (1978) e alicerada na mesma ideia de
benevolncia do modelo escravocrata brasileiro, diz respeito explorao sexual da
mulher africana. Nascimento afirma que em termos proporcionais a quantidade demulheres escravas era bem menor que a de homens na ordem de uma mulher para
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cada cinco homens logo, as poucas mulheres que existiam eram impedidas de formar
qualquer tipo de estrutura familiar estvel. A norma consistia na explorao da
africana pelo senhor escravocrata, e este fato ilustra um dos aspectos mais repugnantesdo lascivo, indolente e ganancioso carter da classe dirigente portuguesa. O costume
de manter prostitutas negro-africanas como meio de renda, comum entre os
escravocratas, revela que alm de licenciosos, alguns se tornavam tambm proxenetas
(NASCIMENTO, 1978).
A herana patriarcal portuguesa, no Brasil, relegou mulher negra uma
condio de vtima indefesa do abuso e da explorao sexual por parte dos senhores e,
posteriormente, seus descendentes. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa
da sua situao de pobreza, ausncia de status social, e total desamparo, continua a
vtima fcil, vulnervel a qualquer agresso sexual do homem, principalmente do
homem branco. Esta realidade social ope-se insistente ideia de que a formao
social do Brasil ocorreu obedecendo a um processo integrativo imune a qualquer
preconceito. Tira a mscara do portugus e do brasileiro branco isentos de
procedimentos racistas. Liquida certos argumentos considerando que aquela ausncia
de preconceito teria permitido ao colonizador engajar-se numa saudvel interao
sexual com a mulher negra: no s brasileiros, como latino-americanos.
H no mito da democracia raciala nfase na popularidade da mulata como
prova de saudveis e abertas relaes raciais no Brasil. No entanto a mulata o fruto do
estupro da mulher africana e como tal torna-se o objeto de fornicao dos senhores
escravocratas. Segundo Nascimento explorao e lucro definem, ainda outra vez, seu
papel social.
Outra bandeira defendida pelos idelogos da democracia racial e criticada
por Abdias refere-se ideia do intercasamento. Citando Octvio Ianni, o autor
demonstra que h uma grande rejeio ao casamento entre negros e brancos. H uma
tendncia eliminao dos negros e mulatos no interior de famlias brancas, aquilo que
o autor classifica como uma progressiva rejeio, tanto ao negro, quanto ao mulato,
medida que as manifestaes de relacionamento inter-racial se aproximam do mundo
social dos brancos. Tal situao definida por Abdias a partir da seguinte afirmao:
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A firme convico de que as relaes de raa no Brasil so de qualidadesuperior, quando comparadas quelas dos Estados Unidos, frequentemente seapia nessa suposta teoria de saudvel interao sexual. A assuno brasileira que na Amrica do Norte, os brancos no se cruzaram com os negros,ambas as raas permanecendo puras em sua composio biolgica. Esteraciocnio pode e deve ser considerado simplesmente como outro fruto daignorncia e/ou malicia dos nossos tericos da miscigenao que deificamaquele processo como um valor exclusivo da experincia brasileira(NASCIMENTO, 1978 p. 64).
O mito do africano livre tambm um elemento central na construo da
anlise sobre o genocdio do negro brasileiro. Depois de alguns anos de trabalho os
velhos, os doentes, os aleijados e mutilados aqueles que conseguiram superar ou
sobreviver aos horrores da escravido e no possuam mais condies produtivas
foram atirados rua, prpria sorte, qual lixo humano indesejvel; estes chamados
de africanos livres. Segundo Nascimento (1978), em 1888 se repete o mesmo ato
libertador denominado pela histria do Brasil como Abolio ou Lei urea, que no
passou de um assassinato em massa, ou seja, a multiplicao do crime, em menor
escala, dos africanos livres.
Ao colocar os africanos e seus descendentes em condio de marginalidade
perante a sociedade, a abolio exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado e aigreja. Tornou-se desnecessrio, nesta perspectiva, qualquer tipo de humanismo para
com esta populao. Tudo cessou, extinguiu-se qualquer gesto de solidariedade ou de
justia social: o africano e seus descendentes que sobrevivessem como pudessem.
