ObrasdaautorapublicadaspelaGaleraRecord:
SérieTronodevidroTronodevidro
Coroadameia-noiteHerdeiradofogo
Rainhadassombras
Alâminadaassassina
SérieCortedeespinhoserosasCortedeespinhoserosasCortedenévoaefúria
Tradução
MarianaKohnert
1ªedição
2016
CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃO
SINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ
M11c
Maas,SarahJ.
Cortedenévoaefúria[recursoeletrônico]/SarahJ.Maas;tradução
MarianaKohnert.-1.ed.-RiodeJaneiro:Galera,2016.
recursodigital(Cortedeespinhoserosas;2)
Traduçãode:Acourtofmistandfury
Sequênciade:Cortedeespinhoserosas
Formato:epub
Requisitosdosistema:adobedigitaleditions
Mododeacesso:worldwideweb
ISBN978-85-01-11512-8(recursoeletrônico)
1.Ficçãoinfantojuvenilamericana.2.Livroseletrônicos.I.Kohnert,
Mariana.II.Título.III.Série.
16-35667
CDD:028.5
CDU:087.5
Títulooriginal:
ACourtofMistandFury
Copyright©2016SarahJ.Maas
EssatraduçãofoipublicadamedianteacordocomBloomsburyPublishingInc.
Todososdireitosreservados.
Proibidaareprodução,notodoouemparte,atravésdequaisquermeios.
Osdireitosmoraisdoautorforamassegurados.
TextorevisadosegundoonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.
Composiçãodemiolodaversãoimpressa:Abreu’sSystem
DireitosexclusivosdepublicaçãoemlínguaportuguesasomenteparaoBrasil
adquiridospela
EDITORARECORDLTDA.
RuaArgentina,171–RiodeJaneiro,RJ–20921-380–Tel.:(21)2585-2000,quese
reservaapropriedadeliteráriadestatradução.
ProduzidonoBrasil
ISBN978-85-01-10812-8
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Atendimentoevendadiretaaoleitor:
[email protected](21)2585-2002.
ParaJosheAnnie—
MinhaCortedeSonhosparticular
Talvezdesdesempreeufossequebradaesombriapordentro.
Talvezalguémquetivessenascidocompletaeboativessesoltadoaadagade
freixoerecebidoamorteemvezdoqueestavadiantedemim.
Haviasangueportodaparte.
Foi difícil continuar segurando a adaga enquanto minha mão ensopada de
sanguetremia.Enquantoeumedespedaçava,poucoapouco,ocadáverestatelado
dojovemGrão-Feéricoesfriavanopisodemármore.
Nãoconseguiasoltaraarma,nãoconseguiasairdolugardiantedele.
—Quebom—ronronouAmaranthadeseutrono.—Denovo.
Haviaoutraadagadefreixoeoutrofeéricoajoelhado.Eradosexofeminino.
Euconheciaaspalavrasqueeladiria.Aoraçãoquerecitaria.
Eu sabia que amassacraria, assim comohaviamassacradoo rapazdiante de
mim.
Paralibertartodoseles,paralibertarTamlin,euofaria.
Eueraaassassinadeinocenteseasalvadoradeumaterra.
—Quando estiverpronta, queridaFeyre—cantarolouAmarantha, comos
cabelos ruivos intensos tão brilhantes quanto o sangue em minhas mãos. No
mármore.
Assassina.Carniceira.Monstro.Ardilosa.Trapaceira.
Eunão sabiadequemestava falando.Os limites entremime a rainhahavia
muitotemposeconfundiam.
Meusdedos se afrouxaramna adaga, e ela caiuno chão, agitando a poça de
sangue que se espalhava. Gotas dispararam para minhas botas desgastadas —
resquíciosdeumavidamortalemumpassadotãodistantequepoderiamuitobem
tersidoumdemeussonhosfebrisdosúltimosmeses.
Encareiafêmeaqueaguardavaamorte,aquelecapuzcaídosobreacabeça,o
corpoesguioefirme.Preparadaparaofimqueeudariaaela,paraosacrifícioque
setornaria.
Leveiamãoàsegundaadagadefreixosobreumaalmofadadeveludo,ocabo
estava gelado emminhamãomorna e úmida. Os guardas puxaram o capuz da
feérica.
Euconheciaorostoquemeencarava.
Conheciaosolhoscinza-azulados,oscabeloscastanho-alourados,abocafarta
easmaçãsdorostoacentuadas.Conheciaasorelhasqueagorahaviamsetornado
delicadamente arqueadas, braços e pernas que tinham sido lapidados, delineados
compoder, qualquer imperfeição humana fora suavizada e transformada emum
sutilbrilhoimortal.
Conheciaovazio,odesespero,acorrupçãoquevazavadaquelerosto.
Minhasmãosnãotremeramquandoinclineiaadaga.
Quandosegureioombrodeossos finoseencareiaquele rostoodiado...meu
rosto.
Ecraveiaadagadefreixonocoraçãoqueestavaàespera.
ParteUm:CasadasBestasCapítulo1Capítulo2Capítulo3Capítulo4Capítulo5Capítulo6Capítulo7Capítulo8Capítulo9Capítulo10Capítulo11Capítulo12
Capítulo13
ParteDois:ACasadoVentoCapítulo14Capítulo15Capítulo16Capítulo17Capítulo18Capítulo19Capítulo20Capítulo21Capítulo22Capítulo23Capítulo24Capítulo25Capítulo26Capítulo27Capítulo28Capítulo29Capítulo30Capítulo31Capítulo32Capítulo33Capítulo34Capítulo35Capítulo36Capítulo37
Capítulo38Capítulo39Capítulo40Capítulo41Capítulo42Capítulo43Capítulo44Capítulo45Capítulo46Capítulo47Capítulo48Capítulo49Capítulo50Capítulo51
ParteTrês:ACasadeNévoaCapítulo52Capítulo53Capítulo54Capítulo55Capítulo56Capítulo57Capítulo58Capítulo59Capítulo60Capítulo61Capítulo62
Capítulo63Capítulo64Capítulo65Capítulo66Capítulo67Capítulo68Capítulo69
Agradecimentos
PARTEUM
ACASADASBESTAS
Vomiteinalatrina,abraçadaàslateraisfrias,tentandoconterosomdasgolfadas.
O luar entrava no imenso banheiro de mármore, fornecendo a única
iluminação,enquantoeu,silenciosamente,passavatãomal.
Tamlinnãosemoveraquandoacordeisobressaltada.E,quandonãoconsegui
discernir a escuridão do quarto da noite infinita das masmorras de Amarantha,
quandoosuorfrioquemecobriapareceuosanguedaquelesfeéricos,dispareipara
obanheiro.
Estavaalihavia15minutos,esperandoqueovômitoparasse,queostremores
remanescentessetornassemmaisesparsosesefossem,comoondasemumapoça.
Ofegante,eumeapoieisobreovaso,contandocadarespiração.
Apenas um pesadelo. Um de muitos, dormindo e acordada, que me
assombravamultimamente.
FaziatrêsmesesdesdeoseventosSobaMontanha.Trêsmesesmeajustando
aocorpoimortal,aummundoquelutavaparaserecompordepoisqueAmarantha
ohaviadespedaçado.
Eumeconcentreinarespiração—inspirarpelonariz,expirarpelaboca.De
novoedenovo.
Quandopareciaquetinhaterminadodevomitar,eumeafasteicomcuidadoda
latrina,mas não fuimuito longe.Apenas até a parede adjacente, perto da janela
entreaberta,ondeconseguiavero céunoturno,ondeabrisapodiaacariciarmeu
rostosuado.Apoieiacabeçacontraaparede,chapandoasmãoscontraopisode
mármore.Real.
Aquiloerareal.Eutinhasobrevivido;tinhaescapado.
A não ser que fosse um sonho; apenas um sonho febril na masmorra de
Amarantha,eeuacordariadevoltanaquelacelae...
Puxeiosjoelhosatéopeito.Real.Real.
Articuleiapalavra,sememitirsom.
Continueifazendoissoatéqueconseguisserelaxarospunhossobreaspernase
levantaracabeça.Dorpercorreuminhasmãos...
De alguma forma eu as tinha fechado com tanta força que as unhas quase
perfuraramapele.
Forçaimortal;eramaisumamaldiçãoqueumdom.Amasseiedobreitodosos
talheresemquetoqueidurantetrêsdiasdepoisdevoltar,tropeceitantasvezesnas
pernasmaislongasemaisrápidasqueAlisretirouqualquerbemdevalordemeu
quarto(elaficouespecialmenteranzinzaquandoderrubeiumamesacomumvaso
deoitocentosanos),equebreinãouma,nãoduas,mascincoportasdevidroapenas
aoacidentalmentefechá-lascomforçademais.
Suspireipelonarizeestiqueiosdedos.
Amãodireitaestavalisa,macia.Perfeitamentefeérica.
Inclinei amão esquerda, os redemoinhos de tinta cobriammeus dedos,meu
pulso, do antebraço atéo cotovelo, absorvendo a escuridãodo cômodo.Oolho
gravadono centroda palmademinhamãopareciameobservar, calmo e atento
comoumgato,apupilaemfendaestavamaisamplaquenoiníciododia.Comose
tivesseseajustadoàluz,comoqualquerolhocomumfaria.
Olheiparaelecomraiva.
Paraquemquerquepudesseobservaratravésdaquelatatuagem.
Não tivera notícias de Rhys nos três meses em que estava ali. Sequer um
sussurro.NãoousaraperguntaraTamlin,ouLucien,ouaninguém—commedo
de que, de algum jeito, convocasse o Grão-Senhor da Corte Noturna, que de
algummodoofizesseselembrardoacordodetoloqueeufizeraSobaMontanha:
umasemanacomeletodomêsemtrocadequemesalvassedabeiradamorte.
Mas,mesmoqueRhys tivessemilagrosamente esquecido, eu jamaispoderia.
NemTamlin,Lucienouqualquerum.Nãocomatatuagem.
MesmoqueRhys,no final...mesmoqueelenão tivesse sidoexatamenteum
inimigo.
Para Tamlin, sim. Para todas as outras cortes lá fora, sim. Pouquíssimos
cruzavam as fronteiras da Corte Noturna e sobreviviam para contar a história.
NinguémdefatosabiaoqueexistianapartemaisaonortedePrythian.
Montanhaseescuridãoeestrelasemorte.
MaseunãomesentiinimigadeRhysanddaúltimavezquefaleicomele,nas
horasapósaderrotadeAmarantha.Nãoconteianinguémsobreaqueleencontro,
oqueeledisseparamim,oqueconfesseiaRhys.
Agradeçaporseucoraçãohumano,Feyre.Tenhapiedadedaquelesquenãosentem
nada.
Aperteiosdedosempunho,bloqueandoaqueleolho, a tatuagem.Estiqueio
corpoefiqueidepé,e,então,deidescargaantesdeseguiratéapiaparaenxaguara
boca,depoislavarorosto.
Querianãosentirnada.
Queria que meu coração humano tivesse mudado com o restante, se
transformadoemmármoreimortal.Emvezdopedaçodeescuridãoemfrangalhos
queagoraera,vazandopusparadentrodemim.
Tamlincontinuavadormindoquandovolteidefininhoparaoquartoescuro,o
corponujogadosobreocolchão.Porummomento,apenasadmireiosmúsculos
poderosos de suas costas, delineados de forma tão linda pelo luar, os cabelos
dourados, embaraçados pelo sono e pelos dedos que passei por eles enquanto
fazíamosamormaiscedo.
PorTamlin, eu fiz aquilo; por ele, eu, comprazer,destruí amime aminha
almaimortal.
Eagoratinhaaeternidadeparaconvivercomisso.
Continueiatéacama,cadapassomaispesado,maisdifícil.Oslençóisestavam
agora frios e secos, e me deitei, curvando as costas na direção de Tamlin,
envolvendomeu corpo com os braços. Sua respiração era profunda... tranquila.
Mas com meus ouvidos feéricos... Às vezes eu me perguntava se ouvira a
respiraçãodelefalhar,apenasporumsegundo.Jamaistivecoragemdeperguntar
seeleestavaacordado.
Tamlin jamais acordava quando os pesadelos me tiravam do sono; jamais
acordavaquandoeuvomitavaasentranhas,noiteapósnoite.Sesabiaouseouvia,
nãocomentavanada.
Eu sabia que sonhos semelhantes afugentavam Tamlin do sono tão
frequentemente quanto os meus. Na primeira vez que aconteceu, eu acordei...
tenteifalarcomele.MasTamlinsedesvencilhoudemeutoque,apelesuada,ese
transformou naquela besta de pelos e garras e chifres e presas.Tamlin passou o
restodanoitejogadoaopédacama,monitorandoaporta,aparededasjanelas.
Desdeentão,elepassaramuitasnoitesassim.
Enroscadanacama,puxeimaisocobertor,desejandoocalordeTamlincontra
anoitefria.Tinhasetornadonossoacordotácito—nãopermitirqueAmarantha
vencesseaoreconhecerqueelaaindanosatormentavanossonhosenosmomentos
acordados.
Era mais fácil não precisar explicar mesmo. Não precisar contar a ele que,
emboraeuotivesse libertado,salvadoseupovoetodaPrythiandeAmarantha...
tinhamedestruído.
E achava que nem mesmo a eternidade seria tempo suficiente para me
consertar.
–Euqueroir.
—Não.
Cruzei os braços, enfiando amão tatuada sob o bíceps direito, e separei um
poucomaisospésnopisodeterradosestábulos.
— Faz três meses. Nada aconteceu, e a aldeia não fica nem a oito
quilômetros...
—Não.—O sol domeio damanhã que entrava pelas portas do estábulo
refletia nos cabelos dourados de Tamlin conforme ele terminava de afivelar o
boldrié de adagas sobreo peito.O rostodeTamlin, lindode um jeitomásculo,
exatamentecomoeusonheiqueseriaduranteaqueleslongosmesesemqueusoua
máscara,estavadeterminado,oslábios,dispostosemumalinhafina.
Atrás deTamlin, jámontado no cavalo cinzamalhado, junto de outros três
senhores-sentinelasfeéricos,Luciensilenciosamentesacudiaacabeçaemaviso,o
olhodemetalentreaberto.Nãooprovoque,eraoquepareciadizer.
Mas, quando Tamlin seguiu para o lugar em que o cavalo preto já estava
selado,trinqueiosdenteseosegui.
—Aaldeiaprecisadetodaaajudaquepuder.
—EnósaindaestamoscaçandoasbestasdeAmarantha—disseeleaomontar
o cavalo com ummovimento fluido. Às vezes, eume perguntava se os cavalos
eramapenasparamanteraaparênciadecivilidade,denormalidade.Parafingirque
Tamlinnãopodiacorrermaisrápidoqueeles,quenãoviviacomumpénafloresta.
Osolhosverdes deTamlin pareciam lascas degeloquandoo cavalo começou a
trotar.—Nãotenhosentinelassobrandoparaescoltá-la.
Dispareiparaasrédeas.
—Não preciso de escolta.—Segureimais firme no couro quando puxei o
cavalo a fim de que parasse, e o anel de ouro emmeu dedo, com a esmeralda
quadradaquebrilhavasobreele,refletiualuzdosol.
Fazia dois meses que Tamlin propusera casamento, dois meses suportando
apresentaçõessobrefloreseroupasearranjodeassentosecomida.Tiveumleve
descanso uma semana antes, graças ao Solstício de Inverno, embora eu tivesse
trocadocontemplarrendaesedaporescolhergrinaldasefestões.Maspelomenos
foraumdescanso.
Trêsdiasdebanqueteebebidasetrocadepequenospresentes,culminandoem
umacerimônialonga,muitoirritante,noaltodascolinasnanoitemaislonga,que
nos acompanhariadeumanoparao seguinte conformeo solmorria enasciade
novo. Ou algo assim. Celebrar uma festa de inverno em um lugar
permanentemente envolto em primavera não fizera muito para melhorar minha
totalfaltadeentusiasmofestivo.
Nãopresteimuitaatençãoàsexplicaçõesdasorigensdofestival...eospróprios
feéricosdebateramsetinhasurgidonaCorteInvernalounaCorteDiurna.Ambas
agora alegavam que era sua festividade mais sagrada. Eu só sabia mesmo que
precisavasuportarduascerimônias:umaaopôrdosolparadarinícioàquelanoite
infinitadepresentesedançasebebidasemhonradamortedovelhosol;eoutrano
alvorecerdodiaseguinte,comosolhosvermelhoseospésdoendo,pararecebero
renascimentodosol.
Era ruim o bastante que tivessem solicitado minha presença diante dos
cortesãos reunidos e dos feéricos inferiores enquanto Tamlin fazia os muitos
brindeseassaudações.Mencionarquemeuaniversáriotambémcaíranaquelaque
era amais longa das noites do ano era um fato que eu convenientemente havia
esquecido de contar a todos. Recebi muitos presentes, de toda forma— e sem
dúvida receberia muitos, muitos mais no dia do casamento. Não tinha muita
utilidadeparatantascoisas.
Agora, faltavam apenas duas semanas até a cerimônia. Se eu não saísse da
mansão,senãotivesseumdiaparafazeralgumacoisaquenãogastarodinheirode
Tamlineterpessoascurvadasameuspés...
— Por favor. Os trabalhos de recuperação estão muito lentos. Eu poderia
caçarparaosaldeões,conseguircomidaparaeles...
—Nãoéseguro—disseTamlin,maisumavezincitandoocavaloparaquese
movesse.Apelagemdoanimalbrilhavacomoumespelhonegromesmoàsombra
dosestábulos.—Principalmenteparavocê.
Tamlindiziaissotodasasvezesquetínhamosaqueladiscussão;semprequeeu
imploravasuapermissãoparairatéaaldeiadeGrão-Feéricosmaispróxima,afim
deajudarareconstruiroqueAmaranthaqueimaraanosantes.
Eu o segui em direção ao dia claro e de céu limpo além dos estábulos; o
gramadocobriaascolinaspróximas,ondulandoàlevebrisa.
—Aspessoasqueremvoltar,queremumlugarparaviver...
—Essasmesmaspessoasaveemcomoumabenção,umsinaldeestabilidade.
Sealgoacontecesseavocê...—Tamlinseinterrompeuquandoparouocavalona
beira de uma trilha de terra que o levaria para os bosques a leste; Lucien agora
esperavaaalgunsmetrosdedistância.—Nãoháporque reconstruirnada seas
criaturasdeAmaranthadevastamasterrasedestroem-nasdenovo.
—Osfeitiçosestãoativados...
— Algumas criaturas escaparam antes que as proteções fossem reparadas.
Luciencaçoucinconagaontem.
VireiacabeçaparaLucien,queencolheuocorpo.Elenãotinhamecontado
isso no jantar da véspera. Lucien mentira quando perguntei por que estava
mancando. Meu estômago se revirou; não apenas por causa da mentira, mas...
naga.Àsvezes eu sonhava como sanguedelesme encharcando enquanto euos
matava, dos rostos viperinos cheios de luxúria enquanto tentavamme cortar no
bosque.
Tamlinfalou,baixinho:
—Nãopossofazeroqueprecisoseestiverpreocupadocomsuasegurança.
—Éclaroqueestareisegura.—ComoGrã-Feérica,comminhaforçaeminha
velocidade,euteriaboaschancesdefugircasoalgoacontecesse.
—Por favor...por favor, faça issopormim—pediuTamlin,acariciandoo
grande pescoço do cavalo enquanto o animal relinchava impacientemente. Os
outros já cavalgavam a trotes leves, os primeiros quase alcançando a sombra do
bosque.Tamlininclinouoqueixonadireçãodamansãodealabastroqueseerguia
atrásdemim.—Tenhocertezadequehácoisasemquevocêpodeajudarnacasa.
Oupoderiapintar.ExperimenteaquelenovoconjuntoquelhedeinoSolstíciode
Inverno.
Nãohavianadaexcetoplanosdecasamentomeesperandonacasadesdeque
Alis se recusara amedeixar erguerumdedopara fazerqualquer coisa.Nãopor
causa de quem eu era para Tamlin, o que eu estava prestes a me tornar para
Tamlin, mas... por causa do que eu tinha feito por ela, pelos meninos, por
Prythian.Todosos criados faziamomesmo,algunsaindachoravamdegratidão
quandopassavampormimnoscorredores.Equantoapintar...
—Tudobem—suspirei.Eumeobriguei a encararTamlin,meobriguei a
sorrir.—Cuidado—aconselhei,efuisincera.AideiadeTamlinláfora,caçando
osmonstrosqueumdiaserviramAmarantha...
—Amovocê—disseTamlin,baixinho.
Assenti,murmurandodevoltaconformeelecavalgavaatéondeLucienainda
esperava;oemissárioagorafranzialevementeatesta.Nãoosobserveipartir.
Eu me demorei voltando pelas cercas vivas dos jardins, os pássaros da
primaveracantavamalegremente,cascalhoestalavasobmeussapatosfinos.
Odiavaosvestidoscoloridosquetinhamsetornadomeuuniformediário,mas
nãotinhacoragemdeconfessaraTamlin;nãoquandoelehaviacompradotantos,
não quando parecia tão feliz ao me ver usando-os. Não quando as palavras de
Tamlinnãoestão longedeseremverdade.Nodiaemqueeuvestisseacalçaea
túnica, no dia em que prendesse armas ao corpo como se fossem joias finas,
mandaria uma mensagem alta e clara pela terra. Então, eu usava os vestidos e
deixavaqueAlisarrumassemeucabelo...aomenosparagarantiràquelaspessoas
algumapazeconforto.
PelomenosTamlinnãoseopunhaàadagaqueeulevavanalateraldocorpo,
penduradaemumcintocobertodejoias.Lucienmepresentearacomambos—a
adaga,duranteosmesesqueprecederamAmarantha,ocinto,duranteassemanas
seguintes à queda daGrã-Rainha, quando eu carregava a adaga, junto amuitas
outras, por todo canto.Pode ao menos ficar bonita se vai se armar até os dentes,
disseraele.
Mas,mesmo que a estabilidade reinasse durante cem anos, eu duvidava que
jamaisacordassecertamanhãenãolevasseafaca.
Cemanos.
Eu tinha isso; tinha séculos diante de mim. Séculos com Tamlin, séculos
naquele lugar lindoetranquilo.Talvezeumeajustasseemalgummomentopelo
caminho.Talveznão.
Pareidiantedasescadasquedavamparaacasacobertaderosaseheras,eolhei
paraadireita...nadireçãodoroseiraledasjanelaslogoalémdeste.
Sóhaviacolocadoospésnaquelecômodo—meuantigoestúdiodepintura—
umavez,assimquevoltei.
E todas aquelas pinturas, todos os materiais, todas aquelas telas em branco
esperandoqueeudespejassehistóriasesentimentosesonhos...odieiaquilo.
Saídelámomentosdepoisenãovolteidesdeentão.
Tinha parado de catalogar cores e sensações e texturas, parado de reparar
nisso.Malconseguiaolharparaaspinturaspenduradasdentrodamansão.
Umavozdoceefemininacantaroloumeunomededentrodasportasabertasda
casa,eatensãoemmeusombrossealiviouumpouco.
Ianthe.AGrã-Sacerdotisa,assimcomonobreGrã-Feéricaeamigadeinfância
de Tamlin, que tomara para si a tarefa de ajudar a planejar as festividades do
casamento.
EquetinhaassumidoatarefadeadorarTamlineeucomosefôssemosdeuses
recém-criados,abençoadoseescolhidospelopróprioCaldeirão.
Masnãoreclamei;nãoquandoIantheconheciatodosnacorteeforadesta.Ela
ficavaaomeuladonoseventosejantares,mepassandodetalhessobreaquelesque
participavam, e era o principal motivo pelo qual eu sobrevivera ao furacão de
animaçãodoSolstíciodeInverno.Afinaldecontas,foraIanthequempresidiraas
diversas cerimônias— e fiqueimais que feliz em deixar que ela escolhesse que
tipos de festões e grinaldas deveriam adornar a mansão e a propriedade, que
talherescomplementavamcadarefeição.
Alémdisso...emborafosseTamlinquempagavaminhasroupasdodiaadia,
era o olho de Ianthe que as escolhia. Ela era o coração do próprio povo,
consagrada pela Mão da Deusa para liderá-los para fora do desespero e da
escuridão.
Eunãoestavaemposiçãodeduvidar.Iantheaindanãotinhamelevadoparao
maucaminho...eeuaprendiadetestarosdiasemqueelaestavaocupadanotemplo
ounapropriedade,tomandocontadeperegrinosedeseusacólitos.Aqueledia,no
entanto...sim,ficarcomIantheeramelhorqueaalternativa.
Reuniassaiasesvoaçantesdevestidorosacomoaalvoradacomumadasmãos
esubiosdegrausdemármoreatéacasa.
Da próxima vez, prometi a mim mesma. Da próxima vez eu convenceria
Tamlinamedeixariràaldeia.
—Ah, não podemos deixar que ela se sente ao lado dele. Eles se atracariam, e
entãoteríamossangueestragandoastoalhasdemesa.—Sobocapuzpálido,azul-
acinzentado, Ianthe franziu a testa, enrugando a tatuagem que ali estampava os
diversosestágiosdeciclodalua.Asacerdotisariscouonomequeescreveraemum
dosesquemasdeassentosmomentosantes.
Odiatinhaficadoquente,ocômodoestavaumpoucoabafado,apesardabrisa
que entrava pelas janelas abertas. Mesmo assim, a túnica pesada com capuz
permanecia.
Todas as Grã-Sacerdotisas usavam as vestes de camadas oscilantes,
habilidosamente entrelaçadas, embora certamente estivessem longe de serem
matronas.AcinturafinadeIantheeradestacadaporumestreitocintocompedras
transparentesazul-celeste,cadaumaperfeitamenteovalepresaporpratareluzente.
EsobreocapuzdeIanthehaviaumatiaracombinando:umarcodelicadodeprata
comumagrandepedranocentro.Umpedaçodetecidotinhasidodobradosoba
tiara,umretalhoembutidoparasercolocadosobreatestaquandoIantheprecisasse
rezar,suplicaraoCaldeirãoeàMãe,ouapenasrefletir.
Ianthememostrou certa vez como era o tecido abaixado: deixava àmostra
apenas o nariz e a boca farta e sensual. A Voz do Caldeirão. Achei a imagem
perturbadora—o fatodeque simplesmente cobrir aparte superiordo rosto,de
alguma forma, transformasse amulher alegre e esperta em uma efígie, em algo
Dissonante.AindabemqueIanthemantinhaotecidodobradonamaiorpartedo
tempo.Devez emquando ela até tirava o capuzde vez para permitir queo sol
brincassecomoslongoscabelosdouradoselevementeondulados.
Osanéisprateadosde Ianthe reluziamnosdedosdeunhas feitas conformea
sacerdotisaescreviaoutronome.
—Écomoumjogo—disseela,suspirandopelonarizarrebitado.—Todas
essas peças, lutando por poder e domínio, determinadas a derramar sangue caso
necessário.Deveserumajusteestranhoparavocê.
Tantaelegânciaeriqueza,masaselvageriapermanecia.OsGrão-Feéricosnão
eram como os nobres afetados do mundo mortal. Não, se brigassem, aquilo
terminariacomalguémsendoestripadoempedaçossanguinolentos.Literalmente.
Certavez,eutremerademedoaocompartilharomesmoespaçoqueeles.
Flexioneiosdedos,esticandoecontorcendoastatuagensgravadasnapele.
Agoraeupodialutaraoladodeles,contraeles.Nãoquetivessetentado.
Eravigiadademais...monitoradaejulgadademais.PorqueanoivadoGrão-
Senhoraprenderiaa lutar seapaz tinharetornado?Essa foraaargumentaçãode
Ianthequandocometioerrodemencionaroassuntoemumjantar.Tamlin,para
seucrédito,enxergaraosdoislados:euaprenderiaamedefender...masosboatos
seespalhariam.
—Humanosnãosãomuitomelhores—reveleiaIanthe,porfim.Eporqueela
era basicamente a única de minhas novas companhias que não parecia
particularmente chocada ou assustada comigo, tentei puxar conversa e falei:—
MinhairmãNesthaprovavelmenteseencaixariabem.
Iantheinclinouacabeça,ealuzdosolfezcomqueaspedrasazuisnoaltodo
capuzdasacerdotisabrilhassem.
—Suafamíliamortalvaisejuntaranós?
—Não.—Eunãopenseiemconvidá-los...nãoquisexpô-losaPrythian.Ou
aoqueeuhaviametornado.
Ianthetamborilouumdedolongoeesguionamesa.
—Maselesmoramtãopertodamuralha,nãomoram?Seforimportantepara
você tê-losaqui,Tamlineeupoderíamosgarantiruma jornadaseguraparaeles.
—Nas horas que tínhamos passado juntas, eu contara a Ianthe sobre a aldeia e
sobreacasanaqualminhasirmãsagoraviviam,sobreIsaacHaleesobreTomas
Mandray. Não consegui mencionar Clare Beddor ou o que aconteceu com sua
família.
—Pormais que se contivesse— falei, lutando contra a lembrança daquela
garotahumanaedoqueeutinhafeitoaela—,minhairmãNesthadetestaseutipo.
—Nossotipo—corrigiuIanthe,baixinho.—Jáconversamossobreisso.
Euapenasassenti.
Maselacontinuou.
— Somos antigos e espertos, e gostamos de usar palavras como lâminas e
garras. Cada palavra de sua boca e cada frase formulada serão julgadas, e
possivelmente usadas contra você. — Como se para suavizar o aviso, Ianthe
acrescentou:—Mantenhaaguarda,Senhora.
Senhora.Um nome insano.Ninguém sabia comome chamar. Eu não nasci
Grã-Feérica.
TinhasidoFeita...ressuscitadaepresenteadacomessenovocorpopelossete
Grão-SenhoresdePrythian.EunãoeraaparceiradeTamlin,atéondesabia.Não
havialaçodeparceriaentrenós...ainda.
Sinceramente... Sinceramente, Ianthe, com os reluzentes cabelos dourados,
aqueles olhos azuis, as feições elegantes e o corpo esguio parecia mais com a
parceiradeTamlin.Suasemelhante.UmauniãocomTamlin—umGrão-Senhor
eumaGrã-Sacerdotisa—mandariaumamensagemclaradeforçaparaqualquer
possívelameaçaanossasterras.EgarantiriaopoderqueIanthesemdúvidaestava
determinadaareunirparasi.
Entre os Grão-Feéricos, as sacerdotisas supervisionavam as cerimônias e os
rituais, registravam as histórias e as lendas, e aconselhavam os senhores e as
senhorasemassuntosimportantesetriviais.EunãoviranenhumamagiadeIanthe,
mas,quandopergunteiaLucien,elefranziuatestaedissequeamagiadelasvinha
dascerimôniasepoderia serdefinitivamente letal casoas sacerdotisasquisessem.
Observei Ianthe durante o Solstício de Inverno em busca de sinais da magia,
reparandonaformacomoseposicionou,demodoqueosolnascentepreenchesse
seusbraçoserguidos,masnãoouveondaouestrondodepoder.DeIantheouda
terrasobnós.
NãosabiaoquerealmenteesperavadeIanthe—umadas12Grã-Sacerdotisas
que, juntas, governavam suas irmãs por todo o território de Prythian. Antiga,
celibatáriaesilenciosaeraatéondeiamminhasexpectativas,graçasàquelaslendas
mortais sussurradas, quando Tamlin anunciou que uma velha amiga em breve
ocupariaerenovariaocomplexoemruínasdotemploemnossasterras.MasIanthe
entraracomoumabrisaemnossacasanamanhãseguinte,eaquelasexpectativas
imediatamenteforamsufocadas.Principalmenteapartesobrecelibato.
Sacerdotisaspodiamsecasar,terfilhoseflertaroquantoquisessem.Seriauma
desonraaodomda fertilidadedoCaldeirão trancafiarseus instintos, sua inerente
magiafemininaparageraravida,foioqueIanthemedissecertavez.
Então,enquantoosseteGrão-SenhoresgovernavamPrythianemseustronos,
as12Grã-Sacerdotisasreinavamnosaltares,eosfilhosdelaseramtãopoderosose
respeitados quanto os filhos de qualquer senhor. E Ianthe, a mais nova Grã-
Sacerdotisaemtrêsséculos,permaneciasolteira,semfilhoseansiosaporsedeliciar
comosmelhoresmachosqueaterratemaoferecer.
Eucostumavameperguntarcomoerasertãolivreetãobem-resolvida.
QuandonãorespondiàsuavereprimendadeIanthe,elafalou:
—Jápensounacordasrosas?Branco?Rosa?Amarelo?Vermelho...
—Vermelhonão.
Eu odiava essa cor.Mais que qualquer coisa.O cabelo deAmarantha, todo
aquelesangue,oscortesnocorpodestruídodeClareBeddor,pregadoàparedeem
SobaMontanha...
—Umcastanho-avermelhadopoderiaficarbonitocomtodoesseverde...Mas
talvezsejaCorteOutonaldemais.—Denovo,odedotamborilandonamesa.
—Acorquevocêquiser.—Seeufossesinceracomigomesma,admitiriaque
Ianthe tinha se tornado umamuleta para mim.Mas ela parecia disposta a fazer
isso...aseimportarquandoeunãoconseguia.
MasassobrancelhasdeIantheseergueramlevemente.
Apesar de ser uma Grã-Sacerdotisa, Ianthe e a família haviam burlado os
horroresdeSobaMontanhaaofugir.Opai,umdosmaisfortesaliadosdeTamlin
entreaCortePrimaverileumcapitãodasforçasdoGrão-Senhor,tinhasentidoos
problemasseaproximandoedespachouIanthe,amãedelaeduasirmãsmaisnovas
paraVallahan, um dos incontáveis territórios feéricos do outro lado do oceano.
Durante cinquenta anos, elas viveram na corte estrangeira, demorando-se
enquantooprópriopovoeramassacradoeescravizado.
Ianthenãomencionaraissonemumavez.Eusabiaquenãodeviaperguntar.
—Cada elemento deste casamentomanda umamensagem não apenas para
Prythian,mas para omundo além—disse ela.Contive um suspiro.Eu sabia...
Ianthetinhameditoissoantes.—Seiquenãogostamuitodovestido.
Aquilo era dizer pouco. Eu odiava a monstruosidade de tule que Ianthe
escolhera. Tamlin também; embora tenha gargalhado até ficar rouco quando
mostrei a ele, na privacidade do quarto.MasTamlinme prometeu que, embora
achasse que o vestido era absurdo, a sacerdotisa sabia o que estava fazendo.Eu
queria revidar; odiava o fato de que, apesar deTamlin ter concordado comigo,
ficaradoladodela,mas...aquiloexigiamaisenergiadoquevaliaapena.
Ianthecontinuou:
—Maspassa amensagemcerta.Estive commembrosde cortes o suficiente
parasabercomoelesoperam.Confieemmimnisso.
—Euconfioemvocê—falei,egesticuleicomamãonadireçãodospapéis
diantedenós.—Sabecomofazeressascoisas,eunão.
PratatilintounospulsosdeIanthe,tãoparecidacomaspulseirasqueosFilhos
dosAbençoadosusavamdooutroladodamuralha.Euàsvezesmeperguntavase
aqueleshumanostolostinhamroubadoaideiadasGrãs-SacerdotisasdePrythian...
seforamsacerdotisascomoIanthequeespalharamtalloucuraentreoshumanos.
—Éummomentoimportanteparamimtambém—disseIanthe,comcautela,
ajustando a tiara sobre o capuz.Olhos azuis encararam osmeus.—Você e eu
somos tão parecidas... jovens, inexperientes diante desses... lobos. Sou grata a
você,eaTamlin,porpermitiremqueeurealizeacerimônia,quesejaconvidadaa
trabalharnestacorte,quesejapartedestacorte.AsoutrasGrãs-Sacerdotisasnão
gostammuitodemim,eeunãogostodelas,mas...—Ianthesacudiuacabeça,o
capuz oscilou com ela. — Juntos — murmurou —, nós três formamos uma
unidadeformidável.Quatro,secontarcomLucien.—Iantheriucomdeboche.—
Nãoqueelequeirateralgoavercomigo.
Umasentençasugestiva.
IanthecostumavaencontrardesculpasparamencionarLucien,paraencurralá-
lo emeventos, tocar-lheo cotoveloouoombro.Lucien ignorava tudo isso.Na
semanaanterior,eufinalmentepergunteiaLucienseIanthenutriasentimentospor
ele,eLucienapenasmeolhou,deuumgrunhidobaixinhoesaiubatendoospés.
Interpreteiissocomoumsim.
Mas uma parceria com Lucien seria quase tão benéfica quanto uma com
Tamlin: o braço direito do Grão-Senhor e o filho de outro Grão-Senhor...
Qualquercriadauniãoseriapoderosa,cobiçada.
—Sabequeé...difícilparaele,noquedizrespeitoàsfêmeas—ponderei,em
tomneutro.
—Elejáestevecommuitasfêmeasdesdeamortedaamante.
—Talvezsejadiferentecomvocê, talvezsignifiquealgoparaoqualLucien
não está pronto.—Gesticulei com os ombros, buscando as palavras certas.—
Talvezeleseafasteporcausadisso.
Ianthe ficou refletindo, e rezei para que ela tivesse engolido minha meia
mentira. A sacerdotisa era ambiciosa, inteligente, linda e ousada... mas eu não
achava que Lucien a perdoara, ou jamais perdoaria, por ter fugido durante o
reinado de Amarantha. Às vezes eu sinceramenteme perguntava semeu amigo
poderiarasgaropescoçodeIantheporisso.
Iantheassentiuporfim.
—Vocêestáaomenosanimadaparaocasamento?
Brinqueicomoaneldeesmeralda.
—Vaiserodiamaisfelizdeminhavida.
NodiaemqueTamlinmepediuemcasamento,eucertamentemesentidessa
forma.Choreidealegriaquandodissequesim,sim,milvezessim,efizamorcom
elenocampodefloresselvagensparaoqualTamlinmelevaraparaaocasião.
Iantheassentiu.
—AuniãoéabençoadapeloCaldeirão.Vocêtersobrevividoaoshorroresem
SobaMontanhaapenascomprovaisso.
Percebi o olhar de Ianthe então... na direção de minha mão esquerda, das
tatuagens.
Foidifícilnãoenfiaramãodebaixodamesa.
AtatuagemnatestadeIantheeradeumatintaazulcomoameia-noite,mas,de
alguma forma, combinava, destacava os vestidos femininos, as joias de prata
reluzente.Diferentementedabrutalidadedaminha.
—Poderíamoscomprarluvasparavocê—sugeriuIanthe,casualmente.
E isso mandaria outra mensagem; talvez para a pessoa que eu tão
desesperadamenteesperavaquetivesseesquecidodeminhaexistência.
—Vouconsiderar—concedi,comumsorrisofraco.
Foi um esforço evitar disparar antes que a hora terminasse e Ianthe fosse
suavemente para seu quarto particular de orações—umpresente deTamlin na
ocasiãodoretornodasacerdotisa—paraofereceroagradecimentodomeio-diaao
Caldeirão pela libertação de nossa terra, por meu triunfo e pelo domínio
asseguradodeTamlinsobreaquelapropriedade.
EuàsvezesdebatiasedeveriapedirqueIanthetambémrezassepormim.
Querezasseparaqueumdiaeuaprendesseaamarosvestidos,eas festas,e
meupapelcomoumanoivinhalindaecorada.
EujáestavanacamaquandoTamlinentrounoquarto,silenciosocomoumcervo
no bosque. Ergui a cabeça, me dirigindo à adaga que mantinha na mesa de
cabeceira,masrelaxeiquandoviosombroslargosealuzdevelasdocorredorque
delineavaapelebronzeadaeescondiaorostodeTamlinemsombra.
—Vocêestáacordada?—murmurouTamlin.Euconseguiaouviraexpressão
dorostofranzidoemsuavoz.Eleestiveranoescritóriodesdeojantar,organizando
apapeladaqueLuciensoltaranaescrivaninhadele.
— Não consegui dormir — falei, observando os músculos de Tamlin se
contraíremconformeelesedirigiaaobanheiroparaselimpar.Eutentavadormir
haviaumahora,mas,semprequefechavaosolhos,meucorpotravavaeasparedes
doquartopareciamsefechar.Chegueiaabrirasjanelas,mas...Aquelaseriauma
longanoite.
Eume recosteinos travesseiros,ouvindoos ruídosconstantes e eficientesde
Tamlinsearrumandoparadeitar.Eletinhaopróprioquarto,achavavitalqueeu
tivessemeuespaço.
Masdormiaalitodasasnoites.EuaindanãovisitaraacamadeTamlin,embora
meperguntassesenossanoitedenúpciasmudariaisso.Rezavaparaqueeunãome
debatesseatéacordarevomitassenoslençóisquandonãoreconhecesseolugarem
queestava,quandonãosoubesseseaescuridãoerapermanente.
Talvezfosseporissoqueaindanãotivéssemostocadonoassunto.
Tamlin saiu do banheiro, tirou a túnica e a camisa, e eu me apoiei nos
cotovelosparaobservarenquantoeleparavanabeiradacama.
Minha atenção foi imediatamente para os dedos fortes e habilidosos que
abriramacalçadeTamlin.
Elesoltouumgrunhidobaixodeaprovação,emordio lábio inferiorquando
Tamlin tirou a calça, junto da cueca, revelando toda a sua orgulhosa e grossa
extensão. Minha boca secou, e percorri seu tronco musculoso com o olhar,
passandopelopeitoral;então...
—Venhacá—grunhiuTamlin,avoztãoásperaqueaspalavraseramquase
indiscerníveis.
Afasteioscobertores,revelandomeucorpojánu,eelesibilou.
A expressão de Tamlin se tornou voraz quando eu engatinhei pela cama e
levanteiocorpo,meapoiandosobreosjoelhos.Segureiorostodelecomasmãos,
apeledouradaemolduradapordedosmarfimeespiraisnegras,eobeijei.
Tamlinmeencarouduranteobeijo,mesmoquandomeaproximei,segurando
umruídobaixoquandoeleroçouocorpoemminhabarriga.
AsmãoscalejadasdeTamlinroçarammeusquadris,minhacintura,eentãome
prenderamnolugarenquantoeleabaixavaacabeça,saboreandoobeijo.Otoque
desualínguacontraabordademeuslábiosfezcomqueeumeabrissetodapara
ele,eTamlinentrou,mereivindicando,memarcando.
Gemi,então,e inclineiacabeçapara trás, facilitandoseuacesso.Asmãosde
Tamlinsefecharamemminhacintura,depoissemoveram—umasegurouminha
bundaemconcha,aoutradeslizouentrenós.
Esse...essemomento,quandohaviaTamlineeu,enadaentrenossoscorpos...
Sualínguaraspouocéudeminhabocaquandopercorreuodedoparabaixo,
atémeucentro,egemi,eminhascostassearquearam.
—Feyre—disseelecontrameuslábios,emeunomeeracomoumaoração
mais fervorosa que qualquer uma que Ianthe tivesse oferecido ao Caldeirão
naquelamanhãescuradesolstício.
AlínguadeTamlinpercorreuminhabocadenovo,noritmododedoqueele
deslizaraparadentrodemim.Meuquadrilondulava, exigindomais,desejandoa
totalidade de Tamlin, e o grunhido dele reverberou em meu peito quando
acrescentoumaisumdedo.
Movi o corpo contra ele. Relâmpago percorreu minhas veias, e minha
concentração se voltou para os dedos de Tamlin, para sua boca, para o corpo
contraomeu.Apalmadesuamãopressionouofeixedenervosnoápicedeminhas
coxas,egemionomedelequandomeestilhacei.
Comacabeçaparatrás,engolioargélidodanoiteeentãofuideitadanacama,
gentilmente,comdelicadeza,comamor.
Tamlinergueuocorposobreomeu,e,então,abaixouacabeçaatémeuseio,e
foiprecisoapenasumapressãodosdentescontrameumamiloparaqueeucravasse
as unhas em suas costas, para que eu enganchasse as pernas a sua volta e ele se
acomodasseentreelas.Isso;euprecisavadisso.
Tamlinparoucomosbraçostrêmulosenquantoseguravaocorposobreomeu.
—Porfavor—gemi.
Eleapenasroçouoslábioscontrameumaxilar,meupescoço,minhaboca.
—Tamlin—implorei.Eleseguroumeuseiocomapalmadamão,roçando
meumamilocomopolegar.Solteiumgrito,e,então,eleseenterrouemmimcom
ummovimentopoderoso.
Porummomento,eunãoeranada,ninguém.
Entãonosunimos,doiscoraçõesbatendocomoum,eprometiamimmesma
que seria sempre dessa forma quando Tamlin se afastou alguns centímetros, os
músculos das costas se flexionando sobminhasmãos, e a seguir se impulsionou
novamentecontramim.Edenovoedenovo.
EumedesfaziadenovoedenovocontraocorpodeTamlinconformeelese
movia,conformemurmuravameunomeediziaquemeamava.Equandoaquele
relâmpagotomoucontademinhasveiasmaisumavez,deminhacabeça,quando
gemionomedeTamlin,oprazerdeleoencontrou.Agarrei-odurantecadaonda
detremor,saboreandoseupeso,asensaçãodesuapele,suaforça.
Porum tempo, apenasos sussurros denossas respirações tomaramcontado
quarto.
FranziatestaquandoTamlinseafastou,porfim...maselenãofoiparalonge.
Esticou-sedelado,apoiouacabeçanopunhoetraçoucírculosdistraídosemminha
barriga,subindoparaosseios.
—Desculpepormaiscedo—murmurouele.
—Tudobem—sussurrei.—Euentendo.
Nãoeramentira,mastampoucoeraexatamenteverdade.
OsdedosdeTamlindesceram,fazendoumcírculoemmeuumbigo.
—Você é... você é tudo paramim— disse Tamlin, com a voz rouca.—
Preciso...precisoque fiquebem.Precisosaberquenãopodemafetarvocê...não
podemmaisferi-la.
—Eusei.—Aquelesdedosdescerammais.Engoliemsecoefalei,denovo:
— Eu sei. — Afastei os cabelos de Tamlin do rosto. — Mas e você? Quem
mantémvocêseguro?
AbocadeTamlinsecontraiu.Comospoderesdevolta,elenãoprecisavaque
ninguémoprotegesse,queodefendesse.Euquaseconseguiaverpelosinvisíveisse
eriçandocomirritação—nãopormim,masaopensarnoqueelehaviasidofazia
apenasmeses: escravo dos caprichos deAmarantha, seu podermal passando de
umagotaemcomparaçãocomacascataqueagoraopercorria.Elerespirouparase
acalmar,e,então,inclinouocorpoebeijoumeucoração,bementreosseios.Era
respostasuficiente.
— Em breve—murmurou Tamlin, e aqueles dedos voltaram para minha
cintura.Euquasegemi.—Embrevevocêseráminhaesposa,eficarátudobem.
Deixaremostudoissoparatrás.
Arqueei as costas, desejando que amão deTamlin descesse, e ele deu uma
risada rouca. Não me ouvi falar enquanto me concentrava nos dedos que
obedeciammeucomandosilencioso.
—Comotodosmechamarãoentão?
Tamlinroçoumeuumbigoquandoseinclinouparabaixo,sugandoapontade
meuseioparadentrodaboca.
—Hm?—disseele,eotremorcontrameumamilomefezcontorcerocorpo.
—Todosvãomechamarde“esposadeTamlin”?Euganhoum...título?
Eleergueuacabeçaportemposuficienteparameolhar.
—Vocêquerumtítulo?
Antesqueeupudesseresponder,Tamlinmordiscoumeuseioedepoislambeu
opequenomachucado;lambeuconformeosdedosfinalmentemergulhavamentre
minhaspernas.Traçoucírculospreguiçososeprovocantes.
—Não—respondi,comumarquejo.—Masnãoqueroqueaspessoas...—
QueoCaldeirãomefervesse,aquelesmalditosdedos...—Nãoseiseaguentoque
mechamemdeGrã-Senhora.
OsdedosdeTamlindeslizaramparadentrodemimdenovo,eelegrunhiuem
aprovaçãodiantedaumidadeentreminhascoxas,quevinhatantodemimquanto
dele.
—Nãovão—disseTamlincontraminhapele,posicionando-sesobremimde
novoedeslizandopormeucorpo,deixandobeijosconformeseguia.—Nãoexiste
algocomoumaGrã-Senhora.
Tamlin agarrou minhas coxas para abrir minhas pernas e abaixou a boca;
então...
—ComoassimnãoexistealgocomoumaGrã-Senhora?
Ocalor,otoque...tudoparou.
Tamlinergueuoolhardeentreminhaspernas,equasealcanceioclímaxaovê-
lo. Mas o que ele tinha dito, o que deixara implícito... Ele beijou o interior de
minhacoxa.
—Grão-Senhoresapenastomamesposas.Consortes.JamaishouveumaGrã-
Senhora.
—MasamãedeLucien...
—É Senhora daCorteOutonal.NãoGrã-Senhora. Exatamente comovocê
seráSenhoradaCortePrimaveril.Elesvãosedirigiravocêcomosedirigemaela.
Respeitarãovocêcomoarespeitam.—Tamlinvoltouoolharparaoqueestavaa
centímetrosdesuaboca.
—Então,amãedeLucien...
—Nãoqueroouvironomedeoutromachoemseuslábiosagora—grunhiu,
eabaixouabocaatémim.
Comoprimeirotoquedesualíngua,pareidediscutir.
A culpa deTamlin devia tê-lo atingido com força, porque, embora ele tivesse
saído no dia seguinte, Lucien me esperava com uma oferta para inspecionar o
progressonaaldeiapróxima.
Eu não visitava a aldeia fazia bem mais de um mês— não conseguia me
lembrardaúltimavezquedeixaraapropriedade.Algunsdosaldeõestinhamsido
convidadosparanossacomemoraçãodoSolstíciodeInverno,maseumalconsegui
fazermaisquecumprimentá-los,graçasaotamanhodamultidão.
Os cavalos já estavam selados do lado de fora dos estábulos, e contei as
sentinelaspertodosportõesmaisafastados(quatro),decadaladodacasa(duasem
cadaesquina),eaquelasqueagoraestavamnojardimpeloqualeuacabaradesair
(duas).Emboranenhumativessefalado,seusolhossefixavamemmim.
Lucien fezmençãodemontar amalhadaéguacinzenta,masmecoloqueino
caminhodele.
— Você caiu da porcaria do cavalo? — sibilei, empurrando o ombro de
Lucien.
Elechegouacambalearpara trás,aéguarelinchou,alarmada,episqueipara
minha mão estendida. Não me permiti contemplar o que os guardas tinham
pensadodaquilo.AntesqueLucienconseguissedizerqualquercoisa,indaguei:
—Porquementiusobreosnaga?
Luciencruzouosbraços,oolhodemetalsesemicerrou,eofeéricoafastouos
cabelosruivosdorosto.
Preciseiafastaroolharporummomento.
OscabelosdeAmaranthaerammaisescuros...eorostodelaeradeumbranco
creme,nadaparecidocomodouradodesoldapeledeLucien.
Olhei para o estábulo atrás de Lucien em vez de para ele. Pelo menos era
grande,aberto,oscavalariçosestavamagoraemoutraala.Eucostumavanãome
incomodar por estar do lado de dentro, o que acontecia na maioria das vezes
quando estava entediada o bastante para visitar os cavalos abrigados ali. Havia
muito espaço para eu me mover, para fugir. As paredes não pareciam...
permanentesdemais.
Não era como a cozinha, baixa demais, com paredes espessas demais, com
janelas que não eram suficientemente grandes para escapar. Não era como o
escritório,semluznaturalobastanteesemsaídasfáceis.Eutinhaumalongalista
nacabeçadoslugaresqueeuconseguiaequenãoconseguiasuportarnamansão,
organizadosprecisamentedeacordocomoquantofaziammeucorpotravaresuar.
— Eu nãomenti— disse Lucien, contendo-se.— Eu tecnicamente caí da
égua.—Eledeuumtapinhanoflancodamontaria.—Depoisqueumdosnaga
mederruboudela.
Umaformatãofeéricadepensar,dementir.
—Porquê?
Lucienfechouaboca.
—Porquê?
Elesimplesmenteseviroudevoltaparaaéguapaciente.Masviaexpressãono
rostodeLucien,a...piedadeemseuolhar.
Disparei:
—Podemosirandandoemvezdisso?
Lucienseviroudevagar.
—São4,5quilômetros.
— E você poderia correr isso em poucos minutos. Quero ver se consigo
acompanhar.
OolhodemetaldeLuciensevirou,eeusoubeoqueelediriaantesqueabrisse
aboca.
— Esqueça — falei, seguindo para minha égua branca, um animal de
temperamentodócil,masumpoucopreguiçosoemimado.Luciennãotentoume
convencerdocontrário,eficouemsilêncioconformecavalgamosdapropriedade
para a estrada da floresta. A primavera, como sempre, estava no auge, a brisa,
carregada com o cheiro de lilases; a vegetação rasteira que ladeava a trilha
farfalhava com vida. Não havia sinal do Bogge, dos naga ou de qualquer das
criaturasquecertavezlançaramtantaquietudesobreobosque.
EudisseaLucien,porfim:
—Nãoquerosuaporcariadepena.
—Nãoépena.Tamlindissequeeunãodeveria contar avocê...—Lucien
encolheulevementeocorpo.
—Nãosoufeitadevidro.Seosnagaatacaramvocê,mereçosaber...
—TamlinémeuGrão-Senhor.Eledáumaordem,eeuobedeço.
—Vocênãotinhaessamentalidadequandoseesquivoudoscomandosdelee
memandouparaoSuriel.—Eeuquasemorri.
— Eu estava desesperado na época. Todos estávamos. Mas agora... Agora
precisamos de ordem, Feyre. Precisamos de regras e hierarquia e ordem se
queremosterumachancedereconstruirtudo.Portanto,suaspalavrassãoordens.
Souoprimeiroparaoqualosdemaisolham,eudouoexemplo.Nãomepeçapara
arriscaraestabilidadedestacorteaoirlongedemais.Nãoagora.Tamlinlhedáo
máximodeliberdadequeconsegue.
Respirei fundo para me acalmar, para preencher meus pulmões contraídos
demais.
— Apesar de se recusar tanto a interagir com Ianthe, você certamente soa
muitocomoela.
Luciensibilou.
— Não tem ideia de como é difícil para ele sequer lhe deixar sair da
propriedadedamansão.Estásobmaispressãodoquevocêpercebe.
—Sei exatamentequantapressãoTamlin sofre.Enãopercebique tinhame
tornadoprisioneira.
—Vocênão é...—Lucien trincouomaxilar.—Não é assim, e você sabe
disso.
— Ele não tinha problemas em me deixar caçar e sair sozinha quando era
apenashumana.Quandoasfronteiraserammuitomenosseguras.
— Ele não gostava tanto de você quanto gosta agora. E depois do que
aconteceuSobaMontanha...—Aspalavrasressoaramemminhamente,juntode
meusmúsculostensosdemais.—Eleestáapavorado.Apavoradopelapossibilidade
de vê-la nas mãos dos inimigos. E eles também sabem disso, sabem que para
controlarTamlinsóprecisamlevarvocê.
—Achaquenãoseidisso?Maseleesperamesmoqueeupasseorestodavida
naquelamansão,supervisionandocriadoseusandoroupasbonitas?
Lucienobservouaflorestasemprejovem.
— Não é isso que todas as mulheres humanas desejam? Um lindo senhor
feéricoparasecasar,queasenchaderiquezaspelorestodasvidas?
Segureiasrédeascomtantaforçaqueaéguadeuumaguinadacomacabeça.
—Bomsaberquevocêaindaéumcanalha,Lucien.
Seuolhodemetalsesemicerrou.
— Tamlin é um Grão-Senhor. Você será sua esposa. Há tradições e
expectativas que você deve atender.Nós devemos atender, para apresentar uma
fachadasólida,queserecuperoudeAmaranthaeestádispostaadestruirqualquer
inimigoquetentetomaroqueénossodenovo.—Ianthemederaquaseomesmo
discursonodiaanterior.—OTributoaconteceráembreve—continuouLucien,
sacudindoacabeça.—OprimeiroqueTamlinconvocadesde...amaldiçãodela.
—Lucien estremeceu quase imperceptivelmente.—Ele deu a nosso povo três
mesespara colocarosnegócios emordem, equeria esperar atéo iníciodonovo
ano,mas,nomêsquevem,TamlinexigiráoTributo.Ianthedisseaelequeestána
hora,queopovoestápronto.
Lucienesperou,eeuquiscuspirnele,porqueelesabia...elesabiaqueeunão
sabiaoqueeraaquilo,masqueriaqueeuadmitisse.
—Meexplique—falei,inexpressiva.
—Duasvezesporano,emgeralpertodosSolstíciosdeVerãoedeInverno,
cadamembrodaCortePrimaveril, seja eleGrão-Feéricoouum feérico inferior,
devepagarumTributo,dependendode sua rendae status.É comomantemosa
propriedade, como pagamos por coisas como sentinelas e comida e criados. Em
troca,Tamlinosprotege,governa,ajudaquandopode.Éumtomaládácá.Este
ano,TamlinadiouoTributoemummês,apenasparagarantiraopovomaistempo
para reunir fundos, para comemorar. Mas, em breve, emissários de todos os
grupos, todas as aldeias, ou dos clãs, chegarão para pagar seusTributos.Como
esposa de Tamlin, será esperado que você se sente com ele. E se não puderem
pagar...SeráesperadoquevocêpermaneçasentadaenquantoTamlindistribuios
julgamentos. A coisa pode ficar feia. Voumonitorar quem aparece e quem não
aparece, quem não paga. E depois, se falharem em pagar o Tributo dentro do
períododetrêsdiasqueTamlinofereceráoficialmente,seráesperadoqueelecace
os súditos. As próprias Grã-Sacerdotisas, Ianthe, concedem a Tamlin direitos
sagradosdecaçaparaisso.
Horrível... brutal. Era o que eu queria dizer, mas o olhar que Lucien me
lançava...Euestavacheiadeaspessoasmejulgarem.
— Então, dê tempo a ele, Feyre — disse Lucien. — Vamos passar pelo
casamento, e, depois, peloTributonopróximomês, e, então... entãoveremoso
quefazercomoresto.
—Eu dei tempo a ele— falei.—Não posso ficar entocada em casa para
sempre.
—Tamlin sabe disso... ele não diz, mas sabe. Confie em mim. Você deve
perdoá-loseomassacredafamíliadeTamlinoimpededesertão...liberalcomsua
segurança. Ele perdeu aqueles com quem se importava vezes demais. Todos
perdemos.
Cadapalavraeracomocombustívelacrescentadoaocaldeirãofervilhandoem
meuestômago.
—NãoqueromecasarcomumGrão-Senhor.Sóqueromecasarcomele.
—Umnãoexistesemooutro.Eleéoqueé.Sempre,sempretentaráprotegê-
la,gostedissoounão.Fale comTamlina respeito, conversedeverdade,Feyre.
Vocêvaientender.—Nossosolharesseencontraram.Ummúsculosecontraiuno
maxilardeLucien.—Nãomepeçaparaescolher.
—Masvocêestádeliberadamentenãomecontandocoisas.
—EleémeuGrão-Senhor.Apalavradeleéa lei.Temosessaúnicachance,
Feyre,denos reconstruiredeixaromundocomodeveria ser.Nãovoucomeçar
essenovomundotraindoaconfiançadeTamlin.Mesmosevocê...
—Mesmoseeuoquê?
OrostodeLucienempalideceu,eeleacariciouacrinadacordeteiadearanha
daégua.
—Fuiforçadoaassistirenquantomeupaiassassinavaafêmeaqueeuamava.
Meusirmãosmeobrigaramaassistir.
MeucoraçãoseapertouporLucien...peladorqueoassombrava.
—Não houve feitiço mágico, nenhum milagre para trazê-la de volta. Não
haviaGrão-Senhoresreunidospararessuscitá-la.Observei,eelamorreu,ejamais
esquecereiaquelemomentoemqueouviocoraçãodelaparardebater.
Meusolhosardiam.
—Tamlin conseguiu aquilo que eu não consegui—disseLucien baixinho,
comarespiraçãoirregular.—Todosouvimosseupescoçosequebrar.Masvocê
pôdevoltar.EduvidoqueTamlinalgumdiaseesqueçadaquelesomtambém.E
fará tudodentrode seu alcance paraprotegê-la daquele perigodenovo,mesmo
issoquesignifiqueguardarsegredos,mesmoquesignifiqueseguirregrasdasquais
vocênãogoste.Nisso,Tamlin não será flexível.Então, nãopeçaque ele o seja,
aindanão.
Eunãotinhapalavrasnamente,nocoração.DartempoaTamlin,deixarque
eleseajustasse...Eraomínimoqueeupodiafazer.
Os ruídos da construção se sobrepuseram ao canto dos pássaros da floresta
muito antes de colocarmos os pés na aldeia: martelos em pregos, pessoas
disparandoordens,gadomugindo.
Saímos do bosque e encontramos uma aldeia sendo reconstruída: lindas e
pequenas construções de pedra e madeira, estruturas improvisadas cobrindo os
suprimentoseogado...Asúnicascoisasquepareciamtotalmenteterminadaseram
ograndepoçonocentrodacidadeeoquepareciaserumataverna.
Àsvezes, anormalidadedePrythian, as semelhançasextremasentre ela e as
terrasmortais,aindamesurpreendia.Eupodiamuitobemestarnaminhaaldeia,
em casa. Uma aldeia muito melhor e mais nova, mas a disposição, os pontos
principais...Todososmesmos.
E me senti tão deslocada quanto nas terras mortais quando Lucien e eu
cavalgamos para o coração do caos e todos pararam de trabalhar ou vender ou
perambularparanosolhar.
Olharparamim.
Comoumaondadesilêncio,ossonsdasatividadesmorreramatémesmonos
cantosmaisafastadosdaaldeia.
