Cláudio Villa
1
Índice
Prefácio
Mulheres Piratas: Fato e Ficção
Agradecimentos
Prólogo
Livro Um
Uma Brisa pela Manhã
Capítulo 1 - Dezoito Anos
Capítulo 2 - Uma Noite de Trabalho
Capítulo 3 - Briga de Sangue
Capítulo 4 - Prenúncio de uma Guerra
Capítulo 5 - Um Incêndio na Escuridão
Capítulo 6 - O Desabafo no Penhasco
Capítulo 7 - O Mausóleu dos Northwind
Capítulo 8 - Os Planos de Aldarian
Capítulo 9 - A Nova Aspirante
Capítulo 10 - A Vida no “Aliança”
Capítulo 11 - Dez Chibatadas
Capítulo 12 - Uma Dança de Espadas
Capítulo 13 - Hasteiem nossas Cores
Capítulo 14 - Tempos de Crise
Capítulo 15 - A Volta para casa
2
Capítulo 16 - Cúmplices Sombrios
Capítulo 17 - A Perda do “Aliança”
Capítulo 18 - O Castelo Sitiado
Capítulo 19 - A Queda de um Reino
Livro Dois
Um Vendaval ao Cair da Tarde
Capítulo 1 - Amotinados
Capítulo 2 - Cumprindo o Juramento
Capítulo 3 - Capitã Escarlate
Capítulo 4 - O Exílio nas Sombras
Capítulo 5 - Traição na Ilha de Tirana
Capítulo 6 - Uma Nova Bandeira
Capítulo 7 - A Formação da Companhia
Capítulo 8 - Fuga para Myrtakos
Capítulo 9 - Uma Rosa sobre Sabres Cruzados
Capítulo 10 - A Recusa por Ajuda
Capítulo 11 - Náufragos
Capítulo 12 - O Enforcamento de Henry Roberts
Capítulo 13 - Emboscada em Águas Rasas
Capítulo 14 - A Invasão de Al-Mina’ El-Gharbia
Capítulo 15 - Negociando com o Patriarca
Capítulo 16 - O Pesadelo das Águas Sombrias
3
Livro Três
Uma Tempestade ao Anoitecer
Capítulo 1 - Procura-se uma Corsária
Capítulo 2 - Lomir, o Amaldiçoado
Capítulo 3 - Caçada pelo Sangue Negro
Capítulo 4 - Morte na Costa de Dartaria
Capítulo 5 - A Revelação sobre a Real Escola
Capítulo 6 - O Sacrifício da Capitã Escarlate
Capítulo 7 – Enfrentando a Tempestade
Capítulo 8 - Um Novo Começo
Epílogo
Apêndice 1 - O governo de John Hattcliff
Apêndice 2 - A queda de John Hattcliff e a restauração da antiga Coroa de Aldarian
Apêndice 3 - A Guerra Aldarian x Azhir
4
5
PrefácioMulheres Piratas: Fato e Ficção
Eduardo San Martin
"O Vento Norte", de Cláudio Vila, é mais um texto explorando o poder de captura
da imaginação popular das histórias de pirata. A pirataria como tema de leitura - seja
histórico-jornalística, literária, em prosa e verso, ou ensaística - é tão antiga quando a
própria atividade. A Odisseia de Homero (cerca de 850 B.C.) não passa de uma narrativa
épica dos atos de pirataria de Ulisses e seus companheiros da Grécia Antiga pelo mundo
conhecido nos primórdios da civilização ocidental. Os Lusíadas, de Luis de Camões
(1524?-1580), também pode ser interpretado como uma exaltação patriótico-nacionalista
dos grandes feitos dos herois-piratas portugueses na Era dos Descobrimentos.
Esses exemplos clássicos, de certo modo, estabeleceram o tom da maior parte da
produção intelectual sobre o tema. Ou seja, há mais histórias imaginárias do que estudos
acadêmicos ou técnico-científicos com informações concretas sobre as práticas, hábitos e
costumes dos corsários dos sete mares. Inclusive na chamada Época de Ouro da pirataria
(séculos XVII e XVIII), quando os relatos da vida e aventuras de bucaneiros vendiam
literalmente milhões de livros e publicações, o registro é ficcional, por mais convincente e
realista que pareça.
6
Assim, muito do que se aceita como verdade sobre os piratas clássicos é mitológico,
não factual, devido ao baixo padrão técnico do altamente lucrativo jornalismo
sensacionalista que explorava o assunto, mesmo quando baseado em autos de processos
contra piratas condenados pela justiça. Até hoje, essa tendência à extrapolação não sofreu
maiores correções de curso. Isso fica evidente nas constantes recorrências contemporâneas
à temática, tais como os filmes da série Piratas do Caribe (2003-2011), que são
essencialmente derivados das poucas fontes disponíveis - todas de precisão questionável em
vários aspectos(1).
A falta de maior documentação e a baixa confiabilidade dos registros históricos
provavelmente estimularam essa tendência ficcional. A escassez de dados verificáveis
certamente serviu para consagrar muitas inverdades em relação aos piratas. Isso vai do
espírito de coragem e aventura associado a essa atividade criminosa e brutal, ainda hoje
altamente lucrativa, com custos anuais de US$ 7 a 12 bilhões à navegação do século XXI
(2), até mal-entendidos perpetuados por gerações de autores ao longo dos séculos.
Neste contexto, o exemplo mais marcante é a suposta execução de condenados em
navios piratas, fazendo-os "caminhar à prancha" sob a ponta da espada. Na realidade, os
condenados à morte eram punidos pela forca, decapitação, ou desterro em lugar deserto
sem armas ou mantimentos. A prancha era utilizada essencialmente para dispor dos corpos
de piratas mortos em alto-mar. O mesmo se dá com "os tesouros enterrados em lugares
inóspitos": os bucaneiros não praticavam esse tipo de poupança, gastando seus ganhos nas
tabernas e prostíbulos do primeiro porto que os recebesse.
No Ocidente, essa pirataria fictícia atraiu autores clássicos e modernos dos mais
variados estilos e intenções intelectuais. Vai da arte da sobrevivência de Robinson Crusoe,
de Daniel Defoe (1659?-1731), à ópera Il Pirata, de Guiseppe Verdi (1813-1901), e à
abertura sinfônica Le Corsaire, de Hector Berlioz (1803-1869), passando por longos
poemas como o The Corsair, de Lord Byron (George Gordon, 1788-1824), e à novela The
Pirate, de Walter Scott (1771-1832). Esse acervo ficcional desenvolveu-se com uma
infinidade de variações de sucesso, da Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson (1850-
1894), às novelas de aventura de Rafael Sabatini (1875-1950), cujo Captain Blood
7
consagrou Errol Flynn (1909-1959) como o pirata-galã nos filmes de Hollywood, a partir
da década de 1930, até exemplos contemporâneos recentes, como Piratas, de Roman
Polanski (1933-) e às produções de Walt Disney no cinema, ou à novela Maluco, do
uruguaio Napoleón Ponce de León (1947 - ).
Em "Vento Norte", Claúdio Villa retoma o tema de maneira fantástica ou a-
histórica, abordando uma de suas faces menos exploradas: a mulher pirata. Pouco se sabe
sobre a presença feminina na pirataria. O registro mais consagrado envolvem Anne Bonny
e Mary Read, conforme descrito na História Geral da Pirataria, de Charles Johnson, de
1724 (3): as raras mulheres que se aventuraram neste meio quase que exclusivamente
masculino vestiam-se e portavam-se como homens, escondendo sua condição de sexo
frágil.
Em função das agruras do dia a dia a bordo dos antigos galeões, escunas e
bergantins, o mais provável é que elas também não fossem frágeis, lutando de igual para
igual, lado a lado a seus companheiros, durante roubos e confrontos em mar aberto. Essa
percepção é confirmada por um dos poucos relatos do gênero reconhecido como autêntico:
The History of the Female Shipwright, publicado em 1773 por M. Lewis, em Londres,
contando a experiência pessoal de Mary Lacy, que passou mais de dez anos perseguindo
piratas em navios da Royal Navy (marinha britânica), sob o nome e a aparência de William
Chandler.
Outro exemplo comprovado de mulher bucaneira seria Cheng I Sao ou Ching Shih
(1775-1844), a rainha dos piratas, viúva e herdeira de Cheng I, o "terror dos mares da
China", cuja história foi recriada com grande força poética por Jorge Luis Borges (1899-
1986), no conto Madame Ching. De modo geral, entretanto, a representação das mulheres
na pirataria é envolta pelo véu da imaginação criativa, onde quase sempre são vítimas de
piratas, raptadas e/ou cativadas por capitães malvados ou galantes, como nos filmes The
Buccaneer's Girl (1950) e The Pirate and the Slave Girl (1961).
Tradicionalmente, os poucos estudos acadêmicos sobre a presença feminina na
navegação antiga tendem a reproduzir um vício de percepção: a cláusula ou artigo do
regimento interno das companhias de piratas proibindo trazer mulher a bordo, a fim de
8
evitar as brigas e desentendimentos entre os marinheiros disputando a atenção e a afeição
do sexo oposto. Na vida real, o quadro seria muito diferente, de acordo com um raro
levantamento com rigor historiográfico sobre a questão, Female Tars (Women aboard Ship
in the Age of Sail), de Suzanne Stark, publicado em 1998 (4).
Analisando a documentação existente, sobretudo em língua inglesa, Stark confirma
o aceito como verdade: as raras mulheres piratas realmente se portavam como os demais
membros da tripulação, travestidas de homem. A presença feminina a bordo, porém, não se
limitava a essa mulher guerreira. Muitos capitães e oficiais viajavam com suas esposas e
amantes. Elas ainda atuavam em diversas atividades a bordo, como a limpeza das cabines, o
preparo de refeições e atendimento a doentes e feridos.
Essas esposas e companheiras de oficiais, entretanto, seriam exceções à regra. As
principais características da função e comportamento das mulheres a bordo, no tempo da
navegação a vela, seriam a crueldade e a desumanização a que eram submetidas. Muitos
comandantes, principalmente na região do Caribe, costumavam alugar escravas dos donos
de plantações da Jamaica e outras ilhas, mantendo-as no navio como objetos sexuais à
disposição dos marinheiros, enquanto permanecessem ancorados na baía de um porto
mercantil.
A medida visava evitar que a tripulação desembarcasse e desertasse a companhia,
dificultando ou inviabilizando a continuidade da viagem pela falta de mão útil a bordo.
Quando isso acontecia, os capitães compensavam a perda de mão-de-obra forçando
prisioneiros homens a entrarem para a pirataria, seguidamente sob ameaça de morte ou
tortura. O mesmo não ocorria com as prisioneiras. As mulheres valiam mais revendidas
como escravas, ou devolvidas a seus maridos e familiares em troca de resgate.
Notas:
(1) Além de relatos esparsos em diversas línguas, há essencialmente duas fontes clássicas: Piratas - História
Geral dos Crimes e Roubos de piratas famosos (1724), do capitão inglês Charles Johnson e Bucaneiros da
América (De Americaensche Zeerovers, 1678), do suposto cirurgião de bordo franco-holandês A. O.
Oexmelin. Ainda que aceitas como as descrições históricas mais fidedignas, ambas também se caracterizam
por contradições de fonte e autoria. A História Geral já foi atribuída a Daniel Defoe e inclui um segundo
9
volume com diversos piratas e biografias imaginários. Bucaneiros da América, por sua vez, consagrou-se via
sua versão revista e (pró-britânica) em inglês, onde até o nome do autor foi adaptado para John
Esquemeling.
(2) Estimativas do governo dos Estados Unidos e da Organização Marítima Internacional da ONU.
(3) A vida de Anne Bonny (ou Bonnet) e de Mary Read foi romanceada por Heny Musnik na novela Les
Femme Pirates: Aventures et Legendes de la Mer (1934). Antes (1918), Aylward Edward Dingle (Capitão
Dingle) serializou The Pirate Woman para a revista All Story Weekly.
(4) Outra obra de interesse, ainda que sem o mesmo rigor acadêmico, é Piratinnen (Women Pirates, 1997),
de Ulrike Klausmann e Marion Meinzerin. Ver também Under the Black Flag, de David Cordingly (1992).
**************************************************
Eduardo San Martin é autor de vários livros históricos sobre pirataria clássica,
incluindo Náufragos (4a edição, 2009 - Prêmio Açorianos Narrativa Curta) e A Viagem do
Pirata Richard Hawkins (2a ed., 2005 - Prêmio Açorianos Especial do Júri, Narrativa
Longa).
10
Agradecimentos
Quando começei a escrever O Vento Norte, em meados de 2008, nunca imaginei
que aventura seria levá-lo até vocês. Foi um longo e árduo percurso, alternando momentos
de alegria com outros onde minha única vontade era desistir.
Nesses cinco anos, apresentei-o a diversas editoras, enviei e melhorei sua história
graças a meus leitores beta, cheguei a acertar a sua publicação para vê-la cancelada quase
dois anos depois.
Por fim, preparei um financiamento coletivo um tanto reticente, em um momento
em que o único caminho viável me parecia ser a gaveta. Foram quase quatro meses de
trabalho, mas no final o projeto foi bem-sucedido.
Porém, se houve algo que foi essencial em todo esse processo foram as pessoas que,
direta ou indiretamente, se envolveram nele. Ao longo do trajeto consegui aliados (e até
alguns inimigos), mas felizmente os primeiros se mostraram mais fortes e é graças a eles
especialmente que esse livro está em suas mãos hoje.
O grande problema em se escrever agradecimentos é a possibilidade de
esquecermos alguém. Confesso, sou distraído e tenho uma dificuldade imensa em lembrar
nomes. Se você não vir seu nome aqui, faço mea culpa, porém saiba que serei sempre grato
a seu apoio.
11
Ana Beatriz e Pedro: as pessoas que, nos momentos de maior dificuldade, me fizeram
erguer a cabeça e seguir em frente.
Meus pais e irmã: Minha mãe, por nunca me deixar desistir desse sonho, e meu pai, que
despertou em mim a paixão por navios antigos.
Amigos do Mirr: com os quais venho nos últimos vinte anos criando esse mundo de
fantasia e, como minha segunda familia, sempre me apoiaram para que esse sonho se
realizasse.
Amigos escritores: André Vianco, Sérgio Couto, Gian Celli, Leandro Reis, Ana Lúcia
Merege, Giulia Moon. Vocês, melhor do que ninguém, compreendem os desafios desse
meio e me estenderam a mão quando tudo parecia perdido.
Meus fiéis Oficiais de Bordo: Kyanja Lee, Danielle “Dandi” e Marina Avila, cujos
trabalho, dedicação e amizade estão refletidos nessas páginas.
E. San Martin: Cujos livros sobre piratas foram a base de minha pesquisa e por ter aceito
gentilmente o convite de escrever o prefácio dessa obra.
Sites, Blogs e Fanpages: Que divulgaram o projeto de financiamento e cujo apoio foi
fundamental para seu sucesso.
Sherazade “Zady” Shunnaq: Por ter me ajudado nas traduções fonéticas para o arábe
(amiran) e por ter me ensinado um pouquinho sobre essa fascinante cultura.
Ygor “Turner” e Leandro “Shaka”: A convivência com voces ajudou a transformar
Colleen - de uma ideia - em uma personagem completa, além de trazer Jack Fletcher e
Lomir para essa história.
Nathalia, Will, Adriana, António e todos os leitores Beta: Por sua inestimável
contribuição a essa obra ao apontar ideias e problemas na trama.
Kenneth Wellings: Por ceder sua arte para servir como base à capa deste livro.
Minha Tripulação: Às 99 almas que embarcaram nessa jornada incerta e cujo trabalho a
bordo foi fundamental para que chegassemos a nosso destino: Adriana Vacanti, Albany
Gomes, Alexx Felipe, Alfredo Vinicius, Algirdas Butkevicius, Amauri Antunes, André
Canário, André Schuck, Carlos, Carlos Renato, Carolina Faria, Cintia Robin, Clara
12
Madrigano, Cristiane Margarida, Daniel Medeiros, Daniel Nagaishi, Daniela Natrielli,
Daniele Naka, David Sant’Anna, Diogo Brazioli, Eduardo Chaves, Eduardo Ferreira,
Eduardo Jauch, Elaine Hojaij, Elisabeth Sant’Anna, Ellis Regina, Eloisa Alves, Fábio
Brandão, Fábio Souza, Fausto Abreu, Fernando, Flávio Costa, Gabriel Almeida,
Gianpaolo Celi, Gounford, Gustavo da Silva, Gustavo Mormesso, Heloisa Priedols,
Henrique Bellinati, Igor Toscano, Igor Zolnerkevich, Ivan Nobre, Jaime Gabriel, Jamille
Daher, Jefferson Lucas, João Yajima, José Carlos, Julia Tinoco, Julio Kramer, Kai Targas,
Kyanja Lee, Leandro Coutinho, Lucas Vitoriano, Luis Augusto Sendas, Luis Felipe
Kretzmann, Luiz Henrique Correa, Luiz Henrique Farcic, Maína Alexandre, Marcelo
Brandao, Marcelo Junio, Marcelo Oliveira, Marcelo Thor, Marco Manzato, Marcos
Farias, Maria Paula Krakhecke, Mariana Symecko, Mariane Ceres, Mayne Benedetto,
Moonshadows, Nara Daia, Natan Moraes, Nathalia Carielo, Pâmela Farias, Patricia,
Paula Almeida, Paulo Alexandre, Paulo Galembeck, Paulo Marcussi, Rafael, Rafael
Carletti, Rafael Cappelasso, Renato Gondim, Ricardo Caffer, Ricardo Mancuso, Rodrigo
dos Santos, Rogério Furquim, Rosana de Almeida, Samanta Nakamura, Sergio Luiz,
Simone Sauressig, Thais Borgo, Thais Rocha, Thiago, Thiago Machado, Tiago Castro,
Valéria Alves, Valéria Cordeiro, Vinicius Takaki.
13
Prólogo
Karim precisava agir rápido. Sem tempo a perder, não havia mais razões para
discrição. Administrado em pequenas doses ao longo dos últimos meses, o veneno fora
suficiente para deixar Abdul, Patriarca de Azhir, doente, entretanto não para matá-lo.
O desgraçado ainda teve a coragem de mandar chamar aquele traidor nojento,
aquele bastardo que ele considera mais do que eu, sangue de seu sangue.
Em questão de dias, o Regente de Aldarian - o tal bastardo de quem se ressentia -
aportaria à cidade para visitar o seu pai doente. Karim temia que seu plano fosse
desvendado antes disso.
Faltavam poucos meses para os aldarianos vencerem a última barreira que tornava
Azhir um mal necessário: o Estreito das Águas Sombrias, uma zona de tempestades
impenetrável, que dividia os hemisférios de Mirr.
Por gerações, a Companhia de Al Azhir vinha controlando a única passagem
existente entre os dois lados do mundo, um canal caudaloso que cortava seu território e
permitia a passagem de navios em segurança.
Aldarian e sua tecnologia naval, entretanto, ousavam quebrar esse delicado
equilíbrio, construindo navios mais resistentes, a fim de vencer o Estreito das Sombras à
sua própria maneira. Caso conseguissem bordear as Águas Sombrias, os aldarianos
14
colocariam um fim ao monopólio de Azhir. E era exatamente isso que o novo Patriarca
pretendia impedir.
Aproximando-se do quarto do Patriarca, Karim sinalizou a um dos guardas que
cuidasse para que ninguém se aproximasse. Entrou no aposento, sem fazer nenhum barulho.
Ainda que a doença causada pelo veneno houvesse drenado as forças de Abdul, tornando-o
um alvo relativamente fácil em seu leito, intimidou-se diante da sua presença. Por anos ele
aguardava que seu pai deixasse de vez o trono e entregasse o controle da Companhia a
alguém que saberia o que fazer com seu poder: ele mesmo, seu natural herdeiro.
A sua mediocridade e o seu deturpado senso de justiça permitiram que os malditos
ilhéus ameaçassem a hegemonia conquistada com o sangue de nossos antepassados. Hoje
verá como um verdadeiro líder age em situações de tensão.
Ele agarrou um travesseiro, apertando-o com firmeza entre os dedos. Respirou
fundo, antes de pressioná-lo sobre o rosto adormecido do velho Abdul. Este se moveu de
um lado ao outro, até que passou a saltar quando o ar em seus pulmões começou a rarear.
Mesmo fraco, coiceava com força, obrigando o jovem emir a pular sobre a cama e ajoelhar
sobre seu peito para lhe conter os saltos. O ódio e a ambição lhe davam forças para
pressionar mais e mais o objeto contra o rosto do pai.
Logo, os fortes coices deram lugar a espasmos fracos e desordenados. A agonia do
Patriarca se encerrou assim que sua mão se abriu, onde se notavam as pontas de dedos
azuladas. Karim aguardou alguns minutos antes de retirar o travesseiro do rosto de Abdul e
confirmar que ele havia deixado de respirar: olhos vidrados e a boca entreaberta numa
expressão de profundo terror, sem que lhe tivesse sido dada a mínima chance de gritar.
Passou a mão pelo rosto do pai, fechando-lhe os olhos e a boca e dando-lhe uma
expressão mais serena. Com um pouco de dificuldade virou o corpo de lado, cobriu-o e,
sem dizer uma palavra, retirou-se do aposento. No dia seguinte, o cadáver seria encontrado
e ele, alertado. Dali em diante, seria só preparar tudo para um novo governo, quando o
dinheiro da Companhia seria usado para alimentar algo que ele desejava há muito tempo:
vingança.
15
Livro Um
Uma Brisa pela Manhã
16
Capítulo 1 - Dezoito Anos
Meu padrinho, o Regente de Aldarian, sempre me conta que nada é mais belo do
que ver o pôr do sol no mar. Somente quando estamos em meio à vastidão do oceano,
percebemos o quanto o mundo é grande e a liberdade só existe de verdade quando não
seguimos um só caminho. No mar não existem estradas a ser percorridas, apenas o vento a
nos empurrar para onde queremos ir. Eu adorava quando ele dizia isso.
Há uma lenda, muito comum entre os marinheiros, de que os ventos que sopram no
mar são na verdade espíritos, entidades poderosas que decidem o destino de uma
embarcação. Dizem que se pode reconhecer cada um deles pelo som que fazem quando
sopram, e não é incomum observar marinheiros orando e pedindo por sua proteção. As
lendas ainda contam que é o vento norte quem comanda a todos os outros; por isso, é o
mais temido e respeitado.
Essa lenda é reforçada pelo meu pai, Guinford, Governador de Northwind, que a
utiliza como uma parábola em seus discursos e decretos. Por gerações, os Northwind têm
assumido a função de conselheiros da casa real e governadores da província que leva
nosso nome.
Quando alcançou a maioridade, meu padrinho, Joseph Hattcliff, o nomeou líder de
seu conselho: o “Vento Norte”, como batizou seu posto.
Naquele tempo, ele era um homem diferente, respeitado e adorado por seus
soldados, detentor de uma energia e disposição invejáveis. No entanto, com meu
17
nascimento tudo isso mudou. Meu pai se tornou um homem fechado e arredio, um espectro
de seu passado.
Por doze anos ele tentou me transformar em sua princesinha de olhos amendoados,
a servir de enfeite durante as festas reais. Era por intermédio de seus criados que eu sabia
quando acordar, quando comer, o que estudar e aprender. Ele contratou os melhores
mestres de toda Altrarian para educar a mim e a minha irmã, mas duvido que sequer
soubesse o que nos era ensinado.
Nunca tive paciência para as inúmeras aulas que sou obrigada a assistir: etiqueta,
prendas domésticas, diplomacia e trato social, somente para citar algumas delas. Ao final
das aulas, já cansada de tantas regras, meu padrinho vinha me resgatar. Ele me trazia até
aqui e lia trechos de seus diários de viagem e relatos de outros capitães que singraram os
mares de Mirr. Do lendário Ehleniel ao temerário Jack Fletcher, todos têm lugar cativo em
minha imaginação. Eu fechava os olhos, ouvindo o barulho do mar arrebentando nas
pedras lá embaixo e, por um breve momento, me transportava a bordo de seus navios,
sentindo a emoção da descoberta e o sabor da aventura. Ao abri-los, via meu padrinho
sorrindo. O Regente sempre foi muito mais um pai para mim do que o próprio Governador.
Para meu pai, tudo está relacionado ao trabalho. Levanta-se antes mesmo do sol
nascer e trabalha por horas, muitas vezes madrugada adentro. As refeições, realiza em sua
sala, comendo rapidamente, para logo retomar o que está fazendo. Nas poucas vezes em
que se senta à mesa conosco, por insistência de meu padrinho, ele come em silêncio,
parecendo sempre estar em algum lugar além do salão de jantar.
Minha irmã Melleen tenta iniciar uma conversa, contando-lhe sobre o dia e sobre
os progressos que eu estou obtendo nos estudos. Em geral, a recepção é pouco
entusiasmada: um sorriso fraco e um breve afago em meu rosto são o máximo que obtenho
de sua aprovação.
É ela, cinco anos mais velha, quem me dá segurança e carinho quando eu,
entristecida, corro até a escada do castelo para chorar. Coloca minha cabeça no colo, me
acaricia os cabelos e diz que nosso pai é assim mesmo, que nos ama de seu jeito e só
deseja o nosso bem.
18
Nas festas que ocorrem no castelo, meu pai veste uma máscara de sorrisos e
cordialidade. Por algumas horas, abandona a cara carrancuda para adotar um semblante
mais leve, uma expressão que se repete baile após baile. Quando a orquestra toca alguma
música e os convidados vão para o meio do salão dançar, ele convida Melleen para uma
dança. Julgo esse o único momento em que seu sorriso é realmente sincero.
Em meu décimo terceiro aniversário, finalmente conquistei o presente mais
almejado: a oportunidade de ingressar na Real Escola de Navegação e me tornar uma
oficial da marinha de Aldarian. Por meses me dediquei aos estudos, absorvendo todo o
conhecimento dos mestres da instituição. Porém, ser a afilhada de alguém tão importante
quanto meu senhor Joseph Hattcliff causa inveja em muitas pessoas.
Sou uma Northwind e, como tal, sempre procurei me defender daqueles que
queriam abusar de mim. Isso me trouxe problemas, reprimendas por indisciplina que
culminaram em uma expulsão injusta.
Estava certa de que meu pai me defenderia perante o corpo diretor, mostrando-lhes
que sua filha, apesar de difícil trato, seria incapaz de tamanha falta. Em vez disso, ele
preferiu se calar, aceitando a decisão do conselho baseado em meu longo histórico. Eu
chorei, implorei e jurei que nada tinha ver com o caso, mas nem mesmo o “grande
conselheiro real” acreditou em minhas palavras. Desde então, nossa relação somente
piorou.
Melleen, mais velha e ponderada, está sendo preparada para assumir, como
herdeira, o lugar de meu pai. Seus estudos se intensificavam à medida que a
responsabilidade aumentava. O Governador deve ter imaginado que eu acabaria aceitando
que a Escola naval nunca foi o meu lugar e que, como ela, cresceria educada e
subserviente.
Eu ainda provarei que posso ser mais do que uma simples dama de companhia,
mais que a menininha de cabelos castanhos agarrada à sua barra. Não preciso de uma
escola repleta de alunos arrogantes para me tornar uma navegadora; os grandes heróis de
Aldarian aprenderam o que sabem no dia a dia do mar.
Hoje, eu, Colleen Nortwind, completo dezoito anos. A partir de agora, decidirei e
serei dona de meu destino; nem mesmo o maior conselheiro de Aldarian me impedirá.
19
Por toda a manhã, Melleen aguardou o retorno de sua irmã ao castelo. Ela havia
saído cedo, antes mesmo do sol nascer. Já era quase meio-dia e dentro de poucas horas a
festa se iniciaria. Ainda existiam muitos ajustes a serem feitos no vestido que Colleen
usaria, e as costureiras se entreolhavam, confusas, enquanto a jovem insistentemente
encarava o relógio sobre o aparador da lareira.
A filha mais velha do Governador sabia que disciplina e responsabilidade não
faziam parte do vocabulário de sua irmã. Imaginava, porém, que Colleen teria um pouco
mais de consideração levando em conta aquele dia.
Rogo aos deuses que ao menos dessa vez não a encontre com uma garrafa de rum
na mão, invocou em voz baixa.
Melleen pediu a um dos empregados que preparasse a carruagem e partiu na direção
oeste, ao topo do promontório além das muralhas de Northwind. A viagem durou pouco
mais de meia hora, até que ela viu ao longe o cavalo castanho amarrado em uma árvore.
Sentada na beira do penhasco, Colleen tinha um pequeno livro de capa marrom em seu colo
e o olhar fixo em algum ponto perdido do horizonte. Sempre que desejava refletir, fugia
para lá, um lugar distante dos olhos do pai e de seus inúmeros criados. Ali ela encontrava a
solidão e a paz que precisava.
— Você está atrasada. Ainda há muito o que fazer até a noite...
— Você e seus detalhes, Mel. Você precisa ser sempre tão metódica? - Colleen
abriu um largo sorriso diante da repreensão maternal, mas dita em tom cheio de doçura.
— Não é uma questão de ser metódica, Colleen, mas você ainda precisa provar seu
vestido. Os ajustes precisam ser feitos antes que você...
— Pouco me importa o vestido. Qualquer um deles estará ótimo, como em todas as
festas.
— Esta festa é diferente e você sabe disso. Sabe o quanto ela é importante para
nosso pai. Não são todos os dias que uma de suas filhas faz dezoito anos.
— Diferente em quê, Mel? As mesmas pessoas, as mesmas conversas chatas, os
mesmos elogios vazios a cada aspecto da celebração. A única diferença é que dessa vez
20
serei eu e não você o centro das atenções. Pode imaginar o quão aborrecida será minha
noite?
— Essas são as regras e você já deveria ter se acostumado a elas
— Regras e mais regras. Sempre essa mesma conversa. Estou cansada de fazer tudo
o que você e o Governador desejam. Agora que sou maior, poderei finalmente fazer o que
quiser.
— Não me venha com aquela conversa tola de fugir novamente. Até quando você
vai continuar com isso?
— E quantas opções eu tenho? A essa altura eu poderia estar me formando na
Escola Naval, iniciando uma brilhante carreira na marinha, mas nosso pai preferiu acreditar
em mentiras do que em sua própria filha. Tenho certeza de que ele ficou feliz com todo
aquele incidente. Sempre achou que eu fosse de cristal, que navios mercantes não são para
mulheres. Aposto que se tivesse nascido o menino que ele esperava, as coisas seriam
diferentes.
Melleen notou-lhe a voz amarga. Sentou-se ao lado dela, puxando sua cabeça para
seu colo e acariciou-lhe os cabelos.
— Papai nos ama, Colleen. Você precisa esquecer essa obsessão de querer provar
que é forte e independente. Se quer mesmo que ele se orgulhe de você, devia se dedicar
mais a seus estudos.
Colleen encarou sua irmã com um olhar de descrença, como se ela simplesmente
não a conhecesse. A mais velha sorriu, não resistindo a esse olhar.
— Quem estou querendo enganar, não é mesmo? Como se você fosse mudar
alguma coisa por causa dessa conversa.
Melleen então olhou para o céu, para o sol que quase se colocava a pino e disse:
— Podemos ir agora, Colleen? Está ficando realmente tarde para preparar tudo.
A jovem emitiu um suspiro profundo de angústia enquanto concordava com a
cabeça e se punha de pé. Bateu o pó de suas roupas e se aproximou do cavalo, soltando-o
da árvore e montando o animal. Com um olhar desafiador gritou para sua irmã:
21
— Ei, princesinha... Que tal uma corrida até o castelo? Será que essa sua carruagem
é capaz de me alcançar?
Dizendo isso, esporeou o cavalo e disparou. Melleen se limitou a sorrir, entrando na
carruagem e ordenando ao cocheiro que voltasse para a cidade o mais rápido possível.
♥♠♥
Quando Melleen avistou as muralhas que separavam o castelo do mundo exterior,
Colleen já estava parada na porta, sobre o cavalo, aguardando a sua chegada. Pelo jardim,
inúmeros criados se espalhavam cuidando das plantas e colhendo frutas para o jantar
daquela noite. Todos vestiam librés impecavelmente brancos, adornados com o timão
ladeado de louros, o símbolo de Aldarian. Colleen cumprimentava um a um pelo nome, à
medida que se aproximava da entrada do castelo.
Elas chegaram à pequena estrada ladrilhada com pedras que dividia o jardim em
dois e conduzia à entrada principal. O caminho central era ladeado por palmeiras reais, cada
uma cercada por bancos brancos que davam a seus usuários uma visão privilegiada do
jardim. Ao centro ficava a roseira, cujas flores vermelho-escarlate eram as preferidas de
Colleen.
Melleen corria desajeitada, esforçando-se para manter o equilíbrio sobre o salto fino
de seus sapatos, mal conseguindo acompanhar o ritmo da irmã caçula, ainda eufórica
devido ao pique que dera com o cavalo.
Avançaram as portas do castelo, subindo pela escada até alcançar a ala norte, os
aposentos familiares do Regente e de sua família. Somente quando Colleen chegou a seu
quarto é que a excitação diminuiu. A energia se converteu em um ar cansado, assim que
encarou as criadas e sua aia que a aguardavam, pacientes.
À lembrança da noite que viria fez com que um misto de raiva e tristeza a
dominasse, enquanto resignada se posicionava sobre o banco para que as mulheres lhe
tirassem as medidas e fizessem os ajustes finais em sua roupa.
22
Logo elas a cercaram, carregando vestidos feitos dos mais diversos materiais e
cores. Todas as roupas haviam sido tecidas para aquela ocasião especial na vida da filha do
governador. As costureiras a mediam de cima a baixo, buscando a melhor combinação para
a celebração daquela noite. Tudo deveria estar perfeito, da escolha da roupa ao uso dos
acessórios, das luvas de seda branca até as joias feitas com pedras raras. Havia pouco
tempo até que a festa começasse.
Colleen acabava de vestir um lindo vestido, quando ouviu um outro barulho vindo
da porta.
Em pé, de forma a aparentar austeridade, estava um homem de cabelos castanhos
unidos a uma barba da mesma cor. Ele vestia um longo casaco azul-escuro ladeado por
detalhes dourados e adornado por grandes botões de prata. Um chapéu tricorne azul e um
par de botas negras completavam a vestimenta.
Colleen pulou de cima do pequeno banco e com um largo sorriso correu na direção
do homem, apesar das insistentes tentativas das costureiras em mantê-la quieta.
— Dindo! – gritou.
Lorde Joseph acolheu a menina nos braços, enquanto Melleen e as outras criadas,
em tom formal, saudavam o Regente.
— Boa tarde, meu senhor – disse Melleen de forma regrada.
Joseph sorriu. Adorava suas afilhadas, fosse nos modos contidos de Melleen, fosse
na inocência de Colleen. Segurou a jovem pelos ombros, medindo-a de cima a baixo com
os olhos, para então dizer:
— Você está sem dúvida radiante hoje, minha menina...Ansiosa?
A caçula fez que sim com a cabeça, tentando disfarçar inutilmente seu desprezo por
essas festas. Lorde Joseph, diferente do pai dele, o Rei Yuri Hattcliff, também dava pouca
importância a esses eventos. Esforçava-se, mas não conseguia ocultar o descontentamento
diante elas.
23
— Somente por essa noite, querida, tente agradar seu pai, está bem? - disse o
Regente apenas para seus ouvidos. — Cuide-se, minha menina, vejo-a mais tarde. - Beijou-
lhe carinhosamente a testa enquanto saía do aposento em direção a seu dormitório.
Nisso, uma mão segurou a de Colleen. Era Melleen, puxando-a de volta para o
banco onde estava, para que o vestido escolhido fosse ajustado. Aquele seria um longo dia.
♥♠♥
Já se passava meia hora desde que Colleen havia se trancado em seu quarto e não
mais se manifestou. O clima no salão de baile era tenso, com Melleen tentando distrair os
convidados e acalmar seu pai, que tamborilava os dedos, impaciente.
— Onde está essa menina? É bom que ela não esteja aprontando mais uma das suas.
— Acalme-se meu pai, Colleen está nervosa com essa situação. Precisava apenas de
alguns minutos para se preparar.
— Alguns minutos? Eu quero é saber por que a deixaram sozinha em seu quarto?
Por que nem mesmo sua aia ficou lá para vigiá-la?
— Ela é quase uma adulta; além do mais, expulsou todos os criados aos berros,
dizendo que não dispunha de um minuto sequer para ficar sozinha.
— Então eu irei até lá e colocarei a porta abaixo. Ouça os comentários, Melleen, o
que nossos convidados irão pensar de tamanho descaso.
Tão logo Guinford parou de falar, sua caçula despontou no topo da escada. Ela
havia optado por um vestido cor de vinho e estava radiante, como determinava a ocasião. O
arauto real aprumou a voz, preparando-se para anunciar a entrada da aniversariante, quando
foi interrompido por um som seco.
Colleen, ao descer o primeiro degrau, se desequilibrou, caindo sentada. Com
dificuldade, se agarrou ao corrimão, rindo enquanto tentava se colocar de pé.
O Governador olhou para cima enfurecido, vendo sua caçula humilhá-lo mais uma
vez. Alterada, a jovem estava visivelmente bêbada. Melleen correu escada acima,
amparando a irmã antes que ela despencasse de lá. Os convidados se entreolhavam,
24
procurando entender o que estava acontecendo. Alguns já destilavam seu veneno, rindo
baixinho da má sorte do governador.
Guinford aguardou enquanto a filha, cambaleante, chegava até o piso ladrilhado do
salão de baile. Ele a agarrou pelo braço com força, aproximou os lábios de seus ouvidos e
disse, firme:
— O que é isso, menina? Mais uma de suas tentativas de me envergonhar perante
todos...
— Ora, não me encha o saco, papai, esta deveria ser uma festa, não? Eu só estou
comemorando - respondeu Colleen com sarcasmo. - Porque está tão furioso?
— Você vai voltar para seu quarto agora, entendeu? Como irei explicar aos
convidados o que está acontecendo?
— Por que não diz a eles que tipo de cretino você sempre foi? Que não está nem aí
para o que suas filhas fazem ou desfazem?
— Cale a boca! – disse o Governador um pouco mais alto.
— Por que você não me cala, hein? Não é tudo sempre feito do seu jeito?
— Agora já chega. – O Governador pressionou ainda mais o braço de Colleen,
arrastando-a para fora do salão.
Colleen começou a gritar, se debatendo e xingando a tudo e a todos enquanto era
levada escadaria acima.
O estranho silêncio que se estabeleceu no salão logo foi quebrado por Sarah, a
esposa do Regente, que, exercendo sua função como anfitriã, tratou de mediar a situação.
— Peço que perdoem minha afilhada. Certamente houve um mal-entendido e
acredito que ela tenha abusado um pouco do nosso rum – sorriu.
Pouco a pouco, os diálogos foram se restabelecendo, apesar de Sarah estar certa de
que o assunto seria Colleen.
25
Melleen deixou o salão discretamente, indo em direção aos aposentos da irmã.
Balançou a cabeça: o Governador não relevaria as atitudes de Colleen, que nunca havia se
comportado daquela forma.
26
Capítulo 2 - Uma Noite de Trabalho
Aquela havia sido uma noite bastante cansativa para a ladra. Invadir a casa de um
dos mais ricos mercadores de Northwind para roubar alguns documentos pertencentes ao
rival deste fora desafiador, mas lucrativo. Além do pagamento recebido por seu
empregador, Laura havia roubado alguns objetos de valor que encontrara pela casa, o
suficiente para que ela e Kitty sumissem de vista por uns tempos.
Caminhando entre as sombras, a jovem buscava ser discreta. Eram quase três horas
da manhã e pessoas andando pelas ruas a esse horário costumavam despertar suspeitas.
Após andar por vinte minutos, ela finalmente se aproximou de sua casa, um
aposento úmido e apertado em um cortiço na ponta oeste da capital. Tudo o que desejava
naquela noite era descansar um pouco, beber um pouco de vinho e dividir o belo pão que
surrupiara na mansão do cliente.
A apenas alguns passos da entrada, uma luz fraca vinda da porta entreaberta
chamou-lhe a atenção. Imediatamente, sacou seu par de adagas, preparando-se para o pior.
Ela sempre mantinha a porta trancada, e Kitty fora orientada a não a abrir para ninguém em
sua ausência.
Encostada na parede, abriu mais a porta. Ao ouvir bem baixo uma respiração, temeu
pelo pior.
27
Rapidamente, entrou no aposento, preparando-se para abater um inimigo se fosse
necessário. Em vez de ser recepcionada com uma luta, avistou um homem que não
conhecia sentado em uma cadeira, de frente para a entrada.
— Laura, não é? Laura Redwood?
— Quem é você? O que faz na minha casa?
— Oras, é assim que costuma recepcionar aqueles que desejam lhe dar trabalho?
A ladra olhou à sua volta, buscando qualquer sinal da irmã.
— Onde ela está? O que fez com Katherine?
— Ela está bem, fique tranquila.
Laura saltou para cima do homem, derrubando-o da cadeira e o prendendo no chão.
Encostou a lâmina em seu pescoço e, impaciente, berrou:
— Eu não estou brincando! Diga o que você fez com a minha irmã!
— Ou o quê? Vai cortar meu pescoço? Vai me matar? Se fizer qualquer uma dessas
coisas, nunca mais verá a menina de novo. E seria um verdadeiro desperdício.
Sem afastar a lâmina, a ladra prosseguiu:
— E o que você quer de nós, hã?
— Eu já lhe disse, minha cara, tenho um serviço para você. Ouvi dizer que é a
melhor.
— Que tipo de serviço? Diga logo e não tente me enganar.
— Que tal levantar primeiro? Não que eu não aprecie uma linda donzela por cima
de mim, mas esse não é o momento mais apropriado, concorda?
Enojada, Laura a cada segundo tinha mais vontade de abrir o pescoço daquele
homem. Preocupada com a irmã, cedeu, levantando-se, sem porém guardar as armas.
— Diga logo!
— Veja, minha cara, precisamos de alguém hábil o suficiente para invadir um lugar
que a maioria das pessoas consideraria impossível.
28
— E que lugar é esse?
O homem retirou um mapa de sua bolsa e o abriu sobre a mesa, apontando uma
cidade ao sul de Aldarian.
— Eiran?
Ele balançou afirmativamente com a cabeça, enquanto sacava da bolsa um outro
conjunto de papéis. Ao serem desdobrados, as folhas pardas se revelaram plantas
detalhadas de algum tipo de construção. Um desenho no canto da folha denunciou à Laura
o local escolhido.
— A Real Escola de Navegação?
— Consegue ou não fazer o serviço?
— Não existem muralhas, guardas ou o que quer que seja que me impeçam de
executar meu trabalho.
— Muito bom, não esperaria nada diferente da famosa Laura Redwood. Direi o que
faremos: você tem sete dias, nem um a mais, para nos trazer as plantas e os livros
guardados na sala do último andar. Traga-nos o que pedimos e eu lhe pagarei mil Sextantes
como recompensa
Mil Sextantes, pensou Laura. Mais do que ela seria capaz de reunir em dez anos de
trabalho. Quantia grande, talvez o bastante para mudar de vida.
— E quanto à minha irmã? Onde ela está?
— Ela é nossa garantia de que não irá desistir. Traga o que pedimos e a terá de volta
junto com seu dinheiro.
Embora com o peito apertado, sem opções, Laura achou melhor cooperar.
— Volte em cinco dias e terá o que me foi pedido.
O mensageiro apenas acenou com a cabeça, enquanto recolocava o capuz e se
preparava para voltar à rua. Antes de sair pela porta, disse:
— Não se esqueça de eliminar as provas, é crucial que o Regente não saiba o que
foi roubado.
29
Ao ficar só, a jovem de cabelos vermelhos trancou novamente a porta e retirou o
capuz. Sentou-se à mesa, colocando sobre ela o pão que deveria dividir com a irmã. Com
um pouco de esforço, foi capaz de conter as lágrimas, enquanto rezava para que Kitty
estivesse bem.
30
Capítulo 3 - Briga de Sangue
Guinford adentrou os aposentos de Colleen, arrastando-a pelo braço. A jovem se
debatia e berrava impropérios que jamais deveriam sair dos lábios de uma nobre. O
Governador a empurrou na cama, fechou a porta e gritou:
— Por que fez aquilo, Colleen? Por que insiste em se comportar como uma
arruaceira?
— Porque estou farta das suas festas, dos seus jogos de aparência. Estou cansada de
ser aquilo que você sonhou para mim.
— Você é minha filha, uma Northwind. Tem de aprender a se portar de forma
adequada, como uma dama, assim como sua irmã!
— Você só sabe me comparar a ela. Estou certa de que seu maior desejo era que eu
fosse como Melleen, uma menina sem vontades, pronta para servir a seus desejos. Eu não
pretendia humilhá-lo, apenas queria relaxar um pouco, tirar de meus ombros a
responsabilidade de ser sua filha.
— Agora vai inventar mentiras para se justificar? Como se você bebesse apenas
para relaxar.
— Você nunca acredita em mim, meu pai. Nem mesmo quando aquele porco
nojento me atacou anos atrás. Em vez de me defender, ficou do lado dele.
31
— Novamente essa história, não é mesmo? Por que insiste em me culpar por sua
expulsão, quando foi você quem atacou com uma faca um dos melhores e mais
responsáveis alunos daquela instituição?
— Eu estava apenas me defendendo... Ele tentou me violentar!
— Violentar – disse o Governador com descrédito. – Joshua Ledward, filho de uma
das mais proeminentes famílias de Asíris? Dono de um currículo disciplinar invejável
tentou lhe atacar? E espera realmente que acredite nisso?
— Agora entendo: seria preciso ele me estuprar para você acreditar em mim? Por
que você nunca me dá crédito?
— E o que esperava, se o que faz de melhor é mentir? Eu sempre fui tolerante com
suas fugas para a cidade, com suas bebedeiras.
— Tolerante, meu pai? Não deveria dizer omisso?
Guinford engoliu em seco e ergueu ainda mais a voz:
— Mesmo depois da humilhação de ter minha filha expulsa de uma das mais
respeitadas instituições de toda Aldarian, ainda lhe consegui os melhores tutores do reino!
Isso é ser omisso, Colleen? Eu lhe dei tudo o que uma jovem poderia sonhar, e você só me
devolve sua ingratidão.
— Você está sempre ocupado demais com seu trabalho, meu pai. Duvido sequer que
saiba o que me é ensinado. Seu tutor de bons modos visivelmente está fazendo um péssimo
trabalho comigo – respondeu com sarcasmo.
— Agora chega, Colleen, você passou dos limites. Essa foi a última festa em que
você me envergonhou.
Colleen interrompeu os gritos e se recompôs. Com certa frieza, respondeu:
— Nisso está certo, meu pai, pois eu irei embora.
— Embora? - repetiu Guinford com descrédito na voz. – Quem você pensa que é
para decidir se irá deixar essa casa ou não?
— Eu alcancei a maioridade, meu pai, agora posso decidir para onde desejo ir!
32
O Governador arregalou os olhos, como se ouvisse o maior absurdo de sua vida.
Retrucou com desdém:
— Você acha que é assim? Só porque teve uma festa, que aliás você arruinou, se
torna adulta? Vai dormir e, num passe de mágica, se torna uma mulher madura e
responsável? Além do mais, para onde você iria?
— Existem inúmeros navios mercantes aportados em Northwind. Duvido que o
Regente não consiga me alistar em um deles.
— Novamente essa mesma história? Mais uma vez você se deixa levar pelas
histórias contadas por seu padrinho. Uma coisa é ser oficial em um navio da marinha de
Aldarian; a outra é embarcar em uma embarcação qualquer, trabalhando como marinheiro
de segunda classe. Quando você vai crescer e constatar que estamos no mundo real? Que
sair pelo mar, num navio, é perigoso?
Colleen permaneceu muda, a cara emburrada. O Governador prosseguiu:
— Você faz alguma ideia do que acontece em um navio? Trabalho pesado, doenças,
frio, fome, tempestades, sem contar as bestas que habitam nossos mares. O que espera
ganhar com isso?
— Liberdade – disse Colleen de forma ríspida.
— Liberdade de quem? De mim? De sua irmã? De seus estudos? Acha realmente
que só porque você vai estar a bordo de um navio será livre? Você obedecerá a ordens e
terá de cumpri-las sem se queixar. Se desobedecer a seu superior, o castigo não será ir para
seu quarto e sim umas boas chibatadas no lombo. Quer deixar sua casa para isso?
— E ficar para quê? Para servir de bibelô em suas festas? Quantos aniversários
preciso fazer para você poder escolher o que quero para a minha vida?
— Talvez seja hora de começar a ser mais como sua irmã e crescer.
— Pare de me comparar com a Melleen – explodiu em um grito. – Será que você é
idiota o bastante para perceber que eu não sou ela?
— Você está passando dos limites, Colleen. Você me respeite ou eu...
33
— Ou eu o quê? Vai me prender? Me castigar? Me bater? Como quer que eu lhe
respeite se nem ao menos você se interessa pelo que eu e minha irmã fazemos?
— A resposta é não, e esse assunto está encerrado.
Guinford se virou, abriu a porta ameaçando sair, quando a jovem retrucou:
— Você não pode me segurar aqui.
Sem sequer se virar, Governador respondeu, antes de bater a porta atrás de si:
— Pessoalmente não, mas estou certo de que meus guardas podem mantê-la dentro
do castelo pelo tempo que for necessário.
Ouviu-se um barulho de tranca. Sozinha em seus aposentos, Colleen pensava:
Essas paredes e trancas não poderão me prender aqui para sempre.
34
Capítulo 4 - Prenúncio de uma Guerra
A longa viagem de quarenta dias até o distante continente de Ixian se aproximava de
seu fim. A bordo do galeão real, Lorde Joseph, Regente de Aldarian, fizera questão de
capitanear pessoalmente a armada durante todo o percurso.
A carta recebida havia algumas semanas dava conta da piora no estado de saúde do
Patriarca de Azhir. O navio no qual estava a bordo era uma obra-prima da engenharia
aldarien: com um comprimento de sessenta metros e uma boca de doze, o galeão era um
dos maiores navios de quatro mastros de sua era. Tinha seu convés dividido em três partes:
a proa, primeiro pavimento logo à frente do navio, abrigava o primeiro mastro. O convés
principal constituía a maior parte do navio e onde se concentrava boa parte da tripulação.
Abrigava o mastro central e possuía duas fileiras com dez balistas postas lado a lado e
mantidas permanentemente carregadas.
Essas armas se diferenciavam em muito daquelas vistas em navios de outras nações.
Enquanto as balistas comuns eram capazes apenas de danificar velas e mastros, as armas de
Aldarian podiam perfurar até mesmo o mais espesso dos cascos. Graças à sua engenharia
precisa, os materiais raros utilizados em sua construção e a genialidade dos mestres gnomos
de Sestan, as armas de bordo dos navios aldarien eram motivo de temor e admiração.
Indo em direção à popa era possível visualizar a entrada para o casario de dois
andares. O primeiro pavimento abrigava a tripulação e a cozinha, e o segundo, os aposentos
pessoais do capitão.
35
Acima do casario de popa, ficava o convés de tombadilho, onde a nau podia ser
comandada. Ele abrigava o mastro de mezena e o mastro de ré, ambos portando um par de
velas quadradas usadas para manobrar o navio.
Com as mãos no timão, o Regente Joseph considerava as implicações que a piora no
estado de saúde do Patriarca da Companhia de Al Azhir teriam na economia de Aldarian e
de outros reinos. Durante mais de cinquenta anos, fora o Patriarca Abdul Assan que
mantivera a paz nos mares do oeste, assim como seu filho Karim longe de encrencas.
Desde o dia em que a consorte Sarah escolhera a ele e não ao filho do Patriarca,
Lorde Joseph ganhou um inimigo. Sabia o quanto Karim aguardava ansioso pelo dia em
que enterraria o próprio pai, e estava certo de que quando assumisse o trono de Patriarca,
esse faria de tudo para prejudicá-lo.
Assim, visitar o velho amigo Abdul era de suma importância não só para
demonstrar seu respeito a ele, como também para desafiar seu desafeto e mostrar que não
temeria nenhuma represália de sua parte.
Por anos, o Regente previra esse momento e preparara seus mais exímios
engenheiros para essa ocasião. Ele tinha de estar pronto para romper com a Companhia ou
pelo menos manter o acordo existente. O galeão real era parte dessa barganha, uma nau
capaz de bordear as Águas Sombrias sem o auxílio de Azhir.
Pelas lentes de sua luneta, finalmente avistou os contornos de Ixian. Após semanas
cercado apenas pelo mar, era reconfortante ver um pouco de terra segura e um lugar onde
houvesse algo mais do que peixes e carne seca para comer.
Joseph já podia visualizar uma dezena de navios mercantes, de diferentes tamanhos
e nações, alinhados no porto da cidade. Avistou também navios menores, mensageiros e, ao
constatar suas bandeiras, o peito se apertou.
Ali, aportados lado a lado, estavam representados inúmeros reinos de Ixian, famílias
amirans nobres de todas as partes do continente. Temeu o pior ao identificar o símbolo dos
Shunnaq, dos Mauad e de tantos outros clãs que compunham a força política da região.
Tão logo seu navio aportou nas docas, o Regente observou um aglomerado de
pessoas esperando seu desembarque. Eram guardas, servos, auxiliares e conselheiros do
36
Patriarca que, além de virem acompanhar a chegada do soberano de Aldarian, aproveitavam
a oportunidade para abastecer suas línguas com veneno.
Em meio à confusão, uma figura se destacava das demais enquanto lentamente
descia da carruagem que o havia levado até lá. O homem, cuja pele era pálida como se
jamais tivesse saído ao sol, vestia um casaco azul, cor da família real de Aldarian. Com a
ajuda de um criado, apoiou-se em um par de muletas e, claudicante, se aproximou do
Regente. Seus passos curtos e incertos denunciavam a dor imposta ao dar cada um deles.
Joseph se adiantou, andando rapidamente em direção a seu irmão para tentar ampará-lo.
— John, você está bem? Ainda com muitas dores?
— E que outra opção eu tenho, meu irmão, se esse é o fardo que devo carregar
graças a essa maldita doença...
— E o tratamento aqui em Azhir? Não o tem ajudado?
— Pouco, eu admito; não demora muito para que a fraqueza e a dor retornem.
As palavras do embaixador de Aldarian saíam fracas, intercaladas por inspirações
profundas, a fim de aplacar o cansaço que sentia. Mesmo sendo quase dezoito anos mais
novo que o Regente, John Hattcliff parecia bem mais velho.
— Deixe-me ajudá-lo a voltar a sua carruagem. Não deveria ter se dado ao trabalho
de vir até aqui!
— Este é meu papel aqui em Azhir, meu irmão: recebê-lo e portar notícias de seu
interesse. Lamento que não sejam boas.
— Isso quer dizer que o Patriarca...
— Faleceu. Há três dias, enquanto dormia.
Explicava-se a presença de tantos navios estrangeiros: todos haviam enviado
representantes para prestar sua última homenagem ao velho Patriarca.
— Eu lamento – disse Joseph com pesar. - E quanto a Karim?
— Está no palácio, fazendo os preparativos para a transição de poder. A essa altura
já deve ter sido informado de sua chegada e o aguardando.
37
Acompanhado do irmão, Joseph entrou na carruagem partindo em direção ao
palácio. Na mente, uma única certeza: a de que a morte do velho Patriarca havia sido
acelerada.
♥♠♥
Sentado sobre uma grande pilha de almofadas coloridas, Karim saboreava uma
generosa xícara de café, enquanto dois de seus servos o abanavam com leques feitos de
pena e palha. Da sacada de seu palácio, o novo Patriarca observava a movimentação nas
docas e o navio de seu desafeto, o Senhor de Aldarian.
Mal o corpo de seu pai foi retirado do leito, o emir já providenciara para que suas
coisas fossem trazidas para esse aposento.
Um criado vestido de branco anunciou, à porta:
— O Regente Senhor de Aldarian deseja vê-lo, senhor.
— Ah sim, mande o entrar - e ao dizer isso, Karim fez sinal para que os criados que
o abanavam também se retirassem do aposento.
O Regente retirou seu chapéu tricorne azul em sinal de respeito e, cruzando as
pernas, sentou-se de frente para Karim.
— Aceita uma xícara de café, majestade? – disse o azhiriano.
Joseph limitou-se a negar com um breve aceno de cabeça. Karim prosseguiu:
— Você nunca foi um grande apreciador de nossas bebidas locais, não é? Parece
que seu único interesse em Azhir é aquilo que lhe é alheio.
O Regente rilhou os dentes para controlar seus impulsos. Aquele pirralho mimado
estava testando-o, para tripudiar sobre suas diferenças em uma pretensa posição de
vantagem. Deixaria que arrotasse seus desafios e sarcasmos; hoje seria superior a ele.
— E como está Zarah? Acredita que ela nunca se dignou a me escrever depois que
deixou minha casa?
38
— Sarah está bem, meu caro – disse finalmente, corrigindo Karim: - Feliz, bela e,
sobretudo, livre. Ela é uma excelente consorte, companheira e mãe também – respondeu em
tom desafiador.
— Fico feliz em ouvir que ela tenha se contentado com tão pouco, já que se
estivesse a meu lado, hoje seria uma rainha de verdade.
— Não estamos aqui para discutir o passado, não é mesmo? Quais são seus termos?
— Direto ao ponto, então. Como você bem sabe, meu caro, há anos os negócios da
Companhia vêm sendo prejudicados pela bondade e afeto que meu pai nutria por você e sua
família. Milhões de Sextantes deixaram de ser arrecadados em taxas porque Abdul
simplesmente cobrava valores irreais dos navios de Aldarian que cruzam o canal.
— Mas que invenção é essa agora, Karim? O que a Companhia e Aldarian possuem
é um acordo comercial justo. Uma taxa menor para a passagem pelas Águas Sombrias em
troca de descontos na venda de navios oceânicos a Azhir. Existem contratos assinados por
Abdul que atestam esses termos.
— Contratos esses, meu caro – disse o filho do Patriarca de forma incisiva –, que
essa nova administração se recusa a aceitar. Já providenciei a papelada para que as taxas
aplicadas a Aldarian para o uso de nosso canal sejam ajustadas e todos os valores devidos
sejam cobrados.
— Isso é um absurdo! A coroa de Aldarian não irá pagar esses valores.
— Então, meu caro, não me deixa outra saída a não ser embargar o uso do canal por
seus navios até que a dívida seja saudada.
— Você enlouqueceu? Pretende mesmo comprometer o comércio de todos os reinos
de Altrarian por conta de uma mentira inventada por sua mente doentia?
— Ora, o canal é uma propriedade de Azhir. Se não concorda com as regras para
seu uso, pode tentar a sorte cruzando as turbulentas Águas Sombrias com seus navios.
Duvido que qualquer capitão com um mínimo de bom senso aceitará fazer essa viagem.
— Iremos fazer uma representação junto à Cidade das Nuvens sobre isso –
esbravejou Joseph.
39
— Sinta-se à vontade para tentar provar o que está dizendo. Aldarian não irá mais
prejudicar o povo de Azhir. A menos que...
— Diga logo!
— Talvez possa convencer Zarah a voltar para cá e assumir seu lugar a meu lado.
Talvez ela seja capaz de negociar essa dívida e encerrar esse embargo.
— Somente por cima de meu cadáver, Karim. Se é uma guerra o que você deseja, é
uma guerra que você terá.
O Regente se levantou, colocou seu chapéu de volta e deixou o aposento. Enquanto
se dirigia ao quarto de hóspedes, tentava se acalmar:
Este desgraçado tem uma carta em sua manga. E por Arkânis eu irei descobrir
qual é.
40
Capítulo 5 - Um Incêndio na Escuridão
Coberta em sua capa marrom, Laura se esgueirava pelas ruas quase desertas de
Eiran. Uma chuva fina caía insistentemente, enquanto o vento frio lhe gelava os ossos.
A noite não poderia ser melhor para executar missão tão perigosa. No céu nublado
contavam-se pouquíssimas estrelas. As luas de Mirr estavam em sua fase menos
brilhante, e a luz restante só vinha das lamparinas espalhadas pelas dezenas de postes ao
longo da rua.
Eiran foi a primeira grande cidade de Aldarian e sua antiga capital. Quando o
trono real foi transferido do então vice-reino de Sestan para a nova e mais protegida
capital, Northwind, a cidade pôde mudar seu rumo. Livre do fardo de ser o centro
político do reino, o povo de Eiran se voltou para outras atividades, como as artes e as
ciências.
Por conta desse desenvolvimento, a cidade se tornou também o centro
tecnológico da ilha. Ali foram criados os estaleiros reais, onde os maiores e melhores
navios eram construídos por mãos hábeis. Foi ali, à beira de um grande penhasco, que
foi fundada uma das mais importantes instituições de Aldarian: a Real Escola de
Navegação.
Uma mistura de centro de estudos e pesquisa, a Real Escola passou a oferecer a
seu seleto corpo de alunos todos os conhecimentos necessários para domar a fina arte da
vela. Os poucos comerciantes capazes de pagar o alto preço exigido pela instituição
41
sabiam que seus filhos teriam uma brilhante carreira na marinha, como oficial em algum
navio militar ou mercante.
Além disso, a escola era o lugar onde, ano após ano, o Regente investia seu
tesouro com o único objetivo de financiar melhorias em sua extensa frota mercante.
Joseph havia previsto que a morte do velho Patriarca de Azhir poderia trazer uma crise
para o comércio do continente oeste. Estava preparado para romper com a Companhia
se isso se fizesse necessário.
Os planos e plantas para criar navios melhores, mais rápidos e resistentes
estavam prontos e sua construção era uma questão de tempo. E era para o prédio da
Real Escola que Laura rumava naquela noite.
A estrada que levava até a escola era pavimentada com pedras arredondadas que
formavam um ligeiro aclive, suave, porém constante, que lentamente se curvava para a
direita. Dezenas de pequenas casas e construções se alinhavam ao longo da estrada,
rareando à medida que ela subia em direção ao ponto mais alto. Conforme se afastavam
da cidade, as casas davam lugar a pequenas fazendas e campos cercados, repletos de
cabras e ovelhas que, àquela hora da noite, permaneciam adormecidas. Finalmente a
estrada parou de subir, levando Laura até um pequeno platô onde ficava o prédio
principal.
Do topo daquele penhasco era possível aspirar o ar salgado e ouvir o barulho das
ondas arrebentando contra as pedras no fundo do precipício. O prédio da escola ficava à
beira desse penhasco, e essa localização não era casual. Como antigo posto de
observação, aquela fortaleza possuía uma vista privilegiada do mar do sul, visível
praticamente de qualquer janela ou sacada. Assim, tornava-se para os alunos uma fonte
de inspiração e observação constante.
Laura saiu da estrada e passou a bordeá-la, usando as poucas sombras presentes
para ocultar sua presença. Ela caminhou rapidamente até ficar a não mais do que cem
metros de seu objetivo, estudando a melhor forma de invadi-lo.
Diferente de toda a paisagem calma que vira até ali, as imediações da escola
eram preenchidas com o constante vaivém dos guardas reais. Um pouco à frente das
muralhas que cercavam o prédio da escola encontrava-se uma pequena construção de
dois pavimentos, de onde escapava uma luz lúgubre. À sua frente, uma grande fogueira
42
se erguia, enquanto à sua volta alguns guardas aqueciam as mãos e as roupas úmidas
pela garoa fina.
A construção possuía muros altos e grossos, terminando à beira do penhasco.
Centenas de janelas e cinco pequenas torres cercavam a construção principal, fazendo
com que a ladra se indagasse como encontrar aquilo que viera buscar. Além de tudo
havia a instrução final, o sinal que ela deveria emitir para que os captores de sua irmã
soubessem que o trabalho havia sido feito.
Ela orou por um instante, pedindo que os deuses protegessem sua irmã e a
absolvessem de seus pecados. Respirou fundo, antes de encarar o desafio à sua frente:
♥♠♥
A noite se tornou dia, à medida que o incêndio na escola naval fugia do controle.
Enormes labaredas saíam pela janela superior, lambendo as paredes externas e lançando
sombras estranhas no solo alguns metros abaixo.
O prédio havia sido rapidamente evacuado e agora seus ocupantes faziam o que
podiam para combater as chamas. Ouviu-se um estalo alto do lado de fora, seguido por
um forte estrondo que fez tremer o chão em volta de todos. Uma viga da parte superior
havia desabado, bloqueando parte da escada, mas sem ferir ninguém.
Entre os mais desesperados estavam os gnomos, que apesar das pernas curtas e
força reduzida, corriam de um lado para o outro para aplacar o incêndio. Uma fila foi
formada por eles, do poço próximo até o prédio da escola, na tentativa de passar baldes
de água até o fogo. Outros ainda escavavam o chão próximo, recolhendo terra e a
colocando em qualquer recipiente, a fim de abafar as chamas.
Muitos dos gnomos que combatiam o fogo tinham interesse pessoal naquela
missão. Dez longos anos de seu trabalho queimavam no interior do prédio e, a menos
que o fogo fosse controlado, tudo estaria perdido.
43
O incêndio só foi controlado quando os primeiros raios da manhã despertaram o
resto do reino. Sentia-se o cheiro característico da madeira queimada a quilômetros de
distância, e era óbvio a qualquer observador que pouco havia restado.