Outra forma de sustentao do mito do africano livre refere-se ao aliciamento
feito pelo servio militar que prometia aos negros a libertao, aps sua atuao nas
muitas guerras ocorridas durante todo perodo escravagista. Para se tornarem
precariamente livres, muitos escravos se inscreviam buscando, afirma Nascimento, aliberdade de morrer nas guerras dos colonizadores escravocratas. Neste sentido, os
defensores das relaes raciais harmnicas interpretam a forada participao do
escravo africano nas guerras coloniais de Portugal e do Brasil como outra das provas
de integrao do negro e de sua completa incluso na sociedade brasileira.
Um dos pontos centrais da anlise de Abdias do Nascimento acerca da
formao social no Brasil e do consequente processo de genocdio do negro, diz respeito
ideologia do branqueamento. Segundo Nascimento (1978), a elite intelectual
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dominante ao eleger o mulato como smbolo de brasilidade e pilar da democracia
racial, estabelece o primeiro degrau na escala de branquificao sistemtica do povo
brasileiro. O mulato o marco que assinala o incio da liquidao da raa negra noBrasil. O autor identifica um processo progressivo de clareamento da populao
brasileira, com o avano do elemento mulato e o sistemtico desparecimento do negro.
Contudo, no percebe-se qualquer tipo de vantagem no status social, pois a posio do
mulato equivale-se quela do negro: ambos so vtimas de igual desprezo, idntico
preconceito e discriminao, cercado pelo mesmo desdm da sociedade brasileira
institucionalmente branca.
O branqueamento o objetivo final da ideologia sutil definida como
mestiagem, que tem na miscigenao sua vertente biolgica e no sincretismo cultural
sua vertente poltica. Munanga (2006) demonstra que tal processo desembocaria numa
sociedade uniracial e unicultural.
Uma tal sociedade seria construda segundo o modelo hegemnico racial ecultural branco ao qual deveriam ser assimiladas todas as outras raas e suasrespectivas produes culturais. O que subentende o genocdio e o etnocdiode todas as diferenas para criar uma nova raa e uma civilizao, ou melhor,
uma verdadeira raa e uma verdadeira civilizao brasileiras, resultantes damescla e da sntese das contribuies dos stocks raciais originais. Emnenhum momento se discutiu a possibilidade de consolidao de umasociedade plural em termos de futuro, j que o Brasil nasceu historicamenteplural (MUNANGA, 2006 p. 97).
Conforme a assertiva acima, o que propunham os setores dominantes no pas,
principalmente, no final do sculo XIX e comeo do sculo XX, era a construo de
uma sociedade onde o domnio hegemnico da cultura de matriz europeia e, por
consequncia branca, seria o referencial que orientaria a formao desta sociedade.
Logo o Brasil no teria nenhuma caracterstica multirracial ou multicultural, ideologiacriticada e combatida severamente por Abdias do Nascimento.
A crtica a todo processo de expurgo dos negros da sociedade brasileira,
frequentemente, se v impedida pelos tabus erigidos pela proibio da discusso sobre
raa at mesmo entre a populao negra no Brasil. Nascimento demonstra que a camada
intelectual dominante, bem como os setores polticos, considera qualquer movimento de
conscientizao afro-brasileira como ameaa ou agresso retaliativa. Menciona tambm
que em determinadas ocasies os negros so condenados, pois pretendem impor ao pas
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uma suposta superioridade racial negra. Qualquer esforo por parte do afro-brasileiro
esbarra neste obstculo. A ele no se permite esclarecer-se e compreender a prpria
situao no contexto do pas; isso significa, para as foras no poder, ameaa segurana nacional, tentativa de desintegrao da sociedade brasileira e unidade
nacional.
O objetivo no expresso desteprocesso de um racismo mascarado negar ao
negro a possibilidade de auto-definio, subtraindo-lhe os meios de identificao racial.
E justamente na obliterao do auto-reconhecimento identitrio que se encontra a
chave da dominao e explorao da populao negra no Brasil, imobilizando e
desmotivando qualquer tipo de organizao que vise questionar a real condio deste
segmento social.
Abdias demonstra que a condio de pobreza da populao negra, para alm de
uma questo de classe, refere-se principalmente questo racial. Para ele, as feridas da
discriminao racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade social do pas.
At pouco tempo a discriminao era sancionada legalmente, sendo percebida
principalmente no mercado de trabalho. O autor questiona a viso de muitos idelogosmal-intencionados que sustentam a ideia de que o negro encontra-se em situao de
pobreza e miserabilidade por vontade prpria.