—FeyreQuebradoradaMaldição—sussurroualguém.
Ora,esseeraumnovonome.
Euestavagratapelaslongasmangasdaminharoupadecavalgarepelasluvas
combinando,queeucolocaraantesdeentrarmosnoslimitesdaaldeia.
LucienaproximouaéguadeummachoGrão-Feéricoquepareciaencarregado
deconstruirumacasanoentornodopoço.
—Viemosverseprecisamdealgumaajuda—disseele,altoosuficientepara
quetodosouvissem.—Nossosserviçossãoseuspelodia.
Ofeéricoempalideceu.
—Estou grato,meu senhor,mas nenhuma ajuda é necessária.—Os olhos
delemepercorreram,arregalando-se.—Adívidaestápaga.
Osuornaspalmasdeminhasmãospareceumaisespesso,maisquente.Minha
éguabateucomocasconaruadeterravermelha.
—Porfavor—disseLucien,fazendoumareverênciagraciosacomacabeça.
—Oesforçoparareconstruirénossofardotambém.Seriaumahonra.
Omachosacudiuacabeça.
—Adívidaestápaga.
Eassimfoiemtodososlugaresemqueparamosnaaldeia:Luciendesmontava
epediaparaajudar,erecebiarejeiçõeseducadasereverentes.
Emvinteminutos,jáestávamoscavalgandodevoltaparaassombraseparao
farfalhardobosque.
—Elepermitiuquevocêmetrouxessehoje—comecei,comavozrouca—
paraqueeudeixassedepedirparaajudarareconstruir?
—Não.Deciditrazê-laeumesmo.Exatamenteporessemotivo.Nãoquerem
ouprecisamdesuaajuda.Suapresençaéumadistraçãoeumlembretedoqueeles
passaram.
Encolhiocorpo.
—MasnãoestavamSobaMontanha.Nãoreconhecinenhumdeles.
Lucienestremeceu.
— Não. Amarantha tinha... campos para eles. Os nobres e os feéricos
abastados podiam morar Sob a Montanha. Mas, se o povo de uma corte não
estivessetrabalhandoparatrazermercadoriaecomida,eratrancafiadoemcampos
emumarededetúneisabaixodaMontanha.Milharesdeles,entulhadosemcâmaras
etúneissemluz,semar.Porcinquentaanos.
—Ninguémjamaisdisse...
—Eraproibidofalarnisso.Algunsdelesficaramloucos,começaramapredar
os demais quando Amarantha se esquecia de ordenar que os guardas os
alimentassem.Algunsformarambandosquepercorriamoscamposefaziam...—
Lucien esfregou a testa com o polegar e o indicador. — Eles fizeram coisas
terríveis.Agora,estãotentandoselembrardecomoésernormal...decomoviver.
Bile queimou minha garganta. Mas esse casamento... sim, talvez fosse o
começodessacura.
Mesmo assim, um cobertor parecia sufocar meus sentidos, abafando som,
gosto,sensação.
—Euseiquevocêqueriaajudar—disseLucien.—Sintomuito.
Eutambémsentia.
Aimensidãodeminhaagorainfinitaexistênciaseescancaravadiantedemim.
Deixeiquemeengolisseporcompleto.
Algunsdiasantesdacerimôniadecasamento,convidadoscomeçaramachegar,e
fiqueigrataporquejamaisseriaGrã-Senhora, jamaisseria igualaTamlinnoque
diziarespeitoaresponsabilidadeepoder.
Umapequenaeesquecidapartedemimrugiaegritavaparatudoisso,mas...
Jantarapósjantar,almoçosepiqueniquesecaçadas.
Fuiapresentadaepassadaadiante,emeurostodoíadevidoaosorrisoqueeu
estampavaalidiaenoite.Comeceiaansiarpelocasamentoapenasporsaberque,
depoisqueterminasse,nãoprecisariaseragradáveloufalarcomninguémoufazer
nadaporumasemana.Ummês.Umano.
Tamlin suportava tudo isso—daquele jeito silencioso, quase feral— eme
diziadiversasvezesqueasfestaseramumaformademeapresentaràcorte,adar
aopovoalgoquecelebrar.Elemeassegurouqueodiavaasreuniõestantoquanto
eu, e que Lucien era o único que se divertia de verdade, mas... peguei Tamlin
sorrindoalgumasvezes.E,sinceramente,elemerecia,tinhaconquistadoaquilo.E
aquelaspessoasmereciamtambém.
Então, suportei, agarrando-me a Ianthe quando Tamlin não estava ao meu
ladoou, se eles estivessem juntos,permitindoqueosdois levassemas conversas
enquantoeufaziaacontagemregressivadashorasatéquetodosfossemembora.
— Você deveria ir para cama — disse Ianthe, enquanto nós duas
observávamos os festejadores reunidos que lotavam o salão. Tinha visto Ianthe
perto das portas abertas havia trinta minutos, e fiquei grata pela desculpa para
deixarogrupinhodeamigosdeTamlincomosquaiseuestavapresaconversando.
Ou não conversando. Ou eles me encaravam descaradamente, ou tentavam
desesperadamentepensaremassuntosemcomum.Caça,namaiorpartedotempo.
Aconversacostumavaemperrardepoisdetrêsminutos.
—Tenhomaisumahoraantesdeprecisardormir—comentei.Iantheusavao
vestidopálidodesempre,comocapuz levantadoeaquela tiaradeprata,apedra
azulnoalto.
MachosGrão-Feéricosaolhavamconformepassavamcasualmentepornós,ao
ladodaparedecompaineldemadeirapróximaàsportasprincipais,comespantoou
luxúria,ou talvezambos,evezououtraosolharesrecaíamsobremim.Eusabia
queosolhosarregaladosnãotinhamnadaavercommeuvestidoverde-escuroou
com o rosto bonito (relativamente insípido em comparação com o de Ianthe).
Tentavaignorá-los.
—Estáprontaparaamanhã?Temalgoqueeupossafazerporvocê?—Ianthe
bebericou da taça de vinho branco espumante.O vestido que eu usava naquela
noitetinhasidoumpresentedela,naverdade,verdecomoaCortePrimaveril,foi
como ela chamou. Alis apenas ficou parada enquanto eu me vestia,
perturbadoramente silenciosa, deixando que Ianthe reivindicasse suas tarefas
costumeiras.
—Estoubem.—Eu jácontemplaraoquanto seriapatético sepedisseaela
que ficasse permanentemente depois do casamento. Se eu revelasse que temia o
momentoemqueIanthemedeixassecomaquelacorte,comaquelaspessoas,atéo
Nynsar,umacelebraçãomenordaprimaveraquecomemoravaofimdasemeadura
doscamposeemquedistribuíamasprimeirasmudasdefloresdaestação.Mesese
mesesnofuturo.AtémesmodeixarqueIanthemorassenoprópriotemploparecia
longedemais.
Doismachosque jáhaviampassadopornósduasvezes finalmentereuniram
coragemparaseaproximar...dela.
Eumeencosteiàparede,amadeirapressionadacontraascostas,enquantoeles
cercavamIanthe.Bonitos,daformacomoamaioriadelesébonita,comarmasque
osmarcavamcomodois dosGrão-Feéricos queguardavamas terras deTamlin.
TalvezatémesmotrabalhassemparaopaideIanthe.
—Sacerdotisa—saudouum,fazendoumareverênciaintensa.
Àquelaaltura,eutinhameacostumadoàspessoasbeijandoosanéisdepratade
Ianthee implorandopororaçõesparasimesmas,paraas famíliasouosamantes.
Iantherecebiatudoissosemqueaquelelindorostosealterasseinfimamente.
—Bron—disseelaparaofeéricoàesquerda,altoedecabeloscastanhos.—
E Hart — falou Ianthe para aquele à direita, de cabelos pretos e com uma
compleiçãoumpoucomaisfortequeadoamigo.Iantheinclinouoslábiosdeum
jeito tímido e bonito que eu já aprendera a significar que ela estava caçando
companhiaparaanoite.—Nãovejovocêsdoisencrenqueirosháumtempo.
Eles se esquivaram do comentário com flertes e, então, os dois machos
começaramaolharnaminhadireção.
—Ah—disse Ianthe, como capuz semovendo conforme ela se virou.—
Permitam-me apresentar Lady Feyre. — Ianthe abaixou o olhar, inclinando a
cabeçaemumacenoprofundo.—SalvadoradePrythian.
— Nós sabemos — disse Hart, baixinho, fazendo uma reverência, com o
amigo,naalturadacintura.—EstávamosSobaMontanhacomvocê.
Conseguiinclinaracabeçaumpoucoquandoelesesticaramocorpo.
—Parabénsporamanhã—disseBron,sorrindo.—Umfinaladequado,não?
Umfinaladequadoseriaeuemumacova,ardendonoinferno.
—OCaldeirão—disseIanthe—abençoouatodosnóscomtalunião.—Os
machosmurmuraramemconcordância,fazendoreverênciascomacabeçadenovo.
Euignorei.
— Preciso dizer — continuou Bron. — Aquela prova, com o Verme de
Middengard?Brilhante.Umadascoisasmaisbrilhantesquejávi.
Fiz um esforço para não empurrar o corpo todo contra a parede, para não
pensarno fedordaquela lama,no ruídoaquosodaquelesdentesdilaceradoresde
carneavançandocontramim.
—Obrigada.
—Ah,pareceuterrível—falouIanthe,aproximando-seaorepararqueeunão
estavamaiscomaquelesorrisoinexpressivo.Elaapoiouamãonomeubraço.—
Talbravuraéinspiradora.
Fiquei grata, tão pateticamente grata pelo toque tranquilizador. Pelo aperto.
EusabiaqueIantheinspirariahordasdejovensfêmeasfeéricasasejuntaremasua
ordem; não para adorar àMãe e ao Caldeirão, mas para aprender como Ianthe
vivia,comoelapodiabrilhartãoforteeseamar,seguirdeummachoparaoutro,
comoseelesfossempratosemumbanquete.
—Faltamosà caçanooutrodia—comentouHart, casualmente.—Então,
nãotivemosachancedeverseustalentosdeperto,masachoqueoGrão-Senhor
nosalocarápertodapropriedadenomêsquevem;seriaumahonracavalgarcom
você.
Tamlinnãopermitiriaqueeusaíssecomelesnememmilanos.Eeunãotinha
vontadedecontaraosdoisquenãotinhainteresseemjamaisvoltarausarumarco
e uma flecha, ou a caçar qualquer coisa. A caçada para a qual eu tinha sido
arrastadadoisdiasantesforaquasedemais.Mesmocomtodosmeobservando,não
saqueiumaflecha.
Aindaestavamesperandoumaresposta;então,eudisse:
—Ahonraseráminha.
— Meu pai colocou vocês dois de serviço amanhã, ou participarão da
cerimônia?—falouIanthe,pousandoamãodistraidamentesobreobraçodeBron.
Eraexatamenteporissoqueeuaprocuravanoseventos.
Bron respondeu, mas os olhos de Hart permaneceram em mim... em meus
braçoscruzados.Emmeusdedostatuados.Elefalou:
—TevealgumanotíciadoGrão-Senhor?
Iantheenrijeceuocorpo,eBron imediatamentedisparouoolharparaminha
peletatuada.
—Não—respondi,encarandoHart.
—EleprovavelmenteestáassustadodemaisagoraqueTamlin recuperouos
poderes.
—EntãovocênãoconheceRhysandnemumpouco.
Hartpiscou,eatémesmoIanthesemanteveemsilêncio.Eraprovavelmentea
coisamaisagressivaqueeutinhaditoaalguémduranteessasfestas.
—Bem,nóscuidaremosdeleseforpreciso—disseHart,mudandoopesodo
corpo entre os pés conforme eu continuei a encará-lo, nãome incomodando em
suavizaraexpressão.
Ianthedisseaele,amim:
—As Grã-Sacerdotisas estão cuidando disso. Não permitiremos que nossa
salvadorasejatratadatãomal.
Obriguei a expressão do rosto a ficar neutra. Era por isso que Tamlin
inicialmente buscara Ianthe? Para fazer uma aliança? Meu peito se apertou um
pouco.Eumevolteiparaela.
—Vousubir.DigaaTamlinqueovereiamanhã.
Amanhã, porque aquela noite, Ianthe dissera, passaríamos separados.
Conformerezavamsuasantigastradições.
Ianthe beijou minha bochecha, e seu capuz me protegeu do salão por um
segundo.
—Estouasuadisposição,Senhora.Mandechamarseprecisardealgo.
Eunãomandaria,masassenti.
Conforme saí do salão, olhei para a frente, onde Tamlin e Lucien estavam
cercadosporumcírculodemachosefêmeasGrão-Feéricos.Talveznãofossemtão
refinados quanto alguns dos outros, mas... Tinham a aparência de pessoas que
estavamjuntashaviamuitotempo,quetinhamlutadoaoladoumasdasoutras.Os
amigosdeTamlin.Elemeapresentaraaogrupo,eimediatamenteesqueciosnomes
deles.Nãotenteiaprenderdenovo.
Tamlininclinouacabeçaparatrásegargalhou,eosdemaisgargalhavamcom
ele.
Saí antes queTamlin pudesseme ver, passando sutilmente pelos corredores
lotadosatéestarnoandarsuperiorescuroevaziodaalaresidencial.
Sozinhanoquarto, percebi quenão conseguiame lembrar daúltimavez em
quetinharidodeverdade.
O teto se abaixava, os espinhos grandes e cegos estavam tão quentes que eu
conseguia ver as ondas de calor emanando deles, mesmo de onde estava
acorrentadaaochão.Acorrentada,porqueeraanalfabetaenãopodialeracharada
escritanaparede,eAmaranthaestavafelizpormedeixarserempalada.
Maisemaisperto.Ninguémviriamesalvardessamorteterrível.
Doeria.Doeria e seria lenta, e eu choraria— talvez até chorasse porminha
mãe,que jamais se importaramesmocomigo.Talvezeu implorasseparaqueela
mesalvasse...
Braços e pernas se debatiam quando acordei com um susto na cama, puxando
correntesinvisíveis.
Eu teria corrido para o banheiro casomeus braços e pernas não tremessem
tanto,casoconseguisserespirar,respirar,respirar...
Verifiqueioquarto,estremecendo.Real...aquiloerareal.Oshorrores,aqueles
erampesadelos.Eutinhaescapado;estavaviva;estavaasalvo.
Umabrisanoturna flutuoupelas janelas abertas, embaraçandomeus cabelos,
secandoosuorfrioemmim.Océuescurochamava,asestrelasestavamtãofracase
pequenascomoflocosdegelo.
BronfizeraparecerqueassistiraomeuencontrocomoVermedeMiddengard
tinha sido uma partida esportiva. Como se eu não estivesse a um erro de ser
devoradaporinteiroetermeusossoscuspidos.
Salvadoraebobadacorte,pelovisto.
Saícambaleandoatéa janelaabertaeaabrimais,deixandominhavista livre
paraaescuridãosalpicadadeestrelas.
Apoieiacabeçacontraaparede,aproveitandoaspedrasgeladas.
Emalgumashoras,estariacasada.Teriameufinalfeliz,merecesseeuounão.
Masaquela terra, aquelepovo...eles também teriam seu final feliz.Osprimeiros
poucospassosnadireçãodacura.Nadireçãodapaz.Entãoascoisasficariambem.
Entãoeuficariabem.
Euodiavamesmo,deverdade,meuvestidodecasamento.
Eraumamonstruosidadedetuleechiffoneorganza,tãodiferentedosvestidos
soltosqueeucostumavausar:ocorpeteerajusto,odecotesecurvavaparadestacar
meus seios, e as saias... as saias eram como uma tenda reluzente, praticamente
flutuandoaoarperfumadodaprimavera.
Não era à toa queTamlin tinha rido.AtémesmoAlis, enquantome vestia,
murmurara consigo mesma, mas não dissera nada. Mais provavelmente porque
Ianthepessoalmenteescolheraovestidoparacomplementarqualquerquefosseo
contoqueelatecerianaqueledia—alendaqueIantheproclamariaaomundo.
Eu poderia ter lidado com tudo isso, não fosse pelas mangas bufantes, tão
grandes que quase conseguia enxergá-las brilhando comminha visão periférica.
Meus cabelos tinham sido enrolados, metade para cima, metade para baixo,
entrelaçadoscompérolasejoiaseoCaldeirãosabiaoquemais,eforaprecisotodo
meuautocontroleparaevitarencolherocorpodiantedoespelhoantesdedesceras
escadasespiraladasatéosalãoprincipal.Meuvestidosibilavae farfalhavaacada
passo.
Alémdasportas fechadasdopátio,ondeparei,o jardim tinha sidodecorado
comfitase lanternasemtonsdecreme, rosadoeazul-celeste.Trezentascadeiras
estavamreunidasnopátiomaior,cadaassentoeraocupadopelacortedeTamlin.
Desciocorredorprincipal,suportandoosolhares,antesdechegaraoaltarnaoutra
ponta...ondeTamlinestariaesperando.
Então, Ianthesancionariaeabençoarianossaunião logoantesdopôrdosol,
representando todas as 12 Grã-Sacerdotisas. Ianthe indicara que elas haviam
insistindoparaestarpresentes—mas,porqualquerquefosseoatodeesperteza,
Iantheconseguiramanterasoutras11longe.Talvezparareivindicaraatençãopara
si, talvezparamepouparde ser importunadapelasoutras.Eunão saberiadizer.
Talvezosdois.
Minha boca ficou seca como papel quandoAlis afofou a cauda brilhante do
vestidoàsombradasportasdojardim.Sedaeorganzafarfalharamesuspiraram,e
segureiobuquêpálidonasmãosenluvadas,quasepartindooscaules.
Luvas de seda na altura dos cotovelos... para esconder asmarcas. Ianthe as
entregarapessoalmentenaquelamanhã,emumacaixaforradadeveludo.
—Nãofiquenervosa—disseAlis,comapeledecascadeárvoreexuberantee
rosadasobaluzdocrepúsculo,deumdouradomel.
—Nãoestou—disparei.
— Está se mexendo como meu sobrinho mais novo durante um corte de
cabelo.— Ela terminou de arrumar meu vestido e enxotou alguns criados que
tinhamidomeespiarantesdacerimônia.Fingiquenãoosvi,bemcomoamultidão
reluzente emoldurada pelo pôr do sol, que estava sentada no pátio adiante, e
brinqueicomalgumgrãoinvisíveldepoeiranassaias.
—Vocêestá linda—disseAlis,baixinho.Eutinhaquasecertezadequeela
pensavaomesmodovestidoqueeu,masacreditei.
—Obrigada.
—Evocêpareceacaminhodoprópriofuneral.
Estampei um sorriso no rosto. Alis revirou os olhos. Mas me cutucou na
direçãodas portas quando estas se abriram comalgumvento imortal e se ouviu
umamúsicaalegre.
—Teráterminadomaisrápidodoquevocêconseguepiscar—prometeuela,
ecuidadosamentemeempurrouparaaúltimaluzdosol.
Trezentaspessoasficaramdepéeseviraramemminhadireção.
Desdeminhaúltimatarefanãohaviatantagentereunidaparameassistir,me
julgar.TodascomadornostãosemelhantesaosquetinhamusadoSobaMontanha.
Osrostoseramborrões,sefundiam.
Alis tossiu das sombras da casa e lembrei de começar a andar, a olhar na
direçãodoaltar...
ParaTamlin.
Perdi o fôlego, e foi difícil continuar descendo as escadas, evitar que meus
joelhos cedessem. Ele estavamaravilhoso em uma túnica verde e dourada, uma
coroa de folhas secas de louro reluzia em sua cabeça. Tamlin suavizara o
encantamento sobre si, permitira que aquela luz e a beleza imortais brilhassem...
pormim.
Minhavisãoseestreitousobreele,meuGrão-Senhor,osolhosarregaladosde
Tamlinreluziamconformeeupassavanagramafofa,compétalasderosabrancas
espalhadassobreela...
Epétalasvermelhas.
Como gotas de sangue entre as brancas, as pétalas vermelhas tinham sido
lançadasnocaminhoadiante.
Eume obriguei a olhar para cima, paraTamlin, que estava com os ombros
esticados,acabeçaerguida.
Tão ignoranteàverdadeiragravidadedoquantoeuestavapartidaesombria
por dentro.Do quanto era inapropriado que eu vestisse branco quandominhas
mãoseramtãoimundas.
Todosestavampensandoisso.Sópodiamestar.
Cada passo era rápido demais, me impulsionava na direção do altar e de
Tamlin. E na direção de Ianthe, usando um vestido azul-escuro naquela noite,
reluzindosobaquelecapuzeacoroaprateada.
Comoseeufosseboa...comoseeunãotivesseassassinadodoisdosdeles.
Eueraumaassassinaeumamentirosa.
Umpunhadodepétalasvermelhaspairavaadiante;exatamentecomoosangue
daquelerapazfeéricoqueseempoçaraaosmeuspés.
Adezpassosdoaltar,nabeiradaqueleborrãovermelho,reduziavelocidade.
Entãoparei.
Todosestavamobservando,exatamentecomoestiveramquandoquasemorri,
espectadoresdemeutormento.
Tamlinestendeuaimensamãoefranziulevementeatesta.Meucoraçãobatia
muitorápido,rápidodemais.
Euiavomitar.
Bemsobreaquelaspétalas;bemsobreagramaeasfitasqueseestendiampelo
corredornascadeirasqueoladeavam.
E entre minha pele e meus ossos, algo ressoava e latejava, erguendo-se e
empurrando,disparandoemmeusangue...
Tantos olhos, olhos demais sobre mim, testemunhas de cada crime que eu
haviacometido,cadahumilhação...
Nãoseiporquesequertinhameincomodadoemusarluvas,porquedeixara
queIanthemeconvencesse.
O sol poente estava quente demais, o jardim, fechado demais pelas cercas
vivas.Tãoinescapávelquantoovotoqueeuestavaprestesafazer,meunindoaele
para sempre, acorrentando Tamlin a minha alma quebrada e cansada. A coisa
dentrodemimseagitavaagora,meucorpotremiacomaforçaqueseacumulava
conformebuscavaumasaída...
Para sempre— eu jamais melhoraria, jamais me libertaria de mimmesma,
daquelecalabouçonoqualtinhapassadotrêsmeses...
—Feyre—disseTamlin,amãofirmeconformeaindaaestendiaparamim.O
sol desceu além da fronteira do muro do jardim oeste; sombras cresceram,
esfriandooar.
Seeumevirasse,elescomeçariama falar,masnãoconseguiadarosúltimos
passos,nãoconseguia,nãoconseguia,nãoconseguia...
Estava prestes a me desfazer, bem ali, naquele momento... e eles veriam
exatamentecomoeuestavadestruída.
Ajude-me, ajude-me, ajude-me, implorei a alguém, qualquer um. Implorei a
Lucien,paradonafileiradafrente,oolhodemetalfixoemmim.ImploreiaIanthe,
comorostoserenoepacienteeadoráveldentrodaquelecapuz.Salve-me,porfavor,
salve-me.Metiredaqui.Acabecomisso.
Tamlindeuumpassonaminhadireção;preocupaçãocobriaaquelesolhos.
Recueiumpasso.Não.
AbocadeTamlinsecontraiu.Amultidãomurmurou.Fiosdesedacarregados
deesferasdeluzfeéricadouradabrilharamaotomarvidaacimaeaonossoredor.
Ianthefalou,suavemente:
—Venha,Noiva,euna-seaseuverdadeiroamor.Venha,Noiva,edeixequeo
bemtriunfeporfim.
Obem.Eunãoeraboa.Eunãoeranada,eminhaalma,minhaalmaeterna,
estavacondenada...
Tentei fazer com que meus pulmões traidores inspirassem, para que eu
conseguissedizerapalavra.Não...não.
Masnãopreciseidizer.
Trovão ressoou atrás demim, como se duas pedras tivessem sido chocadas
umacontraaoutra.
Pessoas gritaram, caindo para trás, e algumas desapareceram imediatamente
quandoaescuridãoirrompeu.
Eumevireie,emmeioànoitequeflutuavacomofumaçaaovento,encontrei
Rhysandajeitandoaslapelasdeseucasacopreto.
—Oi,Feyre,querida—ronronouRhysand.
Eunãodeveriaterficadosurpresa.NãoquandoRhysandgostavadetornartudo
umespetáculo.EachavaqueirritarTamlineraumtipodearte.
Masaliestavaele.
Rhysand, Grão-Senhor da Corte Noturna, agora estava ao meu lado, e
escuridãoescorriadelecomonanquimnaágua.
Rhys inclinou a cabeça, os cabelos preto-azulados oscilaram aomovimento.
Aqueles olhos violeta brilharam à luz feérica dourada conforme se fixaram em
Tamlin, conforme Rhysand estendia a mão para onde Tamlin e Lucien e as
sentinelasdelesestavamsacandoasespadas,avaliandocomometirardocaminho,
comoderrotarRhys...
Mas,quandoaquelamãoseergueu,todoscongelaram.
Ianthe,noentanto,estavarecuandodevagar,orostolívido.
—Quecasamentobonitinho—disseRhysand,enfiandoasmãosnosbolsos
enquanto aquelas muitas espadas permaneceram embainhadas. A multidão que
restararecuava,algunssubiamemcadeirasparafugir.
Rhys me olhou de cima a baixo devagar e emitiu um estalo com a língua
quandoviuas luvasdeseda.Oquequerqueestivesseseacumulandosobminha
peleficouimóvelefrio.
—Dêoforadaqui—grunhiuTamlin,caminhandoemnossadireção.Garras
dispararamdosnósdeseusdedos.
Rhysemitiuoutroestalocomalíngua.
—Ah,achoquenão.Nãoquandoprecisocobrarmeuacordocomaquerida
Feyre.
Meuestômagopareceuvazio.Não...não,agoranão.
—Setentarquebraroacordo,saberáoquevaiacontecer—continuouRhys,
rindo um pouco damultidão que ainda tropeçava sobre simesma para fugir.O
Grão-Senhorme indicou como queixo.—Dei trêsmeses de liberdade a você.
Poderiaaomenosparecerfelizemmever.
Eutremiademaisparadizerqualquercoisa.OsolhosdeRhysbrilharamcom
desprezo.
AexpressãosumiuquandoeleolhouparaTamlindenovo.
—Voulevá-laagora.
—Nãoouse—rosnouTamlin.Atrásdele,oaltarestavavazio;Ianthetinha
sumidodevez.Juntoàmaioriadosparticipantes.
—Interrompi?Achei que tivesse acabado.—Rhysmedeuum sorrisoque
escorriaveneno.Elesabia,pormeiodaquelelaço,dequalquerquefosseamagia
entre nós, Rhys sabia que eu estava prestes a dizer não.— Pelo menos Feyre
pareciapensarquesim.
Tamlingrunhiu.
—Deixeterminarmosacerimônia...
—SuaGrã-Sacerdotisa—falouRhys—pareceacharquejáacaboutambém.
Tamlinenrijeceuocorpoquandoolhouporcimadoombroeviuoaltarvazio.
Quandoelenosencaroudenovo,suasgarrasjáestavamumpoucoretraídas.
—Rhysand...
—Nãoestouafimdenegociar—declarouRhys.—Emboraeuconseguisse
tirarvantagemdisso,tenhocerteza.—Eumesobressalteiquandosentiacaríciada
mãodelenocotovelo.—Vamos.
Nãomemovi.
—Tamlin—sussurrei.
Tamlin deu um único passo em minha direção, o rosto dourado ficou
amarelado,mascontinuouconcentradoemRhys.
—Digaseupreço.
—Nãoseincomode—cantarolouRhys,entrelaçandoobraçonomeu.Cada
pontodecontatoeraterrível,insuportável.
Ele me levaria para a Corte Noturna, o lugar que supostamente servira de
inspiração para Amarantha construir Sob a Montanha, cheio de devassidão e
torturaemorte...
—Tamlin,porfavor.
—Quantodrama—disseRhysand,mepuxandoparaperto.
Mas Tamlin não se moveu... e aquelas garras foram completamente
substituídasporpelemacia.ElefixouoolharemRhys,eseuslábiosseretraíram
emumgrunhido.
—Sevocêaferir...
—Eu sei, eu sei—disseRhysand, impaciente.—Voudevolvê-la emuma
semana.
Não, não, Tamlin não podia fazer aquele tipo de ameaça, não quando ela
significava que ele me deixaria ir. Até mesmo Lucien olhava boquiaberto para
Tamlin,orostopálidocomfúriaechoque.
Rhys soltoumeu cotovelo apenas para passar amão pelaminha cintura,me
puxandocontraalateraldocorpoconformesussurravaaomeuouvido:
—Segurefirme.
Então,aescuridãorugiu,umventomeempurrouparaumladoeparaooutro,
o chão pareceu cair sob mim, e o mundo tinha sumido ao meu redor. Restava
apenas Rhys, e eu o odiei enquanto me segurava nele, odiei com todo meu
coração...
Então,aescuridãosumiu.
Senti cheiro de jasmim primeiro; depois, vi estrelas. Um mar de estrelas
brilhando além de pilares reluzentes de pedra da lua que emolduravam a ampla
vistadasinfinitasmontanhascobertasdeneve.
—Bem-vindaàCorteNoturna.—FoitudooqueRhysdisse.
Eraolugarmaislindoqueeujávira.
Qualquer que fosse o prédio em que estávamos, ele ficava no alto das
montanhasdepedrascinzentas.Ocorredoranossavoltaficavaexpostoànatureza,
nenhuma janelaàvista,apenaspilastras imensasecortinas finasoscilandoàquela
brisacomcheirodejasmim.
Devia ser algumamagia, paramanter o ar quente nomeiodo inverno. Sem
falardaaltitude,oudanevequecobriaasmontanhas,oudosventospoderososque
sopravamvéusdenevedospicos,comoumaneblinaerrante.
Pequenasáreasdeestar, jantareescritóriospontuavamocorredor, separado
poraquelascortinasouplantasexuberantesoutapeçariasespessasespalhadaspelo
pisodepedradalua.Algumasesferasdeluztremeluziamàbrisa,juntoalanternas
devidrocoloridoquependiamdosarcosdoteto.
Nãohaviaumgrito,umurro,nenhumasúplicanoar.
Atrás de mim, uma parede de mármore branco se erguia, interrompida
ocasionalmenteporportaisabertosquedavamparaescadariasescuras.Orestante
daCorteNoturnadeviaestaralémdelas.Nãoeraàtoaqueeunãoconseguiaouvir
ninguémgritarseestavamtodosdoladodedentro.
— Esta é minha residência particular — disse Rhys, casualmente. A pele
estavamaisescuradoqueeumelembrava,douradaagora,emvezdepálida.
Pálida,por ficar trancadoSobaMontanhadurantecinquentaanos.Observei
Rhysand,embuscadequalquersinaldasasasimensasepalmadas—aquelascom
asquaiseleadmitiraamarvoar.Masnãohavia.Apenasofeérico,dandoumrisinho
paramim.
Eaquelaexpressãofamiliardemais...
—Comovocêousa...
Rhysriucomescárnio.
—Eusentifaltadesseolharnoseurosto.—Eleseaproximou,osmovimentos
felinos,aquelesolhosvioletaparecendocontrolados,letais.—Denada,aliás.
—Peloquê?
Rhysparouamenosde30centímetrosecolocouasmãosnosbolsos.Anoite
nãopareciavazardeleali;eRhysparecia,apesardaperfeição,quasenormal.
—Porsalvarvocêquandofoipedido.
Enrijeciocorpo.
—Nãopedinada.
OolhardeRhysdesceuparaminhamãoesquerda.
Elenãodeuavisoquandoseguroumeubraço,grunhindobaixinho,erasgoua
luva.OtoquedeRhyseracomoumferrete,emeencolhi,recuandoumpasso,mas
Rhysandseguroufirmeatétirarasduasluvas.
—Ouvivocê implorandoaalguém,qualquerum,paraquea resgatasse,para
queatirassedali.Ouvivocêdizernão.
—Eunãodissenada.
Rhysandvirouminhamãoexposta,segurandomaisfirmeconformeexaminava
oolhoquetinhatatuado.Elebateunapupila.Umavez.Duas.
—Euouvi,altoeclaro.
Puxeiamãodevolta.
—Melevedevolta.Agora.Nãoqueriaserlevada.
Rhysdeudeombros.
—Que momento melhor para trazer você aqui? Talvez Tamlin não tenha
notado que você estava prestes a rejeitá-lo diante da corte inteira... talvez agora
vocêpossasimplesmentemeculpar.
—Vocêéumdesgraçado.Deixoubemclaroqueeutinha...reservas.
—Quantagratidão,comosempre.
Tivedificuldadesparatomarumúnicofôlegoprofundo.
—Oquequerdemim?
—Querer?Queroquediga“obrigada”,antesdetudo.Depois,queroquetire
essevestidohorrível.Vocêparece...—AbocadeRhyssecontraiuemumalinha
cruel.—Vocêpareceexatamenteadonzelacomolhosdecorçaqueeleeaquela
sacerdotisaafetadaqueremqueseja.
—Vocênãosabenadasobremim.Ousobrenós.
Rhysmelançouumsorrisoconhecedor.
—ETamlin sabe? Ele por acaso pergunta a você por que vomita as tripas
todasasnoites,ouporquenãopodeentraremalgunscômodosnemveralgumas
cores?
Congelei.Elepodiamuitobemtermedeixadonua.
—Saiadaporcariadaminhacabeça.
Tamlintinhaospróprioshorroresparasuportar,paraenfrentar.
—Igualmente.—Rhysseafastoualgunspassos.—Achaquegostodeser
acordadotodanoiteporvisõesdevocêvomitando?Vocêmandatudoporaquele
laço,enãogostodeterumassentoprivilegiadoquandoestoutentandodormir.
—Canalha.
Outra risada.Mas eu não perguntaria do que ele estava falando— do laço
entrenós.NãodariaaRhysandasatisfaçãodeparecercuriosa.
—Equantoaoquemaisquerodevocê...—Rhysindicouacasaatrásdenós.
— Contarei amanhã no café da manhã. Por enquanto, limpe-se. Descanse.—
AqueleódiolampejounosolhosdeRhysandmaisumavezquandoviuovestido,o
cabelo.—Pegue as escadas à direita, umandar abaixo. Seuquarto é a primeira
porta.
—Nada de cela no calabouço?—Talvez tivesse sido burrice revelar esse
medo,sugeririssoaele.
MasRhysdeumeia-voltaeergueuassobrancelhas.
—Vocênãoéumaprisioneira,Feyre.Fezumacordoeoestoucobrando.Será
minhaconvidadaaqui,comosprivilégiosdeummembrodeminhacasa.Nenhum
demeussúditosvaitocaremvocê,machucá-laousequerpensaremlhefazermal
aqui.
Minhalínguaestavasecaepesadaquandofalei:
—Eondepodemestaressessúditos?
—Algunsmoramaqui,namontanhasobnós.—Rhysandinclinouacabeça.
— Estão proibidos de colocar os pés nesta residência. Sabem que assinarão a
própria sentença de morte.— Os olhos dele encontraram os meus, ríspidos e
claros, como se Rhys pudesse ver o pânico, as sombras se aproximando. —
Amaranthanãofoimuitocriativa—disseele,comódiosilencioso.—Minhacorte
sobestamontanhaétemidahámuitotempo,eelaescolheureplicá-la,violandoo
espaço da montanha sagrada de Prythian. Então, sim: há uma corte sob esta
montanha,acorteàqualseuTamlinagoraesperaqueeuaestejasubmetendo.Eua
governovezououtra,maselapraticamentesegoverna.
— Quando... quando vai me levar até lá? — Se eu precisasse ir ao
subterrâneo, precisasse ver aqueles tipos de horrores de novo... Eu imploraria,
imploraria para que nãome levasse.Nãome importava quanto issome tornaria
patética.Eutinhaperdidoqualquertipodepudorquantoaquelinhascruzarpara
sobreviver.
—Nãolevarei.—Rhysfezumgestocomosombros.—Esteémeular,ea
corteabaixoéminha...ocupação,comovocês,mortais,chamam.Nãogostoqueos
doissesobreponhamcomfrequência.
Minhassobrancelhasseergueramlevemente.
—Vocês,mortais?
LuzdasestrelasdançoupelorostodeRhysand.
—Deveriaconsiderá-laalgodiferente?
Umdesafio.Afasteiairritaçãodiantedointeressequenovamenterepuxavaos
cantosdoslábiosdeRhys,entãofalei:
—Eosoutroshabitantesdesuacorte?—OterritóriodaCorteNoturnaera
enorme,maiorquequalqueroutroemPrythian.Eaonosso redorhavia aquelas
montanhasvazias,cobertasdeneve.Nenhumsinaldecidades,aldeias,nadadisso.
—Espalhadosporaí,vivendocomoquerem.Exatamentecomovocêestáagora
livreparaperambularporondequiser.
—Queroperambularparacasa.
Rhysgargalhou,finalmentecaminhandoatéaoutrapontadocorredor,oqual
terminavaemumavarandaqueseabriaparaasestrelas.
—Estoudispostoaaceitarseuagradecimentoaqualquerhora,sabe—gritou
Rhysparamim,semolharparatrás.
A cor vermelha explodiu emminha visão, e não consegui respirar rápido o
bastante,nãoconseguipensaracimadorugidoemminhamente.Emumsegundo
euestavaencarandoRhys...noseguinte,estavacomosapatoemumadasmãos.
AtireiosapatocontraRhyscomtodaaminhaforça.
Todaaminhaforçaconsideráveleimortal.
Malviosapatodesedaquandoelevooupelosares,rápidocomoumaestrela
cadente, tãorápidoquenemmesmoumGrão-senhorconseguiudetectarquando
eleseaproximou...
EsechocoucontraacabeçadeRhysand.
Elesevirou,ergueuumadasmãosatéanucaearregalouosolhos.
Eujáestavacomooutropédosapatonamão.
OslábiosdeRhysseretesaram,exibindoosdentes.
—Euadesafio.—Temperamento,eledeviaestardemauhumorparadeixar
queotemperamentotransparecessetanto.
Quebom.Éramosdois.
Atirei o outro sapato direto contra a cabeça dele, com asmesmas rapidez e
forçadoprimeiro.
AmãodeRhysseergueu,elepegouosapatoaapenascentímetrosdorosto.
Rhyssibiloueabaixouosapato,eseusolhosencontraramosmeusquandoa
sedasedissolveuempoeirapretareluzentenopunhodeRhys.Osdedosdelese
abriram,orestantedascinzasbrilhantesfoisopradoparaoesquecimento,eRhys
observouminhamão,meucorpo,meurosto.
—Interessante—murmurouele,eretomouseucaminho.
Pensei em derrubar Rhys no chão e socar aquele rosto,mas não era burra.
Estavaemsuacasa,noaltodeumamontanhanomeiodeabsolutamentenada,ao
que parecia. Ninguém viria me resgatar; ninguém sequer estava ali para
testemunharmeusgritos.
Então,mevireiparaaportaqueRhysandindicara,prosseguindoparaaescada
escuraalémdela.
Tinha quase alcançado a escada, não ousando respirar alto demais, quando
uma voz feminina, alegre e interessada disse, atrás demim, bem longe de onde
Rhystinhaidodoladoopostodocorredor:
—É,issocorreubem.
OgrunhidoderespostadeRhysmefezapressaropasso.
Meuquartoera...umsonho.
Depois de vasculhá-lo em busca de qualquer sinal de perigo, depois de
encontrar cada saída e cada esconderijo, parei no centro para contemplar onde,
exatamente,euficariaduranteapróximasemana.
Comoa áreade estar acima, as janelas estavamabertasparaomundobrutal
além delas— nada de vidro, nada de venezianas—, e cortinas de um tom de
ametistapurooscilavamàquelabrisasuaveesobrenatural.Agrandecamaerade
umamistura cremosa de branco emarfim, com travesseiros e cobertas emantas
paraváriosdias, tornadaaindamaisconvidativapeloparde lumináriasdouradas
aolado.Oarmárioeapenteadeiraocupavamumaparede,emolduradaporaquelas
janelassemvidro.Dooutroladodoquarto,umcômodocomumapiadeporcelana
eumvasosanitárioestavaatrásdeumaportademadeira,masabanheira...
Abanheira.
Ocupando a outrametade do quarto,minha banheira era, na verdade, uma
piscinaquependiadaprópriamontanha.Umapiscinapara eumebanharoume
divertir.Abeiradapareciadesaparecernonada,aáguafluíasilenciosamentepela
lateral,paraanoitealém.Umparapeitoestreitonaparedeadjacenteestavacoberto
comvelasgordasetremeluzentes,cujobrilhodouravaasuperfícieescuraevítreae
asespiraisdevapor.
Aberto,arejado,aconchegantee...calmo.
Aquelequartoeradignodeumaimperatriz.Comopisodemármore,assedas,
osveludos e osdetalhes elegantes, apenasuma imperatriz conseguiria pagar por
ele. Eu tentava não pensar em como seria o aposento deRhys se ele tratava os
convidadosdaquelaforma.
Convidada;nãoprisioneira.
Bem...oquartoprovavaisso.
Não me incomodei em fazer uma barricada na porta. Rhys provavelmente
conseguiriavoarparadentrodoquartose tivessevontade.Eeuoviradestruira
mente de um feérico sem sequer piscar. Duvidava que um pedaço de madeira
mantivesseforaaquelepoderhorrível.
Maisumavez,verifiqueioquarto,emeuvestidodecasamentosibilounopiso
demármoremorno.
Olheiparamim.
Vocêestáridícula.
Calorsubiuporminhasbochechasepescoço.
Issonãodesculpavaoqueeletinhafeito.Mesmoquetivesse...mesalvado—
engasgueinapalavra—deprecisarrecusarTamlin.Precisarexplicar.
Devagar,puxeiosgramposeosenfeitesdoscabeloscacheados,empilhando-os
napenteadeira.Avisão foio suficienteparaqueeu trincasseosdentes,entãoos
enfieiemumagavetavaziaeabaticomtantaforçaqueoespelhoacimadamesa
chacoalhou.Esfregueiacabeça,quedoíadevidoaopesodoscachosedosgrampos
quedespontavam.Naquelatarde,tinhaimaginadoTamlintirandocadagrampode
meuscabelos,umbeijoporgrampo,masagora...
Engoliemsecoparaafastaraqueimaçãonagarganta.
Rhyseraamenordeminhaspreocupações.Tamlinviraahesitação,masserá
que entenderaque eu estavaprestes a dizer não?Será que Ianthepercebera?Eu
precisava contar a ele. Precisava explicar que não poderia haver um casamento,
nãoporenquanto.Talvezeuesperasseatéqueolaçodaparceriaocorresse,atéque
eutivessecertezadequenãopoderiaserumerro,que...queeueradignadele.
Talvez esperasse até que Tamlin também enfrentasse os pesadelos que o
perseguiam.Relaxasse um pouco com relação às coisas.Amim.Mesmo que eu
entendesse sua necessidade de proteger, aquelemedo deme perder... Talvez eu
devesseexplicartudoquandovoltasse.
Mas...tantagentetinhavisto,tinhamevistohesitar...
Meu lábio inferior tremeu, e comecei a desabotoar o vestido; então, puxei-o
pelosombros.
Deixeiqueovestidodeslizasseatéochãocomumsuspirodasedaedotulee
dasmiçangas,umsuflêmurchandonopisodemármore,edepoisdeiumgrande
passopara foradapilha.Atémesmominha roupadebaixoera ridícula: retalhos
brilhantesderendacomaúnicaintençãodequeTamlinosadmirasse...eentãoos
rasgasseemfitas.
Puxeiaanáguaparacima,dispareiparaoarmárioeaenfieialidentro.Depois,
tireiasroupasíntimaseasenfieinoarmáriotambém.
Minhatatuagemsedestacavacontraomontedesedaerendabrancas.Minha
respiração ficou mais e mais rápida. Não percebi que estava chorando até que
segurei o primeiro pedaço de tecido que encontrei dentro do armário — um
conjuntodepijama turquesa—eenfieiospéspelacalçanaalturado tornozelo;
depois,puxeiacamisademangacurtacombinandoporcimadacabeça,eabainha
batianoaltodemeuumbigo.Nãomeimportavacomofatodequeaquilosópodia
ser algum tipo demoda daCorteNoturna, nãome importava que o pijama era
macioequente.
Subi naquela camagrande emacia, os lençóis eram suaves e convidativos, e
mal consegui puxar o ar em um fôlego uniforme o suficiente para apagar as
lâmpadasdecadalado.
Mas,assimqueaescuridãoenvolveuoquarto,meussoluçosvieramcomforça
total— arquejos fortes e entrecortados, queme faziam estremecer, fluíam pelas
janelasabertasesaíamparaanoiteestreladaesalpicadadeneve.
Rhysnãoestavamentindoquandodissequeeudeveriamejuntaraeleparaocafé
damanhã.
MinhasantigasdamasdecompanhiadeSobaMontanhasurgiramàportalogo
depoisdoalvorecer,eeutalveznãotivessereconhecidoasbelasgêmeasdecabelos
pretos caso elas não tivessemagido como seme conhecessem.Eu jamais as vira
comoqualquercoisadiferentedesombras,osrostossempreescondidosemnoite
impenetrável. Mas ali — ou talvez sem Amarantha — elas eram totalmente
corpóreas.
NualaeCerridweneramseusnomes,emepergunteisealgumdiatinhamme
dito.SeeuestavaperdidademaisSobaMontanhaparasequermeimportar.
Abatidasuavedasduasmeacordoucomumsobressalto...Nãoqueeutivesse
dormidomuito à noite. Por um segundo,me perguntei por que a cama parecia
muitomaismacia, por quemontanhas se estendiam ao longe, e não gramado e
colinas primaveris... então, tudo retornou. Com uma dor de cabeça latejante e
incessante.
Depois da segunda batida paciente, seguida por uma explicação abafada do
outroladodaportasobrequemelaseram,saídacamaconfusaparadeixarasduas
entrarem. E depois de um cumprimento terrivelmente desconfortável, elas me
informaramqueocafédamanhãseriaservidoemtrintaminutosequeeudeveria
tomarbanhoemevestir.
NãomeincomodeiemperguntarseRhysestavaportrásdaúltimaordem,ou
seeraarecomendaçãodelascombasenoquantoeusemdúvidapareciadeplorável,
masasduasdispuseramalgumasroupasnacamaantesdemedeixaremparaqueeu
melimpassecomprivacidade.
Fiqueitentadaaficarnosuntuosocalordabanheiraduranteorestododia,mas
umpuxão suave e eternamente interessado penetrou minha dor de cabeça. Eu
conheciaessepuxão—forachamadaporeleantes,naquelashorasantesdaqueda
deAmarantha.
Afundei atéopescoçonaágua,verificandoo céu limpode inverno,ovento
fustigante que açoitava a neve daqueles picos próximos... Nenhum sinal dele,
nenhumbaterdeasas.Masopuxãosemanifestoudenovoemminhamente,meu
estômago;umaconvocação.Comoosinodeumcriado.
Xingando-o em silêncio, limpei o corpo e coloquei as roupasque as gêmeas
haviamdeixado.
E agora, caminhando pelo andar superior ensolarado conforme seguia
cegamenteafontedaquelepuxãoinsuportável,ossapatosdesedamagentaquase
silenciososnopisodepedrada lua, tivevontadede arrancar as roupas, somente
devidoaofatodequepertenciamàquelelugar,aele.
A calça cor de pêssego de cintura alta era larga e oscilante, apertada nos
tornozelos e com bainha de veludo de um dourado forte. Asmangas longas da
camisacombinandoeramfeitasdeorganza,tambémapertadasnaalturadospulsos,
eaprópriablusachegavaapenasàalturadoumbigo,revelandoumafaixadepele
conformeeuandava.
Confortável,fácildememover—decorrer.Feminino.Exótico.Tãofinoque,
anãoserqueRhysplanejassemeatormentarmeatirandoaodesertodeinvernoa
nossavolta,eupoderiapresumirquenãodeixariaoslimitesdequalquerquefossea
magiaquemantinhaolugartãomorno.
Pelomenosatatuagem,visívelpelamangatransparente,nãoficariadeslocada
ali.Mas...asroupasaindaerampartedacortedeRhys.
Esemdúvidaerampartedealgumjogoqueelepretendiafazercomigo.
Nofinaldonívelsuperior,umapequenamesadevidroreluziacomomercúrio
no coração de uma varanda de pedra, montada com três cadeiras e posta com
frutas, sucos, pães e carnes de café da manhã. E em uma daquelas cadeiras...
Embora Rhys encarasse a vista deslumbrante, as montanhas nevadas quase
ofuscantes ao sol, eu sabia que ele sentiraminha chegada assim que terminei de
subiraescadadooutroladodocorredor.Talvezdesdequeeutinhaacordado,se
aquelepuxãoeraalgumindicativo.
Parei entre as duas últimas pilastras, avaliando oGrão-Senhor que estava à
mesadocaféeavistaqueeleobservava.
—Nãosouumcãoparaserconvocada—falei,comocumprimento.
Devagar, Rhys olhou por cima do ombro. Aqueles olhos violeta estavam
vibrantesàluz,efecheiosdedosempunhosconformeseuolharmepercorreude
cimaabaixo,edepoisdevoltaparacima.Elefranziuatestaparaoquequerque
tivesseachadoquefaltava.
—Nãoqueriaqueseperdesse—respondeuRhys,inexpressivo.
Minhacabeçalatejava,eolheiparaachaleiraprateadaquefumegavanocentro
damesa.Umaxícaradechá...
— Achei que seria sempre escuro aqui— comentei, pelo menos para não
parecertãodesesperadaporaquelechásalvadordemanhãtãocedo.
—SomosumadastrêsCortesSolares—respondeuRhys,indicandoparaque
eumesentassecomumgestograciosodopulso.—Nossasnoitessãomuitomais
belas e nossos pores do sol e alvoreceres são exóticos, mas aderimos às leis da
natureza.
Sentei na cadeira estofada diante de Rhys. A túnica do feérico estava
desabotoadanopescoço,revelandoumpoucodopeitobronzeadoporbaixo.
—Easoutrasescolhemnãoaderir?
—AnaturezadasCortesSazonais—falouRhys—estáligadaaseusGrão-
Senhores cujamagia e vontade osmantém em primavera eterna ou inverno, ou
outono ou verão. Sempre foi assim, algum tipo de estagnação estranha. Mas as
Cortes Solares, Diurna, Crepuscular e Noturna, são de uma natureza mais...
simbólica. Podemos ser poderosos, mas nem mesmo nós podemos alterar o
caminhoouaforçadosol.Chá?
Aluzdosoldançavaaolongodacurvadachaleiraprateada.Controleioaceno
decabeçaansiosoefizumgestocontidocomoqueixo.
—Masvaidescobrir—continuouRhysand,servindoumaxícaraparamim—
que nossas noites são mais espetaculares, tão espetaculares que alguns em meu
territórioatémesmoacordamcomopôrdosolevãodeitaraoalvorecer,apenas
paraviversobasestrelas.
Coloquei um pouco de leite no chá, observando o claro e o escuro se
misturarem.
—Porqueestátãoquenteaquiquandooinvernoestáatodaláfora?
—Magia.
—Óbvio.—Apoieiacolherdecháebebi,quasesuspirandodiantedafluidez
decaloresaborintensoefumegante.—Masporquê?
Rhysobservouoventoquefustigavaospicos.
—Você aqueceuma casa no inverno, por quenãodeveríamos aquecer este
lugar também?Admito que não seipor que meus predecessores construíram um
paláciodignodaCorteEstivalnomeiodeumacadeiamontanhosaque,namelhor
dashipóteses,élevementequente,masquemsoueuparaquestionar?
Tomeimaisalgunsgoles,aqueladordecabeça jáestavadiminuindo,eousei
colocarnopratoalgumasfrutasdeumatigeladevidropróxima.
Rhysobservoucadamovimento.Então,eledisse,baixinho:
—Vocêperdeupeso.
—Vocêvasculhaminhamentesemprequequer—argumentei,espetandoum
pedaçodemelãocomogarfo.—Nãovejoporqueestásurpresocomisso.
OolhardeRhysnãosesuavizou,emboraaquelesorriso,denovo,brincavana
bocasensual,semdúvidaamáscarapreferidadoGrão-Senhor.
—Façoissoapenasocasionalmente.Nãopossoevitarsevocêenviacoisaspelo
laço.
Penseiemmerecusaraperguntar,comotinhafeitonanoiteanterior,mas...
—Comofunciona...esselaçoquelhepermiteespiardentrodeminhamente?
Rhystomouumgoledoprópriochá.
—Penseno laçodo acordocomoumaponte entrenós, ede cada lado está
uma porta para nossas respectivas mentes. Um escudo. Meus talentos natos
permitemqueeupassepelosescudosmentaisdequalquerumqueeuqueira,com
ousemessaponte,anãoserqueapessoasejamuito,muitoforte,outenhatreinado
exaustivamenteparamanteressesescudosfirmes.Comohumana,osportõespara
suamenteestavamescancaradosparaqueeuentrassepasseando.Comofeérica...
—Umpequenoestremecimento.—Àsvezesvocê,semquerer,ergueumescudo,
às vezes, quando a emoção parece correr solta, esse escudo some. E às vezes,
quando esses escudos estão baixos, você poderia muito bem estar parada aos
portõesdaprópriamente,gritandoseuspensamentosparamimatravésdaponte.
Àsvezeseuosouço;àsvezes,não.
Fizumacareta,segurandoogarfocommaisforça.
—E comque frequência você simplesmente vasculhaminhamente quando
meusescudosestãobaixos?
TodoointeressesumiudorostodeRhys.
— Quando não sei dizer se seus pesadelos são ameaças verdadeiras ou
imaginárias. Quando você está prestes a se casar e, silenciosamente, implora a
qualquerumparaqueaajude.Somentequandovocêabaixaosescudosmentaise,
sem saber, berra essas coisas pela ponte. E para responder à pergunta antes que
vocêa faça, sim.Mesmocomos escudos erguidos, eupoderiapassarpor eles se
quisesse.Vocêpoderiatreinar,noentanto,aprenderaseprotegerdealguémcomo
eu,mesmocomolaçoqueunenossasmenteseminhashabilidades.
Ignorei a oferta. Concordar em fazer qualquer coisa com Rhysand parecia
permanentedemais,coniventedemaiscomoacordoentrenós.
—Oquequercomigo?Vocêdissequemecontariaaqui.Então,conte.
Rhysserecostounacadeira,cruzandoosbraçospoderososquenemmesmoas
roupasfinasconseguiamesconder.
—Estasemana?Queroqueaprendaaler.
Rhysanddebocharademimcomrelaçãoàquiloumavez;perguntara,enquanto
estávamos Sob a Montanha, se me obrigar a aprender a ler seria minha noção
pessoaldetortura.
—Não,obrigada—falei,segurandoogarfoparaevitarjogá-lonacabeçade
Rhys.
—VocêvaiseraesposadeumGrão-Senhor—disseRhys.—Esperarãoque
escrevaasprópriascorrespondências,talvezatéquefaçaumoudoisdiscursos.Eo
Caldeirão sabe o que mais ele e Ianthe julgarão apropriado para você. Fazer
cardápiosparajantares,escrevercartasdeagradecimentoatodosaquelespresentes
decasamento,bordarfrasesmeigasemtravesseiros...Éumahabilidadenecessária.
E,quersaber?Porquenãoaproveitaeacrescentaoescudomental?Lereerguero
escudomental,felizmente,podemserpraticadosaomesmotempo.
—Ambas são habilidades necessárias— falei, entre os dentes trincados.—
Masvocênãovaimeensinar.
—Oquemaisvaifazerdeseutempo?Pintar?Comoandaissoultimamente,
Feyre?
—Comodiabosissoédesuaconta?
—Atendeaváriospropósitosmeus,éclaro.
—Que.Propósitos.
—Precisaráconcordarcomtrabalharcomigoparadescobrir,creio.
Algopontiagudocutucouminhamão.
Eutinhaamassadoogarfoemumemaranhadodemetal.
Quandoocoloqueinamesa,Rhysdeuumarisadadeescárnio.
—Interessante.
—Vocêdisseissoontemànoite.
—Nãopossodizerduasvezes?
—Nãofoiissoqueeuquisdizer,evocêsabe.
OolhardeRhysmepercorreudenovo,comoseelepudesseversobotecido
pêssego,sobapele,atéaalmaempedaçosporbaixo.Então,elevoltouosolhos
paraogarfodestruído.
—AlguémjádisseavocêqueébemforteparaumaGrã-feérica?
—Eusou?
—Vou tomar issocomoumnão.—Rhyscolocouumpedaçodemelãona
boca.—Jásetestoucontraalguém?
—Porqueeufariaisso?—Jáestavabemarrasada.
—Porquevocêfoiressuscitadaerenascidapelospoderescombinadosdesete
Grão-Senhores. Se eu fosse você, ficaria curioso para ver se algo mais foi
transferidoparamimnoprocesso.
Meusanguegelou.
—Nadamaisfoitransferidoparamim.
—Ésóporqueseriamuito... interessante—Rhysdeuumrisinhoaodizera
palavra—setivesse.
—Nãofoitransferido,enãovouaprenderalerouafazerumescudomental
comvocê.
—Porquê?Porimplicância?AcheiquevocêeeutínhamossuperadoissoSob
aMontanha.
—NãocomeceafalarsobreoquevocêfezSobaMontanha.
Rhysficouimóvel.
Omaisimóvelqueeujávira,tãoimóvelquantoamortequeagorachamava
naquelesolhos.Então,opeitodelecomeçouasemover,maisemaisrápido.
Do outro lado das pilastras que se erguiam atrás dele, eu podia jurar que a
sombradeenormesasasseabriu.
Eleabriuaboca,inclinando-separaafrente,edepoisparou.Imediatamente,as
sombras, a respiração irregular e a intensidade sumiram, e o sorriso preguiçoso
retornou.
—Temoscompanhia.Conversaremossobreissodepois.
—Nãomesmo.—Maspassosrápidose levessoaramnofimdocorredor,e
entãoelaapareceu.
Se Rhysand era o macho mais lindo que eu já vira, ela era o equivalente
feminino.
Osbrilhantescabelosdouradosestavampresosparatrásemumatrançacasual,
easroupasturquesa—noestilodasminhas—contrastavamcomapeledourada
desoldafeérica,fazendocomqueelapraticamentebrilhasseàluzdamanhã.
—Olá,olá—cantarolouamulher,oslábioscarnudosseabrindoemsorriso
deslumbranteenquantoosolhoscastanhosintensossefixavamemmim.
— Feyre— disse Rhys, suavemente—, conheça minha prima, Morrigan.
Mor,conheçaaencantadora,charmosaementeabertaFeyre.
Pensei em jogar o chá na cara deRhys,masMor caminhou atémim.Cada
passoeradeterminadoefirme,graciosoe...resoluto.Alegre,masalerta.Alguém
quenãoprecisavadearmas,oupelomenosnãoseincomodavaemembainhá-lasna
lateraldocorpo.
—Ouvifalartantodevocê—confessouela,eentãofiqueidepé,estendendo
amãocomdesconforto.
Morriganignorouogestoemeenvolveuemumabraçodeesmagarosossos.
Ela cheirava a frutas cítricas e canela.Tentei relaxar osmúsculos tensos quando
Morseafastouedeuumsorrisobastantemalicioso.
—ParecequevocêestavairritandoRhysdeverdade—disseela,caminhando
até a cadeira entre nós.—Que bomque cheguei.Achei que gostaria de ver as
bolasdeRhyspregadasàparede.
Rhyslançouumolhardeincredulidadeparaela,erguendoassobrancelhas.
Escondiosorrisoquerepuxoumeuslábios.
—É...umprazerconhecervocê.
—Mentirosa—replicouMor,servindo-sedecháeenchendooprato.—Não
querternadaaverconosco,nãoé?EomalvadodoRhysaobrigaasentaraqui.
—Vocêestá...atrevidahoje,Mor—falouRhys.
OsolhoslindosdeMorserergueramatéorostodoprimo.
—Perdoe-meporestaranimadaportercompanhiaparavariar.
—Vocêpoderiacuidardosprópriosdeveres—disseele,provocativo.Fechei
oslábioscommaisforça.JamaistinhavistoRhys...exasperado.
—Precisavadeumdescanso,evocêmedisseparavir semprequequisesse;
então, que horamelhor que agora, quando você trouxeminha nova amiga para
finalmentemeconhecer?
Pisquei, percebendo duas coisas ao mesmo tempo: um, ela foi realmente
sincera;dois,eradelaavozfemininaqueeuouvirananoiteanterior,debochando
de Rhys por nosso desentendimento. É, isso correu bem, provocara Morrigan.
Como se houvesse qualquer alternativa, qualquer chance de acontecer algo
agradávelentremimeRhys.
Um novo garfo surgira ao lado de meu prato, e eu o peguei, apenas para
espetarumpedaçodemelão.
—Vocêdoisnãoseparecememnada—declarei,porfim.
—Moréminhaprimanadefiniçãomaislivredapalavra—respondeuRhys.
Morriganriuparaele,devorandofatiasdetomateequeijobranco.—Masfomos
criadosjuntos.Elaéaúnicafamíliaquemeresta.
Nãotivecoragemdeperguntaroqueaconteceraa todos.Oumelembrarde
quemeraopairesponsávelpelafaltadefamílianaminhacorte.
—Ecomominhaúnicaparenterestante—continuouRhys—,Moracredita
quetemdireitodeentraresairdeminhavidacomoquiser.
—Tãomal-humoradoestamanhã—disseMor, colocandodoismuffinsno
prato.
—NãovivocêSobaMontanha.—Eumepercebifalando,odiandoaquelas
trêsúltimaspalavrasmaisquetudo.
—Ah,eunãoestavalá—disseela.—Euestava...
—Basta,Mor—disseRhys,avozenvoltaemumruídobaixodetrovão.
