O RIO MATHIAS NA PAISAGEM JOINVILENSE E OS ESPAÇOS
PATRIMONIAIS NO ENTORNO
Fernanda Mara Borba1
Graciele Tules de Almeida2
INTRODUÇÃO
Este trabalho, resultado de uma pesquisa de arqueologia de contrato intitulada
Monitoramento Arqueológico e Educação Patrimonial das Obras de Ampliação
da Capacidade Hidráulica do Rio Mathias, em Joinville, SC3, discute a constituição
do Rio Mathias na paisagem joinvilense e os espaços patrimoniais existentes no seu
entorno. Para tanto, revisitou a historiografia, outros estudos de arqueologia, jornais e
fotografias que representaram este curso natural, suas alterações e estruturas
presentes nas margens (modificadas), criando uma paisagem bastante singular na
história da cidade.
Desde o oitocentos, o Rio Mathias, junto ao Cachoeira, se configurou como um
marco paisagístico central da antiga Colônia Dona Francisca, atual Joinville, ao
acompanhar o recebimento das embarcações dos seus primeiros ocupantes. O que
depois se transformou como um problema, em decorrência das constantes enchentes,
no passado serviu como principal meio de transporte e deslocamento dos moradores
e produtos de consumo e comercialização. Ademais, as discussões decorrentes da
preocupação com os usos desse manancial e regulamentações para tais, suscitaram
uma emergente inquietação ambiental nos idos novecentos.
Para discutir a paisagem, as reflexões de Schama (1996) e Browser e Zedeño
(2009) foram retomadas ao se entender que, mesmo tendendo-se separar a
1 Doutoranda em História, Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), [email protected]. 2 Doutoranda em Arqueologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia – Arqueologia (PPGAnt) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), [email protected]. 3 Esta pesquisa, vinculada ao licenciamento ambiental das obras de ampliação da capacidade hidráulica do Rio Mathias, foi autorizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por meio da Portaria n. 68 de 8 de dezembro de 2017 (Processo n. 01510.000690/2012-51), publicada em 11 de dezembro de 2017, com ratificação em 14 de dezembro de 2017 e 29 de janeiro de 2018.
percepção humana e da natureza, os autores alertam esta impossibilidade. A
paisagem é tanto física como obra dos sentidos, composta de rochas, fauna, flora e
sedimentos, de camadas de lembrança, performance e temporalidades, sobrepostas
ao longo do tempo e espaço, num movimento sincrônico, marcada por lugares que
persistem, tanto na memória como no espaço. São lugares de habitar e viver
imbricados de percepção e experiência humana.
Considerando a importância desses elementos, a legislação e o potencial
arqueológico local, a pesquisa associada a esse trabalho, em campo, monitorou o
empreendimento citado para gerenciar as ações patrimoniais e levantar informações
que contribuíssem para os estudos sobre a ocupação humana da cidade em
diferentes períodos.
1. A PESQUISA ARQUEOLÓGICA
1.1 PARA ENTENDER A ÁREA: OUTRAS PESQUISAS
Com o intuito de entender os locais que seriam monitorados, um levantamento
de outros estudos foram considerados a partir dos arquivos do Cadastro Nacional de
Sítios Arqueológicos (CNSA) do Iphan e do Museu Arqueológico de Sambaqui de
Joinville (MASJ). Apesar da ausência de sítios arqueológicos cadastrados nessas
áreas, foram identificadas quatro pesquisas de arqueologia importantes.
Em 2012, a primeira, o Diagnóstico Arqueológico Não Interventivo da Sub-
bacia do Rio Mathias, Município de Joinville/SC (2012) (Processo n.
01510.000690/2012-51), reuniu informações acerca da etnohistória e arqueologia
regionais. No decorrer deste estudo foram solicitadas complementações e
encaminhamos futuros na área do empreendimento como à apresentação, execução
e análise de um Programa de Prospecção Arqueológica da área.