Se os negros vivem nas favelas porque no possuem meios para alugar oucomprar residncia nas reas habitveis, por sua vez a falta de dinheiroresulta da discriminao no emprego. Se a falta de emprego por causa decarncia de preparo tcnico e instruo adequada, a falta desta aptido sedeve ausncia de recurso financeiro. Nesta teia o afro-brasileiro se vtolhido de todos os lados, prisioneiro de um crculo vicioso de discriminao no emprego, na escola e trancadas as oportunidades que permitiriam a ele
melhorar suas condies de vida, sua moradia inclusive. Alegaes de queesta estratificao no-racial ou puramente social e econmica soslogans que se repetem e racionalizaes basicamente racistas: pois a raadetermina a posio social e econmica na sociedade brasileira(NASCIMENTO, 1978 p. 85).
Percebe-se que Nascimento (1978) tem uma viso muito prpria e que antecipa
algumas das concluses a que chegou a academia brasileira sobre a desigualdade
econmica persistente no pas. No s a condio de classe, mas, categoricamente, a
condio racial define a posio social inferiorizada da populao negra em relao
populao branca. Citando Franz Fanon o autor afirma que o racista numa cultura
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com racismo por esta razo normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relaes
econmicas e ideologia.
A imagem internacional que o Estado brasileiro buscou construir durante longo
tempo visou sempre suprimir a perspectiva racial como fator determinante em sua
dinmica social. Contudo esta imagem, para Abdias, est na contramo da realidade
cotidiana no pas. A situao desfavorvel a que foram submetidos os afro-brasileiros
no apresentada ao cenrio internacional. A elite poltica afirma, com veemncia, a
importncia de o pas se constituir a partir de um conjunto de relaes raciais
harmnicas, buscando colocar a sociedade brasileira como exemplo de inexistncia de
conflitos raciais.
Mais uma vez Abdias se coloca contrrio a esta ideia, aduzindo a possibilidade
de o Brasil estar construindo um modelo neocolonialista de dominao em relao aos
demais pases tanto na frica quanto na dispora africana. Segundo ele:
Quando de considera a duplicidade do comportamento brasileiro face snossas relaes de raa [...], surge com toda a naturalidade a pergunta: atque extenso representa um gesto de amizade e de relaes positivas a
preconizada poltica brasileira, em direo frica? Tudo no seria comotodas as indicaes sugerem mera tentativa de substituir a influncia dePortugal colonialista, expulso da frica pelas armas da libertao, por outrainfluncia, desta vez de um neocolonialismo brasileiro? No significaria ocontedo dessa a continuidade dos interesses econmicos, polticos eculturais daquelas mesmas classes que tm tradicionalmente se beneficiadocom a opresso e a explorao dos africanos e seus descendentes?(NASCIMENTO, 1978 p. 91).
Para Nascimento (1978), a posio tomada pela poltica brasileira em relao
frica no difere do modelo colonialista imposto pelos pases europeus quele
continente. Ao conceber o Brasil como um pas sem estratificaes raciais, esta elite
poltica nega aos afrodescendentes a possibilidade de manter no continente africano a
matriz de sua origem cultural, poltica e social. Alm disso, um modelo social a-racial
se estendido a um continente marcado pela imposio de diferenas raciais, como o
continente africano, buscaria estabelecer a mesma forma sutil e subliminar de racismo
vivenciado pelo negro brasileiro.
A crtica de Abdias do Nascimento orienta-se tambm proposta no oficial,
mas explcita do embranquecimento da populao brasileira. Abdias demonstra quedesde a classificao grosseira dos negros como seres selvagens e, por isso, inferiores,
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at o enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicao da
mancha negra; da capacidade operacional do sincretismo religioso, abolio legal da
questo racial atravs de medidas legais como a omisso censitria, durante longotempo, a histria no oficial do Brasil vem registrando, durante muito tempo, o
longo e antigo genocdio que se vem perpetrando contra a populao afro-brasileira.
Monstruosa mquina ironicamente designada Democracia Racial que s concede
aos negros um nico privilgio: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora .
Segundo o autor, este tipo de imperialismo da brancura, marcado pelo capitalismo
que lhe inerente, tem como produtos conceituais termos do tipo assimilao,
aculturao, miscigenao, que camuflam, sob uma superfcie terica, a crenaintocada na inferioridade dos africanos e seus descendentes.