Inconsolados e muitas vezes em lágrimas, os pequenos e os humanos
caminhavam, lado a lado, sobre a madeira negra e molhada do que restara do pavimento
superior. A sala de pesquisa havia se transformado em cinzas, assim como todo o
segundo andar. A biblioteca havia servido de combustível para abastecer as chamas e,
além dos alojamentos dos alunos e professores, sobrara pouca coisa. Por sorte, a
estrutura do prédio concebido inicialmente como uma fortaleza de defesa, pouco
comprometida, não desabaria.
Caminhando na sala de plantas, ouvia-se o estalo da madeira e o som da
desolação de seus trabalhadores. Pergaminhos enegrecidos, mas ainda enrolados, se
desfaziam ao menor toque e aparentemente nada havia sido poupado pelas chamas.
Os homens se entreolhavam, buscando uma resposta para o que poderia ter
causado o incêndio. Uma vela esquecida acesa? Um relâmpago? Alguns relatavam
sobre o estranho vulto, envolto em uma capa marrom, que passara correndo, vindo do
andar superior. Uma vez que não haveria ninguém na biblioteca àquela hora, as
evidências foram reunidas: o invasor no prédio e aquele incêndio criminoso.
Precisavam avisar o Governador de Northwind com urgência, e o mensageiro
mais rápido encontrado na vila foi enviado à capital com as más noticias. O trunfo real
estava destruído e alguém teria de pagar por todo esse estrago.
♥♠♥
As horas transcorriam como dias à medida que Laura aguardava notícias de seus
empregadores e de sua irmã. Segundo o combinado, eles deveriam encontrá-la em sua
casa quatro dias depois do sinal - o incêndio que fora obrigada a causar para que
soubessem que já tinha as plantas dos navios em mãos. Ela se ressentia profundamente
do que havia feito, mas com a vida de Kitty em perigo, não havia lhe restado muitas
opções.
44
Sentada à mesa, de frente para a porta, a ladra aguardava impaciente o sinal
combinado, enquanto se lembrava de todos os sacrifícios que fizera nos últimos anos
para manter a si e a sua irmã.
Nascida em uma pequena casa, às margens da Baía dos Sinos, Laura viu seu pai,
um honesto pescador, desaparecer no mar para nunca mais voltar. Desesperada pela
falta do ganha-pão, a mãe de Laura passou gradativamente a se envolver com qualquer
homem capaz de lhe pagar uma refeição decente. Muitos foram os padrastos que vieram
morar em sua casa, em geral agressivos e bêbados, sendo que mais de uma vez ela teve
de defender sua irmãzinha com as próprias mãos.
Um relacionamento violento acabou por matar a mãe de Laura, deixando ela e
Katherine largadas à própria sorte. Com fome e sem esperanças, as irmãs se
transferiram para Northwind em busca de um emprego e dinheiro para se manter. No
início, ela buscou empregos decentes, mas logo as poucas moedas vindas do trabalho
honesto se mostraram insuficientes para o sustento.
Laura ouviu alguém bater à porta, já de madrugada. Primeiro três batidas fortes,
em seguida uma leve e, por fim, duas fortes novamente. Aquele era o sinal combinado;
ela saltou da cadeira, abrindo a porta. O homem que encontrara havia alguns dias estava
de pé, encarando-a.
— Onde está minha irmã?
— Não me convida para entrar, senhorita Redwood?
— Onde está minha irmã – repetiu Laura rilhando os dentes.
O emissário sorriu, fazendo um sinal com a mão para alguém do lado de fora.
Em instantes, um segundo capanga surgiu, segurando Katherine e tapando sua boca com
a mão. O negociador deu a ordem e Kitty foi solta, correndo para abraçar sua irmã.
— Você está bem? Eles te machucaram? Fizeram alguma coisa com você?
A menina se limitou a balançar a cabeça negativamente, enquanto Laura a
levava para dentro.
45
Entrando, o homem e seu capanga fecharam a porta atrás de si. Tão logo notou
Kitty em segurança, a ladra pegou a pasta de couro negro que continha os documentos,
estendendo-a ao homem.
— Minha parte do trato.
— Está tudo aqui?
— Sim. Todos os cadernos e plantas que possuíam o sinete real, como você
pediu.
— Aqui está o dinheiro que te prometi. Mil Sextantes para que você desapareça
– disse ao arremessar um pesado saco para Laura.
O som das moedas paralisou a jovem por um momento. Todo aquele dinheiro
representava quase dez anos de pagamentos de um marinheiro comum, muito mais do
que ela jamais tivera nas mãos.
— Não vai conferir? – disse o homem, olhando a todo instante para os lados e
para as próprias mãos. Mal conseguia esconder o nervosismo.
Laura farejou uma armadilha e se aproximou do dinheiro com cautela. Sacou sua
faca e com a ponta ergueu o saco, sentindo o peso, para só então despejar todas as
moedas sobre a mesa. Cravou sua adaga no tampo, sentou-se de frente para a pilha de
ouro e começou a tatear as moedas em busca de alguma falsificação.
Os dedos tocaram o metal e logo seus olhos experientes perceberam que cada
moeda ali era real. A textura do brasão de Aldarian, os frisos nas laterais, tudo estava
perfeitamente como deveria estar, a não ser por um detalhe. Ao tato, as moedas
pareciam um pouco oleosas; ela percebeu o cheiro estranho que emanava do dinheiro.
Sua mão começou a formigar e logo o formigamento se converteu em uma coceira
incontrolável. Seus dedos incharam e ficaram vermelhos. As moedas estavam lhe
causando uma alergia estranha.
Alguns segundos se passaram e o inchaço alcançou-lhe o braço, subindo para o
peito e chegando à garganta, que se fechou lentamente. A ladra estava ficando sem ar,
enquanto seu coração acelerava e a visão começava a turvar.
46
Veneno, pensou, enquanto buscava forças para se levantar da cadeira e golpear o
homem.
A expressão do emissário relaxou enquanto o óleo paralisante era absorvido,
atingindo o cérebro de Laura e confundindo seu sentidos.
Um barulho distante ecoou-lhe aos ouvidos: o ranger da madeira da porta,
somado ao barulho metálico de peças de armadura roçando umas nas outras. Manchas
surgiram à sua frente e logo se espalharam por todo o aposento. Laura sabia que havia
mais pessoas ali; seu desespero aumentou ao escutar um grito, suprimido rapidamente
por uma mordaça de pano apertada contra a boca de sua irmã. Ela tentou se levantar
para lutar, mas era inútil. Sob o efeito do veneno, desfaleceu.
Um dos homens que adentrara o aposento perguntou ao emissário:
— O que faremos, senhor?
— Temos ordens para nos livrarmos dela, mas nosso empregador não disse
como deveríamos fazê-lo! Esta jovem é forte e muito ágil; estou certo que valerá um
bom dinheiro no mercado de escravos da ilha de Tirana. Leve-a até meu navio e a
coloque a ferros, pois hoje ainda zarparemos em direção ao mar.
— E quanto à pequena, senhor? O que faremos com ela?
— A ilha é repleta de bordéis que pagarão um bom preço por um sangue tão
jovem como o dela.
Diante das últimas ordens, o homem sorriu e tratou de carregar os corpos das
duas até uma carroça que se encontrava parada na porta. Deixado a sós, o emissário
vestiu suas luvas de couro, puxou o dinheiro e o recolocou em um saco.
Não posso me esquecer de lavar essas moedas quando estivermos no mar. Foi
um bom pagamento por uma tarefa tão simples quanto me livrar dessa ladra
inoportuna.
47
Capítulo 6 - O Desabafo no Penhasco
Eram dias turbulentos em Aldarian, e Guinford estava mais preocupado do que
nunca. Já haviam se passado pouco mais de dois meses desde o incêndio à escola naval
e até agora não havia suspeitos a quem interrogar.
O Governador sabia que poucas pessoas teriam a ousadia e habilidade necessária
para executar um plano como esse. Seus informantes no submundo lhe falaram sobre
uma notória ladra que atuava na capital, especializada em invasões e roubos, mas
mesmo essa pista não lhe servia. Apesar de seus esforços em localizá-la, ela havia
desaparecido poucos dias após o incêndio, levando consigo o conhecimento do
ocorrido.
Toda a pesquisa dos navios estava comprometida e o plano de Aldarian de
enviar seus navios mercantes bordeando as Águas Sombrias - eliminando a necessidade
do uso do canal de Azhir -, adiado indefinidamente. Seriam necessários anos para
recuperar o que fora perdido, e o Governador temia que não tivessem esse tempo.
Logo seu senhor retornaria da viagem a Ixian, e ele teria de lhe dar as más
notícias. Aquele incidente poderia selar o destino de todo o reino, trazendo a ruína
econômica para todos.
Ainda havia o problema de sua filha, cujo comportamento piorava dia a dia. As
discussões eram cada vez mais comuns e Colleen exigia aos berros o direito de decidir
sobre sua vida; de deixar a família, agora que alcançara a maioridade.
48
Mais de uma vez o Governador a flagrara arrumando suas coisas, ameaçando
embarcar no primeiro navio que encontrasse nas docas. Com questões maiores a
resolver, e sem conseguir controlar os ataques de rebeldia da filha, Guinford decidiu
confiná-la de forma indefinida na casa.
Apesar dos protestos e gritos, a porta do quarto da jovem foi selada com
ferrolhos, e uma pequena abertura na parte de baixo foi apressadamente cortada para
que pudesse receber as bandejas com as refeições.
Sua irmã ficou proibida de visitá-la, sendo removida para um quarto de hóspedes
no castelo. Por longos seis dias, Colleen gritou e chorou, intercalando momentos de
calmaria e tristeza com rompantes de fúria. Após expelir toda a raiva, a filha do
Governador decidiu que seria hora de agir.
Colleen voltou sua atenção para a janela que dava para o jardim e decidiu que
aquele seria sua rota de fuga. Esperou anoitecer. Usando lençóis, ela trançou uma corda
que amarrou a uma coluna em seu aposento. Desajeitada pela inexperiência, conseguiu
com algum esforço descer até o chão e escapar.
Finalmente, após quase meia hora, alcançou o refúgio pessoal, à beira do
penhasco próximo a sua casa. Do topo era possível ter uma vista privilegiada da cidade
e da Baía dos Sinos, logo à frente. Um leve estampido ecoou pelo penhasco enquanto
Colleen arrancava com os dentes uma rolha de uma garrafa de vidro verde. A filha do
Governador mantinha o frasco escondido em um buraco próximo, oculto com uma
pedra, e achou que seria essa a oportunidade perfeita para esvaziá-la.
Logo, o rum de Valdernan desceu queimando-lhe a garganta, amortecendo seus
sentidos, fazendo-a esquecer das discussões semanas antes com o pai.
Deu um novo gole enquanto admirava os navios que cruzavam o horizonte. Ela
se lembrava bem da primeira vez que estivera ali, ainda criança, no colo do padrinho.
Desde cedo, o Regente ensinara a menina Colleen a identificar cada navio, cada
bandeira e nação. Sentada em seu colo, ela ouvia histórias sobre terras distantes e navios
piratas, serpentes marinhas e grandes tempestades.
— Aí está você! – disse uma voz feminina com um misto de alívio e tristeza. – E
com isso, outra vez?
49
Melleen se aproximou dela, tentando tomar a garrafa de suas mãos. Foi
necessário apenas um ligeiro esforço para que a mais velha a sobrepujasse: arremessou
a garrafa pelo penhasco dando-lhe fim nas pedras próximas ao mar.
— Por Ehleniel, minha irmã... Quando irá aprender o mal que isso lhe faz?
— Se a bebida fosse o maior de meus problemas... – retrucou Colleen com a voz
soando incerta. - Trouxe alguém com você?
— É claro que não. – Melleen sorriu.
Colleen suspirou e, desabafando, disse:
— Até quando, Mel? Até quando nosso pai me prenderá em casa, me impedindo
de sair de Aldarian e singrar os mares?
A forma apaixonada com que Colleen sempre falava do mar emocionava a mais
velha, que se permitiu um leve sorriso para, então, recuperar seu semblante sério.
— Isso não vai acontecer, minha irmã, não é esse nosso papel. Temos o sangue
Northwind e é nosso dever seguir os protocolos, preservando nossa linhagem.
— Northwind... – disse Colleen sem disfarçar o sarcasmo. – Há algum tempo
esse nome seria escrito com sangue e não em tinta sobre um pedaço de papel. Veja
nosso pai, minha irmã. Quem o vê não imagina o grande general que ele foi no passado.
Hoje vive atrás de políticos e papéis, se tornou um burocrata.
Melleen se aproximou dela, sentando-se a seu lado. Passou o braço esquerdo por
cima de seu ombro, abraçando-a.
— Ele está, sim, diferente, minha irmã. Desde aquele dia, ele...
— Desde o dia de meu nascimento, Mel... Do dia da morte de nossa mãe – disse
Colleen com amargura em sua voz. - Ele se trancou dentro de si e nos condenou à sua
prisão. - Uma lágrima lhe escapou dos olhos enquanto o coração se apertava ante a
lembrança da mãe que nunca conhecera.
A gravidez de Alexandra fora difícil desde o princípio, e muitos dos médicos
convocados para atender aos constantes chamados davam como certo o aborto da
criança.
50
Porém, o espírito tenaz de Colleen lutou pela sobrevivência e, oito meses depois,
contrariando as expectativas, nasceu.
Apesar de minúscula, mesmo para um bebê, ela chorou forte ao ser colocada no
colo da mãe. Uma hemorragia enfraqueceu Alexandra a tal ponto que não sobreviveria
às horas seguintes. Antes de falecer, amparada por Guinford e pela pequena Melleen,
determinou o nome daquele pequeno ser indefeso em seu colo.
Colleen será seu nome, minha pequena e lutadora menina, disse, dando seu
último suspiro.
— Nossa mãe soube cumprir seu papel de esposa e companheira, Colleen –
disse Melleen em um tom exageradamente formal. – Ela abriu mão de muitas coisas
para ser quem foi. Ela sabia como se portar em sociedade.
— Não me venha com esse discurso novamente, Mel! Nosso pai já tem você
como sucessora e herdeira - explodiu Colleen com raiva incontida. - Estou cansada de
ser a filha do governador, e princesinha dele. Queria entrar num daqueles navios e
partir, ir para longe dessas festas insuportáveis, cheias de protocolos.
Colleen se aproximou do penhasco, enchendo o pulmão e gritando com toda a
força:
— Que se dane esse nome! Para as Águas Sombrias com tudo isso!
Sob o efeito do excesso de álcool, a jovem cambaleou, caindo de costas no chão.
Arrastou-se até o colo da irmã, pondo-se a chorar. Melleen buscou reconfortá-la,
acariciando-lhe os cabelos como sabia que era de seu gosto, desde quando Colleen,
ainda uma criança, só precisava dormir.
— Descanse, minha irmã... Amanhã é um novo dia.
♥♦♥
Melleen despertou com os primeiros raios do sol. Aquela fora uma longa noite
reconfortando sua irmã e acordara tão cansada quanto se não tivesse dormido.
51
Levou alguns segundos até se dar conta de que sua irmã não se encontrava mais
lá! Observando os navios que iam e vinham na baía, ela temeu pelo pior. A jovem
vasculhou as redondezas do penhasco, buscando algum sinal de Colleen, mas tudo o que
encontrou foi seu medalhão - a pequena rosa dos ventos - dentro do bolso de sua própria
roupa.
Ela está renunciado ao seu titulo como uma Northwind, concluiu.
Melleen correu de volta a casa, e logo percebeu que ela não era a única que
dava pela falta de Colleen.
Parado em frente à lareira, encontrava-se o Governador com olhar apreensivo. À
sua volta, meia dúzia de guardas em pé discutiam o que fazer para encontrar suas duas
meninas.
— Com licença, meu pai – disse Melleen em seu habitual tom formal.
— Melleen... Por Ehleniel, onde vocês se meteram? E onde está sua irmã?
Temendo a reação do pai, não contra si, mas contra a irmã, Melleen não
conseguia formar palavras, enquanto a apreensão de Guinford crescia.
Ela baixou a cabeça, esticando o medalhão para seu pai:
— Acho que ela fugiu, meu pai!
Melleen narrou a seu pai os acontecimentos no penhasco, na noite anterior, e
sobre a revolta da irmã caçula.
Guinford deu um forte murro no aparador da lareira, enquanto continha uma
mistura de choro e ódio. Sua filha estava sendo ingrata com toda a educação recebida
ao resolver se rebelar em um momento tão delicado para o reino. O Regente chegaria
em poucos dias e havia muito o que se fazer para contornar a situação gerada pelo
incêndio.
— Guardas! Façam uma busca completa por todos os navios parados no porto.
Encontrem minha filha e tragam-na aqui imediatamente. Essa foi sua última travessura;
se deseja se comportar como uma adulta terá de aprender a encarar a consequência de
seus atos.
52
Dizendo isso, o Governador deixou a sala em direção a seus aposentos pessoais.
Ouviu-se o barulho de uma chave sendo girada. Melleen conhecia bem seu pai: em
situações como essa ele se trancava em seu quarto para esbravejar e chorar.
Sentada na poltrona de couro favorita de seu pai, ela ponderava sobre o que
tornara sua irmã uma jovem tão arredia e rebelde. Agora, ela estava perdida nas docas
de Northwind, provavelmente bebendo para ignorar sua vida palaciana.
Colleen, melhor do que muitos soldados dali, saberia como se cuidar, mas isso
não tirava a preocupação que Melleen tinha com a irmã. As imagens de sua infância
eram vívidas como o fogo que ardia na lareira a seu lado. Melleen se lembrava de forma
clara das tardes passadas nos jardins do grande castelo de Northwind.
Ela dedicava seu tempo entre os estudos e deveres como filha do governador.
Não havia uma tarde sequer em que os empregados não a vissem sentada a uma mesa de
mármore devorando livros com avidez. Todos os meses, religiosamente, a primeira
quarta-feira de cada um deles, um empregado era enviado até a biblioteca de Arkânis,
no Pontífice Estado, em busca de novos livros que saciassem a sede de Melleen por
conhecimento.
Já havia tomado conhecimento de tratados políticos e diplomáticos, estudos de
Botânica e Ciência, e mesmo alguns romances e poesias. Colleen demonstrara pouco
interesse pela leitura, preferindo as histórias narradas pelo Regente. Os poucos livros
aos quais Colleen dedicava seu tempo eram, na verdade, diários e relatos de viagens,
documentos que lia com grande interesse.
À Melleen cabia tentar trazer sua irmã para a realidade. Com seu pai distante e
com empregados que serviam a seus caprichos, Colleen era um espírito livre, livre
demais para alguém com obrigações políticas em um futuro próximo.
Ouviu um barulho no jardim, juntamente com o estilhaçar de um vaso. O som
seco e surdo cessou tão rapidamente quanto havia começado. Melleen levantou-se da
poltrona e correu para a porta. Ao abri-la, o que ela encontrou foi um vulto, enrolado em
uma longa capa de cor avermelhada. O corpo era sustentado por dois guardas reais e
carregado a muito custo para dentro da casa.
— Ah...minha irmã – disse ela sem disfarçar o desapontamento.
53
Com ajuda, ela arrastou o corpo amolecido de Colleen para dentro da casa,
colocando-a na poltrona de seu pai. Melleen se apressou em se livrar dos soldados,
dizendo que o Governador estava descansando e seria avisado do nome daqueles que
haviam encontrado sua filha.
Finalmente a sala estava em silêncio, enquanto a caçula dos Northwind,
afundada na grande poltrona, era incapaz de manter os olhos abertos. A mais velha
esticou os braços sobre a mesa ao lado da poltrona, alcançando uma caneca de louça que
aguardava por Colleen. De seu interior saía um vapor de cheiro forte e pouco agradável,
mas ainda melhor do que seu gosto amargo.
Com algum esforço, ela conseguiu verter o chá de alsânias goela abaixo de sua
irmã, fazendo-a tossir e se retorcer pelo sabor. As folhas eram bastante comuns em toda
Aldarian, tendo sido usadas pela primeira vez pelos elfos da floresta de Ithildor. Em
forma de chá, eram usadas para tornar pessoas muito enfermas - despertas e lúcidas.
Não demorou, no entanto, para que os piratas bêbados que rondavam as docas
descobrissem que mastigar as folhas também era um potente remédio para suas
ressacas.
A filha do Governador apressava o processo, no interesse de levar Colleen o
mais rápido para o quarto. O pai, exausto, estava dormindo em seus aposentos, Não
desejava que ele visse a irmã caçula nesse estado.
Um novo barulho, agora vindo das costas de Melleen, anunciou a figura alta
surgida entre as sombras da sala. A chama amarelada da lareira ressaltava ainda mais o
tom castanho da barba do Governador. Seus olhos, igualmente marrons, apertavam-se
no rosto carrancudo de quem sabia exatamente o que acontecia ali. O aroma de alsânia
penetrando-lhe as narinas e a visão de um saco de batatas caído sobre sua cadeira
fizeram as veias de seu rosto saltarem. O plano de Melleen havia falhado e agora ela
precisava evitar que algo pior acontecesse.
As palavras dançavam livres nos lábios de Colleen, ora saindo como tolices, ora
como palavrões. Era admirável que a filha do Governador fosse capaz de articular frases
inteiras, uma vez que sua consciência deveria estar em algum lugar distante.
— Onde você esteve? – disse Guinford já sabendo a resposta.
54
— Acalme-se, meu pai. Ela teve um dia difícil, ainda é jovem e inconsequente.
Não pode realmente culpá-la por...
— Por quê? Por se comportar como uma vadia? Uma vagabunda perambulando
pelas ruas da cidade como se fosse um marinheiro sem rumo. Não me venha com esse
discurso conciliador, Melleen, nós sabemos muito bem o que está acontecendo aqui.
A voz do Governador soava distante e disforme, quase como um ruído
incompreensível aos ouvidos de Colleen.
— Veja isso... Que vergonha para um pai como eu. Foi essa a educação que dei
a essa menina? Foi para isso que paguei os melhores professores de toda Altrarian? Para
que ela se tornasse uma bêbada?
— Não fale assim dela! – disse Melleen, exaltada – Ela não é nenhum animal
para ser tratada assim.
— Cale-se, velho estúpido – disse Colleen sem poder controlar sua voz. –
Sempre dando ordens, não é?... Sempre me tratando como um de seus soldados imbecis!
Guinford se exaltou com a ousadia de Colleen, que após dizer isso deixou sua
cabeça cair para trás novamente.
— Velho estúpido, não é? – disse o Governador erguendo sua pesada mão no ar.
– Irei arrancar as insolências de sua boca juntamente com seus dentes!
— Pare! - gritou Melleen, interpondo-se entre o pai e a irmã. Os lábios uniam-se
em uma linha reta enquanto a jovem protegia com seu próprio corpo, o de Colleen.
O ar sério, a força interior oculta pela delicadeza de seus traços, a seriedade em
seus atos; tudo isso fazia de Melleen uma cópia fiel da esposa de Guinford. Ambas as
meninas possuíam o gênio forte da mãe, com a diferença de que Colleen jamais
aprendera a controlar esses instintos.
Guinford baixou sua mão, tomando consciência do que pretendia fazer. Por um
breve instante, um sorriso ameaçou formar-se em seu rosto, mas a raiva pela filha e a
necessidade de manter a postura impediram que tal demonstração de orgulho por sua
Melleen viessem à tona.
55
— Sempre defendendo sua irmã, não é? Sempre assumindo a culpa por todos os
erros de Colleen. Desde criança, você sempre se colocou na frente dela para defendê-la.
— E o que você queria que eu fizesse? Esse seria o seu papel, meu pai: protegê-
la deste mundo.
— E eu não a protegi? Dei-lhe tudo: as melhores roupas, os melhores tutores.
Nunca deixei faltar nada a essa menina, e veja como ela me retribui!
— Deixou sim, meu pai. Faltou seu amor, seu carinho, a mesma atenção que
você dava a mim quando eu nasci. Não foi fácil suportar a morte de nossa mãe, mas
você precisa parar de culpar Colleen por isso.
A atitude impositiva de Guinford desmoronou, seus ombros caíram como se um
grande peso recaísse sobre eles. Ele suspirou fundo, controlando a raiva:
— Vamos, Mel...Vá para seu quarto! Eu colocarei Colleen na cama.
Ele se abaixou, tomando a filha em seus braços. A jovem, já profundamente
adormecida, nem notou quando foi erguida da cadeira.
— Sim senhor – disse Melleen, curvando-se de forma cortês para seu pai.
Enquanto carregava com delicadeza Colleen de volta a seu quarto, Guinford,
esmorecido, sussurrou:
— Ah, minha pequena menina...O que farei com você?
56
Capítulo 7 - O Mausóleu dos Northwind
A residência dos Northwind localizava-se no topo de uma colina. Onde agora
existia uma bela casa, de arquitetura clássica e frente imponente, já houve uma
choupana de madeira anexa a um barracão.
No passado, esse lugar foi uma próspera propriedade de ferreiros. Anexa à
ferraria, a casa viu crescer mais de cinco gerações de artífices que a cada ano se
tornavam mais e mais habilidosos.
Aquela família de artesãos sempre acreditou na união de seus membros sobre
todas as coisas. Assim como o ferro, que quando unido ao carvão se torna o aço do qual
são forjadas as espadas, a família era a unidade máxima de força e poder. Foi essa
determinação que os tornaram heróis na guerra que colocou a metrópole Myrtakos
contra seus colonos Costarianos.
A algumas dezenas de metros da casa, no mesmo local onde tantos soldados
tombaram, foi erguido em mármore branco, um mausoléu. A construção tinha
aproximadamente quatro metros por doze, e suas paredes eram decoradas com relevos
que mostravam o cotidiano de várias pessoas. O relevo mais recente, colocado ali havia
dezoito anos, mostrava uma bela mulher com um bebezinho no colo. A seu lado, e
abraçados de modo carinhoso estavam a figura de um homem e uma menina de olhar
sereno.
Era costume, a cada novo sepultamento, que um painel representando o falecido
fosse colocado num dos inúmeros espaços da parte externa. Um grande portão de ferro
57
separava o santuário do mundo exterior, enquanto diversas janelas de vidro azulado
iluminavam as criptas e esquifes, trazendo um ar acolhedor àquele local. Dentro,
diversas alcovas espalhadas pelas paredes guardavam os restos daquela família, estando
cada um devidamente identificado com o respectivo nome, data de nascimento e morte.
Além das gavetas laterais, havia esquifes esculpidos em pedra ordenados pelo
chão. Cada tumba ricamente adornada com prata e bronze, sendo que algumas possuíam
em suas tampas estátuas dos falecidos, deitados em pose de repouso.
Sentado em um dos esquifes, um homem encontrava-se em silêncio,
contemplando seus antepassados à sua volta. A seu lado, com a beleza conservada pela
habilidade do escultor, estava a estátua de sua esposa, falecida o que lhe parecia uma
eternidade. Ele fechou os olhos, passando as mãos enrugadas sobre o rosto da estátua. A
mesma mão, anteriormente acostumada ao calor e à textura de seda daquela pele, agora
só conseguia sentir a aspereza e o frio do mármore. Uma lágrima insistente escapou de
seus olhos, enquanto ele recordava os anos de alegria ao lado de sua amada Alexandra.
Ao ouviu o ranger da porta do mausoléu, Guinford ergueu os olhos para encarar Joseph.
— Meu senhor?! – disse o Governador ajoelhando-se para beijar a mão de seu
Regente. - Chegou mais cedo do que o previsto. Eu não o esperava e...
— Levante-se, Guinford. Não há necessidade de formalidades aqui.
Discreto, o Governador enxugou a lágrima que escapara por um descuido,
aprumando seu uniforme e se dirigindo a seu soberano:
— Senhor, tenho notícias que não serão de seu agrado. Nossas pesquisas, nossos
projetos...
— Consumidos pelo fogo – completou o Regente antes que Guinford falasse. –
Eu já sei, meu caro, um mensageiro me avisou do ocorrido.
O ódio se apossou do coração de Guinford, pois era sua obrigação avisar ao
Regente pessoalmente de fatos tão sérios. Era certo que o mensageiro não havia sabido
explicar os detalhes, e o Regente poderia não ter uma visão completa do ocorrido.
Guinford prosseguiu:
— O caso é que...
58
Joseph ergueu sua mão, sinalizando que ele deveria parar com seu relatório.
— Este não é o momento e o lugar para discutirmos isso, meu caro Governador,
e não foi por isso que vim até aqui. Havia muito tempo que não visitava o túmulo de
seus antepassados, não é mesmo?
— Sim meu senhor, desde...
— O enterro de sua esposa...Sim, eu me lembro. O escultor real fez um belo
trabalho com sua estátua.
— Sim – disse o Governador com um sorriso discreto –, a mais bela época de
sua vida.
O Regente se sentou no esquife, deixando claro que Guinford deveria fazer o
mesmo, e retirou seu chapéu tricorne da cabeça:
— E o que o traz aqui, meu amigo?
— É minha pequena, meu senhor, não sei mais o que fazer para conter seus
rompantes de rebeldia. Eu a confinei em seu quarto para que aquietasse o espírito, mas
até mesmo uma fuga ela tentou. Foi encontrada, bêbada e delirante, pelas docas de
Northwind.
— Trancou-a em seu quarto? E esperava realmente que ela saísse de lá uma
dama? Você já tem a herdeira para assumir seu posto quando passar a habitar esse lugar.
Melleen é polida, inteligente e nobre. Possui seu sangue e não deixará que nada se
interponha frente aos interesses do reino quando ela assumir sua cadeira.
— E o que espera que eu faça, meu senhor? – disse Guinford já nervoso. – Eu fiz
o que ela desejou, coloquei-a na melhor escola que o dinheiro poderia pagar e, ainda
assim, ela me causa vergonha? Acusando um nobre de tentar se aproveitar dela? Quase
o ferindo seriamente com uma faca!
— Meu amigo, seja realista. Você e eu sabemos que o jovem Joshua e todos os
homens da família Ledward não são nenhum exemplo de integridade moral. Acredito
que Colleen tenha exagerado ao narrar o episódio e, obviamente, nada justifica usar uma
faca contra ele. Mas a questão é: quando sua filha mais precisou, você se omitiu!
59
— E o que deveria ter feito? Defendido sua atitude? Aprovado a forma como ela
lida com seus problemas?
— Como pai, deveria tê-la repreendido e disciplinado e, em seguida, a defendido
perante o conselho da escola. Eu, como Regente, não posso interferir nas decisões de
uma instituição secular, nem mesmo agora!
Guinford silenciou, pensando se uma atitude diferente poderia realmente ter
mudado o comportamento de Colleen.
— Infelizmente, meu bom governador, por mais que respeite e admire o
currículo da Real Escola de Navegação, admito que seus métodos talvez não tenham
sido os mais adequados para educar Colleen. Ela tem um temperamento explosivo,
precisa de algo mais incisivo e real. Precisa estar em uma embarcação de verdade!
— Espera que aliste minha pequena em um navio? Para que ela vague de porto
em porto pelo mundo afora? Para que se perca em uma tempestade qualquer?
— Prendê-la a seu lado não irá fazê-la feliz, meu amigo. E é claro que não
colocaria minha afilhada no primeiro amontoado de tábuas e pregos que aparecesse
boiando no porto. Tenho alguém em mente, um homem que poderá lhe ensinar a
disciplina necessária para se viver no mar. Um capitão de integridade inabalável que
saberá como colocar rédeas na rebeldia de Colleen.
— Fletcher? – perguntou Guinford quase que por instinto.
— Sim, meu bom Governador. Jack Fletcher é a escolha ideal para colocar um
pouco de juízo na cabeça de sua filha.
O Governador temia ver sua jovem e frágil filha em meio a marinheiros
beberrões e irresponsáveis, mas sabia que Fletcher seria uma opção sensata. O comando
dele era justo e sua tripulação bem disciplinada. Além disso, em tempos de paz seu
navio trabalhava mapeando as marés e terras ao norte, o que faria com que sua Colleen
não estivesse tão distante de casa. Guinford suspirou profundamente, sinalizando ao
Regente que ele havia cedido.
— Amanhã mesmo enviarei uma mensagem ao Aliança para que Fletcher venha
encontrá-lo em terra. Ele não me negará esse favor, e estou certo de que ficará feliz em
ter um novo aspirante a quem treinar.
60
Ao dizer isso, o Regente se levantou, colocou seu chapéu na cabeça e, dando um
leve tapa no ombro de Guinford, encerrou:
— Essa foi sua melhor decisão, meu bom amigo. Eu o deixarei agora com suas
preces. Depois discutiremos o que fazer quanto ao problema com o roubo das plantas.
Guinford se deteve por mais alguns instantes, olhando com ternura para a face
esculpida de sua falecida esposa.
— Ah, minha querida Alexandra, proteja nossa pequena filha onde quer que
você esteja.
61
Capítulo 8 - Os Planos de Aldarian
O recém-entronizado Patriarca aguardava ansioso a chegada de seu emissário,
que traria aquilo que ele mais ansiava, depois da morte de seu pai: os planos secretos de
Aldarian.
Desde que soubera das plantas, meses antes, Karim desejou possuí-las, não só
pelos grandes benefícios à sua marinha, mas também por entender que se o reino rival
fosse bem-sucedido na construção de novos navios, logo a Companhia se tornaria
desnecessária e obsoleta. Assim, ele se viu obrigado a acelerar a morte do pai, a fim de
não deixar escapar tal oportunidade.
Esse é o preço que pagam por tentar desafiar a Companhia, e não será uma
ilhazinha qualquer que irá destruir meu monopólio, refletiu, sentado em seu trono.
Saiu de seu devaneio ao ouvir os passos do serviçal que atravessava o salão em
sua direção. Segurava um grande pacote envolvido em couro. Ele se aproximou do
trono e ajoelhou-se, estendendo o material. Com um gesto, Karim dispensou o
emissário, ao mesmo tempo em que desatava o nó que selava o pacote, em busca de seu
precioso tesouro. As mãos suadas finalmente alcançaram as plantas, que desdobrou e
abriu.
Os pequenos brasões de Aldarian, impressos no papel, haviam sido
grosseiramente apagados, assim como qualquer referência à ilha de seu rival. As
plantas, ricamente ilustradas sobre um papel pardo, mostravam detalhes de diversas
partes de navios, do casco ao mastro, passando pelos ferros e cordames. Tudo ali havia
62
sido expressamente detalhado; as melhorias planejadas por Joseph estavam a anos do
que Karim jamais sonhara.
Aquele desgraçado conseguiria cruzar as Águas Sombrias, se levasse esse plano
a cabo. Veja os detalhes, a precisão dessas plantas, as plantas de Azhir.
O Patriarca não foi capaz de conter o sorriso, vislumbrando o destino que se
abateria sobre seu desafeto:
Com o embargo a Aldarian e sem seus preciosos navios, logo a economia da
ilha se transformará em frangalhos, e o povo se rebelará ante a impotência de seu
soberano. Será nesse momento que minha benevolência virá para salvá-los. Quando
meu aliado pisar em terras aldarianas com minha assinatura em um documento de
aliança, e provas de que o Regente provocou e manteve o desentendimento com Azhir,
Joseph será deposto, e meu fantoche assumirá a coroa.
Karim levantou-se de seu trono, aproximando-se de uma janela que dava para o
mar e encarou o horizonte:
Enfim, aquele maldito estrangeiro pagará por tudo o que me fez. Pagará por ter
roubado a mulher que eu desejava, por fazer meu pai preferir a ele do que alguém de
seu próprio sangue, por me transformar na babá de seu irmão aleijado e doente,
enquanto posa de soberano justo e leal. Se fosse tão honrado como diz, jamais tentaria
destruir aquilo que minha família levou gerações para construir.
— Obrigado, meu caro Joseph, por este presente tão valioso. Sinto que
finalmente pagou parte de seu débito comigo - finalizou em voz alta, com um sorriso
nos lábios.
63
Capítulo 9 - A Nova Aspirante
Uma semana havia se passado desde que Colleen fugiu de seu pai. Por horas, ela
tentou embarcar em qualquer navio que precisasse de mãos para o trabalho, mas os
mestres, assim que percebiam se tratar da filha do Governador, recusavam de maneira
veemente sua presença. Não era nenhuma novidade para eles ver Colleen perambulando
pelas ruas da capital, mas ela nunca havia tentado embarcar em um navio antes.
Frustrada com o fracasso de seu plano, foi na bebida que ela buscou algum
conforto. Bastaram algumas moedas na mão de um taverneiro para obter o precioso
rum de Valdernan.
Sem conseguir moderar na bebida, a última coisa que se lembrava era de estar
vagando de um lado para o outro das docas. Em um dado momento, se viu nos braços
de um viajante com a pior das intenções para com ela. Por sorte, dois guardas a
encontraram a tempo, arrancando-a dos braços do infeliz e impedindo que algo pior lhe
acontecesse.
Agora, sóbria e com os pensamentos em ordem, Colleen se arrependia de
tamanha irresponsabilidade, consciente do perigo que suas ações poderiam ter lhe
trazido. Seu orgulho, típico de um Northwind, entretanto, a impedia de admitir esse
temor para seu pai. Ainda tramava em silêncio como faria para obter a sua liberdade, a
qualquer custo.
64
Um pacto silencioso havia sido acordado entre pai e filha. As trancas e ferrolhos
haviam sido removidos da porta de seu quarto. Guinford tratava e era tratado com
cordialidade por Colleen, mas sua relação estava longe de ser chamada de afetiva.
Ela se encerrava em seu próprio mundo, quieta e introspectiva na maior parte do
tempo. Melleen, por sua vez, dedicava todo o tempo entre suas aulas e estudos para
fazer companhia à irmã.
Certa manhã, Colleen estava em seu quarto, quando um criado de seu pai bateu à
porta.
— Minha senhora, seu pai deseja vê-la no saguão principal.
— Diga-lhe que descerei em um minuto – respondeu com pouco entusiasmo.
Ela desamarrotou suas roupas, fez uma trança com seus cabelos cacheados e,
com uma expressão profundamente contrariada, saiu pela porta em direção à escada. Ao
chegar à balaustrada, observou seu pai conversando com alguém no andar de baixo. O
homem vestia um longo casaco negro, adornado com grandes botões dourados. A voz
era grave, porém segura e, apesar de não entender exatamente o que estava dizendo ao
governador, ela tinha certeza que era a seu respeito. Um chapéu amplo, igualmente
negro, impedia que Colleen enxergasse seu rosto.
O que meu pai pretende agora - conjecturou, enquanto se aproximava dos
degraus da escada -; arrumar-me um noivo para se ver livre de mim?
— Ah, Colleen – disse o Governador ao vê-la na ponta da escada. – Venha aqui
conhecer o Capitão Jack, sim?
Ela desceu a escadaria com passos pesados, bufando e amaldiçoando os planos
de Guinford.
O capitão tomou a mão direita dela, beijando-a respeitosamente. Seus olhos
eram profundamente negros, contrastando com os cabelos já ligeiramente grisalhos pela
idade.
— Sua filha cresceu, meu bom Governador, se tornou uma bela mulher.
Lamento não poder ter estado presente em seu aniversário. Deve ter sido uma
celebração memorável.
65
Sem dúvida foi, pensou Colleen.
Guinford pigarreou, encerrando o assunto e assumindo a palavra no diálogo:
— Muito bem, minha filha, o capitão veio aqui para levá-la. Suba até seu quarto
e arrume suas coisas para que possa partir em breve.
Seu pai havia perdido o juízo? Ela cerrou as mãos em punho, enquanto o coração
era alimentado pelo sangue fervente que corria nas veias. A indiferença com que o pai
lhe comunicara sua decisão a enfurecia. Estava prestes a explodir em um turbilhão,
quando o capitão arremessou-lhe uma pequena bolsa de couro e falou.
— Coloque aqui apenas o necessário para seu novo posto no Aliança. Suas
roupas parecem adequadas. Recolha aquilo que for pessoal e que caiba nessa bolsa.
A mente de Colleen parou. Confusa, tentava absorver informações para as quais
não estava preparada.
— Aliança, você disse? Então, você é...
— Jack Fletcher, da marinha de Aldarian.
A filha do Governador lembrava-se das histórias que o Regente lhe
confidenciara sobre Fletcher, um homem que servia a Aldarian com honra e respeito, ao
mesmo tempo que servia de porta-voz para os piratas que infestavam o Oceano Bravio.
- Eu decidi que não adianta prendê-la aqui comigo - adiantou-se Guinford, diante
do olhar atônito da filha. - Nunca desejei que fosse infeliz, minha pequena, e por isso o
capitão está aqui. Fletcher está partindo em uma missão e, a pedido do Regente e meu,
concordou em aceitá-la como aspirante em seu navio.
Colleen largou a bolsa no chão e correu para abraçar seu pai. Mesmo com o seu
silêncio, o Governador sabia que ela estava feliz. Aproximou os lábios de seu ouvido e
disse:
— Faça-me orgulhoso, minha filha.
Ela agarrou a bolsa e correu escadaria acima, a fim de arrumar suas coisas.
Enquanto aguardavam o retorno de Colleen, Guinford olhou firmemente nos
olhos do capitão e disse de forma séria:
66
— Não se esqueça de sua promessa, meu amigo. Use os recursos que julgar
necessários para disciplinar Colleen, mas, por favor, não envolva minha pequena em
combates desnecessários. Só concordei com essa loucura porque o Regente me garantiu
que se trata unicamente de uma missão de mapeamento em águas seguras.
Fletcher torceu o nariz por um momento e, então, sorriu.
— Não trairia sua confiança, meu bom Governador. Por mais que deteste a ideia
de navegar águas verdes, sem poder pilhar nenhum daqueles desgraçados, não quebraria
minha promessa.
— Colleen é jovem e imprudente – prosseguiu Guinford –, acha que uma guerra
é uma brincadeira. Não imagina o que esses orcs poderiam fazer se a capturassem. Não
me faça perder minha menina.
Fletcher não disse mais nada, apenas sorriu de forma confiante para o
governador. Em seguida, ele estendeu suas mãos, uma com a palma voltada para cima e
outra para baixo. Guinford fez o mesmo, apertando as mãos de Fletcher, em seguida
segurando seus pulsos. Meia hora se passou até que Colleen descesse de seu quarto,
com a pequena bolsa de couro arrumada. Melleen foi chamada a tempo de ver a irmã
partir. Ela se abraçaram longamente.
— Você irá me escrever, não é mesmo? – disse Melleen, incapaz de conter as
lágrimas.
— Todas as semanas, Mel – disse Colleen, afagando os cabelos da irmã.
Voltou-se para encarar seu pai, que era incapaz de disfarçar o sorriso orgulhoso.
Guinford segurou-a pelos ombros, observando-a, como havia muito tempo não o fazia.
Agora que crescera, sua frágil criança se tornara muito parecida com a mãe. Ele a beijou
na testa, olhando seus profundos olhos castanhos mais uma vez. Sem dizer nada, Colleen
limitou-se a pegar sua bolsa e seguir o capitão Fletcher para fora de casa. Uma lágrima
inapropriada para sua nova posição escapou-lhe dos olhos, que tratou de secar
rapidamente com a manga da blusa.
Antes de desaparecer através da porta, ainda viu o pai abraçado à Melleen. O
Governador suspirou alto e, como que aliviado, disse:
— Sua irmã sempre detestou despedidas.
67
Colleen caminhava apressada pelas docas de Northwind. Alguns metros à frente,
seguia Fletcher, um dos mais reconhecidos capitães de toda marinha de Aldarian.
Abandonado ainda criança e entregue a alguns tios distantes, Fletcher
rapidamente se apaixonou pelo mar, tornando-se aprendiz em um pequeno navio
mercante com apenas dez anos de idade. Durante os anos em que permaneceu a bordo,
ele buscou absorver todo o conhecimento dos mestres de seu navio, ascendendo
rapidamente ao posto de navegador.
Quando completou vinte e seis anos, ele pediu dispensa e, juntamente com seu
primo Jan, conseguiram com que alguns investidores lhe comissionassem uma corveta
para o transporte de bens entre Aldarian e Myrtakos.
Os lucros eram honestos e os riscos valiam a pena, até o dia em que o capitão se
viu envolvido em algo que jamais iria esquecer: um ataque pirata à sua embarcação.
Interceptado por um bergantim orc, Fletcher e sua tripulação não conseguiram
escapar do inimigo, sendo capturados e torturados. Seu primo foi brutalmente
assassinado, fazendo com que ele jurasse vingança eterna contra seus captores. Três dias
se passaram até que Fletcher e o que restava de sua tripulação aproveitassem um
descuido dos orcs para fugir.
Flutuando em pequenas barricas e sob o sol forte, o capitão orou a Ehleniel, o
protetor dos mares, com todas as suas forças, até que finalmente um de seus homens
avistou a salvação: um pequeno pedaço de terra cercado por velas de diferentes navios.
Assim foi seu o primeiro contato com a ilha de Tirana, um contato que mudaria para
sempre sua vida.
— Boa tarde, capitão – disse um marujo.
— Está um belo dia de sol, não é, capitão? - retrucou um mercador em vestes
finas.
Colleen apertou o passo, chegando lado a lado com Fletcher.
— Eu já havia ouvido falar do senhor, capitão, mas não imaginei que fosse tão
conhecido por esses homens.
68
— Uma vida dedicada a proteger esses mercadores me trouxe mais fama do que
eu poderia desejar. Eles sabem que, enquanto o Aliança existir, somente os orcs de boa
índole permanecerão navegando os mares de Mirr.
Colleen notou a forma rancorosa com que o capitão se dirigia aos orcs. A
afirmação de que havia mercadores orcs de boa índole não passava de discurso, uma
fala que ele fora obrigado a aprender por sua delicada posição como um dos principais
navegadores do reino.
Após alguns minutos de caminhada, ela avistou sua nova casa. O Aliança era um
bergantim de dois mastros e um comprimento de aproximadamente quarenta metros. A
nau que possuía uma tripulação de sessenta homens e doze peças de artilharia se dividia
em um castelo de popa, onde ficava a cabine do capitão, e uma única coberta ou porão
onde ficava estocada a carga e dormia a tripulação. No topo do mastro central tremulava
a bandeira do reino, o timão ladeado por louros sobre um retângulo azul e vinho.
Colleen ia em direção ao navio, quando Fletcher a deteve. Posicionou-se à sua
frente e com a mão em seu ombro, disse:
— Existem algumas coisas que precisa saber antes de vir a bordo! Todos na
tripulação saberão quem você é, não há como escondermos isso. Meus homens são de
confiança, mas não sabemos o que esperar no mar. Deve escolher um novo nome pelo
qual deseja ser chamada, será mais seguro assim. A segunda coisa que deve se lembrar
é que eu sou a autoridade final naquele navio. Minhas ordens são soberanas e não
devem ser contestadas. Seu pai me contou sobre seus rompantes de fúria e rebeldia, e já
lhe aviso que isso não será tolerado. Marinheiros rebeldes são colocados a ferros e
alimentados com pão e água. Disciplina é a palavra de ordem a bordo, e quem não a
cumpre é punido.
Colleen escutava com atenção, sem deixar que o medo a impedisse de ser aquilo
que o destino lhe havia reservado. Hoje ela podia ser aspirante em um navio de
exploração, mas amanhã seria a capitã de seu próprio navio.
— Por qual nome deseja ser chamada?
A filha do Governador pensou por alguns instantes, buscando um nome que
realmente a representasse.
69
Foi então que Colleen se lembrou de algo ocorrido na infância, quando
brincando nos jardins reais viu um jardineiro cuidando da roseira central. Enquanto
podava as flores, ele teve o dedo espetado em um dos espinhos, que começou a sangrar.
A menina, preocupada, retirou um lenço de suas vestes oferecendo ao homem. Ao
perceber se tratar da filha de Guinford, este recusou educadamente. Diante de sua
insistência, o velho disse:
— Não se preocupe, minha senhora, eu estou bem, apenas um pequeno
ferimento que logo irá cicatrizar. Mas tenha cuidado ao brincar por aqui, pois as rosas,
apesar de parecerem frágeis, são tenazes como nenhuma outra flor. Basta uma
distração e elas não hesitarão em lhe ferir, mesmo que tudo o que você deseje seja
apenas cuidar delas.
Sim, as rosas! Que outra flor poderia representar melhor o espírito da jovem
Colleen? Ela respirou fundo, pronta a abandonar seu nome de batismo e assumir uma
nova identidade.
— Desejo ser chamada por Rosa, capitão.
— Que este seja seu nome enquanto estiver no mar. Instruirei meus homens a
somente a chamarem por ele. Não espere, porém, nenhuma gentileza de minha parte,
Rosa.
Colleen sorriu mais uma vez, animada por sua escolha. Em poucas horas, ela
estaria em mar aberto e todo seu passado ficaria para trás.
Uma grande prancha de madeira foi arremessada nas docas. Um homem em pé
no convés do Aliança endireitou seu corpo, pigarreou para aprumar sua voz e falou em
alto e bom tom:
— Capitão a bordo!
Logo, a tripulação encontrava-se em fila, pronta para a inspeção no convés.
Todos os marujos vestiam casacos de cor vinho. Sem adornos ou botões em prata, eram
usados para protegê-los do frio ou em cerimônias formais como essa. Calçavam sapatos
baixos, assim como trajavam calças largas de tecido macio, mais apropriados ao
trabalho no mar. Uma camisa branca presa por um largo cinto de fivela cor de bronze
ficava por baixo de todo o conjunto. Os marujos também utilizavam lenços coloridos
70
nas cabeças e recobertos por um chapéu tricorne da mesma cor de seus casacos. Todos
se vestiam iguais, à exceção dos oficiais, cujas roupas possuíam alguns adornos
diferentes.
Os homens permaneciam em postura rígida, até que Fletcher os passasse em
revista e ordenasse que podiam descansar. Ao relaxarem a postura, reuniram-se à volta
de seu capitão para ouvir as notícias. O capitão anunciou:
— Homens, quero lhes apresentar minha nova aspirante. Seu nome é Rosa e
exijo que ela receba o mesmo tratamento que todos a bordo.
Colleen notou os diferentes olhares dirigidos a ela: alguns eram de surpresa,
outros de indiferença e havia mesmo aqueles que demonstravam uma certa
desconfiança. Entre os homens de Fletcher, alguns conheciam Colleen da época em que
ela fazia parte da Real Escola, e vários se lembravam dos problemas que ela causara.
Ter sido expulsa e agora integrar um navio da marinha era, para muitos, uma ofensa aos
anos de estudo e dedicação deles próprios. Havia também um rosto conhecido, um
jovem de cabelos louros e barba bem aparada. O marinheiro encarou Colleen com
surpresa e, ao reconhecê-la resmungou:
— Mas ela é...
Os ouvidos atentos de Fletcher rapidamente captaram a queixa do navegador
Joshua Ledward e, antes que ele terminasse, respondeu:
— Exatamente, meu caro, e mais nenhuma palavra sobre isso. Rosa – reforçou,
repetindo seu novo nome – terá direitos e deveres iguais a todos. Sem nenhum
privilégio por sua posição. Trate de arrumar um canto para a nova aspirante e avise o
cozinheiro para incluir mais uma ração nas refeições. Assim que zarparmos, irei
designá-la a suas novas funções.
— Está bem, capitão – disse o navegador, contrariado.
— Muito bem, homens – Fletcher sorriu –, recolham as amarras e a âncora. Icem
as velas em direção norte-noroeste e vamos zarpar. Temos muito a percorrer antes de
cumprirmos nossa ronda.
Uma agitação deu lugar à calmaria do convés. Logo, eles estavam trepando pelas
cordas e traveses, desenrolando velas e puxando correntes. Em questão de minutos, o
71
navio se movimentava, aproveitando a cheia da maré que permitia que ele saísse do
porto. Antes de se recolher à sua cabine, o capitão se virou para Colleen:
— Faça tudo o que eu mandar, sem hesitar. Se deseja ser uma oficial um dia,
tem de primeiro deixar de ser uma aprendiz.
Adeus, Northwind – despediu-se Colleen, olhando para trás. – Meu futuro me
aguarda no horizonte.
72
Capítulo 10 - A Vida no “Aliança”
Na primeira semana, Colleen sentiu os efeitos da ausência da bebida no sangue.
Não que ela bebesse até se borrar todos os dias, mas o fim da ingestão diária de rum
estava deixando-a irritadiça e por vezes agressiva. Fletcher acreditava que o hábito da
bebida, comum em todos os navios, só trazia desatenção e desgraça a uma tripulação. O
rum era reservado às celebrações e, até aquele momento, não havia o que se comemorar.
A fim de desocupar a mente do desejo por álcool, ela seguiu o capitão como se
fosse sua própria sombra. Dia após dia, ela obedecia às suas ordens, executando as mais
diversas tarefas sem reclamar.
A vida no interior do Aliança não era prazerosa. Colleen, que antes dormia em
uma grande cama recoberta de lençóis de seda, agora se apertava em uma pequena rede
de algodão, pendurada em uma das laterais internas do casco. As refeições eram feitas
sentados no convés e no porão e consistiam em sua maioria de um pedaço de carne
salgada, uma bolacha, uma caneca de água e, quando o mar os abençoava, um pouco de
peixe fresco.
Era exigência do capitão que todos também consumissem um preparado à base
de água, limão e canela. O sabor azedo não era dos mais agradáveis ao paladar, mas
Fletcher era um líder zeloso e conhecia os perigos que o escorbuto podia trazer à sua
tripulação.
Os dias a bordo transcorriam pesados e repletos de tarefas e, desde o início, o
capitão exigiu que Colleen não recebesse tratamento diferenciado ao cumprir as
73
obrigações. Acompanhando os oficiais, ela aprendia como amarrar vergas, enfunar as
velas e manter as armas bem azeitadas para um possível combate.
Quando o sol finalmente caía e seu turno de trabalho terminava, ela ia até o
convés de tombadilho, sobre o casario de popa, observar Fletcher navegar. Notando o
seu interesse, ele lhe ensinava noções de navegação, astronomia e marinhagem. O
capitão parecia ser o único a bordo que acreditava que ela poderia ser mais do que uma
simples nobre em busca de aventuras. Como prova disso, toda noite, antes de se
recolher, Fletcher fazia questão de lembrá-la da principal lição que deveria aprender:
— Mantenha seus olhos e ouvidos bem abertos, Rosa. Aprenda com os erros
alheios para não voltar a cometê-los. Um bom capitão sabe que deve liderar seus
homens na ponta de sua língua e não na ponta de sua faca. Disciplina e respeito são tudo
o que deve transmitir a eles.
♥♠♥
Passadas duas semanas, a animosidade em relação à aspirante crescia a cada dia.
Alguns marinheiros se sentiam incomodados com sua presença, pois acreditavam que
ela não possuía o mérito para estar ali. Cochichavam que o capitão devia favores à
família da moça, enquanto outros diziam que o desejo dele era possuí-la. Apelidos
maldosos foram colocados em Colleen: princesinha, florzinha, meretriz, sendo estes
usados com ela sempre que o capitão estava distante.
Por vezes, ela pensou em usar sua influência junto ao capitão para relatar o que
lhe acontecia; entretanto, tamanha demonstração de dependência seria malvista por
Fletcher. Sabia também que reagir a seus colegas só iria piorar as coisas; só lhe restava
orar para que essa animosidade em relação a ela fosse passageira.
Naquela noite, como de costume, Colleen encontrava-se junto ao timão do
navio. Ali, apoiado sobre um suporte de madeira e iluminado por uma lamparina, estava
um mapa da região. Em pé, ao lado dela, Fletcher apontava para este, dizendo:
— Está vendo esses pontos marcados? Pois bem, você deve pegar o compasso,
firmar sua ponta aqui e...
74
Um barulho surdo veio dos degraus que ligavam o casario ao convés e, logo,
uma figura curvada e corpulenta, cujo odor podia ser sentido mesmo daquela distância,
surgiu. Mestre Alfred, o contramestre do Aliança, encontrava-se na ponta do casario
com um olhar apreensivo.
— O que deseja, mestre Alfred – perguntou Fletcher impaciente –, já não lhe
disse?
— Eu sei disso, capitão, mas podemos conversar?
— Diga logo, pois devo prosseguir com a aula e...
— É exatamente sobre isso que quero lhe falar – disse o marinheiro em um
sussurro, enquanto olhava de soslaio para Rosa.
— Continue treinando, Rosa, não me demoro.
Fletcher desceu as escadas; no convés, foi puxado até um canto tranquilo,
enquanto seu fiel contramestre lhe relatava os fatos:
— A questão, Capitão, é que alguns de seus homens estão insatisfeitos com a
presença de Rosa a bordo.
— O que quer dizer com isso? Ela executa os mesmos trabalhos, come a mesma
ração. Do que eles se queixam?
Alfred olhou à sua volta para se certificar de que não estava sendo ouvido e
continuou:
— É a forma como a trata. Os marinheiros acreditam que ela está acima das leis
de bordo, de que nada pode atingi-la caso cometa algum deslize. Muitos dos aspirantes
mais velhos têm se sentido incomodados com o tempo que vem despendendo com ela.
Não foram raras as vezes em que vi Rosa ser importunada sem reagir.
— Está falando de Joshua, não é mesmo? Aquele garoto mimado e prepotente
sempre se achou acima dos outros.
— É verdade que ele está incitando seus colegas em relação à Rosa, mas consigo
entender o seu lado. Ele era o aspirante a navegador e, desde que ela chegou, você tem
empregado pouco tempo com seus estudos.
75
Fletcher conhecia Alfred havia muito tempo e sabia quando ele queria dizer algo
a mais que desconhecia:
— Diga-me logo o que sabe, contramestre.
— Ouvi rumores que cogitam até mesmo se livrar da menina. Existem aqueles
que resmungam que o senhor só a trouxe até aqui para satisfazer seus próprios desejos.
— Mas isso é um ultraje e... - Fletcher respirou fundo, passando a mão em seu
rosto - e devo admitir que você tem razão, como sempre tem. Talvez eu tenha me
excedido com Rosa, mas tudo o que desejava era igualar os conhecimentos dela aos de
meus homens, de forma que pudesse se integrar.
— O senhor realmente acredita nisso, não é, capitão?
— Se não acreditasse, mestre Alfred, não perderia meu tempo com ela. Desde o
momento em que a vi, notei um fogo ardendo em seus olhos, algo difícil de explicar,
mas cativante. Não se preocupe, agradeço-lhe pelos conselhos. Tomarei algumas
providências para tentar remediar isso. Agora vá descansar, pois teremos um dia
bastante cheio amanhã.
Alfred se despediu, retirando-se para seus aposentos no porão.
76
Capítulo 11 - Dez Chibatadas
As aulas de navegação que Colleen recebia quase diariamente passaram a incluir
Joshua também. O capitão acreditava que se ambos trabalhassem juntos, as diferenças
poderiam cessar.
Entretanto, o jovem navegador ainda manifestava desconforto com a presença de
Colleen como aprendiz do Aliança. Ele não esquecia o fato de ter sido ignorado por ela,
na Escola de Navegação. A aspirante, por sua vez, tentava dia após dia manter o
autocontrole. Ignorava as investidas de Joshua e respirava fundo cada vez que ele a
provocava.
Certo dia, enquanto caminhava pelo convés de tombadilho, Joshua deixou seu pé
propositalmente para que ela tropeçasse. O golpe surtiu efeito e, desequilibrada, Colleen
caiu ao chão de joelhos.
— O que foi, princesinha? Tropeçou na barra do vestido?
Colleen cerrou os punhos e se pôs de pé. Antes que Joshua pudesse reagir, ela
acertou uma joelhada no estômago dele. Este se dobrou por conta da dor, foi atingido
por um novo golpe e foi a sua vez de cair ao chão. Descontrolada pela raiva, a aspirante
chutava o corpo do jovem, ignorando seus apelos:
— Pare, pare! Imploro!
77
A briga atraiu a atenção dos marinheiros. Só foi interrompida com a chegada de
Fletcher. Ela se debatia como um animal selvagem, enquanto mestre Alfred ajudava
Joshua a se levantar.
— Mas, afinal, do que se trata? Perderam o juízo?
— Esse desgraçado me derrubou, fez com que eu tropeçasse.
— Você caiu porque é um desastre. Foi expulsa da escola, e o mesmo deveria
acontecer aqui – retrucou o navegador.
— Calem-se os dois, eu não aceito esse tipo de indisciplina a bordo. Vocês serão
punidos de acordo com o código, e que sirvam de exemplo para os outros. Mestre
Alfred, você sabe o que fazer!
O contramestre se aproximou de Colleen e Joshua e, com a ajuda de três outros
oficiais, passou a arrastá-los até o mastro principal. Enfurecida, ela berrava e se debatia,
recusando-se a ceder, enquanto o rapaz pedia por clemência e jurava inocência.
Ambos tiveram as blusas tiradas e suas costas desnudadas, enquanto eram
amarrados com as mãos para cima, na verga mais baixa.
— Tragam o grifo de nove caudas.
Mestre Alfred obedeceu, entrando no navio e retornando com um saco vermelho.
Cerimoniosamente, abriu-o, retirando o chicote pequeno, composto por nove tiras de
couro, cada uma delas com um nó em sua ponta.
— Seguindo as leis da companhia, a senhorita Rosa e o senhor Joshua receberão
dez chibatadas com as costas nuas - sentenciou Fletcher. - Contramestre, pode aplicar o
castigo.
O chicote cortou o ar, atingindo as costas de Colleen e de Joshua em golpes
intercalados. Ela rilhou os dentes, contendo a dor à medida que, golpe após golpe, sua
pele era esfolada. Por sua vez, ele não permaneceu tão contido, gritando e implorando
para que o castigo fosse interrompido.
Os marinheiros que assistiam ao castigo se surpreenderam com a resistência da
aspirante em não gritar. Os olhares e sorrisos de aprovação pelo castigo se converteram
em uma expressão séria a cada novo estalar da arma.
78
— Oito – contou Fletcher. – Nove.
A dor era quase insuportável, e a aspirante podia sentir o sangue escorrendo por
suas costas. Seus sentidos turvaram, enquanto uma lágrima solitária escapava, para
aplacar a dor. Joshua parara de gritar, desacordado após o oitavo golpe.
— Nove...Dez. Muito bem, contramestre, pode interromper o castigo.
Os joelhos de Colleen mal eram capazes de mantê-la de pé. Com a ajuda de dois
outros marinheiros, ela foi retirada do mastro e arrastada para dentro do navio. O
navegador precisou ser carregado e reanimado com sais aromáticos. Sem demonstrar
remorso, o capitão disse:
— Contramestre, leve-os até o médico para que ele possa esfregar sal e vinagre
em suas feridas. Não queremos que elas infeccionem e fiquem doentes. Quanto a vocês,
voltem para seus postos imediatamente; a punição terminou!
Enquanto era carregada até Thomas Hallet, o médico de bordo, o único
pensamento da jovem, além da dor, era tentar entender por que o capitão havia feito
aquilo com ela. Ao menos em um aspecto seu castigo falhara: ela não emitira um grito,
tendo mantido sua dignidade.
♥♠♥
A noite caiu rápido no interior do Aliança. Durante o jantar, a ração de Colleen
foi servida normalmente, e os tripulantes pareciam ignorar o acontecido.
Suas costas doíam, não apenas pelos vergões e cortes deixados pela ponta do
chicote, mas também pela humilhação que sofrera durante o açoite.
Colleen chamara a atenção dos marinheiros, que esperavam de sua parte um
turbilhão de gritos e lágrimas durante sua punição. Entretanto, ela resistiu à dor de
forma mais honrosa que o próprio Joshua, que não resistira ao castigo. Tarde da noite,
mestre Alfred desceu até o porão à procura de Rosa. Os marinheiros não escalados para
o turno de vigia já haviam adormecido e mesmo Colleen, a despeito da dor, estava
79
sonolenta. O contramestre se aproximou, agarrando a aspirante pelo braço e a erguendo
de sua rede.
— O capitão deseja vê-la, levante-se.
A falta de delicadeza, típica do velho Alfred, não a surpreendeu.
— A esta hora? O que ele quer?
— Não faça perguntas e se levante, aspirante. Não existe hora quando o capitão
ordena.
Colleen acompanhou Alfred até a presença de Fletcher. O contramestre entrou,
segurando-a pelo braço e, sem pronunciar uma palavra, saiu fechando a porta.
A cabine do capitão era realmente impressionante. Belos tapetes coloridos
forravam o piso de tábuas, ajudando a trazer um pouco de calor ao ambiente. Ao fundo
da cabine, uma grande janela formada por quadrados de vidro amarelado, e à sua frente
uma mesa de pés esculpidos em bronze. Havia diversos armários e baús espalhados
pelas paredes do aposento. Sobre uma mesa lateral, cartas de navegação e uma série de
instrumentos que Colleen aprendera a reconhecer: um sextante, um astrolábio e uma
bússola.
— Sente-se, Rosa.
Colleen não respondeu, permanecendo em pé com os braços cruzados sobre o
peito. Fletcher, sem se importar com sua reação, se serviu de uma taça de rum. - Você
sabe por que foi castigada, não é, Rosa? Compreende por que tive de fazer aquilo?
— Foi sua opção me punir de forma injusta, capitão. Joshua vinha me
provocando há dias e eu simplesmente explodi. Não ia mais aturar suas brincadeiras e
provocações.
Fletcher levantou-se de sua mesa, caminhando em círculos pela cabine. Após
beber mais um gole de rum, prosseguiu:
— Você é uma menina de boa índole e caráter, apesar de ainda ter que aprender
a controlar certos impulsos. Sei que tudo não passou de um momento de descontrole.