Outro trabalho foi o Cemitério do Imigrante: Pesquisa, Interdisciplinaridade
e Preservação (FONTOURA et al, 2008), construído no início da antiga Colônia em
1851 e tombado pelo Iphan em 1962. Foi criado em decorrência das adversidades
como as epidemias e as mortes naturais, quando começaram os enterros no Cemitério
Evangélico de Joinville, posteriormente denominado Cemitério do Imigrante. Também
há indícios que este foi o primeiro no Brasil a abrigar, lado a lado, católicos e
protestantes, dado que somente em 1870 foi aberto o Cemitério Católico, onde hoje
se encontra a Mitra Diocesana. Com a inauguração do Cemitério Municipal, em 1913,
o Cemitério do Imigrante foi desativado, mas até o início da década de 1960 foram
feitos alguns sepultamentos em jazigos perpétuos (KRISCH, 1991). A pesquisa reuniu
diversos artefatos que demonstraram que o cemitério passou por modificações em
diferentes momentos. As rochas encontradas abaixo do solo foram usadas para
pavimentação dos antigos caminhos do cemitério. Os materiais construtivos foram
frutos da degradação que os jazigos sofreram com o tempo e reformas a posteriores.
As cerâmicas utilitárias, lisas e decoradas eram similares as das lápides, ainda
encontradas em jazigos, bem como dos vasos e floreiras colocados pelos familiares
dos mortos. Outros artefatos foram registrados (botão, isqueiro, caneta, zíper, moeda,
entre outros), provavelmente deixados em rituais de sepultamento, visitas, trabalhos
(jardineiros, coveiros, vigias, etc.) ou em situações de lazer e turismo, principalmente
depois do reconhecimento patrimonial. Por fim, a pesquisa elaborou um inventário dos
mais de 400 jazigos identificando as tipologias das estruturas, suas dimensões,
lápides, epitáfios, inscrições, adornos e ainda seus estados de conservação.
A terceira pesquisa se refere a requalificação da Alameda Brüstlein, um espaço
construído no início da cidade para servir como jardim de entrada da Maison,
residência que abriga o Museu Nacional de Imigração e Colonização (MNIC). As
palmeiras que completam o conjunto paisagístico da Alameda foram semeadas em
1867 e replantadas em 1873, pelo diretor da Colônia que trouxe consigo de uma
viagem ao Rio de Janeiro sementes das palmeiras do Jardim Botânico (FICKER,
1965). Este espaço sofreu diferentes modificações, como a retirada de algumas
palmeiras para o alargamento e abertura de ruas e o fechamento da sua área central
transformando-se em um Boulevard. Em 2012, uma requalificação a transformou em
uma rua novamente, com passagem de carros nas laterais e pedestres em sua área
central. O empreendimento foi acompanhado pelo Monitoramento e Salvamento
Arqueológico da Alameda Brüstlein, Joinville/SC (2012) (Processo n.
01510.000325/2012-47), e profissionais da CPC, do Centro de Preservação de Bens
Culturais (CPBC) e do MNIC. A pesquisa registrou aterros e recolheu artefatos nos
pontos que sofreram intervenções para sondagens e instalação de redes hidráulica e
elétrica. Foram 611 fragmentos classificados em construtivo (tijolo, telha, reboco,
cimento, concreto), cerâmica (de barro, faiança, porcelana e grés), vidro, metal,
madeira, vegetal, osso, concha, rocha, plástico, papel e couro. Por fim, foram feitas
ainda 19 amostras de sedimentos. Cabe salientar que os materiais se encontram no
acervo do MASJ.
Uma última pesquisa se refere a antiga Metalúrgica Wetzel, no centro da
cidade, tombada municipalmente em 2009, que passou por uma restauração para
abrigar o Centro Universitário Católica SC. Incluindo o restauro, iniciado em 2010, e a
construção de algumas estruturas novas, o empreendimento contou com a
Prospecção Arqueológica Histórica na Área de Ampliação do Centro
Universitário – Católica de Santa Catarina – Joinville – SC (2013) (Processo n.