Tivederesistirparanãomeempertigardiantedainterrupção,nãoobservaros
doiscommaisatenção.
Rhysandapoiouoguardanaponamesaeficoudepé.
—Morficaráaquiduranteorestodasemana,mas,porfavor,nãosintacomo
seprecisasseagraciá-lacomsuapresença.—Mormostroualínguaparaele.Rhys
revirouosolhos,ogestomaishumanoqueeujáovirafazer.Entãoobservoumeu
prato.—Comeuosuficiente?—Assenti.—Quebom.Então,vamos.—Rhys
inclinouacabeçanadireçãodaspilastrasedascortinasoscilantesatrásde si.—
Nossaprimeiraliçãonosaguarda.
Morcortouumdosmuffinsaomeiocomumgestofirmedafaca.Oângulode
seusdedos,dospulsos,defatoconfirmavaminhassuspeitasdequearmasnãoeram
estranhasaela.
— Se ele a irritar, Feyre, fique à vontade para empurrá-lo do parapeito da
varandamaispróxima.
Rhyslançouumgestosutilesujoparaaprimaconformesaiupelocorredor.
Fiqueidepédevagarquandoeleestavabemlonge.
—Aproveiteocafédamanhã.
—Semprequequisercompanhia—disseMorrigan,conformeeudavaavolta
pelamesa—,grite.—Elaprovavelmenteestavafalandoliteralmente.
ApenasassentieseguioGrão-Senhor.
Concordei em me sentar à longa mesa de madeira em uma alcova fechada por
cortinasapenasporqueRhysandtinharazão.Nãosaberlerquasemecustaraavida
SobaMontanha.Eumeamaldiçoariasepermitissequesetornasseumafraquezade
novo,fosseparteounãodaagendapessoaldeRhys.Equandoaoescudomental...
Euseriamuitotolasenãoaceitasseaofertadeaprendercomele.Aideiadeque
qualquer um, principalmente Rhys, vasculhasse a confusão em minha mente,
tomasse informações sobre aCortePrimaveril, sobre as pessoasque eu amava...
Jamaispermitiria.Nãovoluntariamente.
MasissonãotornavamaisfácilsuportarapresençadeRhysàmesademadeira.
Ouapilhadelivrossobreela.
—Conheço o alfabeto— falei bruscamente, quando Rhysand colocou um
pedaço de papel naminha frente.—Não sou tão burra assim.—Contorci os
dedosnocoloe,depois,prendiasmãosinquietassobascoxas.
—Não falei que você era burra— argumentouRhysand.—Estou apenas
tentandodeterminarporondedeveríamoscomeçar.—Eumerecosteinacadeira
acolchoada.—Poisvocêserecusouamedizerqualquercoisasobreoquantosabe.
Meurostoficouquente.
—Nãopodecontratarumprofessor?
Rhysandergueuumasobrancelha.
—Édifícilparavocêsequertentarnaminhafrente?
—VocêéumGrão-Senhor...Nãotemcoisasmelhoresafazer?
—Éclaro.Masnenhumaétãodivertidaquantovê-lasecontorcer.
—Vocêéumverdadeirocanalha,sabiadisso?
Rhysconteveumagargalhada.
—Jáfuichamadodecoisapior.Naverdade,achoquevocêjámechamoude
coisapior.—Elebateunopapelqueestavaàfrente.—Leiaisso.
Umborrãodeletras.Minhagargantaseapertou.
—Nãoconsigo.
—Tente.
A frase tinha sido escrita em caligrafia elegante e concisa.A letra dele, sem
dúvida.Tenteiabriraboca,masminhacoragemevaporou.
—Oqueexatamentevocêtemaganharcomtudoisso?Dissequemecontaria
seeutrabalhassecomvocê.
—Nãoespecifiqueiquandocontaria.—EumeafasteideRhysquandocontraí
o lábio.Ele fezumgestodeombros.—Talvez eume ressintada ideiadevocê
permitirqueaquelestolosmentirososebeligerantesdaCortePrimaverilafaçamse
sentirdeslocada.Talvezeugostemesmodevê-lasecontorcer.Outalvez...
—Entendi.
Rhysriucomescárnio.
—Tenteler,Feyre.
Imbecil.Puxeiopapelparamim,quaseorasgandoaomeioaofazerisso.Olhei
paraaprimeirapalavra,pronunciando-anamente.
— V-você... — A seguinte desvendei com uma combinação de minha
pronúnciasilenciosaedalógica.—Está...
—Bom—murmurouRhys.
—Nãopedisuaaprovação.
Rhysdeuumrisinho.
— Ab... Absolutamente. — Levei mais tempo do que quis admitir para
entenderessa.Apalavraseguintefoiaindapior.—De...Del...
OuseiolharparaRhysandcomassobrancelhaserguidas.
—Deliciosa—ronronouele.
Minhatestafranziu.Liasduaspalavrasseguintese,depois,vireiorostopara
ele.
—Vocêestáabsolutamentedeliciosahoje,Feyre?!Foiissooquevocêescreveu?
Rhysandserecostounoassento.Nossosolhosseencontraram,garrasafiadas
acariciaram minha mente, e a voz dele sussurrou dentro de minha cabeça: É
verdade,nãoé?
Deiumsolavancoparatrás,eminhacadeirarangeu.
—Parecomisso!
Masaquelasgarras agora se enterravam—emeucorpo todo,meucoração,
meus pulmões, meu sangue cediam ao aperto de Rhysand, totalmente sob seu
comandoenquantoeledizia:AmodadaCorteNoturnacombinacomvocê.
Eunãoconseguiamemexernacadeira,nãoconseguiasequerpiscar.
Issoéoqueacontecequandovocênãoergueseusescudosmentais.Alguémcommeu
tipo de poderes pode entrar, ver o que quiser e tomar suamente.Ou pode destruí-la.
Estou, nomomento, no portal de suamente.Mas, se fossemais fundo, seria preciso
apenasmeiopensamentomeu...equemvocêé,suapersonalidade,seriaapagada.
Emumlugardistante,suorescorreuporminhatêmpora.
Você deveria ter medo. Deveria ter medo disto, e deveria agradecer ao maldito
Caldeirãoquenosúltimostrêsmesesninguémcommeutipodedonsesbarrouemvocê.
Agora,meempurreparafora.
Nãoconsegui.Aquelasgarrasestavamportodaparte;seenterrandoemcada
pensamento,cadapedaçomeu.Rhysandforçouumpoucomais.
Me.Empurre.Para.Fora.
Eunãosabiaporondecomeçar.Àscegas,empurreiemechoqueicontraele,
contra aquelas garras que estavampor toda parte, como se eu fosse uma cabeça
perdidaemumcírculodeespelhos.
ArisadadeRhysand,graveebaixa,tomoucontademinhamente,deminhas
orelhas.Porali,Feyre.
Em resposta, um pequeno caminho aberto brilhou em minha mente. O
caminhoparafora.
Eulevariaumaeternidadeparasoltarcadagarraeempurraraimensidãodesua
presençaporaquelaaberturaestreita.Seconseguissevarrê-loparalonge...
Umaonda.Umaondadepersonalidade,demim,paravarrereleporinteiro...
NãodeixeiqueRhysandvisseoplanotomarformaquandomeconcentreiem
umaondaaltaegolpeei.
As garras se afrouxaram... com relutância. Como se permitissem que eu
ganhasseaquelarodada.Eleapenasdisse:
—Bom.
Meusossos,meufôlegoemeusangueerammeusdenovo.Desabeinacadeira.
—Aindanão—avisouRhysand.—Escudo.Mebloqueieparaqueeunão
consigavoltar.
Jáqueriairparaalgumlugarsilenciosoedormirporumtempo...
Garrasnaquelacamadaexternademinhamente,acariciando...
Imaginei uma parede adamantina desabando, negra como a noite e com a
espessurade30centímetros.Asgarrasseretraíramumsegundoantesdeaparede
aspartiraomeio.
Rhysestavasorrindo.
—Muitobom.Tosco,masbom.
Não conseguime segurar.Peguei o pedaçode papel e o rasguei emdois, e,
depois,emquatro.
—Vocêéumporco.
—Ah,comcerteza.Masolheparavocê,leuaquelafraseinteira,mechutoude
suamenteeseprotegeu.Excelentetrabalho.
—Nãosejacondescendentecomigo.
— Não estou sendo. Você está lendo em um nível bem melhor do que
imaginei.
Aqueimaçãovoltouparaminhasbochechas.
—Maspraticamenteanalfabeta.
—Aestaaltura,aquestãoéprática,soletraremaisprática.Podelerromances
quandochegaroNynsar.E,secontinuaraumentandoessesescudos,podemuito
bemmemantertotalmenteforaaessaalturatambém.
Nynsar. Seria o primeiro que Tamlin e sua corte celebrariam em quase
cinquenta anos. Amarantha banira o festival por capricho, assim como outras
pequenas,porémadoradas,festividadesfeéricasqueelaconsideraradesnecessárias.
MasoNynsarestavaamesesdeocorrer.
—Éaomenospossível...mantervocêforadeverdade?
— Pouco provável, mas quem sabe até onde vai esse poder? Continue
praticando,everemosoqueacontece.
—EeuaindaestareipresaaesseacordoquandochegaroNynsartambém?
Silêncio.
Insisti.
— Depois... depois do que aconteceu... — Não podia mencionar
especificamenteoqueocorreraSobaMontanha,oqueRhystinhafeitopormim
durante aquela luta com Amarantha, o que ele fizera depois... — Acho que
podemosconcordarquenãodevonadaavocê,evocênãomedevenada.
OolhardeRhysandnãovacilou.
Continuei:
—Nãobastaestarmostodoslivres?—Espalmeiamãotatuadasobreamesa.
—Nofim,acheiquevocêfossediferente,acheiquefossetudoumamáscara,mas
me levarembora,memanter aqui...—Sacudi a cabeça, incapaz de encontrar as
palavras cruéis o suficiente, inteligentes o suficiente para convencer Rhysand a
acabarcomaqueleacordo.
Oolhardeleficousombrio.
—Nãosouseuinimigo,Feyre.
—Tamlin diz que sim.—Fechei os dedos damão tatuada em punho.—
Todosdizemqueé.
—Eoquevocêacha?—Rhysandserecostounacadeiradenovo,masestava
comaexpressãoséria.
—Está fazendoum trabalhomuitobomemmeconvencera concordar com
eles.
—Mentirosa—disseRhys,ronronando.—Pelomenoscontouaseusamigos
sobreoquefizcomvocêSobaMontanha?
EntãoaquelecomentárionocafédamanhãtinhairritadoRhysand.
—Nãoquerofalarsobrenadarelacionadoàquilo.Comvocêoucomeles.
—Não,porqueémuitomaisfácil fingirquenuncaaconteceuedeixarquea
mimem.
—Nãodeixoqueelesmemimem...
— Eles a embrulharam como um presente ontem. Como se você fosse a
recompensadele.
—Edaí?
—Edaí?—Umlampejodeódioquelogosumiu.
—Estouprontaparaserlevadaparacasa—falei,simplesmente.
—Onde ficará enclausurada pelo resto da vida, principalmente depois que
começaracuspirherdeiros.MalpossoesperarparaveroqueIanthefaráquando
puserasmãosneles.
—Vocênãoparecegostarmuitodela.
AlgofrioepredatóriosurgiunosolhosdeRhysand.
—Não,nãopossodizerquegosto.—Eleapontouparaumpedaçodepapel
embranco.—Comeceacopiaroalfabeto.Atéquesuasletrasestejamperfeitas.E
semprequechegaraofim,abaixeeergaseuescudo.Atéqueissosetorneumaação
instintiva.Voltareiemumahora.
—Oquê?
—Copie.O.Alfabeto.Até...
—Ouvioquevocêdisse.—Canalha.Canalha,canalha,canalha.
—Então,aotrabalho.—Rhysficoudepé.—Epelomenostenhaadecência
desómechamardecanalhaquandoseusescudosestiveremerguidosdenovo.
Ele sumiu em uma onda de escuridão antes que eu percebesse que havia
deixadoaparedeadamantinasedissipardenovo.
QuandoRhysvoltou,minhamentepareciaumapoçadelama.
Passeiahorainteirafazendoconformeforacomandado,emboraencolhesseo
corpo ao ouvir cada som vindo da escada próxima: passos baixos de criados, o
farfalhar de lençóis sendo trocados, alguém murmurando uma melodia linda e
envolvente.E,alémdisso,ocantodospássarosquemoravamnocalorsobrenatural
damontanhaounasmuitasárvoresdefrutascítricasplantadasemvasos.Nenhum
sinaldemeutormentoiminente.Nenhumasentinelasequerparamemonitorar.Eu
podiamuitobemterolugartodoparamim.
Oque era bom, poisminhas tentativas de abaixar e erguer o escudomental
costumavamresultaremmeurostocontorcidooucontraídooufranzido.
—Nadamal—elogiouRhys,olhandoporcimademeuombro.
Eleapareceramomentosantes,aumadistânciasaudável,e,seeunãosoubesse
direito,poderiaterpensadoqueeraporqueRhysnãoqueriameassustar.Comose
soubessedavezemqueTamlintinhaseaproximadodefininhoportrásdemimeo
pânicometomaracomtantaforçaqueoderrubeicomumsoconoestômago.Eu
tinhabloqueadoisso—ochoquenorostodeTam,oquantoforafácil derrubá-lo,
ahumilhaçãodetermeuterroridiotatãoexposto...
Rhysavaliouaspáginasnasquaiseu tinhaescrito, folheando-as,verificando
meuprogresso.
Então,umraspardegarrasdentrodeminhamente—oqualapenasarranhou
oadamantinonegroereluzente.
Voltei minha força de vontade contra aquela parede conforme as garras
empurraram,testandopontosfrágeis...
—Ora,ora—ronronouRhysand,eaquelasgarrasmentaisseretraíram.—
Tomara que eu consiga uma boa noite de descanso por fim, se pudermanter a
paredeerguidaduranteosono.
Abaixeioescudo,dispareiumapalavraporaquelapontementalentrenós,e
ergui as paredes de novo. Atrás delas, minha mente oscilou como gelatina. Eu
precisavadeumasoneca.Desesperadamente.
—Posso ser canalha,masolheparavocê.Talvezpossamosnosdivertirum
poucocomnossaslições,afinaldecontas.
EuaindaolhavacomraivaparaascostasmusculosasdeRhysconformemantinha
segurosdezpassosdedistânciaenquantoelemeguiavapeloscorredoresdoprédio
principal,easmontanhasextensaseocéuazulintensoeramasúnicastestemunhas
denossacaminhadasilenciosa.
Euestavaexaustademaisparaindagaraondeíamos,eRhysnãoseincomodou
emexplicarenquantomelevavamaisemaisparacima...atéqueentramosemuma
câmararedondanoaltodeumatorre.
Umamesacirculardepedranegraocupavaocentro,aopassoqueaextensão
maisampladaparededepedracinza ininterruptaestavacobertacomumimenso
mapadenossomundo.Foramarcado, tinhabandeiras e alfinetes,osmotivoseu
nãosabiadizer,masmeuolharpassouparaasjanelasaoredordasala:tantasque
pareciatotalmenteexposta,arejada.Olarperfeito,imaginei,paraumGrão-Senhor
abençoadocomasas.
Rhys caminhou até a mesa, onde havia outro mapa aberto, e miniaturas
pontuavamsuasuperfície.UmmapadePrythian;edeHybern.
Cadacorteemnossaterratinhasidomarcada,assimcomoaldeiasecidadese
riosevales.Cadacorte...excetoaCorteNoturna.
O amplo território setentrional estava totalmente limpo. Nem mesmo uma
cadeia montanhosa tinha sido entalhada. Estranho, era provavelmente parte de
algumaestratégiaqueeunãoentendia.
ViRhysandmeobservando;eleergueuas sobrancelhaso suficienteparame
fazercalarabocadiantedaperguntaqueseformava.
—Nadaaperguntar?
—Não.
Um risinho felino percorreu os lábios de Rhysand, mas ele indicou com o
queixoomapanaparede.
—Oquevocêvê?
—Issoéalgumaformademeconvenceraaceitarasliçõesdeleitura?—De
fato, eu não conseguia decifrar nada da caligrafia, apenas as formas das coisas.
Comoamuralha,alinhaimensaseccionavanossomundoemdois.
—Digaoquevê.
—Ummundodivididoemdois.
—Eachaquedeveriapermanecerassim?
VireiacabeçanadireçãodeRhys.
—Minhafamília...—Eumeinterrompinapalavra.Deveriatercuidadoenão
admitirquetinhaumafamília,quemeimportavacomela...
—Suafamíliahumana—terminouRhys—seriaprofundamenteafetadasea
muralha fosse derrubada, não seria? Tão perto da fronteira... Se tiverem sorte,
fugirãopelooceanoantesqueaconteça.
—Vaiacontecer?
Rhysandnãotirouosolhosdosmeus.
—Talvez.
—Porquê?
—Porqueaguerraseaproxima,Feyre.
Guerra.
Apalavrapercorreumeucorpo,congelouminhasveias.
— Não invada— sussurrei. Eu ficaria de joelho por aquilo. Rastejaria se
precisasse.—Nãoinvada,porfavor.
Rhysinclinouacabeça,contraindooslábios.
—Achamesmoquesouummonstro,mesmodepoisdetudo.
—Porfavor—pedi,arquejando.—Elessãoindefesos,nãoterãochance...
—Nãovouinvadirterrasmortais—disseRhysand,avozmuitobaixa.
Espereiqueelecontinuasse,gratapelasalaespaçosa,peloarlimpoconformeo
chãocomeçavaadeslizarsobmim.
—Ergaaporcariadoescudo—grunhiuRhysand.
Olheiparameuinterioredescobriqueaquelaparedeinvisíveltinhadesabado
denovo.Masestavatãocansada,eseaguerraseaproximava,seminhafamília...
—Escudo.Agora.
A ordem ríspida na voz de Rhysand — a voz do Grão-Senhor da Corte
Noturna—me fez agir por instinto, eminhamente exausta construiu a parede
tijolopor tijolo.Somentequandoprotegiamentedenovoele falou,osolhos se
suavizandoquaseimperceptivelmente:
—AchouqueacabariacomAmarantha?
—Tamlinnãofalou...—Eporqueelemefalaria?Mashaviatantaspatrulhas,
tantasreuniõesdasquaiseunãotinhapermissãodeparticipar,tanta...tensão.Ele
deviasaber.Euprecisavaperguntar...exigirsaberporquenãotinhamecontado...
—OreideHybernestáplanejandoacampanhaparareivindicaromundoao
sul da muralha há mais de cem anos — disse Rhys. — Amarantha foi uma
experiência,umtestede49anos,paravercomquefacilidadeeporquantotempo
umterritóriopoderiacairesercontroladoporumdeseuscomandantes.
Paraumimortal,49anoseranada.Eunãoteriaficadosurpresaaoouvirqueo
reiestavaplanejandoissohámuitomaisqueumséculo.
—EleatacaráPrythianprimeiro?
—Prythian—falouRhys, apontandoparaomapadenossa imensa ilhana
mesa — é tudo o que está entre o rei de Hybern e o continente. Ele quer
reivindicarasterrashumanasdelá, talveztomaralgumasterrasfeéricastambém.
Se alguémdeve interceptar a frotade conquista antes que chegue ao continente,
seremosnós.
Deslizei para uma das cadeiras, e meus joelhos tremiam tanto que eu mal
conseguiaficardepé.
—Ele vai tentar removerPrythian do caminho rápida e completamente—
continuouRhys.—Edestruiramuralhaemalgummomentonoprocesso.Jáhá
buracos, embora, ainda bem, sejam pequenos o suficiente para tornar difícil a
passagemdeseusexércitoscomagilidade.Elevaiquererderrubaracoisatoda,e
provavelmenteusaropânicosubsequenteemvantagemprópria.
Cadafôlegoeracomoengolirvidro.
—Quando... quando ele vai atacar?—Amuralha aguentara firmedurante
cincoséculos,e,mesmoentão,aquelesmalditosburacostinhampermitidoqueas
mais cruéis e famintas bestas feéricas passassemde fininho e caçassemhumanos.
Semaquelamuralha, seHybern fosse de fato lançar umataque contra omundo
humano...Desejeinãotercomidoumcafédamanhãtãofarto.
—Essaéagrandepergunta—disseRhysand.—Eomotivopeloqualeua
trouxeaqui.
Erguiorostoeoencareidevolta.OrostodeRhysestavaretraído,mascalmo.
—NãoseiquandoouondeeleplanejaatacarPrythian—continuouRhys.—
Nãoseiquempodemserseusaliados.
—Eleteriaaliadosaqui?
Umlentoacenodecabeça.
—Covardesquesecurvariamesejuntariamaele,emvezdelutarcontraseus
exércitosdenovo.
Eupodia jurar queum sussurrode escuridão se espalhoupelo chão atrás de
Rhysand.
—Você...vocêlutounaGuerra?
Porummomento,acheiqueRhysnãoresponderia.Masdepoiseleassentiu.
—Euerajovem,paranossospadrões,pelomenos.Masmeupaitinhaenviado
ajudaparaaaliançaentremortaise feéricosnocontinente,eeuoconvenciame
deixar levaruma legiãodenossos soldados.—Rhysandse sentounacadeiraao
lado da minha, o olhar vazio para o mapa. — Eu estava posicionado no sul,
exatamente onde a luta era mais intensa. O massacre foi...— Rhys mordeu o
interior da bochecha.—Não tenho interesse em jamais ver um massacre total
comoaqueleoutravez.
Rhyspiscou,comoseafastasseoshorroresdamente.
— Mas não acho que o rei de Hybern vai atacar daquela forma, não a
princípio.Éinteligentedemaisparadesperdiçarasforçasdeleaqui,paradartempo
aocontinentedesereunirenquantooenfrentamos.SeagirparadestruirPrythiane
amuralha,serápormeiodedissimulaçãoeardil.Paranosenfraquecer.Amarantha
foi a primeira parte de um plano. Agora temos diversos Grão-Senhores
inexperientes, cortes destruídas com Grã-Sacerdotisas buscando controle, como
lobos em volta de uma carcaça, e um povo que percebeu o quanto pode ser
realmenteimpotente.
—Porqueestámecontandoisso?—perguntei,avozfina,rouca.Nãofazia
sentidoalgumqueRhysandrevelassesuassuspeitas,seusmedos.
E Ianthe... ela podia ser ambiciosa,mas era amigadeTamlin.Minhaamiga,
mais ou menos. Talvez a única aliada que teríamos contra as demais Grã-
Sacerdotisas,apesardaantipatiapessoaldeRhyscontraela...
—Estoucontandopordoismotivos—respondeuele,aexpressãotãofria,tão
calmaquemedeixou tão inquietaquantoasnotíciasquedava.—Um,vocêé...
próximadeTamlin.Eletemoshomensdele,mastambémtemlaçosantigoscom
Hybern...
—Elejamaisajudariaorei...
Rhysergueuamão.
—Quero saber seTamlin está disposto a lutar conosco. Se podeusar essas
conexões em nossa vantagem. Como ele e eu temos um relacionamento difícil,
vocêtemoprazerdeseraintermediária.
—Tamlinnãomeinformadessascoisas.
—Talvezsejahoradeinformar.Talvezsejahoradevocêinsistir.—Rhysand
examinouomapa,eseguiseuolharparaverondepararia.Namuralhadentrode
Prythian,nopequenoevulnerávelterritóriomortal.Minhabocasecou.
—Qualéseuoutromotivo?
Rhysmeolhoudecimaabaixo,avaliando,sopesando.
—Vocêtemumconjuntodehabilidadesdequepreciso.Dizemosboatosque
vocêpegouumSuriel.
—Nãofoitãodifícil.
—Játenteiefracassei.Duasvezes.Masessaéumadiscussãoparaoutrodia.
EuaviencurralaroVermedeMiddengardcomoumcoelho.—OsolhosdeRhys
brilharam.—Precisoquemeajude.Queuseessassuashabilidadesparaencontrar
oquepreciso.
—Dequeprecisa?Éalgorelacionadoaminhaleituraeameuescudomental,
imagino?
—Vaidescobrirsobreissodepois.
Eunãosabiaporquetinhamedadootrabalhodeperguntar.
—Devehaverpelomenosumadezenadeoutroscaçadoresmaisexperientese
habilidosos...
—Talvezhaja.Masvocêéaúnicaemquemconfio.
Pisquei.
—Eupoderiatrairvocêquandoquisesse.
—Poderia.Masnãoofará.—Trinqueiosdenteseestavaprestesadizeralgo
maldosoquandoRhysandacrescentou:—Etemaquestãodeseuspoderes.
—Nãotenhopoderes.—Afrasesaiutãorápidoquenãotevechancedesoar
comoqualquercoisaquenãofossenegação.
Rhyscruzouaspernas.
—Nãotem?Aforça,avelocidade...Senãosoubesse,diriaquevocêeTamlin
estãofazendoumtrabalhomuitobomaofingirquevocêénormal.Queospoderes
queestáexibindonãosãonormalmenteaprimeiraindicaçãoentrenossopovode
queofilhodeumGrão-Senhorsetornaráseuherdeiro.
—NãosouumGrão-Senhor.
—Não,masrecebeuvidade todosnóssete.Suameraessênciaestá ligadaa
nós,nasceudenós.Esedemosmaisqueesperávamos?—Denovo,aqueleolhar
recaiusobremim.—Esevocêpudessenosenfrentar...teraprópriaforça,seruma
Grã-Senhora?
—NãoháGrã-Senhoras.
AssobrancelhasdeRhysandsefranziram,maselesacudiuacabeça.
—Conversaremossobreissomaistardetambém.Massim,Feyre,pode haver
Grã-Senhoras.Etalvezvocênãosejaumadelas,mas...esefossealgosemelhante?
EsepudesseempunharopoderdeseteGrão-Senhoresdeumavez?Esepudesse
sedissiparnaescuridão,mudardeformaoucongelarumasalainteira,umexército
inteiro?
O vento do inverno nos picos próximos parecia rugir em resposta. Aquela
coisaquesentisobapele...
—Entende o que isso pode significar em uma guerra iminente? Entende o
quantoissopodedestruí-lasenãoaprenderacontrolá-lo?
—Um,paredefazertantasperguntasretóricas.Dois,nãosabemosseeutenho
essespoderes...
—Vocêtem.Masprecisacomeçaradominá-los.Adescobriroqueherdoude
nós.
—E imaginoque sejavocêquemvaimeensinar também?Lereerguerum
escudonãobastam?
—Enquantocaçacomigooquepreciso,sim.
Comeceiasacudiracabeça.
—Tamlinnãovaipermitir.
—Tamlinnãoéseudono,evocêsabedisso.
—Sousúditadele,eeleémeuGrão-Senhor...
—Vocênãoésúditadeninguém.
Fiquei imóvel quando ele exibiu os dentes, as asas como fumaça que se
abriram.
— Vou dizer isso uma vez, e apenas uma vez — ronronou Rhysand,
caminhando até o mapa na parede.— Pode ser um peão, ser a recompensa de
alguém e passar o resto da vida imortal se curvando e buscando aprovação e
fingindosermenosqueele,queIanthe,quequalquerumdenós.Sequiserescolher
essecaminho,então,tudobem.Éumapena,masaescolhaésua.—Asombrade
asasonduloudenovo.—Masconheçovocê,maisdoquevocêpercebe,acho,e
não acredito por umminuto que esteja remotamente satisfeita em ser um troféu
bonitinho para alguém que ficou sentado durante quase cinquenta anos, e então
ficousentadoenquantovocêeradespedaçada...
—Pare...
—Ou—insistiuRhysand—temoutraescolha.Podedominarquaisquerque
sejamospoderesquelhedemosefazê-losvalerapena.Podeterumpapelnessa
guerra.Porqueaguerraestáchegando,deumaformaoudeoutra,enãotentese
iludirachandoquequalquerdosfeéricosdaráamínimaparasuafamíliadooutro
ladodamuralhaquandonossoterritório inteiroestiverna iminênciadese tornar
umossuário.
Encareiomapa,encareiPrythian,eaquelefiapodeterranabasesul.
—Quer salvar o reinomortal?— perguntouRhysand.—Então, torne-se
alguém em quem Prythian presta atenção. Alguém vital. Torne-se uma arma.
Porquepodevirumdia,Feyre,emqueapenasvocêestaráentreoreideHyberne
suafamíliahumana.Evocênãoquerestardespreparada.
Erguioolharparaele,semfôlego,dolorida.
ComoseRhysandnão tivesse acabadodepuxaromundodebaixodemeus
pés,eleacrescentou:
—Pensebem.Tomeasemanaparaisso.PergunteaTamlin,seissoaajudara
dormir.Veja o que a encantadora Ianthe diz a respeito.Mas a escolha é sua, de
maisninguém.
NãoviRhysandduranteorestodasemana.OuMor.
AsúnicaspessoasqueencontreiforamNualaeCerridwen,quetraziamminhas
refeições, arrumavam minha cama e, ocasionalmente, perguntavam como eu
estava.
Aúnicaevidênciaqueeu tinhadequeRhysandaindaestavanapropriedade
estavanascópiasdoalfabeto,comdiversasfrasesqueeudeveriaescrevertodosos
dias,trocandopalavras,cadaumamaisirritantequeaanterior:
RhysandéoGrão-Senhormaislindo.
RhysandéoGrão-Senhormaisagradável.
RhysandéoGrão-Senhormaisinteligente.
Tododia,umafrasemiserável...comaalteraçãodeumapalavradearrogância
evaidadediversas.Etododia,outrosimplesconjuntodeinstruções:escudopara
cima,escudoparabaixo;escudoparacima,escudoparabaixo.Diversasediversas
vezes.
Comoelesabiaseeuobedeciaounão,nãomeimportava,masmergulheinas
lições, ergui e baixei e reforcei aqueles escudosmentais.Pelomenos porque era
tudoqueeutinhaparafazer.
Meuspesadelosmedeixavamzonza,suada;noentantooquartoeratãoaberto,
aluzdasestrelaseratãoforteque,quandoacordavasobressaltada,nãocorriapara
obanheiro.Nenhumaparedemesufocava,nenhumaescuridãocomonanquim.Eu
sabiaondeestava.Mesmoquemeressentisseporestarali.
Nodiaantesdenossasemanafinalmenteterminar,euestavaarrastandoospés
atéminhamesinhadesempre,jáfazendoumacaretaaopensarnasbelasfrasesque
encontrariaàesperaeem todaaacrobaciamentalqueviria,quandoasvozesde
RhyseMorflutuaramemminhadireção.
Era um espaço público, então não me incomodei em disfarçar os passos
conformeme aproximei de onde eles conversavam, em uma das áreas de estar,
Rhyscaminhandodeumladoparaoutrodiantedopenhascoabertodamontanha,e
Mordeitadaemumapoltronadecordecreme.
—Azrieliriagostardesaberdisso—diziaMor.
— Azriel pode ir para o inferno — disparou Rhys de volta. — Ele
provavelmentejásabemesmo.
—Fizemos joguinhos da última vez— comentouMor, comuma seriedade
quemefezpararaumadistânciasegura.—Eperdemos.Feio.Nãofaremosaquilo
denovo.
—Vocêdeveria estar trabalhando.—Foi a única respostadeRhysand.—
Deiocontroleavocêporummotivo,sabedisso.
OmaxilardeMorsecontraiu,eela,porfim,meencarou.Mormelançouum
sorrisoquepareceumaisumtremular.
Rhyssevirou,franzindoatestaaomever.
— Diga o que veio até aqui dizer, Mor— falou Rhys, tenso, voltando a
caminhar.
Morrevirouosolhosparamim,masorostoficouseveroquandofalou:
—Houve outro ataque, um templo emCesere.Quase todas as sacerdotisas
mortas,otesourosaqueado.
Rhysparou.Eeunãosoubeoqueregistrar:anotíciadeMorouopuroódio
transmitidoporumapalavraquandoRhysfalou:
—Quem.
— Não sabemos — disse Mor. — Mesmos rastros da última vez: grupo
pequeno, corpos que mostravam sinais de ferimentos de grandes lâminas, e
nenhum sinal do lugar de onde vieram ou como desapareceram. Nenhum
sobrevivente.Oscorpossóforamencontradosumdiadepoisquandoumgrupode
peregrinosapareceu.
PeloCaldeirão.Eudeviaterfeitoumbarulhobaixinho,porqueMormeolhou
deformatensa,mascomempatia.
JáRhys...Primeiroassombrascomeçaram...plumasvindasdesuascostas.
Então,comoseoódiotivesselibertadoaquelabestaaqualRhysandcertavez
medissequeodiavaceder,asasasseconcretizaram.
Asasenormes,lindas,cruéis,palmadasecomgarrascomoasdeummorcego,
escurascomoanoiteefortescomonadamais.Atéaformacomoeleficavadepé
pareceu alterada: mais firme, equilibrada. Como se uma última peça de Rhys
tivesseestaladonolugar.Masavozaindapareciasuavecomoameia-noitequando
eledisse:
—OqueAzrieldissearespeitodisso?
De novo, aquele olhar de Mor, como se não soubesse se eu deveria estar
presenteparaoquequerquefosseaquelaconversa.
—Eleestátranstornado.Cassianaindamais,estáconvencidodequedeveser
uma das tropas de guerra illyrianas desertoras, determinadas a conquistar novo
território.
—É algo a considerar—ponderouRhys.—Alguns dos clãs illyrianos se
curvaram satisfeitos para Amarantha durante aqueles anos. Tentar expandir as
fronteiraspodeserseumododeveratéondepodemmeperturbaresairilesos.—
Eu odiei o som do nome dela,me concentrei nelemais que na informação que
Rhyspermitiaqueeucontemplasse.
—Cassian eAz estão esperando...—Mor se interrompeu eme lançou um
gestodedesculpas.—Estãoesperandonolugardesempreporsuasordens.
Tudobem...não tinhaproblema.Euviraaquelemapaembranconaparede.
Eu era a noiva de um inimigo. Sequer mencionar onde suas forças estavam
posicionadas, o que planejavam, podia ser perigoso. Eu não fazia ideia de onde
sequerficavaCesere;oudoqueera,naverdade.
Rhysobservouoar abertodenovo,oventouivantequeempurravanuvens
escuraseespiraladassobrepicosdistantes.Bomtempo,percebi,paravoar.
—Atravessarseriamaisfácil—argumentouMor,seguindooolhardoGrão-
Senhor.
—Digaaosdesgraçadosquechegareiemalgumashoras—respondeuRhys,
simplesmente.
Mormedeuumsorrisocautelosoesumiu.
Avalieioespaçovazioondeelaestivera,nãorestaraumtraçodeMor.
—Comoesse...desaparecimentofunciona?—perguntei,baixinho.Eusóvira
poucosGrão-Feéricosofazerem,enenhumjamaisexplicaracomo.
Rhysnãomeolhou,masrespondeu:
—Atravessia?Pensenissocomo...doispontosdiferentesemumtecido.Um
pontoéseulocalatualnomundo.Ooutro,dooutroladodotecido,éparaonde
vocêquer ir.Atravessar... é comodobrar esse tecidoparaqueosdoispontos se
alinhem.Amagia fazadobra,e tudoque fazemosédarumpassopara irdeum
lugaraooutro.Àsvezeséumpasso longo,edáparasentiro tecidosombriodo
mundo conforme atravessamos.Umpassomais curto, digamos, de uma ponta a
outradasala,malseriaregistrado.Éumdomraro...eútil.Masapenasosfeéricos
mais fortes conseguem fazê-lo. Quanto mais poderoso, mais longe se consegue
saltarentrelugaresdeumavez.
Eu sabia que a explicação era tanto paramimquanto para distrairRhysand.
Masmepegueidizendo:
—Sintomuitopelotemplo...epelassacerdotisas.
AiraaindalhereluzianosolhosquandoRhysand,porfim,sevirouparamim.
—Muitomaispessoasmorrerãoembrevemesmo.
Talvez fossepor issoqueele tivessepermitidoqueeumeaproximasse,para
ouviraquelaconversa.Paramelembrardoquepoderiamuitobemacontecercom
Hybern.
—Oquesão...—hesitei.—Oquesãotropasdeguerraillyrianas?
—Desgraçadosarrogantes,éissoquesão—murmurouRhys.
Cruzeiosbraços,esperando.
Eleestendeuasasas,ealuzdosolfezcomqueatexturaencouraçadarefletisse
coressutis.
—Sãoumaraçaguerreirademinhasterras.Ecostumamserumpénosaco.
—AlgunsdelesapoiaramAmarantha?
A escuridão dançou no corredor quando uma tempestade distante se
aproximouosuficienteparasufocarosol.
— Alguns. Mas eu e os meus temos nos divertido caçando-os nos últimos
meses.Eexterminando-os.
DevagarfoiapalavraqueRhysandnãoprecisouacrescentar.
—Foiporissoqueficouafastado...estavaocupadocomisso?
—Euestavaocupadocommuitascoisas.
Nãoeraumaresposta.MaspareciaqueRhysandtinhaterminadoaconversa,e
quem quer que fossemCassian eAzriel... encontrar-se com eles eramuitomais
importante.
Então Rhys nemmesmo se despediu antes de simplesmente caminhar até a
beiradavaranda—eselançaraosares.
Meucoraçãosubitamentedeuumsalto,mas,antesqueeuconseguissegritar,
Rhys subiu, ágil como o vento travesso entre os picos. Algumas batidas
estrondosasdasasasofizeramdesaparecerparadentrodasnuvensdetempestade.
— Tchau para você também — resmunguei, fazendo um gesto vulgar, e
comeceimeutrabalhododia,comapenasatempestaderugindoalémdaproteção
dacasacomocompanhia.
Mesmo conforme a neve fustigava amagia que protegia o corredor,mesmo
enquanto eu trabalhava nas frases — Rhysand é interessante; Rhysand é lindo;
Rhysandéperfeito—eerguiaeabaixavameuescudomentalatéamentemancar,
pensavanoquetinhaouvido,noquetinhamdito.
Imaginei o que Ianthe saberia sobre os assassinatos, se conhecia alguma das
vítimas. Sabia o que era Cesere. Se os templos eram alvos, Ianthe devia saber.
Tamlindeviasaber.
Naquelaúltimanoite,malconseguidormir;emparteporalívio,empartepor
terror de que talvez Rhysand tivesse realmente alguma cruel surpresa final
guardada.Masanoiteeatempestadepassaram,e,quandooalvorecerchegou,eu
estavavestidaantesdeosolterminardenascer.
Tinha passado a comer em meus aposentos, mas subi as escadas correndo,
dirigindo-meatéaquelaimensaáreaaberta,atéamesanavarandamaisafastada.
Jogadonacadeiradesempre,Rhysvestiaasmesmasroupasdodiaanterior,o
colarinhodocasacopretoestavadesabotoado,eacamisa,tãoamassadaquantoo
cabelo.Nenhumaasa,aindabem.Imagineiseteriaacabadodevoltardeondequer
quetivesseencontradoMoreosdemais.Oqueteriadescoberto.
—Fazumasemana—falei,comocumprimento.—Meleveparacasa.
Rhys tomou um longo gole do que quer que estivesse em sua xícara. Não
pareciachá.
—Bomdia,Feyre.
—Meleveparacasa.
Ele observou minhas roupas em tons de azul e dourado, uma variação dos
modelitosdodiaadia.Seprecisasseadmitir,gostavadeles.
—Essacorcombinacomvocê.
—Querqueeupeçaporfavor?Éisso?
— Quero que fale comigo como uma pessoa. Comece com “bom dia”, e
veremosaondeissonosleva.
—Bomdia.
Umlevesorriso.Canalha.
—Estáprontaparaenfrentarasconsequênciasdesuapartida?
Enrijeci o corpo.Não tinha pensado no casamento.Durante toda a semana,
sim, mas naquele dia... naquele dia eu só pensava em Tamlin, em querer ver
Tamlin, abraçá-lo, perguntar sobre tudoqueRhys afirmara.Duranteosúltimos
dias,nãotinhamostradoqualquersinaldopoderqueRhysacreditavaqueeutinha,
nãosentiranadaseagitandosobminhapele—egraçasaoCaldeirão.
—Nãoédesuaconta.
— Certo. Provavelmente vai ignorá-las mesmo. Varrer para debaixo do
tapete,comotodooresto.
—Ninguémpediusuaopinião,Rhysand.
—Rhysand?—Eleriu,graveesuavemente.—Douavocêumasemanade
luxo,evocêmechamadeRhysand?
—Nãopediparaestaraqui,ouparaganharessasemana.
—Eolhesóparavocê.Seurostoganhouumacor...eaquelasmarcassobos
olhosquasesumiram.Seuescudomentalestáespetacular,aliás.
—Porfavor,meleveparacasa.
Rhysdeudeombroseficoudepé.
—DireiaMorquevocêsedespediu.
—Eumalaviasemanatoda.—Apenasnaqueleprimeiroencontroe,depois,
duranteaconversaontem.Quandonãotrocamosduaspalavras.
—Elaestavaesperandoumconvite...nãoaqueriaincomodar.Queriaqueela
estendesseamimtalcortesia.
—Ninguémmefalou.—Eunãomeimportavamuito.SemdúvidaMortinha
coisasmelhoresafazermesmo.
—Vocênãoperguntou.Eporque se incomodar?Melhor ficar deprimida e
sozinha.—Rhysseaproximou,ecadapassoerasuave,gracioso.Ocabeloestava
definitivamenteembaraçado,comosetivessepassadoasmãosporele.Ouapenas
voadodurantehorasparaqualquerquefosseolocalsecreto.—Pensouemminha
oferta?
—Avisareinomêsquevem.
Rhysparouaumpalmodedistância,orostodouradoestavatenso.
—Eudisseumavezedireidenovo—falouele.—Nãosouseuinimigo.
—Eeujáfaleiumavezedireidenovo:vocêéinimigodeTamlin.Então,acho
queissootornameuinimigo.
—Torna?
—Melibertedoacordo,evamosdescobrir.
—Nãopossofazerisso.
—Nãopodeounãoquer?
Rhysandapenasestendeuamão.
—Vamos?
Quase pulei para lhe tomar amão.OsdedosdeRhys estavam frios, firmes;
calejadosdevidoaarmasqueeujamaisviracomele.
Aescuridãonosengoliu,efoiinstintivosegurarRhysquandoomundosumiu
sobmeuspés.Aquiloeraumatravessiamesmo.Oventosoproucontramim,eo
braço de Rhys era um peso quente e denso em minhas costas conforme
tropeçávamospelosmundos,Rhysrindodemeuterror.
E então, terra firme— piso em lajotas— estava sobmim, e sol ofuscante
acima,everde,epequenospássaroscantando...
Empurrei Rhys para me afastar, piscando diante da claridade, do imenso
carvalhocurvadosobrenós.Umcarvalhonabeiradosjardinsformais...deminha
casa.
Fizmençãodedispararparaamansão,masRhysseguroumeupulso.Osolhos
semoveramdemimparaamansão.
—Boasorte—cantarolouRhys.
—Tireamãodemim.
Eleriu,mesoltando.
—Vejovocênomêsquevem—falouRhysand,e,antesqueeuconseguisse
cuspirnele,Rhyssumiu.
EncontreiTamlinnoescritório;Lucieneduasoutrassentinelasestavamdepéem
voltadaescrivaninhacobertaporummapa.
Lucienfoioprimeiroasevirarparaondeeuestavaparadaàporta,calando-se
nomeiodafrase.MasentãoacabeçadeTamlinseergueu,eeledisparoupelasala,
tãorápidoquemaltivetempodeinspirarantesquemeesmagassecontrasi.
MurmureionomedeTamlin,eminhagargantaqueimou,então...
Entãoelemeseguroucomosbraçosesticados,meobservandodacabeçaaos
pés.
—Vocêestábem?Estáferida?
— Estou bem — assegurei, percebendo imediatamente quando Tamlin
reparounasroupasdaCorteNoturnaqueeuvestia,notrechodepeleexpostano
meutronco.—Ninguémmetocou.
Mas Tamlin continuou avaliando meu rosto, meu pescoço. Depois, ele me
virou,examinandominhascostas,comosepudessediscernirpelasroupas.Eume
desvencilhei.
—Eudissequeninguémmetocou.
Tamlinrespiravacomdificuldade,oolharselvagem.
—Vocêestábem—disseele.Erepetiu.Erepetiu.
Meucoraçãosepartiu,eestendiamãoparasegurarsuabochecha.
—Tamlin—murmurei.Lucien e as demais sentinelas, sabiamente, saíram.
Meuamigomeencarouaosair,medandoumsorrisodealívio.
—Ele pode ferir você de outras formas—ponderouTamlin, a voz rouca,
fechandoosolhosaosentirmeutoque.
—Eusei...masestoubem.Estoumesmo—respondiomaiscarinhosamente
que pude. Então, reparei nas paredes do escritório, nas marcas de garras que
formavamsulcosatéembaixo.Portodaselas.Eamesaqueestavamusando...era
nova.—Vocêdestruiuoescritório.
—Destruímetadedacasa—disseTamlin,inclinando-separaafrente,afim
detocarminhatestacomadele.—Elealevouembora,roubouvocê...
—Emedeixouempaz.
Tamlinseafastou,grunhindo.
—Provavelmenteparafazercomquebaixassesuaguarda.Nãotemideiados
jogosqueelefaz,doqueécapaz...
—Eusei—respondi,mesmoquearespostativessegostodecinzasemminha
língua.—Edapróximavez,tereicuidado...
—Nãohaveráumapróximavez.
Pisquei.
—Encontrouumasaída?—OutalvezIanthetivesseencontrado.
—Nãovoudeixarquevá.
—Eledissequehaveriaconsequênciascasooacordomágicosejarompido.
— Ao inferno com as consequências. — Mas ouvi a ameaça vazia que
representava...equantoaquiloodestruía.EratambémquemTamlinera,oqueele
era:protetor,defensor.Eunãopodiapedirqueparassedeserassim,queparassede
sepreocuparcomigo.
Fiquei nas pontas dos pés e o beijei.Havia tanto que eu queria perguntar a
Tamlin,mas...depois.
—Vamossubir—falei,nadireçãodoslábiosdele,eTamlinpassouosbraços
emvoltademim.
—Sentisuafalta—disseele,entrebeijos.—Perdiacabeça.
Eratudooqueeuprecisavaouvir.Até...
—Precisofazerumasperguntas.
Solteiumleveruídodeafirmação,masinclineimaisacabeça.
—Depois.
OcorpodeTamlineratãoquente,tãofirmecontraomeu,ocheirodeleera
tãofamiliar...
Tamlinsegurouminhacintura,pressionandoatestacontraaminha.
— Não... agora — insistiu Tamlin, mas gemeu baixinho quando passei a
línguaporseusdentes.—Enquantoaindaestátudofrescoemsuamente.
Congeleicomumadasmãosentrelaçadasemseuscabelos;aoutraseguravaa
partedetrásdesuatúnica.
—Oquê?
Tamlin recuou, sacudindo a cabeça como que para afastar o desejo que
confundiaseussentidos.NãotínhamosficadotantotempolongedesdeAmarantha,
eelequeriameinterrogarparaobterinformaçõessobreaCorteNoturna?
—Tamlin.
Mas ele ergueu uma dasmãos, e seus olhos encararam osmeus quando ele
chamouLucien.
Nosmomentosqueoemissáriodemorouparasurgir,aliseiminhasroupas—a
blusa tinha subido pelo tronco— e penteei os cabelos com os dedos. Tamlin
apenascaminhouatéamesaesesentou,indicandoparaqueeumesentassediante
dele.
— Desculpe — pediu Tamlin baixinho, enquanto os passos distraídos de
Lucienseaproximaramdenovo.—Éparanossoprópriobem.Nossasegurança.
Observeiasparedesdestruídas, amobíliaarranhadae lascada.Quepesadelo
ele sofrera, acordado edormindo, enquanto eu estava fora?Como teria sidome
imaginarnasmãosdoinimigo,depoisdeveroqueAmaranthafizeracomigo?
—Eusei—murmurei,por fim.—Eusei,Tamlin.—Ouestava tentando
saber.
TinhaacabadodemesentarnacadeiradeencostobaixoquandoLucienentrou
efechouaportaatrásdesi.
—Quebomvê-lainteira,Feyre—disseLucien,tomandooassentoaomeu
lado.—MaspoderiaviversemomodelitodaCorteNoturna.
Tamlindeuumgrunhidobaixoemconcordância.Nãofaleinada.Masentendia
—deverdade—porqueaquiloeraumaafrontaaeles.
Tamlin eLucien trocaramolhares, falando sem emitir uma palavra, daquela
formaqueapenaspessoasquesãoamigashaviaséculospodiamfazer.Luciendeu
umleveacenodecabeçaeserecostounacadeira;paraouvireobservar.
—Precisamos que nos conte tudo—explicouTamlin.—Adisposição da
CorteNoturna,quemvocêviu,quearmasepodereselestêm,oqueRhysfez,com
quemelefalou,todoequalquerdetalhedequepossaselembrar.
—Nãopercebiqueeueraumaespiã.
Luciensemoveunacadeira,masTamlinfalou:
— Por mais que eu odeie seu acordo, recebeu acesso à Corte Noturna.
Forasteirosraramenteconseguementrare,seentram,raramentesaeminteiros.E
seconseguemsemover,asmemóriascostumamestar...confusas.Oquequerque
Rhysandestejaescondendo,nãoquerquesaibamos.
Umcalafriopercorreuminhaespinha.
—Porquequersaber?Oquevaifazer?
—Conhecerosplanosdemeuinimigo,seuestilodevida,évital.Quantoao
que faremos... Isso não interessa.—Os olhos verdes deTamlin se fixaram em
mim. — Comece com a disposição da corte. É verdade que fica sob uma
montanha?
—Issoparecemuitocomuminterrogatório.
Lucieninspirou,maspermaneceuemsilêncio.
Tamlinabriuasmãossobreamesa.
—Precisamossaberessascoisas,Feyre.Ou...ounãoconsegueselembrar?—
Garrasbrilharamnosnósdosdedos.
—Consigolembrardetudo—assegurei.—Elenãodanificouminhamente.
—E,antesqueTamlinpudessemeinterrogarmais,comeceiafalarsobretudoque
tinhavisto.
Porqueconfioemvocê,disseraRhysand.Etalvez...talvezeletivesseconfundido
minha mente, mesmo com as lições de escudos mentais, porque descrever a
disposiçãodesuacasa,dacortedeRhysand,asmontanhasaoredor,eracomome
banharemóleoelama.Eleerameuinimigo,mefaziacumprirumacordoqueeu
firmaraporpurodesespero...
Continuei falando, descrevendo aquela sala na torre. Tamlinme interrogou
sobre as figuras nosmapas,me fazendo relatar cada palavra queRhysand tinha
proferido, até que mencionei o que me preocupara mais na última semana: os
poderesqueRhysacreditavaqueeuagorapossuía...eosplanosdeHybern.Contei
a Tamlin sobre a conversa comMor— sobre aquele templo que foi saqueado
(Cesere,explicouTamlin,eraumpostonortedaCorteNoturna,eumadaspoucas
cidadesconhecidas),esobreRhysandmencionarduaspessoaschamadasCassiane
Azriel.Osrostosdosdoisficaramtensosdiantedisso,masnãomencionaramseos
conheciam,ou se tinhamouvido falardeles.Então, contei aTamlin sobreoque
querqueeramosillyrianos...ecomoRhyscaçaraemataraostraidoresentreeles.
Quandoterminei,Tamlinficouemsilêncio,eLucienpraticamentefervilhavacom
quaisquerquefossemaspalavrasreprimidasqueestavadoidoparadizer.
—Vocêachaquepossoteressashabilidades?—perguntei,obrigando-mea
encararTamlin.
—Épossível—respondeuTamlin,igualmentebaixo.—Eseforverdade...
Luciendisse,porfim:
—ÉumpoderpeloqualoutrosGrão-Senhorespodemmatar.—Foidifícil
nãomemoverenquantoseuolhodemetalseagitava,comosedetectassequalquer
quefosseopoderquepercorriameusangue.—Meupai,porexemplo,nãoficaria
felizemsaberqueumagotadopoderdeleestáfaltando,ouqueanoivadeTamlin
agoraotem.Fariaqualquercoisaparasecertificardequevocênãoopossuísse...
inclusivematá-la.HáoutrosGrão-Senhoresqueconcordariam.
Aquelacoisasobminhapelecomeçouaseacumular.
—Eujamaisousariacontraninguém...
—Aquestãonãoéusarcontraeles;éterumavantagemquandonãodeveria
—argumentouTamlin.—E,assimqueseespalharanotícia,vocêteráumalvo
nascostas.
—Sabiadisso?—indaguei.Luciennãomeencarava.—Suspeitava?
—Eu esperava que não fosse verdade—disseTamlin, com cautela.—E
agoraqueRhyssuspeita,nãohácomosaberoqueelefarácomainformação...
—Ele quer que eu treine.—Não era burra o suficiente paramencionar o
treinamentocomoescudomental...nãonomomento.
— Treinar atrairia atenção demais — ponderou Tamlin. — Não precisa
treinar.Possoprotegê-ladoquequerqueaameace.
Pois houve uma época em que ele não pôde. Quando estava vulnerável, e
quandomeobservarasertorturadaatéamorte.Enãopôdefazernadaparaimpedir
Amaranthade...
Eu não permitiria outra Amarantha. Não permitiria que o rei de Hybern
trouxesseasbestaseosseguidoresatéaliparaferirmaispessoas.Paraferiramime
aosmeus.Equederrubasse aquelamuralhapara ferir inúmerosoutros dooutro
lado.
—EupoderiausarmeuspoderescontraHybern.
—Issoestáforadecogitação—decretouTamlin.—Principalmenteporque
nãohaveráguerracontraHybern.
—Rhysdizqueaguerraéinevitávelequeseremosatingidoscomforça.
Luciendisserispidamente:
—ERhyssabetudo?
—Não,mas... estava preocupado.Acha que pode fazer a diferença em um
conflitoiminente.
Tamlinflexionouosdedos,mantendoaquelasgarrasretraídas.
— Você não tem treinamento de batalha ou armas. E, mesmo que eu
começasse a treiná-la hoje, levaria anos até que conseguisse se defender em um
campodebatalhaimortal.—Tamlintomoufôlego,contido.—Então,apesardo
queeleachaquepossasercapazdefazer,Feyre,nãovoudeixarquecheguenem
perto de um campo de batalha. Principalmente se isso significa revelar a nossos
inimigos quaisquer que sejam os poderes que você possui. Estaria enfrentando
Hybernpelafrenteeteriainimigoscomrostosfamiliaresàscostas.
—Nãomeimporto...
—Eume importo—grunhiuTamlin.Lucienexalou.—Eumeimportose
vocêmorrer,sevocêseferir,seestiveremperigoatodomomentopelorestode
nossasvidas.Portanto,nãohaverátreinamento,evamosmanterissoentrenós.
—MasHybern...
Lucieninterveio,calmamente:
—Játenhominhasfontesinvestigando.
Lanceiaeleumolhardesúplica.
LuciensuspiroudeleveefalouparaTamlin:
—Setalvezatreinássemossecretamente...
—Háriscosdemais,variáveisdemais—replicouTamlin.—Enãohaverá
conflitocomHybern,nadadeguerra.
Disparei:
—Issoéumdesejoseu.
LucienmurmuroualgoquesooucomoumasúplicaaoCaldeirão.
Tamlinenrijeceuocorpo.
—Descreva essa sala demapas paramimdenovo.—Foi a única resposta
dele.
Fimdadiscussão.Semespaçoparadebate.
Nósnosencaramosporummomento,emeuestômagosereviroumais.
TamlineraoGrão-Senhor;meuGrão-Senhor.Eraoescudoeodefensorde
seu povo. De mim. E se me manter segura significava que seu povo podia
continuarateresperanças,aconstruirumanovavida,queTamlinpoderiafazero
mesmo...Eupodiamecurvaraelenaquelaquestão.
Eupodiafazerisso.
Vocênãoésúditadeninguém.
TalvezRhysandtivessealteradominhamente,comousemescudos.
Somente essa ideia bastou para que eu começasse a dar detalhes a Tamlin
novamente.
Umasemanadepois,oTributochegou.
Eu pude passar apenas um dia com Tamlin— um dia perambulando pela
propriedade,fazendoamornogramadoaltodeumcampoensolarado,seguidode
um jantar calmo e particular— antes que ele fosse chamado para a fronteira.
Tamlinnãomecontouporqueouparaonde.Apenasqueeudeveriapermanecer
napropriedade,equeteriasentinelasmevigiandootempotodo.
Então,passeia semanasozinha,acordandonomeiodanoiteparavomitaras
tripas, para chorar em meio aos pesadelos. Ianthe, se soubera do massacre das
irmãs no norte, não dissera nada a respeito nas poucas vezes em que a vi. E,
considerandooquãopoucoeugostavade ser forçadaaconversar sobre todasas
coisasquemeincomodavam,escolhinãomencionarnadaduranteashorasqueela
passava visitando, ajudando a escolherminhas roupas,meu cabelo,minhas joias
paraoTributo.
Quandopedique Iantheexplicasseoqueeupoderia esperardoTributo, ela
apenasdissequeTamlincuidariadetudo.Eudeveriaobservaraoladodele,prestar
atenção.
Bemfácil...etalvezumalívioquenãoesperassemqueeufalasseouagisse.
Maseutinhafeitomuitoesforçoparanãoolharparaoolhotatuadoemminha
palma...elembraroqueRhysmedissera,grunhindo.
TamlinhaviavoltadonanoiteanteriorapenasparasupervisionaroTributodo
dia.Tenteinãolevaraquiloparaoladopessoal,nãoquandoeletinhatantosobre
osombros.MesmoqueTamlinnãomecontassemuito sobreoTributoalémdo
queIanthetinhamencionado.
Sentada ao lado deTamlin sobre um altar no salão principal demármore e
ourodamansão,suporteiasfileirasintermináveisdeolhares,lágrimas,gratidãoe
bênçãospeloqueeufizera.
Comahabitual túnicaazul-clarocomcapuz,Iantheestavaposicionadaperto
dasportas,oferecendobênçãosàquelesquepartiam,palavrasdeconfortoaosque
perdiam completamente a compostura em minha presença, promessas de que o
mundoestavamelhoragora,dequeobemprevalecerasobreomal.
Depoisdevinteminutos,eupareciaquasemeagitardeinquietude.Depoisde
quatrohoras,pareideouvircompletamente.
Eles continuavam a vir, os emissários, representando cada cidade e povo na
CortePrimaveril,trazendopagamentosnaformadeourooujoiasougalinhasou
colheitasouroupas.Nãoimportavaoquefosse,contantoqueequivalesseaoque
deviam.Lucien ficou aopédo altar, contabilizando cadaquantia, armado até os
dentescomoasdezoutrassentinelasposicionadaspelosalão.Aquelaeraasalade
recepção, como a chamaraLucien, embora se parecessemuito comum salão de
tronoparamim.Imagineiseelechamavaassimporqueasoutraspalavras...
Eutinhapassadomuitotempoemoutrosalãodotrono.AssimcomoTamlin.
Enãoopassarasentadaemumaltar,comoTamlin,masajoelhadadiantedele.
Aproximava-me daquele altar como a feérica esguia, de pele cinzenta, que
avançavaacanhadadafrentedafilainterminávelcheiadeGrão-Feéricosinferiores.
Elanãousavaroupas.Oslongoscabelosescurospendiamesmaecidossobreos
seios empinados e firmes — e os imensos olhos eram completamente negros.
Comoum lagoparado.E, conformesemovia, a luzda tarde reluziana suapele
iridescente.
O rosto de Lucien se contraiu em reprovação,mas ele não fez comentários
quando a feérica inferior abaixou o rosto delicado e de feições pontiagudas e
cobriu,comosmagrosdedospalmados,osseios.
—Emnomedosespectrosdaágua,euocumprimento,Grão-Senhor—disse
a feérica, com a voz estranha, sibilante, os lábios carnudos e sensuais revelando
dentesafiadoseirregularescomoosdeumlúcio.Osângulosagudosdasfeiçõesdo
rostodestacavamaquelesolhospretoscomocarvão.
Euviraotipodelaantes.Nolago,logoalémdolimitedamansão.Haviacinco
delasmorando entre os juncos e as ninfeias. Eumal conseguira vermais que as
cabeças reluzentes despontando pela superfície vítrea; jamais soubera o quanto
eram assustadoras de perto.Graças aoCaldeirão que jamais nadei naquele lago.
Tinhaa sensaçãodequea feéricame seguraria comaquelesdedospalmados—
aquelas unhas pontudas se enterrariam fundo — e me puxaria para baixo da
superfícieantesqueeuconseguissegritar.
—Bem-vinda—cumprimentouTamlin.Depoisdecincohoras, eleparecia
tãodispostoquantonaquelamanhã.
Imaginei que, com o retorno dos poderes, poucas coisas cansassem Tamlin
agora.
Oespectrodaáguaseaproximou,opépalmadoecheiodegarraserasalpicado
decinza.Luciendeuumpassocasualentrenós.
Porissoeleestavaposicionadodomeuladodoaltar.
Trinqueiosdentes.Quemelesacreditavamquenosatacariaemnossolar,ou
emnossaterra,senãoestavamconvencidosdequeHybernpoderiaorganizaruma
ofensiva?AtémesmoIanthepararacomosmurmúriosbaixosno fundodosalão
paramonitoraroencontro.
Aparentemente,aquelaconversanãoeracomoasdemais.
—Por favor,Grão-Senhor— implorou a feérica, com uma reverência tão
baixaqueoscabelospretoscomonanquimroçaramomármore.—Nãohámais
peixesnolago.
OrostodeTamlineracomogranito.
—Independentemente,espera-sequevocêpague.—Acoroasobreacabeça
deTamlinreluziuàluzdatarde.Feitacomesmeraldas,safiraseametista,oouro
foramoldadoemumagrinaldadasprimeirasfloresdaprimavera.Eraumadecinco
coroaspertencentesàlinhagemdeTamlin.