A elite dominante dispe de todo um aparato legal e mecanismos de controle
social e cultural o sistema educativo, as vrias formas de comunicao de massas, a
imprensa em geral todos estes recursos a servio de uma ideologia que visa destruir
o negro como pessoa e como criador e condutor de uma cultura prpria.O processo
de assimilao/aculturao no est relacionado apenas concesso de status social
individual aos negros, ele restringe sua mobilidade vertical enquanto grupo, na dinmica
social; invade o negro e o mulato at a intimidade mesma do ser negro e do seu modo
de se auto-avaliar.
Para Nascimento (1978) a assimilao cultural to efetiva que a herana da
cultura africana existe em estado de permanente confronto com o sistema dominante,
concebido precisamente para negar suas fundaes e fundamentos, destruir ou
degradar suas estruturas. O reflexo desta assimilao o centro da crtica de Abdias,
ele afirma que:
Tanto os obstculos tericos quantos os prticos tm prevenido osdescendentes de africanos de se afirmarem como ntegros, vlidos, auto-identificados elementos da vida cultural e social brasileira. Pois realmente amanifestao de origem africana, na integridade de seus valores, na dignidadede suas formas e expresses, nunca tiveram reconhecimento no Brasil, desdea fundao colnia, quando os africanos chegaram ao solo americano(NASCIMENTO, 1978, p. 94).
Percebe-se na assertiva que alm de no ser reconhecido culturalmente como
um elemento que contribui para a formao de uma estrutura social, desde o ponto de
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vista de uma identidade coletiva, o africano e o afrodescendente tm, no plano
individual, srias dificuldades de auto-afirmao enquanto integrantes de uma matriz
tnico-racial.
O mecanismo de controle social que mais contribui para este quadro, segundo
Nascimento (1978), o sistema educacional. Para o autor, este sistema usado como
aparelhamento, no qual, nos diversos nveis educacionais, o elenco de contedos
constitui um ritual da formalidade e da ostentao da Europa e, mais recentemente,
dos Estados Unidos. Mais uma vez a crtica de Nascimento perceptvel na seguinte
afirmao:
Se a conscincia memria e futuro, quando e onde est a memria africana,parte inalienvel da conscincia brasileira? Onde e quando a histria dafrica, o desenvolvimento de suas culturas e civilizaes, as caractersticasdo seu povo, foram ou so ensinadas nas escolas brasileiras? Quando halguma referncia ao africano ou negro no sentido do afastamento e daalienao da identidade negra. Tampouco na universalidade da Universidadebrasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete e as populaes afro-brasileiras so tangidas para longedo cho universitrio como gado leproso. Falar em identidade negra numauniversidade do pas o mesmo que provocar todas as iras do inferno econstitui um difcil desafio aos raros universitrios afro-brasileiros
(NASCIMENTO, 1978 p. 95).Pode-se depreender que, para Abdias do Nascimento, o sistema educacional
oblitera qualquer possibilidade de reconhecimento do africano e do afro-brasileiro como
fundadores do sistema social no pas. Mais ainda, a identidade negro-africana negada
de forma intelectual e cientfica no lcus de produo do conhecimento, a saber, o
espao universitrio. Aos afro-brasileiros, segundo o autor, as possibilidades de acesso
ao ensino superior so reduzidas ou tolhidas, de forma veemente, e, mesmo quando
inseridos no meio acadmico, os negros tm um grande desafio quando pretendem serreconhecidos a partir de sua identidade negra.
o prprio meio universitrio que busca barrar as formas de persistncia da
cultura africana no Brasil. Conforme aponta Nascimento, sempre que se observa
estudado o tema da cultura africana no pas, a impresso emanada de tais estudos de
que as culturas existem porque receberam franquias e considerao num pas livre de
preconceito tnico e racial. Contudo a realidade bem diferente e com um grau de
complexidade bem maior do que se percebe a primeira vista. Desde o incio da
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colonizao as culturas africanas, trazidas de forma brutal e violenta nos navios
negreiros, foram mantidas em constante condio de coero pelo grupo dominante.