01510.002750/2013-51), desenvolvida pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(Unisul). De acordo com Haynosz (2014), a indústria teve sua origem na transferência
da família Wetzel para residência e galpão de fabricação de velas e sabão, o
empreendimento da família, na Rua Visconde de Taunay. Posteriormente, os filhos
iniciaram a construção da empresa que daria o nome da Companhia Wetzel, na Rua
Senador Felipe Schmidt. “Em 1966, se adequando ao recebimento da empresa, passa
a ser uma sociedade anônima, mudando o seu nome para Metalúrgica Wetzel S.A.”
(HAYNOSZ, 2014, p. 71). Nas décadas seguintes, a indústria se abriu para mercados
externos e com o fortalecimento das exportações, adquiriu a Foundry Engineers nos
Estados Unidos, incorporou a Metalúrgica Douat S.A. e a Wetzel Fundição de Ferro
S.A., para em 2010 abandonar as instalações nas Rua Senador Felipe Schmidt
(HAYNOSZ, 2014, p. 71). O conjunto tombado inclui a casa e a fábrica de velas e
sabão em enxaimel e datados do final do século XIX, a chaminé dos anos de 1920, o
conjunto da Rua Senador Felipe Schmidt em alvenaria e a casa dos arcos, a antiga
residência da família.
1.2 O MONITORAMENTO ARQUEOLÓGICO
Para a fase do monitoramento, que cobriu cerca de 120 dias do
empreendimento, a pesquisa contou com a presença de profissionais da arqueologia
com responsabilidade pela gestão do patrimônio arqueológico eventualmente
identificado durante a execução do empreendimento (Figura 1). A ação considerou os
registros documentais e fotográficos georreferenciados da execução das obras,
garantindo que as intervenções fossem executadas sem causar danos ao patrimônio
arqueológico existente conhecido ou não. No entorno das ruas que sofreram
intervenções, foram levantadas informações referentes ao patrimônio cultural.
Figura 1 – Monitoramento arqueológico das ruas Fernando de Noronha e Jerônimo Coelho
Fonte: Ruas Jerônimo Coelho e Fernando de Noronha (ALMEIDA, 2018).
Vale ressaltar que não se previu a prospecção ou salvamento arqueológico, e
em caso de achados, seguindo as orientações do Iphan, determinar-se-ia a
paralisação dos trechos identificados, comunicando-se este Instituto sobre existência
de patrimônio arqueológico. Apesar de não terem sido encontrados artefatos e
estruturas durante esta fase, estabeleceu-se como medida preliminar, a conservação
de bens arqueológicos em conformidade com a Portaria n. 196 de 2016 do Iphan, em
consonância com as práticas adotadas pelo MASJ e os padrões museográficos,
respeitando a fragilidade, a materialidade e as análises a serem realizadas.
1.3 LEVANTAMENTO DE INFORMAÇÕES PATRIMONIAIS
Para levantar informações sobre os sítios de diferentes períodos ou ainda
ocorrências históricas na área e entorno do empreendimento, a pesquisa acessou os
acervos do Arquivo Histórico de Joinville (AHJ), Coordenação de Patrimônio Cultural
(CPC) de Joinville, Laboratório de História Oral da Univille e MASJ, e da Fundação
Catarinense de Cultura (FCC) e Iphan de Santa Catarina, levantando registros
documentais textuais, iconográficos e cartográficos e orais.
1.3.1 Bens patrimoniais protegidos
Em decorrência da possibilidade das soluções de engenharia causarem
impacto nas estruturas antigas presentes no caminho do empreendimento,
considerando a sua fragilidade ou a ausência de fundação, os agentes de preservação
patrimonial foram notificados. Estes receberam as informações das unidades
protegidas, em âmbito federal, estadual e municipal, para que pudessem orientar os
profissionais em campo (Quadro 1).