Afeéricaexpôsaspalmasdasmãos,masTamlinainterrompeu.
—Nãoháexceções.Temtrêsdiasparaapresentaroqueédevido,ouoferecer
odobronoTributoseguinte.
Foidifícilevitarolharcomespantoparaorostoimóveleparaaspalavrassem
misericórdia.No fundo, Ianthe deu um aceno de confirmação para ninguém em
particular.
Oespectrodaáguanãotinhanadaparacomer...comoTamlinpodiaesperar
queeladessecomidaaele?
—Porfavor—sussurrouafeéricaentreosdentesafiados,apeleprateadae
sarapintadareluzindoquandoelacomeçouatremer.—Nãorestounadanolago.
OrostodeTamlinnãosealterou.
—Vocêtemtrêsdias...
—Masnãotemosouro!
—Não me interrompa— disse Tamlin. Virei o rosto, incapaz de suportar
aquelaexpressãoimpiedosa.
Afeéricaabaixouaindamaisacabeça.
—Perdão,meusenhor.
—Tem três dias para pagar, ou traga o dobro nomês seguinte— repetiu
Tamlin. — Se falhar em fazer isso, conhece as consequências. — Tamlin
gesticuloucomamãoparadispensá-la.Fimdaconversa.
DepoisdeumúltimoolhardesesperançadoparaTamlin,o espectrodaágua
saiudosalão.Enquantoofeéricoseguinte—umgamocompernasdebodeque
carregava o que parecia ser um cesto de cogumelos— pacientemente esperava
paraserconvidadoaseaproximardoaltar,eumevireiparaTamlin.
—Nãoprecisamosdeumcestodepeixes—murmurei.—Porque fazê-la
sofrerassim?
Tamlin voltou os olhos na direção de Ianthe, que tinha se afastado para
permitirqueacriaturapassasse;Ianthemanteveumadasmãosnasjoiasdocinto.
Comoseafeéricapudessearrancá-lasparausarcomopagamento.Tamlinfranziua
testa.
—Nãopossofazerexceções.Sefizer,todosexigirãoomesmotratamento.
Segurei com forçaos braçosda cadeira, umpequeno assentode carvalho ao
ladodoimensotronoderosasentalhadasdeTamlin.
—Masnãoprecisamos dessas coisas.Porqueprecisamosdeumvelocinode
ouro, ou de um pote de geleia? Se ela não temmais peixes, três dias não farão
diferença. Por que fazer com que passe fome? Por que não a ajudar a encher
novamenteo lago?—Eutinhapassadomuitosanoscomoestômagovaziopara
ignoraraquilo,paranãoquerergritardiantedaquelainjustiça.
OsolhosesmeraldadeTamlinsesuavizaramquandoeleleucadapensamento
emmeurosto,masdisse:
—Porqueéassimqueascoisassão.Eraassimquemeupaifazia,eopaidele,e
omodocomomeufilhoofará.—Tamlinofereceuumsorrisoeestendeuamão
paraaminha.—Algumdia.
Algumdia.Seconseguíssemosnoscasar.Seeumetornasseumfardomenore
nós dois escapássemos das sombras que nos perseguiam. Não tínhamos sequer
tocadonoassunto.Ianthe,aindabem,tambémnãodisseranada.
—Ainda podemos ajudá-la, encontrar alguma forma demanter aquele lago
abastecido.
—Játemosmuitocomquelidar.Distribuiresmolasnãovaiajudarnolongo
prazo.
Abriaboca,masdepoisafechei.Nãoerahoradedebater.
Então,medesvencilhei damãodeTamlinquando ele gesticuloupara queo
gamocompernasdebodeseaproximasseporfim.
—Precisodear—falei,elevanteidacadeira.NãodeiaTamlinachancede
protestar antes de sair do altar batendo os pés. Tentei não reparar nas três
sentinelasqueTamlinmandouatrásdemim,ounafileiradeemissáriosqueolhou
boquiabertaesussurrouconformeatravesseiosalão.
Ianthetentoumealcançarquandopartiemdisparada,maseuaignorei.
Passei pelas portas e caminhei o mais rápido que ousei para depois da fila
reunidaqueserpenteavapelosdegrausatéapassagemprincipaldecarvalho.Além
do emaranhadodevários corpos, deGrão-Feéricos e de feéricos inferiores, vi a
silhuetado espectro retrocedendo, dando a volta por nossa casa... na direçãodo
lagoalémdapropriedade.Elacaminhavaarrastandoospés,limpandoosolhos.
— Com licença — chamei, alcançando-a, as sentinelas ao meu encalço
mantiveramumadistânciarespeitosa.
O espectro da água parou no limite da casa, virando-se com uma leveza
sobrenatural. Evitei a ânsia de recuar um passo quando aquelas feições
extraterrenasmedevoraram.Mantendo-seaapenaspoucospassosdedistância,os
guardasmonitoravamcomasmãosnasarmas.
O nariz da feérica quase não passava de duas fendas, e guelras delicadas se
abriamsobsuasorelhas.
O espectro da água inclinou levemente a cabeça. Não foi uma reverência
completa, porque eu não era ninguém, mas o reconhecimento de que eu era o
brinquedinhodoGrão-Senhor.
—Sim?—sibilouela,osdentesafiadosreluziram.
—QuantoéseuTributo?
Meu coração bateu mais rápido quando vi os dedos palmados e os dentes
afiados como lâminas. Tamlin certa vez me dissera que os espectros da água
comiamqualquercoisa.Esenãorestavammaispeixes...
—Quantoouroelequer...qualéovalordeseuspeixesemouro?
—Muitomaisdoquevocêtemnosbolsos.
—Então,tome—falei,abrindoofechodeumapulseiradeouroencrustada
derubis,umaqueIanthemedisseraquecombinavamelhorcomminhascoresque
a prateada que quase usei.Ofereci a ela.—Tome isto.—Antes que a feérica
conseguissepegá-la,arranqueiocolardeourodemeupescoçoeosdiamantesem
formatodegotademinhasorelhas.—Eestas.—Estendiasmãos,quereluziam
com ouro e joias.—Dê a ele o que deve; depois, compre comida—mandei,
engolindoemsecoquandoosolhosdelasearregalaram.Aaldeiapróximatinhaum
pequenomercadotodasemana,umareuniãoincipientedebarracasporenquanto,
queeuesperavaajudaraprosperar.Dealgumaforma.
—Equepagamentovocêrequer?
—Nada.É...nãoéumacordo.Apenastome.—Estendimaisasmãos.—Por
favor.
Oespectrodaáguafranziuatestaaoverasjoiasquependiamdeminhasmãos.
—Nãodesejanadaemtroca?
—Nada.—Osfeéricosnafilaagoraencaravamsemdisfarçar.—Porfavor,
apenasleve.
Com um último olhar atento, os dedos frios e úmidos roçaram os meus,
pegandoasjoias.Elasbrilhavamcomoáguanasmãospalmadasdafeérica.
—Obrigada—disse ela, e fezuma reverênciaprofundadessavez.—Não
vouesquecertalgentileza.—Avozdoespectrodaáguasibilavasobreaspalavras,
e estremeci de novo quando os olhos negros ameaçaramme engolir inteira.—
Assimcomonenhumademinhasirmãs.
Ela caminhou de volta para amansão, e os rostos deminhas três sentinelas
pareciamcontraídosemreprovação.
EuestavasentadaàmesadejantarcomLucieneTamlin.Nenhumdelesfalou,mas
oolhardeLucienficavapassandodemimparaTamlin,e,depois,paraopróprio
prato.
Depoisdedezminutosdesilêncio,solteiogarfoefaleiparaTamlin:
—Oquefoi?
Tamlinnãohesitou.
—Vocêsabeoquefoi.
Nãorespondi.
—Vocêdeuàqueleespectrodaáguasuasjoias.Joiasqueeudeiavocê.
—Temostodaumaporcariadecasacheiadeouroejoias.
Lucienrespiroufundo,comosedissesse:“Lávamosnós.”
—Porquenãodeveriadaraela?—indaguei.—Essascoisasnãosignificam
nadaparamim.Jamaisuseiamesmajoiaduasvezes!Quemseimportacomisso?
OslábiosdeTamlinsecontraíram.
—Porquevocêmenosprezaasleisdestacortequandosecomportadessaforma.
Porque é assim que as coisas são feitas aqui, e quando entrega àquela feérica
glutona o dinheiro de que precisa, faz com que eu, faz com que a corte inteira
pareçafraca.
—Nãofalecomigoassim—avisei,exibindoosdentes.Tamlinbateucoma
mãonamesa, asgarrasdespontarampelapele,mas eume inclineipara a frente,
apoiandoasmãosnamadeira.—Vocêaindanãofazideiadecomoeraparamim
estar à beira da inanição durante meses. E pode chamá-la de glutona o quanto
quiser,mastambémtenhoirmãselembrocomoeravoltarparacasasemcomida.
— Acalmei meu peito ofegante, e aquela força sob minha pele se agitou,
ondulando pelos ossos.— Talvez ela gaste todo o dinheiro em coisas idiotas,
talvezelaeas irmãsnãotenhamautocontrole.Masnãovouarriscaredeixarque
passemfomeporcausadeumaregraridículaqueseusancestraisinventaram.
Lucienpigarreou.
—Elanãofezpormal,Tam.
—Euseiquenãofezpormal—disparouTamlin.
Luciencontinuouencarandooamigo.
—Coisaspioresjáaconteceram,coisaspiorespodemacontecer.Apenasrelaxe.
Os olhos esmeralda de Tamlin estavam selvagens quando ele grunhiu para
Lucien.
—Pedisuaopinião?
Aquelaspalavras,oolharqueTamlinlançouaLucieneaformacomoLucien
abaixouacabeça—meutemperamentoeraumrioincandescentenasveias.Olhe
paracima,imploreisilenciosamenteaLucien.Resista.Eleestáerrado,enósestamos
certos.Omaxilar deLucien se contraiu.Aquela força ressoou emmimdenovo,
vazando,disparandoparaLucien.Nãorecue...
Então,eudesapareci.
Aindaali, aindavendocommeusolhos,mas tambémmeioqueolhandopor
outroângulonasala,apartirdolugardealguémcomvistaprivilegiada...
Pensamentos se chocaram contra mim, imagens e memórias, um padrão de
pensamento e sentimento que era antigo e inteligente e triste, tão infinitamente
tristeetomadopelaculpa,semesperanças...
Então, euestavadevolta,piscando, semquemaisdeumsegundo tivesse se
passadoenquantoeuolhavaparaLucienboquiaberta.
Suacabeça.Euestiveradentrodesuacabeça,deslizarapelasparedesmentaisde
Lucien...
Fiquei de pé, e joguei o guardanapo na mesa com mãos que estavam
perturbadoramentefirmes.
Eusabiadequemaqueledomviera.Meujantarsubiupelagarganta,masforcei
eleparabaixo.
—Nãoacabamosessarefeição—grunhiuTamlin.
—Ah,deixedesertãoegocêntrico!—disparei,edepoissaí.
Podia jurar que tinha visto duas impressões queimadas demãos namadeira
despontandodebaixodemeuguardanapo.Rezeiparaquenenhumdosdoistivesse
reparado.
E para que Lucien permanecesse ignorante à violação que eu acabara de
cometer.
Caminheideumladoparaoutronoquartoporumbomtempo.Talvezeutivesse
meconfundidoaoveraquelasqueimaduras;talvezjáestivessemlá.Talvezeunão
tivesse,dealgumaforma,conjuradocaloremarcadoamadeira.Talveznãotivesse
deslizadoparaamentedeLucien,comoseestivessepassandodeumcômodopara
outro.
Como sempre fazia, Alis foi me ajudar a trocar de roupa para dormir.
Enquantoeuestavasentadadiantedapenteadeira,deixandoqueelapenteassemeu
cabelo, encolhi o corpo ao ver meu reflexo. O roxo sob os olhos parecia
permanente agora... a palidezdemeu rosto.Atémeus lábios estavamumpouco
lívidos,esuspireiquandofecheiosolhos.
—Vocêdeusuasjoiasaumespectrodaágua—ponderouAlis,eencontreio
reflexodelanoespelho.ApelemarromdeAlispareciacouroamassado,osolhos
escurosreluziramporummomentoantesqueseconcentrasseemmeucabelo.—
Sãoumtipoardiloso.
—Eladissequeestavamfamintas,quenãotinhamcomida—murmurei.
Aliscuidadosamentedesfezumnó.
— Não havia um feérico naquela fila hoje que teria dado dinheiro a ela.
Nenhumteriaousado.Muitos jáforamparaotúmulodeáguaporcausadafome
delas.Apetiteinsaciável...éamaldiçãodosespectros.Suasjoiasnãodurarãouma
semana.
Batiumpénochão.
—Mas—continuouAlis,apoiandoaescovaparafazerumatrançaúnicaem
meu cabelo. Os dedos longos e finos roçaram minha cabeça. — Ela jamais
esquecerá.Enquantoviver,nãoimportaoquevocêtenhadito,elaestáemdívida
comvocê.—Alisterminouatrançaemedeuumtapinhanoombro.—Feéricos
demaisexperimentaramafomenessesúltimoscinquentaanos.Nãopensequeessa
histórianãovaiseespalhar.
Eutinhamedodissotalvezmaisquequalquercoisa.
Passavadameia-noitequandodesistideesperar;caminheiatéofimdoscorredores
escurosesilenciososeoencontreinoescritório,sozinho,pelomenosumavez.
Umacaixademadeiraenvoltaemumlaçorosaespessorepousavanapequena
mesaentreoconjuntodepoltronas.
—Eujáestavasubindo—disseTamlin,eergueuacabeçaparaumarápida
observaçãodemeucorpo,parasecertificardequeestavatudocerto,tudoestava
bem.—Vocêdeveriaestardormindo.
Fecheiaportaatrásdemim.Eusabiaquenãoconseguiriadormir;nãocomas
palavrasqueTamlingritaraaindaecoandoemmeusouvidos.
—Vocêtambém—falei,avoztãotênuequantooespaçoentrenós.—Você
trabalhademais.—Cruzeiocômodoparameapoiarnapoltrona,olhandoparao
presenteenquantoTamlinmeobservava.
—Por que acha que eu tinha tão pouco interesse em serGrão-Senhor?—
disseele,eficoudepéparadaravoltanamesa.Tamlinbeijouminhatesta,aponta
demeunariz,aboca.—Tantapapelada—resmungouelecontrameuslábios.Eu
ri,masTamlintocoucomabocaapeleexpostaentremeupescoçoeoombro.—
Desculpe — murmurou Tamlin, e senti arrepios na coluna. Ele beijou meu
pescoçodenovo.—Desculpe.
Passeiamãopelobraçodele.
—Tamlin—comeceiafalar.
—Eunãodeveriaterditoaquelascoisas—sussurrouTamlincontraminha
pele.—ParavocêouparaLucien.Nãoquisdizernenhumadelas.
—Eusei—admiti,eocorpodeTamlinrelaxoucontraomeu.—Desculpe
porterperdidoacabeça.
—Vocêtinhatodoodireito—argumentouTamlin,emboraeutecnicamente
nãotivesse.—Euestavaerrado.
Oqueelehaviaditoeraverdade:seabrisseexceções,outrosfeéricosexigiriam
omesmotratamento.Eoqueeutinhafeitopoderiaservistocomomenosprezo.
—Talvezeuestivesse...
—Não.Vocêestavacerta.Nãoentendocomoépassarfome...ounadadisso.
Eurecueiumpoucoparainclinaracabeçanadireçãodopresentequeesperava
ali,maisquedispostaadeixarqueaquilofosseofimdadiscussão.Deiumsorriso
leve,brincalhão.
—Paravocê?
Tamlinmordiscouminhaorelhaemresposta.
—Paravocê.Demim.—Umpedidodedesculpas.
Sentindo-memaislevedoquemesentiahaviadias,desfizolaçoeobserveia
caixa de madeira clara abaixo dele. Devia ter 60 centímetros de altura e 90 de
largura, com uma alça de ferro sólida presa ao topo; nenhum brasão ou letras
indicavamoquepodiaestardentro.Certamentenãoeraumvestido,mas...
Porfavor,quenãosejaumacoroa.
Embora,certamente,umacoroaouumdiademaestariamguardadosemalgo
menos...rudimentar.
Abriopequenofechodelatãoeerguiatampalarga.
Erapiorqueumacoroanaverdade.
Embutidosnacaixahaviacompartimentos,bolsosepresilhas,todoscheiosde
pincéisetintasecarvãoefolhasdepapel.Umkitdepinturadeviagem.
Vermelho...atintavermelhadentrodofrascodevidroeratãoforte,oazulera
tãodeslumbrantequantoosolhosdaquelamulherfeéricaquematei...
—Acheiquegostariadecarregarpelapropriedade.Emvezdearrastartodas
aquelassacolas,comosemprefaz.
Ospincéisestavamnovos,reluzentes;ospelos,macioselimpos.
Olhar para aquela caixa, para o que estava dentro, foi como examinar um
cadáverlimpoporumcorvo.
Tenteisorrir.Tenteidesejarquealgumaalegriapercorressemeusolhos.
Tamlinfalou:
—Vocênãogostou.
—Não—conseguiresponder.—Não,émaravilhoso.—Eera.Eramesmo.
— Achei que se começasse a pintar de novo... — Esperei que Tamlin
terminasse.
Elenãoterminou.
Meurostocorou.
— E você?— perguntei, baixinho.—A papelada vai ajudar com alguma
coisa?
OuseiencararTamlin.Seutemperamentoseacendeuali.MasTamlindisse:
—Nãoestamosfalandodemim.Estamosfalando...devocê.
Observeiacaixaeoconteúdonovamente.
— Sequer permitirão que eu perambule por onde quiser para pintar? Ou
haveráumaescoltatambém?
Silêncio.
Umnão;eumsim,então.
Comeceiatremer,maspormim,pornós,eumeobrigueiadizer:
—Tamlin... Tamlin, não posso viver com guardas em volta de mim dia e
noite. Não posso viver com esse sufocamento. Apenas me deixe ajudá-lo... me
deixetrabalharcomvocê.
—Vocêjáofereceuosuficiente,Feyre.
—Eusei.Mas...—Euoencarei.EncareiTamlindevolta, todoopoderdo
Grão-Senhor da Corte Primaveril.— Émais difícil me matar agora. Sou mais
rápida,maisforte...
—Minhafamíliaeramaisrápidaemaisfortequevocê.Eforamassassinados
commuitafacilidade.
—Então,casecomalguémquepossasuportarisso.
Elepiscou.Devagar.Depois,faloucomavozterrivelmentebaixa:
—Nãoquersecasarcomigo,então?
Tenteinãoolharparaoanelemmeudedo,paraaquelaesmeralda.
—Éclaroquequero.Éclaroquequero.—Minhavozfalhou.—Masvocê...
Tamlin... — As paredes pareceram se aproximar. O silêncio, os guardas, os
olhares.OqueeuviranoTributonaqueledia.—Estoumeafogando—consegui
dizer. — Estou me afogando. E quanto mais faz isso, quanto mais guardas...
Poderiamuitobemestarenfiandominhacabeçanaágua.
Nadanaquelesolhos,naquelerosto.
Masentão...
Gritei, o instinto tomou conta quando o poder de Tamlin irrompeu pelo
cômodo.
Asjanelassequebraram.
Amobíliasepartiu.
Eaquelacaixadetintasepincéisepapel...
Elaexplodiuempoeira,vidroemadeira.
Emumsegundooescritórioestavaintacto.
Noseguinte,consistiaemcacosdenada,umcascodoqueeraantes.
Nadadaquilometocaranolugarondemeabaixeinochão,comasmãossobre
acabeça.
Tamlinestavaofegante,arespiraçãoirregularquasecomosoluços.
Eu estava tremendo; tremendo tanto que achei quemeus ossos se partiriam
comoamobília...masmeobrigueiaabaixarosbraçoseolharparaTamlin.
Haviadevastaçãonaquelerosto.Edor.Emedo.Eluto.
Aomeuredor,nenhumescombrotinhacaído—comoseTamlintivesseme
protegido.
Eledeuumpassoemminhadireção,atéaquelademarcaçãoinvisível.
Então,Tamlinrecuou,comosetivesseatingidoalgosólido.
—Feyre—disseele,avozrouca.
Tamlinavançoudenovo,eolimitesemanteveintacto.
—Feyre,porfavor—sussurrouele.
Epercebiqueolimite,aquelabolhadeproteção...
Eraminha.
Umescudo.Nãoapenasmental,masfísicotambém.
Eu não sabia de que Grão-Senhor tinha vindo, quem controlava o ar ou o
vento ou qualquer dessas coisas. Talvez uma das Cortes Solares. Eu não me
importava.
— Feyre— gemeu Tamlin, uma terceira vez, fazendo força contra o que
realmentepareciaumaparedeinvisívelecurvadearendurecido.—Porfavor.Por
favor.
Aquelaspalavraspartiramalgoemmim.Mepartiram.
Talvez tivessem partido o escudo de vento sólido também, pois a mão de
Tamlinoatravessou.
Então, ele ultrapassou aquela linha entre o caos e a ordem, o perigo e a
segurança.
Tamlinficoudejoelhoseseguroumeurostonasmãos.
—Desculpe,desculpe.
Eunãoconseguiaparardetremer.
— Vou tentar— sussurrou ele.— Vou tentar ser melhor. Eu não... Não
consigo controlar às vezes. O ódio. Hoje foi apenas... hoje foi ruim. Com o
Tributo,comtudoisso.Hoje...vamosesquecer,vamossuperarisso.Porfavor.
Não resisti quandoTamlinme abraçou,me aconchegando tão apertado que
seucalorpassouparamim.Tamlinenterrouorostoemmeupescoçoefalou,para
minhanuca, como semeu corpo fosse absorver as palavras, como se só pudesse
dizê-lasdaquelaformacomosempresoubemosnoscomunicarmelhor:pelecontra
pele.
—Não consegui salvá-la antes.Não pude protegê-la deles. E quando disse
aquilosobre...sobreeuafogarvocê...Soumelhordoqueelesforam?
Eudeveria terditoquenãoeraverdade,mas...Tinhafaladocomocoração.
Oucomoquerestaradele.
—Tentarei sermelhor—falouTamlindenovo.—Porfavor,medêmais
tempo.Deixequeeu...deixequeeusupereisso.Porfavor.
Supere o quê?, era o que eu queria perguntar. Mas as palavras tinham me
abandonado.Percebiqueaindanãotinhafalado.
PercebiqueTamlinesperavaporumaresposta...equeeunãotinhauma.
Então, o abracei, porque corpo a corpo era a única forma com que eu
conseguiafalartambém.
Aquilobastoucomoresposta.
— Desculpe — disse Tamlin de novo. Ele não parou de murmurar isso
duranteváriosminutos.
Vocêjáofereceuosuficiente,Feyre.
TalvezTamlin estivesse certo. E talvez eu não tivessemais nada a oferecer
mesmo.
OlheiporcimadoombrodeTamlinenquantoosegurava.
A tinta vermelha tinha se espatifado na parede atrás de nós. Enquanto eu a
observeiescorrerpelopaineldemadeirarachado,penseiquepareciasangue.
Tamlinnãoparoudepedirdesculpasdurantedias.Elefezamorcomigodemanhã
ànoite.Adoroumeucorpocomasmãos,alíngua,osdentes.Masessanuncaforaa
partedifícil.Nósapenasnosenrolamoscomoresto.
MasTamlincumpriucomapalavra.
Havia menos guardas conforme eu caminhava pela propriedade. Alguns
restavam, mas nenhum seguia meus passos. Até fui cavalgar pelo bosque sem
escolta.
ApesardesaberqueosajudantesdoestábulotinhamrelatadoaTamlinassim
quesaí—evoltei.
Tamlinjamaismencionouaqueleescudodeventosólidoqueuseicontraele.E
ascoisasestavamtãoboasquenãoouseimencioná-lotambém.
Osdiassepassaramcomoumborrão.Tamlinpassavamaistempoforaqueemcasa
e,semprequevoltava,nãomecontavanada.Eutinhaparadodeincomodá-lopor
respostashaviamuitotempo.Umprotetor...eraoqueTamlineraesempreseria.
Oqueeuquiseraquandoerafriaeseveraeinfeliz;oqueeuprecisaraparaderreter
ogelodeamargosanosàbeiradafome.
Não tinha coragem de me perguntar o que eu queria ou do que precisava
agora.Quemeumetornara.
Então,comoóciocomoúnicaopção,passavaosdiasnabiblioteca.Praticando
leituraeescrita.Aumentandoaqueleescudomental,tijoloapóstijolo,camadaapós
camada. Às vezes tentava conjurar aquela parede física de ar sólido também.
Aproveitavaosilêncio,mesmoconformeelepenetravaminhasveias,minhamente.
Algunsdias,nãofalavacomninguém.NemmesmoAlis.
Acordavatodasasnoitestrêmulaeofegante.EficavafelizquandoTamlinnão
estava lá para testemunhar isso. Quando eu também não testemunhava ele ser
arrancado dos sonhos, suor frio cobrindo-lhe o corpo.Ou se transformando na
bestaeficandoacordadoatéoalvorecer,monitorandoapropriedadeembuscade
ameaças.O que eu poderia dizer para acalmar aquelesmedos, quando eu era a
fontedetantos?
MasTamlinvoltouparaumaestadiaprolongadacercadeduassemanasdepois
doTributo—edeciditentarconversar,interagir.EudeviaaTamlintentar.Devia
amimmesma.
Elepareceu teramesma ideia.Epelaprimeiravezemumtempo... as coisas
pareceramnormais.Ouomaisnormalquepodiamser.
Acordeicertamanhãaosomdevozesgravesnocorredordoladodeforade
meuquarto.Fechandoosolhos,meaninheinotravesseiroepuxeimaisascobertas.
Apesardenossas aventurasmatinais nos lençóis, eu levantavamais tarde a cada
dia;àsvezesnemmedavaotrabalhodesairdacamaatéahoradoalmoço.
Umgrunhidosoouatravésdasparedes,eabriosolhosdenovo.
—Saia—avisouTamlin.
Houveumarespostabaixa...baixademaisparaqueeudiscernissealgoalémde
balbuciossimples.
—Voudizerumaúltimavez...
Elefoiinterrompidoporaquelavoz,eospelosdemeusbraçossearrepiaram.
Observeia tatuagemnoantebraçocomosefizesseumaconta.Não...não,aquele
dianãopodiaterchegadotãorápido.
Depoisdeempurrarascobertas,corriatéaporta,percebendoameiocaminho
queestavanua.GraçasaTamlin,minhasroupastinhamsidorasgadaseatiradasdo
outro ladodoquarto,enãohaviaroupãoàvista.Pegueiumcobertornacadeira
maispróximaeenvolviocorpoantesdeentreabriraporta.
Certamente,TamlineRhysestavamnocorredor.Aoouvir aporta se abrir,
Rhyssevirounaminhadireção.Osorrisoqueestampavanorostohesitou.
—Feyre.—Os olhos deRhys se detiveram, absorvendo cada detalhe.—
Estáficandosemcomidaaqui?
—Oquê?—indagouTamlin.
Aquelesolhosvioletatinhamficadofrios.Rhysestendeuamãoparamim.
—Vamos.
TamlinavançounorostodeRhysandemuminstante,eencolhiocorpo.
—Saia.— Ele apontou para a escada.— Ela irá até você quando estiver
pronta.
Rhysand apenas limpou um grão invisível de poeira da manga de Tamlin.
Partedemimadmirouapuracoragemqueaquelegestodeviaterrequerido.Seos
dentesdeTamlinestivessemacentímetrosdeminhagarganta,euteriagritadode
pânico.
Rhysmeolhou.
—Nãoterianão.Sesuamemórianãomefalha,daúltimavezqueosdentesde
Tamlinestavampertodesuagarganta,vocêdeuumtapadacaradele.
Erguiosescudosesquecidos,fazendoumacareta.
—Caleaboca—disseTamlin,dandomaisumpassoentrenós.—Esaia.
OGrão-Senhorcedeuedeuumpassonadireçãodasescadas;depois,colocou
asmãosnosbolsos.
—Deveriamesmoinspecionarsuasproteções.SóoCaldeirãosabequeoutro
tipodetrastepodeentraraquitãofácilquantoeu.—Denovo,Rhysmeobservou
comoolharsevero.—Vistaumaroupa.
Exibiosdentesparaelequandoentreinoquartooutravez.Tamlinmeseguiue
bateuaportacomtantaforçaqueoslustresestremeceram,disparandofiaposdeluz
trêmulospelasparedes.
Larguei o cobertor, fui até o armário do outro lado do quarto, e o colchão
rangeuatrásdemimquandoTamlinafundounacama.
—Comoeleentrouaqui?—perguntei,escancarandoasportasevasculhando
as roupas até encontraromodelito turquesadaCorteNoturnaque tinhapedido
queAlisguardasse.Eusabiaqueelaqueriaqueimá-lo,maseudissequeacabaria
voltandoparacasacomoutroconjuntodaquelesdequalquerjeito.
—Nãosei—respondeuTamlin.Vestiacalça,mevireieovipassaramão
pelocabelo.Sentiamentirasobaspalavras.—Elesó...ésópartedequalquerque
sejaojoguinhoqueestáfazendo.
Vestiablusacurtaporcimadacabeça.
— Se a guerra está vindo, talvez fosse melhor reparar as coisas. — Não
tínhamostocadonaqueleassuntodesdemeuprimeirodiadevolta.Fuceiofundo
doarmárioembuscadossapatosdesedacombinandoe,depois,vireiparaTamlin
eoscalcei.
—Voucomeçaraconsertarascoisasnodiaemqueeleliberarvocêdoacordo.
— Talvez ele esteja mantendo o acordo para que você tente ouvi-lo. —
CaminheiatéondeTamlinestavasentadonacama;acalçaestavaumpoucomais
larganacinturaquenomêsanterior.
—Feyre—disseTamlin,estendendoamãoparamim,massaídoalcance.—
Por que precisa saber essas coisas?Não basta se recuperar em paz?Conquistou
esse direito. Conquistou. Diminuí o número de sentinelas aqui; tenho tentado...
tentado ser melhor com relação a isso. Então, deixe o restante... — Tamlin
respirouparaseacalmar.—Nãoéomomentoparaestaconversa.
Nuncaeraomomentoparaesta conversa,ouparaaquela conversa.Mas não
falei isso.Não tinha energia para dizer, e todas as palavras secaram e se foram.
Então, memorizei as linhas do rosto de Tamlin e não resisti quandome puxou
contraopeitoemeabraçoucomforça.
Alguémtossiunocorredor,eocorpodeTamlinenrijeceuaomeuredor.
Masbastavadebrigasegrunhidosparamim,evoltarparaaquelelugaraberto
eserenonoaltodamontanha...Pareciamelhorquemeescondernabiblioteca.
Eu me afastei, e Tamlin se deteve conforme eu caminhava de volta para o
corredor.
Rhys franziu a testa paramim.Debati se dizia algo sujo para ele,mas teria
requeridomaisirritaçãoqueeusentia;eteriarequeridoqueeumeimportassemais
comoqueRhyspensava.
OrostodeRhyssetornouindecifrávelquandoeleestendeuamão.
Então,Tamlinapareceuatrásdemimeempurrouaquelamãoparabaixo.
—Encerreoacordodelabemaquieagoraedareioquevocêquiser.Qualquer
coisa.
Meucoraçãosubitamentedeuumsalto.
—Estámaluco?
Tamlinnemmesmopiscouemminhadireção.
Rhysandapenasergueuasobrancelha.
—Játenhotudoquequero.—EledesvioudeTamlincomoseelefosseparte
damobíliaepegouminhamão.Antesqueeuconseguissedizeradeus,umvento
negronosenvolveuedesaparecemos.
–Que diabo aconteceu com você? — disse Rhysand, antes que a Corte
Noturnasurgissecompletamenteaonossoredor.
—Porquesimplesmentenãoolhadentrodeminhamente?—Mesmoquando
falei,aspalavrasnãotiveramemoção.NãomedeiotrabalhodeempurrarRhysand
quandomedesvencilheideseutoque.
Rhyspiscouumolhoparamim.
—Ondeestáadiversãonisso?
Nãosorri.
— Não vai jogar sapato desta vez? — Eu quase conseguia ver as outras
palavrasnosolhosdele.Vamoslá.Brinquecomigo.
Seguiparaasescadasquemelevariamatémeuquarto.
—Tomecafécomigo—sugeriuRhysand.
Haviaumtomnaquelaspalavrasquemefezparar.Umtomdoqueeupodia
jurarserdesespero.Preocupação.
Eumevirei,asroupaslargasdeslizarampormeusombros,pelacintura.Eunão
tinha percebido o quanto tinha perdido peso. Apesar de as coisas voltarem aos
poucosaonormal.
Falei:
—Nãotemoutrascoisaspararesolver?
—É claroque tenho—respondeu ele, dandodeombros.—Tenho tantas
coisaspara resolverque àsvezes fico tentadoa liberarmeupoderpelomundoe
limpartodososproblemas.Apenasparamedarumpoucodepaz.—Rhyssorriue
fezumareverência.Mesmoaquelamençãocasualdepodernãomeassustou,não
meespantou.—Massempretereitempoparavocê.
Euestavacomfome...aindanãotinhacomido.Eeradefatopreocupaçãoque
faiscavaportrásdosorrisoarroganteeinsuportável.
Então,indiqueiparaqueRhysfossenafrenteatéaquelamesadevidrofamiliar
nofimdocorredor.
Caminhamos a uma distância casual umdo outro.Cansada.Eu estava tão...
cansada.
Quandoestávamosquasenamesa,Rhysfalou:
—Sentiumapontadademedoestemêsatravésdenossabelaligação.Alguma
coisainteressanteaconteceunamaravilhosaCortePrimaveril?
—Nãofoinada—garanti.Porquenãofoi.Enãoeradacontadele.
OlheideesguelhaparaRhys,eódio,nãopreocupação,brilhounaquelesolhos.
Eupodiajurarqueamontanhasobnóstremeuemresposta.
—Sevocêsabe—falei,friamente.—Porquepergunta?—Senteinacadeira
quandoRhyssentounadele.
Elerespondeu,emvozbaixa:
—Porque ultimamente a única coisa que ouço pormeio da ligação é nada.
Silêncio. Mesmo com os escudos erguidos muito impressionantemente a maior
partedotempo,eudeveriaconseguirsentirvocê.Masnãosinto.Àsvezesdouum
puxão na ligação só para me certificar de que ainda está viva.— A escuridão
deslizou.— Então, um dia, estou no meio de uma reunião importante quando
terrordisparapelaligação.Sórecebolampejosdevocêedele,edepois,nada.De
voltaaosilêncio.Gostariadesaberoquecausoutalperturbação.
Eumeservidasbandejasdecomida,poucomeimportandocomoquetinha
sidoservido.
—Foiumadiscussão,eorestonãoédesuaconta.
—Éporissoquevocêpareceserdevoradavivaporluto,culpaeódio,poucoa
pouco?
Nãoqueriaconversarsobreaquilo.
—Saiademinhacabeça.
—Me obrigue. Me empurre para fora. Você baixou o escudo esta manhã...
qualquerumpoderiaterentrado.
Euoencarei.Outrodesafio.Eeusimplesmente...nãomeimportava.Nãome
importava com o que quer que fluísse incandescente por meu corpo, ou com a
formacomoeudeslizeipara a cabeçadeLucien coma facilidade comqueRhys
podiadeslizarparaaminha,comousemescudo.
—OndeestáMor?—perguntei.
Ele ficou tenso, eme preparei para queRhys insistisse, provocasse,mas ele
disse:
— Longe. Tem deveres a cumprir. — Sombras espiralaram ao redor de
Rhysanddenovo,eataqueiacomida.—Ocasamentoestáadiado,então?
Pareidecomerapenasportemposuficienteparamurmurar:
—Sim.
—Euesperavaumarespostamaispróximade“Nãofaçaperguntasidiotaspara
asquaisjásabearesposta”,ouminhapreferida:“Váparaoinferno.”
Eu apenas estendi a mão para uma bandeja de tortinhas. As mãos de Rhys
estavamespalmadasnamesa...eumfiapodefumaçanegraseenroscounosdedos.
Comogarras.
Rhysandfalou:
—Pensouemminhaoferta?
Nãorespondiatéquemeupratoestivessevazioeeuempilhassemaiscomida
nele.
—Nãovoutrabalharcomvocê.
Quasesentiatranquilidadesombriaquerecaiusobreele.
—Eporque,Feyre,estárecusando?
Empurreiasfrutasnoprato.
—Nãovoufazerpartedessaguerraqueachaqueestávindo.Vocêdisseque
eudeveriaserumaarma,nãoumpeão,masosdoisparecemamesmacoisapara
mim.Aúnicadiferençaéquemosempunha.
—Querosuaajuda,nãoamanipular—disparouRhys.
Oestourodeseutemperamentomefez,porfim,ergueracabeça.
—QuerminhaajudaporquevaiirritarTamlin.
SombrasdançaramaoredordosombrosdeRhys;comoseasasasestivessem
tentandotomarforma.
—Tudobem—sussurrouele.—Eucaveiotúmulosozinho,comtudoque
fizSobaMontanha.Masprecisodesuaajuda.
Maisumavez,sentiasoutraspalavrasnãoditas:Pergunteporque;insista.
E,maisumavez,eunãoqueria.Nãotinhaenergia.
Rhysfalou,baixinho:
— Fui prisioneiro na corte de Amarantha por quase cinquenta anos. Fui
torturadoeespancadoefodidoatéquesomentedizeramimmesmoquemeuera,o
que tinha a proteger,me impediude tentar encontrar uma formade acabar com
aquilo.Porfavor...meajudeaevitarqueissoaconteçadenovo.ComPrythian.
Umapartedistantedemeucoraçãodoeuesangrouaoouviraspalavras,oque
eleexpusera.
MasTamlinabriraexceções—aliviaraapresençadosguardas,permitiraque
eu caminhasse com um pouco mais de liberdade. Ele estava tentando. Nós
estávamostentando.Eunãoarriscariaisso.
Então,volteiacomer.
Rhysnãodissemaisumapalavra.
NãomejunteiaRhysandparajantar.
Nãolevanteiatempodocafédamanhãtambém.
Mas, quando saí, aomeio-dia,Rhysand estava esperando no andar de cima,
com aquele leve e interessado sorriso no rosto. Rhysme cutucou na direção da
mesaquearrumaracomlivrosepapeletinta.
—Copieestasfrases—disseRhysdooutroladodamesa,meentregandoum
pedaçodepapel.
Olheiparaasfraseselicomperfeição:
—Rhysandéumapessoaespetacular.Rhysandéocentrodemeumundo.Rhysand
éomelhoramantecomqueumafêmeapoderiasonhar.—Apoieiopapel,escrevias
trêsfraseseentregueiaele.
Asgarrassechocaramcontraminhamenteummomentodepois.
E ricochetearam de um escudo adamantino preto e reluzente, sem provocar
danos.
Elepiscou.
—Vocêtreinou.
Eumelevanteidamesaesaí.
—Nãotinhanadamelhorafazer.
Naquelanoite,Rhysanddeixouumapilhadelivrosaminhaportacomumbilhete.
Tenhoassuntosparatrataremoutrolugar.Acasaésua.Mandechamarseprecisar
demim.
Diassepassaram;eeunãoprecisei.
Rhysvoltounofimdasemana.Tomeiohábitodeficaremumadaspequenassalas
quedavamparaasmontanhas,equaseleraumlivrointeironapoltronadeestofado
macio, prosseguindo devagar enquanto aprendia novas palavras. Mas aquilo
preencherameu tempo—me dera a companhia silenciosa e constante daqueles
personagens,osquaisnãoexistiamejamaisexistiram,mas,dealgumaforma,me
faziamsentirmenos...sozinha.
AmulherqueempunharaumalançadeossocontraAmarantha...Eunãosabia
mais onde ela estava.Talvez tivesse sumido naquele dia em que seu pescoço se
partiueaimortalidadefeéricatomoucontadesuasveias.
Euestavaterminandoumcapítuloespecialmentebom—oantepenúltimodo
livro—, e um vespertino raio de sol amanteigado aquecia meu rosto quando
Rhysand passou por duas das grandes poltronas com dois pratos de comida nas
mãoseosapoiounamesabaixadiantedemim.
—Comoparecedeterminadaaumestilodevidasedentário—disseele—,
penseiquepoderiameadiantarelhetrazercomida.
Meuestômagojásereviravadefome,eapoieiolivronocolo.
—Obrigada.
Umarisadacurta.
—Obrigada?Nadade“Grão-Senhorecriada”?Ou:“Nãoimportaoquequeira,
podeenfiarnabunda,Rhysand”?—Ele emitiu um estalo com a língua.—Que
decepcionante.
Apoieiolivroeestendiamãoparaoprato.Rhysandpodiaseouvirfalarodia
inteirosequisesse,maseuqueriacomer.Agora.
Meusdedostinhamquasetocadoabordadopratoquandoelesimplesmenteo
deslizouparalonge.
Estendi o braço de novo.Mais uma vez, uma espiral do poder de Rhysand
puxouopratomaisparatrás.
—Diga o que posso fazer— falouRhys.—Diga o que posso fazer para
ajudá-la.
Rhys manteve o prato além do alcance. Ele falou de novo, e, como se as
palavrasquesaíramafrouxassemocontroledelesobreopoder,garrasdefumaçase
espiralaramsobreosdedosdeRhysandeenormesasasdesombrasseespraiaram
desuascostas.
—Mesesemeses,evocêaindaéumfantasma.Ninguémporláperguntaque
diaboestáacontecendo?SeuGrão-Senhorsimplesmentenãoseimporta?
Eleseimportava.Tamlinseimportava.Talvezdemais.
—Eleestámedandoespaçopararesolver—falei,comtantairritaçãoquemal
reconheciminhavoz.
—Medeixeajudá-la—falouRhysand.—PassamosporcoisasdemaisSoba
Montanha.
Encolhiocorpo.
—Elavence—sussurrouRhys.—Aquelacadelavencesevocêpermitirse
desfazer.
Imaginei seeleestavasedizendo issohaviameses,meperguntei seRhysand
também tinha momentos quando as próprias memórias às vezes o sufocavam
profundamenteànoite.
Mas ergui o livro, disparando três palavras pela ligação entre nós antes de
erguerosescudosdenovo.
Fimdaconversa.
— Ao inferno que acabou — grunhiu Rhysand. Um estrondo de poder
acaricioumeusdedos,e,então,olivrosefechouemminhasmãos.Minhasunhasse
enterraramnocouroenopapel,inutilmente.
Desgraçado.Desgraçadoarroganteeconvencido.
Devagar, erguioolharparaRhys.E senti...nãoum temperamentocolérico,
masódiofrioereluzente.
Quaseconseguiasentir aquelegelonaspontasdosdedos,beijandoaspalmas
dasmãos.Ejureiquegelocobriuolivroantesqueeuoatirassecontraacabeçade
Rhysand.
Eleseprotegeutãorápidoqueolivroquicouparalongeedeslizoupelopisode
mármoreatrásdenós.
—Quebom—disseele,comarespiraçãoumpoucoirregular.—Oquemais
vocêtem,Feyre?
Ogelosederreteuemchamas,emeusdedossefecharamempunhos.
E o Grão-Senhor da Corte Noturna pareceu sinceramente aliviado ao ver
aquilo;aoverairaquemefaziaquererexplodirequeimar.
Umsentimento,pelomenos.Nãocomoaquelesilênciovazioefrio.
E ao pensar em voltar àquela mansão com as sentinelas e as patrulhas e os
segredos...Afundeidenovonapoltrona.Congelada,maisumavez.
— Sempre que quiser alguém com quem brincar — disse Rhysand,
empurrandoopratonaminhadireçãocomumventosalpicadodeestrelas—,seja
durantenossamaravilhosasemanajuntosouemoutraocasião,avise.
Nãoconseguipensaremumaresposta,exaustadopoucodetemperamentoque
demonstrei.
E percebi que parecia em uma queda livre infinita. Estava nela havia um
tempo.Desdequeesfaqueeiaquelejovemfeériconocoração.
NãoencareiRhysdenovoenquantodevoravaacomida.
Namanhãseguinte,Tamlinesperavaàsombradoimensoeretorcidocarvalhono
jardim.
Umaexpressãoassassinalhecontorciaasfeiçõesdorosto,direcionadaapenas
para Rhys. Mas não havia nada de diversão no sorriso de Rhys quando ele se
afastoudemim...apenasumpredadorfrioeespertoolhandoparalonge.
Tamlingrunhiuparamim:
—Entre.
Olhei de um Grão-Senhor para outro. Ao ver aquela fúria no rosto de
Tamlin...Eusoubequenãohaveriamaiscavalgadasoucaminhadassolitáriaspela
propriedade.
Rhyssimplesmentemedisse:
—Enfrenteisso.
Depois,elesefoi.
—Estou bem— falei paraTamlin, quando os ombros dele se curvaram, a
cabeçaseabaixou.
—Vouencontrarumaformadeacabarcomisso—jurouele.
Eu queria acreditar em Tamlin. Sabia que ele faria qualquer coisa para
conseguir.
Denovo,TamlinmefezdescrevercadadetalhedoqueviranacasadeRhys.
Cada conversa, embora breve. Eu contei tudo, cada palavra mais baixa que a
anterior.
Proteger,proteger,proteger—euconseguiaverapalavranosolhosdele,senti
em cada investida deTamlin para dentro demeu corpo naquela noite. Eu tinha
sidolevadadeTamlinumavez,damaisdefinitivadasformas,masnuncamais.
Assentinelasretornaramcomforçatotalnamanhãseguinte.
Duranteaprimeirasemanadevolta,nãopudesairdavistadacasa.
Algumaameaçasemnometinhainvadidoasterras,eTamlineLucienhaviam
sido chamados para lidar com ela. Pedi quemeu amigome dissesse o que era,
mas...Lucientinhaaqueleolharquesempreexibiaquandoqueria,masalealdadea
Tamlinficavanocaminho.Então,nãopergunteidenovo.
Enquanto estavam fora, Ianthe retornou... para me fazer companhia, me
proteger,nãosei.
Ela era a única cuja entrada foi permitida. O bando semipermanente de
senhoresedamasdaCortePrimaverilnamansãoforadispensado,assimcomoseus
criadospessoais.Fiqueigratapor isso,pornãomais esbarrar comeles enquanto
caminhavapeloscorredoresdamansão,oupelosjardins,enãoprecisardesenterrar
damemóriaosnomes,ashistóriasdecadaum,nãoprecisarmaisaturá-lostentando
nãoencarar a tatuagem,mas...Eu sabiaqueTamlingostavade tê-losporperto.
Sabiaquealgunseram,naverdade,velhosamigos;sabiaqueTamlingostavaquea
mansão estivesse cheia de som e risos e conversa. Mas achava que todos
conversavam como se fossem parceiros de luta. Palavras bonitas mascaravam
insultosafiados.
Estava feliz com o silêncio— mesmo quando se tornou um peso, mesmo
quandopreencheuminhamenteatéquenão restassenadadentrodela alémde...
vazio.
Eternidade.Seriaessaminhaeternidade?
Eu lia avidamente todos os dias: histórias sobre povos e lugares dos quais
jamais ouvira falar.Talvez fossem a única coisa que impedisse que eu caísse no
desesperototal.
Tamlinvoltouoitodiasdepois,deuumlevebeijoemminhatesta,meolhoude
cimaabaixo,eentãoseguiuparaoescritório.OndeIanthetinhanotíciasparaele.
Queeutambémnãodeveriaouvir.
Sozinha no corredor, observando enquanto a sacerdotisa encapuzada levava
Tamlinpelasportasduplasnaoutraponta,umlampejovermelho...
Meucorpoficoutenso,oinstintomepercorreuocorpoquandovirei...
NãoeraAmarantha.
Lucien.
O cabelo vermelho era dele, não dela. Eu estava em casa, não naquele
calabouço...
Os olhos demeu amigo— tanto o demetal quanto o de carne— estavam
fixosemminhasmãos.
Nasquaisminhasunhascresciam,securvavam.Nãocomogarrasdesombras,
masgarrasquetinhamdestroçadominharoupaíntimadiversasediversasvezes...
Pareparepareparepare...
Parou.
Comoumavelasoprada,asgarrassumiramcomumfiapodesombra.
OolhardeLucienpassouparaTamline Ianthe,queestavamalheiosaoque
acontecera,edepoiselesilenciosamenteinclinouacabeça,indicandoparaqueeuo
seguisse.
Pegamosasescadasespiraladasparaosegundoandar,oscorredoresestavam
desertos.Nãoolheiparaaspinturasdecadalado.Nãoolheialémdasjanelasaltas,
paraosjardinsiluminados.
Passamospelaportadomeuquarto,passamospeladele...atéentrarmosemum
pequenoescritórionosegundoandar,quasenãoutilizado.
Lucienfechouaportadepoisqueentreinocômodoemerecosteinopainelde
madeira.
—Háquantotempoasgarrasaparecem?—disseele,baixinho.
—Foiaprimeiravez.—Minhavozsoouvaziaeinexpressivaaosouvidos.
Lucienmeobservou;ovestidofúcsiavibrantequeIantheselecionaranaquela
manhã, o rosto, ao qual não me dei o trabalho de moldar em uma expressão
agradável...
— Não posso fazer muito — explicou Lucien, a voz rouca. — Mas vou
perguntar a ele esta noite. Sobre o treinamento. Os poderes se manifestarão,
treinandovocêounão, não importa quemesteja por perto.Vouperguntar a ele
estanoite—repetiuLucien.
Maseujásabiaqualseriaaresposta.
Luciennãomeimpediuquandoabriaportacontraaqualeleestavaencostado
e saí semdizermaisumapalavra.Dormiatéo jantar,desperteio suficientepara
comer;quandodesci,asvozeselevadasdeTamlin,LucieneIanthemelançaramde
voltaparaoaltodosdegraus.
Elesacaçarãoematarão,sibilaraIantheparaLucien.
Luciengrunhiuemresposta:Farão isso de qualquer forma, então quediferença
faz?
A diferença, respondera Ianthe, fervilhando, está em termos a vantagem desse
conhecimento—nãoseráapenasFeyreoalvodevidoaosdonsroubadosdaquelesGrão-
Senhores.Os filhosdevocês,disseelaparaTamlin, também terão tal poder.Outros
Grão-Senhores saberão disso. E, se não matarem Feyre imediatamente, poderão
perceberoqueelestêmaganharseforemagraciadoscomfilhosdelatambém.
Meuestômagosereviroudiantedainferência.Dequeeupoderiaserroubada
—epresa—para...procriação.Certamente... certamentenenhumGrão-Senhor
iriatãolonge.
Sefizessemisso,replicouLucien,nenhumdosoutrosGrão-Senhoresficariaaolado
deles.Encarariamairadeseiscortesunidascontraeles.Nenhumdelesétãoburroaesse
ponto.
Rhysand é burro a esse ponto, disparou Ianthe. E com aquele poder, teria o
potencial de resistir. Imagine, disse ela, a voz abaixando quando, sem dúvida, se
voltou para Tamlin, pode chegar o dia em que ele não a devolverá. Você ouve as
mentirasvenenosasqueRhysandsussurraaoouvidodela.Háoutrasformasdecontornar
isso, acrescentara Ianthe, o veneno silencioso em suas palavras. Talvez não
consigamoslidarcomele,masháamigosquefizdooutroladodooceano...
Nãosomosassassinos,interrompeuLucien.Rhyséoqueé,masquemtomariao
lugardele...
Meusanguegelou,epodiaterjuradoquegelotomouaspontasdemeusdedos.
Lucien continuou em tom de súplica:Tamlin. Tam. Apenas deixe-a treinar,
deixequeeladomineisso...seosoutrosGrão-Senhoresvieremdefatoatrásdela,deixe
quetenhaumachance...
OsilênciocaiuenquantodeixaramqueTamlinconsiderasse.
Meuspéscomeçaramasemoverassimqueouviaprimeirapalavraquesaiuda
bocadeTamlin,poucomaisqueumgrunhido.Não.
Acadapassoescadaacima,euouviaorestante.
Não demosmotivos para eles suspeitarem que ela possa ter qualquer habilidade,
algoqueotreinamentocomcertezafará.Nãomeolheassim,Lucien.
Silênciodenovo.
Então,umgrunhidocrueleumtremordemagiaqueagitouacasa.
AvozdeTamlinsaiubaixa,mortal.Nãomepressionenesteassunto.
Não quis saber o que estava acontecendo naquela sala, o que ele tinha feito
comLucien,equecarafizeraLucienparacausaraquelepulsodepoder.
Tranqueiaportadoquartoenãomedeiotrabalhodejantar.
Tamlin não me procurou naquela noite. Imaginei se ele, Ianthe e Lucien ainda
debatiammeufuturoeasameaçascontramim.
Havia sentinelas do lado de fora do quarto na tarde seguinte — quando
finalmentemearrasteiparaforadacama.
De acordo com as sentinelas, Tamlin e Lucien já estavam entocados no
escritório. Sem os cortesãos deTamlin xeretando, amansão estava, novamente,
silenciosa conforme eu, semmais o que fazer, segui para uma caminhada pelas
trilhasdo jardim, jápercorridas tantasvezesqueme surpreendipela terrapálida
nãoestarpermanentementemarcadacomminhaspegadas.
Apenas meus passos soavam nos corredores reluzentes conforme eu
ultrapassavaguardaapósguarda,armadosatéosdentesetentandoaomáximonão
me olhar boquiabertos. Ninguém falou comigo. Até mesmo os criados tinham
passadoaserestringiràaladeles,anãoserquefosseabsolutamentenecessário.
Talvezeutivessemetornadopreguiçosademais;talvezminhapreguiçativesse
metornadopredispostaarompantesderaiva.Qualquerumpoderiatermevistono
diaanterior.
Eemboraeujamaistivessefaladoarespeito...Ianthesabia.Sobreospoderes.
Háquantotemposabia?AideiadeTamlincontaraela...
Meus chinelos de seda se arrastavam na escadaria de mármore, a cauda de
chiffondovestidoverdeserpenteavaatrásdemim.
Tantosilêncio.Silênciodemais.
Precisava sair daquela casa. Precisava fazer alguma coisa. Se os aldeões não
queriamminhaajuda, tudobem.Eupoderia fazeroutrascoisas.Oquequerque
fossem.
Eu estava prestes a virar no fim do corredor que dava para o escritório,
determinadaaperguntaraTamlinsehaviaqualquertarefaqueeupudesserealizar,
prontapara imploraraele,quandoasportasdoescritórioseabrirameTamline
Luciensurgiram,ambospesadamentearmados.NenhumsinaldeIanthe.
— Vai embora tão cedo? — perguntei, esperando que eles chegassem ao
saguão.
OrostodeTamlineraumamáscarasombriaquandoosdoisseaproximaram.
—Tematividadena fronteira comomaroeste.Preciso ir.—Aquelamais
próximadeHybern.
—Possoirjunto?—Jamaistinhaperguntadodiretamente,mas...
Tamlin parou. Lucien continuou andando, atravessou as portas abertas da
entradadacasa,quaseincapazdesegurarumencolherdocorpo.
—Desculpe—pediuTamlin,estendendoobraçoparamim.Desvieideseu
alcance.—Éperigosodemais.
—Seicomopermanecerescondida.Apenas...melevecomvocê.
—Nãovouarriscarquenossosinimigoscoloquemasmãosemvocê.
Queinimigos?Conte...contealgumacoisa.
OlheiporcimadoombrodeTamlin,nadireçãoemqueLucienesperava,no
cascalho além da entrada da casa. Nenhum cavalo. Imaginei que não eram
necessários dessa vez, pois os dois eram mais rápidos sem eles. Mas talvez eu
conseguisseacompanhar.Talvezesperasseatéquepartisseme...
—Nempensenisso—avisouTamlin.
Minhaatençãosevoltouparaseurosto.
Tamlingrunhiu:
—Nemtenteviratrásdenós.
—Euposso lutar.—Tenteidenovo.Aquela eraumameiaverdade.Certa
manha para sobreviver não era o mesmo que uma habilidade treinada.— Por
favor.
Jamaisodiaratantoumapalavra.
Tamlinfezquenãocomacabeçaecruzouosaguãoatéasportasdaentrada.
Euoseguiedisparei:
—Sempre haverá uma ameaça. Sempre haverá um conflito ou inimigo ou
algumacoisaquememanteráaqui.
Tamlinparousubitamentedoladodedentrodasimensasportasdecarvalho,
tão perfeitamente restauradas depois que os seguidores de Amarantha as
destruíram.
—Vocêmalconseguedormirumanoiteinteira—disseTamlin,comcautela.
Repliquei:
—Vocêtambém.
Maseleapenasprosseguiu:
—Malaguentaestarpertodeoutraspessoas...
— Você prometeu. — Minha voz falhou. E não me importava por estar
implorando.—Precisosairdestacasa.
—PeçaqueBronlevevocêeIantheparaumacavalgada...
—Nãoquerocavalgar!—Abriosbraços.—Nãoquerocavalgar,oufazer
piquenique,oucolherfloresselvagens.Querofazeralgo.Então,melevejunto.
Aquela garota que precisava ser protegida, que desejara estabilidade e
conforto...elamorreraSobaMontanha.Eumorrera, enãohouveninguémpara
meprotegerdaqueleshorroresantesquemeupescoçosepartisse.Então,eumesma
ofiz.Eunãoiria,nãopoderiaabrirmãodaquelapartedemimquedespertaraese
transformara Sob a Montanha. Tamlin recuperara seus poderes, se tornara
completodenovo...setornaraaqueleprotetoreprovedorquedesejavaser.
Eunãoeraagarotahumanaqueprecisavaserpaparicadaemimada,quequeria
luxoefacilidade.Nãosabiacomovoltaradesejaressascoisas.Aserdócil.
AsgarrasdeTamlindispararamparafora.
—Mesmoqueeuarriscasse,suashabilidadesdestreinadastornamsuapresença
umriscomaisquequalqueroutracoisa.
Eracomoseratingidaporpedras...comtantaforçaqueeuconseguiamesentir
quebrando.Maserguioqueixoefalei:
—Voujunto,queiravocêounão.
—Não, nãovai.—Tamlin passoupela porta, as garras golpeandoo ar na
lateraldocorpo,echegouàmetadedasescadasantesqueeualcançasseobatente
daporta.
Ondemechoqueicontraumaparedeinvisível.
Cambaleei para trás, tentando reorganizar minha mente diante daquela
impossibilidade.Eraidênticaàquelaqueeuconstruíranaqueledianoescritório,e
vasculhei os cacos de minha alma, meu coração, buscando por um fio que me
levasseàqueleescudo,imaginandoseeutinhamebloqueado,mas...nenhumpoder
emanavademim.
Estendiamãoparaoarnaporta.Eencontreiresistênciasólida.
—Tamlin—falei,rouca.
Masele já estavana entradae caminhavanadireçãodos imensosportõesde
ferro.Lucienpermaneceuaopédasescadas,orostomuito,muitopálido.
—Tamlin—faleidenovo,eempurreiaparede.
Tamlinnãosevirou.
Choqueiamãocontraabarreirainvisível.Nenhummovimento...Nadaalém
dearendurecido.Eeuaindanãoaprenderaosuficientesobremeuspoderespara
tentar forçar,paradestruir aquilo...Eudeixei queTamlinmeconvencesseanão
aprendersobreessascoisaspelobemdele...
—Nemsedêotrabalhodetentar—avidouLucien,baixinho,quandoTamlin
passoupelosportõesesumiu;fezatravessia.—Eleergueuumescudosobreacasa
inteiraemvoltadevocê.Outrospodementraresair,masvocênão.Nãoatéque
eleergaoescudo.
Tamlintinhametrancadoalidentro.
Atingioescudodenovo.Denovo.
Nada.
— Apenas... seja paciente, Feyre— pediu Lucien, encolhendo o corpo ao
seguirTamlin.—Porfavor,vereioquepossofazer.Voutentardenovo.
MalouviLucienporcimadorugidoemmeusouvidos.Nãoespereiparavê-lo
passarpelosportõeseatravessartambém.
Tamlintinhametrancafiado.Elemeseloudentrodacasa.
Disparei para a janela mais próxima no saguão e a abri. Uma brisa fria de
primavera entrou — e passei a mão por ela — apenas para que meus dedos
ricocheteassemdeumaparedeinvisível.Arlisoeduroempurrouminhapele.
Respirarsetornoudifícil.
Euestavapresa.
Estava presa dentro da casa. Podiamuito bem estar Sob aMontanha; podia
muitobemestardentrodaquelaceladenovo...
Recuei, meus passos estavam leves demais, rápidos demais, e me choquei
contraamesadecarvalhonocentrodosaguão.Nenhumadassentinelaspróximas
foiinvestigar.
Eletinhameprendidoalidentro;eletinhametrancafiado.
Parei de ver o piso demármore, ou as pinturas nas paredes, ou a escadaria
espiralada que se erguia atrás de mim. Parei de ouvir o canto dos pássaros da
primavera,ouosoprodabrisapelascortinas.
Então, uma escuridão sufocante me atingiu por cima e se ergueu sob mim,
devorandoerugindoerasgando.
Fiz o possível para evitar gritar, para evitarmequebrar emdezmil pedaços
quandoafundeinopisodemármore,me curvando sobreos joelhos, e envolvio
corpocomosbraços.
Elemeprendera;elemeprendera;elemeprendera...
Precisava sair, porquemal conseguira escapar de outra prisão antes, e dessa
vez,dessavez...
Atravessar.Eupodiasumirparaonadaesurgiremoutrolugar,algumlugar
aberto e livre.Busqueimeupoder,qualquer coisa,alguma coisa que pudesseme
mostrar a forma de fazer aquilo, a saída.Nada.Não havia nada, e eu tinhame
tornadonadaenãopodiasequersair...