Nascimento afirma que h um indiscutvel carter mais ou menos violento nas formas,s vezes sutis, da agresso espiritual a que era submetida a populao africana , a
comear pela obrigatoriedade do batismo cristo nos portos de partida na frica ou
chegada no Brasil. No entanto, as presses culturais da sociedade dominante no
conseguiram suprimir a herana cultural e espiritual do escravo.
Para Abdias, essa incapacidade de aniquilar definitivamente a vitalidade
cultural africana que se expandiu por vrios setores da vida nacional no pode ser
interpretada como concesso, respeito ou reconhecimento por parte da sociedade
dominante.
As culturas africanas trazidas para o Brasil possuam atributos bastante
diversificados, variando em graus de desenvolvimento, caractersticas e aparncias.
Possuem, no entanto, um fundamento bsico comum que as identifica como culturas
irms, a religiosidade como pilar central desta dinmica cultural, baseada na oralidade
e no politesmo. Segundo afirma Abdias:Nem todos os africanos condutores dessas culturas e seus descendentesestavam em condies de manter vivas e desenvolver suas respectivascontribuies cultura do novo pas, na medida em que eles prprios seachavam sob terrveis condies. Vtimas permanentes da violncia, suasinstituies culturais se desintegraram no estado de choque a que foramsubmetidas. As lnguas africanas expresso fundamental da viso de mundode suas respectivas culturas foram destrudas, com raras excees para finsrituais. O racismo, exatamente como classifica as raas em superior einferior, emprega idntico critrio para rotular as lnguas em inferior esuperior (NASCIMENTO, 1978, p. 102).
Esse quadro de privaes e negaes a que foram submetidos os afro-
brasileiros resultou em formas de resistncia que tiveram, e tem at hoje, nas religies
de matriz africana seu principal referencial. Constituindo a fonte e a principal
trincheira do africano e o ventre gerador da arte afro-brasileira, o Candombl5teve de
5Candombl o nome que recebeu a religio dos povos Yourubas, trazida da Nigria para o Brasil.Porm o Candombl inclui variaes de outros grupos culturais vindos da frica, tais como os Ewe(Gges) do Benin, Angola-Congo e outros ramos Bantu. Culto dos Orixs, o Candombl resistiu e
conservou intacto seu corpo de doutrina, sua cosmogonia e teogonia, o testemunho dos seus mitos vivos epresentes (NASCIMENTO, 1978 p. 102).
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procurar refgio em lugares ocultos, de difcil acesso, a fim de suavizar sua longa
histria de sofrimentos s mos da polcia.
Nascimento (1978) afirma que a sobrevivncia dos traos culturais africanos
tem sido perigosamente manipulada por diversos estudiosos para demonstrar a
essncia no-racista e harmoniosa da civilizao brasileira. Ou seja, a sociedade
brasileira estaria supostamente aberta a todas as contribuies culturais, sem distines,
sejam elas, europeias, amerndias ou africanas.
Essa permeabilidade defendida como a principal caracterstica cultural
brasileira motivo de questionamento e discordncia por parte de Nascimento, perguntaele: o que exatamente esta cultura brasileira to porosa a todas as influncias?.
Abdias afirma que esta construo ideolgica baseada na porosidade e capacidade de
assimilao da cultura brasileira nada mais do que um paliativo artificial
dominao da cultura branco-europeia. Para ele:
A sociedade dominante no Brasil praticamente destruiu as populaesindgenas que um dia foram majoritrias no pas; essa mesma sociedade ests vsperas de completar o esmagamento dos descendentes de africanos. As
tcnicas usadas tm sido diversas, conforme as circunstncias, variandodesde o mero uso das armas, s manipulaes indiretas e sutis que uma horase chama assimilao outra hora aculturao ou miscigenao; outras vezes o apelo unidade nacional, ao civilizadora, etc., etc. Com todo essecortejo genocida aos olhos de quem quiser ver, ainda h quem se intitulecientista social e passe sociedade brasileira atestados de tolerncia,benevolncia, democracia racial e outras qualificaes virtuosas dignasde elogios. Certo: que os serviais de ideologia dominante continuemexercendo sua perverso da realidade. Cumpre a ns, os negros, que emvrios estados somos a maioria da populao [...], conceder a essa qualidadede estudiosos o que eles merecem: o nosso desprezo (NASCIMENTO, 1978p. 107).