Quadro 1 – Bens tombados na área diretamente afetada do empreendimento
N. Imagem Endereço Proteção
01
Rua Jerônimo Coelho,
240
Tombamento Municipal
(Processo n. FCJ. CPC. 2008-006)
Decreto por anuência
02
Rua Jerônimo Coelho,
233
Tombamento Estadual
(P.T. n. 245/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
N. Imagem Endereço Proteção
03
Rua Jerônimo Coelho,
345
Tombamento Estadual
(P.T. n. 246/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
04
Rua do Príncipe, 372
Tombamento Estadual
(P.T. n. 235/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
05
Rua do Príncipe,
403/405
Tombamento Estadual
(P.T. n. 236/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
06
Rua do Príncipe, 415
Tombamento Estadual
(P.T. n. 237/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
07
Rua do Príncipe, 461
Tombamento Estadual
(P.T. n. 240/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
08
Rua do Príncipe, 434
Tombamento Estadual
(P.T. n. 238/2000)
Decreto nº 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
N. Imagem Endereço Proteção
09
Rua do Príncipe, 458
Tombamento Estadual
(P.T. n. 239/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º
10
Alameda Brüstlein, “Rua
das Palmeiras”
Tombamento Municipal
(Processo n. FCJ. CPC. 2005-002)
Decreto n. 12.276 de 9 e
março de 2005
11
Rua do Príncipe, 501
Tombamento Estadual
(P.T. n. 241/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
12
Rua São Francisco,
110, esquina com
Avenida Juscelino
Kubitscheck
Tombamento Estadual
(P.T. n. 262/2000)
Decreto nº 3.461 de 23 de
novembro de 2001
15
Rua Engenheiro
Niemayer, 255
Tombamento Estadual
(P.T. n. 252/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
18
Rua Visconde de
Taunay, 288
Tombamento Municipal
(Processo FCJ-CPC-2009-007)
Decreto n. 26.236 de 8 de
janeiro de 2016
Nível de Preservação:
Preservação Parcial (PP)
20
Rua Senador Felipe
Schmidt, 228 (Indústria
Metalúrgica Wetzel)
Tombamento Municipal
(Nº FCJ. CPC. 2005-009)
Decreto n. 16.162 de 20 de
novembro de 2009
N. Imagem Endereço Proteção
21
Rua Visconde de
Taunay, 456-466
Tombamento Estadual
(P.T. n. 263/2000)
Decreto n. 3.461 de 23 de
novembro de 2001
Lei Municipal 1773 de 10 de
dezembro de 1980, Art. 3º.
Fonte: Fernanda Mara Borba (2018).
Considerando que as 21 estruturas indicadas têm proteção estadual e
municipal (Quadro 1), o levantamento foi encaminhado ao Iphan-SC e ao MASJ para
informação, e para a FCC, em Florianópolis, e CPC da Prefeitura Municipal de
Joinville, para orientação, salvaguardando o patrimônio histórico cultural reconhecido
e existente na área do empreendimento.
1.3.2 O antigo cais e Mercado Público de Joinville
O antigo cais e Mercado Público Municipal de Joinville, presentes na área do
empreendimento, não possuíam, no momento da pesquisa, uma proteção patrimonial
federal, mas foram alvos de registros escritos e iconográficos ao longo do século
passado e deste, reunidos pela pesquisa.
Como mencionado, os rios Mathias e Cachoeira foram importantes no passado
por receberem parte dos primeiros ocupantes da cidade a partir das imediações do
atual Mercado Público Municipal de Joinville. De acordo com Maria Cristina Alves, no
Diagnóstico Arqueológico para as Obras de Implantação de Abrigo de
Passageiros e Cais Flutuante, em Joinville, SC (2006) (Processo n.
01510.000094/2006-23, Portaria Iphan n. 221/2206), o espaço escolhido para receber
as estruturas de apoio aos imigrantes passou por aterros e obras de desassoreamento
e retificação do leito do Rio Cachoeira. Seus levantamentos também apontaram uma
preocupação, já no início da Colônia, com a regularização do Rio Cachoeira para
proteger a área contra enchentes. E ainda intervenções em seu leito para melhorar a
sua navegabilidade: “[...] Léonce Aubé levantou o curso superior do rio nos períodos
de maré baixa” (S. THIAGO, 2002, p. 48 apud ALVES, 2006, p. 7).