Alguémgritavameunomedemuito,muitolonge.
Alis...Alis.
Maseuestavaenvoltaemumcasulodeescuridãoe fogoegeloevento,um
casuloquederreteuoaneldemeudedoatéquea ligadeouroescorresseparao
vazio,eaesmeraldasaiuquicandoatrásdela.Envolvimeucorpocomaquelaforça
violenta, como se pudesse evitar que as paredes me esmagassem por inteiro, e
talvez,talvezconseguirummínimofôlego...
Eunãopodiasair;nãopodiasair;nãopodiasair...
Mãosmagrasefortesmeseguraramporbaixodosombros.
Nãotiveforçasparalutarcontraelas.
Umadaquelasmãospassouparameusjoelhos,aoutra,paraminhascostas,e,
então, fui erguida, segurada contra o que era, inconfundivelmente, um corpo
feminino.
Nãoconseguiavê-la,nãoqueriavê-la.
Amarantha.
Foramebuscardenovo;foramematar,porfim.
Palavraseramditasaomeuredor.Duasmulheres.
Nenhumadelas...nenhumadelaseraAmarantha.
—Porfavor...porfavor,cuidemdela.—Alis.
Bemaoladodeminhaorelha,aoutrarespondeu:
—Considerem-semuito,muitosortudasporseuGrão-Senhornãoestaraqui
quando chegamos. Seus guardas terão uma dor de cabeça e tanta quando
acordarem,masestãovivos.Agradeçamporisso.—Mor.
Mormesegurou...mecarregou.
Aescuridãosedissipouportemposuficienteparaqueeutomassefôlego,para
quepudesseveraportadojardimpelaqualelacaminhou.Abriaboca,masMor
olhouparamimedisse:
—Achouqueoescudodelenosmanterialongedevocê?Rhysodestruiucom
meiopensamento.
MasnãopudeverRhysemlugarnenhum;nãoconformeaescuridãoespiralou
devolta.Eumeagarreiaela,tentandorespirar,pensar.
—Vocêestálivre—disseMor,tensa.—Estálivre.
Nãoasalvo.Nãoprotegida.
Livre.
Morme carregou para além do jardim, para campos, colina acima, abaixo e
paradentro...deumacaverna...
EudevotercomeçadoamecontorceredebaternosbraçosdeMor,porqueela
dizia,diversasediversasvezes,conformeaverdadeiraescuridãonosengolia:
—Vocêsaiu;estálivre.
Meiosegundodepois,Moremergiuparaaluzdosol—luzdosolforteecom
cheirodegramaemorangos.AcheiquepoderiaseraCorteEstival,então...
Então,umgrunhidobaixoecruelpartiuoardiantedenós,cortandoatéminha
escuridão.
—Fiztudodeacordocomasregras—disseMoraodonodaquelegrunhido.
Fuipassadadeseusbraçosparaosdeoutrapessoaelutavapararespirar,lutava
porqualquerresquíciodearparameuspulmões.AtéqueRhysandfalou:
—Então,terminamosaqui.
Oventosoproucontramim,comescuridãoantiga.
Masumtommaisdoce,maissuavedenoitemeacariciou,tocoumeusnervos,
meuspulmões,atéqueeuconseguisse,porfim,colocararparadentro,atéqueme
seduzisseaosono.
Acordeicomaluzdosoleespaçoaberto;nadaalémdecéulimpoemontanhas
cobertasdeneveaomeuredor.
ERhysandsentadoemumapoltronadiantedosofánoqualeuestavadeitada,
olhandoasmontanhas,orostoincomumentesério.
Engoliemseco,eacabeçadeRhysandsevirouemminhadireção.
Nãohaviabondadeemseusolhos.Nadaalémdeumódioinfinitoegélido.
MasRhyspiscoueaqueleódiosumiu.Substituídotalvezporalívio.Exaustão.
E a luz pálida do sol que aquecia o piso de pedra da lua... alvorecer. Era
alvorecer.Eunãoqueriapensaremquantotempoficarainconsciente.
—Oqueaconteceu?—perguntei.Estavacomavozrouca.Comosetivesse
gritado.
—Vocêestavagritando—explicouRhys.Nãome importei semeu escudo
mental estava erguido ou abaixado ou totalmente destruído. — Também
conseguiudarumsustoe tantoemtodososcriadoseassentinelasdamansãode
Tamlinquandoseenvolveuemescuridãoeelesnãoconseguiramvê-la.
Meuestômagopareceuvazio.
—Eumachuqueialgum...
—Não.Oquequerquetenhafeito,ficoucontidoavocê.
—Vocênãofoi...
—Segundoleieprotocolo—disseRhysand,esticandoaslongaspernas—,
ascoisasteriamsetornadomuitocomplicadasemuitoconfusassefosseeuquem
entrasse naquela casa e a levasse. Quebrar o escudo foi uma coisa, mas Mor
precisouentrarapé,deixarassentinelasinconscientescomosprópriospoderese
carregarvocêaté a fronteiraparaoutra corte antesqueeupudesse trazê-la aqui.
Ou Tamlin teria liberdade total para marchar suas forças até minhas terras e
reivindicá-las. E como não tenho interesse algum em uma guerra interna,
precisamosfazertudodeacordocomasregras.
EraoqueMortinhadito...quefizeratudodeacordocomasregras.
Mas...
—Quandoeuvoltar...
— Como sua presença aqui não é parte de nosso dever mensal, não tem
qualquer obrigação de voltar.— Rhys esfregou a têmpora.— A não ser que
queira.
A questão caiu sobremim comouma pedra afundando para o fundo de um
lago.Haviatantosilêncioemmim,tanto...nada.
—Elemetrancounaquelacasa.—Euconseguidizer.
A sombra de asas poderosas se abriu atrás da cadeira deRhys.Mas o rosto
estavacalmoquandodisse:
—Eusei.Eusenti.Mesmocomosescudoserguidos...paravariar.
EumeobrigueiaencararRhysdevolta.
—Nãotenhoparaondeir.
Eraumaperguntaeumasúplica.
Rhysgesticuloucomamão,asasassumiram.
—Fiqueaquiporquantotempoquiser.Fiqueparasempresetivervontade.
—Eu...euprecisareivoltaremalgummomento.
— É só dizer, e será feito. — Ele também foi sincero. Mesmo que eu
conseguisseverpelairanosolhosdeRhysqueelenãogostavadaideia.Rhysme
levariadevoltaàCortePrimaverilassimqueeupedisse.
Devoltaaosilêncioeàquelassentinelas,eaumavidadefazernadaalémdeme
vestirejantareplanejarfestas.
Rhysandcruzouaspernascomotornozelosobreojoelho.
— Fiz uma oferta quando veio aqui da primeira vez: me ajude, e comida,
abrigo,roupas...Tudoissoéseu.
Eutinhavividodeesmolasnopassado.Aideiadefazerissoagora...
—Trabalheparamim—disseRhysand.—Detodososmodos,tenhouma
dívidacomvocê.Eresolveremosorestocomopassardosdiasseforpreciso.
Olheinadireçãodasmontanhas,comosepudesseveratéaCortePrimaveril
aosul.Tamlinficariafurioso.Eledestruiriaamansão.
Mas ele... ele me prendeu. Ou era muito profundamente incapaz de me
entender,ouficaradestruídodemaispeloqueaconteceraSobaMontanha,mas...
elemeprendeu.
—Não vou voltar.—As palavras ecoaram emmim, como um badalo da
morte.—Não...nãoatéresolverascoisas.—Afasteiaparededeódioetristezae
purodesesperoquandomeupolegarroçouotrechovaziodepeleondeaqueleanel
umdiaestivera.
Umdiadecadavez.Talvez...talvezTamlinsedesseconta.Talvezsecurasse
daquele ferimento pontiagudo de medo pútrido. Talvez eu me resolvesse. Não
sabia.
Massabiaque,seficassenaquelamansão,sefossetrancafiadamaisumavez...
PoderialevaracaboadestruiçãoqueAmaranthatinhacomeçado.
Rhysandconjurouumacanecadecháquentedonadaeaentregouamim.
—Beba.
Aceitei a caneca, deixando que o calor passasse para meus dedos rígidos.
Rhysandmeobservouatéqueeutomasseumgole,e,então,voltouamonitoraras
montanhas.Tomeimaisumgole:mentae...alcaçuzeoutraervaoutempero.
Eunãovoltaria.Talvezjamaissequertivessechegadoavoltar.NãodeSoba
Montanha.
Quandoacanecaestavapelametade,procureialgo,qualquercoisaparadizer
queafastasseosilênciosufocante.
—Aescuridão...é...partedopoderquevocêmedeu?
—Édesepresumirquesim.
Termineidetomarorestodacaneca.
—Nadadeasas?
—SeherdoualgumacoisadatransfiguraçãodeTamlin,talvezpossafazerasas
próprias.
Umcalafriopercorreuminhacolunaaopensarnaquilo,nasgarrasquetinham
crescidonaquelediacomLucien.
—EdosoutrosGrão-Senhores?Gelo...issoédaInvernal.Oescudoqueum
diafiz,comventoendurecido...dequemissoveio?Oqueosoutrospodemterme
dado?A-atravessarestáligadoaalgumdevocêsemparticular?
Rhysandrefletiu.
—Vento?ACorteDiurna,provavelmente.Eatravessar...nãoéexclusividade
de corte alguma. É totalmente dependente de sua reserva de poder e de seu
treinamento.—Nãotivevontadedemencionarmeufracassoespetacularemme
mover sequer um centímetro. — E quanto aos dons que recebeu de todos os
outros...Achoquecabeavocêdescobrir.
—Eudeveriasaberquesuaboavontadesedissipariadepoisdeumminuto.
Rhys soltou uma gargalhada baixa e ficou de pé, esticando os braços
musculososacimadacabeçaealongandoopescoço.Comoseestivessesentadoali
hámuito,muitotempo.Duranteanoitetoda.
—Descanseumdiaoudois,Feyre—disseele.—Então,comeceatarefade
descobrirtodooresto.Tenhoassuntosparatrataremoutrapartedeminhasterras;
voltareinofimdasemana.
Apesardeterdormidobastante,euaindaestavamuitocansada...cansadaatéos
ossos,atéocoraçãodestruído.Quandonãorespondi,Rhyssaiuandandoporentre
aspilastrasdepedradalua.
Evicomopassariaospróximosdias:nasolidão,comnadaparafazer,somente
eumesma, compensamentos terríveispor companhia.Comecei a falar antesque
pudessemudardeideia.
—Melevejunto.
Rhysparouquandoafastouduascortinasdeorganza lilás.E,devagar,ele se
virou.
—Vocêdeveriadescansar.
— Já descansei o suficiente— argumentei, apoiando a caneca vazia e me
levantando. Senti uma leve tontura. Quando tinha comido pela última vez?—
Aonde quer que vá, o que quer que faça, me leve junto. Ficarei longe de
problemas. Apenas... Por favor.—Odiei a última palavra; engasguei. Ela não
surtiraoefeitodedissuadirTamlin.
Porumlongomomento,Rhysnãodissenada.Então,elecaminhouemminha
direção,aslongaspassadaspercorriamadistânciarapidamente,eseurostoestava
determinadocomopedra.
— Se vier comigo, não terá volta. Não poderá falar sobre o que vir com
ninguém fora de minha corte. Porque, se falar, pessoas morrerão... meu povo
morrerá. Então, se vier, precisarámentir a respeito disso para sempre; se voltar
paraaCortePrimaveril,nãopodecontaraninguémoquevir,equemconheceu,e
oquetestemunhará.Sevocêpreferirnãoterissoentrevocêe...seusamigos,então,
fiqueaqui.
Ficar ali, ficar trancada na Corte Primaveril... Meu peito era um ferimento
exposto, aberto. Imaginei se sangraria até a morte devido a ele, se um espírito
podiasangraratémorrer.Talvezissojátivesseacontecido.
—Me leve com você— sussurrei.—Não contarei a ninguém o que vir.
Nem...paraeles.—Nãosuportavadizeronomedele.
Rhysmeobservouporalgunssegundos.E,porfim,medeuummeiosorriso.
—Sairemosemdezminutos.Sequiserselimpar,váemfrente.
Um lembrete incomumente educado de que eu provavelmente parecia um
cadáver.Eumesentiacomoum.Masfalei:
—Aondevamos?
OsorrisodeRhyssealargou.
—ParaVelaris,aCidadedeLuzEstelar.
Assimqueentreinoquarto,o silênciovazio retornou, levandoconsigoqualquer
perguntaqueeupudessetersobre...sobreumacidade.
Tudo foradestruídoporAmarantha.SehaviaumacidadeemPrythian, sem
dúvidaeuvisitariaumaruína.
Disparei para a banheira,me limpando omais rápido possível; depois, corri
parapegarasroupasdaCorteNoturnaquetinhamsidodeixadasparamim.Meus
movimentoseramdistraídos,cadaum,umatentativafrágildeevitarpensarnoque
acontecera,no...noqueTamlintentarafazeretinhafeito,noqueeutinhafeito...
Quandovolteiparaoátrioprincipal,Rhysestavarecostadocontraumapilastra
depedradalua,limpandoasunhas.Eleapenasdisse:
—Vocêdemorou15minutos.—Antesdeestenderamão.
Não tive qualquer vontade de sequer tentar fingir queme importava com a
provocaçãoantesdesermosengolidospelorugidodaescuridão.
VentoenoiteeestrelaspassaramemdisparadaconformeRhysnosatravessou
pelomundo, eos calosde suamão roçaramcontraosmeus,que se suavizavam,
antes...
Antesquealuzdosol,nãodasestrelas,merecebesse.Aosemicerrarosolhos
paraaclaridade,mevidepénoquesemdúvidaeraovestíbulodacasadealguém.
O tapete vermelho ornamentado acolchoou o único passo que dei,
cambaleante,paralongedeRhysafimdeobservarasparedesquentescompainel
demadeira,asobrasdearte,aescadaretaeampladecarvalhoadiante.
De cada lado havia dois cômodos: à esquerda, uma sala de estar com uma
lareira de mármore preto, muita mobília confortável e elegante, mas gasta, e
prateleirasde livrosembutidasemtodasasparedes.Àdireita:umasalade jantar
comumamesalongadecerejeira,grandeobastanteparadezpessoas—pequena
em comparação com a sala de jantar da mansão. No fim do corredor estreito
adiantehaviamaisalgumasportas,eeleterminavacomumaquepresumidarpara
umacozinha.Umamoradiaurbana.
Certa vez, visitara uma, quando era criança emeu paime levou emviagem
para a maior cidade em nosso território: pertencia a um cliente fantasticamente
abastadoetinhacheirodecaféenaftalina.Umlugarbonito,maspomposo;formal.
Essacasa...essacasaeraumlarqueforahabitadoeaproveitadoequerido.
Eficavaemumacidade.
PARTEDOIS
ACASADOVENTO
–Bem-vindaaomeular—disseRhysand.
Umacidade...haviaummundoláfora.
Osoldamanhãentravapelasjanelasqueladeavamafrentedacasa.Aportade
madeira com entalhe ornamental diante de mim era embutida com um vidro
embaçado,peloqualseviaumapequenaantecâmaraeaportadeentradadefato
alémdela, fechada e sólida contra qualquer que fosse a cidade que espreitava lá
fora.
Eaideiadecolocarospésdoladoexterior,paraasmultidõesreunidas,dever
adestruiçãoqueAmaranthaprovavelmenteprovocarasobreelas...Umpesorecaiu
sobremeupeito.
Nãotinhameconcentradoosuficienteparaperguntaratéagora,nãomedera
umpingodeespaçoparaconsiderarqueaquilopoderiaserumerro,mas...
—Oqueéestelugar?
Rhysapoiouoombrolargocontraobatentedecarvalhoentalhadoquedava
paraasaladeestar,ecruzouosbraços.
—Estaéminhacasa.Bem,tenhoduascasasnacidade.Umaéparaassuntos
mais...oficiais,masestaéapenasparamimeminhafamília.
Tenteiouvirobarulhodecriados,masnãoconsegui.Bom...talvezfossebom,
emvezdetergentechoramingandoeboquiaberta.
—NualaeCerridwenestãoaqui—disse ele, interpretandomeuolharpelo
corredoratrásdenós.—Mas,foraisso,seremosapenasnósdois.
Fiquei tensa.Nãoqueas coisas fossemdiferentesnaprópriaCorteNoturna,
mas...aquelacasaeramuito,muitomenor.Nãoteriacomofugirdele.Excetopela
cidadedoladodefora.
Não restavamcidades emnosso territóriomortal.Embora algumas tivessem
florescidonocontinenteprincipal,cheiasdearteeeducaçãoecomércio.Elaincerta
vezquisircomigo.Achoqueagoranãoteriamaisessaoportunidade.
Rhysand abriu a boca, mas então as silhuetas de dois corpos altos e fortes
surgiramdooutroladodovidroembaçadodaportadafrente.Umdelesbateucom
opunho.
— Rápido, seu preguiçoso — vociferou uma voz masculina grave na
antecâmara além da porta. Exaustão tinha me entorpecido tanto que não me
importavamuitoquehaviaasasdespontandodasduasformassombreadas.
Rhysnemmesmopiscounadireçãodaporta.
—Duascoisas,Feyre,querida.
As batidas continuaram, seguidas pelo segundo macho murmurando para o
companheiro:
—Sevaicomeçarumabrigacomele, façadepoisdocafé.—Aquelavoz...
comosombrasquetomaramforma,sombriaesuavee...fria.
—Nãofuieuquemmeexpulsoudacamaagorahápoucoparavoaratéaqui
—disseoprimeiro.Então,acrescentou:—Enxerido.
EupodiajurarqueumsorrisorepuxouoscantosdabocadeRhysconformeele
prosseguiu:
— Primeira: ninguém, ninguém além de Mor e eu podemos atravessar
diretamenteparadentrodestacasa.Estáenfeitiçada,guarnecidaeenfeitiçadaainda
mais.Apenasaquelesqueeudesejar,equevocêdesejar,podementrar.Estásegura
aqui; e segura emqualquer lugardesta cidade, aliás.AsmuralhasdeVelaris são
bemprotegidas,enãosãopenetradashácincomilanos.Ninguémcommáintenção
entranestacidadeanão serqueeupermita.Então,váaondedesejar, façaoque
desejarevejaoquedesejar.Aquelesdoisnaantecâmara—acrescentouRhys,com
osolhosbrilhando—podemnãoestarnalistadepessoasquevocêdeveriasedaro
trabalhodeconhecersecontinuaremesmurrandoaportacomosefossemcrianças.
Outrabatida,enfatizadapelaprimeiravozmasculinadizendo:
—Sabequepodemosouvirvocê,seuporco.
—Segunda—continuouRhys.—Noquedizrespeitoaosdoisdesgraçadosà
porta,cabeavocêquererconhecê-losagoraouseguirparaoandardecimacomo
uma pessoa inteligente, tirar uma soneca, pois ainda parece um pouco pálida, e
depois colocar roupas apropriadas para a cidade enquanto espancoumdeles por
falardessaformacomumGrão-Senhor.
HaviatantaluznosolhosdeRhys.Faziacomqueeleparecesse...maisjovem,
dealgumaforma.Maismortal.Tãodiferentedoódiogélidoqueeuviramaiscedo,
aoacordar...
Acordarnaquelesofáedepoisdecidirquenãovoltariaparacasa.
Decidirque,talvez,aCortePrimaverilnãofossemeular.
Eu estava me afogando naquele antigo peso, lutando para subir até uma
superfíciequetalveznãoexistisse.TinhadormidoporsomenteaMãesabequanto
tempo,mesmoassim...
—Venhamebuscarquandoelesforemembora.
Aquelaalegriadiminuiu,eRhyspareceuprestesadizeroutracoisa,masuma
vozfeminina,entrecortadaeaguda,soounaquelemomentoatrásdosdoismachos
naantecâmara.
—Vocês,illyrianos,sãopioresquegatosmiandoparaquealguémabraaporta
dosfundos.—Amaçanetaseagitou.Amulhersuspirouprofundamente.—Sério,
Rhysand?Vocênostrancoudoladodefora?
Lutandoparaafastaraqueleimensopesoporumpoucomaisdetempo,segui
paraasescadas—noaltodelasagoraestavamNualaeCerridwen,encolhendoo
corpo para a porta da entrada. Eu podia ter jurado que Cerridwen gesticulou
subitamente para que eu subisse correndo. E poderia ter beijado as gêmeas por
aquelepingodenormalidade.
TalveztambémtivessebeijadoRhysporesperarparaabriraportaatéqueeu
estivessenametadedocorredorazul-cerúleonosegundoandar.
Sóouviaquelaprimeiravozmasculinadeclarar:
—Bem-vindoaolar,bastardo.
Issoseseguiuàvozmasculinaenvoltaemsombrasdizendo:
—Sentiqueestavadevolta.Mormeinteirou,maseu...
Aquelavozfemininaestranhaointerrompeu.
—Mandeseuscãesbrincaremnoquintal,Rhysand.Vocêeeutemosassuntos
atratar.
Aquelavozquepareciaameia-noitefaloucomumafriezabaixaquepercorreu
minhaespinha:
—Assimcomoeu.
Então,oarrogantefaloucomamulher:
—Chegamosprimeiro.Esperesuavez,PequenaAnciã.
Flanqueando minha figura, Nuala e Cerridwen encolheram o corpo, talvez
segurandoasgargalhadasoupormedo,outalvezambos.Definitivamenteambos,
poisumgrunhidofemininopercorreuacasa...apesardepoucoentusiasmado.
O corredor do andar de cima era decorado com lustres de vidro espiralado
colorido,iluminandoaspoucasportaspolidasdecadaumdoslados.Imagineiqual
pertenceria aRhysand—então imaginei qual pertenceria aMor quando a ouvi
bocejaremmeioàbalbúrdiaabaixo:
—Porqueestãotodosaquitãocedo?Acheiquenosencontraríamosestanoite
naCasa.
Abaixo,Rhysandresmungou,resmungou:
—Confieemmim,nãotemfestaalguma.ApenasummassacreseCassiannão
calaraboca.
—Estamoscomfome—aqueleprimeiromacho,Cassian,reclamou.—Nos
alimente.Alguémmecontouquehaveriacafédamanhã.
—Patéticos—debochouaquelavozfemininaesquisita.—Vocêsidiotassão
patéticos.
Morfalou:
—Sabemosqueissoéverdade.Mastemcomida?
Ouviaspalavras;ouviecompreendi.Entãoelasflutuaramparaaescuridãode
minhamente.
Nuala e Cerridwen abriram a porta de um quarto aquecido por lareira e
iluminadopelosol.Esteseabriaparaumjardimmurado,comvestígiosdoinverno
nosfundosdacasa,easgrandesjanelasdavamparaafontedepedradormenteno
centro,vaziaporcausadaestação.Tudonoquartoerademadeira finaedeum
tomsuavedebranco,comtoquesdeumverdesutil.Parecia,estranhamente,quase
humano.
Eacama—imensa,fofa,adornadacomcolchaseedredonsdecorescremee
marfim para afastar o frio do inverno— parecia ser a mais aconchegante das
coisas.
Maseunãoestavatãosonolentaquenãoconseguissefazeralgumasperguntas
básicas...paraaomenosmedarailusãodemeimportarumpoucocommeubem-
estar.
—Quemeramaqueles?—Conseguidizerquandofecharamaportaatrásde
nós.
Nuala seguiu para o pequeno banheiro anexo; de mármore branco, com
banheira de pés em formadegarras,mais janelas ensolaradas quedavampara o
murodo jardimeparaa fileiraespessadeciprestesquepareciammontarguarda
atrásdele.Cerridwen,quejácaminhavaparaoarmário,seencolheuumpoucoe
falouporcimadoombro:
—SãodoCírculoÍntimodeRhysand.
AquelesqueeuouviraseremmencionadosnaqueledianaCorteNoturna,que
Rhysficavavisitando.
—EunãoestavacientedequeGrão-Senhoresmantinhamascoisastãocasuais
—admiti.
—Nãomantêm—falouNuala,aovoltardobanheirocomumaescova.—
MasRhysandsim.
Aparentemente, meu cabelo estava uma bagunça, porque Nuala o penteou
enquanto Cerridwen escolheu um pijama marfim: camisa com calça quentes e
maciasecombarraderenda.
Observei as roupas e,depois,oquarto, então,o jardimde invernoe a fonte
desativadaalémdele,easpalavrasqueRhysanddisseramaiscedofizeramsentido.
Asmuralhasdestacidadenãosãoinvadidashácincomilanos.
OquesignificavaqueAmarantha...
—Comoesta cidadeestá aqui?—EncareiNualapeloespelho.—Como...
comoelasobreviveu?
O rosto de Nuala ficou tenso, e os olhos escuros se voltaram para a irmã
gêmea, a qual se levantou devagar da frente da gaveta de uma cômoda, com
chinelos forrados de lã nasmãos. A garganta de Cerridwen oscilou quando ela
engoliuemseco.
—OGrão-Senhorémuitopoderoso—falouCerridwen,comcautela.—E
eradevotadoaopovomuitoantesdeofardodopaipassarparaele.
—Comoelasobreviveu?—insisti.Umacidade,linda,seossonsquevinham
deminhajanela,dojardimalémdela,eramalgumindicativo,estavaaomeuredor.
Intocada, inteira. Segura. Enquanto o restante domundo tinha sido deixado em
ruínas.
As gêmeas trocaram olhares de novo, alguma linguagem silenciosa que
aprenderam no útero passou de uma para outra. Nuala apoiou a escova na
penteadeira.
—Nãocabeanósdizer.
—Elepediuquevocêsnão...
—Não—interrompeuCerridwen,dobrandoascobertas.—OGrão-Senhor
nãofeztalexigência.Masoqueelefezparaprotegerestacidadeéumahistóriadele
parasercontada,nãonossa.Ficaríamosmaisconfortáveisseelearevelasseavocê,
paranãoconfundirmosnada.
Olheiparaasduascomirritação.Tudobem.Justo.
Cerridwenfoifecharascortinas,selandooquartoemescuridão.
Meucoraçãodeuumsobressalto,levandoconsigoaraiva,edisparei:
—Deixeabertas.
Nãopodiaserseladaefechadanaescuridão...aindanão.
Cerridwenassentiuedeixouascortinasabertas;asgêmeasmedisserampara
mandarchamarseeuprecisassedealgo,e,depois,saíram.
Sozinha,deiteinacama,malsentindoamaciez,asuavidadedoslençóis.
Ouviofogocrepitante,ocantardospássarosnassempre-verdesplantadasno
jardim; tão diferente das melodias primaveris doces com as quais eu estava
acostumada.Quetalvezjamaisconseguissesuportardenovo.
TalvezAmaranthativessevencido,nofimdascontas.
E alguma parte nova e esquisita em mim se perguntou se jamais retornar
poderiaserumapuniçãoadequadaparaele.Peloqueeletinhafeitocomigo.
Osonomereivindicou,ágil,brutaleprofundo.
Acordeiquatrohorasdepois.
Preciseidealgunsminutosparamelembrardeondeestava,doqueacontecera.
E cada tique do pequeno relógio na escrivaninha de jacarandá era como um
empurrãomais emais para trás naquela escuridãoprofunda.Maspelomenos eu
nãoestavacansada.Letárgica,masnãoestavamaisàbeirademesentircomose
pudessedormirparasempre.
PensarianoqueaconteceranaCortePrimaverildepois.Amanhã.Nunca.
AindabemqueoCírculoÍntimodeRhysandpartiuantesqueeuterminassede
mevestir.
Rhys esperava à porta da frente, a qual estava aberta para a pequena
antecâmarademadeira emármore,que,por suavez,davapara a rua alémdela.
Rhys me observou, desde os sapatos azul-marinho de camurça — práticos e
confortáveis—atéo sobretudoazul-celestena alturados joelhos e a trançaque
começavadeumladodeminhacabeçaedavaavoltaportrásdela.Sobocasaco,a
roupa fina habitual tinha sido substituída por calçamarrommais espessa emais
quenteeumsuétercremebonitinho,queeratãomacioqueeupodiaterdormido
nele. Luvas de tricô que combinavam com os sapatos já estavam enfiadas nos
bolsosfundosdocasaco.
—Aquelas duas gostammesmo de chamar atenção— observou Rhysand,
emboraalgoparecessetensoconformeseguimosparaaporta.
Cada passo na direção daquele batente iluminado era tanto uma eternidade
quantoumconvite.
Porummomento,opesodentrodemimsumiuquandoabsorviosdetalhesda
cidadequeemergia:
Luzdosolamanteigada,quesuavizavaodiadeinvernojáameno,umpequeno
ebem-cuidadojardimnafrente,agramasecaquasebranca,envoltoporumacerca
de ferro retorcido na altura da cintura, e canteiros de flores vazios, tudo isso
seguindoatéumarualimpadeparalelepípedospálidos.Grão-Feéricosemdiversos
tipos de vestimenta perambulavam: alguns com casacos como o meu para se
protegerdoargelado,algunsusandomodamortal,comcamadasesaiasbufantese
renda,outroscomcouroparacavalgar; todos sempressa conforme inspiravama
brisa de sal, limão e verbena que nem mesmo o inverno conseguia afugentar.
Nenhum deles olhou na direção da casa. Como se não soubessem ou não se
preocupassem que o próprioGrão-Senhormorava em uma dasmuitas casas de
mármoreque ladeavamarua,cadaumaencimadapor telhadosdecobreverdee
chaminéspálidasquesopravamespiraisdefumaçanocéufrio.
Aolonge,criançasdavamgargalhadasesganiçadas.
Saícambaleandoparaoportãoprincipal,abrindo-ocomosdedosansiososque
malregistraramometalfriocomogelo;depois,deitrêspassosparaaruaantesde
pararaoverooutrolado.
A rua se inclinava para baixo, revelando mais casas bonitas e chaminés
soprandofumaça,maispessoasbem-alimentadasedespreocupadas.Ebemnabase
da colina um rio amplo e sinuoso se curvava, brilhando com um tom de safira
profundo,serpenteandonadireçãodeumagrandeextensãodeáguaadiante.
Omar.
A cidade fora construída como uma casca sobre as colinas íngremes que se
estendiam flanqueando o rio, as construções eram feitas demármore branco ou
arenitodetomquente.Navioscomvelasdeformasvariadasestavamatracadosno
rio,easasasbrancasdepássarosbrilhavamacimadelesaosoldomeio-dia.
Nenhum monstro. Nenhuma escuridão. Nem um pingo de medo, de
desespero.
Intocada.
Acidadenãoéinvadidahácincomilanos.
MesmoduranteoaugedodomíniodeAmaranthasobrePrythian,oquequer
que Rhys tivesse feito, o que quer que tivesse vendido ou barganhado... Ela
realmentenãotocaranaquelelugar.
O restante de Prythian havia sido destruído e, então, deixado sangrando ao
longodecinquentaanos,masVelaris...Meusdedossefecharamempunho.
Sentialgopairandoacima,eolheiparaooutroladodarua.
Ali, como guardiãs eternas da cidade, erguiam-se, em uma muralha,
montanhasdetopoplanodepedravermelha—amesmapedraqueforausadapara
construiralgumasdasestruturas.ElassecurvavamnabeiranortedeVelaris,onde
o rio desviava em sua direção e fluía para dentro de sua sombra. Para o norte,
montanhas diferentes cercavama cidadedooutro ladodo rio—uma cadeia de
picosafiadoscomodentesdepeixe,queseparavaasalegrescolinasdacidadedo
maralémdelas.Masessasmontanhasatrásdemim...Eramgigantesadormecidos.
Dealgumaformapareciamvivas,despertas.
Como se respondessem, aquele poder ondulante, serpenteante, deslizou por
meusossos,comoumgatoroçandominhaspernasembuscadeatenção.Ignorei.
—Opicodomeio—falouRhys,atrásdemim,emevirei,lembrandoqueele
estavaali.Rhysandapenasapontounadireçãodomaisaltodosplanaltos.Buracos
e... janelas pareciam ter sido construídos na parte mais alta. E voando naquela
direção, com asas grandes e escuras, seguiam duas figuras.—Aquela é minha
outracasanestacidade.ACasadoVento.
Certamente, as figuras voadoras desviaramno que parecia ser uma corrente
forteerápida.
—Vamosjantarláestanoite—acrescentouRhysand,enãopudedizerseele
pareciairritadoouresignadocomofato.
Enãomeimportavamuito.Vireiparaacidadedenovoefalei:
—Como?
Eleentendeuoqueeuquisdizer.
—Sorte.
—Sorte?Sim,quesorteasua—argumentei,baixinho,masnãomuito—que
o restante de Prythian tenha sido devastado enquanto seu povo e sua cidade
permaneceramasalvo.
OventosoprouoscabelosescurosdeRhysand;seurostoeraindecifrável.
—Chegouapensarporummomento—continuei,avozcomocascalho—
emestenderessasorteaalgumoutrolugar?Aalguémmais?
—Outras cidades—falouele, calmamente—sãoconhecidaspelomundo.
Velarispermaneceuemsegredoalémdasfronteirasdestasterrasdurantemilênios.
Amaranthanãoatocouporquenãosabiadaexistênciadacidade.Nenhumadesuas
bestassabia.NinguémnasoutrascortessabedaexistênciadeVelaristambém.
—Como?
—Feitiçoseproteçõesemeusancestraismuitocruéis,queestavamdispostosa
fazer qualquer coisa para preservar um pedaço de bondade em nosso mundo
destruído.
—EquandoAmaranthasurgiu—falei,quasecuspindoonomedela—,não
pensouemabrirestelugarcomorefúgio?
— Quando Amarantha surgiu — respondeu Rhys, o temperamento se
descontrolandoumpoucoquandoseusolhosbrilharam—,preciseifazerescolhas
muitodifíceis,muitorapidamente.
Revireiosolhos,virando-meparaverificar as colinasextensas e íngremes,o
maraolonge.
—Presumoquenãovaimecontararespeitodisso.—Masprecisavasaber...
comoeleconseguirasalvaraquelepedaçodepazebeleza.
—Agoranãoéhoraparaessaconversa.
Tudobem.EujáouviraaqueletipodecoisamilharesdevezesantesnaCorte
Primaverilmesmo.Nãovaliaapenameesforçarparainsistiraesserespeito.
Mas eu não ficaria sentada no quarto, não podiame permitir ficar de luto e
deprimidaechoraredormir.Então,meaventurarianarua,mesmoquefosseuma
agonia, mesmo que o tamanho daquele lugar... Pelo Caldeirão, era enorme.
Indiqueicomoqueixoacidadequeseestendiaparabaixo,nadireçãodorio.
—Então,oqueháaliquevaleapenasalvaràscustasdetodomundo?
QuandoencareiRhys,osolhosazuisestavamtãocruéisquantoomaragitado
deinvernoaolonge.
—Tudo—respondeuele.
Rhysandnãoestavaexagerando.
Havia tudoparaveremVelaris:casasdechácommesasecadeirasdelicadas
dispostas do lado de fora das fachadas alegres, com certeza aquecidas por um
feitiço,cheiasdeGrão-Feéricosconversandoerindo...ealgunsfeéricosestranhos
elindos.Haviaquatropraçasprincipaisdecomércio;eramchamadasdePalácios:
duasdaquelelado—oladosul—dorioSidra,eduasdoladonorte.
Duranteashorasemquecaminhamos,sóvisiteiduasdelas:grandespraçasde
pedras brancas, flanqueadas pelas pilastras que sustentavam as construções
entalhadasepintadas,davamparaaspraçaseforneciamumpasseiocobertoabaixo
paraaslojasconstruídasaoníveldarua.
O primeiromercado em que entramos, o Palácio de Linhas e Joias, vendia
roupas, sapatos, suprimentos para fazer ambos e joias— incontáveis joalherias
reluzentes.Masnadadentrodemimseagitoudiantedoreflexodaluzdosolsobre
os tecidos, semdúvidararos,queoscilavamàbrisa friadorio,diantedasroupas
dispostasnas amplas janelasdevidro,oudobrilhodeouro, rubi e esmeraldas e
pérolas aninhados em almofadas de veludo.Não ousei olhar para o dedo, agora
vazio,emminhamãoesquerda.
Rhys entrou em algumas das joalherias, procurando um presente para uma
amiga,disseele.Escolhiesperardoladodeforatodasasvezes,meescondendonas
sombras sob as construções do Palácio. Passear naquele dia era o suficiente.
Apresentar-me,suportarasbocasescancaradas,aslágrimaseosjulgamentos...se
precisasselidarcomisso,poderiamuitobemdeitarnacamaejamaissair.
Mas ninguém nas ruas me olhou duas vezes, mesmo ao lado de Rhysand.
Talveznão tivessem ideiadequemeuera; talvezosmoradoresdacidadenão se
importassemcomquemestavaentreeles.
Osegundomercado,oPaláciodeOssoeSal,eraumadasPraçasGêmeas:uma
donosso ladodo rio, a outra—oPalácio deCasco eFolha—dooutro lado,
ambasaspraçasestavamlotadasdecomerciantesvendendocarne,vegetais,comida
pronta, gado, medicamentos, temperos... Tantos temperos, cheiros familiares e
esquecidos daqueles anos preciosos em que conheci o conforto de um pai
invencíveleumariquezasemfim.
Rhysandsemanteveaalgunspassosdedistância,asmãosnosbolsosconforme
ofereciaalgumainformaçãodevezemquando.Sim,elemecontou,muitaslojase
laresusavammagiaparaseaquecer,principalmenteespaçosabertospopulares.Eu
nãopergunteimaisarespeito.
Ninguémoevitou;ninguémsussurrouarespeitodeRhysandoucuspiunele
ouoacaricioucomotinhamfeitoSobaMontanha.
Na verdade, as pessoas que o viam ofereciam largos sorrisos calorosos.
Algumas se aproximavam, segurando a mão de Rhys para lhe dar boas-vindas.
Rhysconheciacadaumapelonome—easpessoassedirigiamaelepelonome.
MasRhys ficou cadavezmais calado conforme a tarde chegou.Paramosno
limite de uma parte da cidade pintada em cores alegres, construída no alto das
colinasqueseestendiamdiretoparaabeiradorio.Deiumaolhadaparaafachada
daprimeiraloja,emeusossospareceramquebradiços.
Aportaalegreestavaentreabertaerevelavaarteepinturasepincéisepequenas
esculturas.
Rhysandfalou:
—Épor isso queVelaris é conhecida: o quarteirão dos artistas.Você pode
encontrarcentenasdegalerias,lojasdesuprimentos,oficinasdecerâmica,jardins
deesculturasequalquercoisadesse tipo.ChamamdeoArco-ÍrisdeVelaris.Os
artistasperformáticos—músicos,dançarinos,atores—moramnaquelacolinado
outroladodoSidra.Estávendootrechodouradobrilhandopertodotopo?Éum
dosprincipaisteatros.Hácincoteatrosimportantesnacidade,masaqueleéomais
famoso. E há os teatros menores, e o anfiteatro nos penhascos do oceano...—
Rhysseinterrompeuquandoreparouemmeuolharvoltando-separaadiversidade
deprédiosalegresadiante.
Grão-Feéricosediversosfeéricosinferioresqueeujamaisviraecujosnomes
não conhecia perambulavam pelas ruas. Os segundos chamavam mais minha
atenção que os primeiros: alguns tinham braços e pernas longos, sem cabelos, e
brilhavamcomoseumaluainteriormorassesobapeleescuracomoanoite,alguns
eramcobertosdeescamasopalinas,quemudavamdecoracadapassograciosodos
pés palmados e cheios de garras, alguns pareciam quebra-cabeças elegantes e
selvagens de chifres e cascos e pele listrada. Alguns estavam envoltos em
sobretudospesados,echarpeseluvas;outrosperambulavamusandonadaalémdas
próprias escamas, peles e garras, e não pareciam pensar duas vezes a respeito.
Assim como ninguém mais. Todos eles, no entanto, estavam preocupados em
observarapaisagem,algunsfaziamcompras,outrosmanipulavamargila,areiae...
tinta.
Artistas.Eujamaismechameideartista,jamaishaviaconjecturadoaquiloou
pensadotãograndiosamente,mas...
Ondetodaaquelacor,luzetexturaumdiamorara,haviaapenasumacelade
prisãoimunda.
—Estoucansada.—Euconseguidizer.
ConseguiasentiroolhardeRhys,nãomeimportavaseoescudomentalestava
erguidoounãoparameprotegercontraseuacessoameuspensamentos.Masele
apenasdisse:
—Podemosvoltaroutrodia.Estáquasenahoradojantarmesmo.
De fato, o sol descia na direção em que o rio encontrava o mar além das
colinas,manchandoacidadederosaedourado.
Não senti vontade de pintar aquilo também. Mesmo enquanto as pessoas
paravampara admiraropôrdo solque se aproximava—como seos residentes
daquele lugar, daquela corte, tivessem a liberdade, a segurança de aproveitar a
vistasemprequedesejassem.Ejamaistivessemconhecidooutravida.
Euqueriagritar comeles,queriapegarumpedaço soltodeparalelepípedoe
quebrar a janela mais próxima, queria libertar aquele poder que mais uma vez
fervilhavasobminhapeleedizeràspessoas,mostraraelas,oqueforafeitocomigo,
comorestodomundo,enquantoelasadmiravamopôrdosolepintavamebebiam
àbeiradorio.
—Calma—murmurouRhys.
Vireiacabeçaparaele,minharespiraçãoestavaumpoucoirregular.
OrostodeRhysand,denovo,setornouindecifrável.
—Meupovonãotemculpa.
Comfacilidade,meuódiosumiu,comosetivesseescorregadoemumdegrau
daescadaquegalgavaconstantementedentrodemimetivesseseestateladonarua
depedraspálidas.
Sim; sim, é claro que não tinham culpa.Mas eu não tinhamais vontade de
pensarnaquilo.Emnada.Denovo,falei:
—Estoucansada.
AgargantadeRhysoscilou,maseleassentiu,virandoascostasparaoArco-
Íris.
—Amanhãànoite,sairemosparacaminhar.Velarisélindaduranteodia,mas
foiconstruídaparaservistadepoisdoanoitecer.
Eu não esperava menos da Cidade de Luz Estelar, mas as palavras tinham
ficado,maisumavez,difíceisdepronunciar.
Mas... jantar. Com ele. Naquela Casa do Vento. Reuni concentração o
suficienteparadizer:
—Quem,exatamente,estaránessejantar?
Rhysnosguiouporumaruaíngreme,eminhascoxaspareciamqueimarcomo
movimento.Seráqueeuestavatãoforadeforma,tãofraca?
—MeuCírculoÍntimo—disseele.—Queroqueosconheçaantesdedecidir
se este é um lugar no qual gostaria de ficar. Se gostaria de trabalhar comigo e,
portanto,comeles.Morvocêjáconheceu,masosoutrostrês...
—Aquelesquevieramessatarde.
Umacenodecabeça.
—Cassian,AzrieleAmren.
—Quem são?—Rhysanddissera algo sobre illyrianos,masAmren, a voz
femininaqueeuouvira,não tinhaasas.Pelomenosnãoasasqueeupudessever
pelovidroembaçado.
— Há hierarquias— falou Rhysand, com voz neutra— dentro de nosso
círculo.Amrenéminhaimediata.
Umafêmea?Asurpresadeviaestarestampadaemmeurosto,poisRhysfalou:
—Sim.EMoréaterceiranahierarquia.Apenasumtolopensariaquemeus
guerreirosillyrianossãoospredadoresnotopodenossocírculo.—Airreverente
e alegreMor era terceira na sucessão doGrão-Senhor da CorteNoturna. Rhys
continuou:—VeráoquequerodizerquandoconhecerAmren.ElapareceGrã-
Feérica,mas algo diferente habita sua pele.—Rhys assentiu para um casal que
passava,oqualfezumareverênciacomacabeçaemumcumprimentoalegre.—
Ela pode ser mais velha que esta cidade, mas é vaidosa e gosta de acumular
penduricalhosepertences talqualumdragãocuspidorde fogoemumacaverna.
Então...fiqueatenta.Vocêsduastêmtemperamentosfortesquandoprovocadas,e
nãoqueroquetenhanenhumasurpresaànoite.
Partedemimnãoqueriaexatamentesaberquetipodecriaturaelaera.
—Então,seentrarmosnumabrigaeeulhearrancarocordão,Amrenvaime
assaremedevorar?
Rhysriu.
—Não...Amrenfariacoisasmuito,muitopioresqueisso.Daúltimavezem
queAmreneMorsedesentenderam,deixarammeuretiropreferidonasmontanhas
em cinzas.— Ele ergueu uma sobrancelha.— Para você ter uma ideia, sou o
Grão-SenhormaispoderosodahistóriadePrythian,esimplesmente interromper
Amrenéalgoqueeusófizumaveznoúltimoséculo.
OmaispoderosoGrão-Senhordahistória.
AolongodosincontáveismilêniosemqueexistiramaquiemPrythian,Rhys
—Rhys,comosrisinhosdebochadoseosarcasmoeoolharsensual...
EAmrenerapior.Emaisvelhaquecincomilanos.
Espereiqueomedomeatingisse;espereiquemeucorposedesesperassepara
encontrarumaformademelivrardojantar,mas...nada.Talvezfosseumabenção
sermorta...
Amão largadeRhys seguroumeu rosto... comsuavidadebastanteparanão
doer,mascomforçasuficienteparamefazerencará-lo.
—Nempensenisso—sibilouRhysand,oolharlívido.—Nemporummaldito
segundo.
Aquela ligação entre nós ficou tensa, meus escudos mentais restantes
desabaram. E, por um segundo, exatamente como aconteceu Sob a Montanha,
passeidemeucorpoparaodele...dosmeusolhosparaosdeRhys.
Nãotinhapercebido...minhaaparência...
Meurostoestavamacilento,asmaçãsdorosto,protuberantes,osolhosazul-
acinzentados,esmaecidosemanchadosderoxoembaixo.Oslábioscarnudos—a
bocademeupai—estavam finos, e as clavículasdespontavamacimadodecote
espesso de lã do suéter. Eu parecia... Parecia que o ódio, o luto e o desespero
tinham me devorado viva, como se eu estivesse, de novo, faminta. Não por
comida,mas...masporalegriaevida...
Então,volteiparameucorpo,olhandoparaRhyscomraiva.
—Issofoiumtruque?
AvozdeRhysestavaásperaquandoeletirouamãodemeurosto.
—Não.—Rhysinclinouacabeçaparaolado.—Comopassouporele?Por
meuescudo.
Eu não sabia do que ele estava falando. Não tinha feito nada. Apenas...
deslizado.Enãoqueriafalarsobreaquilo,nãoali,nãocomele.Saíbatendoospés,
eminhas pernas— tão finas, tão inúteis— queimavam a cada passo acima da
íngremecolina.
Rhysandseguroumeucotovelo,denovocomaquelasuavidadecautelosa,mas
forteobastanteparamefazerparar.
—Paradentrodequantasoutrasmentesdeslizouacidentalmente?
Lucien...
—Lucien?—Umarisadacurta.—Quelugarmiserávelparaestar.
Umgrunhidobaixosaiudedentrodemim.
—Nãoentreemminhamente.
—Seuescudoestáabaixado.—Euoerguiàspressas.—Poderiamuitobem
ter gritado o nome paramim.—De novo, aquela inclinação contemplativa da
cabeça.—Talveztermeupoder...—Rhysmordeuolábioinferiore,depois,riu
comescárnio.—Fariasentido,éclaro,seopoderveiodemim,semeuescudoàs
vezesconfundissevocêcomigoeadeixassepassar.Fascinante.
Penseiemcuspiremsuasbotas.
—Pegueseupoderdevolta.Nãoquero.
Umsorrisomalicioso.
—Nãofuncionaassim.Opoderestápresoasuavida.Aúnicaformadetomá-
lo de volta seriamatá-la. E, como eu gosto de sua companhia, vou dispensar a
oferta. — Demos alguns passos antes de Rhys dizer: — Você precisa ficar
vigilantecomrelaçãoaosescudosmentais.PrincipalmenteagoraqueviuVelaris.
Sealgumdiaforaoutrolugar,alémdestasterras,ealguémdeslizarparadentrode
suamenteevirestelugar...—Omúsculoemseumaxilarsecontraiu.—Somos
chamadosdedaemati,aquelesdenósquepodementrarnamentedeoutrapessoa
como se passássemos de um quarto para outro. Somos raros, e o traço aparece
conformeaMãedeseja,masháosuficientedenóspelomundoparaquemuitos,
principalmenteaquelesemposiçõesde influência, treinemexaustivamentecontra
nossas habilidades. Se você algum dia encontrasse um daemati sem os escudos
erguidos,Feyre, ele tomariaoquequisesse.Ummaispoderosopoderia torná-la
escravasemquevocêsoubesse,obrigá-laafazeroquequisesse,evocêjamaisse
dariaconta.Minhasterraspermanecemtãomisteriosasparaforasteirosquealguns
achariamvocê,entreoutrascoisas,umafontealtamentevaliosadeinformações.
Daemati; seráqueagoraeueraumase tambémpodia fazer taiscoisas?Mais
ummalditotítuloparaqueaspessoassussurrassemconformeeupassava.
—ImaginoqueemumapotencialguerracontraHybern,osexércitosdorei
nemmesmosaberiamqueesteéumlugarparaatacar?—Indiqueicomamãoa
cidade ao nosso redor.— Então, o que, seu povo mimado... aqueles que não
podemproteger amente recebem sua proteção e não precisam lutar enquanto o
restantedenóssangra?
Nãodeixeiqueelerespondesse,eapenasapresseiopasso.Umgolpebaixoe
infantil, mas... Por dentro, por dentro eu tinha me tornado como aquele mar
distante, incessantemente revolta, atirada de um lado para outro por rajadas de
ventoquedestruíamqualquernoçãodeondepudesseestarasuperfície.
Rhyssemanteveumpassoatrásduranteorestantedacaminhadaatéacasa.
Alguma pequena parte de mim sussurrou que eu podia sobreviver a
Amarantha; podia sobreviver a deixarTamlin; podia sobreviver à transiçãopara
aquele novo e estranho corpo...Mas àquele buraco vazio e frio emmeu peito...
Nãotinhacertezasepodiasobreviveraele.
Mesmo durante os anos em que estivera a uma semana ruim de morrer de
fome,aquelapartedemimestiveracheiadecor,deluz.Talvezmetornarfeéricaa
tivessedestruído.TalvezAmaranthaativessedestruído.
Outalvezeuativessedestruídoquandoafundeiaquelaadaganoscoraçõesde
doisfeéricosinocenteseosangueaqueceuminhasmãos.
—Dejeitoalgum—falei,nopequenojardimdotelhadodacasa,asmãosenfiadas
nosbolsosdosobretudoparaqueseaquecessemcontraoargeladodanoite.Havia
espaçosuficienteparaalgunsarbustosquadradoseumamesadeferroredondacom
duascadeiras,eeueRhysand.
Aonosso redor, a cidadebrilhava, asprópriasestrelaspareciammaisbaixas,
pulsandocomrubi,ametistaepérolas.Acima,aluacheiafaziacomqueomármore
deprédiosepontesreluzisse,comoseasconstruçõesfossemtodas iluminadasde
dentroparafora.Músicatocava,cordasetamboressuaves,e,decadaladodorio
Sidra, luzesdouradasoscilavam sobrepasseios àmargem,pontuadospor cafés e
lojas,todosabertosànoite,jálotados.
Vida...tãocheiodevida.Euquasesentiaaquelegostoestalandonalíngua.
Usando preto ressaltado por linha prateada, Rhysand cruzou os braços. E
farfalhouasimensasasasquandofalei:
—Não.
—ACasadoVentoéprotegidaparaquepessoasnãoatravessemparadentro
dela... Exatamente como esta casa. Mesmo contra Grão-Senhores. Não me
pergunte por que ou quem fez isso. Mas a opção é subir os dez mil degraus
andando,oqueeurealmentenãoquerofazer,Feyre,ouvoaraté lá.—Oluarse
refletiunagarranapontadecadaasa.Rhysmelançouumlentosorrisoqueeunão
viraatardetoda.—Prometoquenãoadeixocair.
Franzi a testa para o vestido azul como a meia-noite que tinha escolhido;
mesmo com as mangas compridas e o tecido pesado e exuberante, o decote
acentuadonãoajudavaemnadacontraofrio.Tinhapensadoemusarosuétercom
calçamaisgrossa,maspreferio luxoaoconforto. Já estavaarrependida,mesmo
comocasaco.Mas...seoCírculoÍntimodeRhysfossecomoacortedeTamlin...
eramelhorusarotrajemaisformal.Pisqueiparaotrechodenoiteentreotelhadoe
aresidêncianamontanha.
—Oventovailevarmeuvestidoembora.
OsorrisodeRhyssetornoufelino.
—Voudeescada—declarei,fervilhando,eoódioerabem-vindodepoisdas
últimashorasdeentorpecimentoconformeseguiparaaportanapontadotelhado.
Rhysestendeuumadasasasebloqueoumeucaminho.
Membranalisa;salpicadacomleveiridescência.Eumeafastei.
—Nualapassouumahorafazendomeucabelo.
Um exagero,mas ela trabalhara enquanto eume sentava, em silêncio vazio,
deixandoquetorcesseaspontasparaformarlevescachoseprendesseumaparteno
altodacabeçacomlindaspresilhasdeouro.Mastalvezficaremcasanaquelanoite,
sozinhaeemsilêncio...talvezfossemelhorqueenfrentaraquelaspessoas.Doque
interagir.
AasadeRhyssecurvouaomeuredor,melevandomaisparaperto,ondeeu
quaseconseguiasentirocalordocorpopoderoso.
—Prometoquenãovoudeixarqueoventodestruaseucabelo.—Rhysand
ergueu a mão, como se pudesse puxar um daqueles cachos soltos, e depois a
abaixou.
—Seprecisodecidir sequero trabalharcontraHyberncomvocê... comseu
CírculoÍntimo,nãopodemossimplesmente...nosencontraraqui?
—Jáestãotodoslá.E,alémdisso,aCasadoVentotemespaçobastantepara
queeunãotenhavontadedeatirartodosdamontanha.
Engoli em seco.De fato, curvando-seno topodamontanha central atrás de
nós,andares iluminadosbrilhavam,comoseamontanhativessesidocoroadaem
ouro.Eentremimeaquelacoroadeluzhaviaumalongaextensãodecéuaberto.
—Querdizer—falei,porquepodiaseraúnicaarmaemmeuarsenal—que
estacasaépequenademaiseaspersonalidadesdeles,grandesdemais,evocêestá
preocupadoqueeupercaacabeçadenovo.
AsasasdeRhysmeempurraramparamaisperto,comoumsussurrodecalor
emmeuombro.
—Eseestiver?
—Nãosouumabonecaquebrada.—Mesmoquenaquela tardea conversa
que tivemos,oqueeuvipelosolhosdeRhysand,dissesseocontrário.Mascedi
maisumpasso.
—Euseiquenãoé.Masissonãosignificaquevouatirá-laaoslobos.Sefalou
sério sobre querer trabalhar comigo para manter Hybern longe destas terras,
manteramuralha intacta,queroqueconheçameusamigosprimeiro.Decidapor
contaprópriaseéalgodequepodedarconta.Equeroqueesseencontroaconteça
deacordocommeustermos,nãoquandoelesdecidiremfazerumaemboscadanesta
casadenovo.
—Eunãosabiaquevocêsequertinhaamigos.—Sim,ódio,línguaafiada...A
sensaçãoeraboa.Melhorquenenhumasensação.
Umsorrisofrio.
—Vocênãoperguntou.
Rhysand estava tão perto agora que passou a mão por minha cintura e me
envolveucomasduasasas.Minhacolunatravou.Umagaiola...
Asasasrecuaram.
Maseleseguroumaisforte.Mepreparandoparaadecolagem.QueaMãeme
salvasse.
—Ésódizerumapalavraestanoite,evoltamosparacá,semperguntas.E,se
nãoaguentartrabalharcomigo,comeles,entãonãofareiperguntasquantoaisso
também.Podemosencontraralgumaoutraformadevocêmoraraqui,desesentir
realizada,independentementedoqueeuprecise.Aescolhaésua,Feyre.
PenseiemprovocarmaisRhys...eminsistirparaqueeuficasse.Masficarpor
quê?Paradormir?Paraevitarumencontroqueeumuitoprovavelmentedeveria
terantesdedecidiroquequeriafazercomigomesma?Eparavoar...
Verifiqueiasasas,obraçoemvoltademinhacintura.
—Porfavor,nãomedeixecair.Eporfavor,não...
Disparamosparaocéu,rápidoscomoumaestrelacadente.
Antes quemeu grito terminasse de ecoar, a cidade tinha se aberto sob nós.
Uma das mãos de Rhys deslizou sob meus joelhos enquanto a outra envolveu
minhascostaseascostelas,evoamosmaisemaisparacima,atéanoiteestrelada,
paraaescuridãolíquidaeparaoventomelódico.
As luzes da cidade se afastaram até queVelaris se tornasse um cobertor de
veludo ondulante coberto de joias, até que amúsica nãomais alcançasse nossas
orelhaspontiagudas.Oarestavafrio,masnenhumventoalémdeumalevebrisa
roçou meu rosto — mesmo conforme disparamos com precisão magnífica em
direçãoàCasadoVento.
OcorpodeRhyspareciafirmeequentecontraomeu;eraumaforçasólidada
natureza,criadaeaprimoradaparaaquilo.Mesmoocheiromelembravadovento:
chuvaesalealgocítricoqueeunãoconseguianomear.
Desviamosparaumacorrenteascendente,subindotãorápidoquefoiinstintivo
meagarraràtúnicapretadeRhysandquandomeuestômagoseapertou.Fizuma
caretaparaarisadabaixaquefezcócegasemminhaorelha.
—Esperavamaisgritosdevocê.Nãodevoestartentandocommuitoafinco.
—Não—sussurrei,meconcentrandonafaixadeluzesqueseaproximava,na
paredeeternadamontanha.
Comocéugirandoacimaeasluzesdisparandoabaixo,oladodecimaeode
baixo se tornaram espelhos; até que velejamos por um mar de estrelas. Algo
apertadoemmeupeitosealiviouinfimamente.
—Quandoeueramenino—disseRhysaomeuouvido.—Saíaescondidoda
Casa doVento, saltando daminha janela, e voava e voava a noite toda, apenas
dandocambalhotaspelacidade,pelorio,pelomar.Àsvezesaindafaçoisso.
—Seuspaisdeviamficarfelicíssimos.
—Meupaijamaissoube,eminhamãe...—Umapausa.—Elaeraillyriana.
Emalgumasnoites,quandomepegavanomomentoemqueeusaltavadajanela,
brigavacomigo...depois,saltavatambémparavoarmosjuntosatéoalvorecer.
—Elapareceencantadora—admiti.
— Ela era — confessou Rhysand. E essas duas palavras me disseram o
bastantesobreseupassadoparaqueeunãomeintrometesse.
Umamanobranosfezsubirmais,atéqueestivéssemosdiretamentealinhados
comuma varanda ampla, emoldurada pela luz de lanternas douradas.Na ponta,
embutidasnaprópriamontanhavermelha,duasportasdevidrojáestavamabertas,
revelandoumasalade jantargrande,mascasual,entalhadanapedraeacentuada
pelamadeiraluxuosa.Cadacadeiratinhasidofeita,reparei,paraacomodarasas.
A aterrissagem de Rhys foi tão suave quanto a decolagem, embora tivesse
mantido um braço sob meus ombros enquanto meus joelhos falhavam ao se
acomodarem.EumedesvencilheidotoquedeRhyseolheiparaacidadeatrásde
nós.
Tinhapassado tanto tempoagachadaemgalhosdeárvoresque jánãosentia
pela altura um terror primitivo haviamuito tempo.Mas a extensão da cidade...
pior,avastaextensãodeescuridãoalém—omar...Talvezeuaindafosseumatola
humana por me sentir daquele jeito, mas não tinha percebido o tamanho do
mundo. O tamanho de Prythian, se uma cidade grande como aquela podia
permanecerescondidadeAmarantha,dasoutrascortes.
Rhysand estava em silêncio aomeu lado.Mas, depois de ummomento, ele
disse:
—Fale.
Erguiumasobrancelha.
—Vocêrevelaoqueestánasuacabeça,umacoisasó.Edigoumatambém.
Sacudiacabeçaemevolteiparaacidade.
MasRhyscontinuou:
—EstoupensandoquepasseicinquentaanostrancafiadoSobaMontanha,e,
àsvezes,eumedeixavasonharcomestelugar,masjamaisesperavavê-lodenovo.
Estoupensandoquedesejavatersidoeuamatá-la.Estoupensandoque,seaguerra
vier,podedemorarmuitoatéquetenhaumanoitecomoesta.
Rhysdesviouoolharparamim,ansioso.
Nãomedeiotrabalhodeperguntardenovocomoelemantiveraaquelelugar
escondido, não quando provavelmente Rhys se recusaria a responder. Então,
perguntei:
—Achaqueaguerravirátãocedoassim?
—Essefoiumconvitesemperguntas.Eucontei...trêscoisas.Meconteuma.
Encareiomundoaberto,acidadeeomarrevoltoeanoitesecadeinverno.
Talvezfossealgumpingodecoragem,ouinconsequência,oueuestivessetão
acimadetudoqueninguém,excetoRhysouovento,podiaouvir,masconfessei:
—Estoupensandoquedevia seruma tola apaixonadaparapermitirqueme
fosse mostrado tão pouco da Corte Primaveril. Estou pensando que há muito
daqueleterritórioquejamaismefoipermitidoverousaberqueexistia,etalvezeu
tivessevividoemignorânciaparasempre,comoalgumbichodeestimação.Estou
pensando... — Engasguei com as palavras. Sacudi a cabeça, como se pudesse
afastaraquelasquerestavam.Masmesmoassimasfalei:—Estoupensandoqueera
umapessoasolitáriaesemesperanças,etalveztivessemeapaixonadopelaprimeira
coisaquememostrouumpingodebondadee segurança.Eestoupensandoque
talvezelesoubessedisso...talveznãoconscientemente,mastalvezelequisesseser
aquelapessoaparaalguém.Etalvezissodessecertoparaquemeueraantes.Talvez
nãodêcertoparaquem...oquesouagora.