Na viso de Nascimento (1978), o processo arquitetado, organizado e, em largamedida, executado contra as populaes no-brancas do pas, aqui denominado
genocdio, foi ratificado pela intelectualidade brasileira, tendo em muitos de seus
cientistas sociais ferrenhos defensores dos vrios mitos criados para justificar a
constante tentativa de eliminao das culturas no-europeias.
Um dos principais espaos onde se buscou a eliminao do referencial cultural
africano foi religio. Para Nascimento (1978), o chamado sincretismo religiosotem
a pretenso de manipular as religies de matriz africana a fim de obliterar totalmente o
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papel destas instituies na preservao da memria coletiva dos negros vindos da
frica e seus descendentes. Neste sentido, o sincretismo religiosotorna-se um mito
que visa transmitir a imagem de um amalgamento ou de uma fuso natural entre asreligies africanas e o catolicismo. Intercambiando influncias de igual para igual,
num clima de fraterna compreenso recproca. O argumento a seguir demonstra o teor
da crtica de Abdias a tal processo:
[...] Como que poderia uma religio oficial locupletada no poder misturar-se num mesmo plano de igualdade com a religio do escravo negro que seachava no s marginalizada e perseguida, mas at destituda de suaqualidade fundamental de religio? Somente na base de, flagrantemente,violenta imposio forada, poderia ter sucesso o sincretismo das religies
africanas com o catolicismo. [...] Para manter uma completa submisso doafricano o sistema escravista necessitava acorrentar no apenas o corpo fsicodo escravo, mas acorrentar tambm seu esprito. Para atingir esse objetivo sebatizava compulsoriamente o escravo e a igreja catlica exercia sua catequesee proselitismo sombra do poder armado (NASCIMENTO, 1978 p. 109).
O catolicismo apresentou-se como uma religio em termos de igualdade com
as religies africanas, apenas com o intuito de submeter s ltimas aos seus dogmas e
preceitos. No h, como refere Nascimento (1978), nenhum interesse em admitir as
religies africanas como parte integrante do modelo religioso vigente. O que interessa
igreja catlica a possibilidade de oferecer aos setores dominantes, alm do domnio
fsico, o domnio psicolgico dos escravos.
Afirma Abdias que s merece o nome de sincretismo o fenmeno que envolveu
as culturas africanas entre si, e estas com a religio dos ndios brasileiros. O sincretismo
ocorrido entre diferentes religies africanas e os cultos dos ndios no Brasil constitui-se
em um processo de natureza inteiramente diferente daquele ocorrido com o catolicismo,
no h imposio ou pretenso de superioridade entre as duas religies, mas sim aassuno dos contributos de uma e outra matriz religiosa, em que o respeito e o
reconhecimento da f alheia so os princpios correntes.
Para Nascimento (1978) o falso carter deste chamado sincretismo pode ser
tambm percebido no tratamento desdenhoso dispensado s religies africanas por seus
supostos parceiros de sincretismo, a saber: os catlicos brancos e os estudiosos da
religio. As concepes metafsicas da frica, seus sistemas filosficos, a estrutura de
seus rituais e liturgias religiosos, nunca merecem o devido respeito e consideraocomo valores constitutivos da identidade do espirito nacional. E desprezando-se a
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cultura que os africanos trouxeram, os europeus reforaram a teoria e prtica da
rejeio tnica.Todos os objetivos do pensamento social, da cincia, das instituies
pblicas e privadas, apresentam-se como prova desta concluso.
Incapazes de compreender o sistema de pensamento que subjaz aos rituais, os
estratos dominantes objetivam destruir os referenciais africanos religiosos e culturais.
Isto com a ajuda do sistema de pensamento europeu ou ocidental que se tem imposto
atravs da coero, s vezes at recorrendo fora armada, como recurso de submisso.
Tal atitude demonstra a importncia das religies africanas como elemento subversivo
dentro do denominado processo de assimilao, aculturao ou sincretismo.
As religies afro-brasileiras exercem um papel preponderante no
desenvolvimento da arte negra no pas. Conforme constata Abdias, aos olhos da cultura
dominante os produtos da criatividade religiosa afro-brasileira e dos africanos, de modo
geral, no passavam de curiosidade etnogrfica destitudos de significao artstica ou
ritual. Para se aproximar da categoria da arte sagrada do ocidente, o artista negro
teria que negar o contedo africano de seu trabalho e seguir os modelos europeus.