Sobre o espaço escolhido para o Mercado Público e o Cais Conde D’Eu, o
historiador Adolfo Bernardo Schneider (s.d., p. 33a) afirma ter sido necessário um
aterro por formar no passado uma ilhota, entre as atuais ruas 7 de Setembro e Abdon
Batista. Antes disso, a área se configurava como uma enseada, uma “[...] pequena
praia oval, pantanosa e negra como betume, onde abicavam as canoas dos lavradores
e pescadores rio abaixo” (MIRA, 1951, p. 14 apud ALVES, 2006, p. 7). Os registros
fotográficos do período, acessados por esta e demais pesquisas sobre o Cais Conde
D’Eu, o Mercado Público e a zona portuária da cidade, também reforçam essa
informação (Figura 2).
Figura 2 – Área do porto e o Rio Cachoeira
Fonte: Acervo do Arquivo Histórico de Joinville (s.d.).
Outro ponto importante se refere ao cais denominado como “Poschaan” por ter
sido o porto de embarque e desembarque dos passageiros do vapor “Babitonga” no
início do século passado (OLIVEIRA, 1951, p. 123, SCHNEIDER, s.d., p. 40b apud
ALVES, 2006, p. 8). Situado defronte a Rua Boussingault, atual 7 de Setembro, este
foi anteriormente conhecido como atracadouro Dampferstation – estação de vapores
– (SCHNEIDER, s.d., p. 57b) (Figura 3).
Figura 3 – Registros da Rua 7 de Setembro, com atracadouro e prédio da Cia. Industrial (a) e o abrigo de passageiros (b) (direita) e estruturas atuais com apenas o edifício situado na Rua Rio Branco defronte a 7 de Setembro (esquerda)
Fonte: Acervo do Arquivo Histórico de Joinville (s.d.) e Graciele Tules de Almeida (2018).
Na pesquisa foram encontrados remanescentes nestas áreas que,
considerando a localização e os levantamentos dos estudos acima mencionados,
possivelmente se referem a este atracadouro. Junto a este porto estava a sede da
Cia. Industrial, não mais existente, cuja importância, de acordo com os levantamentos
de Alves (2006), se dava pela acumulação de capital na cidade a partir do
beneficiamento e comercialização de erva-mate, produção de cal e navegação de
cabotagem.
2. A PAISAGEM E OS LUGARES PERSISTENTES: O RIO MATHIAS
As margens do Rio Mathias serviram como base para a construção das casas
dos ocupantes de Joinville no século XIX. Devido ao contínuo processo de
urbanização, o rio acabou confinado em galerias subterrâneas e coberto por ruas e
edificações. As baixas altitudes junto à foz e o efeito das marés, associados à
urbanização de lugares inadequados, causaram frequentes problemas de inundações
na região central da cidade, atingindo também alguns afluentes, principalmente os rios
Itaum-açú, Bucarein, Jaguarão e Mathias.
A preocupação com o rio, ficou caracterizada desde o início da ocupação de
suas margens, como apontou Maria Cristina Dias (WEB, 2018), quando destacou a
mobilização liderada por Carl Lewin, representante do Conselho Comunal da Colônia,
em 1865, 14 anos após a instalação dos primeiros colonos. O movimento de Lewin
reivindicava a regulamentação e o estabelecimento de restrições quanto ao uso das
águas do Rio Mathias, evitando dessa forma, a contaminação do manancial. As
divididas discussões, registradas no Jornal Kolonie Zeitung em 1865, pararam na
Câmara Municipal de São Francisco, a qual a vila estava subordinada. Depois de
algumas votações, a petição de oposição da versão ambientalista, que reclamava o
livre o uso das águas do rio, foi acatada. Segundo Dias, os argumentos ambientalistas
não surtiram efeito naquele momento e o uso indiscriminado do Mathias foi liberado
em determinados trechos. Por muito tempo esse rio também foi a principal fonte de
água para os moradores da Colônia, principalmente para os estabelecidos nas ruas
Alemã, do Meio, Cachoeira, do Porto (atuais Visconde de Taunay, XV de Novembro,
Princesa Izabel e 9 de Março).