Pronto.
As palavras, cheias de ódio, egoístas e ingratas.Apesar de tudo queTamlin
tinhafeito...
Opensamentodessenomeressooudentrodemim.Natardedodiaanterior,eu
estavalá.Não...não,nãopensarianisso.Aindanão.
Rhysandcomentou:
—Foramcinco.Parecequedevodoispensamentosavocê.—Eleolhoupara
trásdenós.—Depois.
Porqueosdoismachosaladosdemaiscedoestavamdepéàporta.
Sorrindo.
Rhyscaminhouporentreosdois feéricosparadosàportadasalade jantar,me
dandoaopçãodeficaroumejuntaraele.
Umapalavra,prometeraRhys,epodíamosirembora.
Osdois eramaltos, as asas estavam recolhidas contra os corpos poderosos e
musculosos, cobertos com um traje de couro costurado em placas que me
lembravamdeescamasgastasdealgumabestaviperina.Espadas longas idênticas
estavam,cadauma,presasaolongodaextensãodacolunadeambos—aslâminas
eramlindasemsuasimplicidade.Talveznãoprecisassetermedadootrabalhode
usarasroupasfinas,nofimdascontas.
O feérico ligeiramentemaiordosdois,o rostoocultopor sombras,deuuma
risadaefalou:
—Vamos,Feyre.Nãomordemos.Anãoserquepeça.
Surpresatomoucontademim,oquecolocoumeuspésemmovimento.
Rhyscolocouasmãosnosbolsos.
—Atéondesei,Cassian,ninguémjamaisaceitouessaoferta.
O segundo riu com escárnio, os rostos dos dois feéricos foram por fim
iluminadosquandoelesseviraramnadireçãoda luzdouradadasalade jantar,e
sinceramentemepergunteiporqueninguémtinhaaceitadoaoferta: seamãede
Rhysand também era illyriana, então aquele povo era abençoado com beleza
sobrenatural.
ComooGrão-Senhor,osmachos—guerreiros—tinhamcabelopreto,pele
bronzeada. Mas, diferentemente de Rhys, os olhos tinham cor de amêndoa e
estavamfixosemmimquandoeu,porfim,meaproximei...emdireçãoàCasado
Vento,queesperavaatrásdeles.
Eeraaliqueassemelhançasentreostrêsacabavam.
Cassian observou Rhys da cabeça aos pés, os cabelos pretos, na altura dos
ombros,oscilaramcomomovimento.
—Tãochiqueestanoite,irmão.EfezapobredaFeyresearrumartambém.
—Cassianpiscouumolhoparamim.Haviaalgoderústicoemsuasfeições;como
se fosse feito de vento e terra e chamas e toda aquela aparência civilizada não
passassedeuminconveniente.
Mas o segundo feérico, aquele que tinha uma beleza mais clássica entre os
dois...Mesmoaluzfugiadasfeiçõeselegantesdeseurosto.Eporumbommotivo.
Era lindo,masquase indecifrável.Ele seria aquele comquem tomarcuidado... a
faca na escuridão. De fato, uma faca de caça com cabo de obsidiana estava
embainhadanacoxadofeérico,eabainhaescuraestampavaumafileiraderunas
prateadasqueeujamaisvira.
Rhysfalou:
— Este é Azriel, meu mestre-espião. — Não era surpreendente. Algum
instintoprofundoemmimmefezverificarseosescudosmentaisestavamintactos.
Sóporgarantia.
—Bem-vinda.—FoitudoqueAzrieldisse,avozbaixa,quaseinexpressiva,
quando estendeu a mão coberta de cicatrizes brutais para mim. O formato era
normal, mas a pele... parecia que tinha sido torcida, esfregada e rasgada.
Queimaduras. Devem ter sido horríveis se nem mesmo o sangue imortal
conseguiracurá-las.
Asplacasdecourodotrajeleve,presasporumlaçoaoredordodedomédio,
cobriamamaioriadascicatrizes.Nãoparaescondê-las,foioquepercebiquandoa
mãodeAzrielseestendeunoarfriodanoiteentrenós.Não,eraparasegurarno
lugaragrandepedradecobaltointensoqueadornavaodorsodamanopladotraje.
Uma pedra igual estava no dorso damão esquerda; e pedras gêmeas vermelhas
adornavamasmanoplasdeCassian,eacoreracomoocentrodormentedeuma
fogueira.
AceiteiamãodeAzriel,eosdedosásperosapertaramaminha.Apeleeratão
friaquantoorostoparecia.
Mas a palavra queCassian usara ummomento antes chamouminha atenção
quandolhesolteiamãoetenteinãopareceransiosademaisparavoltarparaolado
deRhys.
—Vocêssãoirmãos?—Oillyrianoseramsemelhantes,masapenasdaforma
comopessoasquevêmdomesmolugarsão.
Rhysandexplicou:
—Irmãosnosentidodequetodososbastardossãoirmãosdealgumaforma.
Jamaispensaranissodessaforma.
—E...você?—pergunteiaCassian.
Cassiandeudeombros,recolhendomaisasasas.
—EucomandoosexércitosdeRhys.
Comose talposição fossealgoquesedispensassecomumgestodeombros.
E...exércitos.Rhystinhaexércitos.Eumemexi,desconfortável.Osolhoscorde
amêndoadeCassianacompanharamomovimento,abocasecontraiuparaolado,e
eusinceramenteacheiqueCassianestavaprestesamedarsuaopiniãoprofissional
a respeitodecomomemexerdaquela formapoderiamedesequilibrarcontraum
inimigo,quandoAzrielesclareceu:
—Cassian tambéméexcelenteem irritar todomundo.Principalmenteentre
nossosamigos.Então,comoamigadeRhysand...boasorte.
UmaamigadeRhysand;nãosalvadoradesuaterra,nãoassassina,nãocoisa-
humano-feérica.Talvezelesnãosoubessem...
MasCassiancutucouoirmãobastardo,ouoquefosse,paraforadocaminho,e
asasaspoderosasdeAzrielseabriramlevementequandoeleseequilibrou.
—ComodiabofezaquelaescadadeossosnatocadoVermedeMiddengard
quandoparecequeseusossosestãoprestesasepartiraqualquermomento?
Bem, isso esclarecia as coisas. E a questão de se ele havia estado Sob a
Montanha. Mas onde estava, então... Outro mistério. Talvez ali, com aquelas
pessoas.Sãoesalvo.
EncareiCassian, aomenos porque, se Rhysandme defendesse, isso poderia
muito bem me destruir um pouquinho mais. E talvez aquilo me fizesse tão má
quantoumavíbora,etalvezeugostassedeseruma,masfalei:
—Comodiabosvocê conseguiu sobreviver tanto tempo semqueninguémo
matasse?
Cassianinclinouacabeçaparatrásegargalhou,umsomintensoeexuberante
queecooupelaspedrasásperasdaCasa.AssobrancelhasdeAzrielseergueramem
aprovação,aopassoqueassombraspareceramenvolvê-locommaisforça.Como
seAzriel fosse a colmeia de escuridãodaqual as sombras voavame para a qual
retornavam.
Tenteinãoestremecer,eolheiparaRhys,esperandoumaexplicaçãosobreos
donssombriosdeseumestre-espião.
O rosto de Rhys estava inexpressivo, mas os olhos pareciam cautelosos.
Atentos. Quase indaguei para que diabos Rhys estava olhando, e, então, Mor
chegouàvarandacomoumabrisaedisse:
—SeCassianestáuivando,esperoquesignifiquequeFeyredisseaelepara
calarabocagorda.
Osdoisillyrianosseviraramnadireçãodafêmea,Cassianafastandolevemente
ospésnochão,emumaposiçãodelutaqueeuconheciamuitobem.
Era quase o suficiente parame distrair deAzriel conforme aquelas sombras
clareavam e o olhar dele percorria o corpo de Mor: um vestido vermelho
esvoaçante de chiffon, realçado por braceletes de ouro, e pentesmoldados como
folhasbanhadasemouro,queseguravamparatrásasondasdoscabelossoltos.
Um fio de sombra se enroscou ao redor da orelha de Azriel, e os olhos se
voltaramparaosmeus.Obrigueimeurostoaestamparpurainocência.
—Nãoseiporqueesqueçoquevocês sãoparentes—disseCassianaMor,
apontandocomoqueixoparaRhys,que revirouosolhos.—Vocêsdois e suas
roupas.
MorfezumalevereverênciaparaCassian.Defato,tenteinãorespiraraliviada
quando vi roupas requintadas. Pelo menos agora não parecia vestida de forma
exagerada.
—QueriaimpressionarFeyre.Vocêpodiapelomenostersedadootrabalho
depentearocabelo.
— Diferente de algumas pessoas — disse Cassian, provando corretas as
minhassuspeitasarespeitodaposedeluta.—Tenhocoisasmelhoresafazercom
meutempoquemesentardiantedoespelhodurantehoras.
— Sim— disse Mor, jogando os longos cabelos para trás do ombro. —
PorqueseexibirporVelaris...
— Temos companhia. — Foi o aviso em voz baixa de Azriel, as asas se
abrindo novamente quando ele empurrou os outros dois pelas portas abertas da
varandaatéasaladejantar.Eupodiajurarquegavinhasdeescuridãorodopiaram
atrásdelas.
MordeuumtapinhanoombrodeAzrielquandodesvioudaasaestendida.
—Relaxe,Az...nadadebrigahojeànoite.PrometemosaRhys.
As sombrasà espreita sumiramcompletamentequandoacabeçadeAzriel se
abaixouumpouco;oscabelosescuroscomoanoitedeslizavamsobreolindorosto,
comoseoprotegessemdaquelesorrisoimpiedosamentebelo.
Mornãodeuqualquerindicaçãodequereparou;depois,curvouosdedosem
minhadireção.
—Venha sentar comigo enquanto eles bebem.—Eu ainda tinhadignidade
suficienteparanãoolharparaRhysembuscadeconfirmaçãodequeera seguro.
Então,obedeciecaminheiaoladodeMorconformeosdoisillyrianosseviravam
parapercorrerospoucospassoscomseuGrão-Senhor.—Anãoserqueprefira
beber—sugeriuMor,quandoentramosnocalorda salade jantarcompostapor
pedrasvermelhas.—MasquerovocêparamimantesqueAmrenamonopolize...
As portas interiores da sala de jantar se abriram comumvento sussurrante,
revelandooscorredoressombreadosecarmesimdamontanhaalém.
Etalvezpartedemimpermanecessemortal,porque,emboraamulherdebaixa
estatura e delicada parecesse Grã-Feérica... conforme Rhys me avisou, todos os
meusinstintosberravamparaqueeufugisse.Paraquemeescondesse.
Elaeramuitoscentímetrosmaisbaixaqueeu;ocabelo,naalturadoqueixo,era
brilhantee liso,apele,bronzeadaemacia,eseurosto—bonito,masquasesem
graça — exibia uma expressão de tédio, ou talvez de leve irritação. Mas seus
olhos...
Osolhosprateadosdamulhereramdiferentesdetudoqueeujávira;eramum
lampejo para o interior da criatura que eu sabia, bem no fundo, não ser Grã-
Feérica.Ounãotinhanascidodaquelaforma.
OprateadonosolhosdeAmrenpareciarodopiar,comofumaçasobvidro.
Elatrajavacalçaeblusa,comoaquelasqueuseinooutropaláciodamontanha,
ambasem tonsdeestanhoenuvemde tempestade,epérolas—brancas, cinzae
pretas—adornavamasorelhas,osdedoseospulsosdeAmren.MesmooGrão-
Senhor aomeu lado parecia um fiapo de sombras em comparação ao poder que
emanavadela.
Morresmungou,desabandoemumacadeirapertodacabeceiradamesa,ese
serviudeumataçadevinho.Cassiansesentoudiantedela,agitandoosdedospara
pegar a garrafa de vinho. Mas Rhysand e Azriel simplesmente ficaram ali,
observando—talvezmonitorando—enquantoamulherseaproximoudemime
entãoparouaummetroemeio.
—Seugostoaindaéexcelente,Grão-Senhor.Obrigada.—Avozdamulher
erabaixa,porémmaisafiadaquequalquerlâminaqueeujátivesseencontrado.Os
dedospequenosefinosroçaramumbrochedelicadodeprataepérola,presoacima
doseiodireitodeAmren.
Então, foi para ela que Rhys comprou a joia. A joia que jamais, sob
circunstânciaalguma,eudeveriatentarroubar.
ObserveiRhyseAmren,comosepudessedecifrarqueoutrolaçohaviaentre
osdois,masRhysandgesticuloucomamãoefezumareverênciacomacabeça.
—Combinacomvocê,Amren.
—Tudocombinacomigo—disseela,eaquelesolhosterríveiseencantadores
encontraramosmeusnessemomento.Comorelâmpagodomado.
Amrenseaproximouumpasso, farejandodelicadamente, e, emboraeu fosse
mais alta 15 centímetros, jamais me senti mais franzina. Mas mantive o queixo
erguido.Nãosabiaporque,masmantive.
Amrenfalou:
—Então,háduasdenósagora.
Minhassobrancelhassefranziram.
OslábiosdeAmreneramcomoumapinceladadevermelho.
— Nós que nascemos outra coisa e nos vimos presas em corpos novos e
estranhos.
Decidiquenãoqueriamesmosaberoqueelaeraantes.
Amrenindicoucomoqueixoparaqueeumesentassenacadeiravaziaaolado
deMor,oscabelosdelaoscilaramcomonoitederretida.Amrenocupouoassento
diantedemim,Azrielsesentoudooutrolado,eRhyssesentoudiantedeAzriel,a
minhadireita.
Ninguémnacabeceiradamesa.
— Embora haja uma terceira — continuou Amren, agora olhando para
Rhysand. — Não creio que tenha tido notícias de Miryam há... séculos.
Interessante.
Cassianrevirouosolhos.
—Porfavor,apenaschegueaoponto,Amren.Estoucomfome.
Mor engasgou com o vinho. Amren desviou a atenção para o guerreiro à
direita.Azriel,dooutroladodela,monitoravaosdoiscommuito,muitocuidado.
—Ninguémestáaquecendosuacamaagora,Cassian?Devesertãodifícilser
umillyrianoenãoterqualquerpensamentonamente,excetoporaquelesarespeito
desuapartepreferida.
—Sabequesempreficofelizemmeenroscarnoslençóiscomvocê,Amren—
disse Cassian, totalmente imperturbado pelos olhos prateados, pelo poder que
emanavadecadaporodeAmren.—Seioquantogostadeumillyriano...
—Miryam— começou Rhysand, enquanto o sorriso de Amren se tornou
viperino—eDrakonestãobem,atéondesei.Eoque,exatamente,éinteressante?
AcabeçadeAmrenseinclinouparaoladoenquantoelameestudava.Tentei
nãoencolherocorpodiantedisso.
— Somente uma vez antes um humano foi Feito imortal. Interessante que
tenha acontecido novamente justo quando todas as antigas peças-chave
retornaram.MasMyriamrecebeuodomdavidalonga,nãodeumnovocorpo.E
você,menina...—Amrencheiroudenovo,enuncamesentitãoexposta.Surpresa
iluminouosolhosdeAmren.Rhysapenasassentiu.Oquequerqueaquiloquisesse
dizer.Eujáestavacansada.Cansadadeserobservadaeavaliada.—Seusangue,
suasveias,seusossosforamFeitos.Umaalmamortalemumcorpoimortal.
—Estoucomfome—declarouMor,mecutucandocomacoxa.Elaestalou
umdedo, epratos cheios atéo alto com frangoassado,vegetais epão surgiram.
Simples,mas...elegante.Nadaformal.Talvezoconjuntodesuétercomcalçanão
fosse tãodeslocadopara talrefeição.—AmreneRhyspodemconversaranoite
toda e nos entediar até chorarmos, então, não se incomode em esperar que eles
comam.—Morpegouogarfoeemitiuumestalocoma língua.—Perguntei a
Rhysseeu poderia levá-lapara jantar, sónósduas, e eledissequevocênão iria
querer.Mas,sinceramente,preferepassarotempocomessesdoischatosanciõesou
comigo?
—Paraalguémcomamesmaidadequeeu—disseRhysand—,vocêparece
esquecer...
—Todos sóquerem ficar de blá-blá-blá— interrompeuMor, lançandoum
olhar de aviso a Cassian, que, de fato, abrira a boca.—Não podemos comer-
comer-comeredepoisconversar?
Um equilíbrio interessante entre a aterrorizante imediata de Rhys e a
surpreendentementealegreterceiranahierarquia.SeapatentedeMoreramaisalta
queaqueladosdoisguerreirosnamesa,entãodeviahaveroutromotivopor trás
daquilo além daquele charme irreverente. Algum poder que permitisse que ela
entrassenabrigacomAmrenqueRhysmencionara...esaísseviva.
AzrielriubaixinhodeMor,maspegouogarfo.Euoacompanhei,esperando
atéqueeletivessemordidoantesfazeromesmo.Sóporgarantia...
Bom.Tãobom.Eovinho...
NemmesmotinhapercebidoqueMormeserviradeumataçaatéqueterminei
oprimeirogoleeelabrindoucomaprópriataçacontraaminha.
—Nãodeixequeessesenxeridosvelhosmandememvocê.
Cassiandisse:
—Sujo,conheçaomallavado.—Então,elefranziuatestaparaAmren,que
maltocaranoprato.—Sempreesqueçocomoissoébizarro.—Elepegouoprato
damulhersemcerimônias,despejandometadedoconteúdonodeleantesdepassar
orestanteparaAzriel.
AzrieldisseaAmrenquandopassouacomidaparaoprato:
—Eusempredigoaeleparaperguntarantesdefazerisso.
Amrenestalouosdedos,eopratovaziosumiudasmãoscobertasdecicatrizes
deAzriel.
—Senãoconseguiutreiná-lodepoisdetantosséculos,menino,nãoachoque
vaifazerqualquerprogressoagora.—Amrenarrumouostalheresnolugarvazio
diantedela.
—Vocênão...come?—pergunteiparaAmren.Asprimeiraspalavrasqueeu
diziadesdequemesentei.
OsdentesdeAmreneramestranhamentebrancos.
—Nãoessetipodecomida.
—QueoCaldeirãomeferva!—exclamouMor,tomandogoladasdovinho.
—Podemosnãofazerisso?
DecidiquenãoqueriasaberoqueAmrencomiatambém.
Rhysdeuumarisadinhadomeuoutrolado.
—Melembredefazermaisjantaresemfamília.
Jantares em família; não reuniões oficiais da corte. E essa noite... ou não
sabiamqueeuestavaaliparadecidirserealmentequeriatrabalharcomRhys,ou
não tinham vontade de fingir ser qualquer outra coisa além do que eram. Sem
dúvida tinham vestido o que quiseram— eu tinha a sensação crescente de que
poderia ter aparecido de camisola e eles não teriam se importado. Um grupo
singular, de fato. E contraHybern... quem seriam, o que poderiam fazer, como
aliadosouoponentes?
Diantedemim,umcasulodesilênciopareciapulsaraoredordeAzriel,mesmo
enquanto os demaismergulhavamna comida.De novo, olhei para aquela pedra
azul oval em suamanopla enquanto o feérico tomava um gole do vinho.Azriel
reparouoolhar, pormais rápidoque tenha sido,pois tive a sensaçãodeque ele
estava reparando e catalogando meus movimentos, minhas palavras e meus
fôlegos.Azrielergueuasmãoscomosdorsosvoltadosparamim,deformaqueas
duasjoiasestivessemtotalmenteàvista.
—SãochamadasdeSifões.Reúnemeconcentramnossopoderembatalha.
ApenasAzrieleCassianosusavam.
Rhysapoiouogarfoeesclareceuparamim.
—Opoderde illyrianosmais fortes tendea serdo tipo“incinerarprimeiro,
fazer perguntasdepois”.Possuempoucosdonsmágicos alémdisso... o poderde
matar.
—Odomdeumpovoviolentoebeligerante—acrescentouAmren.Azriel
assentiu, sombras se espiralavam no pescoço, nos pulsos. Cassian lançou para
Azrielumolharafiado,orostotenso,masAzrieloignorou.
Rhys continuou, embora eu soubesse que estava atento a cada olhar entre o
mestre-espiãoeocomandantedoexército:
—Os illyrianos cultivaram o poder a fim de que lhes desse vantagem em
batalha, sim.OsSifões filtramessepodercruepermitemqueCassianeAzrielo
transformememalgomais sutil e variado, em escudos e armas, flechas e lanças.
Imagineadiferençaentreatirarumbaldedetintanaparedeeusarumpincel.Os
Sifõespermitemqueamagiasejaágil,precisanocampodebatalha,aopassoqueo
estado natural dela se converte em algo muito mais confuso e indefinido, e
potencialmenteperigosoquandoselutaemespaçosconfinados.
Imaginei quanto disso qualquer um deles já precisara fazer. Se aquelas
cicatrizesnasmãosdeAzrieltinhamvindodaqueletipodeluta.
Cassianflexionouosdedos,admirandoaspedrasvermelhastransparentesque
adornavamodorsodesuasmãos.
—Nãofazmalqueelastambémsejamtãolindas.
—Illyrianos—murmurouAmren.
Cassian exibiu os dentes, com um interesse selvagem, e tomou um gole de
vinho.
Conhecê-los, tentar visualizar como eu poderia trabalhar com eles, confiar
neles, se esse conflito comHybern irrompesse... Procurei algo para perguntar e
faleiparaAzrielquandoaquelassombrassumiramdenovo:
—Comovocê...querodizer,comovocêeoSenhorCassian...
Cassian cuspiu vinho do outro lado damesa, o que fezMor dar um salto e
xingá-loenquantousavaumguardanapoparalimparovestido.
MasCassiangargalhava eAzriel exibiaum leve e cauteloso sorrisono rosto
enquantoMoragitavaamãoparaovestidoeasgotasdevinhoquesurgiramno
traje de luta, ou talvez de voo, percebi, de Cassian. Minhas bochechas ficaram
quentes.Algumprotocolodecortequeeu,ignorantemente,quebreie...
—Cassiannãoéumsenhor—explicouRhys.—Embora tenhocertezade
queagradeçaporvocêacharqueé.—RhysandolhouparaseuCírculoÍntimo.—
Enquantotratamosdoassunto,Azriel tambémnão.OuAmren.Mor,acrediteou
não,éapessoadesanguepuroecomumtítulonestasala.—Rhysnão?Eledeve
ter visto a pergunta emmeu rosto, porque falou:— Soumetade illyriano.Tão
bomquantoumbastardoparaosGrão-Feéricosdesanguepuro.
—Entãovocê...vocêstrêsnãosãoGrão-Feéricos?—pergunteiaRhyseaos
doishomens.
Cassianterminouderir.
— Illyrianos certamente não são Grão-Feéricos. E gratos por isso.— Ele
prendeu os cabelos pretos atrás de uma das orelhas: redonda, como as minhas
haviamsidoumdia.—Enãosomosfeéricosinferiores,emboraalgunstentemnos
chamarassim.Somosapenas...illyrianos.Consideradoscavalariaaéreadispensável
para a Corte Noturna na melhor das hipóteses, soldados brutamontes
descerebradosnapior.
—Oqueéamaiorpartedasvezes—esclareceuAzriel.Nãoouseiperguntar
seaquelassombrasfaziampartedeserillyrianotambém.
—NãovivocêSobaMontanha—comentei.Precisavasaber,semsombrade
dúvida, se tinham estado lá, se tinhamme visto, se isso impactara em como eu
interagiriaenquantotrabalhassecom...
Silêncio.Nenhumdeles,nemmesmoAmren,olhouparaRhysand.
FoiMorquemrespondeu:
—Porquenenhumdenósestavalá.
OrostodeRhyseraumamáscaragélida.
—Amaranthanãosabiaqueelesexistiam.E,quandoalguémtentavacontara
ela,costumavaacabarsemcabeçaparaconseguirfazê-lo.
Umtremorpercorreuminhacoluna.Nãoporele serumassassino frio,mas,
mas...
—Vocêrealmentemanteveestacidade, todasessaspessoas,escondidasdela
durantecinquentaanos?
Cassianolhavaatentamenteparaoprato,comosefosseexplodirparaforada
própriapele.
—Continuaremosmantendoestacidadeeestaspessoasescondidasdenossos
inimigospormuitosmais—revelouAmren.
Nãoeraumaresposta.
Rhysnãoesperavavê-losdenovoquandofoiarrastadoparaSobaMontanha.
Masosmanteveseguros,dealgumaforma.
Eaquiloasdeixavaarrasadas,aspessoasàmesa.Ficavamarrasadasporqueele
fizeraaquilo,comoquerquetivessefeito.AtémesmoAmren.
TalveznãoapenasdevidoaofatodequeRhyssuportaraAmaranthaenquanto
eles estavam ali. Talvez também fosse por causa daqueles deixados de fora da
cidade.Talvezescolherumacidade,umlugarparaprotegerfossemelhorquenada.
Talvez... talvez fosse reconfortante ter um lugar em Prythian que permanecia
intocado.Imaculado.
AvozdeMorestavaumpoucoroucaenquantoelaexplicavaparamim,comos
pentesdouradosbrilhandoàluz:
—Nãoháuma sópessoanesta cidadequenão saibadoque aconteceu fora
desteslimites.Oudocusto.
Nãoqueriaperguntarquepreçoforacobradoporaquilo.Adorqueenvolviao
pesadosilênciomedisseobastante.
Mas, se todos conseguiamviverapesardador, aindapodiamrir...Pigarreei,
estiqueiocorpoe faleiparaAzriel,oqual, comousemsombras,pareciaomais
seguroe,portanto,provavelmenteeraomenosseguro:
— Como se conheceram? — Uma pergunta inofensiva para avaliá-los,
descobrirquemeram.Nãoera?
AzrielapenassevirouparaCassian,queencaravaRhyscomumaexpressãode
culpaeamor, tão intensae sofridaquealgum instintomeu,aindanãodestruído,
quaseestendeuamãosobreamesaparasegurarasua.
MasCassian pareceu processar o que eu perguntei e o pedido silencioso do
amigode que ele contasse a história emvez deRhys, e entãoo espectro de um
sorrisosurgiuemseurosto.
—Nóstodosnosodiávamosnoinício.
Aomeu lado, a luz apagou dos olhos de Rhys.O que eu tinha perguntado
sobreAmarantha,quehorroresdosquaiseuofizeraselembrar...
Umaconfissãoporoutra;acheiquetivessefeitoaquilopelomeubem.Talvez
tivessecoisasqueprecisavaexprimir,quenãopodiaexprimirparaaquelaspessoas,
nãosemcausarmaisdoreculpaaelas.
Cassian continuou, atraindo minha atenção do silencioso Grão-Senhor à
direita:
—Nóssomosdesprezíveis,sabe.Azeeu.Osillyrianos...Amamosnossopovo
enossas tradições,mas eles vivememclãs e acampamentosnas profundezas das
montanhas doNorte e não gostamde forasteiros. PrincipalmenteGrão-Feéricos
quetentamlhesdizeroquefazer.Massãoigualmenteobcecadoscomlinhageme
têmosprópriospríncipeselordesentreeles.Az—disseCassian,apontandocom
odedãonadireçãodeAzriel,oSifãovermelhorefletindoaluz—eraobastardode
um dos senhores locais. E se acha que o filho bastardo de um senhor é odiado,
entãonãopodeimaginaroquantoéodiadoobastardodeumalavadeiradecampo
debatalhacomumguerreirodoqualelanãoconseguia,ounãoqueria,selembrar.
—OgestocasualdeombrosdeCassiannãocombinavacomobrilhomalicioso
nos olhos cor de avelã.—O pai de Az omandou a nosso campo para treinar
depoisqueeleesuaadorávelesposaperceberamqueAzrieleraumencantadorde
sombras.
Encantadordesombras.Sim;o título,oquequerquequisessedizer,parecia
combinar.
—Comoosdaemati—disseRhysamim—,encantadoresde sombras são
raros... cobiçados por cortes e territórios pelo mundo devido ao quanto são
furtivoseàpredisposiçãoaouviresentircoisasqueoutrosnãoconseguem.
Talvezaquelas sombrasestivessemrealmente sussurrandoparaele,então.O
rostofriodeAzrielnãomostravanada.
Cassiancontinuou:
—Osenhordoacampamentopraticamentesecagoutododeanimaçãonodia
emqueAzfoijogadoali.Maseu...depoisqueminhamãemedesmamoueaprendi
aandar,memandaramparaumacampamentodistante,emeenfiaramnalamapara
verseeusobreviveria.
— Teriam sido mais espertos se jogassem você de um penhasco —
argumentouMor,rindocomdeboche.
—Ah, com certeza— rebateuCassian, e aquele sorriso ficou afiado como
umalâmina.—Principalmenteporque,quandoeutive idadeeforçaosuficiente
para voltar para o acampamento no qual nasci, descobri que aqueles porcos se
aproveitaramdeminhamãeatéelamorrer.
De novo, silêncio; diferente dessa vez.A tensão e o ódio fervilhante de um
grupoquesuportaratanto,sobreviveraatanto...esentiamasdoresunsdosoutros
profundamente.
—Osillyrianos—interrompeuRhyseducadamente,eaquelaluzfinalmente
voltouparaseuolhar—sãoguerreirosincomparáveisetêmhistóriasetradições
ricas.Mastambémsãocruéisedeturpados,principalmentenoquedizrespeitoao
modocomotratamasfêmeas.
OsolhosdeAzrieltinhamficadoquasevaziosenquantoeleencaravaaparede
dejanelasatrásdemim.
—Sãobárbaros—disseAmren,enenhumdosmachosillyrianosprotestou.
Mor assentiu com empatia, mesmo ao reparar na postura de Azriel e morder o
lábio. — Eles aleijam as fêmeas para evitar que elas gerem mais guerreiros
perfeitos.
Rhysestremeceu.
—Minhamãe nasceu em uma classe baixa— contou ele.—E trabalhava
como costureira em um dos muitos acampamentos de guerra nas montanhas.
Quandoasfêmeasatingemamaturidadenosacampamentos,quandosangrampela
primeira vez, as asas são... cortadas. Apenas uma incisão no lugar certo,
abandonadaparaquesecuredemodoerrado,podealeijaralguémparasempre.E
minhamãe,elaerabondosae selvagemeamavavoar.Então, fez tudoquepôde
paraevitaramadurecer.Passoufome,colheuervasilegais,fezqualquercoisapara
impedirocursonaturaldocorpo.Elafez18anoseaindanãotinhasangrado,para
ohorrordospais.Masosanguefinalmentechegou,ebastavaapenasqueestivesse
nolugarerrado,nahoraerradaparaqueummachosentisseocheiroeavisasseao
senhordoacampamento.Elatentoufugir,disparouparaocéu.Maserajovem,eos
guerreiros,maisrápidoseaarrastaramdevolta.Estavamprestesaamarrá-laaos
mastrosnocentrodoacampamentoquandomeupaifezatravessiaatéláparauma
reuniãocomosenhordoacampamentoarespeitodeseprepararemparaaguerra.
Eleviuminhamãesedebatendoelutandocomoumfelinoselvageme...—Rhys
engoliuemseco.—Olaçodaparceriaentreosdoisseatou.Lançouumolharpara
minhamãeesoubeoqueelaera.Meupaienevoouosguardasqueaseguravam.
Semicerreiosolhos.
—Enevoou?
CassiansoltouumrisomaliciosoquandoRhysfezflutuaracimadamesauma
fatiadelimãoquedecoravaseufrango.Comumgestododedo,Rhystransformou
afatiaemnévoacomumcheirocítrico.
—Emmeio à chuvade sangue—continuouRhys, enquanto eu afastava a
imagemdoqueaquilofariacomumcorpo,doqueelepodiafazer—,minhamãe
olhouparameupai.E aparceria aconteceupara ela.Meupai a levoudevolta à
CorteNoturnanaquela noite e a desposou.Minhamãe amava seupovo e sentia
faltadeles,masjamaisseesqueceudoquetentaramfazercomela,doquefizeram
com as fêmeas entre eles. Ela tentou durante décadas fazer com que meu pai
banisseaquilo,masaGuerraestavaseaproximandoeelenãoqueriaarriscarisolar
osillyrianosquandoprecisavaqueelesliderassemseusexércitos.Equemorressem
porele.
—Umapreciosidade,seupai—resmungouMor.
—Pelomenoselegostavadevocê—replicouRhys,edepoisesclareceupara
mim.—Meupai eminhamãe, apesar de parceiros, não eram certos umpara o
outro.Meupaierafrioecalculistaepodiasercruel,comoforatreinadodesdeque
nasceu.Minhamãeeracarinhosaeselvagemeamadaportodososqueconhecia.
Elapassouaodiá-lodepoisdeumtempo,masjamaisdeixoudesesentirgratapor
meupaitersalvadosuasasas,porterpermitidoqueelavoassesempreeparaonde
quisesse. E, quando nasci, quando pude conjurar as asas illyrianas quando
quisesse...Elaqueriaqueeuconhecesseaculturadeseupovo.
—Queriamantervocêlongedasgarrasdeseupai—ponderouMor,girando
a taçadevinho, curvandoosombrosquandoAzriel finalmentepiscouepareceu
esquecerqualquerlembrançaqueotivessecongelado.
—Issotambém—acrescentouRhys,sarcástico.—Quandofiz8anos,minha
mãe me levou a um dos acampamentos de guerra illyrianos. Para ser treinado,
comotodososmachosillyrianosoeram.Ecomotodasasmãesillyrianas,elame
empurrouparaoringuedetreinonoprimeirodiaefoiemborasemolharparatrás.
—Elaoabandonou?—Eumepegueidizendo.
—Não, nunca—disseRhys, com uma ferocidade que eu só tinha ouvido
algumasvezes,umadelasnaquelatarde.—Ficarianoacampamentotambém.Mas
éconsideradovergonhosoumamãepaparicarofilhoquandoestevaitreinar.
Minhassobrancelhasseergueram,eCassianriu.
—Relutante,comoeledisse—contouoguerreiro.
—Euestavaapavorado—admitiuRhys,semumasombradevergonha.—
Estavaaprendendoausarmeuspoderes,masmagiaillyrianaeraapenasumafração
deles. E é rara entre eles, em geral possuída apenas pelos guerreiros mais
poderosos,desanguepuro.—Denovo,olheiparaosSifõesdormentesnasmãos
dosguerreiros.—TenteiusarumSifãoduranteaquelesanos—falouRhys.—E
destruí uma dezena antes de perceber que não era compatível, as pedras não
podiamsegurá-lo.Meupoderfluieécultivadodeoutrasformas.
—TãodifícilserumGrão-Senhortãopoderoso—implicouMor.
Rhysrevirouosolhos.
—Osenhordoacampamentomeproibiudeusarminhamagia.Pelobemde
todos vocês. Mas eu não tinha ideia de como lutar quando coloquei os pés no
ringuedetreinamentonaqueledia.Osoutrosgarotosdeminhafaixaetáriasabiam
disso também. Principalmente um deles, que me olhou e me espancou até me
deixarensanguentado.
—Vocêestavatãolimpo—comentouCassian,sacudindoacabeça.—Ofilho
mestiço bonitinho do Grão-Senhor, como estava chique nas novas roupas de
treinamento.
—Cassian—disseAzrielparamimcomaquelavozqueparecia como se a
escuridão ganhasse som—passou a conseguir roupas novas ao longo dos anos
como prêmio ao desafiar outros garotos em lutas. — Não havia orgulho nas
palavras, não pela brutalidade de seu povo. Eu não culpava o encantador de
sombras,noentanto.Tratarqualquerumdaquelaforma...
Cassian,noentanto,riu.Maseuagoraobservavaseusombroslargosefortes,a
luznosolhos.
JamaisconhecimaisninguémemPrythianquetivessepassadofome,sentido
desespero,nãocomoeu.
Cassian piscou, e o modo como ele me olhou mudou—mais observador,
mais...sincero.Eupodiajurarqueviaspalavrasnosolhosdele:Sabecomoé.Sabe
quemarcaissodeixa.
— Eu já tinha espancado todos os garotos de nossa idade duas vezes —
continuou Cassian. — Mas, quando Rhys chegou, com as roupas limpas, ele
cheirava... diferente. Como um verdadeiro oponente. Então, ataquei. Nós dois
recebemostrêschibatadascadapelabriga.
Encolhiocorpo.Bateremcrianças...
— Eles fazem pior, menina — interrompeu Amren. — Naqueles
acampamentos.Trêschibatadasépraticamenteumencorajamentoparaquelutem
de novo. Quando fazem algo realmente ruim, ossos são quebrados. Repetidas
vezes.Durantesemanas.
FaleiparaRhys:
—Suamãevoluntariamenteoenviouparaisso?—Carinhosaeselvagemde
fato.
— Minha mãe não queria que eu dependesse de meu poder — explicou
Rhysand.— Ela soube, desde o momento em que me concebeu, que eu seria
caçadoavidatoda.Ondeumaforçafalhava,elaqueriaqueoutrasmesalvassem.
“Minha educação era outra arma, e por isso ela foi comigo: parame ensinar
depois que as lições do dia terminassem.E, quandome levou para casa naquela
primeiranoite,paranossanovacasanolimitedoacampamento,mefezleràjanela.
FoiláqueviCassianarrastandoospéspelalama,nadireçãodaspoucastendasem
frangalhosforadoacampamento.PergunteiaelaparaondeCassianestavaindo,e
minha mãe me contou que bastardos não recebem nada: encontram o próprio
abrigo,aprópriacomida.Sesobrevivemesãoescolhidosparafazerpartedeuma
tropa de guerra, serão de baixa patente para sempre,mas receberão as próprias
tendaseossuprimentos.Mas,atéentão,eleficarianofrio.”
—Aquelasmontanhas—acrescentouAzriel,comorostodurocomogelo—
oferecemalgumasdaspiorescondiçõesquesepodeimaginar.
Eutinhapassadobastantetempoembosquescongeladosparaentender.
—Depois de minhas lições— continuou Rhys—, minha mãe limpou os
machucadosdeixadospelaschibatadas,e,enquantofaziaisso,percebipelaprimeira
vez o que era estar aquecido e a salvo e ser cuidado. E nãome senti bem com
aquilo.
—Aparentementenão—disseCassian.—Porque,nacaladadanoite,esse
imbecilmeacordounatendaaospedaçosemedisseparaficardebocafechadaeo
acompanhar.Etalvezofriotivessemedeixadoburro,maseufui.Amãedeleficou
lívida.Masnuncavoumeesquecerdoolharemseulindorostoquandomeviue
disse“Temumabanheiracomáguaquentecorrente.Entreoupodevoltarparao
frio”. Como eu era um cara esperto, obedeci. Quando saí, ela me deu roupas
limpas e me mandou para a cama. Passei a vida dormindo no chão, e, quando
hesitei,eladissequeentendiaporquesentiraomesmoumdia,equeeumesentiria
como se estivesse sendo engolido, mas a cama era minha por quanto tempo eu
quisesse.
—Evocêsficaramamigosdepoisdisso?
—Não...PeloCaldeirão,não—disseRhysand.—Nósnosodiávamos,esó
noscomportávamosporqueseumdenóssemetesseemconfusãoouprovocasseo
outro, nenhum de nós comeria naquela noite. Minha mãe começou a ensinar
Cassian, mas somente quando Azriel chegou, um ano depois, decidimos ser
aliados.
OsorrisodeCassianaumentouquandoeleestendeuobraçoalémdeAmren
para dar um tapinha no ombro do amigo. Azriel suspirou... o longo som do
sofrimento.Aexpressãomaiscalorosaqueeuovifazer.
— Um novo bastardo no acampamento e um encantador de sombras
destreinadopararecrutar.Semfalarqueelenempodiavoargraçasa...
Morinterrompeu,preguiçosamente:
—Volteparaoobjetivo,Cassian.
De fato, qualquer sensibilidade tinha sumido do rosto de Azriel. Mas calei
minhacuriosidadequandoCassian,denovo,deudeombros,semsequersedaro
trabalhoderepararnosilêncioquepareciavazardoencantadordesombras.JáMor
reparou,mesmoqueAzrielnão tivesse sedadoo trabalhodereconheceroolhar
preocupado, a mão para a qual Mor ficava olhando, como se fosse tocar, mas
desistisse.
Cassiancontinuou:
—Rhyseeutornamosavidadeleuminferno,encantadordesombrasounão.
MasamãedeRhysconheciaamãedeAzeoacolheu.Conformeenvelhecemos,e
os outros machos ao nosso redor também, percebemos que todos nos odiavam
tantoquetínhamosmaischancesdesobreviverseficássemosjuntos.
—Temalgumdom?—perguntei aCassian.—Como... eles?— Indiquei
comoqueixoAzrieleRhys.
—Um temperamento volátil não conta— respondeuMor, quandoCassian
abriuaboca.
Elelhelançouaquelesorrisoquepercebiprovavelmentesignificarconfusãoa
caminho,masdisseparamim:
—Não,não tenho...nãoalémdeumapilhaenormedopoder fatal.Souum
ninguémbastardo,dacabeçaaospés.—Rhyschegouparaafrentecomosefosse
protestar,masCassianprosseguiu:—Mesmoassim,osoutrosmachossabiamque
éramosdiferentes.Enãoporqueéramosdoisbastardoseummestiço.Éramosmais
fortes, mais rápidos... como se o Caldeirão soubesse que nos destacávamos e
quisesse que nos encontrássemos. A mãe de Rhys percebeu também.
Principalmentequandochegamosàmaturidadeesóqueríamosfoderelutar.
—Machossãocriaturashorríveis,nãosão?—perguntouAmren.
—Repulsivos—respondeuMor,eemitiuumestalocomalíngua.
Algumapequenapartesobreviventedemeucoraçãoqueria...rirdaquilo.
Cassiandeudeombros.
—Opoder deRhys crescia a cada dia, e todos, atémesmoos senhores do
acampamento, sabiamque ele poderia enevoar todomundo se tivesse vontade.E
nósdois...nãoestávamosmuitoatrás.—CassianbateunoSifãocarmesimcomum
dedo.—Umbastardoillyrianojamaistinharecebidoumdestes.Nunca.Quando
Az e eu os recebemos, apesar da relutância, todos os guerreiros em todos os
acampamentos naquelas montanhas ficaram de olho em nós. Apenas imbecis de
sanguepurorecebemSifões,aquelesnascidosecriadosparaopoderfatal.Ofato
de termos Sifões ainda os deixa acordados à noite, maquinando como diabo os
conseguimos.
—Então,veioaGuerra.—Azrielassumiuanarrativa.Osimplesmodocomo
disseaspalavrasmefezsentarereta.Prestaratenção.—EopaideRhysvisitou
nossoacampamentoparavercomoofilhotinhasesaídodepoisdevinteanos.
—Meupai—disseRhys,girandouma...duasvezesa taçadevinho—viu
que o filho não apenas começara a rivalizar com ele em poder,mas se aliara a,
talvez, os dois illyrianosmaismortais dahistória.Ele colocouna cabeçaque, se
recebêssemosuma legiãonaGuerra, talvez acabássemosnosvoltando contra ele
quandoretornássemos.
Cassianriucomdeboche.
— Então, o traste nos separou. Deu a Rhys o comando de uma legião de
illyrianosqueoodiavaporsermestiço,emejogouemumalegiãodiferentepara
serumsoldadodeinfantariacomum,mesmoquandomeupodereramaiorqueode
qualquerumdoslíderesdeguerra.ComAzeleficou,comoencantadordesombras
pessoal,maisparaespionarefazerotrabalhosujo.Sónosvíamosnoscamposde
batalhaduranteosseteanosquedurouaGuerra.Elesmandavamlistasdemortes
entreosillyrianos,eeuliatodas,imaginandoseveriaosnomesdelesali.Masentão
Rhysfoicapturado...
—Essaéumahistóriaparaoutrahora—interrompeuRhys,emtomafiadoo
bastante para que Cassian erguesse as sobrancelhas, mas ele assentiu. Os olhos
violetadeRhysencontraramosmeus,emepergunteiseeraluzestelardeverdade
que brilhava tão intensamente ali enquanto ele falava:—Depois queme tornei
Grão-Senhor,nomeeiessesquatroparameuCírculoÍntimo,edisseaorestanteda
cortedemeupaique,setivessemumproblemacommeusamigos,poderiampartir.
Todos se foram. No fim das contas, o fato de ter umGrão-Senhormestiço foi
pioradoquandoelenomeouduasfêmeasedoisbastardosillyrianos.
Tãoruinsquantohumanos,dealgumasformas.
—Oque...oqueaconteceucomeles,então?
Rhysdeudeombros,eaquelasgrandesasassemoveramjunto.
—AnobrezadaCorteNoturnasedivideemtrêscategorias:aquelesqueme
odiavamtantoque,quandoAmaranthaassumiu,sejuntaramàcortedelaedepois
acabarammortos;aquelesquemeodiavamosuficienteparatentarmederrubare
enfrentaram as consequências disso; e aqueles que me odiavam, mas não o
suficiente para ser burros, e desde então toleram o reinado de um mestiço,
principalmentequandoeleraramenteinterfereemsuasvidasmiseráveis.
—Sãoeles...sãoelesosquevivemabaixodasmontanhas?
Umacenopositivo.
—NaCidadeEscavada,sim.Euadeiaeles,pornãoseremtolos.Estãofelizes
lá, quase não saem, se governam e são tão cruéis quanto querem, por toda a
eternidade.
EssaeraacortequeRhysdeviatermostradoaAmaranthaquandoelachegou
—eacrueldadedeviatê-laagradadotantoqueAmaranthamoldouaprópriacorte
àquelaimagem.
—ACortedosPesadelos—disseMor,inspirandoentredentes.
—Eoqueéessacorte?—perguntei,gesticulandoparaogrupo.Apergunta
maisimportante.
Foi Cassian, os olhos límpidos e tão brilhantes quanto seu Sifão, que
respondeu.
—ACortedosSonhos.
ACortedosSonhos;ossonhosdeumGrão-Senhormestiço,doisguerreiros
bastardose...asduasfêmeas.
—Evocês?—pergunteiaMoreAmren.
Amrenapenasdisse:
—Rhysmeofereceuocargode imediata.Ninguémjamais tinhamepedido
isso,entãoaceitei,paravercomopoderiaser.Viquegostei.
Mor recostou na cadeira,Azriel agora observava cadamovimento dela com
umaconcentraçãosutileconstante.
—EueraumasonhadoranascidanaCortedosPesadelos—disseMor.Ela
enroscouumcachonodedo,emeperguntei seahistóriadeMor seriaapiorde
todasquandoeladisse,simplesmente:—Então,saí.
—Qualésuahistória,então?—perguntouCassianparamim,comumgesto
doqueixo.
PresumiqueRhysandtivessecontadotudoaeles.Rhysapenasdeudeombros.
Então,meestiquei.
—Nasciemumafamíliademercadoresabastados,comduasirmãsmaisvelhas
epaisque só se importavamcomodinheiro e comaposição social.Minhamãe
morreu quando eu tinha 8 anos;meu pai perdeu a fortuna três anos depois. Ele
vendeu tudo para pagar as dívidas, nos mudamos para um chalé e ele não se
incomodou em encontrar trabalho enquanto nos deixou morrer de fome
lentamenteduranteanos.Eutinha14anosquandoorestantedodinheiroacabou,
assim como a comida. Meu pai não trabalhava, não podia, porque os credores
tinhamvindo e destruído sua pernadiante denós.Então, fui até a floresta eme
ensineiacaçar.Enosmantivevivos,mesmoquepertodamortepor inaniçãoàs
vezes,durantecincoanos.Atéque...tudoaconteceu.
Eles ficaramcaladosdenovo,oolhardeAzrielagoraparecia reflexivo.Não
tinha contado a própria história. Será que tinha sido mencionada?Ou será que
jamais discutiam aquelas queimaduras em suas mãos? E o que as sombras
sussurravamparaAzriel,seéquesequerfalavamumalíngua?
MasCassianfalou:
—Vocêseensinouacaçar.Ealutar?—Sacudiacabeça.Cassianapoiouos
braçosnamesa.—Quesorte,acaboudeencontrarumprofessor.
Abriabocaparaprotestar,mas...amãedeRhysandderaaeleumarsenalpara
usarasarmasnocasodeoutrasfracassarem.Oqueeutinhaemminhavantagem
alémdeserboacomoarcoetoscamenteteimosa?Eseeutivesseessenovopoder
—essesoutrospoderes...
Não seria fraca de novo. Não dependeria de ninguém. Jamais precisaria
suportarotoquedoAttorquandoelemearrastasseporqueeueraindefesademais
parasaberondeecomogolpear.Nuncamais.
MasoqueIantheeTamlintinhamdito...
—Nãoachaquemandaumamensagemruimseaspessoasmeviremaprender
alutar...amanejararmas?
Assimqueaspalavrassaíram,percebicomoeramestúpidas.Aestupidezdo...
doquetinhamenfiadoemminhacabeçaduranteaquelesúltimosmeses.
Silêncio.Então,Mordisse,comumsuavevenenoquemefezentenderquea
terceiranahierarquiadoGrão-Senhor receberaum treinamentopróprionaquela
CortedePesadelos:
—Vou dizer duas coisas. Como alguém que talvez já tenha estado em seu
lugar.—Denovo,aquelelaçocompartilhadodeódio,dedor,latejouentretodos,
excetoporAmren,cujoolharemminhadireçãopingavadesprezo.—Primeira—
disseMor—,vocêdeixouaCortePrimaveril.—Tenteinãodeixarqueopeso
totaldaquelaspalavrasfosseabsorvido.—Seissonãomandaumamensagem,seja
boaouruim,entãoseu treinamento tambémnãovai.Segunda—continuouela,
colocandoapalmadamãoabertasobreamesa—,certavezviviemumlugaronde
a opinião de outros importava. Issome sufocava, quaseme destruiu. Então, vai
entender,Feyre,quandodigoqueseicomosesente,eseioquetentaramfazercom
você,eque,comcoragemosuficiente,podemandarareputaçãoparaoinferno.—
AvozdeMorsesuavizou,eatensãoentretodoselessedissipoucomisso.—Faça
oquegosta,aquilodequevocêprecisa.
Mor não me dizia o que vestir ou não vestir. Não permitiria que eu saísse
enquanto falava por mim. Ela não... não faria nenhuma das coisas que eu tão
voluntáriaedesesperadamentepermitiaqueIanthefizesse.
Jamaistiveraumaamigamulher.Ianthe...nãoeraumaamiga.Nãodaforma
que importava, percebi. E Nestha e Elain, naquelas poucas semanas em que eu
estava em casa antes de Amarantha, tinham começado a preencher esse papel,
mas...masolhandoparaMor,eunãopodiaexplicar,nãopodiaentender,mas...eu
sentia.Comosepudesserealmentejantarcomela.Conversarcomela.
Nãoqueeutivessemuitoaofereceremtroca.
MasoqueMortinhadito...oquetodostinhamdito...Sim,forasábiodeRhys
melevaratéali.Deixarqueeudecidissesepodialidarcomeles,comaimplicância
eaintensidadeeopoder.Seeuqueriaserpartedeumgrupoqueprovavelmente
me motivaria, me sobrecarregaria e, talvez, me apavoraria, mas... Se estavam
dispostos a enfrentarHybern,depoisde já terem lutadocomo reinoquinhentos
anosantes...
EncareiCassian.Eemboraseusolhosestivesseminquietos,nãohavianadade
diversãoali.
—Voupensararespeito.
Pelolaçoemminhamão,podiajurarquesentiumbrilhodesurpresasatisfeita.
Verifiqueiosescudosmentais...masestavamintactos.EorostocalmodeRhysand
nãodavaqualquersinaldaorigemdasensação.
Então,falei,comclarezaeemtomfirmeparaRhys:
—Aceitosuaoferta...detrabalharcomvocê.Trabalharpelaestadia.Eajudar
comHyberncomopuder.
—Que bom.—Foi a simples resposta deRhys.Mesmo quando os outros
ergueramassobrancelhas.Sim,elesobviamentenãosabiamqueaquiloeraumtipo
deentrevista.—Porquecomeçamosamanhã.
—Onde?Eoquê?—disparei.
Rhys entrelaçou os dedos e os apoiou na mesa, e percebi que havia outro
objetivo para aquele jantar, além de minha decisão, quando ele anunciou para
todosnós:
—PorqueoreideHybernestárealmenteprestesainiciarumaguerra,equer
ressuscitarJurianparafazerisso.
Jurian—oantigoguerreirocujaalmaAmaranthaaprisionaradentrodaquele
anelhorrívelcomopuniçãoporele terassassinadoa irmãda feérica.Oanelque
continhaoolhodeJurian...
—Mentira—rebateuCassian.—Nãohácomofazerisso.
Amrenhaviaficadoimóvel,eeraelaquemAzrielobservava,acompanhava.
Amarantha foi apenas o início, dissera Rhys a mim certa vez. Será que sabia
mesmo então? Será que aquelesmeses Sob aMontanha tinham sido apenas um
prelúdioparaqualquerque fosseo infernoprestes a ser liberado?Ressuscitaros
mortos.Quetipodepoderprofano...
— Por que o rei iria querer ressuscitar Jurian? Ele era tão desprezível. Só
gostavadefalardesimesmo—resmungouMor.
A idade daquelas pessoas me atingiu como um tijolo, apesar de tudo que
tinhammecontadominutosantes.AGuerra...todostinham...todostinhamlutado
naGuerraquinhentosanosantes.
—Éoquequerodescobrir—disseRhysand.—Ecomooreiplanejafazer
isso.
Amrenporfimopinou:
—EledeveterouvidofalardecomoFeyrefoiFeita.Sabequeépossívelque
osmortossejamrefeitos.
Eumemovinacadeira.Esperavaexércitoscruéis,derramamentode sangue.
Masisso...
—TodososseteGrão-Senhoresprecisariamconcordarcomisso—replicou
Mor.—Nãoháamenorchancedeacontecer.Elevaitomaroutrocaminho.—Os
olhossesemicerraramatéviraremfendasquandoelaencarouRhys.—Todasas
mortes,osmassacresemtemplos.Achaqueestáligadoaisso?
— Sei que está ligado a isso.Não queria contar até ter certeza.MasAzriel
confirmou que eles saquearam o memorial em Sangravah há três dias. Estão
procurando por algo, ou encontraram algo.—Azriel assentiu em confirmação,
mesmo quando Mor lançou um olhar surpreso em sua direção. Azriel deu de
ombrosemresposta,comosepedissedesculpas.
Respirei.
—É...éporissoqueoaneleoossododedosumiramdepoisqueAmarantha
morreu.Para isso.Masquem...—Minhabocasecou.—Eles jamaispegaramo
Attor,pegaram?
Rhysfalou,baixodemais:
—Não.Não, não pegaram.—A comida emmeu estômago pareceu virar
chumbo.EledisseaAmren:—Comosepegaumolhoeoossodeumdedoese
transformaemumhomemdenovo?Ecomoimpedimosisso?
Amrenfranziuatestaparaovinhointocado.
—Jásabecomoencontrararesposta.VáatéaPrisão.FalecomoEntalhador
deOssos.
—Merda!—exclamaramMoreCassian.
—Talvezvocêfossemaiseficiente,Amren—disseRhys,calmo.
FiqueigratapelamesaquenosseparavaquandoAmrensibilou:
—NãovoucolocarospésnaPrisão,Rhysand,evocêsabedisso.Então,vá
sozinho,oumandeumdessescãesemseulugar.
Cassian sorriu,mostrouosdentes brancos e retos—perfeitos paramorder.
Amrenmordeuoarcomosdelaemresposta.
Azrielapenassacudiuacabeça.
—Euvou.AssentinelasdaPrisãomeconhecem,sabemoquesou.
Imagineiseoencantadordesombrascostumavaseroprimeiroasecolocarem
perigo.OsdedosdeMorficaramimóveisnabordadataçadevinho,osolhosse
semicerraramparaAmren.Asjoias,ovestidovermelho—tudotalvezfosseuma
formadeamenizarqualquerquefosseopoderemsuasveias...
—SealguémvaiàPrisão—decidiuRhys,antesqueMorabrisseaboca—
soueu.EFeyre.
—Oquê?—indagouMor,asmãosagoraespalmadasnamesa.
—ElenãofalarácomRhys—disseAmrenaosdemais—oucomAzriel.Ou
comqualquerumdenós.Nãotemosnadaaoferecer.Masumaimortalcomuma
alma mortal... — Amren encarou meu peito como se pudesse ver o coração
batendo abaixo... E me perguntei mais uma vez o que ela comeria. — O
EntalhadordeOssospodeestardisposto,defato,afalarcomela.
Elesmeencararam.Comoseesperassemqueeuimplorasseparanãoir,queeu
meencolhesseemeacovardasse.Aquelaeraaentrevistarápidaebrutalparaverse
queriamtrabalharcomigo,supus.
MasoEntalhadordeOssos,osnaga,oAttor,oSuriel,oBogge,oVermede
Middengard...Talvez tivessemdestruídoqualquerque fosseapartedemimque
realmentesentiamedo.Outalvezomedofosseapenasalgoqueeuagorasentianos
sonhos.
—Aescolhaésua,Feyre—disseRhys,casualmente.
Fugiremedeprimirouencararalgumhorrordesconhecido;aescolhaerafácil.
—Oquãoruimpodeser?—Foiminharesposta.
—Ruim—disseCassian.Nenhumdelesseincomodouemcontradizê-lo.
Jurian.
O nome ecoava dentro de mim, mesmo depois de terminarmos o jantar,
mesmodepoisdeMoreCassianeAzrieleAmrenpararemdedebateregrunhira
respeitodequemfariaoqueeestariaondeenquantoRhyseeufôssemosàPrisão
—oquequerqueissofosse—nodiaseguinte.
Rhysmelevouvoandodevoltaporcimadacidade,mergulhandonasluzese
na escuridão. Rapidamente descobri que gostava muito mais de subir, e não
conseguiobservarpormuitotemposemsentirojantarnagarganta.Nãopormedo;
apenasalgumareaçãodemeucorpo.
Voamosemsilêncio,ofarfalhardoventodoinvernoeraoúnicosom,apesar
do casulo de calor de Rhys impedir que me congelasse por completo. Apenas
quandoamúsicadasruasnosrecebeuolheiparaorostodeRhys,paraasfeições
indecifráveisconformeseconcentravaemvoar.
—Hojeànoite...sentivocêdenovo.Pelaligação.Passeiporseusescudos?
—Não—respondeu ele, verificando as ruasdeparalelepípedos abaixo.—
Essa ligação é... uma coisa viva.Um canal aberto entre nós,moldado pormeus
poderes,moldado...peloquevocêprecisavaquandofizemosoacordo.
—Euprecisavanãoestarmortaquandoconcordei.
—Vocêprecisavanãoestarsozinha.
Nossosolhos se encontraram.Estava escurodemais para ler oquequer que
estivessenoolhardeRhys.Fuieuquemdesviouorostoprimeiro.
—Aindaestouaprendendocomoeporqueàsvezesconseguimossentircoisas
queooutronãoquer saber—admitiu ele.—Entãonão tenhouma explicação
paraoquesentiuestanoite.
Vocêprecisavanãoestarsozinha...
Mas...equantoaele?Durantecinquentaanosficouseparadodosamigos,da
família...
—DeixouqueAmaranthaeomundointeiroachassemquevocêgovernavae
se divertia em uma Corte de Pesadelos. Tudo fachada... para manter o mais
importanteasalvo—argumentei.
AsluzesdacidadeemolduravamorostodeRhys.
—Amomeu povo eminha família.Não pense que eu nãome tornaria um
monstroparaprotegê-los.
—JáfezissoSobaMontanha.—Aspalavrassaíramantesqueeuconseguisse
impedir.
OventosoprouoscabelosdeRhys.
—Esuspeitoqueprecisefazerdenovoembreve.
—Qual foiocusto?—Ouseiperguntar.—Demantereste lugarsecretoe
livre?
Rhysanddisparouparabaixoemlinhareta,batendoasasasparasuavizarnosso
movimentoconformeaterrissávamosnotelhadodacasa.Fizmençãodemeafastar,
maseleseguroumeuqueixo.
—Vocêjáconheceocusto.
AvadiadeAmarantha.
Rhysassentiu,eachoquetalvezeutenhaditoaspalavrascruéisemvozalta.
—Quandoelameenganouetiroumeuspoderes,deixandoapenasmigalhas,
aindamerestoumaisdoqueosoutrostinham.Edecidiusaropoderparaentrarna
mente de todos os cidadãos da Corte Noturna que Amarantha capturara, e de
qualquerumquepudessesaberaverdade.Fizumaredeentretodoseles,controlei
ativamenteasmentesatodosegundodetodososdias,todasasdécadas,paraque
se esquecessem de Velaris, esquecessem deMor e de Amren e de Cassian e de
Azriel.Amaranthaqueriasaberquemerapróximoamim,quemmataretorturar.
Masminhaverdadeiracorteestavaaqui,governandoestacidadeeasoutras.Eusei
o restante demeus poderes para proteger todos de serem vistos ou ouvidos. Só
tinhaobastanteparaumacidade,umlugar.Escolhiaquelequejáestavaescondido
dahistória.Eu escolhi e agora preciso viver com as consequências de saber que
restavammaisláforaquesofreram.Masparaosdaqui...qualquerumquevoasse
ouviajassepertodeVelarisnãoverianadaalémderochasestéreis,e,setentasse
andarpelo território, subitamentedecidiriampelo contrário.Viagenspelomar e
comércioestavamproibidos,marinheirosse tornaramfazendeiros, trabalhavama
terraemtornodeVelaris.Eporquemeuspoderesseconcentravamemprotegera
todos,Feyre,eutinhamuitopoucoparausarcontraAmarantha.Então,decidique
paraevitarquefizesseperguntassobreaspessoasqueimportavam,euseriaavadia
dela.