— Então, por que me puniu? Por que fui açoitada e humilhada daquela forma?
80
— É aí que você se engana, minha cara Rosa. Você não foi humilhada, mas sim
começou um lento processo para conquistar o respeito dos homens deste navio.
— O que quer dizer com isso?
— Muitos aqui julgam erroneamente que você, por ter nascido em uma família
rica, teria privilégios sob meu comando. Durante este mês a bordo, você sempre foi
minha protegida para meus homens, e admito que me excedi nesse ponto. Eu e seu pai
somos amigos há muito tempo e sei da preocupação dele com você. Quando apliquei o
castigo, meus homens devem ter achado que, mais uma vez, eu a colocaria sob minha
asa. Se tivesse feito isso, Rosa, talvez nenhum de nós dois estaria aqui agora.
O rosto de Colleen expressava dúvida. Ela tentava entender as razões de seu
capitão, apesar de ainda considerar seu ato extremado e desnecessário.
— Eu estava certo quando imaginei que aceitaria seu castigo com coragem, e
esse foi o primeiro passo. Estava certo também quando imaginei que Joshua não
demonstraria a mesma resistência. Os homens agora viram que você não é uma
qualquer, que possui uma força interior que eles jamais esperariam. A hora da verdade
se aproxima, minha cara, e eles precisam estar seguros de sua prontidão quando o
momento chegar. Se não estiver conosco, poderá levar toda a tripulação à ruína.
— O que quer dizer com hora da verdade? Eu não...
Fletcher a interrompeu antes que pudesse prosseguir:
— Isso é tudo, Rosa, pode se recolher!
— Mas, capitão, eu...
— Já disse que é tudo. Vá e descanse agora. Amanhã será um longo dia.
Após fazer o sinal de reverência a Fletcher, Colleen, em silêncio, deixou o
aposento.
81
Capítulo 12 - Uma Dança de Espadas
Com o passar do tempo, a vida de Colleen mudou. Desde o castigo, Fletcher
fizera questão de colocar a aspirante para executar a vigília da noite como uma forma de
“ensinar-lhe disciplina e responsabilidade”. Com isso, as opiniões da tripulação a seu
respeito mudaram. As brincadeiras e apelidos cessaram e Joshua passou a respeitá-la
como a qualquer homem a bordo.
Após uma refeição composta de carne salgada e um atum pescado há poucas
horas, Colleen recostou-se na amurada do navio para descansar um pouco. Esse era um
dos momentos do dia mais apreciados por todos os homens da tripulação: a breve sesta
após o almoço. Enquanto alguns buscavam cochilar um pouco, usando seus chapéus
para fazer-lhes sombra, outros preferiam passar o tempo jogando conversa fora ou
escrevendo cartas e diários para seus familiares.
Ela estava quase cochilando, quando ouviu a voz do capitão à sua frente. Ele
arremessou-lhe uma pesada bainha de couro e disse:
— Vamos ver o que sabe fazer com isso.
Desnorteada, Colleen abriu o fecho da bainha, sacando de seu interior um belo
alfanje. Uma espada curta, de lâmina curvada, ideal para o uso em espaços pequenos
como um navio.
— Levante-se! Vamos! Se deseja fazer parte da tripulação, tem de saber como se
defender.
82
Ela empunhou a arma de forma desajeitada. Não tardou para que os marinheiros
mais atentos entendessem o que estava acontecendo. Estes se apressaram em acordar os
outros e, logo, uma pequena roda se formou em torno do capitão e da aspirante. A
inabilidade visível de Colleen com a espada gerava gargalhadas na tripulação que, sem
chamar a atenção de Fletcher, faziam apostas em quem desistiria primeiro. Ela sorriu e,
em tom de desafio, disse:
— Eu costumava ser muito boa enfrentando árvores em minha infância.
Ninguém brandia um graveto como eu!
Novas gargalhadas surgiram dentre os marinheiros, encantados com o senso de
humor da maruja. Um deles emendou:
— Uhhhh... Cuidado, capitão! Ela pode usar seu graveto para feri-lo.
— Sim – emendou um outro. – Todos deveríamos usar gravetos em vez de
espadas. Estou certo de que os piratas que infestam esses mares ficariam muito mais
intimidados.
Fletcher sorriu, sacando seu próprio alfanje:
— Em guarda, Rosa. Vejamos se é capaz de me acertar.
Ainda meio desajeitada, Colleen tomou a arma em suas mãos e com sua lâmina
alta, partiu na direção de seu alvo. Estava temerosa em atingir Fletcher e machucá-lo,
mas logo percebeu que esse medo era infundado. Seu primeiro golpe contra o peito do
capitão passou longe, bastando que ele apenas desse uma leve girada com o corpo.
— Tente de novo – encorajou-a com um sorriso.
Colleen sabia que isso era um teste, uma forma da tripulação e do próprio
capitão a avaliarem. Sua falha ou sucesso nesse teste iria determinar seu destino em
meio ao grupo. Determinada a não errar, ergueu a espada com as duas mãos. Mirou no
braço esquerdo do capitão e, girando seu corpo, golpeou. Fletcher fintou novamente o
golpe, abaixando-se e permitindo que a lâmina passasse no vazio sobre sua cabeça.
— Estou começando a acreditar no que meus homens dizem a seu respeito,
Rosa. Que deveria ficar em terra, como a mulher tola que você é. Quem sabe se lhe der
uma vassoura, você seja mais bem-sucedida.
83
A tripulação mais uma vez riu, enquanto ela começava a se enfurecer. A
estratégia de Fletcher estava funcionando: queria ver até onde poderia testar os limites
de sua aprendiz. Ele sabia que no mar não há lugar para se acovardar ou fugir, devendo-
se lutar até o fim. Colleen precisava aprender a se manter atenta, mesmo com o sangue
fervendo em suas veias.
A pose arrogante de Fletcher a irritava de maneira crescente. Colleen fez uma
nova investida, correndo e gritando contra seu alvo. Ela não conseguia ver ou pensar
com clareza, querendo apenas arrancar o sorriso da cara de seu capitão. A espada mais
uma vez varou o ar, enquanto Fletcher a fintava e deixava o pé propositalmente para que
ela caísse.
Ela perdeu o equilíbrio, deixando a arma voar de sua mão. Tentou se levantar,
mas, antes que pudesse reagir, estava imobilizada. O capitão havia colocado seu pé
sobre seu peito, travando-a no chão. O aço frio da espada de seu oponente tocava o
pescoço de Colleen, que nada pôde fazer senão se render.
— Uma vez no chão, Rosa, você estará morta. Você tem que aprender isso se
deseja sobreviver aqui!
Ele estendeu sua mão para que ela se levantasse. Colleen aceitou a ajuda e se pôs
de pé. Ela estava temerosa sobre a opinião da tripulação perante seu fracasso, mas em
vez de risadas e vaias, recebeu alguns urras. Alguns dos homens davam-lhe tapinhas nas
costas e a cumprimentavam. O capitão então disse:
— Muito bem, o intervalo acabou, voltem a seus afazeres. Quanto a você,
Rosa...
— Sim, capitão?
— Esteja em minha cabine após o jantar.
♥♠♥
Com a chegada da noite, o frio foi se intensificando a cada hora. Conforme fora
instruída, após o jantar, e enrolada em seu casaco do uniforme, Colleen saiu ao convés
84
principal e se dirigiu até a cabine do capitão. Seus joelhos tremiam, o nariz coçava, e
com uma vontade desesperada de sair daquele tempo, a aspirante bateu com violência
na porta.
Fletcher colocou rápido a jovem para dentro. Colleen notou como alguns dos
móveis haviam sido afastados para os lados, abrindo um espaço maior no centro da
cabine.
— Por que me chamou aqui essa noite, capitão?
Fletcher abriu um sorriso e perguntou:
— Gosta de dançar, Rosa?
Colleen foi pega de surpresa com a pergunta. Por que ele a chamaria no meio da
noite, simplesmente para lhe perguntar frivolidades?
— Não muito, na verdade. Minha irmã foi quem sempre acompanhou meu pai
nas festas e jantares. Ele sabe muito bem como conduzir uma dama em uma valsa.
— Compreenda, Rosa, que meu trabalho como capitão é muito solitário. Muitas
vezes são semanas ou até meses no mar, sem nenhum contato a não ser com meus
homens.
O rumo da conversa começava a incomodar a aspirante. O que o capitão
pretendia com aquela estranha história sobre solidão? Ela não admitiria mais nenhum
abuso, especialmente dele.
— Não me entenda mal, minha cara, tenho um profundo respeito por você e seu
pai. Mas achei que poderia conceder a esse velho lobo do mar uma dança. Apenas uma
música para alegrar meu espírito.
Colleen sorriu sem graça, incerta sobre o que responder. Sempre se considerara
habilidosa em perceber as intenções das pessoas, e os olhos de Fletcher lhe pareciam
bastante sinceros.
— Mas, capitão? – disse rindo. – Onde espera conseguir uma banda para tocar?
Fletcher se virou, dirigindo-se a um dos armários encostados nas paredes de seu
cômodo. Retirou uma caixa de madeira envernizada, colocando-a sobre a mesa. Girou
uma manivela em sua lateral por alguns minutos e, por fim, abriu a tampa da caixa. De
85
seu interior saiu uma bela melodia, produzida por uma roda dentada que, ao girar,
acionava os dentes de um pente de metal, produzindo o som. Colleen ficou maravilhada
com aquele engenho, uma vez que nunca tinha visto nada parecido.
— Eles a chamam de caixa musical, não é incrível? Eu a comprei de alguns
engenhosos gnomos de Eiran.
Fletcher colocou a mão esquerda para trás; em seguida, se curvou, estendendo a
mão direita para Colleen:
— Conceda-me essa dança, Rosa.
Desconfiada e com um pouco de incerteza, Colleen aceitou o convite, segurando
a mão do capitão. Em instantes, eles já dançavam.
Muito hábil, Fletcher conduzia Colleen com maestria. A dança permitia ao
capitão explorar todos os seus movimentos, fazendo com que ela rodopiasse, virasse e
se abaixasse ao ritmo da música. A aspirante prometeu a si que só dançaria por alguns
minutos, mas logo se viu incapaz de cumprir o que determinara.
Aquela dança lhe lembrou de sua casa e de seu pai, e das saudades que sentia de
tudo aquilo que fugira por toda sua vida. Que contraditória a falta das pequenas coisas,
das conversas com sua irmã à beira da escada.
Uma hora se passou até que Colleen, exausta, pedisse para parar um pouco.
— Esta noite foi muito agradável, Rosa, mas devemos descansar agora -
concordou o capitão com um sorriso. - Gostaria de vê-la aqui novamente amanhã, antes
de seu turno de vigia. Você dança muito bem, mas ainda lhe falta um pouco de leveza
em seus passos.
Colleen agradeceu a gentileza e vestiu seu casaco para se proteger do sereno da
madrugada. Enquanto saía da cabine em direção a seus aposentos, matutava por que
motivo precisaria de leveza dentro daquele navio.
86
Capítulo 13 - Hasteiem nossas Cores
Cumprindo o mesmo ritual que vinha executando havia uma semana, Colleen se
dirigiu à cabine de Fletcher antes de seu turno de vigia. Tentava compreender as razões
do capitão, imaginando o quanto o mar poderia deixar um homem carente. Entretanto,
aquela situação estava se tornando insustentável. Decidida a pôr um fim nisso, colocou
seus pés dentro do casario principal.
Ao abrir a porta, ela o encontrou de costas, olhando em algum ponto perdido de
sua janela de vidros amarelados. Antes que o capitão dissesse qualquer coisa, ela se
adiantou:
— Capitão, permissão para falar! Não compreendo o porquê dessa sua obsessão
em dançar todas as noites. As primeiras vezes foram muito agradáveis – Colleen tentava
ser educada –, mas isso não pode continuar. Eu respeito sua autoridade, mas não deixei
minha casa para me tornar um par de dança para o senhor!
Um som saiu dos lábios de Fletcher, primeiro timidamente e, depois, em uma
explosão. Sem se virar ele ria, gargalhava ante as palavras de sua aprendiz.
— De que está rindo? – Colleen perdeu a calma. – Isso é uma piada, não é
mesmo? Mais uma piada para me humilhar?
Fletcher interrompeu a gargalhada e, num tom seco, disse:
— Abaixe-se.
87
No mesmo instante ele se virou. Em suas mãos estava uma longa rapiera, que
golpeou horizontalmente, visando o pescoço de Colleen. A aspirante se abaixou por
instinto. Ela não sabia de onde tirara aquilo, mas havia salvado sua vida.
— Muito bem, Rosa – disse o capitão de arma em punho: – direita e giro à
esquerda.
Os músculos de Colleen obedeceram à ordem, dando-lhe tempo de desviar de
mais um golpe dado pelo capitão.
— Esquerda e giro à direita – disse Fletcher, preparando outro golpe.
Colleen obedeceu rapidamente, percebendo de onde sua mente havia
memorizado esses padrões. Colleen e Fletcher não estavam lutando e sim, dançando.
Aproximando-se de seu armário de armas, Fletcher retirou de lá uma rapiera e a
arremessou para Colleen:
— Vamos ver se consegue usar uma espada.
Ela se preparava para tentar seu primeiro golpe, quando ouviram uma gritaria do
lado de fora. Sem pensar, ambos correram até a porta, atravessando-a em direção ao
convés. Ao chegar lá, o capitão viu sua tripulação debruçada sobre a amurada do navio.
No topo do mastro central, um marinheiro gritava eufórico, apontando para algum ponto
no horizonte.
— Vela! Vela!
Fletcher olhou para cima, gritando para o homem na gávea.
— Pode confirmar quem é, marujo?
— Estou vendo duas naus, capitão, uma delas uma fragata aldarien.
— E a outra?
— Estão exibindo cores vermelhas, capitão...Orcs!
O sangue de Fletcher ferveu. Depois de meses de monotonia e marasmo,
finalmente um pouco de ação.
88
— Verdes covardes, eles verão o que acontece com quem cruza o caminho de
Jack Fletcher. Rosa, prepare-se, pois parece que você terá de aprender a lutar mais cedo
do que o esperado.
Colleen nunca vira o convés do Aliança tão agitado quanto naquele momento.
Os tripulantes corriam de um lado para o outro, sendo que as ferramentas do trabalho
diário eram rapidamente substituídas por machados, facões, alfanjes e pequenas bestas
de arco curto.
Fletcher correu até a proa do navio, sacando sua luneta e mirando-a na direção
do conflito que se desenrolava mais ao longe. Identificou uma fragata aldarien sendo
cercada por uma corveta orc. O pequeno navio de velas vermelhas disparava suas
balistas contra as velas da embarcação mercante, tentando freá-la, permitindo assim sua
abordagem.
Covardes. Vamos ver se são tão ousados quando deixarem de ser caçadores,
para se tornarem a caça.
— Senhores, hasteiem nossas cores de combate.
Colleen notou quando um dos homens começou a baixar a bandeira de Aldarian
que tremulava no mastro principal. Uma vez no chão, o símbolo real foi retirado do
mastro e dobrado com respeito.
A resposta para o frenesi no navio ocorreu quando um novo símbolo passou a
dominar o céu. Onde antes se ostentava orgulhosa a bandeira azul e vinho real, agora
havia algo muito mais temido. Um símbolo que era sinal de morte e destruição: uma
bandeira negra estampada com o símbolo da caveira.
Como era costume nos mares de toda Mirr, cada capitão corsário adotava para si
uma bandeira especial. Estava ali o crânio branco e sorridente dando boas-vindas às
presas do mar, porém o capitão optara por algo um pouco diferente. A criatura retratada
não era um humano e, sim, um orc com a cabeça trespassada por um alfanje.
O ódio que o capitão sentia pelos “verdes”, como eram chamados
pejorativamente os orcs, estava evidente em sua bandeira e era isso que lhe dava tanto
prazer em seu trabalho: caçar os piratas orcs de Urtaark. Este sempre fora conhecido
como um reino de trato difícil. Um lugar onde seus habitantes e suas fortes tradições
89
tribais consideravam os humanos seres fracos e inferiores, que serviriam apenas como
escravos a serem explorados. Os piratas de Urtaark receberam então passe livre para
atacar e pilhar quaisquer navios humanos que encontrassem, obrigando Aldarian a criar
uma força que garantisse a segurança. O Aliança era parte dessa força e agora teria de
mostrar seu valor.
Não demorou para que os piratas notassem que tinham companhia. O navio de
Fletcher virou-se para nordeste, dirigindo-se a todo pano em direção à sua presa. O
ataque contra o navio mercante de Aldarian cessou à medida que os orcs manobravam
para tentar uma fuga. Ao avistar a proa do Aliança se aproximando de seu bordo, os
inimigos dispararam suas balistas, numa tentativa de intimidá-los, porém os projéteis
atingiram apenas a água, deixando a tripulação do navio ainda mais confiante de seu
ataque.
Com toda a velocidade que lhes era possível, os piratas lentamente viraram para
o norte, buscando as correntes de vento mais fortes e águas mais seguras. Logo uma
caçada teve início, sendo que o Aliança pouco a pouco diminuía a distância em relação
ao inimigo.
Foram necessários trinta minutos até que o navio de Fletcher estivesse ao
alcance de um tiro de balista e foi exatamente isso que ele fez. Controlando o leme do
navio com habilidade, Fletcher girou bruscamente o timão todo à esquerda, tombando o
Aliança e expondo sua lateral direita à popa do navio inimigo. Ele sabia que o alvo era
restrito e tinha de dar um tiro certeiro caso não quisesse reiniciar a perseguição. O sol já
começava a adormecer no horizonte; logo a visibilidade os abandonaria. Os cabos das
balistas estavam tensionados e suas canaletas carregadas com grandes balas correntes.
As balas correntes consistiam de duas pequenas esferas de metal unidas uma à
outra por um curto pedaço de corrente. Quando disparadas corretamente, elas voavam
zunindo pelo ar, arrebentando tudo aquilo que estivesse em seu caminho. Elas tinham
especial apetite por vergas e velas, sendo que eram ótimas para parar navios fujões.
Os bem disciplinados artilheiros de Fletcher miraram o mastro de popa,
aguardando a ordem de seu capitão:
— Disparem.
90
O som da corda tensionada, misturado ao estalar da madeira, se pronunciou no
céu. Algumas balas atingiram a água, mas outras pareciam ter atingido seu alvo. O
capitão observava apreensivo o resultado de seu tiro. Um súbito silêncio se formou no
ar até que ele ouviu aquilo que desejava: um forte estalo vindo do navio orc.
Como uma árvore, o mastro de popa rangeu e envergou, tombando para a
esquerda e caindo no mar.
Uma celebração se iniciou no convés do navio. Sedentos pelo combate, os
homens gritavam e brandiam suas espadas junto à amurada, numa clara tentativa de
intimidar os orcs à medida que o Aliança se aproximava da embarcação. Fletcher estava
exultante, com um brilho nos olhos e um sorriso na face que Colleen não havia visto em
todas aquelas semanas no mar. Sem o mastro de popa, o inimigo tinha poucas chances
de manobrar e fugir. O Aliança seguiu para noroeste, aproximando-se do navio inimigo.
Foram necessários apenas quinze minutos mais para que ambas as embarcações
estivessem emparelhadas.
— Armem as bestas – gritou Fletcher, enquanto se preparava para a invasão.
Rapidamente os homens tensionaram a corda de suas armas, colocando virotes e
mirando-os em direção ao navio inimigo. Um dos marinheiros se aproximou de Colleen,
sem delongas:
— Sabe como usar uma dessas?
Colleen assentiu com a cabeça e se posicionou na amurada, onde tinha mais
apoio.
— Eles estão se rendendo, capitão – gritou o marinheiro do topo da gávea. - Não
vejo orcs armados no convés.
Maldição, resmungou Fletcher. As leis do mar não permitiam mandar a pique
um navio que se rendesse. Ele seria obrigado a negociar.
Logo, os dois navios encontravam-se a uma distância inferior ao tiro de uma
besta. Fletcher pôde confirmar o que seu marinheiro havia lhe dito: no convés do navio
encontravam-se diversos marinheiros orcs com as mãos atrás da cabeça. Armas no chão,
eles pareciam dispostos a se render. Seu capitão, facilmente identificável pelo chapéu
negro e casaco de couro grosso, atrás de seus homens, com voz cavernosa gritou:
91
— Negociemos a rendição. - As palavras saíram roucas e precariamente
compreensíveis. A língua orc pareceria a um leigo um conjunto de grunhidos,
justificando por que soava tão estranha.
Sob a mira das bestas, Fletcher aceitou a negociação:
— Vocês violaram o código de conduta. Entreguem suas armas para que
possamos abordá-los e escoltá-los até Aldarian.
— Que garantias temos de sua palavra – ressonou o orc.
— Você conhece as leis do mar. Aqueles que se rendem têm direito a um
julgamento justo.
Colleen observava, admirada, a eloquência de Fletcher. Sua voz era pausada e
paciente, para transmitir confiança a seu interlocutor. Em meio à discussão, ela notou
algo estranho. As armas deixadas no convés inimigo estavam estranhamente alinhadas
umas às outras. Não era de se esperar que armas jogadas ao chão adotassem formação
tão peculiar. Elas pareciam ter sido dispostas daquela forma, e isso a preocupou.
Com os olhos, a aspirante buscou todos os cantos do navio inimigo até notar
algo no mastro principal. Iluminado pelo pouco sol que restava, avistou o vulto se
movendo por trás das velas. A figura, apoiada em um dos traveses do mastro, por um
instante parou, parecendo se posicionar. A aspirante distinguiu a silhueta de um orc e,
em sua mão, o que parecia ser uma besta.
É uma armadilha!
A aspirante respirou fundo, mirando sua besta em direção ao vulto. Quando mais
jovem, Colleen costumava treinar tiro ao alvo com um de seus tutores, sendo que a
besta sempre fora sua arma preferida. Com o tempo e prática, ela demonstrou uma
grande habilidade no uso da arma, tendo mais de uma vez participado de caçadas nos
bosques reais, junto a seu padrinho.
Aquela, porém, era uma situação diferente. Uma coisa é disparar um virote
contra um cervo, outro contra uma criatura racional. Colleen pensou em gritar,
informando que era uma armadilha. Temendo que a figura disparasse caso o alarme
fosse dado, ela se apressou. Apoiou seu cotovelo sobre a amurada, alinhou a mira para
cima, em direção à sombra, e com um leve toque no gatilho, disparou o mecanismo. O
92
virote cruzou o ar até alcançar o navio inimigo, perfurando a vela e acertando o vulto
que se escondia atrás dela. Atingido no peito, o monstro cambaleou por alguns segundos
até despencar lá de cima. Seu corpo fez um som surdo ao atingir o convés inimigo, ao
mesmo tempo em que Colleen berrava:
— É uma armadilha!
Vendo que seu plano falhara, os verdes imediatamente se jogaram no chão,
agarrando as armas posicionadas. Ao mesmo tempo, um grupo oculto atrás de caixas
passou a disparar uma saraivada de setas contra o Aliança.
O grito de Colleen foi preciso; em segundos, a tripulação abrigou-se junto ao
chão. Os virotes se espalharam por todos os lados, cravando nas tábuas do navio e nos
corpos de dois marinheiros mais lentos que os demais. Passada a chuva de flechas, os
homens ergueram suas espadas ao ar, berrando, numa tentativa de intimidar os orcs.
Uma dúzia de ganchos de abordagem foi lançada contra a amurada inimiga, prendendo
seu navio, e aproximando-o para que fosse abordado.
Sem tempo de recarregar suas bestas, os orcs nada puderam fazer a não ser sacar
seus facões e se prepararem para o ataque. Logo os navios não estavam a mais do que
três metros um do outro, e foi nesse instante que os homens de Fletcher começaram a
saltar a bordo. Diferente do que se esperaria de um capitão da marinha real, que
comandaria o ataque do conforto de seu convés, Fletcher foi o primeiro a saltar sobre a
massa verde, motivando seus homens a fazer o mesmo.
Colleen hesitou por um instante. Aquilo já não era mais uma aula de dança e sim
o combate real. Seu coração entalou na garganta, em um misto de medo e apreensão.
Respirando fundo, fechou seus dedos em volta do cabo de seu alfanje e saltou para
dentro do navio inimigo. O barulho que se erguia do combate era ensurdecedor,
enquanto mais e mais corpos verdes tombavam no convés.
Um oponente de costas avançou sobre ela; percebendo que não havia momento
para honra, golpeou-o com toda a força. O alfanje abriu um profundo corte na carne
inimiga, deixando escapar um líquido espesso e escuro. A criatura se virou, erguendo
seu facão em direção à aspirante. A hesitação de Collen durou apenas até perceber que
era ela ou o monstro: esticou seu alfanje, perfurando o peito da criatura e fazendo-a
93
tombar no chão. A sensação de penetrar uma espada afiada no peito de um ser vivo era
algo indescritível. O nojo e até uma certa dose de pena passaram rápido.
A euforia de matar aquele ser logo tomou conta de seus músculos. De uma
forma que era incapaz de interpretar em meio ao calor da batalha, Colleen teve certo
prazer mórbido em ceifar aquela vida.
Logo, a aspirante se viu envolvida em meio ao combate, atingindo qualquer
coisa que se mostrasse um alvo fácil. A cada golpe, a cada gota de sangue extraída, a
euforia de Colleen se fazia mais presente. Não tardou para que o capitão inimigo, com o
que restava de sua tripulação, estivessem cercados em meio ao convés. Corpos verdes se
espalhavam por todo o navio, sendo que apenas três humanos haviam perecido em
combate. Foi só então que a aspirante percebeu o profundo corte em seu braço esquerdo.
A dor lentamente passou a agir, avisando Colleen da gravidade do ferimento..
Os homens de Fletcher urravam e xingavam, enquanto amarravam seus
prisioneiros e seu capitão. A fragata aldarien estava salva, mas ainda havia muito
trabalho pela frente.
94
Capítulo 14 - Tempos de Crise
Em seu quarto, dentro da ala norte do castelo de Northwind, o Regente
encontrava-se pensativo. Lorde Joseph sabia da importância de manter o ânimo de seus
homens e súditos o melhor possível, fingindo confiança ao longo do dia, para somente à
noite deixar a máscara cair, revelando sua preocupação.
O roubo dos planos para seus novos navios, assim como a proibição, por parte
de Azhir, do uso de seus portos por Aldarian começavam a afetar a economia da ilha. O
movimento no mercado central de Northwind vinha caindo à medida que os mercadores
tomavam ciência da situação.
Aqueles que dependiam do comércio com Ixian e Iverian e o faziam por
intermédio de Aldarian tentavam buscar novas soluções para o transporte de seus bens,
reduzindo a arrecadação de tarifas e impostos no porto. Muito dos marinheiros,
empregados nos navios mercantes, haviam sido dispensados de seus postos, sendo que a
maioria acusava a coroa pela intransigência em negociar com Azhir.
Por conta do desemprego, o índice de roubos e saques nos bairros mais pobres
da cidade acabou aumentando vertiginosamente. Com seu soldo reduzido frente à crise,
os guardas eram incapazes de esboçar uma reação adequada. A população, faminta,
conspirava em rebeliões pelas ruas e vários nobres das províncias de Aldarian já
questionavam se o Regente não deveria entregar a coroa a alguém mais capacitado.
Sentado na cama, o velho chapéu tricorne azul descansando a seu lado, Joseph
massageava a testa, em busca de uma solução a curto prazo para a crise.
95
— Com licença, meu senhor? – disse uma voz suave vinda do corredor.
O Regente virou-se para encontrar os olhos castanhos da esposa Sarah. Ele
sorriu, pois apesar de passados vinte anos, sua rainha ainda era incapaz de esquecer
velhos hábitos servis.
— Não precisa me pedir licença para entrar em nosso quarto, minha querida, e
tampouco me chamar de senhor quando estamos a sós.
A rainha se aproximou, sentando-se ao lado do marido. Suas mãos delicadas
seguraram as do Regente, ásperas, acariciando os nós de seus dedos de uma forma que
somente ela sabia fazer.
— Sei o quanto essa crise o preocupa, querido, mas nós já sofremos revezes no
passado e estou certa que irá superá-los. Seu povo sabe que cabeça está sob a coroa de
Aldarian e tem plena confiança em você.
- Coroa que não tenho direito a usar, Sarah. – O Regente olhou para seu chapéu.
— Não ouso ostentar um símbolo de nobreza, se o sangue que corre em minhas veias é
tão plebeu quanto do povo que governo. Às vezes penso que deveria ter feito o que era
certo, entregado o reinado a meu irmão quando ele chegou à maioridade.
— Mas isso era impossível. Com a doença, ele não teria condições de governar –
disse a consorte tentando confortá-lo.
— A doença de John...Às vezes sinto que deveria ter me esforçado mais para
lhe encontrar uma cura, em vez de simplesmente permitir que meu pai o isolasse em
Azhir.
— Ele era uma criança e você, um adolescente terminando seus estudos. Havia
muita responsabilidade em jogo depois que seu pai faleceu. Em Azhir, ao menos o
Patriarca foi capaz de controlar a doença de seu irmão, amenizando-lhe a dor e lhe
dando um posto de confiança.
— Talvez ainda seja tempo, meu amor - disse o Regente, acariciando o rosto de
Sarah. – Talvez deva trazer nosso filho de volta de Dirai e lhe entregar o governo.
Talvez comigo fora do caminho, o maldito Patriarca esqueça sua vingança e deixe meu
povo viver em paz.
96
— Você tem continuado o trabalho de seu pai com maestria. O Conselho dos
Ventos que você ordenou tem sido uma importante ferramenta na diplomacia do reino.
Alumi ainda é um menino e não está pronto para assumir seu lugar.
— E de que adianta eu permanecer aqui, Sarah? Que poderes eu tenho quando
alguém como Karim resolve usar sua força para sabotar meus planos? Eu tinha um
trunfo nas mãos e mesmo esse trunfo foi roubado por aquele canalha sem escrúpulos.
— E quanto ao incêndio? Não conseguiram recuperar nada?
— Apenas algumas poucas anotações e plantas obsoletas. Os engenheiros dizem
que levarão anos para recompor tudo o que foi perdido. Infelizmente, não teremos esses
anos antes que toda nossa terra vá à falência.
Sarah culpava-se por ser o estopim da briga entre o Regente e o Patriarca.
— Talvez eu devesse retornar a Azhir, meu senhor, implorar para que Karim
retire as barreiras comerciais. Estou certa de que ele atenderia aos meus apelos.
— Jamais – disse o Regente em um tom furioso. – Nunca a entregarei para
aquele verme mimado e prepotente. Seu retorno serviria apenas para que ele percebesse
o quanto estamos enfraquecidos. Não permitirei que se sacrifique por mim.
Joseph respirou fundo, acalmando seu espírito e adoçando a voz. O sacrifício a
que Sarah se propunha era louvável e mais uma prova de seu amor incondicional. Ele
aproximou os lábios do ouvido de sua esposa e murmurou:
— Ohhebuha akthar min ay sha'in fi hadhihi elhayah. Se pudesse escolher em
viver uma vida camponesa com você, eu deixaria tudo para trás e seríamos felizes. A
coroa, estando sobre minha cabeça ou não, é um fardo pesado que devo carregar
sozinho. Ter você a meu lado foi o que me deu força todos esses anos e não abrirei mão
disso por nada neste mundo.
Sarah sorriu, acariciando a face de seu amado. Adorava quando ele declarava
seu amor no idioma natal. Deitaram-se. Permaneceram abraçados por horas, a cabeça
dela sobre o peito de Joseph, apenas aproveitando a companhia um do outro. As
palavras eram desnecessárias e Sarah, fazendo uso sutil de seus poderes, fez com que o
Regente adormecesse em um profundo sono.
97
— Ertah ya azizi. Nós encontraremos uma forma de pôr um fim à perseguição
de Karim.
♥♠♥
Guinford observava, atento, a enorme quantidade de papéis sobre a mesa da sala
de reuniões. Entre as centenas de relatórios de exportação, balancetes e cálculos de
produção, estavam ainda informes vindos de diversas partes do reino, sobretudo das
áreas mais povoadas, sobre revoltas, rebeliões e toda sorte de manifestações populares.
A crise comercial em Aldarian ultrapassara o mérito da corte e já atingia o
cidadão comum. Com o embargo imposto à ilha pela Companhia de Al Azhir, muitos
produtores de diversas mercadorias não tinham para onde escoar seus bens, gerando
prejuízos incalculáveis a todos.
Ao lado do Governador de Northwind, estavam Lorde Joseph e dois outros
membros do Conselho dos Ventos: Aguiles, que tratava dos assuntos econômicos e
comerciais, e Enigar, o conselheiro político.
Aguiles foi o primeiro a falar:
— Os magistrados de todas as províncias dizem que não podem mais comprar a
produção de seus cidadãos a fim de manter a economia sobre equilíbrio. Mesmo
Myrtakos vem comprando mais do que o necessário, na tentativa de manter nossa
economia funcionando. No entanto, sem as exportações para Iverian e sem o lucro
obtido com o arrendamento dos navios às nações amigas, não temos como estabilizar
nossas contas, meu senhor.
Assentindo com a cabeça, o Regente voltou-se para Guinford:
— E quanto às rebeliões camponesas, Governador? Como está a situação?
— Tivemos de aumentar o efetivo da guarda em algumas cidades-chaves, meu
senhor. Fomos obrigados a convocar mais homens, e a maior parte das revoltas foi
controlada sem o uso de violência. A simples presença da guarda já tem coibido os
ataques.
98
— Mais homens? Como iremos pagar por isso?
— Não temos como, mas foi a única solução. Mesmo os guardas na ativa estão
começando a se queixar no atraso de seu soldo.
O Regente retirou seu chapéu, colocando-o sobre a mesa, e coçou a parte de trás
da nuca, pensativo. Enigar se pronunciou:
— E quanto a teu irmão? Ainda se encontra na embaixada de Azhir?
— Eu ordenei que John retornasse imediatamente para casa, mas ele se recusou.
Disse que o Patriarca não seria louco de fazer nada contra ele lá; vai tentar negociar
novos termos com Karim, para que ele erga o embargo. Nesse meio tempo, também está
coordenando nossos espiões em Ixian e nos informará, caso o Patriarca tome alguma
medida mais agressiva.
Guinford se irritou com toda a passividade naquela mesa. Seis meses já haviam
se passado e nenhuma solução diplomática tinha dado frutos. Ele estava certo de que a
arrogância de Karim só poderia ser arrancada no fio da espada. Golpeou a mesa com a
mão espalmada e, num surto de descontrole, gritou:
— O tempo da diplomacia acabou. Não percebe, meu senhor, que esse
desgraçado não irá assinar nenhum acordo enquanto for vivo? Devemos reunir nossos
exércitos e nossa esquadra e ensinar a esse moleque arrogante com quem está lidando.
O conselheiro político interrompeu:
— Nossos aliados condenariam qualquer ação militar contra a Companhia. Uma
guerra aberta traria prejuízos a toda Altrarian, e nós não conseguiremos nenhum apoio a
esse tipo de ação.
Guinford exaltou-se ainda mais, ao notar nas palavras do outro o odor da
covardia.
— E o que espera que façamos, caro conselheiro? Que definhemos até a morte,
enquanto aquele porco usufrui de nossos navios?
— Acalme-se, Guinford, ele tem razão. Não temos meios e nem dinheiro para
sustentar uma guerra aberta contra a Companhia. Eles têm mais recursos do que nós e
decerto terão o apoio de Centauron, caso decidamos atacar.
99
Como de costume, o Regente apresentava uma sensatez que ele não possuía em
momentos de tensão. Já mais controlado, Guinford disse:
— Aquele covarde ainda tem a coragem de oferecer transporte às nações
menores de Ixian e Altrarian, utilizando os navios que nós projetamos.
O Regente balançou a cabeça, não desejando acreditar que o projeto em que
investira tanto tempo e dinheiro estava agora nas mãos de seu desafeto. Voltou-se para
Aguiles:
— Algum sucesso em buscar os documentos que provam o pagamento das taxas
portuárias à Companhia?
— Não, meu senhor – disse o conselheiro em tom sério. – Todos os recibos e
contratos assinados por seu pai e pelo Patriarca desapareceram. De acordo com o
contrato original, Aldarian estaria isenta de qualquer taxa desde que trouxesse os
produtos de Azhir para serem comercializados em Northwind. No entanto, nenhum
papel nos arquivos traz esse acordo.
— Sem essa documentação não temos como rebater as acusações da Companhia
de que estamos por anos sonegando as taxas e, portanto, praticando concorrência desleal
com as outras nações. Sem nada que prove o acordo entre meu pai e o antigo Patriarca,
não temos como pleitear junto à Cidade das Nuvens que o embargo é ilegal.
— Tampouco temos como pagar o preço exorbitante cobrado por Karim, a título
de valores atualizados de nossa dívida para com a companhia – completou o
conselheiro.
Pouco a pouco, a temperança do Regente se esvaía em desespero. Todas as
saídas tentadas tinham como fim uma muralha de burocracias intransponível. Cada vez
mais ele desejava dar razão a seu governador, jogando a política para o alto e dando
uma boa surra naquele covarde. Lorde Joseph se levantou, caminhando em círculos pela
sala. Aguiles, de forma tímida disse:
— Talvez devesse pensar em seu povo, meu senhor, e aceitar o acordo que o
Patriarca lhe propôs.
— Está sugerindo que eu entregue minha esposa nas mãos daquele canalha,
apenas para satisfazer seu ego? Como ousa transformá-la em moeda de troca?
100
— Bem, meu senhor – hesitou o homem –, eu só estava sugerindo uma solução
e...
— Deixe-o, querido, ele apenas está preocupado com o que está havendo - ecoou
a voz de Sarah.
Os olhos do conselheiro se arregalaram. Profundamente embaraçado, ele
buscava se desculpar:
— Minha senhora, eu não tencionava ofendê-la ou chamá-la de...
Sarah adentrou o recinto com toda a graça e imponência que seu cargo exigia.
Vestia um belo vestido azul, sendo que a pele tom de cobre destacava seus profundos
olhos castanhos e os cabelos lisos e negros. Os lábios eram emoldurados por um rosto
perfeitamente redondo, característica predominante nos habitantes do continente central.
— Esqueça, Aguiles, fingirei que não ouvi o que disse.
A consorte observava o semblante de seu esposo, um ar cansado que ela jamais
observara antes. Os meses da crise haviam-no envelhecido e, apesar de inocentada pelo
Regente, ela se sentia em parte responsável por tudo isso. Aproximou-se de Lorde
Joseph, colocando a mão sobre seu ombro:
— Seu erro está sendo a preocupação em fazer tudo às claras, meu querido. Nós
devemos pagar a Karim na mesma moeda com que ele vem nos pagando.
A forma como a esposa observava um problema por um ângulo diverso sempre
fascinara o Regente, desde o início de seu casamento. Ouvia a sabedoria de Sarah em
suas decisões e ela raramente se enganava em seus pensamentos:
— O que está sugerindo?
— Muito simples, meu senhor. Aqueles que aceitam a ajuda da Companhia
devem perceber que não bastam navios mais resistentes para se executar um bom
serviço. Se conseguirmos mostrar a incompetência de Azhir em assumir o papel de
Aldarian no transporte de mercadorias pelo Oceano Bravio, não tardará para que os
reinos prejudicados exijam nosso retorno aos mares. O Patriarca acabará se vendo
obrigado a retirar o embargo, uma vez que teremos o apoio político de todos os
prejudicados.
101
— Está insinuando que ataquemos os navios da Companhia? – perguntou o
Governador com certo brilho nos olhos.
— Não diretamente, meu bom Guinford. Utilizemos o poder de barganha que
temos com os orcs, para que eles executem o grosso desse serviço sujo. Também não
nos esqueçamos de nossos bons amigos na ilha de Tirana; afinal, por anos eles vêm
usando nossas enseadas como refúgios para suas atividades. Não se recusarão em deixar
os orcs de lado para atacar alvos mais carregados como os navios da Companhia.
— Acha mesmo que os piratas de Tirana irão aceitar esse tipo de serviço, minha
senhora? – perguntou Guinford intrigado.
— Façamos deles corsários, meu bom Governador. Com todas as regalias que
esse título representa. Entreguem-lhes uma bandeira de Aldarian e outra, negra, para ser
usada durante as pilhagens. Nossa bandeira lhes garantirá refúgio e reparos em nossos
portos, além de melhorias em seus navios. Isto está muito acima do que qualquer um
deles jamais sonhou.
— Certamente Azhir nos acusará de pirataria, de estarmos acobertando essas
atividades – retrucou o Regente.
— Deixe que nos acusem. Foi o embargo da Companhia que prejudicou nosso
comércio, obrigou muito de nossos mercadores a reduzir seu efetivo nos navios. A crise
trouxe desemprego para os marinheiros e não podemos impedi-los de se unirem em
navios e lançarem sua fúria contra aqueles a quem consideram culpados. Aldarian
lavará as mãos nesse assunto.
O Regente se aproximou da mesa, com as esperanças renovadas pelas palavras
de sua esposa. Apesar de ser um plano louco, poderia dar certo.
— Guinford, envie um emissário até Bartok. Informe a nossos parceiros
comerciais orcs que, caso desejem continuar comerciando conosco, devem focar seus
alvos nos navios da Companhia. Deixe que fiquem com toda a pilhagem de seu saque.
Mesmo que tentem nos acusar, jamais acreditarão neles.
— Imediatamente, meu senhor – disse o Governador deixando a sala.
— Aguiles, reúna o máximo de recursos que puder disponibilizar. Em breve
teremos de equipar os navios de nossos aliados, para que cumpram seu papel.
102
— Enigar, contate nossos embaixadores nas nações aliadas e lhes informem
sobres os boatos da falha da Companhia em realizar seu serviço. Deixem que espalhem
a notícia e tragam apreensão a outras nações.
— Imediatamente, meu senhor.
Quanto a mim, sei exatamente a quem contatar, para obter o apoio de Tirana.
103
Capítulo 15 - A Volta para casa
A proximidade com o retorno ao lar enchia Colleen de ansiedade e angústia.
Alguns dias atrás, o Aliança fora interceptado por um navio mensageiro convocando-os
para retornarem à ilha imediatamente.
A viagem de volta seria longa e secretamente Colleen se perguntava se essa
convocação teria algo a ver com ela. Temia que o pai houvesse se arrependido de sua
decisão e achasse por bem ter a filha de volta a seu lado.
Nas cartas que enviara à Melleen, no período que permaneceu no Aliança,
Colleen só tecia elogios à sua estada, posando como uma aprendiz determinada das
disciplinas navais e aluna atenta de tudo aquilo que Fletcher havia por lhe ensinar. Os
relatos podiam não ser de todo honestos, mas deveriam servir para tranquilizar seu pai
sobre o que ocorria no navio.
Ao final de quase cinquenta dias de viagem de volta, Colleen finalmente
vislumbrou os contornos da terra natal: a extensa costa da ilha, os grandes penhascos da
porção oeste da Baia dos Sinos, assim como a cordilheira de montanhas mais ao norte.
O bergantim adentrou a baía e, pouco antes do amanhecer, atracou em Northwind.
— Muito bem, homens, vocês têm até a meia-noite para descansarem e gastarem
seus soldos. Esse retorno inesperado nos obrigará a ter muito o que mapear, a fim de
cumprirmos nossa missão – disse Fletcher com certo sarcasmo. – Aquele que não se
apresentar até a hora combinada será considerado um desertor e deixado para trás.
104
Passou em revista pela última vez, antes de ver seus soldados desaparecerem por
entre as ruelas das docas da capital.
— Muito bem, Rosa, imagino que queira ver seu pai e irmã. Só tenha cuidado
com o que vai falar sobre sua estada no Aliança - disse o capitão com um sorriso. – o
que ocorre no mar morre no mar.
Colleen devolveu o sorriso de cumplicidade entre dois companheiros de jornada.
Estacionada próximo às docas estava uma carruagem de cor avermelhada. Suas
grandes rodas de madeira seguravam uma cabine totalmente adornada com desenhos
prateados, além da rosa dos ventos em ouro, o símbolo da casa Northwind.
Ao avistar Colleen no porto, Melleen saltou de dentro da cabine e correu em
direção à sua irmã caçula. A jovem também fez o mesmo, largando sua pequena bolsa
de couro. As duas se abraçaram longamente. Melleen media com seus olhos experientes
as mudanças visíveis nela. Sabia estar mais queimada pelo sol e seus cabelos mais secos
e opacos do que de costume, mas seu sorriso certamente compensava todos esses
detalhes. De mãos dadas, as duas se dirigiram à carruagem que as aguardava, levando-as
de volta para casa.
A viagem pelas ruas da capital levou pouco mais de uma hora, e logo a
carruagem parou em frente aos portões da residência dos Northwind. Segurando a porta,
seu pai, com um largo sorriso,e trajando sua melhor túnica, estendeu a mão para ajudá-
la a descer. Colleen, agradavelmente surpresa, saltou do veículo. Revivendo um pouco
de seu jeito pueril, abraçou o Governador com bastante força. Ele a beijou na testa, para
em seguida ajudar Melleen a também descer. De braços dados com suas duas princesas,
Guinford se dirigiu para dentro de casa.
— Mandei os cozinheiros prepararem um excelente jantar em celebração a seu
retorno, minha filha. Não poupei despesas para que tudo estivesse perfeito para esta
noite.
O rosto de Colleen esmoreceu. Ela não desejava mais uma festa cheia de nobres
e convidados pretensiosos. Depois de tanto tempo fora, tudo o que queria era a
companhia da família. Notando-lhe a expressão de decepção, Guinford apressou-se em
eliminar sua aflição:
105
— Um jantar a três, minha pequena! Somente eu, você e Melleen.
Aliviada, Colleen se surpreendeu com decisão tão sensata e incomum do pai.
As horas que antecederam o jantar, Colleen preencheu em conversas com a irmã.
Isoladas no topo do penhasco próximo a casa, o seu local favorito, a filha do
Governador não poupou nenhum dos detalhes de sua estada no Aliança, rindo cada vez
que sua recatada irmã fazia expressões de espanto. Melleen mal podia acreditar nas
histórias contadas por Colleen, em especial as que davam conta do ataque e invasão do
navio orc pela embarcação de Fletcher.
— Mas nosso pai disse que era uma missão de mapeamento e que você estaria
segura.
— Ele não mentiu – disse Colleen com um sorriso. – Ele jamais teria me
deixado ir se soubesse o que aconteceria. Mas o Regente estava ciente disso ao me
colocar naquele navio.
— Irá dizer a ele?
— Não. Apesar de sua mudança, ele ainda me vê como uma menina indefesa.
Somente com o tempo ele irá perceber que eu cresci e posso me defender.
— A hora do jantar se aproxima, minha irmã. Devemos voltar para nos aprontar.
Apesar da insistência da irmã, Colleen se recusou a vestir qualquer um dos
inúmeros vestidos que esta lhe ofereceu. Em vez de babados e saias rodadas, ela se
apresentou à mesa usando calça de tecido leve, uma blusa folgada porém limpa, e o
casaco de inverno usado pelos marinheiros do Aliança. Quis ainda cobrir a cabeça com
um longo lenço vermelho, mas Melleen a convenceu de que tanta preocupação já era
um exagero. Em troca, ela prendeu seu cabelo à maneira antiga, em uma longa trança
cacheada e presa por uma fivela de madeira.
Um serviçal foi ao encontro das duas para avisar que o jantar seria servido em
breve e que o Governador já aguardava sentado à mesa. De mãos dadas, as irmãs
desceram as longas escadarias que levavam até o salão de jantar da família Northwind.
Como de costume, Guinford sentou-se à cabeceira da mesa, enquanto Melleen
assumia seu lugar à direita e Colleen à esquerda. O toque da sineta foi suficiente para
106
que, em minutos, um único serviçal se aproximasse da mesa carregando uma bandeja
fumegante, com uma linda posta de peixe assado, temperado com tomilho e ladeado por
batatas coradas. A filha caçula do Governador se serviu com avidez do prato, forçando
sua mente a se acostumar novamente com os bons modos abandonados à mesa. O peixe
se derretia na boca, que já havia se esquecido do sabor das iguarias de sua casa.
Sorrindo de boca cheia, olhava para o pai que, com muito gosto, via o quanto ela
sentira falta de seu lar. O silêncio dominava o salão até ser quebrado pela sempre atenta
Melleen:
— Colleen, por que não nos conta um pouco de sua viagem aos mares do norte?
Você me disse que lá é simplesmente lindo.
— Tem razão, minha irmã, apesar do frio intenso e do vento cortante, poucas
coisas são tão belas quanto a visão dos picos gelados de Galaark.
O Governador sabia o quanto aquelas águas eram perigosas, mas também
confiava plenamente nas habilidades do capitão Fletcher.
— E não tiveram nenhum problema por aquelas águas, minha filha? Os orcs
podem ser imprevisíveis.
Colleen sorriu e dissimulou sem muito esforço:
— Nenhum problema, meu pai. Foi uma viagem de mapeamento bem monótona,
a não ser por alguns mercadores que nos trouxeram notícias. Encontramos até um navio
de mercadores orcs, muito educados e solícitos. Estavam temerosos de serem atacados e
nós os escoltamos até aqui.
A sua ousadia em relatar tamanha mentira quase fez Melleen engasgar. Mas,
quando o pai se desse conta do real propósito do navio orc, ela já estaria distante
novamente.
A conversa, assim como o jantar, seguiu por algum tempo. Colleen narrava com
entusiasmo os seus dias a bordo do Aliança, escondendo as partes que seu pai
desaprovaria. A refeição já chegara à sobremesa quando ela despreocupadamente
perguntou.
107
— Mas me diga, meu pai, sabe me dizer por que o Regente está convocando os
capitães de Aldarian? Pelo tom da mensagem parecia urgente.
O Governador pigarreou. Ele evitara esse momento durante toda a noite, mas
sabia que uma hora ou outra chegaria. Aprumou a voz e, em tom conciliador, disse:
— O Regente tem uma nova missão para o capitão, minha querida.
— E que missão seria essa, meu pai – perguntou Colleen, curiosa sobre tanto
mistério.
Guinford olhou para os lados a fim de se certificar que não havia mais ninguém
na sala:
— Caçar navios, minha pequena. O Regente elaborou um plano para tentar
enfraquecer a Companhia de Al Azhir, pilhando seus navios.
Colleen sorriu. Finalmente ela estaria em uma aventura de verdade, caçando
traidores da coroa em vez de esperar ataques ocasionais.
— Se isso é certo, meu pai, devo me preparar, então. Mais do que nunca Fletcher
vai precisar de minha ajuda.
Guinford engoliu em seco e respirou fundo. Esse não era o momento para
fraquejar. Assumiu sua típica posição impositiva:
— Você não vai.
— O quê?
— Você me ouviu, Colleen? Você não vai. Uma coisa é estar em um navio
mapeando terras e escoltando mercadores; outra é sair pelo mundo caçando pessoas.
Colleen enrubesceu. O desespero bateu em seu coração e, numa reação quase
violenta, ela elevou o tom de voz:
— Você não pode me impedir de ir, meu pai! Os homens precisam de mim no
navio e não será agora que os deixarei para trás.
— Não diga bobagens, menina. Se eles precisam de você lá, eu preciso mais de
você a meu lado. Estamos à beira de uma guerra, Colleen, será que não compreende? Eu
não permitirei que você deixe essa casa para morrer no mar.
108
Colleen se levantou, golpeando a mesa e perdendo o controle.
— Você não mudou, não é? Continua me vendo como uma criança em seu colo.
Pois saiba que enfrentamos orcs no norte, e cá estou viva. Consegue me ver aqui, meu
pai?
Guinford se enfureceu. Ele acreditara que as semanas em alto-mar trariam à sua
filha um pouco de disciplina, mas em vez disso a haviam deixado ainda mais petulante.
— Quer dizer que, além de tudo, mentiu para mim? Espera sinceramente que a
deixe ir assim?
— Meu pai – Melleen interveio, tentando acalmar os ânimos -, por favor, se
acalmem e...
— Fique fora disso, você não irá proteger sua irmã dessa vez. Eu ainda sou pai
dela, e ela tem que me obedecer.
— Realmente acredita nisso? – reagiu Colleen com sarcasmo. – Me chama de
mentirosa, quando foi você o primeiro quem mentiu para mim. O que achou que eu
pretendia, indo para o mar? Que seria uma viagem de férias e depois voltaria para casa e
brincaria com minhas bonecas? Como me conhece pouco, meu pai. Realmente, seus
anos de dedicação a seu cargo lhe impediram de conhecer sua filha.
— Não fale assim comigo, menina! Eu exijo respeito.
— Vê por quem me trata? Uma menina que desejou nunca tivesse vindo, não é?
Uma menina que matou sua mulher e, agora, cospe no prato que comeu!
Guinford ergueu a mão, dando um forte tapa em seu rosto. Assustada, Mellen
pensou em acudir a irmã. Nem uma única lágrima escorreu do rosto de Colleen; ela se
limitou a reerguer o olhar para encarar o pai:
— Quer a outra face para descontar sua raiva?
Com as veias de sua testa pulsando, Guinford não conseguiu responder. Colleen
afastou a cadeira, deu-lhe as costas indo em direção à porta.
— Colleen, volte já aqui! Eu estou mandando.
Ela sequer se virou, andando em direção à saída com passadas firmes. Já
próxima da rua, ouviu Guinford gritar:
109
— Ouse sair por essa porta, Colleen, e...
Colleen sorriu, em um misto de raiva e descrença. Chegando a um metro da
porta, virou-se:
— E o quê? Vai mandar me prender agora, meu caro governador? - frisou o
título do pai, de forma a irritá-lo. Como de costume, ela buscava disfarçar sua raiva com
sorriso e sarcasmo. - E qual será seu próximo movimento se eu sair daqui? Bloquear o
porto? Perseguir o navio?
— Colleen, por favor, escute nosso pai. Deixe de tolice.
— Também está contra mim?
— Eu... – Melleen ficou sem palavras diante da acusação.
— Se cruzar essa porta, Colleen, eu juro por Ehleniel que você não será mais
bem-vinda aqui. Você estará à sua própria sorte, sem um lar para onde retornar.
A jovem ergueu seus pés e, com um golpe rápido, chutou as portas, fazendo-as
abrir.
— Acho que isso é um adeus, caro Governador. Não desejo sua herança, seu
nome ou qualquer coisa que venha de você. Aqui morre a menina que você ensinou a
odiá-lo.
Dizendo isso, saiu do aposento em direção à rua. Guinford se sentou em silêncio,
incapaz de esboçar qualquer reação. Melleen levantou-se de sua cadeira e correu para
fora, atrás da irmã. O Governador pôs as mãos na cabeça e, debruçado sobre a mesa,
chorou baixinho.
♥♠♥
Com a mão direita, Mellen segurava a barra de seu longo vestido, cuidando para
não tropeçar nas pedras desniveladas das ruas da capital. Mercadores, aldeões e
marinheiros a olhavam com estranheza, procurando entender o que faria uma nobre
correr pelas ruas de Northwind.
110
Ela alcançou a Praça da Rosa, um dos maiores centros comerciais de toda
Altrarian. Um mar de gente fluía de um lado para o outro, alimentado pelos gritos dos
comerciantes locais. Esgueirando-se pelos poucos espaços que conseguia galgar em
meio às pessoas, Melleen finalmente alcançou as docas, onde passou a perguntar a todos
onde o Aliança estava aportado.
A escuridão da noite e a luz das lanternas que se enfileiravam nos cais não
contribuíam muito para a sua busca. Num dado momento, ela parou um estivador que,
apesar de estranhar, lhe deu a informação que buscava.
Após procurar por longos minutos na direção que o homem havia apontado,
Melleen finalmente avistou, aportado em uma doca, um navio semelhante ao que
Colleen descrevera. Observou um homem de casaco negro e chapéu de aba larga na
proa da embarcação. Ela reconheceu-o como sendo o mesmo que estivera em sua casa e
levara Colleen para fazer parte de sua tripulação.
— Com licença...Capitão Fletcher, não é?
Fletcher voltou-se, fitando Melleen de cima a baixo, forçando a vista para
enxergar suas feições. Pulou da proa em direção ao cais, caindo a poucos metros da
jovem filha do governador.
— Você não é...
— Sim, sou – interrompeu Melleen antes que Fletcher revelasse sua posição. –
Onde está minha irmã?
— Rosa? Está ajudando os homens a carregar alguns mantimentos. Por quê?
— Preciso falar com Rosa, agora mesmo - ela disse, lembrando-se do nome de
batismo que Colleen recebera a bordo.
O capitão coçou o queixo, estranhando a situação. Afinal, Rosa havia retornado
há pouco do jantar com seu pai e se despedido da família.
— Ela está logo ali, minha jovem.
— Obrigada.
111
Melleen se dirigiu para onde Fletcher apontava, encontrando uma série de
marinheiros carregando caixas e barris. Logo, ela avistou um corpo esguio e, sem
hesitar, gritou:
— Colleen!
A maruja voltou-se assustada ao ouvir a voz de sua irmã. Largou a caixa que
carregava, correndo em sua direção e esbravejando:
— O que está fazendo aqui? E não me chame mais por esse nome – disse em um
sussurro.
— Desculpe, minha irmã, mas não podia deixar que partisse daquele jeito.
— Se veio como portadora das palavras do governador, esqueça; eu não vou
voltar.
— Não...eu não...
— Então o que veio fazer aqui? – disse Colleen rispidamente.
— Trazer isso para você. - A mais velha, tentando neutralizar a dor pela frieza
das palavras da irmã, estendeu sua mão fechada, abrindo-a em seguida para revelar um
pequeno medalhão no formato de uma rosa dos ventos. - Você esqueceu isso da última
vez que partiu. Quero que leve com você.
Sentimentos confusos de raiva, rancor e de alegria inundaram Collen, por ver
que sua irmã, apesar de tudo, não descuidara dela. Sorriu, fechando a mão da irmã e a
empurrando de volta.
— Sabe que não posso carregar mais isso, minha irmã, não faço mais parte desse
mundo.
— Não diga bobagens, Rosa, você sabe que nosso pai não quis dizer aquilo. Ele
apenas se ressente de não poder protegê-la, assim como não pôde proteger nossa mãe.
Não importa o que aconteça, em nossas veias sempre correrá o mesmo sangue. Este é
um símbolo para que nunca se esqueça disso.
Colleen não resistiu; abraçou a irmã, vertendo lágrimas.
— Eu jamais esqueceria isso, Mel.
112
Recomposta, secou as lágrimas e aceitou o presente. Pendurou a pequena
medalha no pescoço, colocando-a por dentro de suas roupas para não ser vista.
— Faça boa viagem, minha irmã, estarei aqui à sua espera quando voltar para
casa. Papai tem muito orgulho de você, só anda confuso e temeroso com tudo o que está
acontecendo.
Colleen sorriu uma última vez, subindo em direção ao navio que em minutos se
preparava para zarpar. Melleen aguardou pacientemente no porto, vendo as velas se
enfunarem e o Aliança partir. Minutos depois, o navio desapareceu e a filha do
Governador permaneceu com um estranho vazio no peito.
113
Capítulo 16 - Cúmplices Sombrios
Seis meses se passaram desde que Aldarian adotara a estratégia de caçar os
navios da Companhia de Al Azhir. Daquele dia em diante, o cenário político de todo o
hemisfério ocidental se alterou drasticamente, criando uma guerra não declarada entre
duas potências marítimas. A Companhia acusava Aldarian de empregar piratas para
prejudicar o comércio das nações de bem, usurpando aquilo que não lhe era de direito.
A ilha, por sua vez, se defendia, declarando que o fechamento injusto da
passagem para o Oriente fizera a maioria dos mercadores perder suas rotas de comércio
e, por consequência, muitos marinheiros ficarem sem emprego. Aldarian dizia que não
tinha como impedir que esses homens desesperados se reunissem em navios e tirassem
seu sustento pilhando aqueles que consideravam culpados por sua desgraça.
Em meio à troca de acusações e sem que nenhum dos lados resolvesse ceder, a
crise prejudicava ambas as nações, que tomavam medidas unilaterais para proteger seus
interesses.
Já Colleen não tinha por que se queixar dessa situação, uma vez que estava
conseguindo toda a aventura que poderia desejar. Capitão experiente, Fletcher sabia
exatamente como encontrar as vítimas corretas. Usando de artifícios de intimidação, o
capitão pilhava a maioria dos navios da Companhia sem disparar um único virote.
O tempo foi generoso com a maruja, uma vez que sua habilidade com o alfanje
crescia junto com sua capacidade de navegar e traçar rotas. Lentamente, Joshua
conquistou a confiança dela; como oficial navegador ensinou-lhe a operar o sextante, o
114
astrolábio e a bússola magnética; além de prever e mapear as correntes, assim como
aportar de forma segura.
Quando suas tarefas já estavam cumpridas, Colleen preferia seguir seu capitão a
descansar. Atenta, ela observava a forma como ele ordenava seus marujos e como
mediava situações conflitantes, aprendendo como agir e se tornar uma boa capitã, um
dia.
Guinford, por sua vez, se tornou mais fechado e arredio do que antes. Seu foco
era somente o trabalho, deixando Melleen cada dia mais solitária e impotente em
relação a ele. Sempre que possível, ela buscava noticias sobre os ataques e o Aliança, a
fim de mostrar ao Governador que sua filha caçula estava se saindo bem. Tinha os livros
como sua única companhia, e mesmo estes já não a alegravam como antes.
Do outro lado do grande oceano bravio, Karim se encontrava com seu associado
a fim de discutir a crise e tomar providências sobre o acontecido. Sentado a uma mesa
de jantar de jacarandá, o nobre Patriarca bebia impassível uma xícara de café, enquanto
seu sócio esbravejava.
— Seis meses... Você disse que levaria seis meses até que a economia estivesse
abalada e meu irmão fosse obrigado a renunciar em favor de meu sobrinho. Passado um
ano, nada aconteceu.
O Patriarca bebeu mais um gole de café, deixando que o calor da bebida
preparasse sua garganta para falar:
— E você por acaso acha que isso tem sido motivo de alegria para mim, meu
caro? Dezenas de meus navios já pereceram na mão de piratas oportunistas. Milhares e
milhares de peças de ouro perdidas para esses bandidos. Faz ideia do quanto isso vem
prejudicando a Companhia?
John se sentou com dificuldade, apoiando seu braço na mesa para se equilibrar.
Apesar do constante tratamento para aplacar a dor, suas pernas doíam muito naquela
manhã, deixando-o particularmente mal-humorado
— E o que faremos, meu caro Patriarca? Tem mais alguma brilhante ideia? Se
Allumi não assumir o trono, não terei condições de manipulá-lo para que siga minhas
orientações.
115
— Ele sempre gostou muito de você, não é? O tio doente que sempre lhe
mandou agrados para conquistar seu afeto. Até mesmo uma vaga na Escola de Magia de
Dirai você lhe conseguiu.
— Sim, anos e anos bajulando aquele moleque, convencendo-o de que seu pai,
diferente de mim, não se importa com seu sucesso. Por cinco anos consegui mantê-lo
isolado lá, manipulando as cartas que ele recebe e envia, criando o cenário perfeito para
que me apoiasse quando seu pai caísse em desgraça. E agora, graças à sua inabilidade,
ele se formará em poucos meses, e a farsa virá a tona.
— Não se preocupe com esse garoto, meu amigo; eu tenho algo muito melhor,
um trunfo que irá mudar o equilíbrio dessa guerra. Entre!
Ao dizer isso, um homem esguio entrou na sala. Um casaco negro cobria-lhe
todo o corpo. Tinha a cabeça raspada, e John notou algumas estranhas manchas negras
em seu pescoço.
— E quem é você – perguntou intrigado.
— Meu nome é Jarel, e sou um representante das Forças Sombrias.
— Forças Sombrias? Isso é algum tipo de brincadeira? As Forças Sombrias
foram banidas de Mirr há séculos.
O homem sorriu com a observação. Olhou para John e questionou:
— Esse é o enfermo de que nos falou?
— Sim – respondeu o Patriarca –, vinte anos de sofrimento sem descanso.
O representante da Força se aproximou de John, segurou em seu braço e fechou
os olhos por um breve instante. Este se assustou à medida que a região onde era tocado
se aquecia lentamente.
— Seu sangue é fraco, diluído, doente. Isso explica suas dores e sua fadiga
constante. Mas podemos dar um jeito nisso.
Karim interrompeu:
— Gostaria de sua cura, meu amigo, para obter a força e a saúde que seu irmão
sempre esfregou na sua cara.? Quem precisa de um moleque como fantoche, se você
mesmo, pessoalmente, poderá assumir o trono de Aldarian.
116
Os olhos de John brilharam, como se a cura que ele perseguia há anos estivesse
ao alcance de suas mãos. Ele assentiu, enquanto Jarel prosseguia:
— Seu sangue será trocado, substituído por algo que lhe dará um vigor como
você jamais experimentou. Haverá algumas consequências – disse, mostrando a mancha
negra que pulsava sob sua pele –, apenas uma pequena inconveniência frente aos
benefícios.
Emendou rapidamente, antes que John refletisse:
— Irei providenciar os preparativos para realizarmos o ritual. Em três dias
viremos buscá-lo.
Enquanto o homem saía, Karim prosseguiu com seu plano:
— Está tudo pronto para a queda de nosso desafeto, meu bom amigo. Já ordenei
que meus melhores navios retornem para ser reparados e equipados e, assim que
estiverem prontos, os encherei de mercenários sedentos pelo butim. Meus agentes já
estão espalhados pelos reinos de Ixian, reunindo interessados em se unir a nós. Eles
servirão de isca, atacando Aldarian de forma suicida.