Além das reivindicações quanto ao uso do Mathias, o manancial serviu de
marco para determinação da construção da primeira estrutura para a recepção dos
colonos chegados em 1851. A área foi delimitada sob o comando de engenheiro
Hermann Günther, conforme destaca Ficker (1965, p. 61-62)
Subindo o pequeno riacho ‘de águas puras e cristalinas’, mais tarde chamado Ribeirão Mathias a uma distância de 100 braças (220 metros) do Rio Cachoeira, derrubou-se a mata virgem para abrir as primeiras clareiras. Construíram-se em seguida dois ranchos espaçosos, nas duas margens do riacho, ligados por uma pequena ponte rústica [entre as ruas 9 de Março e XV de Novembro].
Os motivos para a escolha das suas margens foram registrados em carta de
1851 do Allgemeine Auswanderungs Zeitung, Jornal Universal da Emigração de
Rudolstadt, traduzida por Brigitte Brandenburg e apontada por Dias (WEB, 2018). O
relato indica a qualidade da água do rio como um dos fatores para a escolha do local
pelo engenheiro Hermann Günther:
Eu escolhi para o primeiro ponto de estabelecimento o rio Mathias. Isto foi resolvido com critério e cuidado, sem deixar de tomar todas as informações devidas. O rio possui água corrente saudável, de boa vazão, e pode ser navegável até bem acima do local escolhido, o que servirá para desembarcar os colonos. Mais tarde também servirá para construir caminhos (ao longo do rio), o que envolverá o uso de menores recursos.
Nesse processo a Rua Visconde de Taunay nasceu como Mathiaspikade
(Picada do Mathias): nela os imigrantes de origem germânica se estabeleceram, a
nomeando como Deutsche Strasse (Rua Alemã) (SILVEIRA, 2008).
Conforme a criação do engenheiro Pedro Silva Inácio, que desenhou o mapa
do Mathias a partir da ilustração de Theodor Rodowicz publicada em 1853 na “A
Colônia Dona Francisca no Sul do Brasil”, a implantação das primeiras casas no
entorno do Mathias demonstra a importância desse manancial na época (Figura 4).
Figura 4 – Traçado das principais ruas que seguiram o traçado do Rio Mathias – 9 de Março (Hafenstrasse), do Príncipe (Zigeleistrasse), Princesa Isabel (Obere Hafenstrasse), Dr. João Colin (Nordstrasse), Visconde de Taunay (Mathias Strasse) e XV de Novembro (Mittelweg) – pelo engenheiro Pedro Silva Inácio
Fonte: Dias (WEB, 2018).