Rhysandfizeratudoaquilo,fizeracoisastãoterríveis...fizeratudopelopróprio
povo,pelos amigos.E aúnicapartede sique escondera e conseguira evitarque
Amarantha maculasse, que destruísse, mesmo que significassem cinquenta anos
presoemumagaioladepedra...
Aquelasasasagoraseestendiam.QuantossabiamdasasasforadeVelarisou
dos acampamentos de guerra illyrianos? Ou será que Rhys apagara qualquer
lembrançadelasemPrythianmuitoantesdeAmarantha?
Rhys soltou meu queixo. Mas, quando abaixou a mão, segurei seu pulso,
sentindoaforçasólida.
—Éumapena— falei, as palavras quase engolidas pelo somdamúsica da
cidade.—QueoutrosemPrythiannãosaibam.Umapenaquevocêtenhadeixado
quepensassemopior.
Rhysand deu um passo para trás, e as asas bateram no ar como poderosos
tambores.
—Contantoqueaspessoasqueinteressamsaibamaverdade,nãomeimporto
comoresto.Durmaumpouco.
Então,eledisparouparaocéuefoiengolidopelaescuridãoentreasestrelas.
Caíemumsonotãopesadoquemeussonhoseramcomoumacorrentezaqueme
arrastavamaisemaisparabaixo,atéqueeunãoconseguisseescapar.
Estavadeitadanuaedebarrigaparacimaemumpisodemármorevermelho
familiarenquantoAmaranthadeslizavaumafacaporminhascostelasexpostas,eo
açoarranhavalevementeminhapele.
— Humana mentirosa e traidora — ronronava Amarantha. — Com seu
coraçãoimundoementiroso.
Afacaroçavacomoumacaríciafria.Eulutavaparamelevantar,masocorpo
nãofuncionava.
Amaranthadeuumbeijonadepressãodemeupescoço.
— É ummonstro tanto quanto eu.— Ela inclinou a faca sobre meu seio,
mirandonadireçãodemeumamilofirme,comosepudesseverocoraçãobatendo
abaixo.Comeceiachorar.—Nãodesperdicesuaslágrimas.
Alguémmuitolongerugiameunome;imploravapormim.
— Vou transformar a eternidade em um inferno para você — prometeu
Amarantha, a ponta da adagaperfurando a pele sensível sobmeu seio, os lábios
pairandoummilímetroacimadosmeusquandoelacravou...
Mãos...haviamãosemmeusombros,mesacudindo,meespremendo.Eumedebati
contraaquelasmãos,gritando,gritando...
—FEYRE.
Avozeraaomesmotempoanoiteeoalvorecer,easestrelaseaterra,ecada
centímetrodemeucorposeacalmoucomsuaautoridadeprimitiva.
—Abraosolhos—ordenouavoz.
Abri.
Minhagargantaestavaseca,minhaboca,cheiadecinzas,meurosto,ensopado
egrudento,eRhysand...Rhysandestavaacimademim,osolhosarregalados.
—Foiumsonho—disseRhys,arespiraçãotãopesadaquantoaminha.
O luar que atravessava as janelas iluminava as linhas escuras de tatuagens
espiraladasemseubraço,nosombros,sobreopeitodelineado.Comoaquelasque
eutinhanoprópriobraço.Rhysandobservoumeurosto.
—Umsonho—repetiuele.
Velaris.EuestavaemVelaris,nacasadele.Etinha...meusonho...
Oslençóiseacobertaestavamrasgados.Emfrangalhos.Masnãohaviamsido
cortadosàfaca.Eaquelegostodecinzas,comofumaça,quecobriaminhaboca...
Minha mão estava perturbadoramente firme quando a ergui e vi que meus
dedosterminavamembrasasincandescentes.Garrasvivasdechamasquehaviam
cortadominharoupadecamacomoseestivessemcauterizandoferidas...
EmpurreiRhysandcomoombrofirme,caídacamaemechoqueicontraum
pequenobaúantesdedispararparaobanheiro,cairdejoelhosdiantedaprivadae
vomitarastripas.Denovo.Denovo.Aspontasdemeusdedoschiaramcontraa
porcelanafria.
Mãosgrandesequentespuxarammeuscabelosparatrásummomentodepois.
— Respire— instruiu Rhysand.— Imagine que estão se apagando como
velas,umaauma.
Vomitei na privada de novo, estremecendo quando a luz e o calor se
acumularamedispararamparaforademim,emedelicieicomaescuridãovaziae
friaqueseempoçouaoencalço.
—Bem,essaéumaformadefazerisso—disseRhys.
Quandoouseiolharparaminhasmãos,apoiadasnalatrina,asbrasastinhamse
extinguido.Atémesmoaquelepoderemminhasveias,pelosossos,adormeceude
novo.
—Tenhoesse sonho—revelouRhys,quandovomiteidenovo, segurando
meuscabelos.—Emquenãosoueupresosobela,masCassianouAzriel.Eela
lhesprendeuasasasàcamacomestacas,enãopossofazernadaparaimpedir.Ela
meobrigaaassistir,enãotenhoescolhaanãoserverdequeformafracasseicom
eles.
Eumeagarreiàprivada,cuspiumavezedepoisestiqueiamãoparaadescarga.
Observeiaáguadescercompletamenteemredemoinhoantesdeviraracabeçapara
olharparaele.
OsdedosdeRhysanderamsuaves,masfirmesnolugaremqueeleosfechara
empunhoemmeuscabelos.
—Vocêjamaisfracassoucomeles—garanti,avozrouca.
— Fiz... coisas terríveis para me certificar disso.— Aqueles olhos violeta
quasebrilhavamàmeia-luz.
—Eu também.—Meu suor se agarrava como sangue... o sangue daqueles
doisfeéricos...
Vireiocorpobematempo.AoutramãodeRhysfezcarinhoemlinhaslongas
etranquilizadorasaolongodacurvademinhacolunaconformediversasvezeseu
devolviaojantar.Quandoaúltimaondadevômitocessou,eudisse,sussurrando:
—Aschamas?
—CorteOutonal.
Nãoconseguidarumaresposta.Emalgummomento,eumeinclineicontrao
friodabanheirapróximaefecheiosolhos.
Quando acordei, o sol entrava pelas janelas, e eu estava na cama— bem
aconchegadaaoslençóistrocadoselimpos.
Encarei a inclinação íngreme e gramada da pequena montanha, estremecendo
diante dos véus de névoa que fluíam por nós. Atrás, a terra era varrida por
penhascos abruptos e um mar cinzento violento. Adiante, nada além de uma
montanhaextensa,detopoplano,compedrascinzentasemusgo.
Rhys estava aomeu lado, uma espada de dois gumes embainhada às costas,
facaspresasàspernas,cobertascomoqueeusópodiapresumirseremasroupasde
courodebatalha illyrianas, combasenoqueCassianeAzriel tinhamvestidona
noiteanterior.Acalçapretaerajusta,asplacas,semelhantesaescamasdecouro,
estavamgastasearranhadas,eseagarravamapernasqueeunãotinhapercebido
seremtãomusculosas.Ajaquetaajustadaaocorpotinhasidofeitaaoredordasasas
que agora estavam totalmente expostas, partes do traje escuro e arranhado se
somavamaosombroseaosantebraços.
SearoupadeRhysnãomedissesseobastantearespeitodoquepoderíamos
enfrentar naquele dia — se minha roupa semelhante não tivesse me dito o
suficiente—,eusóprecisavaolharumavezparaarochadiantedenósparasaber
quenão seria agradável.Estava tãodistraídano escritório, umahora antes, pelo
queRhysestavaescrevendoquandoeleredigiuumpedidocuidadosoparavisitara
CorteEstival,quenãopenseiemperguntaroqueesperarali.NãoqueRhystivesse
se dado o trabalho de explicar por que queria visitar a Corte Estival além de
“melhorarasrelaçõesdiplomáticas”.
—Ondeestamos?—perguntei,nossasprimeiraspalavrasdesdequetínhamos
atravessado,ummomentoantes.Velarisestavavibrante,ensolarada.Aquelelugar,
ondequerquefosse,estavagelado,deserto,estéril.Apenasrochaevidroenévoae
mar.
—EmumailhanocoraçãodasilhasOeste—respondeuRhysand,encarando
amontanhagigantesca.—Eaquilo—disseele,apontando—éaPrisão.
Nãohavianada;ninguémporperto.
—Nãovejonada.
—ArochaéaPrisão.Edentrodelaestãoascriaturaseoscriminososmais
desprezíveiseperigososquepodeimaginar.
Entrar—entrarnarocha,soboutramontanha...
—Esselugar—falouRhys—foifeitoantesdeosGrão-Senhoresexistirem.
Antes de Prythian ser Prythian. Alguns dos presos lembram desse tempo.
LembramdeumaépocaemqueeraafamíliadeMor,nãoaminha,agovernaro
Norte.
—PorqueAmrennãoentralá?
—Porqueelafoiprisioneiraumdia.
—Nãonessecorpo,presumo.
Umsorrisocruel.
—Não.Nãomesmo.
Estremeci.
— A caminhada vai aquecer seu sangue — explicou Rhys. — Pois não
podemosatravessarparadentroouvoar até a entrada,os feitiços exigemqueos
visitantesentremapé.Pelocaminhomaislongo.
Nãomemovi.
—Eu...—Apalavraficoupresaemminhagarganta.Irparabaixodeoutra
montanha...
—Ajudaadissiparopânico—disseRhys,baixinho—melembrardequeeu
escapei.Quetodosescapamos.
—Porpouco.—Tenteirespirar.Nãoconseguia.Nãoconseguia...
—Nóssaímos.Epodeacontecerdenovosenãoentrarmos.
Anévoafriaferiumeurosto.Eeutentei—tenteimesmo—darumpassona
direçãodela.
Meucorposerecusavaaobedecer.
Tenteidarumpassodenovo;tenteiporElaineNesthaeomundohumanoque
poderiaserdestruído,mas...nãoconsegui.
—Porfavor—sussurrei.Nãomeimportavasesignificassequeeufracassara
noprimeirodiadetrabalho.
Rhysand,comoprometido,nãofeznenhumaperguntaquandosegurouminha
mão e nos levou de volta para o sol de inverno e para as cores exuberantes de
Velaris.
Nãosaídacamapelorestododia.
Amrenestavadepédiantedeminhacama.
Recuei com um sobressalto, me chocando contra a cabeceira, com a visão
ofuscadapelaluzdamanhãqueentravaatoda,eembuscadeumaarma,qualquer
coisaparausar...
—Nãoésurpresaqueestejatãomagrasevomitaastripastodanoite.—Ela
farejouecontraiuolábio.—Estáfedendoavômito.
A porta do quarto estava fechada.Rhys dissera que ninguém entrava sem a
permissãodele,mas...
Amrenjogoualgonacama.Umpequenoamuletodeourocompérolaeuma
pedraazulleitosa.
—IssometiroudaPrisão.Use,ejamaispoderãoprendê-la.
Nãotoqueinoamuleto.
—Voudeixarumacoisabemclara—disseAmren,apoiandoasduasmãosna
madeiraentalhadaaopédacama.—Nãodouesseamuletoàtoa.Maspodepegar
emprestado, enquanto faz o que precisa ser feito, e devolva para mim quando
terminar.Seficarcomele,vouatrásdevocê,eosresultadosnãoserãoagradáveis.
MaséseuparausarnaPrisão.
Quandomeusdedosroçaramometaleapedrafrios,Amrenhaviasaído.
Rhysnãoestavaerradoquandoacomparouaumdragãocuspidordefogo.
Rhys ficava franzindo a testa para o amuleto conforme subíamos a encosta da
Prisão, tão íngremequeàsvezesprecisávamossubirdequatro.Subíamosmaise
mais alto, e bebi dos incontáveis córregos que desciam pelos calombos e pelas
depressões na encosta de musgo e grama. Ao nosso redor, a névoa pairava,
açoitadapeloventocujogemidoocoabafavaosestalosdenossospassos.
QuandoviRhysolhandoparaocolarpeladécimavez,falei:
—Oquê?
—Eladeuissoavocê.
Nãoeraumapergunta.
—Devesersério,então—falei.—Oriscocom...
—Não diga nada que não quer que outros ouçam.— Ele apontou para a
pedrasobnós.—Osdetentosnãotêmnadamelhorafazerqueouvirpelaterrae
pelas rochas em busca de fofoca. Venderão qualquer tipo de informação por
comida,sexo,talvezumalufadadear.
Eupodiafazeraquilo;podiadominaraquelemedo.
Amrentinhasaídodaquelaprisão.Eficoufora.Eoamuleto...eletambémme
manterialivre.
—Desculpe— pedi.— Por ontem.— Eu tinha passado horas na cama,
incapazdememoveroupensar.
Rhysestendeuamãoparameajudarasubirumarochaespecialmenteíngreme,
mepuxandofacilmenteparacima,ondeeleestavaagachadonotopo.Fazia tanto
tempo— tempo demais—desde que eu estivera ao ar livre, usarameu corpo,
dependera dele. Minha respiração estava entrecortada, mesmo com a nova
imortalidade.
—Não temporquepedirdesculpas— falouRhys.—Está aqui agora.—
Masera tãocovardeque jamais teria ido semaquele amuleto.Rhysacrescentou,
comumpiscardeolho:—Nãovoudescontardeseupagamento.
Euestavaofegantedemaisparafazercarafeia.Subimosatéqueafacesuperior
da montanha se tornou uma muralha diante de nós, nada além de encostas
gramadas se estendiam atrás, muito abaixo, até onde elas fluíam para o mar
cinzentoinquieto.Rhyssacouaespadadascostascomummovimentoágil.
—Nãopareçatãosurpresa—avisouele.
—Eu...nuncavivocêcomumaarma.—Alémdaadagaqueelepegoupara
cortaragargantadeAmaranthanofinal,paramepoupardador.
—Cassiangargalhariaatéficarroucoseouvisseisso.Eentãomeobrigariaa
entrarcomelenoringuedeluta.
—Eleconseguederrotarvocê?
—Nocombatecorpoacorpo?Sim.Seriaumavitóriasuada,paravariar,mas
elevenceria.—Semarrogância, semorgulho.—Cassian éomelhorguerreiro
quejáencontreiemqualquercorte,qualquerterra.Ele liderameusexércitospor
isso.
Nãoduvideidaalegação.Eooutroillyriano...
—Azriel...asmãosdele.Ascicatrizes,querodizer—expliquei.—Deonde
vieram?
Rhysficoucaladoummomento.Entãofalou,bembaixo:
— O pai dele tinha dois filhos legítimos, ambos mais velhos que Azriel.
Amboscruéisemimados.Aprenderamcomamãe,aesposadosenhor.Duranteos
11anosemqueAzrielviveunafortalezadopai,elasecertificoudequeelefosse
mantido em uma cela sem janelas, sem luz.Deixavam queAzriel saísse durante
umahoratododia,deixavamquevisseamãeduranteumahoraporsemana.Não
tinha permissão para treinar, para voar ou qualquer das coisas que os instintos
illyrianos berrassem para que fizesse. Quando estava com 8 anos, os irmãos
decidiramqueseriadivertidoveroqueaconteciaquandosemisturavaosdonsde
cura rápida de um illyriano com óleo... e fogo. Os guerreiros ouviram Azriel
gritar.Masnãorápidoobastanteparasalvarsuasmãos.
Fui tomadapornáusea.Maspelahistória,Azrielaindamorariacomelespor
mais três anos. Que outros horrores teria suportado antes de ser enviado para
aqueleacampamentonamontanha?
—Os...osirmãosforampunidos?
OrostodeRhysestava impassívelcomoarochaeoventoeomaraonosso
redorquandoeledisse,comumaquietudeletal:
—Porfim,sim.
Haviatantoprimitivismonaspalavrasquemudeideassunto:
—EMor,oqueelafazporvocê?
—MoréquemchamareiquandoosexércitosfracassaremeCassianeAzriel
estiveremmortos.
Meusanguegelou.
—Portantoeladeveesperaratéentão?
— Não. Como minha terceira, Mor é minha... supervisora da corte. Ela
supervisiona a dinâmica entre a Corte dos Pesadelos e a Corte dos Sonhos, e
governa tantoVelaris quanto aCidadeEscavada.Creioqueno reinomortal ela
poderiaserconsideradaumarainha.
—EAmren?
— Os deveres como minha imediata a tornam minha conselheira política,
biblioteca ambulante e executora do trabalho sujo. Eu a nomeei depois que
conquisteiotrono.Maseraminhaaliada,etalvezminhaamiga,bemantesdisso.
—Quero dizer... nessa guerra em que seus exércitos fracassem eCassian e
Azrielmorram,eatémesmoMorsevá.—Cadapalavraeracomogelonalíngua.
Rhys parou enquanto esticava amão para a face exposta da rocha diante de
nós.
—Se esse dia chegar, vou encontrar uma forma de quebrar o feitiço sobre
Amrenelibertá-lanomundo.Epedirquememateprimeiro.
PelaMãe.
—Oqueelaé?—Depoisda conversanaquelamanhã, talvez fosseburrice
perguntar.
—Outracoisa.Algopiorquenós.E,sealgumdiaencontrarumaformadese
livrardaprisãodecarneeosso...queoCaldeirãonossalve.
Estremecidenovoeencareiaparededepedranua.
—Nãopossoescalarrochaexpostaassim.
—Nãoprecisa—disseRhys,espalmandoumadasmãosnapedra.Comouma
miragem,elasumiucomumirradiardeluz.
Portões pálidos, escavados, estavam no lugar, tão altos que o topo parecia
perdidoemmeioànévoa.
Portõesdeossos.
Os portões de ossos se abriram silenciosamente, revelando uma caverna de um
preto tão semelhante aonanquimcomoeununca tinhavisto,nemmesmoSoba
Montanha.
Segureioamuletonopescoço,ometalestavaquentecontraapalmadamão.
Amrentinhasaído.Eutambémsairia.
Rhys colocou amãomorna emminhas costas eme guiou para dentro, três
bolasdeluaroscilavamdiantedenós.
Não...não,não,não,não...
—Respire—disseele,aomeuouvido.—Tomefôlego.
—Ondeestãoosguardas?—Conseguifalarapesardoapertonospulmões.
—Elesmoramdentrodarochadamontanha—murmurouRhys,quandosua
mão encontrou a minha e a envolveu ao me puxar para dentro da escuridão
imortal.—Eles só emergem na hora de comer, ou para lidar com prisioneiros
inquietos.Nãopassamdesombrasdepensamentoeumantigofeitiço.
Comas pequenas luzes flutuando adiante, tentei nãoolhar pormuito tempo
paraasparedescinza.Principalmentequandoeramtãotoscamenteescavadasque
aspartespontiagudaspoderiamserumnariz,ouumatestaenrugada,ouumparde
lábiosarrogantes.
O chão seco não exibia nada além de pequenas pedras. E havia silêncio.
Silêncio absoluto conforme passamos por uma curva e a última luz do mundo
enevoadosedissipouemescuridão.
Eu me concentrei na respiração. Não podia ficar presa ali; não podia ficar
trancadanaquelelugarhorrível,morto.
O caminho mergulhava mais profundamente no interior da montanha, e
segureiforteosdedosdeRhysparaevitarperderoequilíbrio.Eleaindacarregava
aespadanaoutramão.
—TodososGrão-Senhorestêmacesso?—Minhaspalavrassaíramtãobaixas
que foram devoradas pela escuridão.Mesmo aquele poder retumbante nas veias
tinhasumido,enterradoemalgumlugaremmeusossos.
—Não.APrisãoéapróprialei;ailhapodeatéserumaoitavacorte.Masestá
sobminhajurisdição,emeusangueéachavedosportões.
—Vocêpoderialibertarospresos?
—Não.Depoisqueasentençaéproferidaeumprisioneiropassaporaqueles
portões...ElepertenceàPrisão.Elajamaisodeixarásair.Sentenciarpessoaspara
cáéalgoquelevomuito,muitoasério.
—Vocêjá...
—Sim.Eagoranãoéhorade falardisso.—Rhysand segurouminhamão
paradarênfase.
Seguimosparabaixo,emmeioàescuridão.
Nãohaviaportas.Nenhumaluz.
Nenhumsom.Nemmesmoáguaescorrendo.
Maseuconseguiasenti-los.
Conseguiasenti-losdormindo,caminhandodeumladoparaoutro,passando
mãosegarraspelooutroladodasparedes.
Eram antigos e cruéis, de uma forma que eu jamais tinha conhecido, nem
mesmocomAmarantha.Eraminfinitos,epacientes,eaprenderamalinguagemda
escuridão,dapedra.
—Quantotempo—sussurrei.—Quantotempoelaficouaqui?—Nãoousei
dizeronomedela.
—Azriel procurou uma vez. Nos arquivos de nossos templos e bibliotecas
maisantigos.SóencontrouumavagamençãodequeelaentrouantesdePrythian
serdivididanascortes,eemergiudepoisqueestasforamestabelecidas.Suaprisãoé
de antes de nossa escrita.Não sei por quanto tempo ficou aqui, algunsmilênios
parecemumpalpitejusto.
Horrorseacumulouemminhagarganta.
—Nuncaperguntou?
—Porquemedariaotrabalho?Elavaicontarquandofornecessário.
—Deondeelaveio?—ObrochequeRhysandderaaAmren,umpresente
tãopequeno,paraummonstroqueumdiamoraraali.
—Não sei. Embora haja lendas que alegam que, quando omundo nasceu,
havia... fendas no tecido dos mundos. Que no caos da Formação, criaturas de
outrosmundospodiampassarporumadelaseentraremoutro.Masas fendasse
fechavam quando queriam, e as criaturas podiam ficar presas, sem poder voltar
paracasa.
Eramaisassustadordoqueeupodiacompreender:tantomonstroscaminharem
entremundosquantooterrordeficarpresaemoutromundo.
—Achaqueelaeraumdesses?
— Acho que ela é a única de seu tipo, e não há registro de outros terem
existido.MesmoosSurielexistememnúmeros,aindaquepequenos.Masela...e
algunsdaquelesnaPrisão...Achoquevieramdeoutrolugar.Eestãoprocurando
umcaminhodevoltahámuito,muitotempo.
Eutremiasobocourorevestidodepele,arespiraçãosecondensavadiantede
mim.
Maisemaisparabaixonósfomos,eperdianoçãodotempo.Poderiamterse
passadohorasoudias,eparamosapenasquandomeucorpoinútilecansadoexigia
água.Mesmoenquantobebia,elenãosoltavaminhamão.Comosearochafosse
meengolirparasempre.Eugarantiqueessesintervalosfossembreveseraros.
E,mesmoassim,prosseguimosmaisparaofundo.Apenasasluzeseamãode
Rhys me impediam de sentir como se estivesse prestes a cair direto para a
escuridão.Porumsegundo,ofedordeminhacelanocalabouçoentupiumeunariz,
eosestalosdefenomofadoroçaramminhabochecha...
AmãodeRhysseapertouemvoltadaminha.
—Sómaisumpouco.
—Devemosestarpertodabaseagora.
— Passamos dela. O Entalhador de Ossos está enjaulado sob as raízes da
montanha.
—Queméele?Oqueéele?—Sótinhasidoinformadadoquedeveriadizer,
nãodoquedeveriaesperar.Semdúvidaparaevitarqueeuentrasseempânicode
vez.
—Ninguémsabe.Eleaparececomoqueraparecer.
—Metamorfo?
—Simenão.Elevaiaparecerparavocêcomoumacoisa,eeupossoestarbem
aoladoeveroutra.
Tenteinãocomeçarabalircomoumaovelha.
—Eesseentalhardeossos?
—Vocêverá.—Rhysparoudiantedeumpedaçolisodepedra.Ocorredor
continuava para baixo, abaixo até a escuridão imemorial.O ar ali era sufocante,
compacto.Mesmoa condensaçãodeminha respiraçãonoar frioparecia tervida
curta.
Rhysand,por fim, soltouminhamão,apenasparaapoiaradele,denovo,na
pedralisa.Apedraondulousobsuapalma,formando...umaporta.
Comoosportõesacima,erafeitademarfim—osso.Enasuperfícieestavam
entalhadas inúmeras imagens: flora e fauna, mares e nuvens, estrelas e luas,
criançaseesqueletos,criaturasbelasefeias...
Aportaseafastou.Acelaeracomobreu,maldiscerníveldocorredor...
—Entalhei as portas de todos os prisioneiros neste lugar—disse uma voz
baixadoladodedentro.—Masaminhaaindameéapreferida.
— Preciso concordar— disse Rhysand. Ele entrou, a luz oscilou acima e
iluminouummeninodecabelospretossentadoscontraaparedemaisafastada,os
olhosdeumazulassombrosoobservaramRhysande,então,deslizaramparaonde
euestavaàespreita,naentrada.
Rhyslevouamãoaumabolsaqueeunãotinhapercebidoquecarregava;não,
umaqueeleconjuroudequalquerquefosseobolsoentrereinosqueusavacomo
armário.Rhysatirouumobjetoparaomenino,quenãopareciatermaisde8anos.
Brancoreluziuquandooobjetoemitiuumclangornopisodepedraáspera.Outro
osso,longoefirme...epontiagudodeumlado.
—A fíbula responsávelpelogolpemortalquandoFeyrematouoVermede
Middengard—disseRhys.
Meusanguecongelou.Eutinhadispostotantosossosnaarmadilha;nãoreparei
emqualacabaracomoVerme.Enãoacheiquealguémtivessereparado.
— Entre. — Foi tudo o que o Entalhador de Ossos disse, e não havia
inocência,nenhumabondadenavozdaquelacriança.
Deiumpassoparadentroemaisnenhum.
—Fazumaera—disseomenino,meobservandocomatenção—desdeque
algonovosurgiunestemundo.
—Oi—sussurrei.
Osorrisodomeninoeraumdebochedeinocência.
—Estácommedo?
—Sim—respondi.Nuncaminta,essaforaaprimeiraordemdeRhysand.
Omeninoficoudepé,massemantevedooutroladodacela.
—Feyre—murmurouele,inclinandoacabeça.Aesferadeluzfeéricacobria
os cabelos cor de nanquim com prata.— Fey-re— repetiu ele, separando as
sílabas,comoseconseguissesentirogosto.Porfim,omeninoesticouacabeça.—
Aondefoiquandomorreu?
—Umaperguntaporoutra—respondi,comotinhasidoinstruídanocaféda
manhã.
OEntalhadordeOssosinclinouacabeçaparaRhysand.
—Vocêsemprefoimaisespertoqueseusancestrais.—Masaquelesolhosse
fixaramemmim.—Conteaondefoi,oqueviu...erespondereisuapergunta.
Rhys me deu um aceno de cabeça sutil, mas os olhos mostravam cautela.
Porqueoqueomeninotinhapedido...
Preciseimeacalmarparapensar,paralembrar.
Mas havia sangue e morte e dor e gritos... e ela estava me partindo, me
matando tão devagar, e Rhys estava lá, urrando de fúria enquanto eu morria,
Tamlinimplorandoporminhavida,dejoelhos,diantedotronodela...mashavia
tantador,eeuqueriaqueterminasse,queriaquetudoacabasse...
RhysficouimóvelenquantomonitoravaoEntalhadordeOssos,comoseessas
lembranças fluíssem livrementepeloescudomentalqueeumecertifiqueideque
estivesseintactonaquelamanhã.Emepergunteiseeleachavaqueeudesistira,bem
ali.
Fecheiasmãosempunhos.
Euhaviasobrevivido;tinhasaído.Esairiahoje.
—Ouvioestalo—falei.AcabeçadeRhysvirouparamim.—Ouvioestalo
quandoelaquebroumeupescoço.Estavaemmeusouvidos,mastambémdentrode
meucrânio.Eumorriantesdesentirqualquercoisaalémdaprimeiradescargade
dor.
OsolhosviolentosdoEntalhadordeOssosparecerambrilharmais.
—Então,tudoficouescuro.Umtipodiferentedeescuridãoqueadestelugar.
Mas havia um... fio— continuei.—Uma corda. E eu a puxei... e de repente
consegui ver.Não pormeus olhos,mas... mas pelos dele— falei, inclinando a
cabeçanadireçãodeRhys.Abriosdedosdamãotatuada.—Esoubequeestava
morta, e que esse pedaço ínfimo de espírito era tudo que restava de mim,
apegando-seaofiodenossoacordo.
—Mastinhaalguémlá,viualgumacoisaalém?
—Haviaapenasaquelaligaçãonaescuridão.
OrostodeRhysandtinhaficadopálido,abocaeraumalinhafina.
—EquandofuiFeitadenovo—falei—,seguiaquelaligaçãodevolta...até
mim.Eusabiaquemeularficavanaoutraponta.Havialuzentão.Comonadarem
vinhoespumante...
—Sentiumedo?
—Eusóqueriavoltarpara...paraaspessoasaomeuredor.Queriatantoque
nãotiveespaçoparamedo.Opiortinhaacontecido,eaescuridãoestavacalmae
silenciosa.Nãopareciaum lugar ruimpara seesvair.Maseuqueria irparacasa.
Então,seguialigaçãoatévoltarparacasa.
—Nãohaviaoutromundo—insistiuoEntalhadordeOssos.
—Sehavia,ousehá,nãovi.
—Nenhumaluz,nenhumportal?
Aondevocêquerchegar?Aperguntaquaseescapuliudeminhaboca.
—Eraapenaspazeescuridão.
—Vocêtinhaumcorpo?
—Não.
—Você...
—Jábastadevocê—disseRhysand, ronronando,eo sompareceuveludo
sobreoaçomaisafiado.—Disseumaperguntaporoutra.Agorajáfez...—Ele
contounosdedos.—Seis.
OEntalhadordeOssossereclinoucontraaparedeedeslizouatésesentar.
— É raro o dia em que conheço alguém que voltou da verdadeira morte.
Perdoe-me por querer espiar por trás da cortina.— Ele gesticulou com a mão
delicadaemminhadireção.—Pergunte,menina.
—Não há corpo, nada alémde, talvez, umpedaço de osso— falei, como
máximodefirmezaquepodia.—Haveriaumaformaderessuscitaressapessoa?
Cultivarumnovocorpoecolocaraalmaalidentro.
Aquelesolhosbrilharam.
—Aalmaestavapreservadadealgumaforma?Contida?
TenteinãopensarnoanelqueAmaranthausava,naalmaqueelaprenderapara
testemunharcadahorroredepravação.
—Sim.
—Nãotemcomo.
Quasesuspireialiviada.
—Anãoser...—Omeninotamboriloucadadedonopolegar,amãoparecia
uminsetopálidoseestremecendo.—Hámuitotempo,antesdosGrão-Feéricos,
antesdoshomens,haviaumCaldeirão...Dizemqueamagiaestavacontidadentro
dele,queomundonasceranele.Mascaiunasmãoserradas.Ecoisasgrandiosase
terríveisforamfeitascomele.Coisasforamforjadascomele.Coisastãomalignas
queoCaldeirãofoi,porfim,roubadodevolta,aumgrandecusto.Nãopodiaser
destruído,poistinhaFeitotodasascoisas,e,sefossequebrado,avidadeixariade
existir.Então,foiescondido.Eesquecido.ApenascomaqueleCaldeirãoalgoque
estámortopoderiaserrefeitodessaforma.
OrostodeRhysanderadenovoumamáscaradecalma.
—Ondeoesconderam?
—Conteumsegredoqueninguémsabe,SenhordaNoite,econtareiomeu.
Eumeprepareiparaqualquerquefosseaverdadehorrívelqueestavaprestesa
vir.MasRhysanddisse:
— Meu joelho direito sente uma pontada de dor quando chove. Eu o
machuqueiduranteaGuerra,edóidesdeentão.
OEntalhadordeOssosconteveumarisadarouca,mesmoquandoolheipara
Rhysboquiaberta.
— Você sempre foi meu preferido— disse ele, dando um sorriso que eu
jamais, nem um por ummomento, pensaria que era infantil.—Muito bem.O
CaldeirãofoiescondidonofundodeumlagocongeladoemLapplund...—Rhys
começou a se virar para mim, como se fosse para lá imediatamente, mas o
EntalhadordeOssos acrescentou:—E sumiuhámuito,muito tempo.—Rhys
parou.—Nãoseiparaondefoi,ouondeestáagora.Milêniosantesdevocênascer,
ostrêspéssobreosquaiseleseapoiaforamseparadosdabaseemumatentativade
fraturarparte do poder. Funcionou, por pouco.Retirar os pés foi como cortar a
primeiraarticulaçãodeumdedo.Énojento,masaindadáparausaro restocom
algumadificuldade.Ospés foramescondidosemtrês templosdiferentes:Cesere,
SangravaheItica.Seelessumiram,éprovávelqueoCaldeirãoestejamaisumavez
ativo,equeaquelequeousequeriaoartefatocompodertotal,enãocomumfiapo
faltando.
Porissoostemplostinhamsidosaqueados.Paraconseguiremospésnosquais
oCaldeirãoseapoiavaerestaurarseupodertotal.Rhysapenasdisse:
—SuponhoquevocênãosaibaquemtemoCaldeirãoagora.
OEntalhadordeOssosapontouumpequenodedoparamim.
— Prometa que me dará os ossos dela quando ela morrer, e vou pensar a
respeito. — Enrijeci o corpo. — Não... acho que nem você prometeria isso,
Rhysand.
EupoderiaterchamadooolharnorostodeRhysdeumaviso.
—Obrigadopelaajuda—agradeceuele,ecolocouamãoemminhascostas
parameguiarparafora.
Masseelesoubesse...Vireidenovoparaacriaturamenino.
—Haviaumaescolha...naMorte—falei.
Rhystinhasecontraídoasminhascostas,maspermaneceunolugar.Quente,
firme.Emeperguntei se o toque serviriamais para reconfortarRhys deque eu
estavaali,aindarespirando.
—Eu sabia—continuei—quepoderia flutuar para a escuridão.E escolhi
lutar, aguentar um pouco mais. Mas sabia que, se quisesse, eu poderia ter me
dissipado.Etalvezfosseumnovomundo,umreinodedescansoepaz.Maseunão
estavaprontaparaele,nãopara ir até lá sozinha.Eusabiaquehaviaoutracoisa
esperandoalémdaquelaescuridão.Algobom.
Porummomento,aquelesolhosazuisbrilharammais.Então,omeninodisse:
— Você sabe quem tem o Caldeirão, Rhysand. Quem anda pilhando os
templos.Sóveioatéaquiconfirmaraquilodequehámuitodesconfia.
—OreideHybern.
Pesarpercorreuminhasveiaseseacumulouemmeuestômago.Eunãodeveria
termesentidosurpresa,deveriasaber,mas...
Oentalhadornãodissenadamais.Ficouesperandooutraverdade.
Então,oferecimaisumestilhaçomeu.
—QuandoAmaranthame fezmatar aquelesdois feéricos, seo terceironão
fosseTamlin,euteriaenfiadoaadagaemmeucoraçãonofim.
Rhysficouimóvel.
— Eu sabia que o que eu tinha feito não teria volta — acrescentei, me
perguntandoseachamaazulnosolhosdoentalhadorpoderiaqueimarminhaalma
destruídaatévirar chamas.—Edepoisque lhesquebrei amaldição,depoisque
soube que tinha salvado a todos, só queria tempo o suficiente para virar aquela
adagaparamim.Sódecidiquequeriaviverquandoelamematou,esabiaquenão
tinhaterminadooquequer...oquequerqueeutivessenascidoparafazer.
Ousei olhar paraRhys, e havia algoparecido comdesolaçãono lindo rosto.
Sumiuemumpiscardeolhos.
AtémesmoEntalhadordeOssosfalou,comsuavidade:
—ComoCaldeirão, seriapossível fazeroutrascoisasalémderessuscitaros
mortos.Seriapossíveldestruiramuralha.
Aúnicacoisaquemantinhaasterrashumanas—minhafamília—asalvonão
apenasdeHybern,masdeoutrosfeéricos.
—É possível queHybern esteja quieto por tantos anos porque o rei estava
procurandooCaldeirão,aprendendoseussegredos.Ressurreiçãodeumindivíduo
específico pode muito bem ter sido o primeiro teste depois que os pés foram
reunidos, e agora ele descobre que o Caldeirão é pura energia, puro poder. E,
como qualquer magia, pode ser esgotado. Então, ele vai deixar o Caldeirão
descansar, deixar que reúna forças, aprender seus segredos para alimentar o
artefatocommaisenergia,maispoder.
—Temumaformadeimpedi-lo?—sussurrei.
Silêncio.Silênciocheiodeexpectativa,aguardando.
AvozdeRhysestavaroucaquandoelefalou:
—Nãoofereçaaelemaisum...
—QuandooCaldeirão foi feito— interrompeuo entalhador—,o artesão
sombriousouo restantedominérioderretidopara forjarum livro.OLivrodos
Sopros.Nele,escritosentreaspalavrasentalhadas,estãoos feitiçosparanegaro
poderdoCaldeirão,oucontrolá-loporcompleto.Mas,depoisdaGuerra,ele foi
divididoemdois.Umpedaço foiparaos feéricos,eooutro,paraasseis rainhas
humanas. Era parte do Tratado, puramente simbólico, pois o Caldeirão estava
perdido haviamilênios, e era considerado ummito.OLivro, acreditava-se, era
inofensivo,porquesemelhanteatraisemelhante,eapenasaquelequefoiFeitopode
proferirosfeitiçoseconjurarseupoder.Nenhumacriaturanascidanaterrapode
usá-lo, então, os Grão-Senhores e os humanos o desconsideraram, como pouco
maisqueumaherançahistórica,mas,seoLivroestivessenasmãosdealgoquefoi
refeito...Seriaprecisotestartalteoria,éclaro,mas...podeserpossível.
Os olhos do entalhador se semicerraram, tornando-se fendas, devido ao
interesseconformeeupercebia...percebia...
—Então,agoraoGrão-SenhorEstivalpossuinossopedaço—continuouele.
—Eas rainhasmortais reinando têmooutroenclausuradonopalácio reluzente
delasàbeiradomar.AmetadedePrythianestávigiada,protegidacomfeitiçosde
sangue ligados à própriaCorte Estival. Aquele pertencente às rainhasmortais...
Elasforamastutasaoreceberemopresente.Usaramnossopovoparacolocarum
feitiço no Livro, para prendê-lo, demodo que, se algum dia fosse roubado, se,
digamos,umGrão-Senhoratravessasseparaocastelodelaseoroubasse...oLivro
derreteria emminério e seria perdido.Deve ser dado voluntariamente por uma
rainha mortal, sem truques, sem mágica envolvida. — Uma risadinha. —
Criaturastãointeligenteseadoráveisoshumanos.
Oentalhadorpareciaperdidoemmemóriasantigas;então,elesacudiuacabeça
eterminou:
—ReúnaasduasmetadesdoLivrodosSoproseconseguiráanularospoderes
doCaldeirão.Comsorte,antesqueretorneàforçatotaledestruaaquelamuralha.
Nãomedeiotrabalhodeagradecer.Nãocomainformaçãoqueelenosdera.
Nãoquandoeutinhasidoforçadaadizeraquelascoisas...eaindaconseguiasentir
a atenção deRhys.Era como se ele suspeitasse,mas jamais acreditasse no quão
gravementeeutinhasidodestruídanaquelemomentocomAmarantha.
Nósviramos,amãodeRhysdeslizoudeminhascostasesegurouminhamão.
O toque era leve— carinhoso. E subitamente não tive forças para sequer
segurardevolta.
O entalhador pegou o osso queRhysand tinha levado para ele e sopesou o
objetonaquelasmãosinfantis.
—Vouentalharsuamorteaqui,Feyre.
Mais emaispara cimanaescuridãonós seguimos,pelapedradormente eos
monstrosqueviviamdentrodela.Porfim,faleiparaRhys:
—Oquevocêviu?
—Vocêprimeiro.
—Ummenino,porvoltade8anos;cabelospretos,olhosazuis.
Rhysestremeceu;ogestomaishumanoqueeuovirafazer.
—Oquevocêviu?—insisti.
—Jurian—falouRhys.—EletinhaexatamenteamesmaaparênciadeJurian
daúltimavezqueovi:enfrentandoAmaranthaquandolutaramatéamorte.
NãoqueriasabercomooEntalhadordeOssossabiasobrequemtínhamosido
perguntar.
–Amrenestácerta—disseRhys,apoiando-secontraoportaldasaladeestar
da casa. — Vocês são como cães, esperando que eu venha para casa. Talvez
devessecomprarguloseimas.
Cassian fez um gesto vulgar para Rhys de onde deitara no sofá, diante da
lareira,comumbraçojogadonoencosto,atrásdeMor.Emboratudoarespeitodo
corpopoderosoemusculosodeCassiansugerissequeelesesentiaàvontade,havia
umatensãoemseumaxilar,umaenergiaacumuladaquemediziaqueesperavam
alihaviaumtempo.
Azrielpermaneciaà janela, confortavelmenteocultoentreas sombras, euma
nevesuavecaíaesalpicavaojardimearuaatrásdele.EAmren...
Nãoestavaàvista.Eunãosaberiadizersemesentiaaliviadaounão.Precisaria
achá-laparalhedevolverocordãoembreve—seosavisosdeRhyseaspalavras
daprópriaAmreneramverdade.
Molhadaecomfrioporcausadanévoaedoventoquenosperseguiramdesde
aPrisão,caminheiatéapoltronadiantedosofá,aqualtinhasidoconstruída,como
tantos outros móveis ali, para acomodar asas illyrianas. Estiquei meus braços e
minhaspernasrígidosnadireçãodalareiraedepoiscontiveumgemidoaosentiro
deliciosocalor.
— Como foi? — perguntou Mor, endireitando-se ao lado de Cassian.
Nenhumvestidohoje,apenascalçapretapráticaeumgrossosuéterazul.
—OEntalhadordeOssos—falouRhys—éum fofoqueiroenxeridoque
gostadesemeterdemaisnosnegóciosdosoutros.
— Mas? — indagou Cassian, apoiando os braços nos joelhos, as asas
recolhidas.
—Mas—continuouRhys—tambémpode serútil, quandoescolhe ser.E
parecequeprecisamoscomeçarafazeroquefazemosmelhor.
Flexionei os dedos dormentes, feliz por deixá-los discutir, precisando de um
momentoparame recompor,paraafastaroque tinha reveladoaoEntalhadorde
Ossos.
EoqueoEntalhadordeOssossugeriuquepoderia,defato,serpedidoqueeu
fizessecomaquelelivro.Ashabilidadesqueeupoderiater.
Então,RhyscontouaelessobreoCaldeirãoeomotivoportrásdossaquesaos
templos, recebendo em reposta não poucos xingamentos e perguntas— e sem
revelar nada do que eu tinha admitido em troca da informação. Azriel saiu das
sombras espiraladas para perguntar mais coisas; o rosto e a voz permaneciam
indecifráveis.Cassian,surpreendentemente,semantevecalado,comoseogeneral
entendessequeoencantadordesombrassaberiaqueinformaçãoeranecessária,e
estivesseocupadoavaliando-aparaasprópriasforças.
QuandoRhysterminou,omestre-espiãofalou:
—VoucontatarminhasfontesnaCorteEstivalarespeitodeondeametadedo
LivrodosSopros está escondida.Possovoaratéomundohumano sozinhopara
descobrirondeestãoguardandoapartedelesdoLivroantesdepedirmos.
—Nãoprecisa—disseRhys.—Enãoconfieessa informação,nema suas
fontes,nemaqualquerumforadestasala.ExcetoporAmren.
— Elas podem ser confiadas — argumentou Azriel, com determinação
silenciosa, as mãos cobertas de cicatrizes fechando-se nos flancos cobertos de
couro.
—Não vamos correr riscos no que diz respeito a isso— respondeuRhys,
simplesmente.Ele encarouAzriel, e quase consegui ouvir as palavras silenciosas
queRhysacrescentou:Nãoéumjulgamentoouumareflexãoaseurespeito,Az.De
maneiraalguma.
MasAzrielnãoexibiuumpingodeemoçãoquandoassentiu,abrindoasmãos.
—Então,qualéoplano?—interrompeuMor,talvezpelobemdeAz.
Rhyslimpouumpedaçoinvisíveldeterradotrajedecouro.Quandoergueua
cabeça,osolhosvioletapareciamglaciais.
—OreideHybernsaqueouumdenossostemplosparaconseguirumpedaço
doCaldeirão.Atéondesei,trata-sedeumatodeguerra,umaindicaçãodequeSua
Majestadenãoteminteresseemmecortejar.
—Eleprovavelmentese lembradesua lealdadeaoshumanosnaGuerra,de
qualquer modo — ponderou Cassian. — Não arriscaria revelar os planos
enquanto tenta fazê-lo mudar de lado, e aposto que alguns dos seguidores de
AmaranthacontaramaelesobreSobaMontanha.Sobrecomotudoacabou,quero
dizer.—Cassianengoliuemseco.
QuandoRhystentoumatá-la.Abaixeiasmãosnadireçãodofogo.
—De fato.Mas isso significaqueas forçasdeHybern já se infiltraramcom
sucesso em nossas terras, sem ser detectadas. Planejo devolver o favor—disse
Rhys.
PelaMãe.CassianeMorapenassorriramcomumprazerselvagem.
—Como?—perguntouMor.
Rhyscruzouosbraços.
— Vai requerer planejamento cuidadoso. Mas, se o Caldeirão estiver em
Hybern,então,paraHyberndevemosir.Ouparatomá-lodevolta...ouparausaro
Livroeneutralizá-lo.
Umapartecovardeepatéticademimjátremia.
—Hybernprovavelmentetemtantosfeitiçosdeproteçãoeescudosemvolta
desiquantonós temosaqui—replicouAzriel.—Precisaríamosencontraruma
formadepassarporelessemsermosdetectadosprimeiro.
Umleveacenodecabeça.
— Por isso começamos agora. Enquanto caçamos o Livro. Então, quando
conseguirmosasduasmetades,podemosagirrapidamente,antesqueseespalhea
notíciadequesequeropossuímos.
Cassianassentiu,masperguntou:
—ComovairecuperaroLivro,então?
EumeprepareiquandoRhysfalou:
—ComoessesobjetossãoenfeitiçadospelosGrão-Senhoresindividualmente,
esópodemserencontradosporeles,pormeiodeseuspoderes...Então,alémda
utilidade dela com o manuseio do próprio Livro dos Sopros, parece que
possivelmentetemosnossoprópriodetector.
Agoratodosmeolharam.
Encolhiocorpo.
—Talvez.FoioqueoEntalhadordeOssosdisseemrelaçãoaeusercapazde
encontrarcoisas.Vocênãosabe...—MinhaspalavrassedissiparamquandoRhys
deuumrisinho.
— Você tem uma semente de todo o nosso poder, que é como ter sete
impressõesdigitais.Seescondemosalgo,sefizemosouprotegemosissocomnosso
poder,nãoimportaondeestejaescondido,conseguiráencontrá-lopormeiodessa
mesmamagia.
—Nãotemcomosaberdissocomcerteza.—Eutenteidizerdenovo.
—Não...masháumaformadetestar.—Rhysaindasorria.
—Lá vamos nós— resmungouCassian.Mor lançou aAzriel um olhar de
avisoparaquenão se oferecesse dessa vez. Em resposta, omestre-espião apenas
encarouMorcomincredulidade.
Eu poderia ter ficado na poltrona para observar a batalha de personalidades
casoRhysnãotivessedito:
—Comsuashabilidades,Feyre,vocêpodeconseguirencontrarametadedo
LivronaCorteEstivalequebrarosfeitiçosqueacercam.Masnãovouconfiarna
palavra doEntalhador, ou levar você até lá sem testá-la primeiro.Para que nos
certifiquemosdeque,quando for sério,quandoprecisarmosdaquele livro,você,
nósnãofalharemos.Então,vamosfazeroutrapequenaviagem.Paraverseécapaz
deencontrarumobjetovalioso,queperdiháumtempoconsiderável.
—Merda!—xingouMor,enfiandoasmãosnasdobrasespessasdosuéter.
—Onde?—Conseguidizer.
FoiAzrielquemrespondeu.
—ParaaTecelã.
RhysestendeuamãoquandoCassianabriuaboca.
—O teste—disse ele— será para ver se Feyre consegue identificarmeu
objetonotesourodaTecelã.QuandochegarmosàCorteEstival,Tarquinpodeter
enfeitiçado a parte dele do Livro para parecer diferente, passar uma sensação
diferente.
—PeloCaldeirão,Rhys—disparouMor,colocandoosdoispésnotapete.—
Ficoumaluco...?
—QueméaTecelã?—insisti.
— Uma criatura antiga e cruel — explicou Azriel, e verifiquei as leves
cicatrizesemsuasasas,nopescoço,emepergunteiquantascriaturascomoaquela
Azriel teria encontrado na vida imortal. Se eram piores que as pessoas que
compartilhavamlaçosdesanguecomele.—Quedevepermanecerimperturbada
—acrescentouomestre-espiãonadireçãodeRhys.—Encontreoutraformade
testarashabilidadesdeFeyre.
Rhysapenasdeudeombrosemeolhou.Paramedeixar escolher.Sempre...
comeleultimamente a escolhaera sempreminha.Mas elenão tinhamedeixado
voltaràCortePrimaverilduranteaquelasduasvisitas...porquesabiaoquantoeu
precisavafugirdelá?
Mordi o lábio inferior, considerando os riscos, esperando sentir qualquer
pontadademedo,deemoção.Masaquelatardetinhadrenadoqualquerreservade
ambos.
— O Entalhador de Ossos, a Tecelã... Não podem chamar ninguém pelo
nome?
Cassianriu,eMorseacomodounasalmofadasdosofá.
ApenasRhys,meparecia,entenderaqueaquilonãoforatotalmenteumapiada.
Orostopareciatenso.Comosesoubesseexatamenteoquantoeuestavacansada,o
quanto eu sabia que deveria tremer ao pensar nessa Tecelã, mas, depois do
Entalhador de Ossos, e do que eu revelara a ele... não conseguia sentir nada
mesmo.
Rhysfalouparamim:
—Quetalacrescentarmaisumnomeaessalista?
Nãogosteimuitodecomoaquilosoou.Mordisseomesmo.
—Emissária— falouRhysand, ignorando a prima.—Emissária daCorte
Noturna...paraoreinohumano.
—Nãoháumdessesháquinhentosanos,Rhys—disseAzriel.
—Também não houve um humano que se tornou imortal desde então.—
Rhys me encarou.—Omundo humano deve estar tão preparado quanto nós,
principalmente se o rei de Hybern planeja destruir a muralha e soltar as forças
sobreele.PrecisamosdaoutrametadedoLivrodaquelasrainhasmortais,e,senão
pudermosusarmagiaparainfluenciá-las,então,precisarãotrazerolivroaténós.
Mais silêncio. Na rua além do conjunto de janelas, redemoinhos de neve
esvoaçavam,cobrindoosparalelepípedos.
Rhysinclinouoqueixoemminhadireção.
—Você é uma feérica imortal, comum coração humano.Mesmo como tal,
pode muito bem colocar os pés no continente e ser... caçada por isso. Então,
montaremos uma base em território neutro. Em um lugar no qual os humanos
confiam em nós, confiam em você, Feyre. E onde outros humanos possam se
arriscar a se encontrar comvocê.Para ouvir a voz dePrythian depois de cinco
séculos.
—Apropriedadedeminhafamília—constatei.
— Pelas tetas da Mãe, Rhys — interrompeu Cassian, abrindo as asas o
suficienteparaquasederrubarovasodecerâmicanamesaao lado.—Achaque
podemossimplesmentetomaracasadafamíliadela,exigirissodeles?
Nesthanãoquerianadacomosfeéricos,eElaineratãocarinhosa,tãodoce...
comoeupoderiaarrastá-lasparaaquilo?
—A terra—disseMor,estendendoamãoparacolocarovasodevoltano
lugar — vai ficar vermelha de sangue, Cassian, independentemente do que
faremoscomafamíliadela.Agoraéumaquestãodeondeessesanguevaifluir,e
quantoseráderramado.Equantosanguehumanopodemossalvar.
Etalvezaquilometornasseumatolacovarde,masfalei:
—ACortePrimaverilfazfronteiracomamuralha...
—Amuralhaseestendepelomar.Voaremosatélápelooceano—explicou
Rhys, sem sequer piscar. — Não vou arriscar que nenhuma corte descubra,
emboraasnotíciaspossamseespalharbemrápidodepoisquechegarmos.Seique
nãovai ser fácil,Feyre,mas, sehouveruma formadevocêconseguirconvencer
aquelasrainhas...
—Fareiisso—decidi.OcorpodestruídoepregadodeClareBeddorsurgiu
emminhavisão.Amarantha foraumadesuascomandantes.Apenasuma...entre
muitos.OreideHyberndeviaserinimaginavelmenteterrívelparaserseumestre.
Se aquelaspessoaspusessemasmãosemminhas irmãs...—Elaspodematénão
ficarfelizescomisso,masobrigareiElaineNesthaaajudar.
NãotivecoragemdeperguntaraRhysseelepodiasimplesmenteforçarminha
famíliaaconcordaremajudarcasoserecusassem.Eumepergunteiseospoderes
dofeéricofuncionariamemNesthaquandoatémesmooencantamentodeTamlin
tinhafracassadocontrasuamentedeferro.
— Então está decidido — declarou Rhys. Nenhum deles parecia
particularmente feliz. — Depois que a querida Feyre voltar da Tecelã,
derrubaremosHybern.
Rhys e os demais saíram naquela noite— para onde, ninguém me disse. Mas
depois dos eventos do dia, mal terminei de devorar a comida que Nuala e
Cerridwenlevaramparameuquartoantesdecairnosono.
Sonheicomumossolongoebranco,entalhadocomumaprecisãoapavorante:
meu rosto, retorcido comdor e desespero; a facade freixo emminhamão; uma
poçadesangueescorrendodedoiscadáveres...
Masacordeicomaluzaguadadoalvorecerdoinverno;meuestômagoestava
cheiodanoiteanterior.
Ummerominuto depois de eu recobrar a consciência, Rhys bateu aminha
porta.Maldeiaelepermissãoparaentrarantesquebatesseospésparadentrodo
quartocomoumventodameia-noiteeatirasseumcintocomduasfacasaopéda
cama.
—Rápido—mandou, abrindo as portas do armário e puxando dali meus
trajes de couro.Ele os atirouna cama também.—Queropartir antes queo sol
tenhanascidocompletamente.
—Porquê?—perguntei,empurrandoascobertas.Nenhumaasahoje.
—Porqueotempoéouro.—Rhyspegouminhasmeiaseminhasbotas.—
DepoisqueoreideHybernperceberquealguémestáprocurandopeloLivrodos
Sopros para anular os poderes do Caldeirão, então seus agentes começarão a
procurarpeloLivrotambém.
—Masvocêsuspeitavadissoháumtempo.—Nãotiveraachancedediscutir
aquilocomRhysnanoiteanterior.—OCaldeirão,orei,oLivro...Vocêqueria
quefosseconfirmado,masestavameesperando.
—Setivesseconcordadoemtrabalharcomigohádoismeses,euaterialevado
diretamenteaoEntalhadordeOssosparaverseeleconfirmariaminhassuspeitas
sobreseustalentos.Masascoisasnãoseguiramconformeoplanejado.
Não,certamentenão.
—Aleitura—falei,deslizandoospésparachinelosforradosdelãedesolas
grossas.—Porissoinsistiunasaulas.Paraque,sesuassuspeitasfossemverdadee
eu pudesse usar oLivro... pudesse de fato lê-lo, ou a qualquer tradução do que
querqueestejadentro.—Umlivrotãovelhopoderiamuitobemtersidoescrito
emumalínguacompletamentediferente.Umalfabetodiferente.
—Denovo—falouRhysand,agoracaminhandoatéacômoda—,setivesse
começado a trabalhar comigo, eu teria dito por quê. Não podia arriscar ser
descoberto.—Eleparoucomamãonamaçaneta.—Vocêdeveriateraprendidoa
lerdequalquerforma.Massim,quandoeudissequeserviaameuspropósitos,era
porcausadisso.Vocêmeculpa?
—Não—respondi,e fuisincera.—Masprefirosernotificadadequalquer
tramafutura.
—Anotado.—Rhysabriuasgavetasetirouminharoupaíntimadedentro.
Eleagitouaspeçasderendapretaeriu.—Ficosurpresopornãoterexigidoque
NualaeCerridwencomprassemoutracoisa.
CaminheiatéRhys,batendoospés,earranqueiarendadesuasmãos.
— Está babando no carpete. — Bati a porta do banheiro antes que Rhys
pudesseresponder.
Ele estava esperando quando saí, já aquecida pelo o couro forrado de pele.
Rhysergueuocintodefacas,eobserveioslaçoseasfivelas.
— Nenhuma espada, nenhum arco ou flecha — disse Rhys. Ele usava o
próprio couro de guerra illyriano, com aquela espada simples e brutal presa ao
longodacoluna.
—Masfacasnãotêmproblema?
Rhysseajoelhoueabriuateiadecourodeaçoqueeraocinto,indicandoque
euenfiasseapernaporumdoslaços.
Fizconformeoinstruído,eignoreioroçardasmãosfirmesemminhascoxas
quando passei a perna pelo outro laço, e Rhys começou a amarrar e afivelar as
coisas.
—Elanãovairepararnafaca,poistemfacasnochaléparacomeretrabalhar.
Mas coisas que estão deslocadas, objetos que não estavam lá...Uma espada, um
arcoeumaflecha...Elapodesentiressascoisas.
—Equantoamim?
Rhysapertouumafivela.Eleagoratinhamãosfortesecapazes;tãodiferentes
dos requintesque ele costumavausar a fimdemaravilharo restodomundoeo
convencerdequeeraalgototalmentediferentedoquerealmenteera.
—Nãofaçaumruído,não toqueemnadaalémdoobjetoqueela tomoude
mim.
Rhysergueuorosto,asmãosemminhascoxas.
Curve-se,ordenaraRhyscertavezaTamlin.Eagora,aliestavaele,dejoelhos
diante de mim. Os olhos de Rhys brilharam, como se ele também tivesse se
lembrado.Seráqueaquilofaziapartedojogo—aquelafachada?Ouseráquefoi
vingançapeladisputadesanguehorrívelentreambos?
—Seestivermoscertosarespeitodeseuspoderes—conjecturouRhys.—Se
oEntalhadordeOssosnãoestavamentindoparanós,entãovocêeoobjetoterãoa
mesma...impressão,graçasaosfeitiçosdepreservaçãoquecoloqueinelehámuito
tempo.Vocêsserãoum.Elanãorepararásuapresençacontantoquetoqueapenas o
objeto.Vocêseráinvisívelparaela.
—Écega?
Umaceno.
— Mas os outros sentidos da Tecelã são mortais. Então, seja rápida e
silenciosa. Encontre o objeto e saia correndo, Feyre. — As mãos de Rhys se
detiveramemminhaspernas,envolvendo-asportrás.
—Eserepararemmim?
Asmãosdeleficaramlevementetensas.
—Então,descobriremosexatamenteoquantovocêéhabilidosa.
Desgraçadocrueleardiloso.OlheiparaRhyscomraiva.
Eledeudeombros.
— Prefere que eu a tranque na Casa do Vento e a entupa de comida e a
obrigueausarroupasrequintadaseaplanejarminhasfestas?
—Vá para o inferno. Por que não pega esse objeto você mesmo se é tão
importante?
— Porque a Tecelã me conhece, e, se eu for pego, haverá um preço alto.
Grão-Senhoresnãodevemmexer comela, não importa o quanto a situação seja
grave.HámuitostesourosnapilhadaTecelã,ealgunselaguardahámilênios.A
maioria jamais será recuperada, porque osGrão-Senhores não ousam ser pegos,
graçasàsleisqueaprotegem,graçasàiradela.Qualquerladrãoagindoemnome
deumGrão-Senhor...Ounãoretorna,oujamaiséenviado,pormedodequeseja
rastreadodevoltaaoGrão-Senhorcorrespondente.Masvocê...Elanãoaconhece.
Vocêpertenceatodasascortes.
—Então,sousuacaçadoraeladra?
AsmãosdeRhysdeslizaramparabaixoafimdeapalparapartedetrásdemeus
joelhosquandoelefaloucomumsorrisomalicioso:
—Vocêéminhasalvação,Feyre.
Rhysand nos atravessou para uma floresta mais velha, mais alerta que em
qualquerlugaremqueeutivesseestado.
Asfaiasretorcidasseentrelaçavambempróximasumasdasoutras,manchadas
e cobertas tão completamentedemusgo e líquenque era quase impossível ver a
cascaabaixo.
—Ondeestamos?—Respireifundo,malousandosussurrar.
Rhysmanteveasmãoscasualmenteaoalcancedasarmas.
—NocoraçãodePrythian,háumterritóriograndeevazioquedivideonorte
eosul.Nocentrodeleestánossamontanhasagrada.
Meucoraçãoestavaacelerado,emeconcentreinaspassadasentresamambaias,
musgoseraízes.
— Esta floresta— prosseguiu Rhys— fica na ponta leste desse território
neutro.AquinãoháGrão-Senhor.Aqui,aleiéfeitaporquemémaisforte,mais
cruel,maisardiloso.EaTecelãdaFlorestaestánotopodacadeiaalimentar.
Asárvoresrangeram,emboranãohouvessebrisaparamovê-las.Não,oarali
erasufocanteevelho.
—Amaranthanãoacaboucomeles?