Ao vislumbrar o plano e perceber a sua engenhosidade, John comentou:
— Então eles atacarão e, quando as defesas do reino estiverem enfraquecidas,
ocupadas em repelir a força de invasão...
— Nosso verdadeiro exército chegará. Logo você assumirá seu reinado,
portando um documento de aliança de Azhir e a abertura do canal. Será recebido como
herói pela população, que só viu seu irmão trazer a fome e a guerra até suas casas.
117
Capítulo 17 - A Perda do “Aliança”
Apesar da insistência de Lorde Joseph para que Fletcher permanecesse com a
esquadra de defesa, este o dissuadiu de que se alguém deveria ser enviado para
averiguar perigo em outras águas, esse alguém seria ele. O Regente estava ciente de que
havia algo de errado com o plano de Karim, porém todos os seus informantes diziam a
mesma coisa: uma grande esquadra se reunia ao sul de Azhir.
Havia boatos inclusive de que o próprio Patriarca se dirigira para a região,
boatos esses desmentidos por John Hattcliff, irmão do Regente e embaixador em Azhir.
A teimosia de Fletcher em seguir seus instintos irritara o Regente, mas ele acabou
concordando. Por alguma razão, confiava no faro de navegador de seu melhor capitão.
— Vela! Vela! - soou a voz do vigia de gávea do Aliança que, aos gritos,
apontava para algum ponto no mar.
Imediatamente Fletcher correu até a proa, sacou sua luneta de bronze e a
apontou para a direção indicada. A apenas alguns quilômetros de distância encontrava-
se o que parecia ser um pequeno navio mercante vindo em sua direção Seu casario de
popa contava com dois pavimentos e o convés parecia vazio. O navio não exibia
nenhuma bandeira, o que deixou o capitão apreensivo. Aquele poderia ser apenas mais
um navio mercante, desgarrado de sua esquadra, mas Fletcher sabia que mesmo um
desses dificilmente não manteria uma bandeira hasteada. Além disso, eles estavam
muito ao sul, distante de qualquer rota comercial conhecida.
118
— Muito bem, homens, quero este navio se movendo a todo pano em direção
àquela embarcação. Ajustem as vergas e enfunem as velas de traquete, mezena e central.
Posso estar enganado, mas se aquele navio for algum tipo de batedor, levaremos
vantagem em capturá-lo.
A aproximação do navio foi rápida; não aparentava tentar escapar. Estranhando
tal atitude e a fim de se prevenir, o capitão gritou:
— Para seus postos, homens! Preparem suas armas e os ganchos de abordagem.
Se eles tentarem algum truque, estaremos preparados.
Logo, os marinheiros de Fletcher passaram a correr pelo convés. Alguns
posicionavam as balistas, caso o alvo oferecesse resistência, enquanto outros ajustavam
cordas e vergas para capturarem os melhores ventos.
Colleen tratou de preparar seu alfanje e se posicionar para uma eventual
abordagem. Como haviam sido instruídos pelo capitão, os homens deveriam parecer os
mais assustadores e selvagens - uma tática para desencorajar a vítima a um possível
confronto.
Com o vento a favor, não tardou para que o navio estivesse ao alcance de um tiro
de balista. Antes de atirar para alertar seu oponente, Fletcher teve uma surpresa ao
observar mais uma vez o convés inimigo: duas figuras atípicas em um ambiente hostil
como aquele. Trajados em tecidos finos e bem cortados, encontrava-se um casal que
parecia apavorado com o que o futuro lhes reservava. O homem vestia uma bata branca
adornada por faixas vermelhas, enquanto a jovem a seu lado estava recoberta por um
manto igualmente branco e um longo lenço a cobrir seu rosto - com exceção dos olhos.
Seriam talvez ricos mercadores ou mesmo nobres vindos da capital de Azhir. Era
visível para o capitão que aquele não poderia ser um navio batedor como supunha. Não
tardou para que a ambição de Fletcher vislumbrasse joias e gemas preciosas, além de
bens de grande valor nos mercados de Tirana. Também notou fardos de mercadorias
sobre o convés cobertos por uma lona espessa. Tal sinal só poderia indicar que os
porões deveriam estar muito cheios para comportar mais carga. Mesmo ciente de sua
missão, ele não poderia deixar uma presa tão fácil escapar. Assim, ordenou a seus
homens que prosseguissem o ataque.
119
O timoneiro manobrou o Aliança de modo a ficar lado a lado com o navio alvo.
Quando ambas as naus estavam a poucos metros de distância, ganchos foram
arremessados nas laterais do navio inimigo, prendendo-o e dando início à abordagem.
Não demorou para que o casal erguesse as mãos, rendendo-se aos piratas que invadiam
sua embarcação.
Em meio a seus afazeres, Colleen reparou de forma despretensiosa na jovem
dama envolta em tecidos brancos. Suas roupas claramente indicavam uma alta posição
social, mas havia algo de errado que Colleen não conseguia precisar. A postura dela,
ligeiramente curvada, e seu caminhar vacilante e pouco elegante; a roupa colocada de
forma displicente, com presilhas e nós feitos às pressas.
Eis que um virote de besta cortou o céu, atingindo Fletcher em sua perna
esquerda. Debaixo das lonas, uma centena de homens surgiram, brandindo armas e
disparando suas bestas. Os virotes voavam pelo ar, atingindo a tripulação do Aliança de
surpresa, tombando alguns homens e ferindo tantos outros. Em instantes, o som do aço
dos alfanjes se chocando se fez presente, à medida que marinheiros de ambos os lados
saltavam de um navio para o outro em busca de sangue.
Ainda aturdido com o disparo, Fletcher sacou sua arma instintivamente, a ponto
de aparar um golpe dado pelo distinto cavalheiro de turbante. Sua companheira também
já arrancara as finas vestes, revelando-se uma jovem atlética de cabelos vermelhos. De
uma bainha presa à perna, ela sacou suas adagas e saltou para dentro do convés do
Aliança.
O primeiro marinheiros a recepcionar a mulher foi atingido com um golpe
certeiro na garganta. Ao ter a veia cortada, tombou como um saco de areia. Em seguida,
um segundo soldado ofereceu resistência, mas os golpes ágeis dela rapidamente
puseram um fim à luta.
Colleen, por sua vez, correu contra a nova ameaça, golpeando e se esquivando
da mesma forma com que vinha treinando há meses. Logo, ambas as mulheres trocavam
golpes, com a adversária buscando se estabelecer na luta.
As coisas para Fletcher estavam igualmente difíceis, uma vez que a força física
de seu oponente se sobrepunha em muito a sua própria constituição. O capitão do navio
120
inimigo golpeou-o de cima a baixo, visando o ombro dele que, ferido devido ao virote
em sua perna, desviou com dificuldade.
Apesar do rígido treinamento e dos meses de combate, não tardou para que a
tripulação do Aliança fosse sendo reduzida rapidamente. Em seus ataques anteriores, os
homens de Aldarian lidavam com alguns poucos marinheiros resistentes e não com um
exército armado e a postos.
A batalha se estendeu por poucos minutos, pois logo o capitão se viu cercado por
todos os lados, sendo que, além de Colleen, menos de um terço de sua tripulação
restara: Mccoy, Lewis, Haybale e até mesmo o velho mestre Alfred haviam perecido.
Confrontado com o massacre e acreditando nas leis que regem o mar, o capitão se
rendeu. Com ódio, ele arremessou seu alfanje ao chão, ordenando que seus homens
fizessem o mesmo.
Colleen imediatamente obedeceu, sentindo a lâmina fria de sua oponente
encostar-lhe a garganta. Fletcher pediu:
— Poupem meus homens.
A tripulação do navio urrou em celebração, brandindo suas espadas e lançando
impropérios a seus inimigos agora derrotados. O combate fora sangrento e, apesar de
breve, deixou muitas vítimas de ambos os lados. O capitão implorou para que seus
feridos fossem atendidos como ordenavam as leis de guerra entre cavalheiros.
— Levem todos os prisioneiros para o porão – disse o capitão. - Este pequeno
navio irá agradar ao Patriarca.
Rendidos e amarrados, os sobreviventes do Aliança observavam, impotentes, seu
navio ser tomado.
♥♠♥
O combate se encerrara havia poucas horas e logo a embarcação estava cercada
por uma visão aterradora. Por todos os lados, até onde a vista podia alcançar, navios cor
de piche, cujas velas negras recobriam o céu do cair da tarde. Fletcher, com a perna
121
bastante ferida pelo virote, debatia-se em suas cordas em uma tentativa inútil de se
desvencilhar delas. Aquela era a mais formidável força de ataque que ele já presenciara.
Nos conveses dos navios, centenas de homens em armaduras negras se
enfileiravam e afiavam suas armas para a mais ousada invasão de suas carreiras.
O capitão conhecia bem o potencial da Força Sombria; sabia, sobretudo, que eles
raramente costumavam fazer prisioneiros. Teve o pensamento interrompido pela voz
desagradável de seu oponente:
— Gostei de sua embarcação, meu caro. É ágil e bastante rápida, muito melhor
do que aquela banheira que somos obrigados a usar. Ficarei com ela. – Ele segurou o
queixo de Fletcher, em sinal de deboche. — Mas não se preocupe, pois como bom
marinheiro serei o último a querer desrespeitar as tradições do mar.
Dizendo isso, ele chamou quatro de seus mais fortes marinheiros, soltando
Fletcher e o arrastando para bordo de seu antigo navio.
— Espero que goste de seu novo navio, capitão! Ele lhe será de grande valia.
— Não! – gritou Colleen em sinal de desespero. – Deixem ele em paz.
A aspirante se debatia e protestava enquanto via seu tutor ser amarrado ao
mastro central do navio inimigo. Só se calou quando o próprio capitão inimigo
esmurrou-lhe o estômago, retirando-lhe o ar.
— Está certo de que isso é realmente necessário, Karnast? Já temos o navio e a
carga – disse a jovem ruiva que o acompanhava
— E libertá-lo para que corra e avise sobre a invasão... Não, minha cara, os
outros serão vendidos como escravos, mas, para o capitão, nada.
Logo, o manto da noite recobriu o oceano, e a ausência da lua mais brilhante fez
com que os navios à volta desaparecessem na penumbra. Os cordames que mantinham
os dois navios presos foram cortados e o Aliança passou a se afastar do grande navio.
Colleen e os homens de Fletcher estavam revoltados com a atitude de deixarem
seu capitão à deriva, sem condições de manobrar seu navio e sair de lá. Porém, esse foi
apenas o primeiro passo da ação de Karnast.
122
Um poderoso clarão surgiu no horizonte, junto com um estrondo. Uma
gigantesca bola de fogo se elevou ao céu, e logo o navio inimigo se consumia em
chamas.
Apesar da distância, distinguia-se o vulto amarrado ao mastro se debatendo em
meio às chamas. A fumaça recobriu todo o ambiente, formando uma espessa nuvem de
cor alaranjada.
— Seu porco... Eu irei me vingar de você! Canalha, maldito! - Colleen berrava
nos intervalos de seus soluços.
Todos, incluindo os marinheiros de Karnast, assistiam horrorizados à cena ao
longe.
— Dessa vez você foi longe demais – gritou a jovem ruiva, apontando para o
capitão. – Eu não irei permitir mais isso. Está me ouvindo?
Karnast sacou seu alfanje, apontando para a garganta dela, enquanto outros de
seus marinheiros rendiam os demais homens que o ajudaram a tomar o navio.
— O que significa isso, Karnast? Abaixe essa lâmina.
— Achou realmente que iríamos dividir nosso lucro com vocês, escravos?
Quanta ingenuidade, minha cara. Homens, levem todos para baixo e coloquem-nos a
ferros. Devemos seguir os navios da Força bem de perto. Em breve teremos mais ouro
do que jamais poderemos gastar.
123
Capítulo 18 - O Castelo Sitiado
Guinford se revirava na cama. Além do calor que o mar trazia para a cidade,
algo o incomodava profundamente. Os planos que Aldarian vinha executando nos
últimos meses estavam causando algum efeito, e as pilhagens feitas pelos corsários de
Tirana incomodavam a Companhia. Mas, por que Azhir estaria preparando uma invasão
que não poderia vencer? As defesas da Baía dos Sinos já haviam lidado com forças
maiores durante a época da independência de Aldarian e não seriam alguns navios
mercenários que iriam passar pelos fortes que guardavam sua entrada.
Sentado à mesa de seu escritório, debruçado sobre um conjunto de mapas, o
Governador buscava calcular o provável ponto de impacto entre as forças invasoras e a
defesa de Aldarian.
John Hattcliff retornara à ilha havia pouco mais de dois dias, trazendo os últimos
informes dos agentes de Aldarian infiltrados em Ixian. A força organizada pelo
Patriarca deveria chegar em quatro ou cinco dias, dando a Guinford tempo para
organizar as defesas da capital. Era improvável que os invasores sequer chegassem a
penetrar a baía, mas ele tinha de estar preparado.
Porém, nenhum plano, nenhum relatório foi suficiente para preparar o
Governador para o que estava por vir.
O silêncio da noite foi quebrado por um som metálico, um estrondo grave que se
repetia e ecoava por todas as paredes do castelo.
— Sinos – pensou Guinford, correndo para a janela da sala de reunião.
124
A visão que o general de Aldarian teve nem mesmo um pesadelo poderia
superar. Aportados por toda a Baia dos Sinos, havia dezenas de navios negros. De seu
interior, legiões de homens em armaduras igualmente sombrias desembarcavam na
cidade, enquanto os poucos guardas que faziam a vigília noturna se organizavam para se
defender.
— Por Ehleniel – praguejou Guinford, incrédulo –, por que os sinos não soaram
antes?
A Baía dos Sinos, principal porta de entrada do reino para o mar, possuía esse
curioso nome devido a seu engenhoso sistema de defesa. Uma vez que a geografia -
extensa e de baixa visibilidade - não contribuía para sua defesa, os engenheiros de
Sestan criaram um sistema de alarme que avisaria a cidade até mesmo horas antes que
qualquer real ameaça penetrasse suas fortificações.
Ao longo da costa da baía, distantes umas das outras em poucos quilômetros,
foram construídas torres de pedra que, além de um alojamento completo em sua base,
contava com um enorme sino de bronze em seu topo. Semanalmente, a dupla de guardas
responsável pela vigilância constante da torre era substituída por outra. Caso qualquer
uma das torres detectasse algo suspeito, deveria soar seu sino em intervalos regulares, a
fim de informar uma suspeita ou uma invasão. A torre mais próxima deveria reproduzir
o sinal para a torre seguinte, até que este alcançasse a capital e a preparasse para o pior.
Não foi o que aconteceu naquela noite. O Governador dirigiu-se aos aposentos
reais para certificar-se da segurança do Regente. Ele teria de confiar em seus regimentos
na cidade para bloquear as ruas e defender o perímetro até que Joseph e sua família
pudessem ser protegidos.
Enquanto corria pelos corredores vazios do palácio, Guinford se perguntava o
que poderia ter acontecido de errado com as torres.
Eles foram comprados.
Num assombro, concluiu que o mal que agora se abatia sobre a cidade já havia
criado raízes há mais tempo.
As peças se encaixavam como precisão: o desaparecimento dos documentos, o
incêndio da Real Escola Naval e, agora, a falha no sistema de alarme. Os guardas
125
haviam sido comprados; estava claro que havia alguém dentro do reino conspirando por
essa noite.
Finalmente, ele virou o corredor central, avistando a porta do dormitório real: no
chão, arrancada das paredes ainda com suas dobradiças. Havia invasores no castelo,
inimigos infiltrados antes mesmo do ataque. Guinford sacou sua espada, correndo em
direção ao vão. Quando apenas alguns passos o separavam de seu destino, um grupo de
homens em mantos negros saiu por entre a porta, segurando pelos braços duas figuras: o
Regente mantinha um semblante amortecido, contrastando com a serenidade de sua
amada rainha.
Ele estava pronto para exercer a função para a qual treinara por toda a sua vida:
defender seu senhor até a morte. Porém nenhum treinamento o havia preparado para a
visão que se apresentava à sua frente. Em pé, de forma triunfante, encontrava-se John
Hattcliff,, o conspirador que tramara a queda da cidade e agora se revelava. Guinford se
preparou para o combate: degolaria aqueles que ousavam levar seu Regente daquela
forma. Entretanto, um som ainda mais preocupante do que as espadas e portas do
castelo sendo derrubadas o alcançou. Era um grito feminino, uma voz implorando por
socorro, a voz de sua filha.
O coração de Guinford se dividiu entre o dever e o sangue, entre a honra e o
amor. Impedir seu Regente de ser levado prisioneiro ou socorrer sua filha em perigo?
Os olhos de Joseph e sua expressão triste foram mais eloquentes do que sua boca
silenciosa. Os lábios dele formaram uma última palavra antes de ser arrastado pelos
corredores escuros do palácio:
— Vá!
Guinford apertou o cabo da espada, enquanto dava as costas para seu monarca.
O quarto de Melleen ficava a apenas algumas dezenas de metros dali e ele sabia que não
haveria tempo para cumprir seu dever. Aquela seria a última vez que ele veria aquele a
quem jurara proteger. Um homem que pereceria por amar demais seu povo e sua esposa
e, mesmo em sua queda, preservava o bem mais precioso de toda Aldarian: sua família.
126
Deitada em seu leito, Melleen esperava um sono que não vinha. Seis meses
haviam se passado desde que sua irmã saíra de casa em um rompante de fúria. Desde
então, nenhuma nova carta havia chegado a suas mãos. Seu pai seguia apático e
nervoso, descontando em seus homens e nela mesmo as frustrações diante da
impotência de ajudar seu Regente.
Diariamente chegavam ao palácio notícias de pequenas rebeliões e revoltas
populares. O povo, faminto e desolado pela crise econômica, pedia a abdicação do
Regente como uma forma de tentar recuperar o acordo com a Companhia que sustentara
os alicerces de Aldarian durante tantos anos. Mais de uma vez, agitadores foram presos
por incitar a revolta nas massas, convencendo o povo de que a crise poderia ser
resolvida de maneira rápida caso o Regente abrisse mão de seu ego inflamado.
Com a intensificação da crise, o Regente decidiu por hospedar Guinford e sua
filha no castelo. Conspiradores pelo reino poderiam tentar matá-los, e ele considerou
que lá estariam mais seguros.
A vista da cidade, das janelas dos aposentos de hóspedes era verdadeiramente
esplendorosa e fazia Melleen se dar conta da extensão da responsabilidade que seu pai
tinha com essa gente. Essa crise o irritava visivelmente; ele desejaria pegar o Patriarca
pelo pescoço e torcê-lo até arrancar a última gota de sua arrogância.
Quando finalmente cochilou e a mente se preparava para alcançar o mundo dos
sonhos, a filha do Governador ouviu um forte barulho que parecia vir do corredor.
Dezenas de passos corriam no pavimento inferior. Melleen levantou-se de sobressalto,
vestiu o robe de seda, para só então notar a luz amarelada que emanava da janela à sua
esquerda. O terror tomou-lhe conta do coração: onde antes havia apenas lampiões,
agora se espalhavam labaredas. De algum ponto na Baía dos Sinos, bolas de fogo
gigantescas voavam cortando o véu da noite e explodindo contra as construções da
cidade. Northwind ardia, enquanto algumas centenas de vultos negros caminhavam por
entre as ruas apertadas da cidade.
Um estrondo às costas fez com que o coração viesse à boca. A porta de seu
quarto estava no chão e à sua frente erguia-se um homem corpulento. Ele vestia uma
armadura de couro completamente negra; sobre a testa tinha amarrada uma faixa da
mesma cor. Os olhos acinzentados dele encaravam seu corpo esbelto, favorecido pelas
127
vestes delicadas usadas para dormir. Sem uma palavra, o agressor saltou em sua direção,
agarrando-a pelo ombro. Ela gritou. O homem a jogou na cama, rasgou seu robe e a
estapeou, para que se calasse.
Melleen se debatia enquanto o homem a prendia, revelando a pele alva dela e
forçando-lhe beijos no pescoço e rosto. Suas intenções eram evidentes, e ela não parou
de se debater e lutar. Repentinamente, uma mão agarrou os cabelos de seu agressor,
enquanto outra cortava-lhe a garganta com uma longa adaga. No cabo manchado de
sangue, a pequena rosa dos ventos moldada em ouro.
Guinford arrancou o corpo do agressor de cima dela, arremessando-o em um
canto. Aterrada, Mellen abraçou o pai, liberando as lágrimas que contivera nos últimos
minutos.
— O que está acontecendo?
— A cidade foi invadida, minha filha, e já há homens tomando o castelo. Preciso
tirá-la daqui imediatamente.
— Mas, e o Regente? Onde ele está?
Guinford silenciou. Não havia tempo para respostas. De mãos dadas, eles
correram por entre os corredores e passagens do castelo.
Ele abria caminho, enquanto presenciava horrorizado os corpos de vários de seus
homens caídos no chão. O castelo tomado significava que a cidade havia também
capitulado. Seria apenas uma questão de tempo até que ele e sua filha fossem
encontrados; uma vez presos, ele não teria como lutar. Após longos minutos, chegaram
à grande escadaria que dava para o saguão central do palácio.
O mármore, antes branco, estava manchado com o sangue de inocentes e com a
destruição trazida naquela noite. Ao colocar os pés no último degrau, três homens se
interpuseram entre ele e a saída. Rapidamente, o Governador sacou sua espada. Ele já
havia lutado com mais de um homem antes e não seriam três mercenários sem
treinamento que o parariam. Logo, outros quatro homens surgiram à sua esquerda e
mais dois à sua direita.
O seu pai sempre lhe dissera que era melhor morrer jovem, banhado em sangue e
glória do que velho, banhado em suor e urina, em uma cama. Ele estava disposto a dar a
128
vida por seu reino, não fosse um pequeno detalhe nos braços: sua filha seria condenada
caso desejasse lutar. Um dos homens em uma armadura negra anunciou:
— Largue a arma e serão poupados. Lute e será morto.
— Quem me garante que cumprirá sua palavra? – perguntou Guinford
impaciente.
— Somos mercenários, meu caro Governador, e não assassinos - respondeu o
homem, expondo os dentes num sorriso forçado. - Não temos interesse em matá-lo.
Também não queremos a menina, ela pode ir com você.
Guinford ponderou: era claro que o castelo estava tomado e nada poderia fazer
por seu Regente se caísse morto no chão.
— Cessem o ataque, poupem meus homens, e eu me entrego. - As palavras
saíram com profundo amargor de seus lábios.
O mercenário fez um leve sinal com a cabeça, dando a ordem a seus
subordinados que imediatamente interromperam o ataque. Guinford viu-se obrigado a
arremessar sua espada no chão. Rendidos, ele e Melleen foram levados para o salão de
reuniões, onde o novo Regente decidiria o que fazer com eles.
Perdoe-me, meu senhor, mas fui incapaz de defender sua casa, Guinford se
recriminou, enquanto caminhava.
129
Capítulo 19 - A Queda de um Reino
A ação dos invasores fora metódica e implacável. Muitos dos navios que
deveriam servir como defesa à entrada da grande Baía dos Sinos haviam sido
capturados em armadilhas, e os poucos que restaram não conseguiram resistir à força da
frota sombria. Os sinos de alerta, os mesmos que davam nome à baía, foram sabotados
nos dias que antecederam a invasão, numa ação conjunta que certamente envolvia
pessoas infiltradas dentro da própria capital.
O desembarque em Northwind provocara uma batalha sem precedentes pelas
ruas estreitas da capital. Das docas da cidade, passando pela grandiosa praça do
mercado e subindo a colina até o palácio do governo, dezenas de corpos pereciam de
ambos os lados. Assustada, a população correu para suas casas, em busca de segurança.
O Regente foi arrastado pelos corredores do palácio até uma carruagem que os
aguardava na porta. Sua amada consorte o acompanhava, porém com os lábios selados
por uma faixa e as mãos amarradas para que não tentasse usar nenhuma de suas magias.
Os cavalos relincharam ao partir do aparato, levando a família real em direção ao porto
da cidade.
Olhando pela janela, tudo o que Joseph via era caos e destruição. Suas mãos
encontraram as da esposa, que o confortava na certeza de que ao menos estariam juntos
no exílio.
Ao alcançar as docas de Northwind, o casal real foi rapidamente transferido para
um dos navios aportados. De tamanho médio, a embarcação possuía três mastros, mas
130
nenhuma bandeira para identificá-lo. Passados alguns minutos, foram colocados em
uma sala, um de frente para o outro.
O olhar de Joseph Hattcliff para sua esposa - profundo e desesperado - era
acalmado pela expressão sempre conciliadora de Sarah. Seu reino e sua casa caíam, mas
sua preocupação era apenas com a mulher que amava. Em seu íntimo, o Regente sabia
que Guinford não teria sido tolo o bastante a ponto de lutar uma batalha que não
pudesse vencer. Rezava a Arkânis, deusa da sabedoria, que ele e sua afilhada Melleen
estivessem bem.
A ausência de uma tentativa de resgate convencia o Regente de que seus homens
de maior confiança deveriam estar mortos. Faltava pouco para o nascer do sol, quando o
som dos sinos da cidade voltou a soar. Era o sinal de que a capital estava tomada.
Minutos depois, uma figura esperada pelo Regente entrou no aposento. Sua pose
imponente e o ar arrogante contaminavam toda a sala, enquanto os mercenários ali
presentes prestavam-lhe reverências. A túnica branca impecavelmente limpa parecia
pronta para uma festa particular. Os botões dourados, abotoados, combinavam seu
brilho com a lustrosa bota de cor negra. O turbante branco adornava a cabeça que
assumira há pouco mais de um ano o título de Patriarca de Azhir. Karim adentrou o
recinto, triunfante.
Amarrado a uma cadeira, o Regente se debateu, olhos transbordando de ódio e
músculos tensionados de raiva. Ouviu-se um forte estalo: a cadeira se partira. Joseph
pulou para cima de seu desafeto, mas foi contido a tempo por quatro homens que
estavam a postos.
- Não foi essa a recepção que lhe dei em minha casa, meu caro - Karim disse em
tom sarcástico, passado o susto inicial. - Não acha que eu merecia um tratamento um
pouco mais polido de sua parte?
O Regente foi colocado de pé, seguro pelos braços. Karim se aproximou dele,
arrancando-lhe a mordaça da boca.
— Canalha – berrava o Regente, incontido em sua fúria –, como ousa? O que
pensa que vai ganhar com isso? Você não pode e...
131
Karim sorriu; em seguida, deu um murro no rosto de seu desafeto. O chapéu
tricorne azul de Joseph rolou pelo chão, enquanto um pequeno filete de sangue escorria
por sua boca.
— Eu já estou tendo o que queria, meu senhor – disse o homem, balançando seu
punho após o soco. - Ver você subjugado e humilhado perante meus pés. Seu povo, no
entanto, ganhará a reabertura da passagem assim que souber o quanto seu bravo Regente
os deixou à própria sorte. Seu sucessor trará um acordo vitorioso a Aldarian, e todos
poderemos voltar a viver nossas vidas, exceto você.
— Que loucura está dizendo? O que quer dizer com isso?
A resposta do Regente surgiu na porta, na figura de seu irmão, vestido com um
sobretudo azul, cor da casa real. No rosto mais corado, seus olhos negros eram
complementados por um longo cavanhaque da mesma cor, enquanto longas costeletas
sobressaíam das laterais da cabeça. A respiração ofegante desaparecera. O homem
andava reto, de forma firme, sem a necessidade de uma bengala.
Atônito, Joseph não conseguia compreender o que estava acontecendo.
— Sua perna...Ela está boa?
— Sim, meu caro irmão, e não foi graças a você! Olhe para mim agora! Não
tenho mais dores, não me sinto mais cansado, estou melhor do que você jamais estará.
— Mas... Por quê? O que foi que eu lhe fiz para você fazer isso?
— Ainda tem a coragem de perguntar? Como acha que me senti todos esses
anos? - O rancor era visível na voz de John Hatcliff.
— Do que está falando? Eu lhe dei uma posição de respeito. Uma missão vital
para a manutenção de nossa casa e dinastia. Era um trabalho digno.
— Digno com certeza – John retrucou com sarcasmo –, mas não de um monarca,
de alguém com o sangue real. Era você quem deveria ter passado anos naquela terra
esquecida. Você me removeu para lá, meu bom irmão, essa é a verdade. Era eu quem
deveria governar sobre Aldarian.
— Era o desejo de nosso pai, John. Você era novo, e havia sua doença.
132
— Doença cuja cura nunca foi encontrada? Conveniente, não acha? Você nunca
foi filho de nossos pais. É um bastardo, filho de uma criada imunda. Não tinha direito a
usar a coroa.
Nunca o Regente ouvira seu irmão falar daquele jeito; reconhecia palavras de
Karim na fala de John.
— E por acaso alguma vez eu a usei, John? – disse Joseph olhando para seu
velho chapéu que agora jazia no chão. Eu desejava apenas o que era melhor para nós,
para todos nós.
— Você teve a melhor educação, os melhores tutores, as melhores chances. Meu
pai – disse John enfatizando essa palavra – preferia conviver com um filho bastardo do
que com alguém de sua carne e sangue. Mas não se preocupe, meu bom irmão, não lhe
trarei a morte como alívio. Quero que apodreça em um lugar distante, que sinta o que eu
senti. - Dizendo isso, John se retirou do aposento.
Karim sorriu, andando novamente em círculos, enquanto falava.
— Ele é tão influenciável, não é mesmo? Bastou alguns anos de convívio para
fazer com que se sentisse um idiota em seu cargo diplomático.
Caminhou até Sarah, que mantinha um semblante sempre sereno.
— E quanto a você? – Passou a mão de leve em seu rosto. – Eu poderia levá-la
de volta e colocá-la a ferros como você merece, mas acho que não. Foi você quem
escolheu a ele em meu lugar e pagará por isso.
Karim ficou de frente para ela, olhando fixamente em seus olhos. Deu-lhe um
carinhoso beijo na testa e disse baixinho:
— Adeus!
Vitrificado, o olhar de Sarah fixou pela última vez nos olhos esverdeados de seu
verdadeiro amor. Um pequeno filete de cor vermelha manchou seu robe de seda,
enquanto a mordaça em seus lábios a impediu de gritar. Karim torceu a faca em sua
barriga, arrancando da rainha um último espasmo antes de cair morta no chão.
— Não! - ecoou o grito dolorido e desesperado do Regente.
133
As lágrimas preencheram seu rosto enrugado. As forças desapareceram e o
choque fez com que suas pernas não mais o mantivessem de pé. Mesmo seguro por dois
mercenários, Joseph caiu de joelhos no chão, esticando as mãos atadas para a frente,
numa tentativa de tocar a única coisa que o mantinha vivo. O sangue de Sarah espalhou-
se pelo chão de tábuas, formando uma pequena poça ao redor de seu corpo. O mundo à
volta do Regente silenciou; ele tinha a impressão de que a morte viera buscá-lo também.
— Podem levá-lo – disse o Patriarca guardando sua faca na cintura.
Joseph foi erguido pelos braços e carregado para fora do quarto. A alma lhe
fugia; tudo o que ele sentia era frio. Sua última visão dos olhos da amada esposa lhe
dizia que ela havia morrido em paz.
Karim olhou para sua vítima, arrancando-lhe a mordaça que cobria os lábios.
Para sua surpresa, Sarah morrera com um sorriso, e os olhos negros fitando o Regente.
Em desprezo, ele cuspiu sobre seu corpo, antes de dizer a si mesmo:
Agora, meu caro Joseph, estamos quites.
134
Livro Dois
Um Vendaval ao Cair da Tarde
135
Capítulo 1 - Amotinados
Um forte vendaval se abateu sobre Aldarian naquela tarde de setembro. Há
pouco mais de dois dias, a ilha lutava para vencer as barreiras comerciais impostas pela
Companhia, mas agora tudo estava acabado. O golpe militar deflagrado por John
Hattcliff para usurpar o trono de seu irmão havia trazido medo e incerteza à população,
com a cidade tomada por soldados. Cabia agora ao novo Regente restabelecer a paz e o
equilíbrio no reino.
Algumas casas foram destelhadas e logo uma chuva torrencial começou a cair,
lavando o sangue daqueles que haviam lutado bravamente para defender seu Regente.
Tendo participado da invasão da capital e pilhado tudo aquilo que conseguiram
carregar, Karnast, capitão das Forças Sombrias e seus homens agora rumavam para a
ilha de Tirana, onde poderiam gastar seus lucros e vender sua preciosa carga de
escravos.
O moral de todos os prisioneiros era baixo. Os homens de Fletcher haviam
presenciado o assassinato covarde de seu capitão, enquanto os escravos traídos viam seu
sonho de liberdade e fortuna desaparecer.
A viagem até a ilha já durava dois dias, quando o capitão desceu até o porão do
Aliança em busca de um pouco de diversão. Karnast sabia que seus ganhos poderiam
pagar qualquer mulher de vida fácil em Tirana, mas ele estava atrás de um alvo especial,
algo que já vinha apreciando havia algum tempo. Seu corpo ansiava por luxúria. Buscou
136
em um dos cantos do navio pela jovem de cabelos vermelhos, encontrando-a abraçada
com a menina que vira tantas vezes andando no navio.
O homem esticou suas mãos ávidas, agarrando o braço da criança e puxando-o
para junto de si. O grito da pequena despertou a atenção de todos, enquanto ela chorava
e se agarrava a irmã.
— Largue ela, seu monstro imundo, ou eu acabo com sua raça.
Karnast sorriu, ciente da impossibilidade da jovem de cumprir o prometido. Com
a outra mão livre, ele deu um murro em sua cara, arremessando-a para trás. Ela bateu a
cabeça contra a lateral do navio, mas, apesar do golpe, se recompôs, tentando
inutilmente lutar contra o homem que, tendo soltado a irmã de seus braços, arrastava-a
para sua cabine.
Em meio à confusão, uma voz soou do fundo do porão chamando a atenção do
capitão.
— Capitão... – disse a voz insinuante e doce. – Tem certeza de sua escolha?
Karnast parou e virou-se. Quando seus olhos conseguiram romper a penumbra,
ele se deparou com algo que atiçou seus sentidos. Colleen, deitada, as pernas de sua
calça erguidas, deixando à mostra parte de suas coxas. Tinha desamarrado
propositalmente a parte de cima da blusa, deixando visíveis parte dos seios e da pele
macia.
— Capitão? – A voz soou de forma infantil. – Tem certeza de que prefere essa
menina mimada e chorona, quando pode ter uma mulher de verdade em sua cama?
— Acha que sou algum tipo de idiota para cair nesse tipo de truque?
Colleen se limitou a sorrir, erguendo mais as pernas de sua calça. Aquilo excitou
ainda mais Karnast; com cautela se aproximou, encostando uma faca no pescoço da
prisioneira. Apalpou seu corpo em busca de algum tipo de arma. Ao se certificar que ela
não escondia nada, ele largou a pequena, que imediatamente correu para o colo da irmã.
O homem a segurou então pelas mãos, erguendo-a e soltando a corrente que lhe
prendia a perna ao piso. Ela sorriu, acompanhando o capitão até sua cabine.
137
Para os prisioneiros, aquela era uma cena grotesca. Entretanto, os homens de
Fletcher pressentiam que a jovem aspirante planejava algo mais.
Assim que chegaram à cabine, o capitão agarrou Colleen pelo pescoço,
encostando-a na parede e beijando seu rosto. As mãos ansiosas entravam por baixo da
blusa dela, sentindo-lhe a pele macia, algo com o que Karnast não estava habituado. Ela
se segurou, contendo o nojo, e esperando uma oportunidade para reagir. Tão logo
Karnast relaxou um pouco, Colleen colocou a mão na nuca do capitão e com um golpe
forte e preciso, acertou-lhe a virilha com o joelho.
O homem se dobrou diante da dor, largando o pescoço da aspirante enquanto
tentava se recompor. Ela sabia que teria poucos segundos; com um pequeno impulso,
saltou por cima de Karnast, envolvendo a corrente que lhe prendia os pulsos no pescoço
de seu oponente com toda a força. Surpreso com o golpe, ele começou a se debater,
saltando e girando de um lado para o outro, enquanto a aspirante buscava manter a
corrente no lugar. Colleen tirou seus pés do chão, pendurando-se a fim de usar seu peso
para apertá-la ainda mais em torno da garganta do capitão. Karnast se arrastou pela
cabine, derrubando coisas e quebrando um dos armários na parede. Incapaz de gritar e
tendo dado ordens para não ser interrompido, nenhum barulho atrairia a atenção dos
outros marinheiros.
Não tardou para que a visão dele começasse a turvar e as pernas, antes fortes,
cambaleassem sem forças. Logo, seu pesado corpo veio ao solo. O ar saía de sua boca
em intervalos curtos, à medida que o coração parava de bater.
Agora, sobre o corpo imóvel do capitão, Colleen apoiou os pés em suas costas,
puxando a corrente e apertando ainda mais. Encostou o ouvido no peito de Karnast e
confirmou que ele estava morto.
Revistando na cintura do capitão, ela achou um molho de chaves. Com alguma
dificuldade conseguiu remover os grilhões que prendiam suas mãos. Os pulsos, bastante
feridos, sangravam devido à força que fizera. Com um pedaço da blusa, improvisou um
torniquete e passou a buscar uma saída dali.
Em um armário, ela recolheu cinco espadas, além de objetos pesados como
castiçais e uma pá que, em mãos relativamente habilidosas, poderia servir como arma.
138
Abriu a porta da cabine com cautela, saindo para a área, sob a coberta que dava
acesso às outras partes do navio. Era possível escutar o som e as vozes dos marinheiros
trabalhando; sabia que se fosse vista, sua vida estaria em risco. Fazendo pouco barulho,
ela desceu a escada até o porão, encontrando um guarda que vigiava os prisioneiros.
Sentado, tinha as pernas apoiadas sobre uma mesa e o olhar entediado. Ela
colocou as armas no chão com cuidado, exceto a pá, respirou fundo e, num único
impulso, correu em direção ao marinheiro. O homem se virou, desajeitado, tentando se
levantar da cadeira, apenas para que a pá empunhada pela aspirante lhe atingisse o rosto
e esmagasse o crânio. Caiu como um saco de batatas; bastou mais um golpe com a
ponta da arma no pescoço do homem, para garantir sua morte. Colleen voltou, pegou as
armas do chão e entrou na área dos prisioneiros.
Soltou as correntes de seus homens, distribuindo as espadas entre os mais
habilidosos. Um murmúrio se elevou entre os escravos, que erguiam as mãos
acorrentadas para ela. Colleen não estava certa se poderia confiar neles, já que poucos
dias atrás haviam ajudado a tomar seu navio. Aquele seria um motim e, apesar de não
haver armas para todos, quaisquer ajuda seria importante. Decidiu por fim soltar todos
os grilhões; quando os homens de Fletcher já se preparavam para subir ao convés, uma
mão agarrou seu ombro:
— Eu posso lutar.
Ela olhou para a jovem com desconfiança. Então, com um sorriso, agachou-se e
se aproximou do guarda morto, retirando a espada de sua cintura e a entregando a
escrava. Se ergueu, olhando uma última vez para sua irmã antes de sair com os demais
para tomar o navio.
139
Capítulo 2 - Cumprindo o Juramento
Reunidos nos antigos aposentos de Lorde Joseph e diante do novo monarca, o
Conselho dos Ventos aguardava a decisão do recém-empossado Regente em relação a
seu destino. Apesar de terem se passado dois dias desde que o castelo havia sido
tomado, John Hattcliff já se apressara para torná-lo o centro de seu reinado. Pinturas de
seu irmão e família haviam sido retiradas apressadamente das paredes, e a bandeira azul
e vinho de Aldarian, recolhida. Logo ele encomendaria um novo símbolo para sua
pátria, algo que representasse a força de seu futuro governo.
Guinford abraçava a filha pelas costas o tempo todo, para protegê-la de qualquer
ataque oportuno. Os outros três conselheiros encontravam-se de pé a seu lado,
encarando o vazio, à espera das decisões do outrora embaixador de Aldarian em Azhir.
Um som oco veio da grande porta à sua esquerda, e logo uma quinta figura se
unia ao grupo. O embaixador de Myrtakos entrou na sala de cabeça erguida, apesar da
posição de inferioridade em que se encontrava. O Regente se adiantou:
— Saudações, meu caro. Por favor, entre.
O homem se aproximou, puxou uma cadeira e se acomodou para ouvir o que o
novo monarca tinha a lhe propor. Notícias sobre a invasão já haviam sido enviadas ao
Conselho de Myrtakos, que deliberava o que fazer. Apesar da aliança de longa data, o
embaixador sabia que qualquer ação belicosa nesse momento seria no mínimo
imprudente. Ele aprumou a voz, pigarreando levemente:
140
— Muito bem, embaixador, estou aqui para negociarmos os termos de exílio dos
prisioneiros – disse, olhando para os membros do Conselho. – Estou certo de que não
criará nenhum empecilho para o bem das relações diplomáticas entre nossos reinos.
John sorriu diante da pose autoritária de seu interlocutor.
— Muito lisonjeiro de sua parte se lembrar de meu antigo título, meu caro, mas
prefiro que me chame de Rei, Vossa Majestade ou qualquer outro termo que considere
adequado à minha atual posição. Quanto aos referidos prisioneiros, acho curioso que se
ponha em posição tão favorável de negociar. Todos os cinco, incluindo a jovem, podem
ser considerados traidores, uma vez que suportavam o reinado de meu irmão bastardo.
Não vejo por que deva permitir que os leve embora, sendo que seu lugar de direito é a
masmorra de meu palácio.
As veias da testa de Guinford saltaram à vista ante a fúria que tomava seu corpo.
Sua vontade era a de saltar na jugular daquele traidor e arrancar-lhe a arrogância. Sua
filha, no entanto, estava em primeiro lugar; enquanto não estivesse segura, ele não
ousaria pôr sua vida em risco. O embaixador de Myrtakos prosseguiu:
— É isso mesmo que tenciona, majestade? Criar um conflito contra a pátria de
Myrtakos por mero capricho? Você já tomou um reino à força e de forma ilegítima, e
ainda espera fazer justiça contra inocentes.
— Permita-me corrigi-lo, meu caro – disse John ainda mais arrogante –, eu
tenho todo o direito de usar a coroa que está sobre minha cabeça. Não era eu o bastardo
a usurpar meu direito real. Qualquer tribunal concluiria que meu caro irmão era quem
estava errado e não eu. Por anos eu permiti que ele reinasse em meu lugar, mas quando
deixou meu povo passar fome, precisei intervir.
A ironia com que o novo Rei falava surpreendia até mesmo alguém experiente
como o embaixador. Ele já lidara com todo tipo de pessoas, mas nunca vira tantos
absurdos serem proferidos de uma única vez. O homem respirou fundo e disse:
— E quais são seus termos?
— Muito simples, meu caro. Primeiro, desejo que o Conselho de Myrtakos emita
um documento reconhecendo a legitimidade de meu governo e a manutenção da aliança
estabelecida com minha família, sem que nenhum termo seja revogado.
141
— Espera realmente que aceitemos esses termos abusivos?
— Não renegociarei uma vírgula, meu caro. Ou é isso, ou todos aqui irão para as
masmorras por alta traição. Você se surpreenderia como a média de vida de uma pessoa
pode se reduzir em condições desfavoráveis.
O embaixador suspirou profundamente. O novo monarca tinha todas as cartas na
mão.
— Muito bem, majestade, temos um trato. Porém...
— Porém?
— Deve estender o direito ao exílio a todos os membros da corte e a todos os
cidadãos de bem que desejem deixar a ilha.
— Não preciso de rebeldes insatisfeitos à minha volta. Algo mais?
— É exigência do Conselho que entreguem o Regente deposto para que seja
exilado em Myrtakos.
— Ele fugiu, não soube? Aquele covarde desapareceu quando viu minha
esquadra chegando.
— Esse desgraçado mente! – gritava Guinford, exaltado. - Eu vi quando nosso
Regente foi arrastado por seus homens para fora do castelo.
Irritado, John respondeu:
— Está bem, é verdade, ele foi levado, mas o que isso importa, hã? O que você
vai fazer a respeito disso, seu covarde? Nem sequer foi homem o bastante para tentar
salvá-lo.
Como um raio o Governador partiu para cima de John. A fúria pulsava em seus
olhos. Dois guardas correram para contê-lo, segurando-o com força e jogando-o no
chão.
— Canalha mentiroso, assassino.
Melleen se agachou junto ao pai, retirando os homens de cima dele que o
continham.
— Por favor, meu pai, não torne isso pior.
142
— Já chega – gritou o Embaixador. – Diga-nos o que foi feito de Lorde Joseph
ou me certificarei de que nenhum navio de Myrtakos aporte aqui novamente.
— Navios? – disse com desprezo o novo monarca. – Acha que essa sua ameaça
me preocupa? Por favor, me acompanhe, sim?
John virou-se de costas, indo até a janela do aposento que dava para a Baía dos
Sinos. Lá, aportadas lado a lado encontravam-se duas dezenas de navios, todas com
velas e bandeiras recolhidas.
— Observe, meu bom Embaixador: vinte dos melhores navios de nossa marinha
capturados e prontos para seguir minhas ordens. Confinamos suas tripulações no porão,
enquanto aguardam julgamento, mas duvido que algum marinheiro prefira a forca a
servir a seu novo senhor.
Guinford olhou o céu alaranjado à medida que o sol começava a se pôr. Por um
breve instante ele se permitiu um sorriso. O rei, notando a mudança de feição no
Governador, resmungou:
— E você? Do que está rindo, afinal, ahn?
Mantendo silêncio, Guinford olhava fixamente para o anel solar. Quando este
finalmente desapareceu no oceano, uma grande confusão começou nas docas de
Northwind.
Ouviu-se um forte estalar de madeira associado a gritos desesperados dos
guardas mercenários que assistiam à cena, congelados. Um dos grandes navios
capturados começou lentamente a adernar para a direita, estalando e rompendo,
enquanto ia para o fundo da baía. Logo um segundo navio e um terceiro compartilharam
o mesmo destino, enquanto os guardas arremessavam pequenos botes na água, em uma
tentativa de impedir o inevitável.
— Mas o que está acontecendo lá embaixo? – gritou John, observando a cena. –
Meus navios! O que está acontecendo com os meus navios?
O Governador adotou um tom de seriedade, ao explicar ao novo rei:
— Eles são súditos fiéis de lorde Joseph, preferem o fundo do mar a seguirem
um impostor. Esse é o juramento.
143
O juramento, o maldito acordo de fidelidade à Coroa. John aprendera isso em
sua juventude, mas jamais julgou que alguém seria capaz de executá-lo.
Logo, dezessete dos vinte navios estavam no fundo da baía e apenas três haviam
sido invadidos a tempo pelos guardas mercenários. O Governador tinha certeza de que
uma luta sangrenta havia sido travada em seus porões e lamentava em silêncio cada vida
perdida nesse ato de coragem. O embaixador de Myrtakos perguntou:
— Vossa majestade falava sobre sua frota?
John deu um murro na amurada da janela e resmungou:
— Ele foi levado para Azhir; é tudo o que sei. Havia um pedido de prisão contra
o Regente e ele simplesmente foi cumprido.
— Sob qual acusação? – berrou Guinford.
— Dívidas para com a Companhia, além de uma infração às leis locais. Ao que
parece, meu bom irmão não era uma pessoa muito benquista em Azhir.
— Mas essas acusações são absurdas e...
— Por favor, meu bom Governador, não há mais nada que possamos fazer
agora. Convocarei o Conselho de Myrtakos e pedirei que Imrahil, líder do conselho,
interceda pessoalmente nessa questão.
O novo Rei se virou e, como que ignorando os presentes, decretou:
— Nosso assunto está encerrado, suponho. Vocês têm vinte e quatro horas para
deixarem a ilha ou serão presos por ameaçarem a paz e a ordem. Saibam apenas que se
voltarem a pisar nesta terra, os prenderei imediatamente.
Amparado em parte por Melleen, Guinford e os outros deixaram a sala a fim de
realizarem os preparativos para a partida.
Isso não termina aqui, pensava Guinford consigo mesmo.
144
Capítulo 3 - Capitã Escarlate
O silêncio dos amotinados só era quebrado pelo chocar das ondas contra o casco
do Aliança. O vento assoviava alto enquanto passava pelos cordames, inflando as velas
e impulsionando o navio. Com a mão direita sobre o ombro de Colleen, a escrava
apontou alguns elementos-chaves, descrevendo as fraquezas e falhas destes.
Impressionada com o aparente conhecimento de táticas daquela jovem de cabelos
vermelhos, a aspirante sabia que, apesar da inevitável luta sangrenta, as chances de
vitória eram boas.
Ela olhou para trás uma última vez, para os olhos vidrados dos homens de
Fletcher e dos poucos escravos que estavam no outro navio. Reconhecia que os homens
de seu capitão eram diligentes e disciplinados, mas não sabia ao certo o que esperar dos
outros.
Sua bota esquerda pousou sobre as tábuas do convés do Aliança. Logo, a sola da
direita tomou a frente e, antes que raciocinasse, corria com fúria em direção à batalha.
Um grito reprimido irrompia de seu peito, seguido por todos aqueles feitos prisioneiros
pelos covardes e traidores marinheiros de Karnast.
Pegos de surpresa, antes mesmo que pudessem sacar seus alfanjes, dois dos
inimigos já jaziam mortos no chão. A confusão rapidamente foi instaurada enquanto
eles buscavam em meio ao caos a liderança de seu capitão. A jovem escrava combatia
com uma ferocidade jamais vista. Seus golpes eram precisos, preenchendo a carne de
seus oponentes com o aço de seu alfanje. Dez minutos se passaram e logo a luta estava
145
encerrada. Não havia sobreviventes do outro lado, pois mesmo aqueles que apenas
haviam se ferido na batalha foram brutalmente exterminados.
Esgotada pelo combate intenso, sentou-se em meio aos cadáveres, recostando o
corpo molhado na lateral do navio e se permitindo respirar. O suor que escorria da testa
trazia consigo gotas de sangue, uma mistura do fluido vital das vítimas e do seu,
proveniente de um profundo corte na testa.
Colleen avistou a jovem e, ainda incerta, se aproximou.
— Você luta como se tivesse vindo do interior das próprias Águas Sombrias. –
Sorriu.
Séria, ergueu os olhos. Devolveu o sorriso, cansada, estendendo a mão para
cumprimentar a jovem de longos cabelos castanhos e cacheados. Colleen repetiu o
gesto, receosa. Ao sentir as palmas de suas mãos tocarem, a aspirante apertou-a com
confiança.
— Me chamo Laura. Laura Redwood, e você?
— Rosa.
— Que raios de nome é esse? É só isso? Rosa?
Colleen sorriu; nunca havia se preocupado em adotar um sobrenome que
disfarçasse sua linhagem. Ela sabia que não poderia revelar sua identidade, ainda
mais em um momento em que sua captura seria muito bem paga.
— Sim, não lhe é suficiente?
Laura deu de ombros.
— Devo-lhe minha gratidão pelo que fez pela minha irmã. Se aquele ser imundo
tivesse encostado suas mãos nela...
— Ele está morto – respondeu Colleen de forma ríspida. – Morreu como um
porco que realmente era.
À sua volta, os sobreviventos jogavam os corpos dos mortos ao mar. Colleen
sabia que tinha em mãos um navio cheio de homens que não tinham para onde
rumar. A ladra interrompeu seus devaneios:
146
— E agora, Rosa? O que faremos?
— Não sei, Laura, sinceramente eu não sei.
Uma confusão rapidamente se instaurou no convés do Aliança, quando os
homens perceberam a ausência de um líder entre eles. Como uma matilha de lobos
sobre um pedaço de carne, os marinheiros disputavam quem teria o direito de assumir o
navio. Os homens de Fletcher reclamavam a liderança para si, uma vez que o navio
pertencera a seu capitão, enquanto os escravos justificavam que, sem eles, o motim teria
sido um fracasso. A discussão não tardou em se tornar uma briga generalizada; muitos
já se preparavam para puxar suas lâminas pelo controle do Aliança.
Colleen observava um desastre moldar-se diante de seus olhos. Sem estar bem
certa do que faria, berrou. A voz saiu fraca em meio à gritaria. Um segundo e depois um
terceiro grito também não surtiram efeito, até que ela resolveu usar outros métodos.
Embrenhou-se entre os homens com dificuldade, até alcançar o mastro principal do
navio. Subiu com agilidade pela escada de cordas ao topo do mastro e o cesto de gávea.
Com seu alfanje, ela cortou as cordas que mantinham a bandeira negra no lugar,
recolhendo o pano e desceu novamente as escadas. No centro do convés principal, em
um único golpe, cravou sua espada e a bandeira na base do mastro. Com esse gesto,
conseguiu a atenção dos homens, que a olharam confusos.
— Eu estou assumindo o comando do Aliança. Eu matei o capitão amotinado e
estou exigindo meu direito - berrou furiosa a aspirante com toda a força dos pulmões.
Um estranho silêncio se ergueu no ar, enquanto marinheiros de ambos os lados
ouviam, surpresos, a declaração. Um dos escravos tomou a frente, assumindo como
porta-voz de todos a bordo:
— Você? Capitã desse navio? E o que pretende fazer em seguida?
A espinha da jovem gelou. Agira no impulso e não tinha preparado nenhum tipo
de resposta à sua ação. Ela respirou fundo, tentando parecer confiante:
— O que quer dizer! – exclamou. - Os navios da Companhia continuam
navegando. Temos de seguir com a missão do capitão.
Um dos homens de Fletcher esmoreceu, olhando com tristeza para a aspirante:
147
— A guerra acabou, Rosa. As Forças Sombrias estão ao lado da Companhia, não
há nada que possamos fazer. Queremos voltar para casa.
Os outros concordavam com a cabeça. Todos estavam cansados de lutar e
sentiam falta de suas famílias e filhos. Irritada com a apatia daqueles homens, Colleen
berrou:
— Voltar para casa? E para quê, eu lhes pergunto? Para se renderem a Azhir?
Para chegarem em casa sem um reles sextante no bolso?
Os homens se entreolhavam, enquanto ela prosseguia, dirigindo-se ao mestre
artilheiro:
— Senhor Heywood, você me contou que tem um filho pequeno e gostaria
muito que ele fosse aceito na Real Escola, não é? Como pretende pagar por seus estudos
se voltar agora? Que exemplo quer dar a ele? O de um marinheiro dedicado ou alguém
que prefere se render à primeira dificuldade?
— E você, senhor Lamb – virou-se para o cozinheiro do navio –, ainda sonha em
abrir sua taverna junto ao porto? Tenho certeza que não quer passar o resto de seus dias
cozinhando essa lavagem que você chama de comida.
Os homens deram uma risada, cessando-a em seguida. Colleen prosseguiu:
— E não podemos nos esquecer de vocês – disse, encarando os prisioneiros. –
Vocês são livres agora; posso desembarcar quem desejar no primeiro porto. Mas
pensem que tipo de futuro têm pela frente. Aqui podem aprender um novo ofício e
ganhar mais dinheiro do que jamais sonharam. Sei que muitos estão sozinhos, que não
têm uma casa para onde voltar, mas sei também que mesmo vocês têm suas ambições. E
para aqueles que ainda têm alguém por quem zelar – disse agora olhando para Laura e
Katherine –, essa é a chance de mudarem suas vidas.
Um silêncio constrangedor se instaurou no convés. Seu discurso, ainda que de
improviso, parecia estar surtindo efeito, deixando-a mais e mais confiante:
— O que me dizem vocês? Estou certa de que existem outros navios pelo oceano
que também desejam se vingar da maldita Companhia. Tudo o que temos de fazer é
achá-los e convencê-los a se juntar a nós. Quem está comigo?
148
— Eu – disse uma voz confiante vinda de trás da multidão.
Laura se esgueirou por entre os marinheiros até ficar ao lado da nova capitã.
Sacou seu alfanje e o cravou no mastro, cruzando os braços enquanto encarava os
outros.
A pequena Katherine correu a abraçar a cintura de Laura, declarando, ainda
incerta, seu apoio à decisão de sua irmã.
— Quem mais? – insistiu Colleen. – Pelo visto, as mulheres desse navio têm
mais coragem que os próprios homens.
Algumas risadas se ergueram entre a multidão até serem interrompidas por uma
voz grave e pausada:
— Eu também apoio a nova capitã.
O homem cor de ébano saiu do meio do grupo para se colocar lado a lado com as
mulheres. Yetu era o contramestre no navio de Karnast, além de um exímio lutador.
Apesar de não conhecê-la, ele reconhecia a bravura dela. Caso desejasse que outros
escravos se unissem à causa, deveria servir de exemplo.
— Eu também a apoio
Joshua deu um passo a frente. O navegador que até pouco tempo via Colleen
como motivo de piada, via na aspirante a mesma força e tenacidade de seu antigo
capitão.
Colleen sorriu enquanto mais e mais homens começavam a se convencer daquela
realidade. Não demorou até que alguns dos escravos e tantos outros dos homens de
Fletcher mudassem de lado, deixando os descontentes em uma minoria. O porta-voz,
incrédulo, suspirou.
— Muito bem. E qual seu plano para nós, “capitã”? O navio está danificado,
com poucos suprimentos; e com as Forças Sombrias rondando essas águas, não acredito
que Aldarian seja uma opção.
— Rumaremos para a ilha de Tirana e falaremos com o conselho. Por anos eles
têm sido aliados do reino; estou certa de que não negarão ajuda. Se os piratas de Tirana
se unirem em torno da mesma causa, poderemos vencer a Companhia.
149
Os homens murmuraram entre si, aceitando a proposta, uma vez que não lhes
restavam muitas opções.
— Muito bem, capitã. Enquanto houver ouro para nós, seguiremos com seu
navio. Como devemos nos referir a você quando questionados sobre quem lidera essa
embarcação?
Naquele momento crucial, Colleen pensou em todo o sangue derramado durante
o ataque, o sangue de seus companheiros e de seu capitão.
— Pode me chamar de Capitã Escarlate.
150
Capítulo 4 - O Exílio nas Sombras
Durante a viagem de navio, o agora deposto Regente Joseph Hattcliff
permaneceu em silêncio. A morte de sua amada Sarah havia sido demais para ele e,
apesar do ódio alojado no coração, a mente perturbada era incapaz de planejar qualquer
reação para sair dali. Joseph não sabia para onde estava sendo levado, mas a julgar pelas
refeições fartas que recebia diariamente, estava certo de que o queriam forte e saudável,
pois nenhum outro prisioneiro recebia tratamento semelhante.
Algo que o surpreendia é que, passado todo esse tempo, seu desafeto nunca
descera até o porão para se divertir às suas custas. Sabia que Karim estava a bordo, e
ainda assim jamais ousara ir até ele. Talvez tivesse medo de encará-lo, já que era um
notório covarde, ou talvez apenas estivesse esperando o momento certo de saborear sua
vingança.
Esse momento chegou quando o Regente escutou um forte barulho vindo do
lado de fora. Karim descia as escadas com olhar triunfante. Tinha o rosto moreno
parcialmente coberto por um fino lenço colocado sobre o nariz e boca para aplacar o
mau cheiro do navio. Limitou-se a fazer um sinal com a cabeça, indicando que ele podia
ser trazido para cima. Logo, dois homens vestindo roupas inteiramente negras abriram a
jaula e o retiraram de lá.
Joseph demorou um tempo até se acostumar com a claridade e prestar atenção à
rota do navio. Uma forte ventania soprava em seu rosto, ao mesmo tempo em que
grossas gotas de chuva impediam-no de enxergar direito. O som de trovões intercalava-
151
se com o assovio do vento. O dia se convertera em noite à medida que nuvens espessas
recobriam a luz do sol. Estavam adentrando o interior das Águas Sombrias
O terror se instaurou no coração do Regente, enquanto observava o também
apavorado Patriarca.
— Você enlouqueceu? Vai matar a todos? - gritou.
O som de sua voz foi abafado pelo vento, chegando como um murmúrio aos
ouvidos de Karim. O Patriarca olhava apreensivo para seus comparsas das Forças
Sombrias que, apesar do caos à sua volta, pouco pareciam se importar. Logo o navio foi
engolido pela tempestade, balançando e rangendo ao sabor das ondas. Karim se agarrou
ao mastro, enquanto observava o capitão que, com semblante sereno, segurava o leme
do navio. Este fez um breve sinal com a cabeça, e o som de um sino passou a ecoar pelo
convés. Era o sinal que todos os marinheiros dali conheciam tão bem.
O capitão ajoelhou-se, murmurando algum tipo de oração, enquanto seus
homens largavam seus postos e se aproximavam da amurada do navio. De forma
ritualística, cada um deles sacou uma faca da cintura, ergueu-a no ar e, em seguida, a
passou sem remorso em seu próprio pulso. Um sangue negro, espesso jorrou de cada um
dos cortes. Em transe, os marinheiros pressionavam a ferida, fazendo com que aquele
sangue escorresse até pingar no mar.
Horrorizados, tanto o Regente quando o Patriarca entenderem o sentido daquela
loucura. Lentamente as águas se acalmaram, os ventos amainaram e o som dos trovões
se tornou distante. O céu permanecia completamente encoberto, mas a tempestade se
afastava. O capitão ergueu seus braços e gritou:
— Abençoadas sejam as águas que permitem a seus filhos a sua passagem. Que
aqueles que dão seu sangue em honra às águas possam recuperá-lo.
Sacou uma faca, fazendo ele mesmo um corte em ambos os pulsos e os
estendendo em frente ao corpo. Uma mancha escura pulsou no peito à medida que seus
homens formavam duas filas em frente às escadas que levavam ao castelo de popa. Um
a um, os marinheiros se aproximaram dele, prestaram uma reverência e, por um breve
segundo, sugaram o sangue negro que vertia de suas veias. Quando o último deles
152
realizou o rito, o capitão enrolou o pulso com um pedaço de tecido, seguido pelos
demais.
Sem a forte chuva encobrindo a visão, lentamente o Patriarca pôde visualizar
uma pequena ilha a apenas alguns quilômetros de distância.
Da terra negra que recobria a ilha, centenas de estacas de madeira se erguiam,
formando um extenso forte pentagonal, ladeado por torres em cada uma de suas pontas.
Guardas caminhavam sobre o passadiço que cercava a única estrutura de pedra do local,
uma torre baixa com três andares.
O Patriarca se aproximou do capitão indignado, resmungando palavrões diante
de sua revolta:
— Uma paliçada? A prisão que me prometeram é uma simples paliçada?
Surpreso com a reação de seu associado,o capitão sorriu:
— Lamentavelmente, meu caro, como deve imaginar, os recursos locais são
bastante escassos. Não é possível transportar grandes blocos de pedra através das águas,
e o que encontramos aqui foi suficiente apenas para erguer aquela torre. Toda a madeira
utilizada na fortificação foi trazida do mundo exterior.
— E que garantias pode me oferecer de que essa prisão é segura?
— Ninguém jamais atravessou a barreira das águas, Patriarca, e mesmo que
conseguisse, seu navio estaria tão danificado frente a nossas defesas – apontou duas
balistas montadas na praia. – Além do mais, seu convidado será hospedado no topo da
torre, o lugar mais isolado do complexo.
Karim respirou aliviado, aproximando-se novamente de Joseph. Ele agarrou seu
queixo, erguendo-o para se certificar de que o Regente veria o que ele desejava:
— Está vendo aquela torre, meu bom amigo? É lá que irá passar o resto de seus
dias, lamentando o dia que ousou me desafiar.
O navio atracou no pequeno cais da ilha, e os prisioneiros passaram a ser
desembarcados. Quando o Regente tocou o chão, concluiu que aquele lugar deveria ser
amaldiçoado. A terra era dura e completamente negra, recoberta por rachaduras que se
perdiam no horizonte. A água que tocava o cais e arrebentava na praia próxima possuía
153
um estranho tom avermelhado; não se ouvia nenhum som de pássaro ou qualquer outro
animal.
O Regente passou a ser escoltado por uma estrada estreita que levava ao centro
da ilha. A comitiva atravessou os portões da paliçada, enquanto o Regente era
encaminhado à torre central. Um som arrepiante, um lamento contínuo e atormentado
passou a ecoar. Algumas dezenas de metros acima, no topo da construção, diversos
corpos putrefatos jaziam dependurados. Os cadáveres se debatiam e gemiam, tentando
afrouxar o nó da corda que lhe apertava o pescoço. Os condenados a destino tão insólito
não recebiam o descanso da morte, tornando-se espécies de mortos-vivos a pagarem por
seus pecados. Ali, sofriam até a corda estar tão rota que despencavam do alto, atingindo
o chão.
Joseph foi empurrado com força, ao ser conduzido para o interior daquele lugar.
Karim ordenou que o virassem de frente e, então, disse:
— Compreende agora, meu caro, o que o destino lhe reserva? Entende por que
tive de matar aquela prostituta antes de trazê-lo para cá?
O Regente permaneceu em silêncio, enquanto o Patriarca destilava com prazer
sua vingança.
— Meus caros associados aqui – disse ele olhando para os membros das Forças
Sombrias – cobraram um preço muito alto por seus serviços, mas em troca me
ofereceram algo irrecusável. Observe-os e a todos os guardas deste local tão especial.