A imagem também apresenta as principais vias que seguiram atreladas ao
traçado do Rio Mathias, sendo elas a Rua 9 de Março (Hafenstrasse), do Príncipe
(Zigeleistrasse), Princesa Isabel (Obere Hafenstrasse), Dr. João Colin (Nordstrasse),
Visconde de Taunay (Mathias Strasse) e XV de Novembro (Mittelweg) (Figura 1). Além
de marco territorial e paisagístico, o Rio Mathias deu nome à primeira publicação da
colônia, o Der Beobachter am Mathiasstrom (O Observador às Margens do Rio
Mathias) (BRUHNS, 1999) (Figura 4). O primeiro jornal foi lançado em março de 1852,
por Karl Konstantin Knüppel. Nessa publicação foram registrados além da batalha
ambiental já citada anteriormente, o papel central do rio na vida dos primeiros colonos,
sendo enaltecido por isso “o rio Matias vinha assim como o Ganges, o Jordão, e outros
rios considerados sagrados e eternos”. Este foi o motivo pelo qual o mesmo foi
batizado de “Matthiasstrom”, em alusão a “Heiligen Stromes”, rio caudal sagrado”,
revela Brigitte Brandenburg, que traduziu a publicação (DIAS, WEB, 2018).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: O MATHIAS E A PAISAGEM
Ao longo do tempo, o Rio Mathias e suas margens sofreram inúmeras
alterações, provocadas tanto pela transformação da Colônia em cidade, como pela
interação das pessoas com o espaço físico, permeado de experiências. Nesse
sentido, a paisagem convoca a pensar sobre esse processo e as formas de sua
interpretação, pensando nos lugares e seus sentidos. Schamma (1996, p. 17) pontua
que a paisagem “antes de poder ser um repouso para os sentidos, [...] é obra da
mente. Compõe-se tanto de camada de lembranças quanto de estratos de rochas
[grifos nossos]”. Sobre ela e os lugares, Browser e Zedeño (2009) colocam que para
os lugares significativos e ao mesmo tempo persistentes, as camadas de interação e
temporalidades se sobrepõem compondo paisagens. Para estas,
Place is the repository of sequences of actions that, through time and repetition, become part of a people's "tradition." Such sequences of actions may be evident, for example, in the types of artifacts and features associated with multiple occupations of a given locale or in visibly consistent use practices that modify a place and its irnmediate surroundings according to its users' needs. If, through time, a place remains relatively undisturbed, then the artifacts, features, and modifications can become anchors of individual and group memories, of collective knowledge about land and history, and of moral lessons needed to maintain social cohesion (BROWSER; ZEDEÑO, 2009, p. 8).
Nesse contexto, a paisagem pode ser entendida como a estrutura, o suporte
necessário interligando sujeitos e lugares, desvelando questões sobre a relação entre
indivíduos e ambientes. Mas também como artefato social, carregada de
intencionalidade, signos e representações dessas diferentes sociedades.
Outro conceito que reflete essa especificidade é o de lugar, que nos estudos
de arqueologia e patrimoniais apresentam não somente a escolha de locais
específicos com base na necessidade de obtenção e na disponibilidade de recursos,
mas também em lugares significativos e que podem estar relacionados à memória de
seus antepassados, ao olhar mais particular e sensorial dos indivíduos ou mesmo à
cosmovisão de determinados grupos. Esses lugares são a chave para a compreensão
da paisagem, pois revelam a estratigrafia de atividades sobrepostas sincrônicas e
diacrônicas, numa rede de lugares, estruturando os sentidos e a percepção sobre
determinado espaço apropriado, caracterizado como lugares significativos, conforme
apontam Browser e Zedeño (2009, p. 6)
At its simplest and most useful for archaeological pursuits, place is a discrete locus of behavior, materiais, and memory—a meaningful locale, a product of people's interactions with nature and the supernatural as well as with one another. As noted above, the concept "place" encompasses a wide array of spatial categories, not the least of which are physiographic features such as caves, mountains, springs, ancient trees, and salient rock outcrops
Dessa forma, o Rio Mathias pode ser entendido como um Meaningful Place, um
lugar significativo, ao ser ponto estruturante das relações e interações sociais estabelecidas
em diferentes momentos, interligando uma rede de outros lugares, no passado e no
presente.
REFERÊNCIAS
ALVES, Maria Cristina. Diagnóstico Arqueológico para as Obras de Implantação de Abrigo de Passageiros e Cais Flutuante, em Joinville, SC. Relatório Final. Joinville: OPA Consultores Associados, 2006. BORBA, Fernanda Mara Borba; ALMEIDA, Graciele Tules de; KRASSOTA, Anna Kelly. Monitoramento arqueológico e educação patrimonial das obras de ampliação da capacidade hidráulica do Rio Mathias, em Joinville, SC. Relatório Final. Joinville: Azimute, 2018. BROWSER, Brenda J.; ZEDEÑO, María Nieves. The Archaeology of Meaningful Places. Salt Lake City: The University of Utah Press, 2009.
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