Esta tcnica de esvaziamento cultural revela a ideia principal do horizonte
artstico dominante, inferiorizar a cultura afro-brasileira atravs de sua folclorizao. A
reduo da cultura afro-brasileira ao status de folclore sem contedo ou densidade
cultural revela alm da demonstrao de desprezo ao negro dado pela sociedade
vigente, a avareza com que essa sociedade explora o afro-brasileiro e sua cultura com
intuitos lucrativos.
[...] Pois embora a religio e a arte sejam to ridicularizadas e folclorizadas,
elas constituem valiosas e rentveis mercadorias no comrcio turstico. Nessecaminho as manifestaes religiosas negras tornam-se curiosidades paraentreter visitantes brancos. A folclorizao d um passo em frente aodesenvolver outra etapa do tratamento dispensado cultura afro-brasileirapela sociedade dominante, a sua comercializao (NASCIMENTO, 1978 p.118).
Para alm da inferiorizao de um referencial cultural, o que ocorre com a
cultura afro-brasileira sua mercantilizao enquanto fenmeno denominado como
folclore. O menosprezo substitudo pelo interesse comercial que concebe a cultura
negra como um souvenirfolclrico.
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Ao relegar a cultura africana a uma condio de simples folclore o sistema
cultural dominante cria um instrumento mortal no esquema de imobilizao e
fossilizao dos seus elementos vitais. Segundo Abdias, os conceitos originrios daEuropa ocidental que informam e caracterizam uma suposta cultura ecumnica,
predominam neste pas de negros. Para esta cultura de identificao branca o homem
folclrico reproduz o homem natural, aquele que no tem histria, nem projetos, nem
problemas: ele possui de seu apenas sua alienao como identidade. Nascimento
afirma que essa identidade , pois, sua mesma alienao. Desde que a matria-prima o
no-ser que aguarda a forma, pode-se concluir, a respeito deste sistema de alijamento
cultural denominado folclore, que ele uma espcie de matria-prima que a elite brancadominante manipulava e manufaturava para obteno de lucro.
Da complexa teia de inferiorizao e excluso cultural a que foi submetido o
afro-brasileiro, Abdias depreende uma definio que, no seu entender, simples, mas
demonstra a importncia de que se admita a matriz cultural africana como formadora da
identidade nacional, para ele:
[...] sem exceo, tudo que sobrevive ou persiste da cultura africana e doafricano como pessoa no Brasil a despeito da cultura branco-europeiadominante, do branco brasileiro e da sociedade que, h quatro sculos reinacoagindo-os a alienar a prpria identidade pela presso social, setransformando cultural e fisicamente em brancos (NASCIMENTO, 1978 p.123).
Com o objetivo de contornar um quadro de excluso e, principalmente, de no
aceitao, os muitos negros e mulatos principalmente intelectuais buscaram formas
de ascender socialmente atravs de um processo que Abdias identifica como
branquificao interior. A incapacidade de suportar a estratificao vigente e a
importncia dada noo de homem ocidental desenvolveu, em muitos negros e
mulatos, manifestaes de dio pela prpria cor. A imposio esttica submete o
indivduo negro assimilao cultural e cria neste a aceitao de nveis de superioridade
e inferioridade racial.
Para confrontar o quadro ora exposto, Abdias do Nascimento funda, em 1944,
o Teatro Experimental do Negro (TEN) com os objetivos bsicos de resgatar os valores
da cultura africana, marginalizados e relegados condio de folclricos, pitorescos e
insignificantes. Alm disso, o TEN objetivava dar visibilidade aos atores negros e
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superar as imagens grotescas e estereotipadas os moleques levando cascudos ou
carregando bandejas, negras lavando roupa ou esfregando o cho, mulatinhas se
requebrando, domesticados pais Joes e lacrimejantes mes pretas papis a queforam relegados os artistas negros a despeito de sua formao ou qualidade. Por fim, o
TEN busca questionar e criticar a literatura que focalizava o negro como um exerccio
esteticista ou diversionista. A proposta era descontruir ensaios acadmicos, puramente
descritivos, tratando de histria, etnografia, antropologia, sociologia, psiquiatria etc.,
cujos interesses estavam muito distantes dos problemas dinmicos que emergiam do
contexto racista da sociedade brasileira. Ainda, segundo Abdias do Nascimento, o
TEN instaurou um processo de reviso conceitual visando mudana de atitudes e aliberao espiritual e