Nota o tom pálido de suas peles? A frieza de seu toque? Pois bem, eles são o que a
História chama de Vígios, mortos-vivos conscientes que não precisam de recursos
mundanos como comer, dormir e respirar. Todo aquele que morre sobre esse solo negro
se torna um deles: um ser errante cuja alma fica aprisionada ao corpo, e cujo descanso
não existe. Esteja onde estiver, aquela vagabunda não se unirá mais a você nem em vida
e nem na morte.
O Regente cuspiu na cara do Patriarca. Este retirou um lenço de seu bolso,
limpou o rosto e prosseguiu:
154
— Dei ordens específicas para que você seja bem tratado e alimentado, meu
caro. Quero que você ainda viva por muitos anos, lamentando sua perda, sentindo dores
e temendo por seu futuro.
— Isto não acaba aqui, Karim, e você sabe disso.
— Uma ameaça? Pode um Regente deposto me ameaçar? Você fugiu de
Aldarian, meu bom Regente. Mesmo com o indulto oferecido por seu irmão, você
preferiu fugir. Sua pobre esposa, infelizmente, morreu enquanto você abandonava a ilha
com o rabo entre as pernas.
Joseph esmoreceu: o tempo todo seu irmão estava envolvido! O traidor que
delatara ao inimigo a ideia de criar navios mais poderosos era sangue de seu sangue.
— Aproveite sua estada aqui, Joseph, pois ela será longa. Paguei uma boa
quantia em dinheiro para lhe conseguir o melhor aposento: a cela no topo desta torre.
Ela é fria, isolada e nem mesmo seus protestos mais altos lhe renderão o indulto da
forca.
Ao dizer isso, o Patriarca deu-lhe as costas e voltou para o porto. Mesmo
esgotadas suas últimas forças, o Regente sabia que precisaria delas para subir cada um
dos degraus que o separavam de sua nova morada.
155
Capítulo 5 - Traição na Ilha de Tirana
Na manhã seguinte ao motim, a capitã apontou para o nordeste, em direção à
ilha de Tirana. Durante as quase três semanas de viagem, a confiança de Colleen em
Laura se fortaleceu. A cada dia, a ladra se destacava mais dentre os demais, auxiliando a
capitã a lidar com os colegas escravos que se uniram à tripulação.
Era ela quem tomava a iniciativa quando um problema entre os marinheiros de
Fletcher e os prisioneiros surgia, mediando a situação e convencendo as partes de que
uma briga não traria benefícios ao grupo. Algumas vezes, seus argumentos eram as
palavras; outras, seu par de adagas; mas não importava qual método empregasse, ela
costumava ser muito bem-sucedida. A agora corsária percebeu que tinha uma grande
aliada a seu lado.
No início da quarta semana, um grito vindo do alto da gávea denunciou que o
Aliança se aproximava de seu destino. Com o velho telescópio de Fletcher em mãos, a
capitã observou a linha cinzenta que formava os rochedos da ilha se transformar em
uma série de pequenas casas e construções. Inúmeros navios, todos sem bandeira,
estavam aportados no cais, com intensa movimentação nas docas. Para sua surpresa, um
navio exibia as cores vermelho e negro que ela jamais imaginou encontrar ali.
— A Companhia? O que um navio de Azhir faz aportado em Tirana?
— Teriam sido capturados? – indagou a ladra.
— Duvido. Se fosse esse o caso, a bandeira já teria sido recolhida. Preparem-se
para pôr o navio em terra. Vamos averiguar isso .
156
Logo que a lateral do Aliança encostou no cais, a capitã disse:
— Irei conversar com o Conselho para ver o que consigo para nós. Laura ficará
responsável por comprar os suprimentos e materiais necessários aos reparos, enquanto
os outros se ocupam de preparar o navio.
A ladra olhou para Colleen esperando uma resposta sobre como adquirir os bens
necessários, até que a capitã respondeu:
— A cabine de Fletcher dispõe de alguns itens de valor que podem render
algumas moedas por aqui. Venda o que for necessário, exceto as cartas marítimas e uma
pequena caixa de madeira sobre a cômoda. Estou certa de que saberá avaliar os itens.
Enquanto se dirigia ao interior do navio em busca de recursos, Laura sorriu. Em
tempos passados ela guardaria o melhor para si, mas havia algo nessa capitã que a fazia
acreditar que haveria muito mais para todos do que reles quinquilharias.
♥♠♥
O Conselho de Tirana ficava em uma velha taverna cujo acesso era restrito e
muito bem vigiado. No caminho, Colleen defrontou-se com uma longa fila de homens
em frente a uma pequena mesa de madeira. A maioria se vestia com roupas simples,
típicas de marinheiros em serviço, mas foi um pequeno grupo que atraiu sua atenção.
Eles vestiam casacos finos e chapéus de abas largas, vestimentas típicas dos capitães
que chamavam essa ilha de lar. Um homem em um turbante branco assinava uma pilha
de papéis tendo por detrás dele o símbolo das três cimitarras unidas por seus pomos, a
bandeira da Companhia Mercantil de Al Azhir.
A corsária apressou o passo até finalmente encontrar o local, muito bem
guardado por dois homens armados com grandes alfanjes. Um deles perguntou de forma
ríspida:
— Que negócios tem com os capitães de Tirana?
— Diga-lhes que a Capitã Rosa Escarlate, comandante do Aliança, solicita uma
audiência.
157
Eles se entreolharam surpresos, até que um deles abriu um sorriso e disse:
— Você não comanda o Aliança, seu capitão é...
— Jack Fletcher, e ele está morto. Eu era sua segunda em comando e assumi o
controle do navio.
— Pode provar o que está dizendo?
Ela sacou seu alfanje, o mesmo que vira Fletcher usar tantas vezes e conseguira
recuperar na cabine, após a luta com Karnast. Mostrou seu cabo dourado e o pomo com
um rubi incrustado a um dos guardas.
— Tenho a espada do capitão e solicito uma audiência.
O homem rapidamente fechou seu sorriso enquanto adentrava a estrutura para
voltar minutos depois.
— O Conselho irá recebê-la, capitã.
Colleen agradeceu com um discreto sorriso enquanto caminhava para dentro da
velha taverna. Dirigiu-se ao mezanino acima do piso principal, cujo acesso era feito por
duas escadas, uma em cada ponta da estrutura. Impecavelmente vestido com um casaco
colorido, botas lustradas e um grande chapéu de abas largas, um homem a aguardava
por trás de uma mesa retangular. Sobre esta, alguns peixes assados em folhas de
bananeira, um pote com grãos que ela reconheceu serem favas, além do sempre
indispensável rum. Seus lábios se umedeceram ante o cheiro adocicado da bebida,
enquanto o homem lhe dirigia a palavra:
— Então, é você a jovem que alega ser a capitã do Aliança, não é mesmo? Que
notícias traz de Jack Fletcher?
— Fletcher está morto. Assassinado por um maldito amiran e sua tripulação de
mercenários.
— Morto, não é? Eu imaginava que algo havia lhe acontecido quando ele não
retornou de sua última missão – disse o homem olhando para uma cadeira vazia a seu
lado. Mas acredito que não veio até aqui apenas para nos dar essa notícia, estou certo?
A corsária estava enfurecida com a indiferença daquele homem em relação a seu
capitão.
158
— Antes, pode me responder o que esses cães da Companhia fazem aportados
aqui? E onde esta o resto do conselho?
— Mal nos conhece e já tem sua língua tão afiada, capitã? Deveria moderar suas
palavras enquanto estiver aqui, especialmente sem saber a quem está ofendendo.
— Peço-lhe desculpas, capitão – disse ela com sarcasmo. – Mas talvez possa se
apresentar para que eu saiba a quem estou ofendendo.
O homem sorriu. Parecia apreciar o estilo petulante dela.
— Eu me chamo Edward Vane. Não me lembro de ter me dito seu nome, capitã,
para que possa devolver-lhe os insultos.
Colleen observou o rosto vincado e os olhos azuis profundos de Vane. Os lábios
grossos do homem se torciam quando ameaçava um sorriso. Tinha os cabelos brancos
cortados curtos e um pequeno cavanhaque igualmente grisalho que mal cobria a
superfície de seu queixo.
— Me chamo Rosa, senhor, mas pode se referir a mim como Capitã Escarlate. -
Respirou fundo, tentando se impor.
— Nome forte, minha cara capitã. Há tempos não vejo algo parecido. Você disse
que estava com Fletcher durante a invasão de Aldarian? Um verdadeiro golpe de sorte
que tenha escapado. Nossos informantes na ilha dizem que a tomada da capital foi
acompanhada de uma batalha sangrenta.
Aldarian foi tomada. Então a invasão foi bem-sucedida. A capitã parou por um
instante, tentando absorver aquela nova informação. Tentou disfarçar a apreensão:
— Você tem notícias do ataque, capitão? Sabe dizer o que houve exatamente?
— Recebi poucas informações, minha cara, e a maior parte delas é bastante
desencontrada. Ao que parece, a capital sofreu um pesado ataque pelo mar, uma ação
conjunta de mercenários e da Companhia de Al Azhir.
— Mas, e quanto ao Regente? E os outros membros do governo?
— Ao que soubemos, o Regente fugiu em meio ao ataque, e seu destino é
ignorado. Temos notícias de que os membros do Conselho dos Ventos, alguns
mercadores e outros membros da nobreza pediram asilo em Myrtakos.
159
— A Companhia mente quando diz que Lorde Joseph fugiu. Esse não era o
estilo dele - retrucou com ódio, embora parcialmente aliviada ao saber que seu pai e
irmã estariam bem.
— Você fala como se o conhecesse bem, capitã – disse o homem com um ar
desconfiado.
— É claro que o conhecia bem – disfarçou. – Sou uma de suas súditas e servi
fielmente ao seu melhor capitão. Além do mais, ainda não respondeu às minhas
perguntas.
— Qualquer pirata que deseje deixar sua vida de crimes terá suas ocorrências
perdoadas, anistiado pela Companhia. Todos receberão indultos emitidos pelo Patriarca.
— Isso é um insulto! Não me diga que os capitães daqui estão assinando esse
acordo?
— E que outras opções eles têm? Ou aceitam os termos da Companhia ou serão
enviados à forca.
- Eles ainda podem lutar! Têm seus navios e homens.
Vane sorriu:
— Lutar contra a Companhia? Com qual propósito, eu lhe pergunto! A queda de
Aldarian colocou um ponto final às cartas de corso emitidas pelo reino, e seria uma
loucura tentar enfrentar alguém com tamanha força como Azhir. Se é verdade que
Fletcher morreu, nosso apoio à sua causa morreu com ele.
Colleen não se conformava com essas palavras. Como seu Regente um dia
pudera chamar tais covardes interesseiros de aliados?
— E onde estão os outros membros do Conselho? Recuso-me a acreditar que
todos pensem dessa forma.
— Se refere a Henry Roberts e James Morgan? Eles partiram há muito tempo
em busca de mares mais tranquilos. Estou velho demais para isso, minha cara, e achei
mais prudente ficar. Para sua decepção, eu sou o Conselho agora.
— E pretende ficar aqui? Simplesmente vendo a Companhia tomar todas as suas
posses?
160
— A Companhia manterá seus olhos distantes de nossa ilha; poderemos
continuar traficando escravos e outros bens de nosso interesse. E é claro que ainda
existem os orcs, estou certo de que o Patriarca não se importará se continuarmos
pilhando os navios dos verdes.
— E quanto àqueles homens lá fora, capitão? Que destino haverá para eles se
assinarem esse tratado?
— E que destino eles tiveram algum dia, capitã? O que sabe uma arrogante
oficial da marinha sobre a vida de um pirata, hã? Acha realmente que esses homens
partem em navios apertados, enfrentam doenças e comem lixo pelo simples prazer da
aventura? Nenhum deles deseja sair pelo mundo assaltando navios alheios, correndo o
risco de serem mutilados. Aqueles são homens desesperados, marinheiros
desempregados, expulsos de sua marinha quando não existe uma guerra para lutar. Tudo
o que sabem fazer na vida é manejar um navio, e a pirataria é a última opção deles antes
de morrerem de fome. A Companhia trará trabalho para esses homens, um trabalho
digno.
Colleen engoliu aquele discurso em seco, não negando a razão das palavras do
capitão. Sacou sua adaga e a cravou na mesa, enquanto encarava Vane nos olhos:
— Não existe dignidade em vender sua alma para assassinos inescrupulosos. Eu
não sou uma simples pirata, capitão, sou uma corsária a serviço da Coroa de Aldarian.
— A Aldarian que você conheceu não existe mais, minha cara, não há mais
lugar para nós nos mares de Mirr.
— Isso é o que veremos.
Ela virou as costas, arrancou sua adaga do tampo e saiu andando, enquanto Vane
gritava:
— Deveria se anistiar, capitã, é o melhor que tem a fazer.
— Lamento, meu caro, mas ao contrário de você, acredito que existe uma guerra
lá fora para ser lutada.
— Como queira, capitã, vejo-a na forca em algumas semanas.
161
Capítulo 6 - Uma Nova Bandeira
Sentada na mesa de Fletcher, Colleen encarava o vazio. O encontro com o
Conselho havia sido um completo fracasso e agora, mais do que nunca, ela se sentia
desamparada. Sempre acreditara nas histórias de seu capitão sobre o compromisso que
os piratas de Tirana tinham com seu Regente e que eles se uniriam em sua causa contra
a Companhia.
Não havia restado mais nada. A agora capitã não tinha mais um lar para rumar,
seu Regente estava perdido e provavelmente morto, e ela se tornara responsável por um
grupo de pessoas que acreditava que ela saberia o que fazer. É claro que poderia rumar
para Myrtakos, entregar o navio a qualquer um dos homens e se unir a seu pai e sua
irmã no exílio, mas no fundo sabia que assim estaria desistindo de tudo aquilo pelo qual
lutara.
Ouviu um som seco de alguém batendo. Antes que ela pudesse responder, a
jovem de cabelos ruivos entrou, fechando a porta atrás de si.
— Desculpe-me incomodá-la, capitã, mas vim lhe informar que os suprimentos
já foram comprados e em poucas horas poderemos zarpar.
Laura parou por um instante, notando a expressão de preocupação e inquietude
da corsária. Seu abatimento era visível. Mesmo um pouco constrangida, perguntou:
— Algum problema com a sua reunião?
A capitã ergueu a cabeça, encarando os olhos verdes de sua interlocutora:
162
— Lamento que você e especialmente sua irmã tenham se envolvido nisso. Ela é
muito pequena para ter de viver em um lugar como um navio.
A ladra sorriu e respondeu:
— Kitty é forte, capitã, e já passou por situações bem piores. Estou certa de que
ela irá superar esse período tão bem quanto eu e você.
— Talvez devêssemos pôr em terra e desfazer a tripulação. Se vendermos o
navio e os pertences dessa sala, teremos algum dinheiro, suficiente para que cada um de
vocês se arranje por algumas semanas.
— Está realmente pensando em desistir?
Colleen deu de ombros enquanto Laura dizia:
— E toda aquela conversa sobre caçar a Companhia, não se render à primeira
dificuldade? Pelo que vejo, o tal Conselho não ajudou em nada.
— O Conselho não existe mais, todos fugiram com medo da Companhia. Sabe,
Laura – disse com um suspiro –, por toda minha vida eu soube o que queria. Sabia que
queria ser livre e decidir quais rumos tomar. Quando enfim tenho essa oportunidade,
minha vontade é voltar correndo para casa. Simplesmente não sei o que fazer e para
onde rumar. Não podemos passar o resto de nossa vida vagando em um navio de um
lado para o outro.
— Quanto a isso eu concordo, capitã, mas algumas vezes vagar de um lado para
o outro é tudo o que nos resta.
— Até quando?, eu lhe pergunto. Nossa única esperança de restabelecer
Aldarian seria encontrar o Regente e trazê-lo de volta para que possa apontar os
conspiradores. Aqueles desgraçados estão justificando que Lorde Joseph fugiu deixando
seu povo para trás.
Laura olhou-a de forma inquisitiva, esperando que ela lhe confirmasse o boato.
A capitã respondeu:
— Tenho certeza de que ele não fugiu, Laura; foi capturado por alguém de
Azhir. Só rezo a Ehleniel que ainda esteja vivo.
163
— Se o que você diz é verdade, capitã, deve existir alguém lá fora, algum
capitão de Azhir que saiba o que aconteceu. Se ele foi embarcado em qualquer navio,
por maior que seja o sigilo, alguém tem que ter visto ele entrar. É só uma questão de
encontrarmos essa pessoa.
— E como pretende isso? Vasculhando de porto em porto e perguntando por aí
se alguém viu um Regente deposto ser colocado em um navio?
— Sigamos com o plano de seu capitão. Vamos continuar a caçar e aterrorizar a
Companhia. Se cutucarmos o suficiente, logo eles virão atrás de nós e aí poderemos
fazer as perguntas. Além do mais, você disse que alguns membros do Conselho de
Tirana fugiram. Se eles se recusaram a se anistiar, ainda desejam lutar. Se espera que
qualquer pirata redimido nos apoie, vamos precisar de ajuda.
Colleen admirou-se com a ousadia daquela mulher. Se mesmo Laura, que tinha
alguém por quem zelar, estava disposta a correr o risco, não seria ela quem iria
fraquejar.
— Muito bem, Laura. Acho que você está certa. Devemos formalizar um grupo,
uma companhia com regras, se desejamos dar uma lição nesses amirans nojentos.
Precisamos de uma nova bandeira, e ouvi dizer de alguém aqui em Tirana que pode nos
conseguir uma.
A capitã lembrava-se que certa vez Fletcher lhe falara de um velho amigo que
vivia em Tirana, responsável pela confecção da maior parte das bandeiras ostentadas
por lá. Bastou apenas que ela perguntasse a uma ou duas pessoas na ilha a respeito de
Pete Fumarento, como era conhecido por ali. Após uns dez minutos caminhando pelas
docas, Colleen chegou a uma construção de esquina. Entre duas lojas, em uma porta no
canto, havia dependurada uma placa com um crânio sobre ossos cruzados. Bateu uma e
depois duas vezes sem obter uma resposta. Após alguns segundos ouviu uma voz
esganiçada que, entre uma tosse e outra, pediu para que ela entrasse.
Ela logo percebeu o porquê do apelido do bandeirista, ao entrar no aposento
pequeno e úmido completamente tomado por uma fumaça espessa de cheiro acanelado.
A capitã caminhou por entre uma série de caixas espalhadas no chão até conseguir se
aproximar do homem atrás da mesa.
164
Pete era pequeno, menor do que uma pessoa normal. Sua pele era
profundamente enrugada e seus cabelos já começavam a escassear no topo da cabeça.
Na boca larga e amistosa segurava um cachimbo de leitura com cabo bastante longo.
Sua outra mão ajustava insistentemente um par de óculos dourados com lentes tão
grossas quanto um dedo. O homem franzino ergueu os olhos para encarar sua visita,
acenando com a mão para que ela saísse.
— Não pedi nenhuma garota hoje, sim? Por favor, estou muito ocupado.
Ela se aproximou do homem, agarrando seu colarinho e o encarando:
— Por acaso lhe pareço alguma prostituta barata?
Assustado com a reação de Colleen e soltando a mão dela de seu colarinho,
disse:
— Está bem, desculpe, sim? O que posso fazer por você?
— Um amigo me disse que o senhor é quem faz bandeiras por aqui.
— Sim, sim – disse o homem sorrindo –, se é uma bandeira que precisa, é uma
bandeira que irá ter. Quem é seu amigo?
— Capitão Jack Fletcher.
— Sim, sim, bom homem esse Fletcher. Me pediu uma bandeira com um crânio
de orc, muito difícil execução. Só consegui desenhá-la quando ele me trouxe um desses
crânios para ver como era.
O homem riu com a lembrança, soltando uma tosse forte e seca.
— Me esqueço de muitas coisas, mas nunca de uma bandeira que tenha feito. Já
tem uma ideia do que quer em sua bandeira, minha cara...
— Escarlate, pode me chamar de capitã Escarlate.
— Sim, bom nome – disse, após uma tosse. – Imagino que irá querer um belo
crânio.
— Sem crânios em minha bandeira, meu caro Pete.
— Sem crânio, ahn? Vocês, jovens, e suas ideias inovadoras. O que quer, então?
165
Colleen pegou um pedaço de papel e uma pena que estava sobre a mesa do
homem. Com um pouco de habilidade rascunhou o que desejava. O homenzinho a
olhava surpreso, sem entender exatamente o que ela pretendia, até que terminou seu
desenho.
— Está certa disso? Mas isso aqui no centro é uma...
— Precisamente – disse com um sorriso.
O homem deu uma longa baforada em seu cachimbo, observando o trabalho.
— Olha, eu não costumo desenhar esse tipo de imagem, sabe. Não é comum e...
— Está recusando o trabalho? Ou será que você só sabe desenhar caveiras?
— Não, não, claro que não – justificou-se Pete, como que insultado. – Se é isso
que quer, é isso que irei fazer. Quanto à cor disso...
— Vermelho, meu caro, vermelho sobre um pano negro.
— Está bem, está bem. São dois sextantes, e ela deverá ficar pronta em dois dias.
Colleen olhou para o homem e disse:
— Acredite quando digo que um dia ficará orgulhoso em saber que criou a
bandeira mais temida em todos os mares de Mirr.
A capitã então se virou, deixando o ambiente fumarento para trás. Pete levantou-
se de sua cadeira e foi até uma estante pegar um rolo de tecido para começar o trabalho.
Talvez seja hora de me aposentar, estou ficando velho para esse trabalho.
166
Capítulo 7 - A Formação da Companhia
Era fim de tarde quando Colleen finalmente retornou ao Aliança. As duas luas
de Mirr já estavam no alto, iluminando aquele que agora era seu navio. No convés
principal, ajudando e supervisionando o carregamento de suprimentos estava Laura. Ao
avistar a capitã, ela abriu um sorriso e berrou de cima do navio:
— Estamos quase completamente carregados, capitã. Comida e suprimentos
suficientes para pelo menos quatro meses de viagem.
A capitã correu até a lateral do navio, agarrando-se a uma escada de cordas e
subiu até o convés. A ladra prosseguiu:
— Ainda faltam alguns itens, capitã, mas os mercadores me prometeram
entregá-los amanhã pela manhã.
— Alguma deserção na tripulação, Laura?
— Nenhuma, capitã, todos os homens encontram-se a bordo, bem alimentados e
motivados. Tomei a liberdade de ordenar um jantar especial para esta noite, regado com
um pouco de rum.
— Fez bem, minha cara. Esses marinheiros estão fatigados, deixe que comam e
bebam enquanto ainda estamos em terra – disse olhando à sua volta.
Por sobre o convés, seus homens descansavam após o farto jantar. Alguns
estavam recostados na amurada cochilando, enquanto outros reuniam-se em uma roda
para cantar e dançar.
167
— Ainda há comida se desejar, capitã.
— Obrigada, mas ainda temos um assunto importante a tratar. Reúna os homens
em frente ao casario de popa, preciso falar a todos.
— Sim, capitã.
Laura correu pelo convés, acordando os adormecidos e reunindo a todos. A
capitã subiu até o convés de tombadilho, aguardou que os homens silenciassem e, com
as mãos apoiadas sobre a balaustrada, disse:
— Fico satisfeita em perceber que todos continuam aqui. Sei que muitos de
vocês prefeririam estar em terra, com suas famílias e amigos, mas sei também que
compreendem a importância de nosso trabalho. O Conselho de Tirana se vendeu aos
desígnios da Companhia, agem como covardes temerosos de morrerem pela forca.
Ótimo, eu digo, pois haverá menos concorrentes para nós.
Uma risada esparsa se ergueu entre os homens. A corsária sorriu e prosseguiu:
— Há ouro lá fora, senhores, riquezas transportadas por mercadores que
acreditam que ostentar a bandeira da Companhia de Al Azhir lhes trará segurança. Eu
digo que estão errados, pois para nós a bandeira será como sangue em um mar de
tubarões. Iremos caçá-los, persegui-los até que a simples visão de nosso navio os faça
borrarem suas calças. Não irei parar até que cada capitão amiran saiba quem nós somos
e o que fazemos com eles. Ergam as armas quem quer arrancar cada moeda desses
bastardos.
Todos ergueram suas armas, gritando e brandindo seus facões. A capitã,
percebendo a empolgação dos homens, disse:
— Senhores, se desejam navegar e pilhar a Companhia, há algumas coisas que
precisam ser acordadas. A primeira é que, a partir de agora, não existirão mais os
homens de Fletcher e os prisioneiros de Karnast, e sim uma única tripulação. Devemos
nos unir em um grupo coeso, onde o direito e o dever de todos serão iguais. O segundo
passo é determinar a função de cada um de vocês nessa embarcação. Como forma de
unir nosso grupo, eu convido Laura a se tornar minha contramestre e segunda em
comando. O que me diz?
168
Laura sorriu, surpresa com o convite e com a responsabilidade que teria de
assumir. Ciente de sua obrigação, respondeu:
— Eu aceito o posto, capitã.
— Laura, você luta muito bem. Me diga: quem dentre vocês é o mais habilitado
a ensinar os outros a lutar?
A ladra buscou entre seus companheiros aquele que havia lhe ensinado o ofício
de gladiadora, e cujos conselhos a mantiveram viva por tantos meses:
— Escolho mestre Yetu para essa função, capitã.
O negro deu um passo à frente, fazendo um pequeno sinal com a cabeça,
indicando aceitar a posição.
Colleen voltou sua atenção para seus antigos companheiros:
— Joshua, você tem prestado um valioso serviço como navegador do Aliança e
assim espero que o faça por muito tempo. O mesmo vale para você, senhor Heywood,
quero que continue como nosso mestre artilheiro.
A capitã prosseguiu distribuindo funções entre os mais capazes. Os homens de
Fletcher que haviam sobrevivido mantiveram suas posições ou foram promovidos,
enquanto os postos vagos eram preenchidos pelos prisioneiros capazes de executar as
funções. Ao final, ela virou-se para todos:
— Agora que todos sabem seu papel nessa embarcação, é chegada a hora de
estipular as regras. Tomei a liberdade de recuperar o contrato escrito por Fletcher e peço
que todos o assinem para oficializar nossa tripulação.
1 - Todos têm direito a um voto nos assuntos de interesse da tripulação.
2 - Na divisão do butim, a divisão dos valores arrecadados será igual para todos que
assinarem esse contrato. Marinheiros recrutados a partir de hoje receberão metade do
valor até se provarem dignos de nossa confiança.
3 - É proibido jogar com cartas ou dados a dinheiro. Aquele que for pego apostando
receberá quarenta chibatadas com as costas nuas.
4 - Se alguém perder um olho, perna ou braço em combate receberá de cem a
oitocentos sextantes, equivalentes ao tamanho da perda.
169
5 - Aquele que quebrar sua arma ou a não mantiver limpa e adequada para uso
receberá quarenta chibatadas com as costas nuas.
6 - Todos terão direito a partes iguais dos víveres frescos obtidos. Aquele que roubar
comida será castigado com uma chibatada dada por cada membro da tripulação.
7 - Brigas são proibidas a bordo. Aqueles que quiserem acertar suas diferenças o farão
em terra, munido de espadas, sendo que quem causar o primeiro ferimento vence.
8 - Aquele que roubar ou ocultar tesouro será desterrado em uma ilha com uma garrafa
de água, um alfanje e uma besta com três virotes ou executado à escolha do capitão.
Terminada a leitura, os homens, um a um, assinaram os termos no papel. Assim
que todos terminaram e voltaram às suas atividades, Laura se aproximou de Colleen e,
colocando a mão sobre o ombro dela, disse:
— Fez um belo discurso ali, capitã. Agradeço sua confiança.
A capitã suspirou. Pessoalmente, ela não via perspectivas tão positivas no
horizonte. A reunião com o Conselho da ilha agira como um murro em seu estômago,
um golpe que ela não podia deixar transparecer.
— Preciso de um pouco de paz e silêncio – disse com ar cansado. - Estarei lá
dentro checando o que sobrou e o que ainda pode ser usado.
— A caixa e as cartas que me pediu continuam lá, capitã. Por sorte não foi
necessário desfazer-se de muitos itens de sua cabine.
Minha cabine, pensou. Aquela é agora a minha cabine.
— Termine o carregamento e mande que os homens descansem. Você deve fazer
o mesmo, pois amanhã partiremos.
— Sim, capitã – disse Laura, fazendo um sinal com a cabeça.
A jovem dirigiu-se para sua cabine, abrindo a porta com um rangido. Laura
havia sido bastante discreta e seletiva, e aparentemente apenas os objetos menos
importantes haviam desaparecido. Quase todos os objetos de metal, excetuando-se os
instrumentos de navegação e as armas, haviam sumido. Não estavam mais lá os tapetes
coloridos, as louças pintadas a mão e outros objetos de decoração. Algumas das armas
170
adornadas de Fletcher tiveram suas joias arrancadas para serem vendidas sem que a
arma fosse comprometida.
Aproximou-se da pequena caixa de madeira envernizada e girou a manivela que
se encontrava ao seu lado. Após alguns minutos abriu-a, produzindo uma bela melodia
que lhe trouxe lembranças. Ela jogou-se sobre a cama, estranhando tamanho conforto
que tanto lhe lembrava sua casa em Northwind. Não demorou muito para que, embalada
pela música, adormecesse.
Em sonhos, Colleen viu sua cidade mergulhada no caos; homens e mulheres
correndo para todos os lados; soldados em armaduras negras que rumavam
disciplinados para o castelo. A imagem, então, se converteu para o interior das
muralhas, enquanto ela observava os guardas reais serem massacrados pelos invasores.
Logo, labaredas passaram a devorar as paredes do castelo, espalhando-se pelo jardim
real. As palmeiras iluminavam o céu como grandes tochas; sua estimada roseira ardia
em uma mistura de vermelho e laranja. As pétalas, antes belas, se transformavam em
cinzas, enquanto as flores eram consumidas pelas chamas.
A capitã despertou e fitou o teto de madeira. A caixa de música havia silenciado
e o mesmo ocorreu com o barulho lá fora. Ela se levantou da cama, aproximou-se da
porta e saiu.
O convés estava completamente vazio, à exceção de um dos homens que
montava guarda como sentinela. O marinheiro cumprimentou-a com um discreto aceno
de cabeça, sendo correspondido e voltando à sua função. Ela se sentou na amurada da
proa do navio. Com um olhar perdido, passou a observar o mar.
Desafivelou a pequena corrente que trazia pendurada no pescoço e ergueu o
pingente no ar. A prata da rosa dos ventos contra a noite escura reluziu à luz da lua,
enquanto ela pensava em todas as implicações dos últimos dias. Sua casa havia caído,
seu Regente estava agora desaparecido e, pela primeira vez na vida, ela não tinha um lar
para onde retornar. Ressentia-se das últimas palavras que dissera a seu pai e rezava em
silêncio para que ele e sua irmã estivessem bem.
— Eu estava certa! - A voz veio de trás da capitã que, instintivamente, guardou o
pingente no bolso de seu casaco.
171
Virou-se para encarar seu interlocutor. Laura estava parada de pé, atrás dela,
com uma expressão serena.
— O que está dizendo, Laura, no que você estava certa?
— Não precisa disfarçar ou se fazer de desentendida comigo, minha senhora. –
Laura enfatizou o tratamento de nobreza.
— Mas o que está dizendo e...
A jovem se aproximou, sentando-se na amurada e colocou sua mão sobre a
perna dela.
— Northwind, não é? Colleen, se não me falha a memória.
O sangue da corsária gelou. Como poderia essa ladra saber quem ela era? Diante
do silêncio, Laura prosseguiu:
— Eu sabia que havia algo de diferente em você. Sua pele sem marcas, o seu
modo de caminhar, falar e até mesmo lutar. Era engraçado como você tentava disfarçar
essas coisas quando falava com os outros.
Colleen permanecia muda, pensando que ação deveria tomar. Ao perceber a
apreensão nos olhos dela, Laura continuou:
— Não há o que temer, capitã, não tenho nenhum interesse em lhe fazer
qualquer mal. Você salvou a mim e à minha irmã! Isso é mais do que suficiente para
que eu lhe seja grata pelo resto da vida.
— Mas como?
— Muito simples, capitã. Quando se sobrevive nas ruas como eu, aprende-se
rapidamente que cada detalhe em uma pessoa pode ser útil. Vivi minha vida inteira nas
ruas de Northwind e, apesar da família do Governador ser bastante reservada, me
lembro de ter visto seu rosto uma dúzia de vezes.
Colleen sorriu pela primeira vez durante toda a conversa.
— Eram tempos bons aqueles, Laura, quando eu podia ser rebelde e
inconsequente; não tinha mais nada com que me preocupar além da bronca que ouviria
do meu pai.
172
— Não compreendo por que uma pessoa como você, tendo todo o luxo que
alguém poderia sonhar, precisaria vir para o mar.
— A vida de uma nobre pode ser bastante solitária. Regras, protocolos, festas,
aulas; e, quando percebemos, não tivemos tempo sequer de observar como estava o céu
naquele dia. Ao se viver assim, seu dia é tediosamente previsível. Não existe
humanidade no trato da realeza, Laura, somente regras.
— Acho que tenho algo aqui que pode lhe agradar. - Dizendo isso, a ladra puxou
uma pequena garrafa de vidro esverdeado de seu casaco, balançando o líquido amarelo.
- O mercador que me vendeu essa me garantiu vir diretamente de Valdernan, excelente
safra. Custou um pouco mais em Tirana do que custava em Aldarian, mas foi um bom
investimento.
Seus lábios ficaram úmidos com o cheiro adocicado da bebida. Ainda relutante,
respondeu:
— Não estou certa se devo, Laura, afinal amanhã preciso estar alerta.
— Ora, capitã, por favor. Aqui temos apenas uma garrafa: se eu beber metade e
você a outra metade, o pior que pode acontecer é ficarmos meio bêbadas.
A corsária se permitiu gargalhar enquanto aceitava a garrafa e dava um longo
gole. O sabor do rum descendo pela garganta aliviou-lhe a sede, relaxando os músculos
das tensões do dia. Ela passou a garrafa para Laura, que repetiu o gesto e perguntou:
— E como uma filha da nobreza acabou no meio de um bando de marinheiros e
mercenários, perdida no mar?
Agora que Laura conhecia a verdade, a capitã pôde narrar toda a história sobre
sua jornada até ali. Das brigas com o pai, do apoio de seu Regente, do aprendizado com
Fletcher até sua morte há alguns dias.
— Agora entendo por que ficou tão sentida quando Karnast fez o que fez com
seu capitão. Ele parecia um bom homem.
— Era sim, um bom capitão. Espero algum dia fazer jus a seu nome – disse,
após um outro gole na garrafa. - Mas, e quanto a você, ahn? Pior do que uma nobre em
meio a marinheiros, é uma mulher e uma criança junto a piratas.
173
Laura, então, narrou a história de sua família, como seu pai e sua mãe haviam
morrido e ela tivera de, da noite para o dia, cuidar sozinha da irmã.
— Roubos e invasões, não é – disse a capitã em meio ao riso. – Isso sim é uma
forma emocionante de se ganhar a vida. Mas me lembro de Karnast se referir a vocês e a
seus companheiros como escravos. O que exatamente aconteceu?
— Houve esse serviço que aceitei há alguns meses. O empregador pagava bem e
me deu um adiantamento substancial para executar a tarefa. Após cumprir minha parte
do trato, ele me envenenou. Quando percebi, eu e Katherine já estávamos em Tirana
para sermos negociadas.
A conversa atiçou a curiosidade de Colleen:
— Negociadas?
— Sim, eu e minha irmã fomos compradas por um senhor de escravos que
organizava lutas de gladiadores em seu navio. Foram meses difíceis, mas graças ao
aprendizado que tive com Yetu, fui capaz de vencer e sobreviver.
— E que serviço foi esse para que esse homem se empenhasse tanto em se livrar
de você?
Laura parou por um instante, percebendo o quanto a bebida soltara
excessivamente a sua língua. Sua amiga ficaria ofendida se soubesse o que ela havia
feito na Real Escola. Então, ergueu a garrafa, olhando seu conteúdo quase no final e
disse:
— Não temos rum suficiente para que eu lhe conte essa história, capitã; vamos
deixar para outra ocasião. Acho melhor nos recolhermos – Laura acabou com o líquido.
– Amanhã será um dia bem cheio.
- Tem razão, já estou sentindo minha cabeça girar. Vou tomar um pouco de ar e
já me recolherei.
— Como quiser, capitã.
Laura se levantou da amurada e afastou-se da proa do navio. A voz da capitã a
alcançou:
— Você tem razão em uma coisa, Laura.
174
— E o que é, capitã?
— Que tipo de pessoa se chamaria apenas Rosa? É estúpido. Preciso pensar em
um sobrenome para ocasiões como aquela.
Laura apenas riu alto, enquanto se afastava em direção à parte interna do navio.
175
Capítulo 8 - Fuga para Myrtakos
Durante as duas semanas seguintes à tomada de Aldarian, o porto de Northwind
nunca esteve tão movimentado. Pelas docas passavam centenas de carroças carregando
toda sorte de artigos nos grandes navios de carga de Myrtakos. Esses artigos, no
entanto, estavam longe de ser mercadorias para o comércio entre duas nações: faziam
parte do êxodo acertado entre a nova coroa de Aldarian e o grande Conselho da pátria
mãe. Segundo o acordo assinado pelo agora Rei John Hattcliff, todo e qualquer cidadão
que desejasse deixar o reino deveria fazê-lo em um prazo de duas semanas, embarcando
em um dos navios mercantes disponíveis para a viagem.
A viagem dos membros do extinto Conselho dos Ventos não ocorreu em
melhores condições. Apesar de terem alguns privilégios a mais, eles só puderam deixar
a ilha com pouco mais que a roupa de seus corpos e algumas malas com pertences
pessoais. Todos os objetos considerados de valor para o tesouro da nova coroa foram
confiscados, incluindo joias de família, mobiliários e até mesmo documentos de
interesse do Estado.
Guinford Northwind foi o primeiro conselheiro a deixar a ilha, partindo com
Melleen em um pequeno navio de escolta com a bandeira de Myrtakos. Diferente dos
outros membros do conselho que embarcaram com a população para Failet, Guinford
solicitara ao embaixador de Myrtakos que fosse levado para a capital Kist, localizada na
província de Messânia, onde pretendia encontrar um velho aliado.
176
Nas três semanas seguintes de viagem, o Governador permaneceu a maior parte
do tempo em silêncio. Nas raras vezes em que deixava a cabine destinada a ele, tudo o
que fazia era sentar na proa do navio e encarar o oceano à sua frente. Melleen tentava a
seu modo animar o pai, abraçando-o e acariciando-o sempre que ele permitia
aproximação. Ela também se via obrigada a lidar com seus próprios fantasmas, em
especial o desaparecimento da irmã. Recusava-se a acreditar que estivesse morta. O
futuro de sua família era incerto e, por alguns breves instantes, Melleen se arrependia de
ter dedicado tanto tempo aos estudos em vez da luta.
Se eu tivesse conseguido me desvencilhar daquele imundo...meu pai não teria
vindo e quem sabe...nosso senhor poderia estar salvo e as coisas seriam diferentes,
pensava Melleen com amargor no coração.
Era uma tarde bastante fria quando o navio finalmente alcançou as terras de
Myrtakos, ancorando no cais da cidade de Messânia. Uma cerração baixa tomava conta
da costa, dando um ar ainda mais melancólico ao desembarque. Nas docas, aguardando
por Guinford e sua filha, encontrava-se uma carruagem negra, puxada por um total de
quatro cavalos de cor castanha. De seu interior saiu um homem velho, cujos cabelos
brancos e cacheados cobriam toda a cabeça; seu corpo era baixo e troncudo e já
começava a se curvar perante a idade. Tinha lábios retos, um nariz saliente e olhos
pequenos e castanhos. Vestia-se com elegância, trajando camisa de veludo negro,
adornada com filigranas de prata. A calça da mesma cor estava presa por um cinto de
couro claro e enfiada em um par de botas de cano longo. Uma capa negra, também
adornada, protegia-o do frio.
— Meu senhor governador, que prazer em revê-lo. Lamento que não seja em
melhores circunstâncias.
Guinford se aproximou do homem, primeiramente apertando a sua mão e depois
o abraçando, para só então encará-lo nos olhos.
— O tempo não foi muito generoso com você, Talafér.
O homem se permitiu um sorriso discreto e respondeu:
— Já não posso lhe dizer o mesmo. E essa é sua mais velha, não é? Melleen?
Não a via desde o aniversário da jovem Colleen. E onde ela está?
177
Talafér passou a buscar a menina com os olhos, mas apenas encontrou o rosto
endurecido de Guinford.
— Eu lamento... Não sabia e...
— Não lamente, Talafér. Minha menina é forte e determinada, não se permitiria
morrer de forma tão estúpida. Ela estava a bordo de um dos navios reais durante o
ataque, mas desde então não sabemos seu paradeiro.
— Enviarei imediatamente um mensageiro até Kethakos e solicitarei que meus
navios iniciem uma busca pela costa.
— Sou grato, meu amigo – disse Guinford colocando sua mão sobre o ombro de
Talafér.
— Devemos partir agora, governador. A viagem até Kist é longa e temos muito
que conversar antes que você possa se dirigir ao Círculo Interno pessoalmente.
Providenciarei para que seus pertences sejam enviados à minha residência em Kethakos.
Enquanto estiver em Myrtakos, é meu hóspede e não aceitarei nada diferente disso. A
jovem virá conosco?
Guinford olhou para Melleen, que respondeu de maneira formal:
— Não irei a parte alguma sem meu pai, senhor.
— Muito bem. Estou certo de que o líder do Conselho não verá problemas em
acomodá-la no castelo. Podemos? - O homem apontou para a carruagem, ajudando
Melleen a subir para, em seguida, ele mesmo subir, sentando-se de frente para ela.
Guinford foi o último, sentando-se ao lado da filha e fechando a porta. Talafér
deu três batidas leves na lateral do coche, que em poucos instantes começou a se mover,
balançando pelas ruas precárias da cidade portuária em direção à capital.
Durante a maior parte da viagem, Guinford permaneceu tão silencioso e
introspectivo quanto estivera no navio. A carruagem viajava rápido, parando apenas
para que seus ocupantes se alimentassem e os cavalos e o cocheiro fossem trocados.
Em uma certa altura da viagem, Talafér rompeu o silêncio, buscando entre seus
pertences alguns papéis e documentos.
178
— Sei que tudo ainda é muito recente, meu amigo, mas temos de tratar de sua
petição junto ao Círculo Interno. Já sabe o que irá dizer?
Guinford encarou Talafér como se a resposta para sua pergunta fosse óbvia:
— Irei exigir que Myrtakos cumpra com sua parte na aliança, que ajude a depor
John Hattcliff e a restabelecer meu senhor ao trono.
— Tem que ter cuidado com seus termos, meu amigo. Myrtakos já está
cumprindo sua parte, dando abrigo e refúgio a todos os aldarianos que assim o desejam?
Faz ideia do custo que isso tem gerado em nossos cofres?
Irado, Guinford deu um golpe contra a parede da carruagem:
— E quanto ao custo das centenas de navios vendidos à sua pátria a preço de
custo? E os homens que morreram combatendo os navios orcs que infestam sua costa?
Isso não entra na conta de seu conselho, não é mesmo?
- Acalme-se, Guinford, você sabe bem que as coisas não são tão simples.
Melleen instintivamente abraçou seu pai, buscando confortá-lo um pouco.
Dirigiu-se em seguida a Talafér:
— Se não isso, senhor, o que meu pai pode esperar do Conselho?
— Veja bem, minha jovem, para conseguir qualquer tipo de apoio bélico ou
político vindo de Myrtakos, precisamos de provas da ilegitimidade desse golpe. Até
onde nosso embaixador em Aldarian nos informa, Azhir possui documentos mais do
que suficientes para provar que vosso reino devia uma fortuna em taxas alfandegárias, o
que teria justificado o embargo à passagem do canal.
— Mas isso é absurdo – disse Guinford. – Lorde Yuri Hattcliff e o antigo
Patriarca haviam acertado a isenção dessas taxas muito antes de meu senhor Joseph
ascender ao trono.
— Eu sei, Guinford, mas você mesmo me disse que esses documentos
desapareceram. Sem esses papéis não podemos provar sequer que esse acordo existiu.
Ainda existe a questão do direito que John tem sobre o trono, já que é ele, e não seu
senhor Joseph, o filho legítimo de Yuri. Com o caos instaurado por conta do embargo e
179
a inabilidade de seu Regente de chegar a um acordo, um golpe de estado “pelo bem do
povo” se torna uma ação legítima.
— Um maldito acordo entre dois comparsas – disse Guinford furioso. – Karim e
John estavam aliados desde o início. O maldito Patriarca criou essa situação até que a
política se tornasse insustentável e fôssemos obrigados a agir.
— Pode provar o que diz, Governador?
— É claro que não – gritou Guinford. – Eu apenas sei o que vi e ouvi de meu
Regente.
— Existe ainda a questão da fuga do Regente, o que corrobora a causa de Azhir.
— Você sabe muito bem que ele não fugiu. Eu o vi ser capturado e não pude
fazer nada.
— Acredito em você, meu amigo, e quero que me tenha como seu aliado, mas
sou obrigado a advogar a favor de nossos inimigos. Seu testemunho tem muito valor,
mas sem mais testemunhas desse sequestro, não temos como rebater a versão de Azhir.
Um imenso peso parecia ter se alojado sobre as costas do Governador. Tinha o
corpo cansado e a mente confusa.
— E quanto aos mercenários de armaduras negras? Eles podem nos oferecer
alguma pista? – questionou Talafér.
— Sabemos muito pouco sobre a tal Força Sombria como eles se denominam.
Suas ações são raras e pontuais, e eles logo desaparecem assim que terminam seu
trabalho. Não fazemos ideia sequer de a qual reino eles pertencem. Tudo o que sabemos
é que seus serviços, apesar de eficientes, são bastante caros. - E com uma calma
incomum complementou: - Que foi Azhir que financiou o golpe todos sabemos.
— Para se defender dos piratas que atacavam seus navios – disse Talafér se
lembrando dos documentos aos quais tinha tido acesso.
— Ainda sim, não faz sentido, meu amigo. Eles já tinham fechado o canal e, por
mais que os ataques dos corsários de Aldarian fosse custosos, poderia ter havido uma
outra solução. Por que a Companhia gastaria milhões para contratar um grupo como
esse? Tem de haver algo mais por trás disso.
180
— É um questionamento válido - disse Talafér. – Não vejo por que não explorá-
lo. Se provarmos esses gastos astronômicos, podemos levantar uma suspeita em relação
às intenções de Azhir. De qualquer forma, você deve ir àquela audiência e expor seu
caso ao Conselho. Eles certamente irão escutá-lo e respeitar seu relato. Depois
precisamos trabalhar para conseguir provas e, sobretudo, descobrir o que houve com
Lorde Hattcliff. Se ele ainda está vivo, será nossa mais importante testemunha. Fique
tranquilo e ocupe sua mente para se recompor, pois preciso de você alerta para me
auxiliar com toda essa burocracia.
— Me sinto tão cansado, meu amigo – disse Guinford, recostando a cabeça
sobre o ombro de sua filha –, muito cansado.
Em instantes, Guinford fechou os olhos e adormeceu. Melleen delicadamente
puxou-o, acomodando a cabeça dele no colo. Talafér guardou seus papéis e buscou
encostar no banco para dormir um pouco. Melleen permaneceu alerta, olhando a
interminável estrada do lado de fora da carruagem, enquanto refletia:
Ah, minha irmã, nosso pai nunca precisou tanto de sua força como hoje.
181
Capítulo 9 - Uma Rosa sobre Sabres Cruzados
O momento que todos aguardavam há dias finalmente tinha chegado. O navio
estava abastecido, a tripulação motivada, e a sede por pilhagens e saques longe de ser
saciada. Reunidos no convés do Aliança, os homens da agora Capitã Escarlate
aguardavam ansiosos o momento de desfraldar sobre o mastro sua nova bandeira.
Sem mais delongas, Laura desembrulhou a encomenda feita ao velho Pete e
tratou de prender a bandeira nas polias do mastro principal. O novo símbolo se ergueu
pelo mastro, alcançando o topo e desenrolando-se ao sabor do vento.
Silêncio.
A cantoria cessou, os urros de alegria se calaram, enquanto os homens olhavam
para a bandeira com um olhar de espanto e dúvida. Colleen sorria triunfante, satisfeita
com o trabalho realizado pelo tecelão e certa de que aquele símbolo marcaria para
sempre os mares de Mirr.
— O que acham, senhores? Um belo símbolo para nossa embarcação, não?
John MacCoy, o tanoeiro do navio, engoliu em seco. Vacilante, disse:
— Capitã, aquilo ali em cima é uma... flor?
— Uma rosa, para ser mais exato, marujo. Uma linda rosa escarlate colocada
sobre dois sabres cruzados.
— Continua sendo uma flor para mim – disse Charles Purcell, o carpinteiro de
bordo, igualmente incerto.
182
Um murmúrio de desaprovação elevou-se na multidão enquanto a tripulação
discutia e brigava. A capitã pediu silêncio e logo interveio:
— O que vocês esperavam, ahn? Mais um crânio branco sobre ossos cruzados?
Todas as cabeças balançaram em concordância.
— Talvez ainda não tenham compreendido o propósito dessa tripulação,
senhores. Acham que seremos apenas mais um grupo de piratas malcheirosos pilhando
navios pelo conteúdo de seus porões. Acham mesmo que iremos nos limitar a essas
ninharias?
— Mas, capitã, é uma maldita flor vermelha. Eu me recuso a navegar tendo esse
símbolo sobre minha cabeça.
— Se recusa, não é? Recusar-se a navegar é atitude de uma mocinha assustada.
Achei que tinha algo para honrar entre suas pernas.
A tripulação explodiu em risos enquanto o questionador se calava emburrado. A
capitã prosseguiu:
— Não queremos ser mais um grupo de ladrões, mas sim o mais temido deles.
Deixe que os capitães da Companhia de Al Azhir riam de nossa bandeira, pois lhes
garanto que, em alguns meses, a simples visão dessa rosa fará com que até o mais bravo
borre suas calças só de pensar no que faremos com eles. Crânios são para amadores.
Um breve segundo se passou, tempo suficiente apenas para que a corsária
prendesse sua respiração. Uma voz conhecida veio do meio do convés. Era Yetu, o
recém-eleito mestre de armas:
— E para onde devemos rumar, capitã?
— Ajustem as velas para o leste, homens: vamos rumar para Ixan, onde as
presas da Companhia são fáceis e nossa presença não é esperada.
♥♠♥
183
As primeiras semanas viajando ao longo da costa de Ixan se mostraram
extremamente desafiadoras. A recém-formada tripulação começou pilhando navios
pequenos e desprotegidos para, em seguida, buscar alvos maiores e mais rentáveis. À
medida que a tripulação se tornava mais coesa e a capitã mais confiante, os lucros,
assim como a recompensa por suas cabeças, aumentavam.
O nome da Capitã Escarlate se tornou lendário conforme as semanas se
converteram em meses e os meses em anos. A cada navio capturado, a cada cidade
visitada, a pergunta se repetia: “Que fim haveriam levado os capitães de Tirana?”
Por muito tempo ela acreditou que essa busca seria inútil, que os lendários
capitães já teriam sido mortos ou se aposentado. Sua sorte porém começou a mudar
quando ela aportou em uma cidade do reino de Shunnaq, uma das muitas nações a
compor o continente de Ixan.
Enquanto caminhava pelo porto e vielas da cidade, ouvindo e observando o
interminável vaivém de pessoas e mercadorias, algo lhe chamou a atenção. Afixado na
parede de uma loja, encontrava-se um papel amarelado com linhas retorcidas que foi
incapaz de ler. Logo, imaginou que se tratava de um cartaz de “Procura-se”, já que
continha um valor de recompensa, além de duas ilustrações. A primeira era do rosto de
um homem que Colleen jamais vira, mas foi o segundo desenho que captou sua atenção:
uma bandeira negra, tendo sobre ela um crânio humano trespassado na horizontal por
um sabre curvo.
Ao olhar mais de perto, a capitã percebeu que o pomo da espada era na verdade
uma estrela de oito pontas, o sinal que o capitão Fletcher lhe ensinara para identificar
corsários aliados. Cada pirata a serviço da coroa deveria ocultar aquele símbolo em sua
bandeira, de forma que outros pudessem identificá-lo quando no mar. Aquilo
identificava o tal homem como um dos capitães que ela procurava. Porém, se nem a
justiça era capaz de prendê-lo, o que dizer de um navio solitário. Enquanto se afastava
do local, ela ouviu uma discussão vinda de uma doca próxima.
— Allaanatu aala hadhihi alqarasina. Aktharu biqalil wa safinati lan tanji' min
hujum tilka alkhanazir.
As palavras soavam estranhas ao ouvido de Colleen, ruídos quase indistintos dos
quais ela conseguiu compreender três palavras: piratas, navio e ataque. Apesar dos anos
184
pilhando os navios da Companhia, ela ainda era incapaz de dominar plenamente o
amiran, idioma nativo de boa parte daqueles que viviam em Ixan. O queixoso
aparentava ser um capitão azhiriano, lamentando-se com a autoridade portuária sobre
um possível roubo de cargas. Seu navio parecia bastante avariado, o que fez a corsária
supor que havia sido alvo de um ataque.
— Mata sayafaaluna shai'an? Hal yujad ahad yuttared ha'ulaa elmujrimin? –
prosseguia o homem em fúria.
Ela distinguiu a palavra bandidos e logo percebeu que ali teria alguma boa
informação. Aproximou-se do capitão e, forçando seu amiran, disse:
— Tatakallamu lughati? Tatakalam alCostar?
— É claro que falo Costar, mas quem é você e o que quer?
A fala do capitão saiu enrolada em um sotaque terrível, quase tão difícil de
compreender quanto sua língua original.
— Me chamo Rosa – apresentou-se Colleen com um sorriso franco, ocultando a
alcunha pelo qual era procurada - e sou uma caçadora de piratas.
— Caçadora? - perguntou o homem com sua atenção renovada.
— Sim, capitão. Uma vez que as autoridades são incapazes de solucionar o
problema, alguém tem de tomar as rédeas, não é mesmo?
— Peço perdão, capitã, por ser tão rude, mas esses assaltos têm tirado meu sono.
Me chamo Aybak, capitão Aybak do Estrela Nascente.
— O prazer é todo meu, capitão. Mas o que houve com seu navio?
— Malditos ladrões nojentos! Estão pilhando uma de nossas rotas. Enquanto
isso, esses agentes imbecis assistem a tudo sem tomar providências.
O agente da Companhia ouvia tudo, impassível. Talvez não compreendesse o
Costar ou talvez não estivesse sequer se importando com o que o capitão tivesse a
dizer. Ele respirou fundo, olhou nos olhos da caçadora e prosseguiu:
— Meu navio foi atacado por um deles. Conseguimos deixá-lo bastante
avariado, mas escapei de seu ataque por pouco.
185
— Lembra-se da bandeira que ele carregava, capitão?
Aybak descreveu o mesmo símbolo que ela vira no cartaz e disse:
— Se o trouxer até mim, capitã, pagarei uma boa recompensa. Ficarei na cidade
pelas próximas semanas, até que meu navio seja reparado.
— Você disse que se enfrentaram? Pode me apontar as coordenadas desse
ataque?
O capitão ordenou que um de seus homens lhe trouxesse um mapa. Apontou
para ela o local do combate.
— Tudo se deu há uma semana, e no estado em que seu navio ficou, duvido que
tenham ido muito longe.
— Descanse tranquilo, capitão. Dentro em breve não terá mais com que se
preocupar - Colleen encerrou a conversa e se afastou de volta a seu navio.
Agora ela sabia para onde rumar.
♥♠♥
Uma semana após sua partida de Shunnaq, sem sinal do tal navio avariado, os
homens pouco a pouco começaram a ficar impacientes com a calmaria e a ausência de
novas pilhagens, obrigando a capitã a acalmar os ânimos mais exaltados.
Ocasionalmente, um dos homens apontava para tábuas ou barris flutuando, um sinal da
batalha que ocorrera por ali. Aos poucos, os víveres frescos adquiridos no último porto
estavam perto do fim, obrigando a capitã a reduzir as rações e a parar o navio com mais
frequência, para que seus homens tentassem pescar.
Os ventos da sorte sopraram em uma manhã, quando um dos corsários, no topo
da gávea, avistou um par de sombras se movendo um pouco adiante. Com sua luneta,
após confirmar serem golfinhos, a corsária ordenou que seus homens baixassem os
escaleres e remassem com força em direção aos animais. Assim que estavam próximos
o suficiente, os marujos dispararam suas bestas para ferir um deles, matando-o com um
golpe de remo na cabeça.
186
Uma verdadeira festa se instaurou no convés à medida que os piratas retornavam
com a presa, arrancando-lhe o couro e separando a carne dos ossos. Os pedaços foram
cortados em cubos menores e cozidos junto com a farta gordura em um caldeirão de
ferro. A carne não era das mais suculentas: fibrosa e difícil de mastigar. Seu sabor forte,
entretanto, veio como um alívio para quem havia dias comia basicamente biscoitos
duros. A refeição de golfinho funcionou como um banquete naquele dia, revigorando os
homens e deixando-os mais dispostos ao trabalho.
Finalmente Colleen avistou uma porção de terra ao sul de sua posição. A ilha
parecia desabitada e possuía uma baía ampla e protegida do vento. A capitã supôs que
se o navio que buscava tivesse afundado, aquele seria um dos poucos lugares onde os
sobreviventes poderiam se abrigar. Ordenou que o Aliança aportasse, fazendo com que
a tripulação comemorasse com vivas e o brandir de espadas.
Poucos minutos após adentrar a baía, a âncora foi lançada e os escaleres
baixados até o mar. Inúmeros barris vazios foram colocados nos pequenos botes,
juntamente com algumas caixas. Quatro homens ficaram no Aliança: o médico Thomas
Hallet, o carpinteiro Charles Purcell, o mestre artilheito William Heywood e o
marinheiro de primeira classe Isaac Young. Suas incumbências eram de limpar o navio,
arejar as cabines e o porão, além de caçar possíveis roedores.
O resto da tripulação partiu para a praia, remando e cantando. Assim que
tocaram a areia, a capitã dividiu a tripulação em dois grupos. Um ficou responsável por
buscar uma fonte de água limpa, enquanto o outro caçaria porcos do mato, tartarugas e
quaisquer outros animais que pudessem dar uma boa refeição. Laura ficou junto à
Katherine e ao tanoeiro do navio, organizando os mantimentos, enquanto Colleen se
reunia com seu navegador Joshua Ledward, para avaliar aquela rota e buscar possíveis
lugares onde encontrar outras presas.
Da praia era possível ouvir o barulho dos alfanjes se misturando ao guincho dos
animais. Logo, a primeira equipe ressurgiu carregando a carcaça de diversos porcos,
quatro tartarugas grandes, assim como um cesto repleto com seus ovos. Após remover a
carne do casco, as tartarugas seriam ensopadas e seus ovos cozidos ou mesmo comidos
crus. Os porcos, por sua vez, tiveram o couro arrancado, a carne cortada em pedaços
187
longos e colocados sobre diversos buccans - grades de madeira usadas para se defumar a
carne.
Enquanto os caçadores, juntamente com o cozinheiro Richard Lamb,
preparavam a comida para ser estocada, algo começou a preocupar a capitã. O grupo
enviado para encher os barris com água doce não havia retornado, sendo que em poucas
horas o sol se poria no horizonte. Ela já preparava uma equipe de busca, quando ouviu
um forte ruído vindo da mata. Um vulto surgiu por entre as folhas, e Colleen
reconheceu um dos homens enviados para buscar água. Completamente nu, braços,
pernas e peito arranhados e as mãos atadas às costas, ele corria assustado em sua
direção.
— Por Ehleniel, Bailey, o que está acontecendo?
O homem estava esbaforido, respirando pesadamente, como se recuperando de
um grande susto:
— Eles capturaram os outros, capitã, e estão nos observando...
— Eles quem, marujo? Diga logo de uma vez!
Foi então que um zunido partiu da floresta, terminando ao lado da capitã.
Colleen olhou para baixo e viu um virote cravado em uma caixa ao seu lado.
Imediatamente ela sacou seu alfanje, sendo seguida pelo resto da tripulação. O piloto,
assustado, prosseguiu:
— Eles desejam falar com o comandante desse navio ou irão matar a todos.
— Conversar, não é mesmo?
A capitã deu alguns passos em direção ao interior da ilha, erguendo sua arma
para mostrar que não tinha a intenção de usá-la. A pouco mais de trinta passos da
entrada da mata, ela visualizou o brilho de armas reluzindo entre as folhas. Eram
muitas, mais do que estava disposta a contar. Então, enchendo seus pulmões, gritou:
— Muito bem! Quem deseja falar com o nosso comandante?
O silêncio perdurou por alguns minutos, até que finalmente um outro vulto
surgiu em meio às folhas. Ele era branco, tinha cabelos castanhos cortados de forma
188
irregular e vestia roupas rasgadas. Estava claro para ela que não se tratava de nenhum
tipo de selvagem, aparentando ser um náufrago ou algo parecido.
— Cadê seu capitão? – gritou o homem.
A jovem sorriu, abrindo os braços, como se o fato dela ter tomado a frente fosse
a resposta mais óbvia a essa pergunta.
— Mas você é uma mulher?
— Não, meu caro, sou um orc de cabelos longos e trajes humanos.
O homem sorriu, com a boca cheia de dentes amarelados.
— Muito bem, deixe sua arma e venha aqui. O capitão deseja vê-la.
Colleen fez um sinal para que Laura se aproximasse, cochichando em seu
ouvido:
— Você fica responsável pela tripulação. Continue o trabalho e não permita que
ninguém entre na mata ou faça qualquer coisa estúpida. Se não voltar até amanha ao cair
da tarde, embarquem o que puderem e saiam daqui. O navio será seu.
— Mas, Rosa, eu acho...
— Você não tem que achar nada, Laura. Não vou sair daqui sem saber o que
aconteceu com os outros. Somos um grupo e não deixamos nossos homens para trás.
Dizendo isso, a corsária removeu seu alfanje, entregando-o à Laura, enquanto se
dirigia para o interior da mata. Logo, ela desapareceu entre a vegetação.
189
Capítulo 10 - A Recusa por Ajuda
Conforme previra Talafér, a reunião com o Círculo Interno de Myrtakos não
trouxe nenhuma solução imediata à causa de Aldarian. Por horas Guinford debateu
sobre a legitimidade do golpe, argumentou sobre o que vira e ouvira, expondo o plano
sórdido traçado pelo irmão do Regente e o Patriarca de Azhir. O Círculo escutou e
respeitou cada uma das palavras proferidas pelo Governador, mas não cedeu nenhum
apoio sem que houvesse provas.
O governo de Myrtakos funcionava de forma peculiar, uma vez que não havia
um único soberano governando suas terras. Em seu lugar havia dois grupos de sábios
que, juntos, regiam aquele reino. O primeiro grupo era chamado de Círculo Interno -
formado por um representante de cada uma das raças que compunha a população de
Myrtakos: humanos, elfos, anões, halflings e gnomos. A cada quatro anos, um deles era
eleito líder do conselho, tendo a palavra final em questões onde não houvesse um
consenso. O segundo grupo era chamado de Círculo Externo - na verdade, um órgão
consultivo, respeitado e ouvido pelo Círculo Interno, apesar de não ter poder de decisão.
O grupo era formado por representantes de cada uma das oito províncias do
reino, sendo Talafér o representante da província de Shanter. Mesmo com sua
influência, ele não conseguiu que o Círculo Externo apoiasse de forma unânime a causa
do Governador, tornando ainda mais difícil qualquer ação por parte de Myrtakos.
190
Além disso, o reino tinha seus próprios problemas, como os orcs que insistiam
em fazer incursões pelo norte. Com uma frente de batalha já formada, as chances de
Myrtakos aceitar invadir Aldarian eram quase nulas.
De mãos atadas pela política, só restava ao Governador esperar. Talafér
prometeu prosseguir com seu trabalho diplomático, tendo aconselhado Guinford a
contatar qualquer aliado.
O conselheiro ofereceu hospedagem ao Governador em sua casa de veraneio,
localizada em um vilarejo a apenas dois dias de viagem da capital. Sem muitas opções,
Guinford se mudou para lá com Melleen, que passava a maior parte de seu tempo lendo
e estudando.
Em poucos dias, Guinford caiu em um estado de profunda melancolia. Diante
das infrutíferas buscas pelo Aliança, ele lentamente perdia as esperanças de encontrar
sua Colleen com vida. A fim de não enlouquecer, passou a escrever cartas, dezenas
delas a seus amigos e conhecidos que ainda viviam em Aldarian. Nobres, mercadores,
governantes e magistrados eram alvo de seus pedidos de informação sobre a situação do
novo governo. Por meses, as respostas vieram esparsas e pouco animadoras, informando
que o reino voltara a uma certa normalidade, apesar da constante presença de soldados
pelas ruas. Após quase três meses, uma carta chegou com notícias animadoras para o
Governador. O documento assinado por um magistrado local informava de forma
singela: “Uma força rebelde esta se formando”.
Se o que seu aliado relatava era verdade, ainda haviam cidadãos de Aldarian
fiéis ao antigo regime. Se de alguma forma ele pudesse auxiliar e financiar essa
iniciativa, haveria uma esperança.
191
Capítulo 11 - Náufragos
A caminhada durou quase meia hora. Colleen se esgueirou por uma estreita
picada aberta na mata, tomando cuidado para não se ferir nas plantas espinhentas que se
encontravam por ali. O ar era demasiadamente úmido, carregado, e um constante
zumbir de mosquitos incomodava a capitã.
Logo, o grupo chegou a uma clareira, onde se encontrava um acampamento
improvisado. Dezenas de caixotes e barris estavam espalhados para todo lado, enquanto
pedaços de madeira, como vergas, serviam para sustentar barracas feitas com um misto
de folhas de bananeira e grandes lonas que um dia foram velas de um navio. No centro,
um fogareiro armado com pedaços de ferro assavam um javali inteiro.
Os captores empurraram a capitã para dentro de uma das barracas, obrigando-a a
cair de joelhos na terra batida. À sua frente Colleen encarou um par de botas marrom
cuja boca se dobrava sobre a panturrilha. O homem também vestia uma calça de pano
rústico, uma camisa amarelada com alguns rasgos e, por cima, um casaco cor de vinho.
— Mas o que significa isso? - perguntou este a seus marinheiros.
— Ela se apresentou como capitã do navio, senhor – disse um dos homens dando
de ombros.
— Será que você é tão imbecil a ponto de não perceber que isso é um truque?
192
— Lamento, capitão, mas temo que seus homens estejam certos. Eu sou a capitã
daquele navio - dizendo isso, ela se levantou, encarando o rosto do homem pela
primeira vez.
Sua pele era vincada, como se inúmeros cortes tivessem sido feitos na face. Os
olhos eram verdes como água e se encontravam sobre duas grandes bolsas de pele. O
homem possuía uma barba desgrenhada de cor castanha. Um nariz gordo e uma boca
larga completavam suas feições que, apesar de severas, revelavam grande curiosidade.
Colleen prosseguiu:
— Meu nome é Rosa, senhor, capitã Rosa Escarlate, do bergantim Aliança.
— Aliança? Se refere ao navio de Jack Fletcher?
— Lamentavelmente Fletcher morreu, capitão, assassinado por um amiran
covarde e sem escrúpulos.
Os olhos do capitão se arregalaram, sua curiosidade convertendo-se em espanto.
A corsária, percebendo a reação do capitão, se adiantou:
— Eu era a imediata de Fletcher e consegui retomar o Aliança das mãos do
inimigo depois de sua morte. É uma longa história e temo que não tenhamos tempo para
isso.
— E o que posso fazer por você, capitã?
— Você ainda não me deu a honra de sua graça.
— James Morgan é meu nome e é tudo o que precisa saber. Agora, diga o que
quer?
— Exijo a libertação imediata de meus homens.
— Não me sinto muito inclinado a aceitar suas exigências, capitã.
Collen notou que atrás do homem encontrava-se pendurada uma bandeira, a
mesma que ela vira rascunhada no cartaz de Procura-se nas docas de Shunnaq.
— Os capitães de Aldarian costumavam honrar e respeitar seus companheiros de
mar.
193
— Aldarian é hoje uma terra de ninguém, comandada por um idiota que
realmente acredita ser o rei.
— Ao menos nesse ponto concordamos, capitão – disse Colleen com um sorriso.
- Porém, ainda tenho razões para acreditar que nosso senhor Joseph permanece vivo. Eu
o conhecia bem o bastante para saber que ele preferiria morrer a fugir como um
covarde.
— E de que adiantam suas desconfianças, capitã? Sem Aldarian ou seu Regente,
não nos resta mais nada. Não pretendo assinar aquela maldita anistia proposta pela
Companhia.
— E o que resta para você aqui? - indagou ela olhando em volta. – Você perdeu
seu navio, vive como um náufrago em uma ilha esquecida.
— Ora, capitã, não é uma vida tão ruim. Tenho água e comida à vontade, sou o
senhor desse pedaço de terra.
— Peço perdão pela insolência, majestade. Tem razão quando diz que é
praticamente o rei dessa ilha. Inclusive, encontrei alguns de seus súditos peludos no
caminho para cá, pulando entre uma árvore e outra.
O homem deu um murro no braço de sua cadeira, irritado com o sarcasmo da
capitã:
— Ah, é? E quanto ao Aliança, minha cara? O que me impede de tomá-lo e
deixá-la aqui, reinando em meu lugar?
A jovem soltou uma gargalhada, um riso alto e propositalmente estridente,
deixando o capitão desconcertado:
— Acha realmente que deixaria meu navio à mercê de uma armadilha? A essa
altura meus homens já estão a bordo dele, observando a praia e esperando meu retorno.
Eles têm ordens de partir caso não volte até amanhã, e adivinhe qual será sua primeira
parada? As autoridades de Azhir devem estar ansiosas por saber a localização de seu
pequeno paraíso.
O homem calou-se por um breve instante, enquanto ela prosseguia:
194
— Capitão, confesso que minha aterragem nessa ilha não foi acidental. Um certo
capitão amiran, a quem você combateu, informou sua última localização. E uma vez que
não encontrei nenhum navio nas proximidades, imaginei o pior. Quer mesmo apodrecer
aqui pelo resto de seus dias?
— E qual sua ideia, capitã?
— Você e seus homens serão muito bem-vindos ao Aliança como meus
convidados. Em alguns dias teremos condições de lhe conseguir um novo navio para
que continue operando. Com dois navios, seremos capazes de render presas maiores e
mais lucrativas e logo teremos recursos suficientes para reclamar o prêmio final: Al-
Mina’ El-Gharbia.
O homem arregalou os olhos. Tomar a capital ocidental da Companhia parecia
loucura, mas ele demonstrava admiração pela ousadia da capitã. Se era para morrer, que
fosse ao menos lutando e não em uma ilha infestada de insetos.
— Muito bem, capitã, temos um trato. Ordenarei que seus homens sejam soltos e
começaremos a nos preparar para sair daqui.
Antes de sair da cabana, Collen virou-se para perguntar com um sorriso:
— Só mais uma coisa, capitão...Essa sua velha bandeira... Ainda terá algum uso
para ela?
♥♠♥
Conforme o combinado, Colleen retornou ao porto em Shunnaq para recolher o
seu prêmio. Ainda com dificuldade em relação a seu amiran, a capitã conseguiu
descobrir o paradeiro do capitão Aybak. Após alguns minutos de mímicas e palavras
desconexas, ela avistou o amiran em uma das docas, aparentemente supervisionando o
carregamento de um navio.
— Alsalamu alaikom ya kabten – disse, forçando o idioma.
— Saudações, capitã – respondeu Aybak em bom Costariano –, achei que não a
veria mais. Já me preparava para ir embora.
195
— As pessoas insistem em achar que nunca mais irão me ver e quando menos
esperam, lá estou eu – respondeu com um sorriso.
— Muito bem, então. Alguma novidade sobre aquele pirata nojento?
Ela ergueu um grande embrulho que vinha carregando, colocando-o sobre um
caixote no cais. O pano preto parecia úmido e exalava um odor desagradável, sendo que
a razão para o mau cheiro só se revelou quando Aybak desfez o nó. Enrolada em uma
bandeira negra, a mesma desenhada no cartaz de Procura-se, estava uma cabeça
humana bastante decomposta. O amiran fez um cara de nojo enquanto a capitã
explicava:
— Lamento que não possa ter lhe trazido nada em melhores condições, capitão,
mas foi só isso que os porcos do mato deixaram como evidência.
O homem recobriu a cabeça com o pano, enquanto Colleen prosseguia:
— Aparentemente, as avarias que seu navio causou no pirata foram bastante
sérias, capitão. Encontrei alguns destroços flutuando próximo ao local onde você me
indicou e, após uma extensa busca, encontrei uma pequena ilha deserta ao sul. Quando
eu e minha tripulação desembarcamos, tudo o que encontramos foram mais destroços e
alguns corpos na praia. Morreram afogados ou atacados pelos porcos selvagens que
infestam a região. Pelas roupas que usava, concluí que esse era o capitão. Como
encontrei o mastro principal boiando ali perto, achei por bem lhe trazer os dois itens.
O capitão fez um sinal com as mãos, ordenando que um de seus marinheiros
jogasse o embrulho no mar, e disse:
— Que assim seja. Peço apenas que me dê até amanhã pela manhã para contar e
reunir o dinheiro de sua recompensa. Esta noite, irei jantar com o Xeque e gostaria que
fosse minha convidada. Estou certo de que ele não se importará em conhecer alguém
que ajuda a nós, mercadores, a livrar os mares dessa praga que são esses piratas.
— Fico muito grata com o convite, meu caro, e o aceito com prazer.
— Além do mais – disse Aybak com um sorriso –, amanhã pela manhã teremos
um belo espetáculo comandado por ele e, como uma caçadora de piratas, você não vai
querer perder.
196
— E do que se trata esse espetáculo? – perguntou um tanto apreensiva.
— Um julgamento seguido de um enforcamento conjunto. Finalmente alguns
desses bandidos nojentos terão o castigo que merecem.
197
Capítulo 12 - O Enforcamento de Henry Roberts
O jantar com o capitão Aybak e o Xeque ocorreu sem maiores contratempos.
Entre uma história e outra que Colleen inventava sobre sua brilhante carreira como
caçadora de piratas, ela conseguiu descobrir quem eram os homem que seriam
enforcados em algumas horas.
O Xeque lhe confidenciou tratar-se de um bando de piratas vindos de Altrarian,
que estavam provocando grandes dores de cabeça aos comerciantes locais. A campanha
de Azhir no ocidente lhe trouxera mais prejuízos do que benefícios.
O nome de seu líder era Henry Roberts, um pirata de postura arrogante e atitudes
truculentas. Muitas haviam sido os mercadores que pereceram sobre o fio da espada
dele, que parecia ter algum tipo de prazer especial em agir assim. Sua captura fora quase
um golpe de sorte, já que em sua ousadia tentou capturar um navio de guerra da
Companhia, a fim de obter armas e suprimentos. Ele teria lutado até a morte, não fosse a
coronhada de um soldado em sua nuca, fazendo-o desmaiar. Por meses ele permaneceu
preso, aguardando o momento de ser julgado e pendurado pelo pescoço.
Enquanto ouvia a história, a corsária tramava qual ação tomaria para libertar
Roberts e seus homens. Ele parecia um assassino perigoso, mas era sobretudo um dos
membros do Conselho de Tirana e um aliado indispensável - se a capitã realmente
desejava mudar o equilíbrio nos mares de Mirr.
198
Ao final da conversa e usando de seu charme, convenceu o Xeque a convidá-la a
assistir às execuções de seu escritório, mesmo sabendo que era óbvio que ele desejava
algo mais do que simples companhia.
De volta ao Aliança, a capitã passou o dia trancada em sua cabine, planejando a
ação junto com Laura. Quando o sol ameaçava se pôr, ordenou a todos que se lavassem
e em seguida vestissem os uniformes da marinha de Aldarian ainda disponíveis no
navio. Alguns casacos sobressalentes foram distribuídos aos escravos, sendo que ao
restante da tripulação foi ordenado a se esconder no porão. Colleen se dirigiu à Laura:
- Você sabe o que fazer. Siga o plano como combinamos e fiquem longe do
alcance do forte. Encontro com vocês no local combinado em poucas horas.
Dizendo isso, vestiu seu uniforme, pegou uma pequena pipa de madeira, sua
bolsa de couro e saiu, dirigindo-se ao prédio do governo.
Os guardas, já instruídos sobre sua presença, questionaram a pipa que ela
carregava.
— Apenas um pouco de rum de Valdernan para adoçar os lábios do bom Xeque.
Estou certo de que ele irá querer brindar à execução desses bandidos.
Os guardas deram de ombros e ela subiu as escadas, discretamente batendo na
porta antes de abri-la.
— Capitã Rosa...que alegria em revê-la. Por favor entre, fique à vontade.
— Agradeço. Trouxe algo para nos entreter – disse, balançando o pequeno
barril.
— Muito gentil de sua parte, capitã. Hoje será, sem dúvida, uma noite
memorável.
— Não tenho dúvida quanto a isso. Tudo pronto para o julgamento?
— Sim, todos os preparativos arranjados: os nós corrediços feitos e os doze
prisioneiros já prontos para serem colocados sobre o cadafalso. Assim que sair lá fora e
der minha sentença, eles serão executados e nossos mares estarão livres dessa corja
imunda de aldarianos rebeldes.
— Se me permite observar, acho que se esqueceu de um pequeno detalhe.
199
— E qual é, minha cara?
— A sua própria corda.
O homem parou, olhando de forma intrigada para a capitã, enquanto ela abria
sua bolsa e retirava um longo pedaço de corda, arremessando-a em direção a ele.
— Mas que tipo de brincadeira é essa?
— Nenhuma brincadeira – disse a capitã, sacando seu alfanje e o encostando na
barriga do homem. – Um só chiado seu e eu juro que enfio essa lâmina em você até
expor suas tripas. Agora, faça a gentileza de colocar a corda em volta do pescoço.
A testa do Xeque começou a suar. O medo tomou-lhe conta da mente enquanto
lentamente obedecia às ordens.
— Quem diabos é você, afinal?
— Seus capitães me conhecem por Capitã Escarlate e sou apenas parte da corja
imunda de Aldarian, como você mesmo sugeriu.
— Você não vai se safar dessa, sua vaca imunda.
— Talvez não, mas será divertido ver você molhar as calças à medida que furo
seu estômago. Faça a gentileza de amarrar a outra ponta da corda naquela coluna.
O homem obedeceu: suas mãos trêmulas amarravam a corda como ordenado,
enquanto a capitã se certificava de que ela estava firme.
— Por fim, meu caro, faça a gentileza de amarrar esse lenço em seu pescoço.
Não queremos que o pessoal lá embaixo veja o seu novo adereço.
— E agora? – disse, já irritado.
— Agora iremos lá fora, para o maior ato de benevolência de sua carreira
política.
♥♠♥
200
Bastou meia hora de uma intensa chuva tropical para transformar o chão da
cidade em um verdadeiro lamaçal. Mesmo a tempestade e o frio não afastaram as
dezenas de pessoas que vieram à praça central assistir a um dos espetáculos mais
populares: o enforcamento de piratas.
O Xeque já se encontrava em pé na janela de seu escritório observando os
preparativos finais para a execução. Encostando a ponta de um alfanje em suas costas,
Colleen conversava calmamente com ele.
— Basta falar exatamente o que eu disser e tem minha palavra que deixarei você
em paz. Uma tentativa de pedir ajuda, uma palavra fora do contexto, e juro por Ehleniel
que o empurro daqui de cima só para ver seu pescoço partir com a corda.
— E como você acha que vai sair daqui, hein? – disse o homem em tom de
ameaça. – Existem guardas para todos os lados.
— Deixe que me ocupo disso no momento oportuno. Por ora, apenas repita o
que eu disser, está bem?
Logo, os condenados subiram ao cadafalso, cada um tendo uma corda colocada
em volta do pescoço. O carrasco se aproximou da alavanca de madeira que abriria os
alçapões e derrubaria as vítimas, aguardando apenas as ordens do Xeque. A corsária
sussurrou em seu ouvido:
— Diga-lhes que é com grande pesar que anuncia que hoje não haverá
execuções.
O homem pronunciou algo quase incompreensível, sendo Colleen incapaz de
entender todas as palavras. Ela temia que fizesse um pedido de socorro em meio a seu
discurso. Tinha de contar com o fato de que o homem não sabia que ela desconhecia
boa parte de seu idioma. Assim que ele terminou de falar, a corsária prosseguiu:
— Diga que recebeu uma carta vinda de Al-Mina' El-Gharbia com ordem
expressa do Patriarca para que esses homens sejam enviados a Aldarian para
julgamento. Avise que alguns soldados da ilha já estão aqui para escoltar os prisioneiros
e faça sinal para que sejam soltos.
Enquanto cochichava as palavras ao ouvido do Xeque, Colleen olhou para baixo.
Seus homens, vestidos em uniformes militares, se aproximavam do cadafalso. Iriam
201
retirar os condenados e levá-los até um escaler que aguardava nas docas. Ela
prosseguiu:
— Diga que sabe o quanto isso os entristece, mas não faltarão oportunidades
para enforcarem bandidos assim. Avise que o Patriarca considerou esses homens
prisioneiros de guerra e por isso precisam ser levados.
A população, embaixo, gritava e xingava em desaprovação. Por um instante, ela
temeu o que Xeque havia falado, somente para perceber que os gritos eram dirigidos a
ele e a seus homens. Os marinheiros tiveram certa dificuldade em escoltar os
prisioneiros até o escaler à medida que as pessoas amaldiçoavam e cuspiam neles. Após
a confusão ser mediada pelos guardas, finalmente os homens entraram no bote em
segurança e partiram a remo até o Aliança ancorado à distância.
— E agora? – perguntou o homem em voz baixa.
— Estava pensando que é realmente muito injusto que todas essas pessoas
tenham saído de casa na chuva para nada. O mínimo que elas merecem é um espetáculo
digno de aplausos.
Antes que pudesse reagir à declaração, Colleen respirou fundo, espalmou suas
mãos nas costas do homem e o empurrou da janela com bastante força.
A queda durou uma fração de segundos e, no momento exato em que o nó
corrediço começava a apertar-lhe a garganta, ele sentiu um tranco, tombando ao chão
lamacento como um saco de batatas.
Aturdido, o Xeque percebeu que seu pescoço estava inteiro e a corda
arrebentada. Colleen preparara a corda de antemão, enfraquecendo-a para que
arrebentasse na queda. Assim que recuperou um pouco da consciência, ele olhou para
cima e berrou:
— Emsekuha, innaha khedaa. Ya horras, emsiku hadhihi almar'a.
A jovem só compreendeu a palavra guardas. Rapidamente ela retirou a rolha da
pequena pipa que trouxera, derramando o óleo de seu interior por todo chão. Agarrou
uma lamparina acesa em um suporte na parede e a arremessou, incendiando o óleo e, em
poucos segundos, a sala. A fumaça espessa tomou todo o aposento, lançando labaredas
pelas janelas. Em pânico, a população começou a correr. Cobrindo o rosto com a manga
202
de seu casaco, a capitã agarrou uma cadeira e a arremessou contra a janela lateral,
arrebentando o vidro e lançando uma chuva de estilhaços para baixo.
A porta do escritório foi arrombada, enquanto os guardas eram surpreendidos
pelas chamas. Colleen agarrou-se ao parapeito da janela e saltou para o andar de baixo.
Seus joelhos doeram com a queda desajeitada; suas mãos sangraram devido ao vidro
ainda presente na moldura da janela. Ela corria com dificuldade, aproveitando-se da
confusão para se misturar entre as pessoas.
Logo, um outro regimento chegou para controlar o caos. Os guardas cercaram a
praça, fechando o cerco, enquanto a buscavam em meio à multidão. A capitã agiu
rápido: arrancou seu casaco para chamar menos atenção e, em meio às pessoas, tentou
se aproximar da linha de defesa. Quando estava à distância de uma carga, ela sacou sua
espada, correu em direção aos guardas atingindo um deles em seguida correndo em
meio ao caos.
O zunir de virotes pôde ser ouvido enquanto ela disparava pelo cais. Pulou no
mar, nadando com toda sua força. Mais alguns tiros atingiram a água, até finalmente
cessarem por conta da distância.
A capitã nadou por quase trinta minutos até alcançar uma praia remota. Com as
roupas encharcadas e bastante ofegante, ela se arrastou até a areia. Na mata próxima,
ficou aguardando o anoitecer e o envio de um escaler para buscá-la. Resmungou,
enquanto rasgava um pedaço de sua blusa e fazia um curativo nas mãos cortadas:
— Maldição... Aquele era um bom casaco!
♥♠♥
O vento que começou a soprar no início da madrugada gelava o corpo de
Colleen que batia os dentes de frio. Tão logo ela encontrou um local seguro de onde
observar a praia, tirou suas roupas encharcadas e pendurou-as para secar em um galho
próximo. Sem poder acender uma fogueira para se aquecer, só restou à capitã sentar em
meio às folhas, abraçar os próprios joelhos e esperar pelo resgate.
203
Duas horas depois, sem sinal de seus homens, ela passou a temer pelo pior. Teria
seu navio sido alcançado? Ou será que os homens de Henry Roberts haviam se
aproveitado da situação para fugir com o Aliança? Só se tranquilizou quando viu um
pequeno ponto de luz vindo do horizonte. O ponto piscava intermitentemente conforme
a corsária combinara com sua contramestre; era o sinal de que o resgate estava a
caminho. Passaram-se mais alguns minutos até que o escaler chegasse à areia e dele um
único vulto emergisse da escuridão. A luz lúgubre da lamparina iluminava
precariamente o rosto de Laura.
Colleen saiu da mata apenas com suas roupas de baixo, as pernas tremendo. Ao
se aproximar de sua contramestre, foi amparada por ela. Laura rapidamente retirou seu
casaco, jogando sobre a capitã, enquanto se sentavam na areia. Abraçadas, Laura
tentava, com o calor de seu corpo, aplacar os calafrios da amiga. Aos poucos, o tremor
de Colleen foi diminuindo, até seu corpo estar minimamente aquecido. A contramestre
olhou para ela e disse em tom de repreensão:
— Você deveria ter pensado nisso antes de executar esse plano maluco. Se eu
demorasse mais algum tempo, esse frio poderia ter lhe matado.
A capitã sorriu e, ainda com dificuldade, respondeu:
— Eu disse que era um bom plano, não um plano perfeito. Além do mais, só
podia sair de lá nadando; ainda não aprendi a arte de voar.
— Deixe de bobagem e vamos. Feche bem esse casaco sobre seu pescoço e vá
para o bote. Trouxe uma muda de roupas secas para que possa se trocar antes de chegar
ao Aliança. Eu pego o resto das suas coisas.
Em poucos minutos ambas remavam em direção ao navio, oculto pela escuridão
da madrugada.
— Devo supor que correu tudo bem com o resgate dos prisioneiros? - indagou a
capitã, entre uma remada e outra.
— Da melhor forma que era possível, Rosa. No início, eles ficaram bastante
desconfiados com tudo aquilo e só se acalmaram quando lhes trouxemos comida. O
capitão permaneceu bastante apreensivo; se recusou a comer e passou o tempo todo
204
pedindo explicações. Só sossegou ao ver o capitão Morgan entre os homens. Desde
então, não saiu mais de perto dele.
— É bom que isso tenha acontecido. Apesar de ainda não confiar em nenhum
dos dois, ao menos eles têm certeza que não estamos ao lado da Companhia.
— E o que pretende fazer agora, capitã? Não podemos abrigar tanta gente no
Aliança. Não existe comida e acomodações para todos, e nossos homens já começam a
olhar com receio para seus novos amigos.
— Eles só serão meus amigos ao perceberem que queremos a mesma coisa. A
única forma de trazer o capitão Roberts e o capitão Morgan para nossa causa é se
conseguirmos um navio para que eles voltem à ativa. E acho que sei exatamente como
fazer isso.
— Mas, capitã... O que os impedirá de, ao conseguir um navio, simplesmente
nos darem as costas? Ou, ainda pior, de nos atacarem à traição?
— Nada, Laura, absolutamente nada. É um risco que teremos de correr.
205
Capítulo 13 - Emboscada em Águas Rasas
Os primeiros raios de sol começavam a se levantar do mar quando o escaler
onde se encontravam Colleen e Laura tocou a lateral do Aliança. Já adequadamente
trajada, a capitã subiu pela escada de cordas até o convés, onde era aguardada. Nunca o
navio esteve tão cheio, com homens espalhados por toda sua extensão. Muitos ainda
dormiam, enquanto outros observavam com curiosidade a chegada da tal “Capitã
Escarlate”.
Em pé, de braços cruzados e com expressão carrancuda, Henry Roberts
encarava a capitã com ar de superioridade. Ele tinha a cabeça sem um fio de cabelo, um
rosto vincado e cheio de marcas, e o olho direito ligeiramente caído. Suas orelhas
grandes e redondas apresentavam inúmeros furos, sinal de que ali já houvera uma
coleção de brincos, provavelmente confiscados pela autoridade da cidade. Antes que a
capitã pudesse cumprimentá-lo, ele disparou:
— Talvez você possa dar uma explicação sobre o que está acontecendo aqui?
A capitã abriu um sorriso e com sarcasmo respondeu:
— De nada, capitão. Foi um prazer salvar sua vida e a de seus homens.
O homem permaneceu em silêncio, como que envergonhado pelo fato de ter sido
salvo por uma mulher. Ela prosseguiu:
— Uma pena que não tenha ficado para apreciar a festa, capitão Roberts. Devia
ter visto a expressão daquele amiran imbecil quando o empurrei da janela, e ele enfiou a
206
cara na lama. Achei sinceramente que ele apreciaria, já que a lama é para onde vão
todos os porcos.
Alguns risos esparsos se ergueram entre os homens. A capitã percebia que,
mesmo discretamente, a tensão no corpo de Roberts diminuía. O homem descruzou os
braços, encarou a capitã e disse:
— Estive conversando com o capitão Morgan. Com certeza, você não nos
resgatou apenas por generosidade e altruísmo.
— Certamente que não, capitão. Prefiro deixar esses atos para os clérigos e
padres que infestam nosso mundo.
— E do que se trata então, capitã?
— E do que mais seria, capitão: ouro, pilhagens, todo o dinheiro que pudermos
arrancar dessa maldita Companhia. Afinal, não veio de Tirana até aqui apenas a passeio.
Acho que a única coisa que nos separa é que a sorte sorriu um pouco mais para mim.
O homem olhou em volta, medindo e examinando o Aliança.
— Morgan me contou sobre o destino de Fletcher. Ele era um bom homem,
apenas um pouco fiel demais à sua causa.
— Estou me esforçando para fazer jus a seu nome – respondeu com sinceridade.
— Bem, capitã, Parece que temos interesses comuns, mas por mais que ache o
Aliança um excelente navio, nenhuma nau pode dispor de três capitães. Imagino que
tenha algum tipo de plano.
— Para ser sincera, depois de resgatá-lo, não sabia exatamente o que fazer, mas
nosso bom e linguarudo Xeque me deu uma ideia que pode dar certo. Durante o jantar,
com a mente já inebriada pelo vinho, ele acabou deixando escapar que esperava um
grande carregamento chegar em três dias. Não deu detalhes da carga, mas mencionou o
quanto o dono dos navios estava apreensivo com os ataques recorrentes na rota que liga
a cidade ao reino de Centauron. Segundo ele, trata-se de três fragatas carregadas, e não
duvido que entre a carga haja ouro e joias também.
— Mas depois da fuga que empreendemos, ele provavelmente irá mudar a rota?
– questionou Roberts.
207
— Pensei nisso, capitão, mas uma vez que Centauron está a vários dias de
viagem, ele não terá como avisar a frota de nossa presença. É preciso agir rápido e não
perder essa oportunidade.
— Três navios, capitã? E como espera abordá-los com um único bergantim
como o Aliança?
— Na verdade, eu duvido que sejam apenas três, meu caro Roberts. Se estão
viajando em comboio, certamente existem ao menos mais dois navios de escolta, um
atuando como nau capitânia e guiando o grupo, e um segundo resguardando a
retaguarda. Abordá-los da forma tradicional está fora de cogitação.
Os homens se olhavam atônitos, enquanto Colleen descortinava seu plano.
— Nós iremos desviá-los de suas rotas, levá-los a águas mais rasas, onde seu
calado não seja suficiente para mantê-los sobre a água. O Aliança é leve e pode passar
sobre os bancos de areia sem problemas, mas o peso desses navios os prenderá em nossa
armadilha. Observei o calendário também e haverá somente a lua vermelha de Mirr no
céu. Com a luz fraca, nossas presas estarão praticamente navegando às cegas. Basta o
golpe certo e teremos a carga, os navios e o ódio dos amirans.
Roberts se permitiu um sorriso discreto, ao olhar para Morgan em busca de
respostas. O capitão deu de ombros, enquanto Roberts falava:
— Muito bem, capitã. Até há poucas horas estava com a corda no pescoço e não
tenho muito a perder. Estou convencido de que você é louca o suficiente para tramar
algo assim; vejamos se tem a coragem para realizá-lo.
— Laura, acomode nossos convidados da melhor forma possível. Ração em
dobro para todos e uma dose de grogue para acalmar seus espíritos. Quero todos
despertos e alertas em uma hora. Quanto a vocês, meus caros, me acompanhem até
minha cabine. Tenho uma garrafa de rum nos esperando para acertarmos os detalhes do
plano.
208
A viagem até o ponto de interceptação do comboio levou dois dias. A rota
cruzava um pequeno arquipélago ao sul de Al-Mina’ El-Sharqia, local perfeito para uma
armadilha. O Aliança aportou em uma discreta enseada a apenas alguns quilômetros da
linha de passagem de navios. Ali, além de água limpa e víveres frescos, os homens de
Colleen, Morgan e Roberts puderam descansar e se recompor.
Com a chegada da noite, veio também o sinal que todos aguardavam. A lua
vermelha de Mirr lançava uma luz fraca sobre o oceano, tornando difícil ver qualquer
coisa. A capitã proibira fogueiras e lamparinas acesas na ilha, para não revelar sua
presença. Quem deu o sinal foi Morgan, que passou boa parte do tempo observando o
oceano. Apontando para o horizonte, logo todos visualizaram um fraco ponto de luz se
movendo para o norte.
Era a aguardada lanterna da nau capitânia, a única luz permitida em um comboio
que viajasse à noite, um risco necessário para garantir a integridade da frota. Uma vez
em comboio, todos os navios deveriam viajar em fila, seguindo a uma certa distância a
tal nau. Sua função era avaliar a rota, detectar perigos e guiar os demais navios em
segurança.
A corsária acelerou seus homens, acordando os que ainda dormiam. Em poucos
minutos, o Aliança rumava a todo pano em direção à nau capitânia. O vento favorável
enchia as velas, enquanto os três capitães ordenavam silêncio absoluto no convés. Após
meia hora de navegação cuidadosa, o Aliança estava a uma curta distância de seu alvo,
um outro brigue ligeiramente maior que ele. O grupo de assalto já estava formado e eles
sabiam exatamente o que fazer.
Colleen ordenara que Yetu fosse com eles, enquanto mantinha Laura a seu lado.
O escaler trazido a reboque foi ocupado por vinte homens, mais o mestre de armas e um
tonel de óleo, caso as coisas ficassem ruins. A capitã fez uma oração a Ehleniel pela
segurança de seu oficial, observando os homens erguerem a pequena vela triangular e
remarem vigorosamente em direção ao alvo. Só lhe restava aguardar.
Quase uma hora se passou sem que o sinal fosse dado. Colleen já começava a
ficar apreensiva. O Aliança seguia navegando paralelo ao alvo, e a capitã em nenhum
momento desgrudava os olhos de sua luneta. Finalmente, quando tudo parecia perdido,
209
a lanterna da nau capitânia se apagou. Era o sinal que todos aguardavam; os homens
tiveram de se conter para não celebrar.
Colleen girou o timão ligeiramente à esquerda, se aproximando da nau inimiga
já dominada.
— E agora, capitã?
— Agora nos resta apenas esperar, Laura. Nos dirigirmos para águas rasas e
levamos nossas presas conosco. Logo elas estarão encalhadas e nada, nem ninguém
poderá soltá-las.
♥♠♥
Colleen olhava para o horizonte quase sem piscar. Em poucos minutos, o sol se
levantaria e seu plano seria descoberto. O Aliança navegava por águas rasas há algumas
horas, e a capitã já vira alguns recifes de corais passarem por baixo do navio.
Finalmente, um estrondo: o som da madeira raspando, seguido de gritos. Os primeiros
raios de luz surgiam, revelando que uma das fragatas estava adernando para a esquerda,
presa devido ao peso de sua carga.
Logo, os outros dois navios de carga se viram em meio à armadilha, tentando
manobrar para fora do recife de corais. Era o momento de agir. A capitã ordenou que o
Aliança desse meia-volta e fosse a todo pano em direção ao navio encalhado. O tempo
era escasso, uma vez que os marinheiros poderiam tentar se livrar da carga, para soltar o
navio. Roberts, por sua vez, já utilizava o navio capturado para interceptar e abordar a
escolta de ré. Bastaram alguns tiros de balista e a intimidação dos homens para que o
segundo brigue se rendesse sem oferecer maior resistência.
Um novo barulho denunciava que um segundo navio havia se chocado contra os
corais. Dessa vez, o ruído soou como o de madeira envergando; provavelmente, os
corais haviam aberto um buraco no casco, abaixo da linha de água.
A corsária mandou que hasteassem sua bandeira negra e, com agilidade, se
aproximou da presa encalhada.
210
— Mestre Heywood, um disparo de balas corrente em nossos convidados. Não
queremos que partam antes do final da festa.
— Aye, capitã!
As balas zuniram cortando o ar e atingiram o mastro de mezena do navio. A
peça de madeira caiu, instaurando o pânico no navio amiran. Logo, o Aliança estava
emparelhado à fragata cujo nome a capitã não conseguia decifrar. Brandindo seu sabre e
usando seu pouco amiran, ela berrou:
— Estaslimu bi ism Aldarian au satughraqun.
A ameaça de serem enviados ao fundo caso não entregassem o navio surtiu
efeito; logo, toda a tripulação jogou suas armas no convés. Os homens de Colleen
saltaram para o navio amiran, rendendo a tripulação e baixando a bandeira da
Companhia, a fim de informar aos outros da nova condição da nau. Coube a Roberts
abordar o segundo navio, já de bandeira abaixada e tripulação de joelhos quando ele se
aproximou. O terceiro navio conseguira escapar, levando consigo o recado que a capitã
desejava: o de que os piratas haviam voltado aos mares e, agora, nada poderia detê-los.
211
Capítulo 14 - A Invasão de Al-Mina’ El-Gharbia
A pilhagem ao comboio amiran trouxe riquezas e alegria aos três capitães e suas
tripulações. Os navios de escolta foram reparados, receberam mais balistas e armas; e
convertidos em navios de ataque, entregues a Morgan e Roberts. Após ter sua carga
apreendida, as pesadas fragatas foram liberadas, levando às autoridades amirans a
mensagem da capitã Escarlate e seus comparsas.
No período de quase um ano, a corsária e seu bando aterrorizaram as rotas de
comércio do Oceano Bravio. A Companhia, impedida pelo alto custo de sua empreitada em
Aldarian, fazia vista grossa à reclamação dos mercadores, recomendando que mudassem
suas rotas ou viajassem juntos para intimidar os piratas. Inúmeros caçadores de recompensa
foram atrás dos bandidos, mas a maioria voltava de mãos vazias ou severamente avariados
pelos navios dos capitães.
Pouco a pouco, a capitã conquistava a confiança de Morgan e Roberts, que viam o
quão vantajoso era estarem associados a ela. Foi graças a essa confiança que ela conseguiu
convencer os dois capitães a dar cabo do plano mais audacioso de suas carreiras: invadir e
pilhar Al-Mina’ El-Gharbia. Foram meses de preparação, reunindo recursos e informações
sobre um dos maiores portos de toda Mirr. Espiões mapearam a cidade e suas defesas, até
que finalmente os capitães se sentissem prontos para executar seu plano.
Aportados na mesma ilha em que o navio de Morgan foi a pique um ano antes, as
três embarcações aproveitavam a discrição do local para fazer reparos, reunir víveres e
212
descansar a tripulação. Enquanto Laura e outros mestres organizavam a tripulação, Colleen,
juntamente com os outros capitães, discutia os detalhes do plano em sua cabine.
— Aportaremos aqui, senhores – disse a capitã, apontando para um ponto no mapa.
– Seguiremos pela mata até nos aproximarmos da cidade. O ataque será à noite, quando os
cidadãos estiverem adormecidos.
— Talvez a capitã esteja se esquecendo - retrucou Morgan - do forte que guarda a
entrada da baía e guarnece a cidade. Aqueles amirans desgraçados poderiam resistir por
meses lá dentro atirando em nós por cima de seus muros. Nossas armas não têm força
suficiente para atravessar as pedras, tornando um ataque pelo mar inútil. Ninguém jamais
sequer tentou invadir essa cidade por isso.
— Mas é exatamente com isso que estou contando, meu caro: com o fato da cidade
ser inexpugnável.
— Não entendi, capitã. Por que atacar uma cidade que não pode ser invadida?
Colleen abriu um largo sorriso, ajeitando a ponta de seu lenço enquanto retrucava:
— É essa confiança que trará a ruína a esses amirans. Imagine você, meu caro
Morgan, guardando um forte que em anos sequer foi atacado? Dia após dia olhando o
horizonte sem nunca ver nada além de navios mercantes? Tudo o que esses guardas fazem
o dia todo é comer, dormir e caminhar de um lado para o outro. Tão confiantes de que
ninguém tentará invadir sua cidade que duvido sequer que suas balistas fiquem carregadas.
- Ainda existe uma outra questão – retrucou Morgan. - Al-Mina’ El-Gharbia é uma
das maiores cidade de Ixan. Mesmo que consigamos entrar na cidade seria necessário um
exército para tomar toda a cidade e mantê-la sobre controle. Não temos homens suficientes
para isso, capitã.
— Esta é a beleza deste plano, meus caros: eu nunca pretendi tomar toda a cidade.
Nós controlaremos a região do porto e, a partir daí, faremos nossas exigências.
— Mas como controlar uma pequena parte da cidade nos dará o controle sobre todo
o resto?
— Imagine que esse porto seja como o pescoço de toda a Companhia. É por lá que
todos os navios passam para ir ao Oriente. Se fecharmos essa passagem, será como apertar
213
a garganta do próprio Patriarca, impedindo o ar de entrar ou sair. Estou certa de que ele
pagará um bom resgate para liberarmos a passagem de seus navios.
— E se ele se recusar a pagar; se mandar seus soldados atrás de nós.
— Nesse caso, queimaremos o porto até o último tijolo. Vamos transformar esse
lugar na maior fogueira que os povos de Mirr já viram. Levaria meses, senão anos para
recompor as docas, armazéns e estruturas necessárias para que ele volte a se tornar
operacional. Seriam milhões de peças de ouro em prejuízos e um golpe fatal na confiança
que outras nações têm em relação à Companhia. Duvido que o Patriarca queira fazer esse
tipo de barganha.
— E quando iniciaremos nossa visita, capitã?
— Esperemos a chegada do inverno. As noites são mais longas e secas, será mais
fácil caminhar pela mata nessas condições. Acreditem, senhores: quando terminarmos, a
Companhia sequer saberá quem os atingiu.
♥♠♥
O inverno não demorou a chegar; Colleen e os homens notaram a mudança dos
ventos e das correntes. Os três navios de seu bando: o Aliança, o Sabre e o Barracuda
estavam prontos para zarpar. Suas velas enfunavam com o vento, enquanto seus cascos,
limpos à exaustão das cracas que aderem ao fundo, brilhavam graças ao novo demão de
verniz dado durante a estação passada. Descansados e motivados, sadios de se alimentarem
diariamente de animais e frutas frescas recolhidas pela ilha, os homens passaram os últimos
dias de outono preparando e armazenando comida e água. Alguns porcos vivos foram
trazidos a bordo, a fim de providenciar carne fresca durante parte do percurso. Todos os
cutelos, alfanjes e machados foram afiados e preparados para uma batalha que aqueles
homens ansiavam por lutar.
A frota partiu em uma manhã cinzenta. O vento soprava forte e constante, quando
os navios rumaram na direção norte. A viagem correu sem contratempos, com os
marinheiros revisando e revendo os passos do plano que executariam. Yetu, juntamente
214
com Laura, passou boa parte da viagem instruindo os homens sobre os perigos que
poderiam enfrentar, exemplo seguido por outros mestres de armas nos navios irmãos.
O local escolhido pela capitã era uma pequena enseada a pouco mais de trinta
quilômetros dos limites da cidade. Segundo o mapa, constituía-se em área desabitada e
pouco movimentada, exatamente por não ser um bom porto. A corrente forte e o recife de
corais tornavam a aportagem uma ação demasiado arriscada para que valesse a pena.
Lentamente, os escaleres levaram os marinheiros até a praia rochosa, deixando em
cada navio apenas o mínimo necessário para operar as naus em segurança. O próximo
encontro se daria nas docas de Al-Mina’ El-Gharbia, já com a cidade dominada. Roberts
ficou incumbido de comandar a esquadra pelo mar, enquanto Morgan auxiliaria Colleen no
ataque por terra.
A ordem era o silêncio absoluto durante todo o tempo em que estivessem na mata.
Não queriam chamar a atenção de aldeões que pudessem alertar a cidade do ataque. A
marcha por entre as árvores era penosa e desgastante; durante o dia, a umidade e os insetos;
à noite, o frio e o temor de serem atacados por animais noturnos. Impedidos de acender
fogueiras, os marinheiros se mantinham aquecidos com bastante agasalho e próximos uns
aos outros. A capitã permitiu que cada um ingerisse uma pequena quantidade de rum antes
de adormecer, a fim de aquecer o corpo e relaxar a mente.
Por quatro longos dias, os corsários caminharam pela mata, guiados por uma
bússola e um desejo quase incontrolável de vingança.
Finalmente, em meio à tarde do quarto dia, a mata ficou mais esparsa. O solo, antes
revestido por árvores, lentamente se converteu em uma planície e, em seguida, em um pasto
onde pastava um rebanho de cabras. Colleen sabia que aqueles animais não estariam lá
sozinhos; haveria algum pastor amiran nas proximidades. Após quinze minutos observando
o local, suas desconfiança se confirmaram. De trás de uma colina ela viu surgir um homem
franzino vestindo roupas simples e portando um cajado. Ele se aproximou das cabras e,
com alguns movimentos, reuniu o rebanho a fim de levá-lo a outro lugar.
A capitã apenas olhou para Laura, que entendeu o que deveria fazer. Ela sacou sua
faca, fez alguns rasgos na camisa e calça e, após guardar a arma, saiu correndo da mata.
Com passos cambaleantes, a contramestre gritava, olhando assustada para trás. A pequena
215
encenação funcionou; o pastor se virou para a jovem de cabelos ruivos que se aproximava
dele. Largou seu cajado, correndo para acudi-la. Ela se jogou no chão e fingiu um desmaio.
De bruços sobre a grama, só aguardava o momento oportuno para dar seu golpe. Tão logo o
pastor se ajoelhou a seu lado, ela sacou sua faca, apontando para a barriga dele, enquanto
com a outra mão colocava seu dedo indicador sobre os lábios, sinalizando que ficasse em
silêncio. O homem viu com terror um pequeno exército sair da mata em sua direção.
Colleen se aproximou de Laura, ajudando-a a se levantar e disse:
— Ootina akl wa ma'ua li hadhihi allaila wa sanahfadh mazraika wa hayauanatek
O pastor concordou com a cabeça. Abrigar e alimentar aqueles homens por uma
noite, como havia pedido a capitã, era um preço baixo a se pagar para manter sua fazenda e
sua vida. Sob a ponta do alfanje da contramestre, ele guiou o bando até seu casebre de
madeira. Este se mostrou insuficiente para abrigar a todos: os oficiais ficaram hospedados
ali, enquanto os demais foram acomodados no celeiro. Mataram duas das cabras para
alimentar o exército, sendo o restante do dia dedicado à preparação do plano. Assim que
anoiteceu, o pastor foi amarrado a uma cadeira e colocado sob os olhos vigilantes de Yetu.
Na manhã seguinte, as sobras de carne do dia anterior foram usadas no desjejum.
Enquanto Colleen e Morgan organizavam o ataque, Laura partiu bem cedo para avaliar o
terreno e o forte que guardava a entrada do porto. A fortificação era a única estrutura que
protegia a cidade, sendo que suas balistas apontavam para o mar. Após algumas horas de
observação, percebeu a movimentação das tropas e o pequeno contingente para a cidade
que deveriam proteger. A confiança de Azhir seria sua ruína.
Por volta da hora do almoço, ela retornou à cabana, passando aos capitães as
informações que recolhera. Seria uma ataque furtivo, rápido e silencioso; assim, a cidade
não teria tempo de despertar para saber o que a atingiu.
Após mais um dia de preparativos, a comitiva partiu em direção à cidade. A corsária
libertou o pastor sem ferimentos conforme prometido. Antes de partir, arremessou-lhe um
saco de moedas, uma pequena quantia suficiente para pagar pelas cabras mortas. O homem
agradeceu com a cabeça, dando a entender que permaneceria em sua casa e ignoraria a
passagem deles por lá.
216
Foi necessário apenas uma hora de caminhada por um campo plano até avistarem a
muralha do forte. Tochas brilhavam em seu topo, e alguns homens andavam pela amurada.
A capitã estendeu à Laura um pedaço de corda e um pano negro dobrado. Com um beijo
em seu rosto lhe desejou boa sorte. Eles aguardariam até que ela desse o sinal para a
invasão.
♥♠♥
Seguindo pelas sombras, Laura se aproximou do forte sem ser notada. A construção
não era muito grande e tampouco elaborada. Tratava-se de um quadrado de pedra de
tamanho avantajado, com altas muralhas cercadas por passadiços onde caminhavam os
sentinelas. Em seu interior, havia pequenas estruturas que serviam de abrigo, refeitório e
armorial, além de um pátio de terra batida e algumas celas onde prender arruaceiros e
bandidos. Após circundar a construção, ela avistou uma porta secundária que, segundo seus
cálculos, levaria diretamente ao segundo andar do forte. Uma longa escada de pedra
conduzia a uma entrada em arco guarnecida por dois guardas que, entediados, conversavam
entre si. A contramestre se esgueirou em silêncio, colocando-se ao lado da muralha e
escutando a conversa dos dois. Ela estimou a altura da estrutura e calculou o tempo que
levaria para subir correndo até os homens que ali estavam.
Laura se viu obrigada a uma ação temerária. Após respirar fundo, apontou no pé da
escada. Os homens só a notaram quando estava quase na metade do trajeto. Sacaram suas
cimitarras tarde demais. O primeiro tombou com a faca arremessada contra o peito.
Despencou, enquanto seu colega tentava absorver o ataque surpresa. Antes que gritasse ou
corresse, a jovem de cabelos ruivos pulou sobre o homem e cortou-lhe a garganta assim
que ele atingiu o chão.
Ela parou por um instante, respirando ofegante e apurando os ouvidos para saber se
seu ataque havia sido percebido. Silêncio. Aqueles homens poderiam ter recebido um
treinamento básico no quartel, mas evidentemente nunca haviam lutado de verdade.
217
A jovem se esgueirou pelo arco, subindo as escadas até o passadiço superior. Ali,
meia dúzia de sentinelas parados encaravam o horizonte. Um a um e com bastante
habilidade, Laura os eliminou até não restar mais ninguém para impedir a tomada do forte.
Ela arrastou os corpos até uma guarita em uma das pontas da construção. Em seguida,
aproximou-se do mastro central em cujo topo havia a bandeira triangular da Companhia.
Conforme o combinado, ela baixou a bandeira inimiga, erguendo ao sabor do vento
o pano negro ornado pelos sabres cruzados e a rosa vermelha - o sinal de que o forte estava
limpo e os corsários poderiam se aproximar. Roberts, ancorado a alguns quilômetros na
escuridão, avistou o sinal com sua luneta. Assim que amanhecesse, deveria agir.
Laura desceu até o pátio, retirando as trancas e abrindo as grandes portas duplas que
selavam a fortaleza. Passaram-se alguns minutos até que ela avistasse um numeroso grupo
de pessoas se aproximando da entrada. Eram Colleen e Morgan que, em silêncio,
adentraram a construção, encerrando a porta atrás de si. Os homens se aproximaram do
último alvo, uma construção retangular em um dos cantos do pátio. Ali não haveria tempo
ou razão para discrição: Morgan fez as honras, chutando a porta para dar acesso a seus
homens até o dormitório da guarda.
Os soldados de Azhir, adormecidos, ofereceram pouca resistência à medida que os
piratas invadiam o recinto e os massacravam. Muitos sequer tiveram a oportunidade de sair
de suas camas; aqueles que conseguiram se levantar e pegar em armas não foram
suficientes para debelar a invasão. O chão foi lavado com sangue enquanto Morgan erguia
seu alfanje em comemoração e berrava:
— O forte é nosso, senhores.
Um turbilhão de urras se ergueu dos corsários, ao brandirem suas armas
ensanguentadas. Colleen declarou:
— Muito bem, senhores, descansem um pouco, pois em poucas horas o sol surgirá
no horizonte. Amanhã entraremos na cidade como seus novos governantes, e estou certa de
que o Patriarca não irá ignorar esse fato, como tem feito com nossos saques.
218
Capítulo 15 - Negociando com o Patriarca
A população de Al-Mina’ El-Gharbia amanheceu assustada. Poucos minutos após o
nascer do sol, grupos de homens armados bateram em suas portas exigindo tudo o que
tivessem de valor. Colleen, Morgan e Roberts - que se unira há pouco aos dois - orientaram
seus homens para que a violência fosse mínima. Só deveriam reagir se fossem atacados. A
capitã liderou um dos grupos pessoalmente, exigindo com um sorriso o que ela chamou de
“um tributo para libertar Aldarian do mal”. Os poucos cidadãos que se recusaram a abrir as
portas, as tinham derrubadas; e aqueles que reagiram foram mortos no local.
Colleen ordenou que seus homens se encarregassem de bloquear as ruas de acesso à
região do porto, colocando carroças e barris para impedir a passagem. Qualquer um que se
aproximasse da barricada deveria ser alertado sobre o ocorrido e caso se recusasse a recuar,
alvejado.
Como previu, o saque foi parco, sendo que a maioria dos itens apreendidos eram
quinquilharias e objetos pessoais. O único espaço que poderia prover aqueles homens com
algum dinheiro era o templo local. Despojado de todo o ouro presente em suas paredes,
estátuas e relicários, pouco a pouco o saque foi empilhado na praça central, enquanto as
pessoas eram trancadas no forte junto ao mar.
— Capitã – disse um dos homens que vinha correndo em sua direção –, um
cavalheiro está em frente a uma das barricadas e exige falar com o líder desse ataque.
219
— Parece que nossos convidados mais ilustres chegaram para a festa. Por favor,
senhor Young, mostre-me o caminho.
Após alguns minutos de caminhada, Colleen chegou a uma das ruas bloqueadas.
Seus homens estavam sobre os destroços, apontando suas bestas para os visitantes
indesejados, que também apontavam armas para eles. A capitã escalou os barris e caixas até
conseguir avistar o homem. O burocrata vestia uma túnica de cor bege, adornada por faixas
coloridas e um longo lenço lhe envolvendo a cabeça e rosto. Suas vestes eram simples.
— Devo supor que é o líder dessa cidade?
— Me chamo Aariz e sou o Xeque de Al Mina El´Gharbia - ele respondeu com
calma. - É você a líder desse ataque a nosso porto?
Colleen concordou com a cabeça. O homem prosseguiu:
— Suponho que tenha uma lista de exigências para libertar a cidade? De quanto
ouro estamos falando?
— Não se trata apenas de ouro, desejo negociar diretamente com o Patriarca.
Abriu um ligeiro sorriso:
— O Patriarca não está disponível para negociar com piratas. Diga logo seu preço.
— Meu preço é esse e essa condição não é negociável. Eu exijo a presença do
Patriarca em sete dias ou iremos queimar o porto até a última tábua.
- Admiro sua ousadia em atacar nosso porto, minha cara, e estou certo de que o
Patriarca demonstrará igual respeito, ao analisar seu pedido. Em nome de quem devo
assinar o convite?
— Diga-lhe que a Capitã Escarlate, corsária de Aldarian, deseja negociar os termos
com ele.
Esse nome pareceu chamar a atenção de Aariz à medida que reconhecia sua
interlocutora. Sem demonstrar exaltação, ele prosseguiu:
220
— Seu nome e de seus comparsas têm surgido com frequência ao longo do último
ano, capitã. Espero que esteja ciente de que essa foi sua última cartada; em breve, você fará
apenas parte da história.
— Isso é o que veremos, meu caro. Pelo que me diz, já sou parte dela e pretendo ser
conhecida como aquela que colocou um fim a seu governo tirânico.
— O recado será enviado, capitã. Peço apenas que liberte os cidadãos e mantenha o
porto em ordem.
— Não se preocupe, meu caro, iremos apenas nos servir do que for necessário.
Libertarei os prisioneiros como um sinal de boa vontade.
O homem se virou, caminhando de volta para a cidade sem pronunciar mais nada.
A mensagem seria dada, e ele estava certo de que o Patriarca não perderia a oportunidade
de confrontar a lendária Capitã Escarlate.
♥♠♥
Três dias se passaram desde que o pedido para um encontro havia sido requisitado.
Conforme havia acordado, a capitã libertou os reféns e orientou seus homens a manterem as
estruturas do porto intactas. No entanto, não proibiu que estes comessem, bebessem e se
divertissem à vontade, transformando a área do porto em uma grande e interminável festa
pelos dias que se seguiram. Juntamente com seus oficiais, Colleen se instalou na residência
de um importante mercador local, uma casa bastante espaçosa, com uma vista privilegiada
para a entrada do canal.
Mais quatro dias se passaram sem maiores contratempos, sendo que boa parte dos
homens estava esgotada de tanta comida e bebedeira. Na manhã daquele dia, o Conselho de
capitães resolveu pôr ordem na tripulação. A comida restante foi estocada e dividida e seria
servida em porções iguais para todos. A pouca bebida alcoólica restante foi jogada no mar,
e cada um dos homens revistado para se ter certeza de que não ocultavam nenhuma garrafa.
Com a ordem restabelecida, as tripulações foram ordenadas a colocar os navios em ordem,
221
lavá-los, abrir as escotilhas para arejar os porões, costurar velas, trançar cordames e fazer
reparos nos cascos e nos castelos.
A monotonia só foi quebrada ao cair da tarde, quando Laura entrou na residência do
mercador com novidades. Os homens no forte haviam avistado um navio se aproximando
pelo canal. Ele ostentava as cores da Companhia e, conforme orientado, trazia um pano
branco amarrado a seus gurupés. Era o sinal de que o Patriarca finalmente decidira vir para
negociar a libertação da cidade e pagar seu resgate. Colleen dirigiu-se ao porto para
aguardar seu convidado.
Karim estava no convés, vestido impecavelmente de branco, e cercado por uma
multidão de assessores. Tão logo a lateral do navio tocou o porto, a capitã fez questão de
saudar o Patriarca de forma exagerada, curvando-se e balançando as mãos:
— Seja bem-vindo à cidade, meu caro. Espero que tenha feito boa viagem.
— Vomite seus termos, pirata – disse Karim sem demonstrar emoção.
— Vocês, amirans, realmente não sabem ser cordiais, não é mesmo? Talvez isso
explique por que precisam comprar suas mulheres em vez de conquistá-las. Se importa se
eu for a bordo para negociarmos?
Karim ignorou a provocação, fazendo um sinal para que seus homens
arremessassem uma tábua para que ela pudesse vir a bordo. Laura se aproximou de Colleen
e murmurou em seu ouvido:
— Considera seguro ir até lá, Rosa? Pode ser uma armadilha.
— Sei me defender, Lau. Além do mais, ele não seria louco de tentar nenhum
truque, com nossos homens espalhados pelo porto.
— Tenha cuidado.
A capitã sorriu e com um andar confiante entrou no navio. Karim deu-lhe as costas,
dirigindo-se ao castelo de proa, sendo seguido por ela. Lá dentro, ela se deparou com uma
sala ricamente decorada com tapetes e objetos de arte. Havia uma mesa redonda feita de
uma madeira escura no centro da sala, sendo que o Patriarca sentou-se em uma cadeira,
222
enquanto um de seus criados puxava a outra para a capitã. Um silêncio se ergueu até ser
quebrado por Karim.
— Muita ousadia de sua parte invadir minha cidade dessa forma.
— Não maior do que a sua ao invadir meu reino. Só quis retribuir parte do favor.
— Por quanto tempo acha que irá escapar de mim, capitã? Estou sendo muito
tolerante com seus assaltos, mas minha paciência começa a se esgotar.
— Ora, meu bom Patriarca, só estou tomando de volta parte daquilo que você
roubou de minha terra. Nada mais justo, não concorda?
— Sabe, capitã, você seria uma adição interessante às minhas forças. Até quando
pretende servir a uma causa perdida de um Regente covarde?
— Até provar o que nós dois sabemos, meu caro: Lorde Joseph não fugiu; você o
levou para algum lugar.
O Patriarca ouviu três leves batidas na porta, seguidas de um criado em vestes
brancas carregando uma bandeja de prata. Sobre ela um bule ornamentado fumegava um
aroma desconhecido, mas agradável.
— Bem na hora, parece que nosso café chegou. Abda, por favor sirva uma xícara à
capitã, sim.
O criado se aproximou da mesa, servindo o conteúdo do bule à Colleen e ao
Patriarca. A capitã olhou com desconfiança para o líquido negro e torceu o nariz.
— Vocês altrarianos e seus costumes bárbaros. Parece que não sabem apreciar nada
que não possua álcool. Seu Regente costumava detestar nossos costumes também. Não vai
ao menos experimentar? – disse Karim, tomando um bom gole de sua própria xícara.
A capitã aproximou o nariz da xícara, tentando farejar uma armadilha. O Patriarca
sorriu:
— Não acha que eu seria tolo de colocar veneno em sua bebida, não é mesmo?
Como pode ver, tanto o meu café quanto o seu saíram do mesmo bule. Deseja trocar de
xícara comigo para ter certeza?
223
Ela não respondeu, sorrindo de forma desconfortável. Bebericou um pouco do
líquido. Sua expressão se torceu diante do amargor, até o calor relaxar seus músculos.
— Não é tão ruim assim, não é mesmo? Ao contrário de seu álcool, o café nos
mantém dispostos e alertas. Mas essa não é uma visita comercial e não vou ficar chateando-
a com meus costumes. Seja breve e me responda quanto quer para deixar a cidade.
— Dez mil sextantes, meu caro, além da resposta a uma única pergunta.
— Façamos doze por sua ousadia. Gosto de pessoas temerárias. E qual sua
pergunta?
— O que fez com meu Senhor Joseph? Para onde o levou?
O Patriarca sorriu, um sorriso irritantemente confiante, ao dizer:
— Você mobilizou todos os seus homens e recursos somente para que eu lhe
respondesse isso? É claro que você não está aqui exclusivamente pelo dinheiro.
— Você o matou, não é mesmo, seu desgraçado?
— Capitã, por favor. Um regicídio é um crime imperdoável, especialmente de um
velho amigo como Joseph. Aquela vagabunda de sua esposa sim, essa eu fiz questão de
sangrar com minhas próprias mãos. Infelizmente, morreu rápido e nem sequer implorou
clemência. Teria sido mais divertido.
Colleen teve um forte aperto no coração com a forma como o Patriarca falava sobre
sua família. Ela respirou fundo, engolindo o ódio para não arruinar sua negociação. Karim
prosseguiu:
— Você chegou a se perguntar por que eu me dei ao trabalho de contratar as Forças
Sombrias? Por que gastei tanto dinheiro, se poderia ter resolvido esse problema com meus
próprios recursos?
A capitã o olhava atônita, à medida que compreendia a extensão do plano de Karim.
Ela se recusava a acreditar nas mentiras daquele homem.
— Isso é um absurdo, você não está insinuando que...
224
— Insinuando não, minha cara, afirmando. Eu estava lá quando ele foi levado para
dentro das Águas Sombrias, um lugar desolador se me permite pontuar. Estou certo de que
ele viverá por longos anos se arrependendo de tudo o que me causou.
A capitã avançou por cima da mesa e agarrou o Patriarca pelo colarinho. Seus
homens sacaram suas espadas, enquanto ele erguia a mão interrompendo-os.
— Diga-me como entrar lá ou eu juro por Ehleniel que irei incendiar sua maldita
cidade.
— Mudando os termos do acordo, capitã? Atitude típica de uma aldarien.
Felizmente, capitã, nem eu mesmo sei mais como chegar lá. Ou você acha que eu não
adoraria visitar seu bom Regente apenas para vê-lo definhar? Somente as Forças Sombrias
sabem como fazê-lo, e eles já partiram, não estão mais entre nós.
Ao olhar fundo nos olhos de Karim, Colleen percebeu, assombrada, que ele não
estava mentindo. Aparentemente o seu plano não possuía falhas. Ela largou seu colarinho e
se levantou.
— Mande que seus homens transfiram o dinheiro para um de meus botes.
Partiremos amanhã pela manhã. Irei descobrir uma forma de tirar meu Regente de lá.
Karim ajeitou a roupa, olhou firme para a capitã e disse:
— Isso não ficará assim, minha cara. Ninguém faz minha cidade refém, pega meu
dinheiro e sai ilesa de tal crime. Eu juro que irei descobrir quem é você, quem são sua
família e seus amigos, e todos eles pagarão por seu erro.
— Quer conhecer minha família, Patriarca? Estão lá fora! Cem dos melhores
marinheiros armados e furiosos; gostaria que os apresentasse pessoalmente?
— Você pagará sua língua com a morte. Pagarei uma pequena fortuna para quem
me trouxer sua cabeça.
Sem responder, Colleen saiu da sala, batendo a porta atrás de si.
Karim sentou-se, retirando um pequeno torrão de terra e o colocando na boca. Ao
mesmo tempo, tocou a pequena marca negra que pulsava discretamente em seu ombro.
225
Ah, minha boa capitã, logo você sentirá na pele o poder das Águas Sombrias –
pensou, olhando para o bule –; e para aqueles que não são iniciados, ela pode ser mortal.
226
Capítulo 16 - O Pesadelo das Águas Sombrias
Conforme acordado, a capitã e seus homens deixaram a cidade ao surgir dos
primeiros raios de sol. Junto dos botes que transportavam os homens de volta aos navios,
caixas e mais caixas com os espólios recolhidos pela cidade. Havia pouco ouro e joias, mas
bastante comida, roupas e alguns produtos que poderiam ser traficados em troca de
dinheiro.
O butim foi reunido no convés, e sua divisão começou. Como parte do contrato,
cada capitão retirou do monte algum objeto de valor para seu tesouro pessoal. Roberts
optou por uma espada ricamente adornada; Morgan, um castiçal de ouro retirado de um dos
templos; por sua vez, Colleen escolheu uma joia acondicionada em uma caixa de prata. Em
seguida, cada um dos oficiais retirou do monte uma arma comum ou peça de roupa e, por
fim, as moedas foram divididas. Os objetos de valor, assim como as mercadorias, foram
registradas. Após vendidas teriam seu valor redistribuído entre os marinheiros.
A tripulação estava satisfeita e, por ordem da capitã, um tonel de rum adquirido na
taverna local foi aberto. Colleen, no entanto, se sentia estranha. Os muitos dias passados em
terra pareciam ter lhe afetado o estômago, que se revirava; a cabeça latejava. Escorou-se
em um dos mastros a fim de se manter em pé, sendo notada por Laura, que perguntou:
— Está tudo bem, Rosa? Você parece um pouco pálida.
— Estou bem, Laura, apenas desacostumada com o vaivém do mar.
— Você não está bem, capitã. Talvez seja melhor descansar um pouco.
227
— Já disse que estou bem, eu só...
Foram as últimas palavras de Colleen antes que sua cabeça atingisse o convés. Um
frio intenso tomou-lhe o corpo; seus membros se moviam erraticamente devido aos
espasmos. Sua testa suava, enquanto ela ouvia distante a voz de Laura gritando por ajuda.
Seus olhos turvaram, a boca se encheu de uma saliva espessa e espumosa que escorria pelos
lábios. Logo, o som silenciou e a capitã apagou.
Quando recobrou a consciência, tudo o que Colleen sentia era um frio cortante
atravessando seu corpo. O som contínuo do vento assoviando irritava-lhe os ouvidos,
enquanto seus olhos eram preenchidos com a visão da maior tempestade que ela jamais
presenciou. Sombras estranhas rodopiavam e se lamentavam a seu redor; entretanto, ela não
conseguia se mover. A mente parecia estar fazendo um joguete com sua sanidade: milhares
de gritos de socorro ecoavam por todos os lados. Mãos apodrecidas se erguiam da
superfície do mar revolto, buscando agarrar suas pernas, enquanto ela percebia estar
flutuando sobre a água.
— Ela está ardendo em febre – constatava Laura, preocupada. – Seu corpo não para
de tremer. Faça alguma coisa!
— Eu jamais vi nada parecido com isso – disse Thomas Hallet, o médico de bordo.
– Já presenciei febrões intensos, mas nenhum que durasse tantas horas e não pudesse ser
baixado com compressas e elixires. As amarras mal estão conseguindo contê-la sobre a
cama; nunca vi alguém ficar com os olhos completamente negros como ela.
— Será algum tipo de veneno, senhor Hallet? Ou talvez algum tipo de bruxaria?
— Se for algum veneno, minhas ervas não conseguem neutralizá-lo. Se for magia,
está além de meus conhecimentos ajudá-la. Devemos nos preparar para o pior; não sei
quanto tempo ela será capaz de resistir a essa situação.
228
Coube à Laura reunir a tripulação do Aliança e prepará-los para o pior. Durante dois
dias ela e o doutor Hallet permaneceram quase que ininterruptamente ao lado do leito de
Colleen, sem que ela esboçasse qualquer reação. Durante esse tempo Yetu comandou a
tripulação, pois independente da enfermidade da capitã, os trabalhos no navio não podiam
parar. Ao reunir todos no convés, Laura anunciou com profundo pesar:
— Nós a estamos perdendo, senhores. O doutor Hallet não sabe mais o que fazer; a
cada dia seu corpo está mais fraco devido à inanição. Não sabemos se é uma questão de
dias ou mesmo horas até que a capitã Rosa não esteja mais conosco.
— Talvez devamos levá-la à terra. Encontrar um clérigo ou um desses curandeiros
que existem por aí.
— Não há tempo, senhor Heywood. E não há um porto seguro onde aportar. A
capitã sempre deixou claro que não devemos arriscar a tripulação por ela. Votaremos
oportunamente em quem assumirá como capitão do navio. Por enquanto é só, senhores: ao
trabalho.
Os marinheiros retornaram a seus postos, muitos ainda atordoados com o mal súbito
da capitã. Katherine se aproximou de sua irmã e sussurrou baixinho:
— A senhorita Colleen vai morrer, Lau?
— Já disse para não pronunciar esse nome - disse a contramestre se ajoelhando na
altura da irmã. – E sim, Kitty, a senhorita Rosa irá morrer.
— Mas ela não pode morrer, Lau. Ela é forte e vai nos levar para casa.
— Eu te prometo que nós iremos voltar para casa de um jeito ou de outro.
— Eu quero vê-la.
— É melhor não. Não quero que você a veja naquele estado.
— Eu quero vê-la – disse Katherine ainda mais alto, com os olhos marejados.
Yetu, que acompanhava o diálogo de perto, colocou suas mãos sobre o ombro de
Laura. Com olhar firme, disse:
— Deixe que a menina a veja. Ela tem direito e não devemos ocultar nada.
229
Laura suspirou, pegando na mão da irmã.
— Venha, mas não largue a minha mão.
Na sua cabine, deitada na cama, Colleen tinha apenas um lençol cobrindo seu corpo
encharcado pelo constante suadouro. Seus braços e pernas estavam amarrados por pedaços
de corda nas pontas da cama, enquanto alternava estados de delírio e espasmos com o de
um estranho e profundo sono.
— Acorde, capitã!
— Não adianta, Kitty, ela não pode te escutar – disse Laura.
A menina abraçou o corpo da capitã, enquanto lágrimas rolavam soltas e molhavam
o rosto da corsária.
— Acorda, capitã... Você disse que me levaria para casa.
— Não adianta, Kitty, vamos sair daqui. Isso pode ser perigoso.
Após algum esforço, a contramestre conseguiu conduzir a irmã, ainda em prantos,
em direção à porta.
Nisso, o doutor Hallet notou algo estranho. As pálpebras da capitã passaram
lentamente a tremer, enquanto ela dava um profundo suspiro. Uma lágrima negra brotou de
seus olhos, seguida de uma segunda e uma terceira, que escorreram de seu rosto atingindo o
lençol. O líquido negro vertido corroeu o pano até que, finalmente, parou.
Um profundo silêncio tomou a cabine enquanto Hallet preparava os ritos para
encomendar a alma da capitã a Ehleniel. Os olhos de Colleen então se abriram, e o negrume
que tingia suas escleras havia desaparecido. Ela virou a cabeça para o lado; ao notar a
menina abraçada à irmã, quase à saída, com um gesto pediu que ela se aproximasse.
— Eu estava tendo um pesadelo terrível quando senti suas lágrimas no meu rosto.
No mesmo instante achei o caminho de volta.
O médico se aproximou dela e a examinou. Aparentemente, a doença havia sumido.
Laura abriu um largo sorriso, ao segurar sua mão:
— Você nos deu um baita susto, Rosa, pensei que íamos perdê-la.
230
— É preciso mais que uma febre alta e um pesadelo para se livrar de mim, Lau.
Aquele maldito Patriarca irá pagar por isso.
231
Livro Três
Uma Tempestade ao Anoitecer
232
Capítulo 1 - Procura-se uma Corsária
— Sete... ganhei!
— Ganhou o quê? Não sabe contar? Fui eu quem apostou no sete.
— Você? Acho que já bebeu demais
— Eu? É você quem está bêbado, seu porco!
— Porco? Agora tá me xingando? Pelo menos não sou burro como você, que acha
que ganhou tirando um sete nos dados.
— Porco, sim! Afinal de contas, que outra coisa a sua mãe conseguiria parir?
— Duvido que você falaria assim se estivesse com minha faca na sua garganta.
— E desde quando você tem culhões para puxar uma faca para mim, seu covarde?
— Eu sou covarde? Você já se esqueceu do...
— Do ataque à frota da Companhia? Já se passou tanto tempo. Até quando você vai
ficar se vangloriando disso?
— Quem foi o primeiro a pular naquele convés?
— A capitã?
— É lógico que foi ela, estou dizendo. E depois?
— Você!
233
— E quem estava na frente do grupo quando invadimos Al-Mina’ El-Gharbia ?
— Está bem, eu já entendi. Porém o fato de você ser um idiota temerário que se joga
para morrer não o faz um corsário de coragem, só um completo imbecil... Não vai falar
mais nada? Por que está me olhando com essa cara?
— Por acaso – ouviu-se a voz da capitã -, isso que estou vendo é um par de dados,
senhores?
A voz de Colleen soava irônica e, ao mesmo tempo, repreendedora.
— Capitã Escarlate, não exatamente...
— Não exatamente...? E essa garrafa verde atrás de você. Imagino que não seja
exatamente rum, estou correta?
— Não estamos bêbados, capitã – retrucou o outro marinheiro com a voz vacilante.
— Bem, se não estão bêbados, estou certa que não terão dificuldades em identificar
as cores da bandeira daquele navio que se aproxima a boreste? Estou correta, senhor
McCoy?
Os homens se levantaram cambaleantes e se dirigiram à lateral do navio, apoiando-
se como podiam na amurada e forçando a vista para vencer a escuridão da madrugada.
Colleen procurou com o olhar Yetu, que ajustava alguns cordames na proa do navio.
Ela apontou com um sinal de cabeça os dois marinheiros que, debruçados, vasculhavam o
horizonte. O oficial rapidamente entendeu a mensagem, largando suas tarefas e se
aproximando da capitã. Ele abriu um largo sorriso de cumplicidade, aguardando o sinal. Ela
se agachou, enquanto o senhor Young exclamava:
— Não vejo nenhum navio no...
O marinheiro não teve tempo de completar sua frase, pois caiu em direção ao mar.
Yetu repetiu o gesto da capitã: agachou-se e agarrou o senhor McCoy pelos tornozelos,
para virá-lo e jogá-lo na água. Aturdidos, os homens se debatiam, agarrando-se um ao outro
para não afundarem.
— Talvez consigam ver o navio daí, senhores – berrou Colleen, depois de uma
gargalhada. – Se não, ao menos a água fria fará bem para amenizar esse porre.
234
Virou-se para seu mestre de armas e disse:
— Senhor Yetu, arremesse duas barricas vazias antes que esses imbecis afundem.
Deixe-os um pouco no mar até que seus cérebros estejam lavados do álcool e depois os
traga a bordo. Quero ambos fazendo o turno da noite, vigiados pessoalmente por você.
Mantenha-os com meia ração e água até segunda ordem. Servirão de exemplo para outros
engraçadinhos que queiram jogar e beber a bordo.
Yetu concordou com a cabeça, indo providenciar as barricas para servir de boia aos
marinheiros. A corsária agarrou do chão a garrafa de rum pela metade, limpou seu gargalo
com a manga da blusa e sentou-se na proa do Aliança para beber. Entre um gole e outro, a
capitã observava o horizonte, torcendo para que o próximo encontro fosse mais proveitoso.
Assim como havia sonhado, a bandeira negra com a rosa vermelha se tornara temida
pelos mercadores e cidadão amirans, sendo desenhada em cartazes de Procura-se por toda
Ixian.
Por anos, a capitã caçou, pilhou e aterrorizou os mares de Mirr. Seus constantes
ataques a alvos da Companhia lhe trouxeram fama, riquezas e um bom preço por sua
cabeça. Sua vida no mar, porém, deixou marcas. A pele antes clara e lisa tinha agora um
tom mais moreno, além de marcada por diferentes cicatrizes, resultado de suas batalhas e
aventuras. Os cabelos se tornaram opacos, o olhar perdeu o brilho da inocência, e sua
postura mais rígida denunciava um cansaço que parecia não ter fim. Colleen se indagava
até que ponto essas mudanças não se deviam a seu sangue, escuro e espesso, que ela
adquirira após sobreviver ao atentado do Patriarca. Certa de que parte da maldição das
Águas Sombrias corria em suas veias, jurava a si mesma que ele pagaria caro por isso.
Já Roberts e Morgan, após o ataque a Al-Mina’ El-Gharbia e o gordo resgate pago
pelo Patriarca, decidiram retomar Tirana das mãos da Companhia. Com isso, se vingariam
da passividade de Charles Vane e reestabeleceriam o velho Conselho para, enfim, revigorar
as operações de pilhagem em Altrarian.
Com a partida de seus dois aliados, pouco a pouco, outros capitães piratas em busca
de fortuna e suporte se uniram à causa da capitã, dispersando os ataques e tornando a vida
das autoridades de Azhir cada vez mais difícil. Alguns foram presos e enforcados, sem
porém revelarem algo que pudesse ajudar na captura de Rosa Escarlate.
235
A arma favorita da capitã era o terror e as histórias que ele gerava. Em um ataque a
uma vila de traficantes de mercadorias, a tripulação capturou três amirans fujões que,
escondidos na mata, juravam não terem ocultado nenhum tesouro. A vila esvaziada às
pressas convencera Colleen de que eles mentiam; em uma ação combinada com Yetu,
ordenou que seu contramestre levasse um dos prisioneiros até o navio para ser interrogado.
Minutos depois, retornou sozinho, mordiscando algo.
— É bom que vocês colaborem, pois esse coração não será suficiente para saciar a
minha fome - disse o homem com quase dois metros de altura, entre uma mordida e outra.
Na verdade, tratava-se do coração de um porco que o cozinheiro Lamb acabara de
matar. Rapidamente os prisioneiros soltaram a língua, entregando seu ouro e implorando
por sua vida.
O amiran levado ao navio foi mantido prisioneiro tempo o suficiente para que as
lendas sobre o canibalismo da tripulação de Rosa se espalhassem para outras cidades.
Acabou sendo solto, semanas depois.
O temor diante do nome Rosa Escarlate aumentava o preço por sua cabeça, atraindo
a atenção de caçadores de recompensa oportunistas. O Patriarca parecia determinado a
cumprir a sua promessa, e muitos foram aqueles que tentaram matá-la. Isso obrigava a
capitã a buscar refúgio em terra por meses, escondendo-se na Ilha de Morgan, enquanto
seus homens descansavam e se divertiam. As tendas foram pouco a pouco dando lugar a
cabanas de madeira, formando uma vila oculta em meio à mata.
— Não acha um pouco cedo para beber, capitã?
Colleen virou-se, abrindo um sorriso:
— Bem, o sol ainda não nasceu, portanto ainda não é dia, certo?
Laura retribuiu o sorriso, sentando-se ao lado da capitã.
— Acabo de ver o senhor McCoy e o senhor Young sendo içados a bordo.
Problemas novamente?
236
— Mais uma bebedeira em serviço – suspirou Colleen, desapontada. – É a terceira
vez este mês que tenho de punir um dos homens por desleixo. Essa maldita calmaria está
deixando-os desatentos. Não quero ter de aplicar castigos físicos na tripulação.
Ela sentiu Laura pressionando de leve o seu ombro, tateando a tensão muscular.
— Eu sei que a cada dia a Companhia fecha mais seu cerco em torno de nós, capitã.
Mas isso já aconteceu antes e não nos impediu de continuar pilhando os espólios de Azhir.
— Jamais pensei que levaria tanto tempo; e ainda assim não sei se conseguiremos
levar o plano adiante.
— É tudo uma questão de paciência, capitã. Com a quantidade de espólios que
reunimos ao longo desses anos, não tardará para que tenhamos o suficiente para incitar uma
revolução e pôr fim à tirania de John Hattcliff.
— Talvez não tenhamos tanto tempo assim, Lau. Há muito não tenho notícias do
Governador. Tenho medo que alguém descubra minha relação com ele e tente feri-lo ou à
minha irmã para me atingir.
— Seu pai é forte, Rosa, não se deixaria surpreender por uma emboscada. No
momento oportuno estará disposto a lutar por essa causa... Mesmo que jamais saiba de onde
veio todo esse dinheiro.
Colleen sorriu, colocando sua mão sobre a mão de Laura.
— Sabe, Lau, às vezes sinto saudades de casa, do conforto do castelo e da
companhia de minha irmã e de meus padrinhos. Se hoje estou aqui capitaneando um navio,
foi porque meu Regente me ensinou a amar os oceanos como minha própria vida.
— Sei o quanto ele lhe faz falta, mas temos de encarar os fatos. Até hoje, só temos a
declaração daquele Patriarca mentiroso. Nem sequer sabemos se aquela história de ter
aprisionado o Regente nas Águas Sombrias é verdade.
— Pense um pouco comigo, Lau: toda essa invasão, a forma como ela foi feita não
faz o menor sentido. Você se lembra do que aconteceu com a Companhia logo após a
guerra? A forma como as taxas de uso do canal aumentaram, como os impostos sobre os
produtos subiram? Até um leilão de peças de arte aquele maldito Patriarca organizou.
237
— Está sugerindo que a Companhia gastou mais do que poderia naquela invasão?
— Evidente. O Patriarca dilapidou o tesouro da família dele para pagar as tais
Forças Sombrias. Se era somente uma invasão o que ele desejava, poderia ter contratado
um exército três vezes maior com a metade do custo. Por que não pagar os orcs para
fazerem o trabalho sujo? Ficaria muito menos evidente de que havia alguém por trás disso.
Além do mais, Laura, quantos navios das Forças Sombrias avistamos todos esses anos
navegando por esses mares? Nunca vimos um, seja aportado ou em alto-mar. Se são uma
força tão poderosa, onde se escondem?
— É por isso que estamos indo visitar aquele tal mago? Como se chama mesmo?
— Lomir.
— Não me entenda mal, capitã, mas ainda estou um pouco desconfortável com a
ideia de procurar um mago louco, amaldiçoado pelas Águas Sombrias.
Colleen olhou para os próprios pulsos e em seguida para sua amiga, uma das poucas
que conhecia seu segredo.
— Rark não nos deu outras opções, Lau. Nenhuma de suas magias ou rituais é capaz
de romper a barreira das Águas Sombrias. Mesmo esse tal de Lomir pode não ter a resposta
que procuramos.
— Também não sei por que confia tanto nesse tal de Rark. Aqueles golens de carne
que ele possui como servos são simplesmente nojentos.
Colleen sorriu ao lembrar-se da amiga tendo espasmos diante do cadáver animado
que as atendera na torre do arcano.
— Rark é um dos mais poderosos magos de Altrarian e amigo de longa data da
família real. Apesar de excêntrico e bastante ocupado, é uma pessoa honesta e de confiança;
ele não teria por que tentar nos enganar. Estou confiante de que Lomir terá a resposta que
buscamos.
Laura se levantou, deu um tapa em suas costas antes de sair:
— Irei preparar tudo para nossa chegada. Devemos avistar terra em poucas horas.
A capitã terminou por secar a garrafa e jogá-la no mar.
238
Se é para as Águas Sombrias que devo ir para encontrá-lo, é para lá que rumarei.
Não desistirei até ter certeza de seu destino, meu senhor. Vivo ou morto, eu irei encontrá-
lo”
239
Capítulo 2 - Lomir, o Amaldiçoado
Após aportarem no local indicado por Rark, Colleen, Laura e Yetu saíram em busca
do tal Lomir.
A região era deserta, uma praia rochosa e isolada que dava acesso a uma mata
esparsa. Após caminharem alguns minutos, a capitã avistou o que pareciam ser ruínas de
pedra, uma espécie de torre circular sem telhado e com algumas paredes já tombadas. À
medida que se aproximavam, distinguiram alguns resmungos, até finalmente encontrarem o
que procuravam.
Ajoelhado próximo a uma das paredes estava um velho em vestes negras. Seus
cabelos brancos, longos e desgrenhados se uniam à barba em não melhor situação. Seus
olhos completamente negros e sem a íris sobre a esclera branca dificultavam precisar
exatamente para onde ele estava olhando. No pescoço carregava um discreto medalhão,
espécie de cristal azulado preso a um cordão de couro, algo que não combinava com os
andrajos do homem. A joia chamou a atenção da contramestre.
O velho escavava com seus dedos já bastante machucados um buraco no chão,
colocando seguidos nacos de terra na boca para, em seguida, cuspi-los em meio a
palavrões.
— Pura, esta também é pura...maldição!
Colleen observava um tanto assustada. Seria realmente esse o homem que Rark
mandara ela procurar? A resposta surgiu quando ele interrompeu o gesto por um breve
240
instante, para coçar vigorosamente a parte de trás de seu pescoço. Tão logo ele retirou a
mão, a capitã notou o sinal que procurava: uma estranha mancha negra pulsante debaixo da
pele, que se irradiava pelas veias para suas costas e cabeça.
Ela se lembrava de ter visto algo parecido. Karnast, o capitão das Forças Sombrias
que assassinara Fletcher e tentara violentá-la anos atrás, possuía o mesmo tipo de marca.
Felizmente nada parecido havia surgido em seu corpo, ao sobreviver à maldição.
— Ei...você! Seu nome é Lomir?
O velho parou por um segundo, como se notasse a presença das três pessoas, mas
logo voltou a cavoucar.
— Estou falando com você... Seu nome é Lomir? Onde conseguiu essa mancha?
Colleen já começava a se irritar com o desdém do homem, ameaçando agir, não
fosse a mão de Laura sobre seu ombro. A contramestre aproximou os lábios de seu ouvido
e murmurou:
— Viu aquilo, capitã? O medalhão no pescoço dele? Brilhou quando você falou
com ele.
— Do que está falando, Laura?
— Tenho certeza disso, capitã. Eu o vi brilhar das duas vezes que você lhe dirigiu a
palavra.
— Será algum tipo de armadilha das Forças Sombrias? Algo que impeça alguém de
se aproximar desse homem?
— Não tenho certeza, Rosa, mas seja o que for é melhor retirarmos do pescoço dele
antes de tentar algo mais.
A capitã assentiu, dando autorização para a contramestre fazer sua parte. Ela
também olhou para Yetu, alertando-o para que ficasse pronto caso algo saísse do controle.
Laura se aproximou do homem, sacando sua adaga e colocando a lâmina entre o
pescoço dele e o cordão que prendia a corrente. Em um movimento rápido, ela partiu o
cordão, derrubando a joia que agora emanava um brilho azulado permanente.
241
- Não estou gostando disso, Lau, Não sei se ele é a pessoa certa, mas não quero
arriscar. Melhor levarmos ele conosco e interrogá-lo em outro lugar.
A capitão olhou para seu mestre de armas e ordenou que ele arrancasse o velho do
chão. Yetu obedeceu, abaixando-se e erguendo o homem pelos braços. Lomir começou a
gritar e a se debater assustado. Somente agora parecia ter se dado conta de que não estava
sozinho.
— Vamos levá-lo para o navio e lá veremos o que ele sabe.
— Vocês não irão levá-lo a lugar algum!
A voz pausada pôde ser ouvida de trás de uma das paredes da ruína. Uma figura
envolta em um manto azulado surgiu, caminhando calmamente em direção à tripulação.
Colleen e Laura sacaram suas armas, enquanto Yetu segurava firme o velho.
— Não há necessidade de sacar suas armas, capitã. Minha intenção é apenas
conversar. Pode me dizer o que pretende fazer com esse cavalheiro?
— O que lhe parece? Que o levaremos para um passeio pela praia? – respondeu a
capitã em tom irônico. – Nós o levaremos ao nosso navio para que responda algumas
perguntas.
— Ele não me parece disposto a ir com vocês, e eu tenho de concordar com ele
nesse ponto.
A capitã encarou a figura, buscando seus olhos embaixo do capuz igualmente azul.
— E quem é você? Um dos lacaios das Forças Sombrias?
Um discreto sorriso se formou nos lábios do encapuzado:
— Não, minha cara, não tenho relações com as Forças Sombrias. Sou um mero
observador com a missão de cuidar de Lomir e daqueles que inadvertidamente se
aproximam dele.
— Então, esse é realmente Lomir... e qual poderia ser seu interesse nele?
242
- Eu lhe faço a mesma pergunta, capitã: o que uma corsária notória por atacar navios
da Companhia e cujo rosto encontra-se estampado em quase todos os portos de Ixan pode
desejar com alguém como Lomir?
Colleen se deteve, curiosa pela escolha das palavras do encapuzado. Ele usara o
termo corsária em vez de pirata, como se soubesse de suas motivações.
— Afinal, quem é você e o que sabe a meu respeito?
— Meu nome é Olorin de Lanq’ie e antes que possamos prosseguir com essa
conversa, gostaria que soltasse Lomir. Ele parece bastante desconfortável.
A capitã fez um sinal para Yetu, ordenando que o velho fosse colocado no chão. O
mestre de armas obedeceu imediatamente, soltando Lomir, que voltou a cavoucar a terra.
Olorin se abaixou próximo dele, verificando se ele estava bem. Em seguida, agarrou
o medalhão cortado no chão, amarrando-o de volta ao pescoço do velho. Levantou-se e
perguntou:
— E então, capitã, ainda não me respondeu por que veio até aqui nos importunar.
Qual pode ser seu interesse em um velho doente e inofensivo?
— É exatamente a doença dele que me atraiu até aqui, Olorin: uma condição que,
apesar de deixá-lo em estado tão lamentável, pode me responder a uma pergunta.
— E que pergunta é essa, capitã?
Colleen respirou fundo, ponderando sobre as consequências de revelar seus planos a
esse homem. Parecia uma pessoa serena, comedida, talvez até sábia o suficiente para
compreender que sua ideia não era uma completa loucura. Ela, então, respondeu:
— Planejo adentrar as Águas Sombrias.
Pela primeira vez Olorin se surpreendeu, adotando uma postura curiosa e
inquisitiva.
— Você ainda não angariou ouro suficiente nos navios da Companhia que assaltou?
— A questão principal nunca foi o ouro – respondeu a capitã de forma incisiva.
243
— Se o problema não é ouro, o que pode desejar uma capitã em um dos lugares
mais inóspitos e temidos pelos povos de Mirr?
Ela hesitou novamente antes de responder. Aquele homem parecia interessado em
seus assuntos; não queria arriscar se expor de forma desnecessária.
— Por que deveria confiar em você? Como você mesmo lembrou, sou uma corsária
procurada em muitos portos. Além do mais, não posso confiar em quem sequer vejo os
olhos.
Sem hesitação, Olorin removeu o capuz, expondo seu semblante à capitã. Sua pele
era clara e sem marcas. Os olhos verdes contrastavam com os longos cabelos, lisos e
castanhos a cobrir parcialmente um par de orelhas pontiagudas. Seu sorriso era simples e
sincero. O elfo não pronunciou uma única palavra, aguardando que Colleen prosseguisse.
— Um elfo? Resguardando um humano?
— E por que não? Como lhe disse, apesar de sua condição, Lomir é um homem
muito sábio, detentor de grandes conhecimentos. Afinal, não foi por essa razão que a
senhora atravessou o oceano? – respondeu Olorin com um pouco de sarcasmo. - Além do
mais, eu não estou aqui para responder às suas perguntas, e a capitã ainda não me
respondeu o que quer com Lomir.
Colleen respirou fundo, tentando conter a raiva pela forma como Olorin se dirigia a
ela. Algo lhe dizia que esse elfo era capaz de ler sua história nos olhos e que, a menos que
cooperasse, não conseguiria nada.
— Pois bem, guardião, deve ter ouvido rumores a respeito da invasão sofrida pelo
reino de Aldarian há alguns anos.
— Rumores – respondeu Olorin de forma seca.
— Pois saiba, meu caro, que aquilo se tratou de um golpe de estado, uma manobra
política para remover seu legitimo Regente e colocar em seu lugar uma marionete
controlada pela Companhia.
O elfo assentiu com a cabeça para que a capitã continuasse.
244
— Se hoje Aldarian deixou de ser uma terra próspera para se tornar palco de
conflitos e guerras civis, foi porque o Patriarca coordenou esse teatro apenas para se vingar
de meu senhor Lorde Hattcliff.
— Isso ainda não explica por que a senhora deseja adentrar as Águas Sombrias.
— Lorde Hattcliff foi feito prisioneiro pelas Forças Sombrias, e seu cativeiro se
encontra no interior daquele lugar amaldiçoado. Ouvi isso dos lábios do próprio Patriarca...
— ...Que afirma ser impossível para qualquer um adentrar as Águas Sombrias –
completou Olorin. – Tal atitude seria bem típica de sua arrogância. E qual seu interesse em
salvar esse a quem chama de Lorde Hattcliff?
— E não lhe parece óbvio? – sorriu Colleen de forma nervosa. – Eu sou uma
corsária a serviço de Aldarian, e ele é meu senhor. É minha obrigação reestabelecer a
ordem e devolver o trono a seu legitimo herdeiro.
O elfo a observou; parecia duvidar que suas motivações fossem tão simplesmente
altruístas. Como se soubesse que havia algo mais pessoal por trás desse resgate, além da
obrigação entre um súdito fiel e seu Regente.
Acenou positivamente com a cabeça, aproximando-se de Lomir que seguia
devorando e cuspindo nacos de terra. Olorin sussurrou palavras incompreensíveis, que a
capitã julgou ser algum tipo de élfico, sem porém identificar nenhuma delas. Tocou a mão
direita nas costas de Lomir, aproximou os lábios do ouvido do velho e disse de maneira
pausada:
— Lomir, essa senhora gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
No mesmo instante o homem se deteve, balançando a cabeça de leve, como se
despertasse de um sono profundo. Visivelmente desorientado, olhava para Olorin e, em
seguida, para a tripulação de Colleen.
— Olorin? O que você está fazendo aqui? Quem são essas pessoas?
— Essas pessoas podem lhe ajudar, Lomir. Responda aquilo que for pertinente, mas
resguarde o que considerar mais importante. Algumas vezes, para serem ajudadas, é preciso
que elas queiram algo de nós.
245
Colleen se viu encarada por Lomir. As feições dele e a sua respiração pesada
revelavam que vinha há tempos sofrendo de algo terrível e que a visita dela lhe trazia mais
desgosto do que qualquer esperança.
— O que você quer saber?
Ela resolveu ser direta:
— Como pode um navio das Forças Sombrias adentrar e sobreviver às Águas
Sombrias? Isso pode ser aplicado a navios que não pertençam a eles?
Lomir olhou de forma inquisitiva para Olorin, buscando em suas feições as razões
para ter sido despertado para responder a essa pergunta. O arcano se limitou a sinalizar com
a cabeça, dando a entender que ele deveria responder.
— Sim, é algo trabalhoso, mas que pode ser feito.
— E o que você quer por essa informação? Não sou tola a ponto de acreditar que me
daria essa informação de bom grado. Diga-me seu preço, posso conseguir praticamente
qualquer coisa.
Lomir não hesitou, olhando fundo nos olhos da capitã:
— Terra.
Sem conseguir conter o riso, Colleen olhou à sua volta e retrucou:
— Mais terra? Há terra por todo lado aqui, e você quer mais?
— Esta é pura, eu necessito de algo diferente, necessito de terra sombria.
— Terra sombria? Peço perdão, meu caro, sou uma capitã viajada, mas jamais vi
nada parecido. Você sabe onde posso encontrá-la?
— Sim, capitã, só conheço um lugar em toda Mirr fora das Águas Sombrias onde
essa terra pode ser encontrada, e esse lugar é o interior do reino de Dartaria.
Colleen se deteve por um instante, lembrando-se das histórias do reino amaldiçoado,
ao sul de Centauron, povoado por mortos-vivos.
— Mas ninguém jamais pôs seus pés lá.
246
— Então, capitã, parece que você será a primeira. Eu adoraria ter ido até lá
pessoalmente, mas como pode ver, sou incapaz de me manter consciente por muito tempo.
— E é por isso que precisa dessa tal terra?
Lomir silenciou, como se a resposta parecesse óbvia.
— Muito bem então, acredito que temos um acordo. Trarei para você quanto dessa
terra eu conseguir carregar.
— Há algo mais que você precisa trazer, capitã, algo que será fundamental para
cumprir sua missão: o sangue negro de uma criatura das profundezas. Aquelas águas são o
único lugar onde pode encontrar essa criatura, além, é claro, do interior das Águas
Sombrias.
— E como encontrarei essa criatura? – perguntou Colleen, intrigada.
— Sabe o que nos diferencia, capitã? O fato de que, de alguma forma, você não
deixou sua mente se afogar na loucura dessa doença. Existe uma marca indelével em você,
mesmo tendo se curado, que é percebida por qualquer um que sucumbiu a esse mal.
Como esse velho sabia sobre sua doença e seu pesadelo? Lomir respondeu à
pergunta buscando no solo uma pedra mais afiada e, com um pouco de esforço, fez um
corte na palma da própria mão. No mesmo instante, o sangue negro escorreu entre seus
dedos. Ele abriu a palma da mão para a capitã e disse:
— A criatura sombria é atraída pelo mesmo sangue que corre em suas veias; use-o
como uma isca e ela virá até você.
— Devo sangrar para atrair a criatura?
— Sim, mas não se preocupe. A maldição não permitirá que você morra. - No
mesmo instante, Lomir pareceu perder interesse na conversa, voltando sua atenção para a
terra que ele comia e cuspia em seguida, com um palavrão.
Colleen reparou que Olorin vacilava, seus joelhos antes firmes pareceram traí-lo;
por um instante, ela achou que o elfo iria desmaiar. Olorin respirou fundo, olhou para a
capitã e disse:
— Mantê-lo consciente é algo que consome muito minhas forças.
247
Ao observar o velho mago se perder novamente em seus devaneios, Colleen sabia
que ele não mais prestava atenção nela. Indagou:
— Só existe um problema quanto ao pedido de Lomir. Dartaria é um território vasto
e, até onde sei, muito perigoso. Sem saber exatamente onde encontrar essa tal de terra
sombria, poderíamos vagar por dias sem rumo e não encontrar nada.
— Um mago experiente seria capaz de sentir a presença dessa substância, uma vez
que ela está amaldiçoada.
— Infelizmente, meu caro, não possuo arcanos em minha tripulação. Os
marinheiros podem ser pessoas bastante supersticiosas às vezes; e seres que dominam
forças que eles não compreendem causam grande desconforto.
Olorin sorriu, respirou fundo e disse:
— Eu posso ir com você, capitã, e ajudá-la a encontrar essa terra para Lomir.
Colleen olhou-o com desconfiança, tentando imaginar por que alguém desejaria de
bom grado acompanhá-la para um lugar amaldiçoado.
— E qual seu preço por me acompanhar em uma jornada suicida.
— Como lhe disse, minha cara, Lomir é um homem de grandes conhecimentos,
saberes estes que podem contribuir com meus próprios estudos. Se eu estiver com ele sem a
necessidade de mantê-lo consciente, aprenderei muito.
— Muito bem, Olorin de Lanq’ie, seja bem-vindo a bordo do Aliança. Peço apenas
que mantenha discrição quanto a seus poderes e siga as regras a bordo. Será meu convidado
durante sua estada.
O mago assentiu com a cabeça, virou-se para Lomir, mas dirigindo-se a ela:
— Eu preciso de mais alguns minutos com ele, capitã, quero me certificar de que ele
ficará bem e confortável durante minha ausência.
— Faça como quiser, mago, o aguardaremos no navio.
Enquanto caminhavam, Laura se aproximou de Colleen e sussurrou:
— Acha que podemos confiar nesse elfo, Rosa?
248
— Para onde estamos indo, essa será nossa única opção, Lau.
249
Capítulo 3 - Caçada pelo Sangue Negro
Olorin era um passageiro reservado, passando boa parte do tempo em sua cabine
com seus papéis ou em silêncio observando o mar. A presença da figura misteriosa havia
incomodado a tripulação, mesmo após a capitã esclarecer que se tratava apenas de um guia
para a próxima missão.
O moral da tripulação também não era dos melhores. A comida escassa, o estranho
convidado e um destino incerto ajudavam a levantar rumores em meio aos homens.
Alguns murmuravam que a capitã havia enlouquecido e algo precisava ser feito,
enquanto outros prometiam deixar o navio condenado no primeiro porto. Colleen buscava
aplacar a insatisfação cedendo doses generosas de rum de sua adega pessoal, além de
prometer tesouros para aqueles que a seguissem até o fim.
Assustados, os marinheiros rumavam para um mar considerado amaldiçoado. Sem o
pulso forte da capitã e a confiança da tripulação conquistada ao longo dos anos, esse
empreendimento seria impossível.
Foi Laura, a fiel contramestre da capitã Escarlate, a notar os primeiros sinais de
aproximação de seu destino. Seu olhar treinado notou quando o mar gradualmente
abandonou o azul-escuro, adotando um tom ligeiramente avermelhado. A capitã e seus
oficiais mantiveram o segredo até que a mudança não pudesse ser mais ocultada e o resto
da tripulação começasse a notar. Antes que o pânico se espalhasse, Colleen reuniu a todos
no convés e dirigiu-lhes a palavra:
250
— Existe algum covarde entre vocês? – perguntou, apontando seu alfanje para a
multidão. – Existe aqui alguém que não honre aquilo que tem dentro das calças?
Risos nervosos se elevaram da multidão enquanto ela prosseguia:
— Não se assustem por conta da água, senhores, pois esse é um pequeno detalhe.
Rumamos para terras onde dizem que os mortos caminham eternamente e nós, humanos,
somos proibidos de pisar.
— Está nos levando para a morte, capitã? – alarmou-se um dos homens.
— Certamente que para a de alguns, senhor Hallet, mas não existem outras opções.
Não podemos enfrentar a Companhia para sempre, pois a cada dia eles estão mais fortes e
vigilantes. Se existe uma esperança para nós, é a de restabelecer um lugar onde teremos
abrigo e apoio, e esse lugar é Aldarian. Aquele homem lá embaixo diz saber como trazer
nosso Regente de volta e, por Ehleniel, eu lhes juro que se existe alguma chance de isso ser
verdade, irei descobrir.
— E se ele estiver morto? O que há para nós?
— Se ele estiver morto, morreremos lutando. Não permitirei que a Companhia nos
pegue e aperte os pescoços até que a urina manche nossas calças. Se tenho de morrer, será
no convés deste navio e não dependurada na forca. Se o Regente viver, no entanto, cada um
aqui terá recompensas suficientes para viver como um nobre pelo resto de seus dias. Já
viemos até aqui, não há mais nada a perder.
— E o que faremos nessas águas, capitã? – perguntou um dos homens um pouco
mais confiante.
— É preciso que colhamos o sangue de uma criatura, um ser sombrio que somente
habita essas águas.
Os murmúrios de preocupação e descrédito se ergueram mais uma vez na multidão.
O mesmo homem que já havia se pronunciado quis saber:
— E como pretende encontrar tal criatura?
— Será ela que irá nos encontrar.
251
Ao dizer isso, Colleen puxou uma faca de sua cintura, colocando a lâmina sobre a
palma de sua mão.
— Todos vocês sabem que as Águas Sombrias por pouco não levaram minha vida.
Hoje eu estaria no fundo deste mar, não fosse pelo amor e coragem de uma menina – disse
a capitã olhando para Kitty. - Vocês são minha família, são as pessoas que cuidam e olham
por mim a cada dia, e como tal não devo lhes esconder nada.
Os tripulantes se entreolharam confusos, enquanto a capitã cortava a palma da mão
com sua faca. Em instante um sangue negro e espesso verteu da ferida, assustando os
homens lá embaixo.
— Posso ter me livrado do pesadelo eterno das Águas Sombrias, mas desde aquele
dia elas são parte de mim. Eu não mais compartilho do sangue vermelho de cada um de
vocês, e isso, mais do que qualquer coisa, me faz desejar ainda mais me vingar do maldito
Patriarca e sua Companhia.
Ela fechou a mão, espremendo seus dedos até que o sangue viscoso escorresse entre
eles. Algumas gotas caíram no mar, formando uma mancha de tamanho maior do que a
quantidade de sangue derramado. Um silêncio estranho tomou conta do navio; os
tripulantes aguardavam o que fazer enquanto a ferida na mão da capitã rapidamente
cicatrizava. Cinco minutos se passaram até que o homem no topo da gávea berrou:
— Ali! Está vindo para cá.
Colleen correu para a proa do Aliança, olhando na direção que seu marinheiro
apontava. Uma estranha mancha escura, maior que o próprio navio, se movia lentamente
sob a água em direção a eles.
— Preparem-se, homens: todas as mãos no convés. Ajustem essas vergas e
diminuam o pano dessas velas; precisamos desacelerar o navio. Quero arpões e ganchos de
abordagem prontos e nossas balistas carregadas com munição de metralha.
Colleen gritava para que todos se preparassem nos diferentes pontos da embarcação.
Laura já sacara seu alfanje e descera até o convés para organizar os marinheiros. Muitos
olhavam para a grande mancha que se aproximava com um misto de espanto e curiosidade,
e havia ainda aqueles que oravam em silêncio a Ehleniel para protegê-los contra aquilo.
252
De onde estava, a capitã enxergava a grande mancha se destacar em meio à
vermelhidão da água. Ela possuía um formato triangular, com pequenos chifres na parte
frontal e uma longa causa que ia afilando até seu final.
— Yetu, vire a nau a bombordo e ofereça a lateral de nossas balistas à criatura.
A mancha que até então se aproximava em velocidade, repentinamente sumiu,
deixando os homens confusos. Passou-se apenas uma fração de minutos quando a corsária
berrou:
— Segurem-se.
O monstro havia afundado para ocultar sua oposição, emergindo apenas a poucos
metros do Aliança. Ouviu-se um forte som de madeira raspando, denunciando que a
criatura esfregava seu dorso no casco, chacoalhava a nau e a adernava para a esquerda. O
ataque durou poucos segundos; logo a mancha se afastou somente para tomar distância e
dar meia-volta. Ainda perplexa, Laura gritou:
— Ela vai tentar de novo, capitã, está tentando emborcar o navio.
— Eu sei, Laura. Aparentemente é assim que ela ataca.
— O que é isso, afinal de contas.
— Se parece com uma arraia, mas eu nunca vi uma desse tamanho.
O marinheiro no topo da gávea gritou:
— Está voltando em nossa direção, capitã.
Colleen observava, assustada, a gigantesca criatura atrás da qual viera procurar. Por
estar tão próxima à superfície da água, as balistas do Aliança se tornavam inúteis, sem
disporem de ângulo para disparar.
— Carreguem as bestas e disparem à vontade, senhores.
Logo o som de travas e catracas pôde ser ouvido, enquanto cada homem não
ocupado com os velames tensionava a corda de sua besta. O animal lançou uma nova carga
e, sob o grito da capitã, foi recebido com uma chuva de virotes.
— Atirem!
253
O zunir dos projéteis ecoou pelo ar, cruzou o espelho de água, atingindo a criatura
que se encontrava a poucos metros. Os virotes batiam e ricocheteavam contra a pele dura
do animal, causando-lhe ferimentos apenas superficiais. Novamente a arraia negra afundou
até desaparecer da vista de Colleen. Antevendo seu movimento, ela gritou:
— Segurem-se!
O monstro se colocara embaixo do Aliança, erguendo-se enquanto esfregava o
dorso no casco, em uma nova tentativa de emborcá-lo. O navio adernou ligeiramente à
esquerda, mas o golpe seguinte foi imprevisível. Assim que começou a se erguer da água,
ouviu-se um forte estrondo na lateral do navio, logo abaixo da linha d´água. O som de
madeira se partindo se misturou ao grito dos marinheiros sob a coberta, que passaram a
correr de um lado a outro.
— Água...água entrando no porão.
Colleen viu de soslaio quando a criatura removia a ponta farpada de sua longa cauda
da lateral do navio, abrindo um buraco que passou a alagar o porão. Ela gritou:
— Acionem as bombas e consigam tábuas e alcatrão para calafetar. Senhor Yetu,
cuide desses reparos e, por nada neste mundo, deixe que os homens parem.
Afastando-se novamente, a criatura tomou distância e deu a volta para mais uma
carga. Ciente de que seu navio não suportaria um novo ataque desses, a capitã teve de
pensar rápido. Veio-lhe uma ideia arriscada, quase suicida. Com um sorriso, virou-se para
Laura:
— Não importa o que aconteça, continuem atirando na criatura.
Ela rapidamente descalçou suas botas, certificou-se que seu alfanje estava bem
preso, colocou uma longa faca entre os dentes e escalou a escada de cordas do mastro
central até a verga de joanete, localizada entre a verga mais alta e a mais baixa.
— O que você pretende, capitã – berrou Laura. – Você vai se matar!
— Observe e reze para que meu plano estúpido e sem sentido dê certo!
O monstro já adquirira velocidade; em minutos realizaria um novo ataque. Colleen
agarrou uma das cordas do velame, respirou fundo e aguardou o momento exato. Quando a
254
arraia estava a poucos metros, a capitã saltou, balançando-se na corda em direção à criatura,
que nadava junto à superfície. Apesar da altura, ao atingir o dorso escamoso do animal, este
amorteceu a sua queda. O impacto pareceu assustar a arraia que, diferente das duas
investidas anteriores, ignorou o navio e passou a nadar de forma errática, a fim de se livrar
da capitã. Deitada sobre a criatura, Colleen pegou sua faca, erguendo-a o máximo que pôde
e cravou-a nas costas do animal. A grossa cartilagem resistiu, mas ela conseguiu penetrar a
carne macia do monstro. Três outros golpes foram dados, aumentando o ferimento e
enfurecendo o animal.
Oscilando, a cauda da arraia se ergueu da água, ameaçadora como um cobra na
iminência de dar um bote. Bastaria um único golpe dos gigantescos espinhos serrilhados,
cobertos por uma fina membrana de pele, para que a vida da capitã se encerrasse. A ponta
espinhosa investiu por duas vezes, obrigando Colleen a rolar sobre o dorso para se esquivar.
Deitada de costas, um frio percorreu-lhe a espinha, ao ver a ponta espinhosa silvar
em sua direção. No último instante, ela rolou para o lado, golpeando o rabo da arraia, até
seccioná-lo no terceiro golpe. Jogou-se na água, nadando rapidamente, e se aproximou do
Aliança.
O profundo corte na criatura a fez sangrar em profusão, tingindo a água com um
negrume espesso e malcheiroso. Sem a cauda para controlar seus movimentos ou nadar, o
monstro passou lentamente a diminuir seus espasmos. Só levou mais alguns poucos
minutos até que o animal parasse de se debater, virando sua barriga para cima e boiando
inerte no mar.
A tripulação do Aliança saudava o golpe com urras, enquanto a capitã se
aproximava e era puxada a bordo por uma escada de cordas. Quando pisou no último
degrau, ela sentiu a mão confiante de Laura puxando-a para cima. Esta a olhava de forma
repreendedora:
— Você poderia ter morrido!
— Se não tivesse dado certo, Lau, todos teríamos morrido.
O animal era grande demais para ser trazido a bordo, obrigando os homens de
Colleen a saltarem na água para cortá-lo. Munidos de alfanjes, machados e muita
255
determinação, lentamente destrincharam o monstro em pedaços, e estes erguidos até o
convés.
A carne do animal foi espremida dentro de barris, sendo removido todo o sangue
negro que corria em suas veias. Um cheiro forte e desagradável de decomposição tomou
conta do convés do navio, obrigando alguns marinheiros a correr até a amurada para
vomitar. Passadas algumas horas, pouco restou do monstro além de cartilagens e órgãos;
seus restos foram devolvidos ao mar. A capitã exigiu a ponta farpada do monstro,
amarrando-a como um troféu na ponta de seu gurupés. O trabalho rendeu quatro grandes
barris do líquido espesso e malcheiroso, que foram lacrados e levados ao porão.
Lauren se aproximou de Colleen:
— E quanto à outra missão, capitã, você ainda não disse nada aos homens sobre
aportar em Dartaria.
— Não aportaremos, Lau, seria demasiado arriscado para todos.
— E o que pretende fazer, capitã?
— Existe uma enseada próxima onde podemos aportar. Após esse combate, o
Aliança precisa de reparos se quisermos seguir para qualquer lugar. Escolherei um grupo
pequeno, com os mais hábeis e confiáveis, e então iremos atrás da tal terra.
— Irei preparar minhas coisas, Rosa.
— Não, Laura, você não vai.
— Mas isso é loucura, Rosa, você sabe o que as lendas dizem sobre aquele lugar.
Você não pode ir até lá sozinha. Eu irei com você.
— Não, preciso de você aqui no navio, para o caso de eu não voltar. Você sabe o
que fazer.
A contramestre assentiu com a cabeça, mesmo desconfortável com a situação.
Colleen sorriu:
— Não se preocupe, minha amiga, não é dos mortos que tenho medo e, sim, dos
vivos. Se não cumprirmos nossa parte do trato, jamais teremos uma chance de adentrar as
Águas Sombrias.
256
Capítulo 4 - Morte na Costa de Dartaria
Aportado a uma distância segura de Dartaria, em uma discreta enseada ladeada por
coqueiros, o Aliança flutuava calmamente com a maré vazante. O sol havia nascido há
pouco e os tripulantes do navio já se movimentavam para iniciar os reparos. Seria
necessário colocar o navio a seco para reparar o casco, costurar velas rasgadas e cordaimes
arrebentados. As cobertas ainda necessitavam de uma boa limpeza, além de um reparo mais
complicado no leme, atingido fortemente pela arraia gigante.
Conforme avisara à Laura, a capitã escolheu dez de seus melhores e mais hábeis
homens, além de Yetu e Olorin, para a missão de descer em Dartaria. O pequeno grupo
usaria um bote a remo para se aproximar da costa, levando consigo ferramentas, barris para
recolher a terra, além de armas e comida. O plano era ir e retornar em um dia, e a
contramestre já estava instruída sobre o que fazer caso esse prazo vencesse.
O sol já estava alto no céu, quando a capitã colocou seu bote na água. Os homens
embarcaram, mesmo desconfortáveis com a presença do elfo encapuzado. Um deles tomou
os remos e vigorosamente colocou a embarcação para andar.
Enquanto remava, afastando-se do navio, Colleen alertou:
— Teremos de remar em torno de uma hora até chegarmos à costa de Dartaria. Não
sei exatamente o que esperar, mas estejam todos prontos e...
257
Olorin passou a murmurar algo, palavras incompreensíveis que se uniam em uma
espécie de cântico. Alguns dos homens se entreolhavam, confusos sobre o que estava
acontecendo. Um pouco irritada com o descaso do elfo, a capitã indagou:
— Você ao menos ouviu o que eu disse?
Antes que terminasse de exprimir o restante de sua frustração, um vento gelado
soprou às suas costas. Em seguida, ela percebeu um brilho azulado. Atrás de si, uma
espécie de anel de luz girava rapidamente. Olorin disse, enfim:
— Isso irá nos poupar algum tempo e nos levar direto para o local onde abateu a
criatura.
Assustados, os tripulantes olhavam para a capitã em busca de respostas. Muitos
jamais haviam visto uma manifestação mágica, tampouco estado em um espaço tão
pequeno junto a um arcano. Diante da tensão palpável, a capitã disse:
— Acalmem-se, homens. Olorin pode ser um mago, mas está do nosso lado. Mais
do que ninguém tem interesse no sucesso dessa missão.
Voltou-se em seguida para o elfo:
— Então, é isso? Um portal? Você é capaz de conjurar um portal e não me disse
nada? Isso teria nos poupado muitos dias de viagem e...
— Infelizmente, capitã, minhas magias, assim como quaisquer outras, têm suas
limitações. Jamais conseguiria conjurar algo por onde seu navio passaria. Além disso, só
posso abrir portais para lugares onde já estive fisicamente e desde que não a uma distância
muito grande.
— Isso explica como você surgiu do nada quando encontramos Lomir.
O elfo limitou-se a assentir com a cabeça, sem pronunciar uma palavra. A capitã
então ordenou que seu marinheiro seguisse remando o pequeno escaler através do portal,
ressurgindo exatamente onde o mago havia previsto. Tão logo o barco passou, o anel se
fechou, desaparecendo com um ruído.
Foram necessários apenas mais alguns minutos até que o bote vencesse as ondas
vermelhas e chegasse à praia. Um silêncio estranho dominava todo o lugar, quebrado
258
apenas pelo assovio do vento frio e cortante. Apesar do sol radiante que fazia nesse dia, o
céu estava encoberto por nuvens espessas cortadas por constantes relâmpagos. Ainda assim,
nenhuma gota de chuva caía sobre aquela terra há incontáveis gerações.
O solo era composto por uma areia grossa e completamente negra, cuja cor mudava
ligeiramente sempre que a água vermelha arrebentava em ondas.
À frente, a areia dava lugar a um solo mais denso, igualmente negro, mas rachado
pelo ausência de chuva e tão duro quanto as próprias pedras. Colleen olhou para Olorin,
buscando em seu olhar alguma indicação do que fazer. O mago se ajoelhou, fechando os
olhos e tocando o solo com a ponta de seus dedos. Levantou-se em seguida, dirigindo-se a
todos:
— Será preciso que escavemos um pouco esse solo ressequido, a fim de
alcançarmos terra úmida e fresca.
— Vocês ouviram o elfo, senhores: picaretas e pás em punho! Quanto mais rápido
fizermos isso, mas rápido sairemos daqui.
Não tardou para que os marinheiros começassem a trabalhar, rompendo a casca
endurecida e abrissem um buraco. Enquanto uns se ocupavam em escavar a terra, outros
iam até o escaler buscar os barris. Levou pouco mais de uma hora para que três dos homens
fizessem um buraco com um metro de profundidade. Após remover seguidas pás de uma
terra dura e seca, finalmente eles toparam com algo.
— Capitã, essa terra parece mais úmida.
Olorin se ajoelhou junto ao buraco, pedindo que um dos homens colocasse um
punhado da terra em suas mãos. Ele então fechou os olhos novamente, sentindo a força que
emanava do objeto.
— Acredito que seja suficiente – disse com um sorriso.
— Muito bem, homens, comecem a escavar essa terra para fora, enquanto vocês a
acondicionam nos barris que trouxemos.
Enquanto trabalhavam, uma sensação passou a perturbar a capitã. À medida que a
terra fresca era empilhada do lado de fora e colocada nos barris, sua boca lentamente
259
começou a salivar. Ela pegou um punhado em sua mão, esfregando-a com os dedos,
enquanto olhava fixamente para os grãos. Olorin a advertiu:
— Entendo o que está sentindo, capitã, mas o vício em terras sombrias é bastante
cruel e difícil de lidar. Lomir precisa dessa terra para se manter lúcido; acredito que não
seja esse seu caso, correto?
As palavras do elfo atraíram a atenção de Colleen. Por mais que sua boca ansiasse
por um pouco daquela terra, ela resistiu, limpando a mão suja na roupa.
— Capitã – disse o navegador Joshua –, estou com um problema. Acho que minha
pá enganchou em alguma coisa, não consigo puxá-la.
— Era só o que faltava. Bailey, ajude o senhor Joshua a soltar sua ferramenta.
Conforme mexia o cabo da pá a fim de soltá-la, o navegador não percebeu que seus
movimentos faziam com que seus pés entrassem mais e mais na terra molhada, atolando até
a altura dos tornozelos.
— Mas que droga – praguejou Joshua. – Agora são...
Antes que completasse a frase, o homem sentiu um forte puxão em seus
calcanhares, como se algo o puxasse violentamente para baixo. A terra no buraco começou
a ceder e, em segundos, seu corpo afundou até a altura da cintura.
— Socorro – berrou o oficial, tentando se agarrar às bordas do buraco.
Olorin berrou:
— Todos vocês saiam daí imediatamente.
Assustados, os homens se arrastaram para fora com dificuldade, o solo mole
grudando em suas botas. A capitã se jogou no chão fora do buraco, agarrando as mãos de
seu oficial que, em um novo puxão, estava com terra na altura do peito.
— Segure a minha mão, Joshua, eu não vou te soltar.
O marinheiro segurou firme no punho dela, enquanto os outros homens faziam
força, tentando puxar a ambos para fora do buraco. Um novo tranco o fez afundar até os
ombros. Debruçada sobre o buraco, Colleen ainda segurava firme. As mãos sujas de terra e
260
suadas do navegador lentamente escapavam da capitã, dedo após dedo, escorregando até se
soltar de vez. O homem foi tragado, sua expressão de desespero desaparecendo em meio à
terra.
— Joshua...Joshua – berrava a capitã, inutilmente.
Não tardou para que a terra fofa dentro do buraco começasse a se mexer, revelando
mãos esqueléticas que buscavam vir à tona. Um cheiro putrefato ergueu-se no ar à medida
que corpos decompostos alcançavam a superfície.
— Precisamos sair daqui – berrou Colleen sacando seu alfanje.
Ela se abaixou, agarrou o pequeno barril cheio de terra, e com seus homens e Olorin
correu em direção à praia. Notou que o barulho havia atraído a atenção de outras criaturas
das redondezas que, claudicantes, se aproximavam do grupo. Os marinheiros corriam de
maneira trôpega, tropeçando no solo irregular.
Colleen sabia que o escaler estava a apenas poucos metros, porém nenhuma de suas
aventuras a havia preparado para o que presenciaria a seguir. Ao longo da praia, centenas
de corpos onde antes havia apenas desolação - provavelmente saídas de sob a areia fina -
caminhavam de forma errática. O barulho da respiração ofegante somado ao cheiro do
medo atraiu esses Insones que lentamente voltaram sua atenção para o grupo.
O cerco se fechou, obrigando os marinheiros a puxarem suas armas para se
defenderem. Seria impossível romper a barreira que os separavam do pequeno bote. A
capitã olhou para Olorin, que pronunciava de maneira calma e cadenciada estranhas
palavras, enquanto permanecia de olhos fechados. Fosse lá o que Olorin estivesse fazendo,
necessitaria de alguns minutos, concentrado.
Quando um dos desmortos finalmente alcançou o grupo, recebeu um golpe dela na
altura da bacia. O corpo já fragilizado se partiu, caindo no solo que, em questão de
segundos, voltou a engoli-lo. Um segundo e terceiro monstro alcançaram o grupo que, de
costas um para o outro, havia formado uma roda em torno do elfo. Os marinheiros do
Aliança desferiam seguidos golpes, derrubando um inimigo para, em poucos instantes, ser
substituído por outros dois.
261
Um grito soou nas costas da capitã. A areia abaixo dos pés de um de seus
marinheiros cedia, engolindo o homem rapidamente.
— Olorin...Por Ehleniel, faça alguma coisa!
O elfo não respondeu, concentrado em sua conjuração. Suas mãos passaram a
emanar um brilho azulado, brilho este transferido para o portal que, lentamente, se abria em
meio ao círculo.
Colleen observou ao longe o mesmo brilho azulado surgindo ao lado do escaler a
apenas algumas dezenas de metros dali. Com os Insones cada vez mais próximos, restou a
ela empurrar seus homens para dentro.
— Entrem...Vamos, não temos muito tempo - gritou.
Um a um, os sobreviventes desapareceram pelo portal. Olorin foi o último, selando
a passagem atrás de si. Confusas, as criaturas levaram algum tempo para compreender o
que havia acontecido. Tempo suficiente para que os marinheiros empurrassem o bote de
volta ao mar e começassem a remar para longe dessa terra amaldiçoada. Já a uma distância
segura, a tripulação viu os Insones retomando seu movimento errático, aguardando o
próximo incauto que ousasse pisar naquelas terras.
262
Capítulo 5 - A Revelação sobre a Real Escola
O retorno ao Aliança foi feito em silêncio. Os homens se entreolhavam tristes pela
perda de seus companheiros, mas ainda mais aflitos pelo que o destino lhes reservaria nas
semanas seguintes.
Quando o escaler finalmente alcançou a enseada onde o Aliança estava sendo
reparado, o sol já havia se posto. A nau se encontrava a seco, seu lado esquerdo apoiado
sobre a areia enquanto o direito era reparado, calafetado e tinha suas cracas arrancadas.
Tão logo o bote tocou a areia, um grupo de marinheiros liderados por Laura correu
em direção à capitã. A contramestre saudou Colleen com um abraço:
— Estávamos preocupados, conseguiram o que foram buscar?
A corsária assentiu com a cabeça. A contramestre olhou para o grupo, buscando os
rostos de todos os que haviam partido.
— Onde está Joshua? E Young?
— Eles não conseguiram, Laura.
A jovem nada mais disse, limitando-se a adotar um tom mais sério enquanto
reportava:
— Os trabalhos de reparo estão bem adiantados, capitã, e nossos homens foram
capazes de recolher alguns viveres frescos pela ilha. Dentro de alguns dias teremos
condições de colocar o Aliança de volta na água.
263
A capitã colocou a mão sobre o ombro de sua companheira:
— Continue o bom trabalho, Lau, todos nós precisamos descansar.
— Aye, capitã!
A corsária então se dirigiu a Olorin, entregando-lhe o pequeno barril de terras
sombrias. Com um suspiro, ela disse:
— Tão logo o navio esteja reparado, poderemos retornar até Lomir, para que ele
revele o que é necessário para preparar o navio.
— Acredito que isso não será necessário – disse o mago, retirando um pergaminho
de suas vestes e entregando a ela. – Aqui estão as orientações de Lomir sobre como
proceder. Ele me confiou essas informações antes de partirmos.
Confusa, Colleen encarou o elfo nos olhos, enquanto ralhava:
—Você estava com isso aqui o tempo todo? Você tinha a resposta para nosso
problema e, ainda sim, fomos até aquele lugar maldito para recolher terra?
— Eu tinha que garantir que você cumpriria sua parte do acordo – disse ele sem se
alterar.
— Acordo? Dois de meus melhores homens morreram para que esse acordo fosse
cumprido. Duas mortes desnecessárias!
Olorin encarou a capitã nos olhos, como não havia feito até aquele momento, o
semblante calmo dando lugar a uma expressão repreendedora.
— É essa a capitã que deseja romper a barreira das Águas Sombrias? Que deseja
enfrentar o lugar mais turbulento conhecido em Mirr? Eu lamento pela morte de seus
homens, capitã, mas sim, você tinha de cumprir sua parte do acordo. Assim como eu e
Lomir estamos cumprindo nossa parte agora.
A capitã calou-se, enquanto Olorin recuperava parte de seu tom mais pausado:
— Já parou para pensar em sua própria missão, capitã? Acha justo arriscar a vida de
seus fiéis tripulantes para resgatar um único homem que sequer tem certeza se está vivo?
Não seriam essas mortes desnecessárias também?
264
— Nós temos de impedir que a Companhia continue causando problemas; pessoas
sofrem pelas atitudes mesquinhas do Patriarca.
— A Companhia existia antes de você nascer, capitã, e continuará a existir muito
tempo depois de você ter morrido. Não estou dizendo que são inocentes, assim como
ninguém nesse mundo realmente o é. Lomir não está como está por ser uma vítima, mas
sim por trazer aquilo para si. Pare de usar a Companhia como justificativa para seus atos.
Para mim, está mais do que claro que a busca pelo Lorde de Aldarian é algo além de
simples patriotismo; é algo pessoal. Se é justiça, ou vingança o que deseja, o primeiro passo
para isso está neste papel.
Os ombros de Colleen relaxaram, como se um peso tivesse sido retirado deles. Ela
abriu o papel, lendo as instruções ali descritas.
O primeiro passo seria aplicar o sangue da criatura negra sobre todo o casco do
navio, impedindo que a madeira do casco tivesse contato direto com a água. As velas
deveriam ser tingidas com o mesmo produto, explicando por que os navios das Forças
Sombrias eram completamente negros.
A capitã passou a coordenar os trabalhos, direcionando os mais habilidosos para as
tarefas mais complicadas. A preparação do navio seguiu por algumas horas, até que Laura
se aproximou dela e, com ar preocupado, perguntou:
— Capitã? Você viu a Kitty?
— Kitty? Achei que ela estava com você ou ajudando na calafetação dentro do
navio.
— Eu também, capitã, mas não está. Tenho medo de que ela tenha saído para
explorar sem nosso consentimento. A ilha é pequena, mas não sabemos o que pode haver
na mata.
— Vamos encontrá-la, Lau. Ela não pode ter ido longe. - Buscou Yetu em meio aos
homens e gritou: - Mestre Yetu, prossiga com os reparos e puna com severidade quem
estiver preguiçoso. Tenho um assunto a resolver.
O homem concordou com a cabeça, enquanto as duas se afastavam em direção à
mata.
265
— Onde devemos começar a procurar, capitã?
— Acredito que ela tenha seguido os homens enviados atrás de comida e se perdido
no caminho. Devemos começar por ali.
Laura sacou suas adagas, enquanto Colleen preferiu trazer sua besta. Ambas
entraram pela mata gritando o nome de Katherine, sem obter respostas. A busca durou
aproximadamente dez minutos até chegarem próximas a uma área da floresta mais fechada.
Quando se preparavam para entrar, ouviram um grito feminino do meio da mata.
— Kitty - disse Laura.
A contramestre e a capitã começaram a correr, chamando pela jovem e se guiando
por meio de seus gritos. Após alguns minutos, elas finalmente a encontraram, acuada em
uma árvore por um javali. O animal rosnava e bufava, raspando seu casco no chão e se
preparando para atacar. Katherine segurava um pedaço de pau, na tentativa de se defender.
Olhou para os olhos de sua irmã que, por um breve instante, ficou paralisada diante da
cena.
Procurando não fazer barulho, Colleen se ajoelhou, mirando sua besta contra a
cabeça do animal. Ela sabia que só teria uma chance, e seu tiro deveria ser certeiro. Se
errasse ou não derrubasse o javali, ele partiria para cima de Kitty e a mataria antes que
pudessem fazer algo. Respirou fundo, alinhou a mira da besta contra a cabeça do bicho e
disparou. O virote cortou o ar, atingindo o alvo e derrubando-o antes que pudesse agir. A
corsária se aproximou dele, sacou seu alfanje e, com um último golpe, pôs fim a seu
sofrimento.
Em estado de choque, Kitty permaneceu paralisada, até Laura correr em sua direção,
abraçando-a e sussurrando em seu ouvido:
— Acabou, agora está tudo bem!
A contramestre encarou sua capitã, os olhos marejados diante da possibilidade de
perder a irmã. Com a voz trêmula, disse:
— Obrigado, Rosa, mais uma vez você salvou a vida de Kitty. Não tenho como lhe
agradecer.
266
— Por todos esses anos, Lau, você e Kitty têm sido minha família. Você é uma
companheira fiel, esteve sempre a meu lado nas maiores dificuldades. Sei que se fosse eu
ali, teria feito o mesmo.
A contramestre encarou sua líder e amiga, pesando cada uma de suas palavras. Por
todos esses anos, Colleen fizera de tudo para protegê-la e à sua irmã. Havia salvado-a de
um futuro como escrava e lhe dado uma posição de respeito que ela jamais havia
desfrutado. Porém, havia algo, um segredo que corroía Laura, e ela jamais tivera coragem
de contar. A culpa por ter roubado as plantas na escola naval pesava-lhe na alma, pois se
sentia responsável pela queda de Aldairan e tudo o que isso acarretara.
Ela enxugou as lágrimas, encarou a capitã e, num tom seco, disparou:
— Fui eu, Rosa, eu sou a responsável pelo roubo das plantas e o incêndio na escola
naval.
A capitã ficou parada, tentando absorver o que estava ouvindo. Durante anos, ela
tivera a seu lado a pessoa que contribuíra de forma decisiva para a queda de sua família?
Laura prosseguiu:
— Sei que o que eu fiz é imperdoável, mas não tive escolha. Eles sequestraram
Kitty, me obrigaram a cumprir o plano. Sem o fogo, eles a teriam matado.
A capitã se aproximou das irmãs, olhando em seus olhos e respondeu:
— Laura, realmente o que você fez não pode ser perdoado, mas sim remediado.
Estou certa de que se você não tivesse feito isso, o Patriarca teria arrumado outra pessoa.
Não há muito o que fazer, quando existem tanto ódio e dinheiro envolvidos. Ao menos esse
seu trabalho serviu para que nos encontrássemos e nos uníssemos; será com essa união que
faremos a Companhia pagar pelo que a obrigou a fazer.
As três se abraçaram, colocando as emoções em ordem e se preparando para seguir
com sua missão. Vendo a irmã mais calma, Laura a repreendeu:
— Nunca mais suma desse jeito, entendeu?
— Eu estava com fome e aborrecida com todo aquele trabalho na praia.
— Isso não é desculpa, Kitty, você poderia ter se machucado.
267
Saíram da mata com Colleen, em direção à praia.
— Capitã...está tudo bem? - Era a voz de Yetu que veio correndo assim que as viu
emergirem da trilha. - Está tudo bem? Ouvimos gritos, o que houve?
— Apenas um animal selvagem, mas nós conseguimos matá-lo antes que ferisse
alguém. Mande alguns homens entrarem na mata e recuperarem a carcaça; servirá de jantar
para nós esta noite.
O negro concordou com a cabeça, para mudar de assunto tão rápido quanto havia
começado:
— O casco do navio já está pronto e limpo; logo, os homens começarão a aplicar a
tinta.
— Muito bem. E onde está Olorin?
— Está orientando os homens sobre a mistura e a aplicação da tinta. Acho que
precisaremos ainda de três ou quatro dias para recolocar o Aliança no mar.
— Bom trabalho, Yetu, peço que continue supervisionando tudo.
Enquanto caminhavam, um estranho silêncio surgiu. A capitã buscava uma forma de
conversar com sua contramestre. Percebendo a apreensão de sua amiga, Laura perguntou:
— E quanto aos preparativos? Quando partimos?
— Essa é uma questão que quero discutir com você. Você sabe para onde iremos
daqui, não sabe?
— É claro: resgatar seu Regente nas Águas Sombrias - disse com uma naturalidade
assustadora.
— É sobre isso que estava pensando, Lau. É uma missão demasiado arriscada. Nem
sequer sabemos se esse plano terá algum resultado.
— Estou ciente disso, capitã.
— Antes de partirmos irei oferecer a cada um de nossos homens a opção de pegar
sua parte do butim e descer no porto mais próximo. E quero lhe oferecer isso também.
Laura a olhou com certa indignação:
268
— O que quer dizer com isso, Rosa? É lógico que não permitirei que você vá até
aquele lugar sozinha.
— Lau, eu estive lá em sonho, enquanto me recuperava daquela maldita doença.
Não se trata apenas de uma tempestade, mas sim da maior de todas elas. Posso lhe dar um
bom dinheiro, além de sua parte na pilhagem, uma chance de você e Kitty começarem uma
nova vida em Myrtakos, onde o passado não a persiga.
— Você mesma sempre afirmou ao longo desses anos o quanto tinha esperanças de
localizar seu Regente vivo, e eu prometi que não sairia do seu lado.
— Essa guerra não é sua.
— É sim, capitã. Desde que me uni a você, essa guerra passou a ser minha. Posso
não ser a pessoa mais amada pela sociedade, mas Aldarian ainda é minha casa. Foi lá que
eu nasci e cresci, e não desejo recomeçar nada que não seja lá. Se acha que vou deixar você
ficar com todas as glórias por ter invadido as Águas Sombrias, está enganada.
Colleen sorriu, abraçando a amiga com força e acariciando-lhe o rosto. Em seguida,
virou as costas e saiu.
♥♠♥
Quatro dias de trabalho depois, o Aliança estava pronto. O casco, antes marrom,
agora exibia uma cor completamente negra. Aquela visão deu calafrios à Colleen. Com a
chegada da maré cheia, os homens romperam as travas de madeira, deixando que o navio
flutuasse e voltasse ao mar. Toda a carga foi retirada para a operação, sendo no momento
posterior levada novamente a bordo nos escaleres.
O acampamento improvisado foi desmontado; o momento da verdade se
aproximava. Entrar nas Águas Sombrias era um movimento arriscado, algo que ela jamais
cobrara de seus homens. Não havia tesouros ou grandes recompensas, apenas uma chance
remota de encontrar seu Regente vivo. Ela teria de dar aos marinheiros a opção de seguir ou
269
ficar no próximo porto; caso não fosse convincente, não haveria mãos suficientes para
manejar o Aliança.
Reuniu a todos na praia, em círculo, aprumou sua voz e sem maiores delongas disse:
— Há alguém aqui que não saiba para onde rumaremos? Que não conhece nossa
próxima missão?
Diante do silêncio de concordância, ela prosseguiu:
— Para onde vamos não há ouro, joias ou butim. Muitos, se não todos, eu inclusive,
poderemos morrer. Iremos atrás de uma lenda incerta, mas que se for verdadeira trará a
cada um de vocês mais do que ouro. Tenho razões para acreditar que Lorde Joseph
Hattcliff, legitimo soberano de Aldarian, está preso no interior das Águas Sombrias. Caso
consigamos resgatá-lo, cada um de vocês será recompensado com a gratidão real.
Os homens se entreolhavam confusos, alguns desanimados diante da situação. Eles
eram leais à sua capitã que tantos ganhos havia lhes provido, mas aquela missão parecia
demasiadamente perigosa, mesmo levando-se em conta tudo o que haviam passado
naqueles anos.
— Sei que a maioria não tem nada a perder, mas deixo à consciência de cada um a
escolha de seguir ou ser deixado no próximo porto. A deserção é um crime grave, e todos
aqueles que assinaram o contrato de nossa companhia sabem disso. Essa é uma cláusula
não prevista e prefiro que desistam agora a fugirem depois. Levantem as mãos aqueles que
desejam deixar esse navio e ficar em terra.
Por um breve momento, todos permaneceram estáticos, mas logo algumas mãos
tímidas começaram a se levantar. Preferiam a vida certa ao risco, deixando Colleen
desapontada. Quando percebeu que as desistências seriam maiores do que o navio poderia
suportar, ela cravou seu alfanje na areia e bradou:
— Para aqueles entre vocês que são aldarianos, resgatar nosso Regente é o preço
que pagamos por sua justiça. Sei que muitos batalharam nas ruas – disse olhando para
Laura – e que nem sempre a vida lhes foi justa. Se pudermos restabelecer nosso lar, uma
era de prosperidade virá, e cada um de vocês desfrutará de uma vida melhor. Para aqueles
que vêm de outras terras, outrora escravos de um senhor desleal, saibam que haverá lugar
270
para cada um em minha casa. Eu lhes asseguro que tão logo o tirano John Hattcliff esteja
pendurado pelo pescoço nas docas de Northwind, vocês serão recebidos em Aldarian como
homens livres e recompensados por sua bravura.
O discurso surtiu efeito; pouco a pouco, a maioria das mãos baixaram. Aqueles
homens não possuíam mais nada a perder além da vida, e a chance de dias melhores
reacendeu sua vontade de lutar. Percebendo que o diálogo estava encerrado, Colleen
berrou:
— Muito bem, marujos, mãos ao trabalho. Recarreguem o Aliança com água e
provisões, pois devemos partir. Quero cabos firmes e vergas ajustadas para que
naveguemos a todo pano.
Bastaram poucos minutos para que as velas se enchessem com o vento do cair da
tarde e o navio desaparecesse no horizonte, em direção à mais perigosa missão jamais
empreendida.
271
Capítulo 6 - O Sacrifício da Capitã Escarlate
Durante os anos que permaneceu no mar, Colleen enfrentou um sem-número de
tempestades, das mais amenas até aquelas cuja fúria não podia ser medida. Ainda assim,
nada a preparara para cruzar as Águas Sombrias. O mar não estava simplesmente agitado;
estava vivo. A viagem até a borda das águas durou algumas semanas, e nesse tempo a
capitã se esforçava para manter o moral da tripulação. Eis que o céu claro e limpo passou
gradativamente a se tornar nublado. Nuvens espessas cobriram o céu, sinalizando que o
Aliança estava no lugar certo.
O azul-claro das águas calmas foi substituído por um tom escuro e opaco; uma
densa espuma branca passou a se formar junto ao casco, borbulhando e chiando ao tentar
dissolvê-lo. Aparentemente, a tal tinta negra estava executando bem seu trabalho.
Ensurdecedor, o vento soava como gritos, enquanto enfunava e balançava as velas
com uma ferocidade espantosa. A corsária respirou fundo e berrou:
— Cortem as cordas, abaixem as velas, ou esse vento irá arrancar nossos mastros.
O som de sua voz saiu surdo, abafado pelo barulho impiedoso dos trovões e do mar.
Sem escolha, ela se viu obrigada a correr até o convés, agarrar seus homens pelos ombros e,
com gestos, indicar o que fazer.
As gigantescas ondas erguiam o Aliança como um joguete, empurrando sua proa
para cima e, em seguida, derrubando-a novamente. Muitos dos marinheiros, acostumados
272
ao vaivém do mar, agarravam-se na amurada para vomitar, rezando para que a tempestade
poupasse suas vidas.
Ouviu-se um forte estalo da popa, juntamente com o barulho de algo pesado caindo
no mar. A capitã virou-se, forçando a vista em meio à chuva para enxergar o vulto de Laura
se aproximando.
— Capitã – disse a contramestre no seu ouvido –, perdemos o mastro de ré. Se não
fizermos algo, seremos engolidos por essa tempestade.
— Traga Olorin, agora!
Laura sinalizou afirmativamente com a cabeça, protegendo-se da água e correu para
o convés inferior. Passados alguns minutos, ela voltou com o elfo que, com dificuldade,
protegia o rosto da tempestade.
— E agora, Olorin? O que fazemos? O que mais Lomir lhe disse sobre as Águas
Sombrias?
— Ele apenas falou sobre o sangue negro, capitã. Somente o sangue negro é capaz
de aplacar a fúria das Águas Sombrias.
- Mas usamos todo o sangue da criatura no casco, não restou nada.
A capitã se lembrou de tal conversa com Lomir e do que ele havia lhe dito sobre
aqueles que tiveram contato com a maldição sombria. Havia uma chance, e ela precisaria
tentar. Correu até a proa do Aliança, segurando-se na amurada para não cair. A chuva
castigava o convés escorregadio, arrancando cordames e derrubando os marinheiros com
seu vento fustigante. Foi acompanhada pelo olhar de Laura que, de longe, tentava
compreender o que ela pretendia fazer. Collen chegou à ponta do Aliança, sacou sua faca
da cintura e gritou para os céus:
— É sangue que você quer, não é? Meu sangue! Pois bem, você o terá.
Falando isso, Colleen fez um corte em um de seus pulsos. O sangue negro jorrou no
mar revolto. Por um breve instante, ela notou uma redução no vento, como se as poucas
gotas que caíam no mar servissem apenas para atiçar ainda mais a fome da tempestade.
— Ainda não é o bastante, não é? Você quer mais, não quer?
273
Ela cortou o outro pulso, derramando ainda mais sangue no mar abaixo.
Mais uma vez, a tempestade pareceu ceder, as ondas antes gigantes reduziram e a
tempestade se transformou em uma chuva torrencial. Mesmo assim, era impossível
enxergar qualquer coisa, e a tripulação do Aliança poderia permanecer perdida até que o
navio não mais aguentasse. Collen precisava tomar uma atitude; ao se lembrar das palavras
de Lomir, ela decidiu arriscar.
Ergueu sua faca, a silhueta iluminada por um raio que caía à distância, sendo
observada por Laura. A capitã colocou a mão sobre o queixo, erguendo a cabeça enquanto
respirava fundo. A contramestre percebeu o plano dela, a insanidade que estava para
cometer. Ela correu desesperada em sua direção, equilibrando-se no chão escorregadio.
Esticou sua mão direita, em uma tentativa vã de alcançá-la, ainda distante alguns metros. A
capitã fechou os olhos e, em um golpe rápido, passou a faca na própria garganta. Abriu um
corte profundo, que fez jorrar uma grande quantidade de sangue no mar. Seu corpo
enfraquecido deu dois passos para trás, caindo do castelo de proa a tempo de ser amparado
por Laura. A blusa branca e o casaco vermelho estavam manchados pelo sangue negro que
ainda vertia do corte. Agoniada, a contramestre batia em seu rosto tentando reanimá-la:
— Rosa...o que você fez, acorde! Rosa! Rosa!
Enfim, a tempestade cedeu, a chuva lentamente parou, apesar das nuvens de
tempestade continuarem trovejando acima do navio. O vento amainou e o mar relaxou,
transformando as fortes ondas em um espelho d’água.
Laura tentava em vão estancar o sangramento do pescoço de Colleen com sua mão.
Pouco a pouco, os homens a rodearam. A capitã jazia imóvel no chão, cercada por uma
poça de sangue negro.
Ajoelhada, a contramestre tocou com a testa no peito da amiga, tentando inutilmente
conter as lágrimas. Um sopro, uma respiração fraca saiu dos lábios de Colleen. As
pálpebras fechadas tremeram e a corsária se contorceu. Ao tossir forte, expeliu uma gosma
preta e viscosa. Então, respirou fundo, encontrando os olhos de sua amiga que a observava.
— Deu certo... A tempestade parou!
— Sim, sua louca... O que você pensou que estava fazendo?
274
— O que Lomir havia me dito: a maldição não deixaria que meu corpo se esvaísse
em sangue.
Só então Laura percebeu o pescoço e os pulsos da capitã. Onde antes havia cortes
profundos, agora só restava uma cicatriz.
— Terra, estou vendo terra! – gritou o observador da gávea.
— Ajude-me a me levantar, Lau, parece que chegamos a nosso destino.
♥♠♥
A escuridão das Águas Sombrias ocultava a aproximação do Aliança à ilha prisão.
O silêncio perturbador assustou os marinheiros, diante da súbita transformação do caos em
calmaria. Somente se escutava o som distante de ventos e trovões, enquanto a linha cinza
que representava terra começava a ganhar forma.
— Estamos no olho da tempestade – disse Olorin. – Isso explica a estranha
calmaria.
Colleen estava extasiada ao presenciar aquilo: zonas de calmaria em meio à
gigantesca tempestade. Quantas nações, quantos reis não matariam por essa informação? E
se houvesse mais zonas como essa e elas pudessem ser mapeadas? A capitã imaginava a
possibilidade de se traçar uma rota marítima em meio às águas, um feito que colocaria um
fim à Companhia de Al Azhir.
Laura se aproximou, interrompendo seu devaneio:
— Está certa que é esse o lugar, capitã?
— Não temos como ter certeza, Lau, mas se houver membros das Forças Sombrias
aqui, eles nos levarão até o Regente.
— E como pretende invadir a ilha?
— Usaremos a arma mais poderosa contra as Forças Sombrias: a prepotência deles
em achar que estão seguros aqui.
275
Colleen sacou seu telescópio, observando a grande estrutura que se erguia na ilha:
uma construção feita de centenas de estacas de madeira fincadas no chão. Cada uma de suas
cinco torres de defesa deveria abrigar guardas, enquanto a única estrutura de pedra visível,
uma torre de três andares, se erguia ao centro. Duas imponentes balistas apontadas em
direção ao mar guardavam a entrada da fortaleza, que também possuía um cais onde os
navios da Força Sombria aportavam para descer na ilha.
A capitã ponderou: ela precisaria se aproximar do prédio principal para invadi-lo.
Mas, antes, teria de avançar a paliçada e as balistas. A menos que abrisse um buraco na
fortaleza e desarmasse as duas armas, a invasão seria impossível.
— Como iremos nos aproximar sem chamar a atenção, Rosa? – Laura externou em
voz alta a sua dúvida.
Colleen olhou à sua volta até perceber o óbvio:
— E por que chamaríamos a atenção, Lau? Estamos a bordo de um navio
completamente negro, semelhante aos usados pelas próprias Forças Sombrias. Se
considerarmos que eles não esperam invasores aqui, poderemos chegar próximos o bastante
para um ataque. Além disso, observe a disposição daquela doca. Se entrarmos ali, teremos
nossa lateral voltada para o forte. Conseguiremos disparar ao menos uma salva de tiros
antes de notarem o que está havendo.
— E quanto às duas balistas?
— Não teremos opção a não ser matar seus operadores, antes que reajam. Prepare os
homens e ordene que fiquem ocultos; temos de usar a penumbra a nosso favor.
Meia hora depois, o navio se aproximava do porto. Coberta com alguns panos
negros que havia encontrado, a capitã observava do leme a movimentação na fortaleza.
Exceto pelas duas equipes que controlavam as balistas, havia poucos guardas no passadiço,
e a aproximação do Aliança não chamou a atenção. Quando finalmente a lateral do navio
tocou a madeira do cais, a capitã sabia que era hora de agir. Ela sinalizou a seus homens,
olhou para Yetu no comando de suas próprias balistas e gritou a ordem:
— Disparem!
276
As cordas tensionadas das armas se soltaram, arremessando quatro grandes projéteis
contra a lateral da paliçada. As pedras arredondadas cortaram o céu, chocando-se contra a
madeira.
— Atacar!
Era o sinal para desembarcar e correr em direção ao inimigo. Enquanto Yetu
ordenava que as balistas fossem recarregadas, Colleen e Laura se dividiram em dois grupos,
correndo pelo cais e, em seguida, pela praia em direção às duas balistas. Os soldados
sombrios começaram a engatilhar as grandes armas, mirando no navio que, sem aviso,
havia disparado contra eles. A catraca foi girada, a corda tensionada, mas antes que o
projétil fosse inserido, as duas tropas da capitã escarlate os alcançaram, lutando ferozmente
contra os operadores, que ofereceram pouca resistência.
Um novo zunido cortou os céus. Era a segunda bateria de Yetu que disparava contra
as paredes danificadas da paliçada, finalmente abrindo um buraco nelas.
Do alto das fortaleza, os guardas disparavam suas bestas no grupo invasor,
derrubando os marinheiros de Collen com seus virotes. Os dois grupos voltaram a se reunir
e, apesar das baixas, seguiram em frente.
— Continuem – berrava a capitã –, vamos tomar a fortaleza.
Os homens conseguiram alcançar o buraco na muralha, entrando no complexo e
lutando homem a homem contra os defensores. Ouviu-se o soar de novas balas que voavam
pelo ar do navio em direção à fortaleza. Dessa vez, porém, os projéteis eram diferentes,
balas flamejantes que iluminavam o céu e causavam pequenos incêndios à medida que
atingiam a estrutura de madeira.
Com guardas correndo de um lado a outro, incertos sobre como se defenderem, a
confusão estava formada. A capitã e Laura, aproveitando-se do caos ali instaurado, abriram
caminho e chegaram até a torre de pedra no centro do complexo. Com um pouco de
esforço, derrubaram a porta e entraram na estrutura. Os guardas na parte interna eram
poucos e não ofereceram muita resistência.
A torre circular era preenchida por diversas pequenas celas de onde se ouviam gritos
de desespero e terror. A cada cela que encontrava, Colleen colocava a cabeça no buraco da
277
porta e gritava pelo nome de seu Regente. Algumas respondiam com silêncio, outras com
sussurros de dor e havia ainda aquelas que clamavam por socorro.
Enquanto exploravam o andar, a capitã notou que um dos soldados se desgarrara do
grupo, correndo escada acima munido de uma besta leve nas mãos. Um pressentimento
ruim a acometeu. Com um berro, alertou Laura para que corressem atrás dele.
Elas conseguiram se desvencilhar dos demais guardas e correram na direção do
outro. O homem acelerava seus passos à medida que percebia estar sendo seguido. Ambas
perseguiram a figura por seis lances de escada, parando apenas quando ele arremessava
algo para tentar atrasá-las. Finalmente, elas alcançaram o soldado no terceiro piso. Ao
estabelecer contato visual com ele foi que a capitã notou que havia algo errado.
Parado em frente a uma das celas, o soldado posicionava a ponta de sua besta na
janela da porta, enquanto mirava para atirar.
— Laura – gritou Colleen ao perceber o plano.
A ladra hesitou por um breve instante, sacou uma faca da cintura e, com destreza,
arremessou contra o vulto. Atingiu o braço dele no exato instante em que este disparava a
besta.
Um sangue negro verteu do ferimento do soldado, ao gritar e cair no solo. Elas
ouviram outro grito, dessa vez de dentro da cela. A capitã introduziu o rosto no buraco da
porta, vendo a sombra de um corpo caído de bruços. O corpo se mexia, enquanto uma
pequena poça de sangue se formava embaixo dele.
— Rápido!
Laura se aproximou da fechadura, sacou um par de gazuas e, com habilidade,
destravou a porta. Os pinos internos enferrujados dificultavam o seu trabalho, enquanto
Colleen gritava pelo Regente. Alguns minutos se passaram até que finalmente a trava foi
vencida e a porta se abriu. Ambas correram para acudir a vítima. Ao virá-lo de frente,
Colleen teve a certeza do que buscava: era mesmo o Regente.
Os anos e a prisão haviam envelhecido suas feições e uma perfuração em seu peito
lentamente lhe drenava a vida. Ele estava desacordado; com dificuldade, foi erguido pelas
278
duas mulheres. Passos soaram na escada, juntamente com o nome da capitã. Eram os
homens do Aliança que, vencido a resistência, subiam para ajudar.
— Aqui – berrou a capitã. – Precisamos de um médico.
Colleen tentava estancar o sangramento com a própria mão, enquanto desciam o
Regente pelas escadas com dificuldade.
— Tragam aquele ali – disse a um de seus homens, apontando para o assassino. –
Eu o quero vivo.
Quando alcançaram a saída, a capitã constatou o quão feroz havia sido a batalha. A
surpresa havia ajudado a derrotar muitos dos homens da Força antes que eles pudessem
reagir, mas também levara muitos bons marinheiros do Aliança à morte. Não havia nenhum
membro da Força em pé. Um dos soldados que ajudava a carregar o Regente disse:
— Ele se recusaram a se render, capitã.
279
Capítulo 7 – Enfrentando a Tempestade
Uma vez a bordo do Aliança, o Regente foi colocado sobre a cama da capitã.
Thomas Hallet, o médico de bordo, foi chamado às pressas, enquanto Colleen tentava
conter o sangue. A testa de Joseph suava e ele passou a ter calafrios, ainda desacordado.
Laura se recordava daqueles sintomas: os mesmos que haviam acometido a capitã quando
fora envenenada. Lentamente, o médico removeu o virote que perfurara o peito do Regente.
Um líquido escuro escorreu de sua ponta assim que ele foi retirado.
— Chamem aquele maldito mago aqui – berrou a capitã.
Passaram-se apenas alguns minutos até que Olorin entrasse na cabine.
— Você pode ajudá-lo, elfo?
— Ele foi envenenado pelas Águas. Afaste-se e verei o que posso fazer.
O mago se aproximou do leito, ajoelhou-se ao lado da cama e colocou sua boca
sobre o ferimento, sugando-o fortemente para, em seguida, cuspir uma quantidade generosa
do líquido escuro no chão. Repetiu o procedimento mais duas ou três vezes; quando de sua
boca saiu apenas sangue, ele interrompeu.
— Pressione o ferimento com força. Por sorte não atingiu nenhuma parte crítica.
Sem o veneno, acho que ele ficará bem.
280
O Regente respirou fundo e em poucos minutos sua febre arrefeceu. A corsária
olhou para Laura aliviada, abraçando-a carinhosamente ao perceber o estado de Joseph
ficar estável.
— Onde está o prisioneiro – indagou a capitã ao médico.
— Já o medicamos e o amarramos no porão.
Colleen se virou para Laura:
— Conte as baixas e veja quem está ferido. Quero todos aqueles em condições no
convés. Ainda precisamos sair daqui.
— Aye.
A capitã olhou para seu Regente uma última vez e se permitiu um breve sorriso de
alívio. Ela havia conseguido salvá-lo e, apesar da libertação de Aldarian estar distante,
ainda havia uma esperança.
♥♠♥
O retorno pelas Águas Sombrias não seria uma tarefa fácil. Com o Aliança avariado
da invasão, Colleen não tinha certeza se estas aceitariam o mesmo sacrifício de sangue duas
vezes.
Ordenou que as velas fossem recolhidas e que qualquer objeto desnecessário no
convés fosse levado às pressas para o porão e amarrado firmemente.
Após pouco mais de uma hora navegando, o navio deixava a calmaria para
atravessar o denso véu de ventos e chuvas que o separava da liberdade. Como na chegada, o
aumento dos ventos foi proporcional ao tamanho das ondas. Diferente da outra vez, este
parecia gritar mais forte sua vontade de pôr o navio a pique. A capitã se dirigiu à proa,
reunindo a coragem para fazer o que precisava ser feito. Assim que pediu, Yetu trouxe o
prisioneiro com as mãos atadas pela frente até ela.
281
Diante dela, o homem não praguejou ou reclamou, parecendo extasiado com tudo à
sua volta.
Colleen sabia que apenas um sacrifício de sangue poderia acalmar o mar revolto.
Ela já havia matado muitos em combate, mas nunca havia assassinado um homem
amarrado e aparentemente indefeso. Embora soubesse que isso não seria um problema para
Yetu, entendia que deveria fazer isso sozinha.
— As águas irão devorá-la, minha cara, e não existe paz para aqueles que habitam
seu interior - decretou o condenado.
Ela empunhou a faca com as mãos trêmulas, vacilante. A tempestade crescia e o
Aliança rangia como se estivesse prestes a se partir. Respirando fundo, Colleen se preparou
para o golpe.
— Entregue-me às Águas, eu não temo a morte no seio de quem me protege.
A faca penetrou certeira a barriga do prisioneiro, que não emitiu nenhum suspiro de
dor. Este ainda segurou o pulso dela e, com a faca ainda cravada em sua barriga, puxou o
instrumento para cima, aumentando o corte. O homem sorriu, abriu os braços e se deixou
cair pela amurada até atingir o mar lá embaixo.
A tempestade reduziu diante do olhar perplexo da capitã sobre a loucura do
prisioneiro. Os membros da Força Sombria pareciam ansiar pela morte. Porém, a
tranquilidade do homem tinha uma razão; somente quando a chuva diminuiu é que a capitã
entendeu seu sacrifício. Aproximando-se do Aliança a boreste, havia um conjunto de velas
negras, um navio que viera em seu encalço.
♥♠♥
— Todas as mãos no convés – berrava Colleen diante da aproximação do
inimigo. - Preparem as balistas, estamos sendo atacados!
282
Ainda assustados com a tempestade, os marinheiros passaram a se movimentar com
dificuldade pelo piso molhado e escorregadio do navio. Subiam as escadas de cordas,
ajustando velas e vergas para o confronto que viria.
— Iremos atacar, Rosa? – questionou Laura, apreensiva.
— Não temos escolha, Lau. Se ao menos conseguirmos debilitar o navio o
suficiente para que pare de nos perseguir... Com o Regente a bordo, não podemos correr
riscos. Esteja preparada para qualquer coisa.
As velas negras do navio inimigo se inflaram com os ventos inclementes da
tempestade que, apesar de mais fraca, ainda conseguiria arrancar um mastro caso não se
soubesse como ajustá-lo.
— Carreguem as armas com balas correntes e mirem nos traveses inimigos – gritou
mais uma vez Colleen. – Precisamos ganhar tempo!
As ordens foram seguidas; logo, as bolas de ferro unidas umas às outras voavam
pelos ares em busca das velas inimigas. O vento e o balançar das águas tornavam a mira
difícil, e os tiros passaram longe de seu alvo.
— Maldição! Recarreguem e tentem de novo.
O navio negro vinha direto em rota de colisão contra o Aliança, com a clara
intenção de abordá-los. Não tardaria para que estivessem ao alcance de um tiro de besta.
Assim, a capitã se preparou. Alguns de seus homens armados se apoiaram como podiam na
amurada, formando uma parede de proteção para os outros marinheiros. Eles miravam na
tripulação inimiga, aguardando a ordem de disparar. À distância, os marinheiros da Força,
tranquilos, pareciam vir para um jantar, em vez de um combate. Quando a proximidade já
pedia as primeiras providências para uma abordagem, o navio negro disparou suas armas.
— Abaixem-se! – berrou Laura.
As balas passaram zunindo por cima do navio, atingindo o mar adiante.
— Eles erraram – celebrou a capitã, apesar de estranhar um erro àquela distância.
Poucos segundos se passaram até que ela confirmasse que o alvo não era seu navio,
mas sim a água a sua volta. O marinheiro na gávea, agarrado ao mastro, gritou:
283
— O mar! Está vivo.
Colleen correu até a amurada, sendo arremessada com violência para a esquerda. O
navio adernou, inclinando-se; era impossível a qualquer um ficar em pé. A capitã se
arrastou novamente para a amurada até notar que algo se formava na superfície. A água
pareceu aderir ao casco como as garras de um polvo, subindo seus tentáculos na tentativa
de engolir o navio.
— O que faremos, capitã - disse Laura.
— Se esses desgraçados acham que irão nos afundar dessa forma, estão enganados.
Traga Yetu e os mais fortes aqui. Tragam também qualquer gancho de abordagem que
puder conseguir e rápido.
Laura saiu aos tropeções, retornando em poucos minutos com os homens e o
material. A capitã explicou seu plano, duvidoso, porém ousado a seus homens e ordenou
que se posicionassem.
— Agora – berrou Colleen, enquanto ela mesma arremessava uma corda em direção
ao navio inimigo.
Seus homens a seguiram, e logo uma dúzia de ganchos de abordagem cortou o céu
escuro, a maioria atingindo a água. Quatro deles, entretanto, acertaram a lateral do navio
negro, fisgando-o como a um peixe.
— Matem – enfatizou a capitã –, matem qualquer um que se aproximar dos cabos.
Vocês dois, puxem de volta a corda e tentem um novo arremesso.
— O que você vai fazer, Rosa – questionou Laura.
— Eu vou até lá.
— O quê?
Em vez de responder à pergunta de sua contramestre, a capitã já se virara e escalava
a escada de cordas na lateral de seu navio. O vento forte e a água encharcavam sua roupa,
dificultando a tarefa à medida que ela avançava.
O som de bestas sendo disparadas de ambos os lados quase sumia na tempestade;
eram os gritos dos abatidos que mais se destacavam na confusão. Ela finalmente alcançou
284
uma verga e buscou o capitão inimigo em meio ao caos. Localizou-o sobre o convés de
tombadilho, ainda surpreso, dando ordens a seus subordinados. A capitã respirou fundo,
agarrou uma das cordas que se prendia ao seu mastro, enrolou-a na mão e com um medo
incomum se arremessou em arco, em direção à embarcação inimiga.
A corda tensionou com o peso da capitã, descrevendo um círculo no ar e apontando
mais ou menos para onde ela havia mirado. A queda seria um pouco mais alto do que ela
calculara. Antes que caísse no mar, soltou a corda, caindo desajeitada no convés de
tombadilho. Ela tentou rolar, mas seu joelho pagou o preço pelo abuso - parecia torcido.
Com dificuldade levantou-se diante do atônito capitão inimigo. A capitã sacou seu alfanje e
ainda claudicante avançou contra sua presa.
Corpulento, o homem tinha pele clara, quase albina, sinal de que há muito não via a
luz do sol. Suas roupas eram completamente negras, mas o que mais chamava a atenção
eram seus olhos. Em vez do branco preenchido pela íris, eles eram completamente negros,
em um tom brilhante que parecia alimentado por duas grandes veias pulsantes que subiam
por seu rosto até cercarem por completo suas órbitas. O capitão soltou um rosnado - um
som gutural de quem se desacostumara a usar a voz humana -, e em seguida sacou sua
arma.
O cutelo do capitão rasgou o ar em direção à Colleen que, embora ainda aturdida
pela queda, conseguiu se desviar. Ela caminhava para trás a cada passo da criatura,
buscando uma fraqueza a ser explorada no adversário. Aparou um segundo e um terceiro
golpe, até que encontrou finalmente um espaço para golpear. O alfanje cortou de cima a
baixo, acertando o peito do inimigo de raspão e obrigando-o a recuar. Calmamente, o
capitão caminhou para trás, colocou a mão sobre a ferida, de onde vertia um líquido negro,
e lambeu o sangue de sua palma.
A capitã observava perplexa, estudando cada movimento, cada reflexo de seu
oponente. Sua mente a fazia lembrar das aulas de luta com Fletcher e Yetu, lições que
culminavam nesse momento. Condicionada, esta a alertaria sobre quando abaixar, girar ou
aparar, mas aquele era um inimigo poderoso que não temia a morte e faria qualquer coisa
para matá-la.
285
Ele avançou novamente; seu braço direito golpeava de cima a baixo, encontrando
novamente o vazio. A capitã notou que a criatura preferia sempre golpear dessa forma e,
portanto, seu quadril esquerdo ficava desprotegido. Ela teria de se aproximar e ficar ao
alcance da lâmina se quisesse arriscar algo. O homem preparou novo golpe, uma nova
investida igual à anterior, como ela previra. Em vez de saltar para trás, a capitã se abaixou,
girou o corpo em direção a seu oponente, fintando-o e indo parar em suas costas.
O homem virou-se para encarar sua oponente que, com os olhos em chamas,
segurava seu alfanje com as duas mãos. Antes que pudesse reagir, a lâmina de Colleen
avançou em linha reta. A ponta certeira penetrou a traqueia do capitão, trespassando seu
pescoço e despontando do outro lado. Com um movimento rápido, ela arrancou a arma,
derrubando o homem sem sentidos no chão.
O capitão não emitiu nenhum ruído. Antes que tocasse as tábuas negras de seu
navio, seu corpo lentamente se desfez em uma poça de líquido escuro. Os tripulantes da
Força pararam de lutar, como se suas mentes tivessem esvaziado. Um estouro seguido de
outro ecoou e, um a um, incharam e explodiram em grandes massas de água negra,
escorrendo pelo convés em direção ao mar.
Ainda atordoada, Colleen sentiu o chão abaixo de seus pés amolecer. Um barulho
estranho surgiu no porão, subindo pelos conveses inferiores, fazendo toda a embarcação
tremer. Ela se agachou, pegou sua arma e saltou em direção a um dos cabos de abordagem
preso à amurada do navio.
Uma explosão chacoalhou o Aliança, enquanto o navio inimigo se desfazia. Uma
grande massa de líquido negro e espesso subiu pelos ares, para atingir em seguida a
superfície do mar. Colleen caiu no vazio.
— Puxem. - Agarrada à corda, ela ouviu o grito vindo do navio.
À medida que a corda era puxada, as Águas Sombrias corroíam suas vestes e a
corda; momentos antes do cabo arrebentar, ela já se apoiava com dificuldade na amurada de
seu navio.
A tempestade voltou a amainar, e os tentáculos negros se desfizeram. A capitã foi
recebida com urras e salvas. Ainda bastante machucada, dirigiu-se à Laura que a amparava:
286
— Tire-nos logo daqui.
287
Capítulo 8 - Um Novo Começo
O surgimento dos primeiros raios de sol entre as nuvens foi recebido com urras de
alegria. Vários marinheiros do Aliança se abraçavam diante da constatação de que o maior
pesadelo de suas vidas chegava ao fim. O preço a pagar havia sido alto: o navio estava
avariado, com diversas velas rasgadas e um mastro de ré partido. As águas também haviam
cobrado seu preço em vidas, tendo matado bons homens da tripulação, que eram
lamentados por seus companheiros.
Três dias após a batalha nas Águas Sombrias, Lorde Joseph conseguiu se pôr de pé.
Os dois dias anteriores que permaneceu na cama haviam sido angustiantes, repletos de
perguntas sobre como tudo havia acontecido e recebendo como resposta apenas que o
capitão falaria com ele em breve.
Apoiado em um pedaço de madeira que improvisou como muleta, o Regente de
Aldarian alcançou o convés superior. Seus olhos, por anos sem ver a luz direta do sol,
ardiam, assim como sua pele se tornara excessivamente pálida e sensível. Ele supôs que a
figura vestindo um longo casaco vinho, a cor da marinha de Aldarian, deveria ser o capitão.
Aproximou-se, colocou a mão esquerda sobre o ombro dele e com a voz ainda fraca, disse:
— Então, você é o comandante dessa embarcação. Acredito que deva lhe agradecer
por ter me tirado daquele lugar.
— Não me agradeça, meu senhor. Como uma fiel súdita, não cumpri mais do que
minha obrigação.
288
A voz feminina soou familiar aos ouvidos do Joseph. Seu coração se apertou
enquanto sua esperança se concretizava. A jovem virou-se, ajoelhou-se perante o Regente
beijando-lhe a mão, enquanto se apresentava:
— Me chamo Rosa, Capitã Rosa Escarlate.
O homem encarou sua afilhada com um sorriso. Finalmente um rosto conhecido em
todos esses anos. Ele ia pronunciar seu nome, quando Colleen colocou o dedo indicador
sobre os lábios, pedindo que não o fizesse. Ela se levantou, olhou fundo em seus olhos e
disse:
— Fico feliz que esteja bem, meu senhor. Seja bem-vindo ao Aliança.
Somente naquele momento, o Regente se deu conta de onde estava: um verdadeiro
navio aldariano.
— E onde está Jack Fletcher? O que houve com ele?
— Morto, assassinado cruelmente por membros das Forças Sombrias.
Joseph esmoreceu, entristecido pela perda de seu melhor capitão. Apesar da tristeza,
a alegria em rever Colleen, ainda mais capitaneando seu próprio navio, trouxe-lhe uma
nova esperança.
— E quanto a Guinford e Melleen? Tem alguma notícia deles?
— Soube que se exilaram em Myrtakos, mas há muito não tenho noticias deles. É
para lá que estamos rumando, e poderá reencontrá-lo em alguns dias.
— Ele sabe sobre Fletcher? Sabe que você agora é...
— Não. Desde o ataque não nos vimos mais. Ainda lhe mando parte daquilo que
pilhamos, mas eu sabia que ele jamais concordaria com que eu participasse de seu resgate.
— Agora que está tudo bem, você pode voltar comigo. Ele ficará feliz em vê-la e...
— Agradeço, meu senhor, mas ainda não é o momento de voltar. Existem várias
pessoas que desejam a minha morte: agentes e espiões da Companhia que fariam de tudo
para me atingir. Temo pela segurança de Melleen e do Governador.
289
— Mas, Colleen – disse em um sussurro –, se seu pai realmente está em Myrakos,
ele está seguro.
— Enquanto John Hattcliff e o Patriarca estiverem no poder, não existe um lugar
seguro. É melhor que ninguém seja capaz de ligar a Capitã Escarlate a meu pai e irmã.
Colleen olhou fundo nos olhos de seu padrinho, segurou suas mãos e disse:
— Preciso que prometa que irá manter esse segredo. Não dirá a meu pai que sabe
quem eu sou. Quando tudo estiver terminado, eu juro que voltarei para encontrá-lo.
— Tudo bem, mas peço que reconsidere sua decisão. Deixe que seu pai saiba que
você está bem.
— Eu...irei pensar!
— Muito bem – disse o Regente com um sorriso –, voltarei à minha cama agora.
Este sol ainda me incomoda e o ferimento dói quando fico em pé.
A capitã se ajoelhou novamente, beijando a mão de seu senhor em respeito. O
Regente sorriu, virou-se e retornou a seus aposentos. Ainda havia uma longa viagem a
empreender.
♥♠♥
A chegada de um navio portando a velha bandeira de Aldarian causou surpresa no
porto de Failet, uma das principais cidades portuárias de Myrtakos. Desde que John
Hattcliff assumira o governo de Aldarian há alguns anos, a bandeira do timão ladeado por
louros havia sido substituída por um grande falcão. Todos os navios da marinha haviam
sido proibidos de portar o velho símbolo, e hasteá-lo era considerado um ato de traição.
Tão logo o navio aportou, Colleen fez questão de enviar um dos tripulantes do
Aliança para esclarecer os fatos e dar a boa notícia: Lorde Joseph Hattcliff estava a bordo e
bem.
A notícia atingiu igualmente de surpresa Talafér e Guinford, que foi despertado aos
primeiros raios do sol com a informação. Ele soube que o Aliança estava no porto e era
comandado pela notória Capitã Escarlate.
290
Por anos ele ouvira esse nome murmurado entre os membros da corte, cantado pelos
bardos, amaldiçoado pelos agentes da Companhia. A história da pirata solitária que pilhava
navios e entrepostos de Azhir chegara até Myrtakos, embora poucos sabiam diferenciar as
lendas dos fatos. Se seus feitos eram conhecidos por todos, o rosto apenas por suas vítimas.
A Companhia bem que tentara capturá-la, oferecendo recompensas e espalhando cartazes
com sua suposta descrição.
O que Guinford sabia é que essa corsária, que dizia defender a verdadeira coroa de
Aldarian segundo alguns relatos, ajudara a minar a confiança dos mercadores nos navios da
Companhia, criando o cenário necessário para virar o jogo.
E ainda havia as doações, pequenas caixas com ouro e joias entregues a seus
cuidados. A carta que acompanhava os itens sempre dizia ser aquela “a parte do butim cuja
coroa tinha direito, entregue à mais alta autoridade em exercício”.
A chegada da embarcação trouxe um fio de esperança ao Governador, um aperto no
peito de que a tal capitã poderia ser sua filha.
Alguns rápidos acertos foram feitos para recepcionar a comitiva. O maior salão da
sede do governo foi preparado às pressas para receber o Regente, sendo que apenas um
seleto grupo de fieis colaboradores foi chamado para a reunião. Talafér também
providenciou o envio de algumas carruagens ao porto, a fim de transportar seus convidados
de forma discreta e segura. Três horas se passaram entre a aportagem e a reunião, e após
muita apreensão, finalmente o arauto anunciou os recém-chegados:
— Vossa majestade, o Regente Joseph Hattcliff, verdadeiro herdeiro e senhor das
terras de Aldarian.
Guinford, Talafér, Melleen e os outros se levantaram em respeito, mal acreditando
no que viam. O Regente entrava mancando, ajudado por uma muleta, mas ainda assim,
bem. A visão de seu Governador e sua querida afilhada trouxe um calor no coração que
havia muito não sentia. Guinford cerimoniosamente curvou-se diante de Joseph, que com
certo sarcasmo disse:
— Meu caro Guinford. Ao menos por enquanto, eu não sou mais um Regente e você
não é mais um Governador. Acho que podemos deixar as formalidades de lado.
291
O Regente esperou ele se levantar, dando-lhe um forte abraço, sendo correspondido
por Guinford.
— E quanto a você, minha querida – disse, dirigindo-se à Melleen –, que bela
mulher se tornou. Dê um abraço em seu padrinho, sim?
Melleen foi em direção ao Regente, em passos curtos e compassados. Seu semblante
demonstrava uma felicidade contida porém sincera, sendo que ela apenas se deixou abraçar
e ser beijada na testa.
O Governador então ajudou o Regente a se sentar. Assim que se acomodaram, o
arauto anunciou os ocupantes da segunda carruagem:
— A Capitã Escarlate, corsária e fiel súdita do verdadeiro Regente de Aldarian.
O tempo para o Governador congelou. Seu coração pulsou mais devagar ante a
chegada da afamada capitã. As histórias que ouvira ao longo dos anos, a descrição
espalhada pela autoridade de Azhir. O longo casaco cor de vinho, a cor da antiga marinha
de Aldarian, contrastava com o chapéu tricorne de mesma cor que, abaixado, ocultava
parcialmente o rosto da mulher. Guinford ansiava para comprovar que depois de tanto
tempo, sua família, sua amada filha estaria de volta.
Aproximando-se, a capitã ajoelhou-se cerimoniosamente em frente ao Regente.
Levantou-se, erguendo o rosto. Os olhos eram verdes em vez de castanhos; o rosto fino, no
lugar de arredondado. Olhou diretamente para o Regente e o Governador ao dizer com sua
voz suave:
— Saudações.
Guinford se frustrou. Não era Colleen. Se aquele era o mesmo Aliança onde ela
havia embarcado anos antes, onde estaria? O Governador se recompôs, assumiu uma
postura séria e, aprumando a voz, questionou.
— Mas quem é você, afinal?
— Apenas uma leal corsária de Tirana, alguém que jamais aceitou assinar o perdão
do Patriarca e sempre acreditou ser Joseph Hattcliff o verdadeiro senhor de Aldarian.
292
— Mas o navio que você comanda pertencia a Jack Fletcher... O que houve com ele
e seus tripulantes?
— Não sei lhe dizer. Nós recuperamos esse navio das mãos das Forças Sombrias,
mas eles não sobreviveram para dizer o que foi feito de seus tripulantes.
O Governador se calou, afundando em sua cadeira. Tentava inutilmente disfarçar
sua tristeza. Talafér, que observava toda a situação, interveio:
— Peço desculpas pelo questionamento, capitã, mas a filha de Guinford estava a
bordo desse navio e nunca mais tivemos notícias dela. Acredito que ainda esteja viva em
algum lugar; e a chegada de seu navio nos trouxe esperanças.
Invadida pela culpa de ter de inventar essa história, Laura olhou para Guinford e,
com um sorriso confiante, disse:
— Se sua filha esta lá fora, senhor, eu irei encontrá-la. Essa é uma promessa.
- Agradeço sua presteza, capitã.
Um silêncio constrangedor emergiu na sala, até ser quebrado por Talafér. Ele
pigarreou e disse:
— Senhorita Escarlate, presumo que possa chamá-la assim?
Laura acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto o homem prosseguia:
— É desnecessário dizer o quanto somos gratos por sua coragem e bravura em
resgatar nosso senhor Joseph. Já enviei um mensageiro de confiança até o Círculo Interno
de Myrtakos para dar as boas notícias e formalizar os documentos de exílio de vosso
Regente. Estou ciente também de que os custos referentes ao resgate de um monarca não
são baixos; assim, enviei junto ao meu mensageiro uma solicitação aos membros do
Conselho de uma quantia justa ao tamanho de seu empreendimento.
Ansiosa pelo prêmio, Laura mal conseguiu disfarçar um sorriso, porém manteve a
aparência de serenidade. Talafér prosseguiu:
— No entanto, minha cara, isso pode levar semanas. Por isso, autorizei meu
tesoureiro a remover essa quantia de meu tesouro pessoal e de algumas reservas da
província, para que sejam repostas depois.
293
O magistrado fez um sinal, dando ordem para que alguns de seus guardas
buscassem o ouro. Enquanto aguardava, Laura se lembrava da conversa que tivera com sua
capitã. Por mais que ela tivesse brigado, discutido e argumentado, Colleen estava
irredutível em um ponto: o futuro de Katherine. Ela ordenou que Laura pegasse a parte da
recompensa que lhe caberia e desse baixa do Aliança tão logo o butim fosse dividido.
Kitty ainda é jovem, e já viu mais horrores do que jamais deveria ter visto. Compre
uma pequena casa na cidade, use o dinheiro para dar uma boa vida e educação à menina.
Você é talentosa, esperta; existem muitos empregos honestos onde pode se sair bem.
Apesar de eu acreditar que, com essa recompensa, talvez não precise se preocupar com
isso.
As palavras de Colleen soaram duras, apesar da visível preocupação que ela
demonstrava. Laura se viu obrigada a aceitar a barganha, pois a capitã determinara que ela
não voltasse a colocar seus pés no convés do Aliança.
Finalmente o baú chegou, carregado com dificuldade por seis guardas. Eles
postaram a arca diante de Talafér, que abriu a tranca, revelando o interior dourado. Laura
não acreditou: havia mais moedas do que ela jamais pensava que pudessem existir.
Ao avaliar rapidamente o valor aproximado do tesouro, logo percebeu que qualquer
membro da tripulação teria recursos suficientes para viver uma vida e uma velhice
confortáveis. Laura controlou seu impulso de enfiar as mãos em meio às moedas, respirou
fundo e disse:
— Somos muito gratos por sua generosidade, meu senhor – Fez uma reverência a
Talafér. – Estou certa de que meus homens se sentirão inclinados a prosseguir o bom
trabalho com esse presente.
— Gostaríamos que fosse nossa convidada para o jantar. Deve ter histórias
fascinantes para compartilhar conosco.
— Agradeço o convite, senhores, mas temo que meus homens precisem mais de
mim do que vocês. Estão cientes dos perigos de se deixar marinheiros cansados e
endinheirados sozinhos pelas ruas?
Talafér sorriu e respondeu:
294
— Enviarei uma carroça escoltada para que entregue o baú em seu navio. Acredito
que não haverá maiores contratempos.
— Sou-lhe grata, meu senhor, e fico feliz que nosso amado Regente esteja de volta.
- Após dizer isso, Laura fez uma reverência, deu-lhe as costas e saiu andando em direção à
porta.
295
Epílogo
Numa manhã chuvosa em Azhir, Karim recebeu uma estranha encomenda. O
emissário lhe informou que o objeto fora despachado por um navio de casco e velas negras,
para ser levado em mãos até ele. O Patriarca estranhou tal atitude, já que seus comparsas
nas Forças Sombrias não se comunicavam dessa forma.
Um cilindro de couro endurecido, selado com cera vermelha. Chacoalhando o
objeto, ele ouviu um som baixo, como se contivesse areia em seu interior. Assim que
rompeu o selo e virou, além de uma folha de papel dobrada, um punhado de terra
enegrecida escorreu até seus pés. Sua boca salivou por um breve momento, até que se
controlou tentando entender que tipo de brincadeira era aquela.
Ao desdobrar o papel, foi tomado pelo espanto: continha um símbolo, um brasão
amaldiçoado que ele acreditava jamais seria impresso novamente. O timão ladeado por
louros estava no cabeçalho, coroando uma carta escrita com mãos firmes.
Prezado Patriarca,
Pedi que esta carta lhe fosse entregue em mãos, pois era meu desejo que você e
somente você fosse o primeiro a ter notícias minhas. Aquela a quem chamam de Capitã
Escarlate se ofereceu gentilmente para ser a portadora de boas notícias. Estou certo de
que ouviu o nome de minha aliada, muitas vezes, ao longo dos últimos anos e posso lhe
afirmar que a frequência com que isso acontecerá daqui em diante só aumentará.
296
A notícia que quero lhe dar, meu velho amigo, é que graças à tenacidade dessa
capitã, hoje novamente sou um homem livre. Sua prisão de sombras me manteve cativo por
mais tempo que me importei em contar. Foram anos de sofrimento e humilhação, durante
os quais não sabia se iria acordar para ver o próximo dia começar. A única coisa que me
manteve vivo foi o desejo de deixar aquele lugar e buscar justiça.
Você saqueou meu reino, submetendo-o à sua vontade. Separou-me de minha
família e assassinou de forma covarde meu verdadeiro amor, a única pessoa que
conseguiria me dissuadir a deixá-lo em paz.
Pois lhe digo, senhor de Azhir: aproveite sua superioridade enquanto ainda pode.
Em breve, retomarei minha terra das mãos do usurpador incompetente que você colocou
em meu lugar, tarefa essa que não deverá me consumir muito tempo. Para ele reservarei a
pena capital; você, entretanto, não terá tanta sorte.
Irei atingi-lo naquilo que mais lhe dói: suas riquezas, seu poder, sua influência.
Tão logo eu esteja sentado no trono de Aldarian, darei a cada capitão uma carta de corso,
um acordo de proteção para aqueles que desejarem espoliar a Companhia de Al Azhir.
Assistirei a seus cofres esvaziarem, seu legado definhar e a confiança de todos os reinos se
perder. Iremos atuar até que a Companhia de Al Azhir seja um fardo demasiadamente
pesado para existir, reassumindo o transporte de mercadoria pelos mares de Mirr.
Se isso é uma declaração de guerra - você se pergunta? Sim, e sugiro que você
comece a buscar por seus aliados. Aqueles que se unirem a você serão declarados inimigos
de Aldarian e alvos potenciais de meus navios. Veremos por quanto tempo continuarão a
seu lado.
Aproveite a terra que lhe enviei junto à carta; ela veio diretamente do interior das
Águas Sombrias, removida cuidadosamente de minhas botas. Será o mais próximo que
chegará de mim novamente.
Sinceramente,
Lorde Joseph Hattcliff
297
Segurando a mensagem com a mão trêmula, o Patriarca berrou e rasgou o papel.
Seu acesso de raiva atraiu a atenção de um dos auxiliares, que ainda incerto questionou:
— Há algo que possa fazer, meu senhor?
— Chame aquele maldito representante da Força agora, eu quero vê-lo
imediatamente!
Passou-se meia hora até que o homem estivesse na sua presença. Como todos os
membros, ele era calvo, com uma pele excessivamente clara e vestia uma túnica negra.
Veias escuras subiam por seu pescoço, terminando em algum ponto atrás das orelhas. Ficou
parado, apenas encarando indiferente Karim em seu rompante de fúria.
— Ele fugiu, você sabia? Aquele desgraçado fugiu de sua prisão perfeita. Uma
maldita pirata o tirou de lá.
— O local do aprisionamento deveria ser um segredo, informação essa que não foi
revelada por nenhum de nossos membros.
— E como poderei acreditar? Vocês sempre disseram que aquela prisão era segura.
— Ela é segura! – retrucou o agente sem expressar nenhuma emoção.
— Eu lhes paguei caro, muito caro para manterem aquele bastardo encarcerado.
— Você pagou caro para que nós invadíssemos o reino e o capturássemos. Colocá-
lo em nossa prisão foi uma gentil cortesia de nossos associados.
— Cortesia? Pois diga a seus associados que nosso acordo está cancelado!
— Os acordos feitos conosco não podem ser cancelados.
Enfurecido, Karim levantou-se de seu trono, sacando uma pequena cimitarra que
carregava consigo.
— Vou lhe mostrar como cancelo um acordo.
O agente se limitou a fechar os olhos, respirando profundamente. Seus dedos se
fecharam em punho quando o Patriarca estava a apenas alguns passos dele. Uma dor
intensa atingiu o ombro esquerdo de Karim, como se alguma coisa o houvesse agarrado e
298
estivesse esmagando seu coração. Um suor frio escorreu pelo pescoço, enquanto a dor o
colocava prostrado no chão.
— Como eu havia dito, nosso acordo não pode ser cancelado – sorriu. - Você teve o
que desejou. Muito breve, você irá nos pagar.
Aproximou-se do Patriarca, arrancando de seu pescoço um saquinho de couro
pardo.
— Nesse meio tempo, peço que reflita sobre como lidar conosco para que esse tipo
de equívoco não mais aconteça. Guardarei sua terra comigo por alguns dias, apenas como
uma medida disciplinar.
O homem deu-lhe as costas, retirando-se do aposento, enquanto Karim perdia a
consciência.
Quando despertou, a dor no ombro havia diminuído, mas sua cabeça girava devido à
abstinência. Lembrou-se da terra caída no chão e arrastou-se até ela. Sua mente começava a
lhe pregar peças; vozes desconexas chegavam-lhe aos ouvidos. Por um breve instante, viu
Sara, de pé à sua frente, sorrindo enquanto ele buscava o alívio para sua loucura. Ela
mantinha uma expressão serena, como se tivesse pena ao testemunhar o grande Patriarca se
arrastando por um punhado de terra.
Karim alcançou seu objetivo; com avidez, tocou a terra. Lambeu os dedos e em
seguida o chão, enquanto a imagem da rainha desvanecia.
Logo, recobrou o controle, compreendendo o que havia feito. Desde que aceitara a
barganha com as Forças Sombrias, ele nunca havia ficado sem terra; ironicamente, esta
nunca lhe pareceu tão saborosa como agora.
♥♠♥
O rum era a única coisa capaz de alegrar Colleen naquele momento. Amparada por
alguns de seus mais fieis marinheiros, a capitã bebericava de sua caneca, enquanto
ponderava todas as consequências de seu resgate.
299
Estivera certa o tempo todo e agora se sentia aliviada por jamais ter perdido a
esperança. Seu padrinho - acima de tudo seu Regente - estava bem e salvo, reacendendo a
expectativa de ver Aldarian sob mãos justas. Era apenas uma questão de tempo até ele se
recuperarar e reiniciar a luta para reconquistar sua pátria. Seja quando fosse, ela estaria lá.
Apesar das alegrias, o final de sua missão lhe trouxe motivos para lamentar.
Conforme combinado, a divisão do butim havia sido feita e cada marinheiro regiamente
pago por seus préstimos. Encerrada a missão, portanto, o contrato não tinha mais validade.
Cada um teria o direito de fazer o que bem entendesse, reiniciar sua vida ou assinar um
novo contrato para uma nova missão.
Muitos foram aqueles que preferiram deixar o Aliança e usar seu suado ganho para
uma vida mais pacata, em especial os antigos prisioneiros que preferiram a segurança da
terra aos perigos do mar.
Ainda havia os homens de Fletcher, soldados divididos entre a saudade de casa e o
cumprimento do dever. A capitã fora clara ao dizer que arriscar suas vidas para salvarem
seu Regente ia muito além daquilo que haviam assumido, e que se era essa obrigação que
os prendia, poderiam partir. Houve os fiéis, os relutantes e aqueles que preferiram voltar
para uma Aldarian ocupada a lutar por sua libertação. Suas famílias estavam lá, e era
chegada a hora de retornar.
Dois terços da tripulação haviam partido, deixando a capitã com poucas opções a
não ser contratar novos braços para seu convés. Yetu decidiu ficar. Sua vida em terra não
fazia nenhum sentido; ele se sentia importante no mar. O mesmo aconteceu com os oficiais
Lamb, Heywood e Hallet, que acreditavam ter uma dívida em relação à memória de
Fletcher.
Olorin também seguiu seu caminho, levando o pagamento em terra para Lomir.
Controlando o que mantinha o mago lúcido, ele acreditava que poderia lhe oferecer o
conforto necessário e ser recompensado com o seu aprendizado. Ele retornou a Ixian no
primeiro navio, deixando para a capitã uma única promessa: a de poder contar com ele
sempre que precisasse.
Por fim, havia Laura e Katherine, e era por elas principalmente que Colleen orava
pedindo proteção. Foi duro ter de abrir mão das duas, mas ela sabia que era a atitude mais
300
correta a tomar. Uma casa em Myrtakos, um novo recomeço, e quem sabe Katherine não
poderia ser tudo aquilo que ela mesma não alcançara. Algumas vezes, ponderava se havia
tomado o melhor caminho. Imaginava como seria sua vida se houvesse aprendido a
controlar melhor sua rebeldia. Talvez estivesse no exílio? Talvez morta na invasão? Eram
respostas que ela jamais possuiria. Ainda assim, sentia falta de suas irmãs do mar.
A capitã refletia, observando o fundo de sua caneca. As pequenas ondas douradas
iam e vinham, quando sua paz foi subitamente perturbada. Um objeto pesado foi
arremessado à sua frente: um grande saco de couro que, pelo barulho metálico, não poderia
ser confundido. Eram moedas, muitas delas. Uma voz às suas costas desabafou:
— Sabe, Rosa, essas moedas certamente comprariam uma bela casa no subúrbio de
Failet. Talvez até mesmo sobrasse um pouco para abrir um negócio honesto, mas acho que
tenho um melhor uso para elas.
Colleen virou-se, encontrando os olhos verdes de Laura. Com uma expressão séria,
esta prosseguiu:
— O Aliança precisa de novas velas para substituir aquelas rasgadas na tempestade.
Trocar alguns ferros e tábuas seria fundamental, além de raspar aquela maldita tinta negra
do casco. Não quero navegar por aí com aquela maldição abaixo de nossos pés.
Colleen ameaçou dizer algo, mas sua ex contramestre fez sinal para que se calasse.
Ela continuou:
— Rosa, entendo sua preocupação com Kitty, e sei que se o faz é porque, como eu,
você a ama. Por muitos anos eu batalhei, fiz coisas das quais não me orgulho para poder
mantê-la bem. No entanto, não me envergonho de nada que tenhamos feito juntas e sabe
por quê? Porque, pela primeira vez, aqueles de quem tomamos o dinheiro não eram apenas
vítimas das circunstâncias, mas responsáveis por elas. Por toda minha vida eu fui a única
família que Katherine teve, até você aparecer. Você é como uma irmã para nós, uma irmã
que cuida e protege. Não há nada para nós nesta terra, Rosa, nenhum recomeço que valha a
pena. Se Katherine precisa de educação, é isso que daremos a ela, na forma e meios que
possuirmos.
301
Colleen sorriu, enquanto uma lágrima inoportuna denunciava sua emoção. Ela se
levantou e abraçou Laura.
— Agora entendo por que nos damos tão bem, Lau. Assim como eu, você é mais
teimosa que uma mula.
— Muito bem, capitã. E para onde rumaremos agora?
— Primeiro precisamos recompor nossa tripulação, conseguir mantimentos e fazer
reparos menores.
— E depois?
— Daremos início à nossa maior campanha: a retomada de Aldarian.
FIM
302
Os apêndices a seguir tem por objetivo esclarecer ao leitores sobre os
acontecimentos que sucedem o encerramento do arco principal dessa história.
O projeto original contemplava a exploração desses fatos na narrativa,
porém eles foram cortados afim de não extender demais e não desviar o foco
principal da trama.
O material a seguir pode vir a ser usado em projetos futuros, portanto
contém spoilers.
303
Apêndice 1 - O governo de John Hattcliff
Durante os anos que permaneceu no trono de Aldarian, John Hattcliff se mostrou
um líder fraco e pouco carismático. Recuperado de sua doença, trabalhou incansavelmente
para tentar apagar o legado de seu irmão da história e substitui-lo pelo seu.
Sua megalomania fez com que perdesse o senso de realidade, dedicando-se a obras
grandiosas, enquanto seu povo sofria com a ausência de um governo firme. A população
nunca fora unânime em apoiar o golpe que removeu Joseph Hattcliff do governo; focos
rebeldes surgiam, sendo eliminados na sequência.
Por algum tempo, a ordem foi mantida pelos soldados das Forças Sombrias que
participaram da invasão. Porém, quando estes foram retirados, John passou a sofrer as
consequências de uma nação desunida, tendo de contratar mercenários para combater os
insurgentes.
Muitos dos nobres que governavam as províncias de Aldarian também eram
contrários a seu governo, já que a cada dia o Rei demandava mais impostos para sustentar
seus desejos. Aqueles que ousavam contestar seu poder eram lembrados que era ele e não o
bastardo Joseph o legítimo herdeiro do trono, e em geral sofriam represálias. Houve ainda
aqueles que se aproveitaram do caos político para buscar seus próprios interesses, como o
caso do Barão Gregório de Valdernan, que iniciou um conflito com a província vizinha de
Ithildor, iniciando uma guerra civil.
304
O Rei também não pôde contar com a ajuda de seu antigo aliado, Karim Al Azhir,
que ocupado com seus próprios problemas passou a ignorar os pedidos de ajuda de
Aldarian. Era fato notório que o Patriarca tinha total interesse na falência do sistema de
transporte de mercadorias de Aldarian, já que isso permitiria que a própria Companhia
assumisse a função, enriquecendo ainda mais Azhir.
Com a dissolução do Conselho dos Ventos e a concentração do poder em suas mãos,
John Hattcliff se tornou um déspota isolado da política de Mirr. Sua queda foi recebida pela
maior parte dos governantes de Altrarian como uma benção, o fim de um período curto,
porém negro na história do continente.
305
Apêndice 2 - A queda de John Hattcliff e a restauração da antiga
Coroa de Aldarian
Com a libertação do Regente Joseph Hattcliff por parte da capitã Rosa Escarlate,
uma nova esperança surgiu no reino. Tão logo a notícia de seu retorno e exílio em
Myrtakos chegou aos ouvidos dos cidadãos de Aldarian, as revoltas se intensificaram.
O dinheiro pilhado da Companhia pela capitã Escarlate e enviado a Guinford
Northwind, ao longo dos anos, serviu para alimentar esses focos de resistência, traficando
armas e equipamentos para dentro da ilha através do porto de Drashtor, ao norte.
Sem conseguir controlar a situação, foi apenas uma questão de tempo até que os
nobres de Aldarian passassem a apoiar abertamente os rebeldes, isolando o rei.
Foram necessários apenas oito meses desde a libertação do Regente do jugo das
Águas Sombrias para que o governo de seu irmão fosse derrubado. O golpe final aconteceu
em uma manhã de domingo, quando insurgentes armados, apoiados pela guarda da capital,
invadiram o palácio de Northwind, aprisionando John Hattcliff.
Com o fim do exílio e o retorno do Regente ao trono nas semanas seguintes, o Rei
deposto foi julgado e condenado à forca, sentença executada nas docas de Northwind.
Joseph ainda precisou atuar de forma decisiva na reorganização do reino, concedendo
benefícios aos insurgentes, auxiliando-os pouco a pouco a retomarem sua rotina.
306
O Regente teve de lidar também com a guerra civil entre Valdernan e Ithildor,
encerrando o conflito ao auxiliar os elfos a rechaçar a invasão do Barão Gregório à sua
fortaleza.
Assim que o antigo regime foi reestabelecido, o Patriarca anunciou novo embargo a
Aldarian no uso de seu canal. Dessa vez, porém, Joseph reagiu de forma diferente.
307
Apêndice 3 - A Guerra Aldarian x Azhir
Ao ser comunicado da nova decisão do Patriarca, o Regente lançou uma declaração
de guerra contra a Companhia de Al Azhir.
Em seu documento, Lorde Joseph declarou:
“Embora cientes de que o canal que conecta os dois hemisférios de Mirr está
localizado em território soberano de Azhir, entendemos que se trata de uma rota vital de
conexão entre os povos do mundo. Portanto, não pode ser aberto ou fechado de acordo
com os desejos de um único indivíduo. Asseguraremos a passagem de nossos navios e de
qualquer nação de bem, empregando quaisquer meios necessários para isso.”
Com a recusa do Patriarca em ceder, Aldarian passou a atacar abertamente os navios
da Companhia, oferecendo recompensas e proteção para qualquer capitão que fizesse o
mesmo. A oferta passou a atrair capitães de diferentes nações, interessados no rico butim
transportado pelos navios.
Pouco a pouco, a Companhia perdeu a confiança de outros reinos, vendo minguar
sua receita e seu tesouro. As Forças Sombrias, por sua vez, ao constatarem o aliado perder
sua utilidade deixaram-no à própria sorte.
Acuados pela situação e pelo estado mental cada vez mais perturbado de Karim,
famílias influentes de Al Azhir passaram a exigir a renúncia do Patriarca em favor de um
novo líder que pudesse proteger a nação. Quando sua loucura e obsessão se tornaram
308
insustentáveis, ele foi removido do poder, exilado em um lugar onde não mais poderia
afetar a Companhia, e subsituído por um membro da nobre casa Shunnaq.
O novo Patriarca conseguiu um acordo de paz com Aldarian, encerrando o conflito
e trazendo uma era de prosperidade para Mirr.
Porém, uma descoberta que remonta a centenas de anos irá novamente alterar o
delicado equilíbrio do mundo, uma força que poderá trazer prosperidade e riquezas para
muitas raças no mundo e a destruição certa para tantas outras.
309