—Amaranthanãoeratola—argumentouRhys,aexpressãosombria.—Ela
nãotocounessascriaturasouperturbouafloresta.Duranteanos,tenteiencontrar
formasdemanipulá-laparaquecometesseesseerrotolo,maselajamaismordeua
isca.
—Eagoranósaestamosperturbando,porumsimplesteste.
Rhysriu,eosomecooupelaspedrascinzentasespalhadaspelaflorestacomose
fossembolasdegude.
—Cassian tentoumeconvencerontemànoiteanão trazervocê.Acheique
fosseatémesocar.
—Porquê?—Eumaloconhecia.
—Quemsabe?Eleprovavelmenteestámaisinteressadoemtreparcomvocê
queemprotegê-la.
—Vocêéumporco.
—Vocêpoderia, sabe...—disseRhys, segurandoogalhodeuma faia fina
paraqueeupassasseporbaixo.—Seprecisasseavançarnorelacionamentoemum
sentidofísico,tenhocertezadequeCassianficariamaisquefelizemajudar.
Pareceuumteste.Emedeixoutãoirritadaquecantarolei:
—Entãodigaaeleparavirameuquartoestanoite.
—Sevocêsobreviveraoteste.
Pareinoaltodeumapequenapedracobertadelíquen.
—Vocêparecefelizcomaideiadequenãosobreviverei.
—Pelocontrário,Feyre.—Rhyscaminhouatéondeeuparei,napedra.Eu
estava quase na altura de seus olhos. A floresta ficou aindamais silenciosa... as
árvorespareciamseaproximar,comoseparaouvircadapalavra.—Informareia
Cassianquevocêestá...abertaaosavançosdele.
— Bom — respondi. Um fragmento de ar, como se fosse vácuo, me
empurrou,algocomoumlampejodenoite.Aquelepoderemmeusossosesangue
seagitouemresposta.
Fizmençãodesaltardapedra,masRhysseguroumeuqueixo;omovimento
foi rápido demais para que eu o detectasse. As palavras pareciam carícias letais
quandoRhysfalou:
—Gostoudemeverajoelhadodiantedevocê?
EusabiaqueRhysconseguiaouvirmeucoraçãoquandoesteacelerouemum
ritmoestrondoso.Deiaeleumsorrisinhoderaiva,libertandooqueixoesaltando
dapedra.PoderiatermiradoospésdeRhys.Eelepoderiatersaídodocaminho
apenasobastanteparaevitarqueeupisasseemseuspés.
—Nãoésóparaissoquevocêsmachosservemmesmo?—Masaspalavras
saíramcontidas,quasesemfôlego.
OsorrisodeRhysemrespostaevocoulençóisdesedaebrisascomcheirode
jasmimàmeia-noite.
Aqueleeraumlimiteperigoso:umnoqualRhysandmeobrigavaacaminhar
paraevitarqueeupensassenoqueestavaprestesaenfrentar,emquantoeuestava
devastadapordentro.
Raiva,aquele...flerte,irritação...Rhyssabiaqueeramminhasmuletas.
Oqueeuestavaprestesaencontrar,então,deviaserrealmenteperturbadorse
elequeriaqueeuentrasseirritada—pensandoemsexo,emqualquercoisamenos
naTecelãdaFloresta.
—Boatentativa—admiti,avozrouca.Rhysandapenasdeudeombrosesaiu
andandocomarrogânciaparaasárvoresadiante.
Canalha.Sim,foraparamedistrair,mas...
Disparei atrás de Rhys o mais silenciosamente possível, determinada a
derrubá-loedarumsocoemsuacoluna,masRhysergueuamãoquandoparou
diantedeumaclareira.
Um pequeno chalé branco com telhado de sapê e uma chaminé quase aos
pedaçosestavanocentro.Comum...quasemortal.Haviaatémesmoumpoço,o
baldeestavaapoiadonabordadepedra,elenhaforaempilhadadebaixodeumadas
janelas do chalé. Nenhum ruído ou luz do lado de dentro; nemmesmo fumaça
subiadachaminé.
Ospoucospássarosnaflorestaficaramemsilêncio.Nãototalmente,maspara
manterocantoaomínimo.E...ali.
Baixo,vindodoladodedentrodochalé,haviaummurmúriobeloeconstante.
Talvezfosseotipodelugarnoqualeuparariacasoestivessecomsedeoucom
fome,ouprecisandodeabrigoparaanoite.
Talvezfosseessaaarmadilha.
Asárvoresaoredordaclareira,tãopróximasqueosgalhosquasearranhavam
otelhadodesapê,podiammuitobemserasbarrasdeumajaula.
Rhysinclinouacabeçanadireçãodochalé,fazendoumareverênciacomuma
graciosidadedramática.
Entrar,sair;nãofazerbarulho.Encontrarqualquerquesejaoobjetoeroubá-lo
debaixodonarizdeumapessoacega.
Eentãocorrercomonunca.
Terra coberta de musgo marcava o caminho até a porta da frente, já
entreaberta.Umpedaçodequeijo.Eeueraoratotoloprestesacairnaarmadilha.
Comosolhosbrilhando,Rhysarticulou,sememitirsom:Boasorte.
Fizumgestovulgarparaelee,devagar,emsilêncio,seguiparaaentrada.
Aflorestapareciamonitorarcadaumdemeuspassos.Quandoolheiparatrás,
Rhyshaviasumido.
Elenãodisseseinterfeririacasoeuestivesseemperigomortal.Provavelmente
deveriaterperguntado.
Evitei folhasepedras,entrandoemumritmodemovimentodoqualalguma
partedemeucorpo—algumapartequenãotinhanascidodosGrão-Senhores—
selembrava.
Eracomoacordar.Eraessaasensação.
Passeipelopoço.Nãohaviaumgrãodeterra,nenhumapedraforadolugar.
Uma armadilha perfeita, linda, avisou aquela parte mortal. Uma armadilha
projetadadeumaépocaemquehumanoserampresos,eque,agora,estavadisposta
paraumtipodejogomaisesperto,imortal.
Eunãoeramaispresa,decidi,aomeaproximarcomcuidadodaquelaporta.
Enãoeraumrato.
Eueraumlobo.
Ouvi sob o portal cuja rocha estava gasta, como se muitas, muitas botas
tivessempassadoporali—etalvezjamaistivessempassadodevolta.Aspalavras
dacançãosetornaramclarasagora,avozeradoceebelacomoaluzdosolemum
córrego:
“Eraumavezduasirmãsquesaíramparabrincar,
Foramverosnaviosdopaipartiremparavelejar...
Equandochegaramàbeiradomar
Amaisvelhacorreuàmaisnovaempurrar.”
Umavozmelífluaparaumamúsicaantigaeterrível.Eujáaouviraantes...um
pouco diferente, mas cantada por humanos ignorantes de que vinha de bocas
feéricas.
Ouvimais ummomento, tentando escutarmais alguém.Mashavia apenaso
clangoreoestampidodealgumtipodeaparelho,eamúsicadaTecelã.
“Àsvezesaafundar,àsvezesanadar,
Atéqueenfim,narepresadomoleiro,ocadáverveioparar.”
Meufôlegoestavapresonopeito,mascontinueirespirandoregularmente—
direcionandooarparaaboca comrespirações silenciosas.Abri aportadevagar,
apenasalgunscentímetros.
Nenhumrangido;nenhumareclamaçãodasdobradiçasenferrujadas.Tratava-
se de outro pedaço da linda armadilha: ela praticamente convidava os ladrões.
Olheiparadentroquandoaportaseabriuosuficiente.
Uma grande sala principal, com uma pequena porta fechada ao fundo.
Prateleiras do chão ao teto cobriam as paredes, cheias de bricabraques: livros,
conchas,bonecas,ervas,cerâmica, sapatos,cristais,mais livros, joias...Dotetoe
dasvigasdemadeira pendiam todo tipode correntes, pássarosmortos, vestidos,
laços,pedaçosdemadeiraretorcidos,cordõesdepérolas...
Umalojadequinquilharias—dealgumaacumuladoraimortal.
Eaquelaacumuladora...
Nasombradochaléhaviaumagranderoca,rachadaedesgastadapelotempo.
Ediantedaquelarocaantiga,decostasparamim,estavaaTecelã.
Os cabelos espessos eram do mais exuberante tom de ônix, descendo em
cascata até a cintura fina conforme ela trabalhavana roca, emãos brancas como
nevealimentavamoaparelhoepuxavamofioaoredordeumfusoafiadocomoum
espinho.
Ela parecia jovem; o vestido cinza era simples, mas elegante, brilhando
levemente à luz fraca da floresta que entrava pelas janelas conforme a mulher
cantavacomumavozquepareciaouroreluzente:
“Eaoesternodela,quefimeledeu?
Fezumaviola,uminstrumentoseu.
Oqueelefezcomosdedostãopequenos?
Feztarraxasparaaviola,nadamenos.”
AfibracomqueaTecelãalimentavaasrodaserabranca—macia.Comolã,
mas...Eusabia,comaquelapartehumanaquemerestava,quenãoeralã.Eusabia
quenãoqueriasaberdequecriaturatinhavindo,quemelatecia.
Porque,naprateleiradiretamenteemfrenteàTecelã,haviaconesemaiscones
defios:detodasascoresetexturas.E,naprateleiraadjacenteaela,haviacarreiras
emetrosdaquelefiotecido—tecido,percebi,noimensotearquaseescondidona
escuridãopróximaàlareira.OteardaTecelã.
Eutinhavindoemdiadefiar;seráqueelaestariacantandoseeutivessevindo
emdia de tecer?Pelo cheiro estranho, encharcado demedo que vinha daqueles
rolosdetecido,eujásabiaaresposta.
Umlobo.Eueraumlobo.
Entreinochalé,atentaaosobjetosespalhadosnochãodeterra.Elacontinuou
trabalhando,arodagirandotãoalegremente,tãodestoantedesuahorrívelmúsica:
“Eoossodonarizdela,quefimlevou?
Paraaviola,umcavaleteeleentalhou.
Ecomasveiastãoazuis,oqueelefez?
Cordasparaaviola,dessavez.”
Observeiasala,tentandonãoouviraletra.
Nada.Senti...nadaquepudessemepuxarnadireçãodeumobjetoemespecial.
Talvez fosseumabençãose,de fato,não fosseeuaquelaaprocuraroLivro... se
aquele dia não fosse o início do que certamente se tornaria uma série de
desventuras.
ATecelãficoucurvadaali,trabalhando.
Verifiqueiasprateleiras,oteto.Tempoemprestado.Euestavausandotempo
emprestado,eeleestavaquaseacabando.
SeráqueRhysmemandaraemumamissãoimpossível?Talveznãohouvesse
nadaali.Talvezesseobjetotivessesidolevado.SeriatípicodeRhysfazerisso.Me
provocaratéqueeufosseparaafloresta,paraverquetipodecoisaspoderiamfazer
meucorporeagir.
E talvez eu me ressentisse de Tamlin o suficiente naquele momento para
aproveitaraqueleflertemortal.Talvezeufossetãomonstruosaquantoafêmeaque
teciadiantedemim.
Mas,seeueraummonstro,entãosupusqueRhystambémofosse.
Rhysand e eu éramos iguais— sem contar o poder que ele me dera. Seria
adequado que Tamlin me odiasse também depois que percebesse que eu tinha
partidodeverdade.
Eusentialgoentão...comoumtapinhanoombro.
Virei,mantendoumolhonaTecelãeooutronasalaconformepercorriacom
osolhosolabirintodemesaseporcarias.Comoumfarol,umtrechodeluzenvolto
nomeiosorriso,oobjetomeatraiu.
Oi,elepareceudizer.Veioporfimmereivindicar?
Sim...sim,euqueriadizer.Mesmoquandopartedemimdesejouquefosseo
contrário.
ATecelãcantavaatrásdemim:
“Quefimdeueleaosolhosdela,tãocintilantes?
Aviolaadornam,brilhantes.
Eaquelalínguatãoáspera,aondefoiparar?
Virouonovoaradoedesatouafalar.”
Seguiaquelapulsação...nadireçãodaprateleiraqueocupavaaparedeaolado
da lareira.Nada.E nada na segunda.Mas na terceira, logo acima da direção de
meusolhos...Ali.
EuquaseconseguiasentirocheirosalgadoecítricodeRhysand.OEntalhador
deOssosestavacerto.
Fiqueinapontadospésparaexaminaraprateleira.Umvelhoabridordecartas,
livros de couroque eunãoqueria tocar ou cheirar; umpunhadode avelãs, uma
coroaembaçadaderubiejaspee...
Umanel.
Um anel de fios entrelaçados de ouro e prata, adornado com pérolas e
encrustadocomumapedradomaisprofundoesólidoazul.Safira...masdiferente.
Eu jamais vira uma safira como aquela, nemmesmonos escritórios demeu pai.
Aquele...Eupodia jurarqueà luzpálida, as linhasdeumaestrelade seispontas
irradiavampelasuperfícieredondaeopaca.
Rhys...aquilotinhaamarcadeRhysand.
Elememandaraatéaliembuscadeumanel?
ATecelãcantava:
“Entãofalouacordaaguda,
Oh,distanteestámeupai,orei.”
ObserveiaTecelãpormaisumsegundo,medindoadistânciaentreaprateleira
e a porta aberta. Se pegasse o anel, eu poderia sair em um segundo. Rápida,
silenciosa,calma.
“Entãofaloudascordasasegunda,
Oh,distanteestáminhamãe,arainha.”
Abaixei a mão na direção de uma das facas presa a minhas coxas. Quando
voltasseparaRhys,talvezoesfaqueassenoestômago.
Comamesmarapidez,alembrançadesangueimagináriocobriuminhasmãos.
EusabiacomoseriacravaraadaganapeleenosossosenacarnedeRhys.Sabia
comoosangueescorreria,comoelegemeriadedor...
Afastei o pensamento, mesmo enquanto sentia o sangue daqueles feéricos
ensopando aquela minha parte humana que não morrera e não pertencia a
ninguém,excetoameueumiserável.
“Entãodastrêscordasoconjuntofalou,
Distanteestáairmãquemeafogou.”
Minhamão se acalmou como um último e agonizante fôlego quando tirei o
aneldaprateleira.
ATecelãparoudecantar.
Congelei, o anel estava agora no bolso demeu casaco.Ela terminara a última
música;talvezcomeçasseoutra.
Talvez.
Arocaficoumaislenta.
Recueiumpassonadireçãodaporta.Depois,outro.
Maisemaisdevagar,cadarotaçãodaantigarocaeramaislongaqueaanterior.
Apenasdezpassosatéaporta.
Cinco.
Arodagirouumaúltimavez,tãodevagarqueconseguivercadaumdosraios
doaro.
Dois.
Vireiparaaportaquandoelaesticousubitamenteamãobranca,segurandoa
rodaeparando-adevez.
Aportadiantedemimsefechoucomumclique.
Dispareiparaamaçaneta,masnãohaviamaçaneta.
Janela.Váatéajanela...
—Quemestáemminhacasa?—disseaTecelã,baixinho.
Medo—medo bruto e total— se chocou contramim, e lembrei. Lembrei
como era ser humana e indefesa e fraca.Lembrei de como era querer lutar para
sobreviver,estardispostaafazerqualquercoisaparacontinuarrespirando...
Chegueiàjanelaaoladodaporta.Selada.Nenhumtrinco,nenhumaabertura.
Apenasvidroquenãoeravidro.Sólidoeimpenetrável.
ATecelãvirouorostoemminhadireção.
Lobo ou rato, não fazia diferença, porque eu não passava de um animal,
avaliandominhachancedesobreviver.
Sobreocorpojovemeesguio,soboscabelospretos lindos,apeledaTecelã
era cinzenta— enrugada e flácida e seca. E onde olhos deveriam brilhar havia
pútridosburacospretos.Oslábiostinhammurchadoeviradonadaalémdelinhas
profundas e escuras ao redor de um buraco cheio de cotocos pontiagudos de
dentes...comoseaTecelãtivessemastigadoossosdemais.
Esoubequeelamastigariameusossosseeunãosaísse.
OnarizdaTecelã—talvezumdiativessesidobonito,agoraestavaafundando
norosto—sedilatouquandoelafarejouemminhadireção.
—Oquevocêé?—perguntouaTecelã,comumavozmuitojovememeiga.
Sair...sair,euprecisavasair...
Haviaoutrocaminho.
Umcaminhosuicidaeinconsequente.
Nãoqueriamorrer.
Nãoqueriaserdevorada.
Nãoqueriaentrarnaqueladoceescuridão.
ATecelãselevantoudobanquinho.
Eeusoubequemeutempoemprestadotinhaacabado.
—Oqueécomotodos—ponderouaTecelã,dandoumpassograciosoem
minhadireção—,masédiferentedetodos?
Eueraumlobo.
Emordiaquandoencurralada.
Dispareiparaaúnicavelaquequeimavasobreamesanocentrodasala.Ea
atireicontraaparededefiostecidos—contratodosaquelesrolosdeprimentese
sombriosdetecido.Corpostecidos,peles,vidas.Queselibertassem.
Fogoirrompeu,eogritodaTecelãfoitãocortantequeacheiqueminhacabeça
poderiasedespedaçar;acheiquemeusanguepoderiafervernasveias.
ATecelã disparou para as chamas, como se pudesse apagá-las com aquelas
impecáveismãosbrancas,eabocadedentespútridosestavaabertaegritavacomo
senãohouvessenadaalémdeinfernonegrodentrodesi.
Dispareiparaalareiraapagada.Paraalareiraeachaminéacima.
Espaçoapertado,maslargoobastanteparamim.
Nãohesiteiquandosegureiabordadalareiraemeimpulsioneiparacima,com
os braços trêmulos. Força imortal: ela sóme levava até certo ponto, e eu tinha
ficadotãofraca,tãodesnutrida.
Tinhadeixado que elesme tornassem fraca.Cedera àquilo como um cavalo
selvagemperfeitamentedomado.
Os tijolosmanchados de fuligem estavam soltos, eram irregulares. Perfeitos
parasubir.
Maisrápido;euprecisavasermaisrápida.
Masmeusombrossearranhavamnostijolos,efediaalidentro,comocarniçae
cabeloqueimado,ehaviaumacamadadeóleonapedra,talgorduracozida...
Os gritos da Tecelã foram interrompidos quando eu estava na metade da
chaminé,a luzdosoleasárvoreseramquasevisíveis,cada fôlegoeraquaseum
soluço.
Levei a mão ao tijolo seguinte, e as unhas se quebraram quando me
impulsioneitãoviolentamentequemeusbraçosurraramemprotestocontraapedra
queseespremiaaomeuredore...
Euestavaentalada.
EntaladaenquantoaTecelãsibilavadedentrodacasa:
—Queratinhoestásubindominhachaminé?
Eutinhaespaçoosuficienteparaabaixaroolharconformeorostopútridoda
Tecelãsurgiunabasedachaminé.
Elacolocouaquelamãobranco-leitosanaborda,epercebicomooespaçoentre
nóserapequeno.
Minhacabeçaseesvaziou.
Fizforçacontraachaminé,maselanãocedeu.
Eu morreria ali. Seria arrastada para baixo por aquelas lindas mãos e
destroçadaedevorada.Talvezenquantoaindaestivesseviva,elacolocariaaquela
bocahorrívelemminhacarneemastigariaerasgariaemorderiae...
Pânico sombriome sufocou, e eu estava, denovo, presa sobumamontanha
próxima,emumatrincheiraenlameada,oVermedeMiddengarddisparavacontra
mim.Eumalescapei,mal...
Nãoconseguiarespirar,nãoconseguiarespirar,nãoconseguiarespirar...
AsunhasdaTecelã roçaramcontrao tijoloconformeeladeuumpassopara
cima.
Não,não,não,não,não...
Chuteieesperneeicontraostijolos.
—Achouquepoderiaroubarefugir,ladrão?
Eu teria preferido o Middengard. Teria preferido aqueles dentes imensos e
afiadosaoscotocosirregularesdaTecelã...
Pare.
Apalavraveiodaescuridãodeminhamente.
Eavozeraminha.
Pare,disseela—eudisse.
Respire.
Pense.
ATecelãseaproximou,tijolossedesfizeramemsuasmãos.Elasubiriacomo
umaaranha,comoseeufosseumamoscanateia...
Pare.
Eaquelapalavracaloutudo.
Euadissesempronunciar.
Pare,pare,pare.
Pense.
EutinhasobrevividoaoVerme—sobrevividoaAmarantha.Etinharecebido
dons.Donsconsideráveis.
Comoforça.
Eueraforte.
Golpeeicomamãoaparededachaminé,omaisbaixoquealcancei.ATecelã
sibilouquandoosdestroçosdesceramcomochuva.Golpeeicomopunhodenovo,
concentrandoaquelaforça.
Eunãoeraumbichodeestimação,nãoeraumaboneca,nãoeraumanimal.
Eraumasobreviventeeeraforte.
Não seria frágil ou indefesa de novo. Não seria, não poderia ser destruída.
Domada.
Baticomopunhonostijolosdiversasvezes,eaTecelãparou.
Parou por tempo bastante para que o tijolo que eu tinha soltado deslizasse
livrementeparaapalmademinhamãoexpectante.
E para que eu atirasse o tijolo contra o rosto horrível e assustador com o
máximodeforçaqueconsegui.
Osso foi esmagado, e aTecelã rugiu, sangue negro jorrou.Mas choquei os
ombroscontraas lateraisdachaminéeapele rasgousobminharoupadecouro.
Continueiemfrente,adianteeadiante,atéqueeufossepedraquebrandopedra,até
quenadaeninguémmesegurasseeeuestivesseescalandoachaminé.
Nãoouseiparar,nãoquandocheguei à aberturaeme impulsioneipara fora,
caindoàscambalhotasnotelhadodesapê.Quenãoeradesapê,demodoalgum.
Eradecabelo.
Ecomtodaaquelagorduraquecobriaachaminé...todaaquelagorduraagora
reluzindoemminhapele...oscabelosgrudaramemmim.Empunhadosemechase
tufos.Bilesubiuemminhagarganta,masaportadafrenteseescancaroueumgrito
seseguiu.
Não—poralinão.Nãoparaochão.
Paracima,paracimaeparacima.
Um galho de árvore pendia baixo e próximo, e corri com dificuldade por
aquele telhado horroroso, tentando não pensar em quem e no que eu estava
pisando, o que se agarrava aminhapele, aminhas roupas.Um segundodepois,
salteiparaogalhoquemeesperava,meagarrandoàsfolhaseaomusgoconformea
Tecelãgritava:
—ONDEVOCÊESTÁ?
Maseuestavacorrendopelaárvore;correndoatéoutraárvorepróxima.Saltei
de galho em galho, mãos expostas se arranhando na madeira. Onde estava
Rhysand?
Para mais e mais longe eu disparei, e os gritos da Tecelã me perseguiam,
emboraficassemcadavezmaisdistantes.
Ondevocêestá,ondevocêestá,ondevocêestá...
Então, acomodado em um galho na árvore diante de mim, com um braço
jogadosobreabeirada,Rhysanddisse,comvozarrastada:
—Quediabosvocêfez?
Parei subitamente, sem fôlego. Achei que meus pulmões pudessem mesmo
estarsangrando.
—Você—sibilei.
MasRhysergueuumdedoaoslábioseatravessouatémim;elepegouminha
cintura com uma das mãos e apoiou minha nuca na outra quando nos levou
embora...
ParaVelaris.ParalogoacimadaCasadoVento.
Descemos em queda livre, e não tive fôlego para gritar conforme suas asas
apareceram, estendendo-se, eRhysand fez uma curva, deslizando com firmeza...
passando direto pelas janelas abertas do que só podia ser uma sala de guerra.
Cassianestavaali,nomeiodeumadiscussãocomAmrensobrealgumacoisa.
Osdoiscongelaramquandopousamosnopisovermelho.
Haviaumespelhonaparedeatrásdosdois,emeolheiderelance,obastante
parasaberporqueosdoisestavamboquiabertos.
Meurostoestavaarranhadoeensanguentado,eeu,cobertadepoeiraegordura
—gorduracozida—epódeargamassa,comoscabelosgrudadospelocorpo,eeu
cheirava...
— Você tem cheiro de churrasco— constatou Amren, encolhendo-se um
pouco.
Cassianafrouxouamãocomqueenvolveraafacadelutanacoxa.
Eu ainda estava ofegante, ainda tentava tomar fôlego. Os cabelos que se
grudavamemmimarranhavamefaziamcócegase...
—Vocêamatou?—perguntouCassian.
—Não—respondeuRhyspormim,recolhendoasasas tranquilamente.—
MasconsiderandooquantoaTecelãestavagritando,estoudoidoparasaberoque
aqueridaFeyrefez.
Gordura;euestavacomgorduraecabelodegenteemmim...
Vomiteiportodoochão.
Cassian xingou, mas Amren gesticulou com a mão e o vômito sumiu
imediatamente... juntodasujeiraemmim.Maseuconseguiasentirofantasmada
Tecelãali,osresquíciosdepessoas,aargamassadaquelestijolos...
—Ela...medetectoude alguma forma.—Eu consegui dizer, apoiando-me
contra a grande mesa e limpando a boca no ombro das vestes de couro.— E
trancouasportaseasjanelas.Então,preciseiescalarpelachaminé.Fiqueientalada
—acrescentei,quandoCassianergueuas sobrancelhas.—E,quandoela tentou
subir,eulhejogueiumtijolonacara.
Silêncio.
AmrenolhouparaRhysand.
—Eondeestavavocê?
—Esperando,longeobastanteparaqueelanãomedetectasse.
Grunhiparaele.
—Euprecisavadeumaajuda.
—Vocêsobreviveu—disseRhys.—Eencontrouumaformadesesalvar.—
Pelobrilhoseveronosolhos,eusoubequeRhysand tinhaciênciadopânicoque
quase me matou, fosse pelos escudos mentais que esqueci de erguer, ou por
qualquerquefosseaanomaliaemnossolaço.Eletomouciência...edeixouqueeu
osentisse.
Porque aquilo quase tinhamematado, e eu não seria útil aRhysand se isso
acontecessequando importassedeverdade... comoLivro.Exatamente comoele
dissera.
—Eraesseoobjetivo—disparei.—Nãoapenasesseanelidiota.—Leveia
mão ao bolso e bati com o anel namesa.—Ouminhas habilidades, mas se eu
conseguiriacontrolaropânico.
Cassianxingoudenovo,osolhosfixosnaqueleanel.
Amrensacudiuacabeça,ecamadasdecabelospretosseagitaram.
—Cruel,maseficiente.
Rhysapenasdisse:
—Agoravocêsabe.Quepodeusarsuashabilidadesparacaçarnossosobjetos
e,assim,encontraroLivronaCorteEstivalesecuidar.
—Vocêédesprezível,Rhysand—disseCassian,baixinho.
Rhysapenasrecolheuasasascomumruídogracioso.
—Vocêfariaomesmo.
Cassiandeudeombros,comosedissessequesim,faria.
Olheiparaminhasmãos,minhasunhasestavamensanguentadasequebradas.
EfaleiparaCassian:
—Quero queme ensine... a lutar. Para ficar forte. Se a oferta para treinar
aindaestiverdepé.
CassianergueuassobrancelhasenãosedeuotrabalhodeolharparaRhysem
buscadeaprovação.
—Vaime chamar de desprezível bem rápido se treinarmos.E não sei nada
sobretreinarhumanos,nãoseioquãofrágeisseuscorpossão.Eram,querodizer
—acrescentouCassian,encolhendoocorpo.—Vamosdescobrir.
—Nãoqueroqueminhaúnicaopçãosejafugir—falei.
—Correr—interrompeuAmren—amantevevivahoje.
Euaignorei.
— Quero saber como lutar para escapar. Não quero precisar esperar que
ninguémmeresgate.—EncareiRhysecruzeiosbraços.—Bem?Proveiminha
capacidade?
MasRhysandapenaspegouoaneleacenoucomacabeçaemagradecimento.
—Eraoaneldeminhamãe.—Comoseaquilofossetodaaexplicaçãoetodas
asrespostasqueelemedevia.
—Comooperdeu?—indaguei.
— Não perdi. Minha mãe me deu para guardar; depois, tomou-o de volta
quandochegueiàmaturidade,edeuàTecelãparaqueoguardasse.
—Porquê?
—Paraqueeunãoodesperdiçasse.
Incoerênciaseidioticese...euqueriaumbanho.Queriasilêncioeumbanho.A
necessidadedessascoisasmeatingiucomtantaforçaquemeusjoelhoscederam.
MalolheiparaRhysantesqueele segurasseminhamão,estendesseasasase
disparassevoandocomigopelas janelas.Descemosemqueda livredurantecinco
estrondosas e selvagens batidas de meu coração antes de Rhysand atravessar
comigoatémeuquarto,nacasadacidade.Umbanhoquentejáestavapreparado.
Cambaleeiatéele,eexaustãomeatingiucomoumgolpefísicoquandoRhysfalou:
—Equantoatreinarseusoutros...dons?
Atravésdovaporquesubiadabanheira,falei:
—Achoquevocêeeunosdestruiríamos.
—Ah,nóscomcertezanosdestruiremos.—Rhysandseencostouàportado
banheiro.—Masnãoseriadivertidodeoutraforma.Considerenossotreinamento
agoraoficialmentepartedesuasobrigaçõesdetrabalhocomigo.—Umgestocom
oqueixo.—Váemfrente...tentepassarpormeusescudos.
Eusabiadequaiselefalava.
—Estoucansada.Obanhovaiesfriar.
—Prometoqueestarátãoquentequantoagoraemalgunsmomentos.Ou,se
vocêdominouseusdons,podeconseguircuidardissosozinha.
Franzi a testa,masdei umpassonadireçãodeRhysand, e depois, outro—
obrigando-acederumpasso,dois,paradentrodobanheiro.Agorduraeocabelo
agoraimagináriosseagarravamamim,melembravamdoqueRhyshaviafeito...
Euoencarei,aquelesolhosvioletabrilhavam.
—Vocêsente,nãoé?—falouRhysand,porcimadocantoedogorjeiodos
pássaros do jardim.— Seu poder, espreitando sob a pele, ronronando em seu
ouvido.
—Edaíseeusentir?
Umgestodeombros.
—EstousurpresoporIanthenãocortarvocêemumaltarparavercomoéesse
poderpordentro.
—Qual,precisamente,éseuproblemacomela?
—AchoqueasGrã-Sacerdotisas sãoumaperversãodoqueumdia foram...
umdiaprometeramser.Iantheestáentreaspiores.
Umnóserevirouemmeuestômago.
—Porquedizisso?
—Passepormeusescudosemostrareiavocê.
Então,aquiloexplicavaamudançadeassunto.Umaprovocação.Isca.
Encarar Rhys... Eu me permiti cair naquilo. Permiti imaginar aquela linha
entrenós:umpoucodeluzentrelaçada...Ealiestavaseuescudomental,naoutra
pontado laço.Negroe sólidoe impenetrável.Não tinha comoentrar.Comoeu
tinhadeslizadoporeleantes...Nãofaziaideia.
—Jácanseidetestesporhoje.
Rhyspercorreuos60centímetrosentrenós.
—AsGrã-Sacerdotisasseentocaramemalgumascortes:Crepuscular,Diurna
eInvernal,principalmente.Elasseentrincheiraramtantoqueseusespiõesestãopor
todaparte,osseguidoressãoquasefanáticoscomdevoção.Mesmoassim,durante
aqueles cinquenta anos, elas fugiram. Permaneceram escondidas. Eu não ficaria
surpresoseIanthetentasseseassentarnaCortePrimaveril.
—Estáquerendomedizerquesãotodasvilãsdecoraçãosombrio?
—Não.Algumas,sim.Algumastêmcompaixão,sãoaltruístasesábias.Mashá
aquelas que são apenas hipócritas... Embora sejam essas aquelas que sempre
parecemasmaisperigosasparamim.
—EIanthe?
UmafaíscasábianosolhosdeRhys.
Ele realmente não me contaria. Seguraria aquilo diante de mim como um
pedaçodecarne...
Disparei.Àscegas,selvagemente,maslanceiopoderatodaporaquelalinha
entrenós.
E gritei quando ele se chocou contra os escudos interiores de Rhysand,
reverberandodentrodemim, como se eu tivesseme chocado fisicamente contra
algo.
Rhysriu,eeuvifaíscas.
—Admirável...descuidada,masumesforçoadmirável.
Umpoucoofegante,eufervilhava.
Maseledisse:
—Apenas como teste...—Epegouminhamão.O laço ficou tenso, aquela
coisasobminhapelepulsavae...
Havia escuridão e a sensação colossal de Rhysand do outro lado de sua
barricadamentaldepretoadamantino.Aqueleescudoseestendiaeternamente,o
produto de meio milênio sendo caçado, atacado, odiado. Rocei a mão,
mentalmente,contraaquelamuralha.
Como um felino das montanhas arqueando-se ao toque, a muralha pareceu
ronronar...e,então,relaxouaguarda.
AmentedeRhysseabriuparamim.Umaantecâmara,aomenos.Umúnico
espaçoqueeleabrira,paramedeixarver...
Umquartoentalhadodeobsidiana;umacamaimensacomlençóisdeébano,grande
obastanteparaacomodarasas.
Esobreela,deitadacomnadaalémdaprópriapele,estavaIanthe.
Recuei,percebendoqueeraumamemóriaequeIantheestavanacamadele,na
cortedelesobaquelamontanha,osseiosfartosfirmescontraofrio...
—Temmais—disseavozdeRhys,delonge,conformeeumedebatiapara
me afastar. Mas minha mente se chocou contra o escudo, o outro lado deste.
Rhysandtinhameprendidoládentro...
—Vocêmedeixouesperando—reclamouIanthe.
Asensaçãodemadeiraduraentalhada,pressionadacontraminhascostas—contra
ascostasdeRhysand—conformeeleseinclinoucontraaportadoquarto.
—Saia.
Ianthefezumbiquinho,dobrouojoelhoeabriumaisaspernas,oferecendo-seaele.
—Euvejocomomeolha,Grão-Senhor.
—Vocêvêoquequerver—disseele,ounós.AportaseabriuaoladodeRhys.—
Saia.
Oslábiosdasacerdotisasecontraíramtimidamente.
—Soubequegostadebrincadeiras.—AmãoesguiadeIanthedesceu,tracejando
a pele além do umbigo. — Acho que vai perceber que sou uma companheira de
brincadeirasinteressante.
Ira gélida tomou conta de mim— dele— quando Rhys debateu os méritos de
estatelarIanthecontraasparedes,eoquantoissoseriainconveniente.Elaoencurralava
incessantemente—perseguiaosoutrosmachostambém.Azrielseforananoiteanterior
porcausadisso.EMorestavaaumcomentáriodepartiropescoçodeIanthe.
—Acheiquesualealdadeestivessecomoutrascortes.—AvozdeRhysanderatão
fria.AvozdoGrão-Senhor.
—Minha lealdade está como futurodePrythian, como verdadeiro poder nesta
terra.—Osdedosdeslizaramentreaspernasepararam.OarquejodeIanthepareceu
partiroquartoquandoRhysandlançouumagavinhadepoderemdisparadacontraela,
prendendoaquelebraçonacama,longedocorpodela.—Sabeoqueumauniãoentre
nós poderia fazer por Prythian, pelomundo?— perguntou Ianthe, ainda devorando
Rhyscomosolhos.
—Querdizerparavocêmesma.
—NossosfilhospoderiamdominarPrythian.
UmadiversãocruelpercorreuRhysand.
—Entãoquerminhacoroa...equeeubanqueoreprodutor?
Elatentoucontorcerocorpo,masopoderdeRhysaconteve.
—Nãovejomaisninguémdignodaposição.
Iantheseriaumproblema—agoraemaistarde.Rhyssabiadisso.Mate-aagora,
acabe comaameaçaantes que comece, encarea iradeoutrasGrã-Sacerdotisas,ou...
vejaoqueacontece.
—Saiademinhacama.Saiademeuquarto.Esaiademinhacorte.
EleafrouxouopoderparapermitirqueIantheofizesse.
Osolhosdafeéricaficarammaissombrios,eIantheficoudepécomummovimento
viperino, sem se incomodar com as roupas, jogadas sobre a poltrona preferida de
Rhysand. Cada passo na direção dele fazia com que os generosos seios de Ianthe
oscilassem.Elaparouaquase30centímetros.
—Vocênãofazideiadoquepossofazercomquesinta,Grão-Senhor.
IantheestendeuamãoparaRhys,bementreaspernasdele.
O poder de Rhysand se prendeu ao redor dos dedos de Ianthe antes que ela
conseguisseagarrá-lo.
Eleesmagouofeixedepoder,girando-o.
Ianthegritou.Elatentourecuar,masopoderdeRhyscongelouasacerdotisaonde
estava; tanto poder, tão facilmente controlado, acumulando-se ao redor de Ianthe,
contemplandoseacabariacomsuaexistência,comoumavíboraobservandoumrato.
RhysseaproximouparasussurraraoouvidodeIanthe:
—Nuncamaismetoque.Nuncamaistoqueemoutromachodeminhacorte.—O
poderdeRhyspartiuossosetendões,eIanthegritoudenovo.—Suamãovaisecurar
— disse Rhysand, recuando um passo. — Da próxima vez que tocar em mim ou
qualquerumemminhas terras,vaidescobrirqueo restantedevocênão teráamesma
sorte.
Lágrimasdedorescorrerampelorostodafêmea,eoefeitofoianuladopeloódioque
iluminavaseusolhos.
—Vaisearrependerdisso—sibilouIanthe.
Rhysand riu baixinho, a risada de um amante, e um lampejo de poder atirou
Ianthe,debundanochão,nocorredor.Asroupasseguiramumsegundodepois.Então,a
portabateu.
Como tesouras cortando um laço esticado, a memória foi partida, o escudo
atrásdemimcaiu,ecambaleeiparatrás,piscando.
—Regraum—disseRhys,osolhosbrilhavamcomoódioàquelalembrança.
—Nãoentrenamentedealguémanãoserquemantenhaocaminhoaberto.Um
daemati pode deixar a mente se abrir para você, e então a fechar dentro dela,
transformá-laemescrava.
Umcalafriopercorreuminhaespinhaquandopenseinisso.MasoqueRhysme
mostrara...
—Regradois—disseele,comorostoseverocomopedra.—Quando...
—Quandofoi isso?—disparei.EuconheciaRhysbemobastanteparanão
duvidardaveracidade.—Quandoissoaconteceuentrevocês?
Ogelopermaneciaemseusolhos.
—Hácemanos.NaCortedosPesadelos.Permitiqueelavisitassedepoisde
implorarduranteanos,insistindoquequeriaformarlaçosentreaCorteNoturnae
assacerdotisas.EuouviraboatossobreanaturezadeIanthe,maselaerajoveme
inexperiente,eesperavaquetalvezumanovaGrã-Sacerdotisapudesse,defato,ser
amudançadequeaordemprecisava.Pelovisto, Ianthe já tinha sidomuitobem
treinadaporalgumasdasirmãsmenosbenevolentes.
Engoliemseco,meucoraçãobatiaforte.
—Ela...elanãoagiuassimna...
Lucien.
Lucienaodiara.Fizeraalusõesvagasecruéissobrenãogostardela,sobreter
sidoabordadoporela...
Eu iavomitar.Seráqueela... seráqueoperseguiradaquelaforma?Seráque
ele...seráqueforaforçadoadizerquesimporcausadaposiçãodeIanthe?
EseeuvoltasseparaaCortePrimaverilumdia...Comoconseguiriaconvencer
Tamlinadispensá-la?Ese,agoraqueeutinhapartido,elaestivesse...
—Regradois—continuouRhys,porfim.—Estejaprontaparavercoisasde
quepodenãogostar.
Apenas cinquenta anos depois, Amarantha viera. E fizera com Rhys
exatamente aquilo por que ele quisera matar Ianthe. E ele permitiu que
acontecesse.Paramantê-losseguros.ParaprotegerAzrieleCassiandospesadelos
que o perseguiriam para sempre, de aturarem mais dor do que haviam sofrido
quandocrianças...
Erguiacabeçaparaperguntarmais.Porém,Rhyssumira.
Sozinha, tireias roupas, lutandocontraas fivelaseos laçosqueeleprendera
emmim—quandofora?Umahoraouduasantes?
Senticomoseumavidativessesepassado.Eagoraeueraumarastreadorade
Livrodiplomada,aoqueparecia.
Melhor que uma esposa anfitriã de festas e geradora de pequenos Grão-
Senhores.OqueIanthequeriametornar...paraservirquaisquerquefossemsuas
motivaçõessecretas.
Obanhoestavamesmoquente,conformeRhysprometera.Eremoíoqueele
tinhamemostrado,viaquelamãodiversasvezesseestendernadireçãodaspernas
deRhys,aousadiaeaarrogânciadogesto...
Afasteialembrança,eaáguadabanheiraficousubitamentefria.
Namanhãseguinte,aindanãohaviamchegadonotíciasdaCorteEstival;então,
Rhysandcumpriucomadecisãodenoslevaraoreinomortal.
—Oqueseusa,exatamente,nasterrashumanas?—perguntouMor,deonde
estavajogadaaopédeminhacama.Paraalguémquealegavatersaídoparabebere
dançaratésabiaaMãequando,elapareciainjustamenteanimada.CassianeAzriel,
resmungando e se encolhendo durante o café da manhã, pareciam ter sido
atropelados por carruagens. Repetidas vezes. Alguma pequena parte de mim se
perguntoucomoseriasaircomeles;veroqueVelarispoderiaoferecerànoite.
Vasculheiasroupasemmeuarmário.
—Camadas—respondi.—Eles...cobremtudo.Odecotepodeserumpouco
ousadodependendodoevento,mas...todoorestoéescondidosobsaiaseanáguas
ebobagens.
—Parecequeasmulheresestãoacostumadasanãoprecisarcorrer,oulutar.
Nãomelembrodeserdessaformaháquinhentosanos.
Parei em um conjunto turquesa com detalhes dourados: elegante, alegre,
majestoso.
— Mesmo com a muralha, a ameaça da invasão de feéricos permaneceu,
então... certamente roupas práticas teriam sido necessárias para fugir, para lutar
contra qualquer umque atravessasse. Imagino o quemudou.—Peguei a blusa
comacalçaparaaprovaçãodela.
Mor apenas assentiu— sem comentar, como Ianthe poderia ter feito, sem
intervençãobeatífica.
Afastei essepensamentoe a lembrançadoqueela tentara fazer comRhys, e
continuei:
—Hojeemdia,amaioriadasmulheressecasa,temfilhose,então,planejao
casamentodosfilhos.Algumasdaspobrespodemtrabalharnoscampos,ealgumas
poucas são mercenárias ou soldados de aluguel, mas... quanto mais ricas, mais
restritos se tornam a liberdade e o papel delas. Era de se pensar que dinheiro
comprariaahabilidadedefazeroquesequisesse.
— Alguns dos Grão-Feéricos — argumentou Mor, puxando um fio do
bordadodeminhacama—sãoassim.
Passeiparatrásdobiomboparatiraroroupãoquevestiramomentosantesde
elaentrarparamefazercompanhiaenquantomepreparavaparanossajornadado
dia.
—NaCorte dosPesadelos—continuouMor, aquela voz ficoubaixa e um
pouco fria mais uma vez — fêmeas são... um prêmio. Nossa virgindade é
preservadae,depois,vendidaaolancemaisalto,qualquerquesejaomachoquedê
maisvantagemanossasfamílias.
Continueimevestindo,apenasparamedaralgoafazerenquantoohorrordo
queeucomeçavaasuspeitarpercorriameusossosemeusangue.
—Eunascimaisfortequequalquerumemminhafamília.Mesmoosmachos.
E não podia esconder, porque eles sentiam o cheiro, damesma forma que você
consegue sentiro cheirodoherdeirodeumGrão-Senhorantesde ele chegar ao
poder.Opoder deixaumamarca, um... eco.Quando eu tinha 12 anos, antes de
sangrar,rezavaparaqueissoquisessedizerquenenhummachomeaceitariacomo
esposa,queeuescapariadaquiloqueminhasprimasmaisvelhastinhamsuportado:
casamentossemamor,àsvezes,violentos.
Vestiablusaporcimadacabeçaeabotoeiospunhosdeveludoantesdeajustar
asesvoaçantesmangasturquesanolugar.
—Masentãocomeceiasangraralgunsdiasdepoisdefazer17anos.Eassim
que meu primeiro sangue desceu, meu poder despertou com força total, e até
mesmoaquelamontanhamaldita tremeuaonossoredor.Mas,emvezdeficarem
horrorizadas,todasasfamíliaspoderosasdaCidadeEntalhadameviramcomouma
éguapremiada.Viramaquelepoderequiseramquefosseprocriadonasrespectivas
linhagens,diversasvezes.
—E seuspais?—Conseguidizer, colocandoospésnos sapatos azulmeia-
noite.Deveriaserofimdoinvernonasterrasmortais,amaioriadossapatosseria
inútil.Naverdade,oconjuntoqueeuusavaseriainútil,excetoenquantoeuficasse
doladodefora,encasacada.
—Minha família ficou exultante de alegria. Poderiam escolher uma aliança
comqualquerdasoutrasfamíliasgovernantes.Minhassúplicasporumaopiniãono
assuntonãoforamouvidas.
Morescapara,lembreiamimmesma.Morescaparaeagoraviviacompessoas
queseimportavamcomela,queaamavam.
—Orestodahistória—disseMor,quandosaídetrásdobiombo—élongoe
terrível, e contarei outra hora. Vim aqui dizer que não vou com você... para o
mundomortal.
—Pelomodocomotratammulheres?
Osintensosolhoscastanhosestavambrilhantes,mascalmos.
—Quando as rainhas vierem, estarei lá.Quero ver se reconheço algum de
meus amigos mortos há tanto tempo em seus rostos. Mas... não acho que eu
conseguiria...mecomportarcomnenhumadasoutras.
—Rhysdisseavocêquenãofosse?—perguntei,tensa.
—Não—respondeuMor,rindocomescárnio.—Eletentoumeconvencera
ir,naverdade.Dissequeeuestavasendoridícula.MasCassian....eleentende.Nós
doisconvencemosRhysontemànoite.
Minhas sobrancelhas se ergueram levemente. Por isso tinham saído e se
embebedado,semdúvida.ParamanipularoGrão-Senhorpormeiodoálcool.
Mordeudeombrosparaaperguntanãoformuladaemmeusolhos.
— Cassian ajudou Rhys a me salvar. Antes que qualquer um deles tivesse
posição hierárquica para fazê-lo. Para Rhys, ser pego daria em uma pequena
punição, talvez umpouco de isolamento social.MasCassian... ele arriscou tudo
parasecertificardequeeuficasselongedaquelacorte.Eeleridisso,masacredita
queéumbastardonascidoemposiçãoinferior,quenãoédignodapatenteouda
vidaquetemaqui.Nãofazideiadequevalemaisquequalqueroutromachoque
eutenhaconhecidonaquelacorte,eforadela.EleeAzriel,querodizer.
Sim. Azriel, que semantinha afastado, cujas sombras o seguiam e pareciam
sumirnapresençadeMor.Abri abocaparaperguntar a respeitode suahistória
comele,masorelógiosoou10horas.Horadepartir.
Meuscabelosforamarrumadosantesdocafédamanhãemumacoroatrançada
noaltodacabeça,comumpequenodiademadeouro—decoradocomlápis-lazúli.
Brincoscombinandopendiamtãobaixoquetocavamaslateraisdemeupescoço,e
peguei as pulseiras de ouro retorcido que haviam sido deixadas na cômoda,
colocandoumaemcadapulso.
Mornãofezcomentários...eeusabiaque,senãovestissenadaalémderoupa
íntima,elateriameditoqueausassecomautoridade.VireiparaMor.
—Gostariaqueminhasirmãsaconhecessem.Talveznãohoje.Mas,sealgum
diativervontade...
Elainclinouacabeça.
Esfregueianuca.
—Queroqueouçamsuahistória.E saibamqueháuma força especial...—
Conforme falei, percebi que precisava ouvir, conhecê-la também.—Uma força
especial é necessária para suportar tais provações sombrias e dificuldades... E
permanecerbenevolenteegentil.Aindadispostaaconfiar...easeaproximardos
outros.
AbocadeMorsecontraiu,eelapiscoualgumasvezes.
Fuiatéaporta,maspareicomamãonamaçaneta.
— Desculpe se não fui tão acolhedora com você quanto você foi comigo
quandochegueiàCorteNoturna.Euestava...estou tentandoaprendercomome
ajustar.
Umaformapatéticaepoucoarticuladadeexplicarcomoeuestavadestruída.
MasMorsaiudacama,abriuaportaparamimefalou:
—Hádiasbonseruinsparamim...mesmoagora.Nãodeixequeosdiasruins
vençam.
Aquele,aoquetudoindicava,seria,defato,maisumdiaruim.
Com Rhys, Cassian e Azriel prontos para partir — Amren e Mor
permaneceriam em Velaris para governar a cidade e planejar nossa inevitável
viagematéHybern—,sómerestouumaescolha:comquemvoar.
Rhys nos atravessaria para fora da costa, bem na linha invisível em que a
muralhadividianossomuro.Haviaumafendanamagia,acercade700metrosda
praia...pelaqualvoaríamos.
Mas parada naquele corredor, todos em roupas de couro de guerra e eu
enroscadaemumcasacopesadocomforrodepele,olheiumavezparaRhysesenti
aquelasmãosnascoxasdenovo.Senticomotinhasidoolhardentrodesuamente,
sentir o ódio frio de Rhys, sentir Rhys... se defender, defender seu povo, os
amigos, usandoopoder e asmáscaras em seu arsenal.Rhysandvira e suportara
coisastão...tãoinomináveis,e,noentanto...asmãosdeleemminhascoxaseram
suaves,otoqueeracomo...
Nãomedeixeiterminaropensamentoquandofalei:
—VouvoarcomAzriel.
AsexpressõesdeRhyseCassianinsinuavamqueeutinhadeclaradoodesejo
de passear porVelaris totalmente nua,mas o encantador de sombras apenas fez
umareverênciacomacabeçaedisse:
—Éclaro.
Eisso,aindabem,foiofimdoassunto.
Rhys atravessouCassian primeiro, e voltou um segundo depois para buscar
Azrieleeu.
O mestre-espião esperava em silêncio. Tentei não parecer desconfortável
demaisquandoelemepegounosbraços,eaquelassombrasquesussurravampara
Azrielacariciarammeupescoço,minhabochecha.Rhysfranziaumpoucoatesta,e
euapenaslhelanceiumolharafiadoedisse:
—Nãodeixeoventoestragarmeucabelo.
Rhysriu,segurouobraçodeAzriel,etodossumimosemumventoescuro.
Estrelaseescuridão,asmãoscobertasdecicatrizesdeAzrielsefechandocom
forçaaoredordemim,meusbraçosentrelaçadosemseupescoço,preparando-se,
esperando,contando...
Então, luz do sol ofuscante, vento rugindo, um mergulho cada vez mais
baixo...
Depois,umaguinada, subimosdireto.OcorpodeAzrieleraquentee firme,
embora aquelas mãos agredidas fossem cuidadosas quando ele me pegou.
Nenhumasombranosseguiu,comoseAzrielastivessedeixadoemVelaris.
Abaixo, adiante, atrás, o amplo mar azul se estendia. Acima, fortalezas de
nuvenssearrastavam,eàesquerda...umborrãoescuronohorizonte.Terra.
TerradaCortePrimaveril.
ImagineiseTamlinestavanafronteiracomomaroeste.Eleumavezindicara
quehaviaproblemasali.Seráquepodiamesentir,nossentiragora?
Nãomepermitipensarnisso.Nãoquandosentiamuralha.
Comohumana,nãopassavadeumescudoinvisível.
Comofeérica...nãoconseguiavê-la,masconseguiaouvirosestalosdepoder...
ocheiropungentequeenvolviaminhalíngua.
—É repulsivo, não é?— indagouAzriel, a voz baixa quase engolida pelo
vento.
—Possoverporquevocê...nós fomosdetidosporelaportantosséculos—
admiti. Cada batida de meu coração nos levava mais perto daquela sensação
descomunalenauseantedepoder.
—Vaiseacostumar...comovocabulário—disseAzriel.Eumeseguravaaele
com tanta força que não conseguia ver seu rosto.Observei a pequenamudança
dentro do Sifão de safira emvez disso, como se fosse o grande olho de alguma
bestasemiadormecidadeumdesertocongelado.
—Não sei bem ondeme encaixo— admiti, talvez apenas porque o vento
estivessegritandoaonossoredoreRhysjátivesseatravessadoàfrente,paraondea
formaescuradeCassianvoava,alémdamuralha.
—Estouvivoháquasecincoséculosemeio,enãotenhomuitacertezadisso
também—retrucouAzriel.
Tenteiafastarorostoparainterpretaraquelaexpressãolindaefria,masAzriel
meseguroucommaisforça,umavisosilenciosoparaqueeumepreparasse.
ComoAzrielsabiaondeestavaafenda,eunãotinhaideia.Tudopareciaigual
paramim:céuabertoinvisível.
Mas senti amuralhaquandopassamospor ela. Senti quando avançou contra
mim, como se transtornada por termos passado, senti o poder irradiar e tentar
fecharaquelafenda,masfalhar...
Então,saímos.
O vento estava gelado, e a temperatura, tão baixa que me tirou o fôlego.
Aquele vento fustigante parecia, de alguma forma, menos vivo que o ar da
primaveraquetínhamosdeixadoparatrás.
Azriel se inclinou, virando na direção da costa, onde Rhys e Cassian agora
faziamumavarreduradaterra.Estremecinacapaforradadepele,agarrando-meao
calordeAzriel.
Ultrapassamosumapraiadeareianabasedepenhascosbrancos,eterraplanae
nevadacomflorestasdevastadaspeloinvernoseestendiamalémdeles.
Asterrashumanas.
Meular.
Faziaumanodesdequeeuentraranaquelelabirintodeneveegelo,emataraum
feéricocomódionocoração.
Apropriedadedetelhadocordeesmeraldademinhafamíliaeratãolindano
fimdoinvernoquantoforanoverão.Umtipodiferentedebeleza,noentanto—o
mármorepálidopareciaquentecontraaneveríspidaamontoadapelapropriedade,
e pedaços de sempre-verdes e azevinhos adornavam as janelas, os portais e os
postes. A única parte de decoração, de celebração que os humanos se davam o
trabalhodefazer.Nãodepoisdeterembanidooucondenadotodasasfestividades
pós-Guerra,jáquetodaseramumlembretedeseuscapatazesimortais.
TrêsmesescomAmaranthahaviammedestruído.Nãoconseguiacomeçara
imaginaroquemilênioscomGrão-Feéricoscomoelapodiamfazer—ascicatrizes
quedeixariamemumacultura,emumpovo.
Meupovo...ouoqueumdiafora.
Comocapuznacabeça,dedosdentrodosbolsosrevestidosdepeledomanto,
fiqueidepédiantedasportasduplasdacasa,ouvindoosomnítidodacampainha
quepuxaraumsegundoantes.
Atrás de mim, escondidos pelos encantamentos de Rhys, meus três
companheirosesperavam,invisíveis.
Eu disse a eles que seria melhor se eu falasse comminha família primeiro.
Sozinha.
Estremeci,desejandooinvernomoderadodeVelaris,imaginandocomopodia
sertãotemperadonoextremonorte,mas...tudoemPrythianeraestranho.Talvez
quandoamuralhanãoexistia,quandoamagiafluíalivrementeentreosreinos,as
diferençasentreasestaçõesnãofossemtãograndes.
A porta se abriu, e uma governanta de rosto alegre e rechonchudo— Sra.
Laurent,lembrei—semicerrouosolhosparamim.
—Possoajudar...—Aspalavras sedissiparamquandoela reparouemmeu
rosto.
Comocapuz,minhasorelhaseacoroaestavamescondidas,masaquelebrilho,
aquelaquietudesobrenatural...ASra.Laurentnãoabriuaportamaisumpouco.
—Estouaquiparaverminhafamília—disparei.
—Seu...seupaiestáforaanegócios,massuasirmãs...—Elanãosemoveu.
Elasabia.Podiaverquehaviaalgodiferente,algodistorcido...
OsolhosdaSra.Laurentolharamaomeuredor.Nadadecarruagem,nenhum
cavalo.
Nenhumapegadananeve.
Orostodagovernantaficoulívido,emexingueipornãoterpensadonisso...
—Sra.Laurent?
Algo emmeu peito se partiu ao ouvir a voz de Elain no corredor atrás da
mulher.
Aoouvirameiguiceeajuventudeeabondade,intocadaporPrythian,alheia
aoqueeutinhafeito,oquemetornara...
Recueiumpasso.Nãopodiafazeraquilo.Nãopodiajogaraquilosobreelas.
Então,orostodeElainsurgiuporcimadoombroredondodaSra.Laurent.
Linda... ela sempre fora amais lindadenós.Suavee encantadora, comoum
crepúsculodeverão.
Elainestavaexatamentecomoeumelembrava,domodocomoeumeobrigava
alembrarnaquelescalabouços,quandodisseamimmesmaque,sefracassasse,se
Amarantha atravessasse a muralha, ela seria a próxima. Assim como seria a
próximaseoreideHyberndestruísseamuralha,seeunãoconseguisseoLivrodos
Sopros.
Oscabeloslouro-douradosdeElainestavampresospelametade,apelepálida
parecia lisa e levemente corada, e os olhos, como chocolate derretido, se
arregalaramquandomeviram.
Elesseencheramdelágrimasquesilenciosamentetransbordaram,escorrendo
poraquelaslindasbochechas.
A Sra. Laurent não semoveu um centímetro.Ela fecharia a porta naminha
caraassimqueeusequerrespirasseerrado.
Elainlevouamãofinaàbocaquandoocorpoestremeceucomumsoluço.
—Elain—falei,avozrouca.
Passosnasescadasespiraladasatrásdelas,então...
—Sra.Laurent,prepareumcháeleve-oaoescritório.
Agovernantaolhouparaasescadas,depois,paraElain,e,então,paramim.
Umfantasmananeve.
Amulher simplesmenteme lançou um olhar que prometia amorte caso eu
ferisseminhasirmãs,edepoissevirouparaacasaemedeixoudiantedeElain,que
aindachoravabaixinho.
Masdeiumpassoparaaentradaeolheiparaaescada.
DeondeNesthameencarava,mãoapoiadanocorrimão,comoseeufosseum
fantasma.
A casa estava linda, mas havia algo de intocado a seu respeito. Algo novo, em
comparaçãocomaidadeecomoamorantigodascasasdeRhysemVelaris.
E,sentadadiantedalareirademármoreentalhadodasaladeestar,comocapuz
sobreacabeça,asmãosestendidasparaofogocrepitante,eusenti...senticomose
asduashouvessempermitidoaentradadeumlobo.
Umespectro.
Euficaragrandedemaisparaaquelescômodos,paraaquelafrágilvidamortal,
maculada e selvagem demais e... poderosa. E estava prestes a levar isso
permanentementeparasuasvidastambém.
OndeestavamRhys,CassianeAzriel,eunãosabia.Talvezestivessemdepé,
comosombrasnocantinho,observando.Talveztivessempermanecidodoladode
fora,naneve.EunãoduvidariadapossibilidadedeCassianeAzrielestaremagora
sobrevoando a propriedade, inspecionando a disposição, formando círculosmais
amplosatéquechegassemàaldeia,aomeuvelhochaléaospedaços,outalvezaté
mesmoàprópriafloresta.
Nesthapareciaigual.Sóquemaisvelha.Nãonorosto,queestavatãoseveroe
impressionantecomoantes,mas...nosolhos,naformacomoseportava.
Sentadas diante de mim em um pequeno sofá, minhas irmãs encaravam... e
esperavam.
Perguntei:
—Ondeestápapai?—Pareceuaúnicacoisaseguraadizer.
— Em Neva — explicou Nestha, citando uma das maiores cidades do
continente. — Negociando com mercadores da outra metade do mundo. E
participandodeumareuniãosobreaameaçaacimadamuralha.Umaameaçasobre
aqual,imagino,vocêtenhavoltadoparanosavisar.
Nenhumapalavradealívio,deamor—jamaisdeNestha.
Elainergueuaxícaradechá.
— Qualquer que seja o motivo, Feyre, ficamos felizes por vê-la. Viva.
Achamosqueestava...
Puxeiocapuzantesqueelapudessecontinuar.
AxícaradechádeElainchacoalhounopiresquandoelareparouemminhas
orelhas.Minhasmãosmaislongas,maisfinas...orostoinegavelmentefeérico.
—Euestavamorta—falei,apressadamente.—Estavamortaeentãorenasci,
fuirefeita.
Elainapoiouaxícaradechátrêmulanamesabaixaentrenós.Líquidoâmbarse
derramoupelaslaterais,empoçandonopires.
Econformeelasemoveu,Nesthaseinclinou...muitolevemente.Entremime
Elain.
FoinoolhardeNesthaemquemefixeiquandodisse:
—Precisoqueouçam.
Asduasarregalaramosolhos.
Masouviram.
Conteiminhahistória.Comomáximodedetalhesquepudeaguentar,conteia
elas de Sob a Montanha. De minhas provas. E de Amarantha. Contei sobre a
morte.Earessureição.
Explicarosúltimosmeses,noentanto,foimaisdifícil.
Então,fuibreve.
Mas expliquei o que precisava acontecer ali: a ameaça que Hybern
representava.Expliqueioqueacasaprecisariaser,oquenósprecisaríamosser,eo
queeuprecisavadelas.
E,quandoterminei,asduaspermaneceramdeolhosarregalados.Emsilêncio.
FoiElainquemdisse,porfim:
—Você...querqueoutrosGrão-Feéricosvenham...aqui.E...easrainhasdo
reino.
Assentidevagar.
—Encontreoutrolugar—avisouNestha.
Eumevireiparaela,jásuplicando,mepreparandoparaabriga.
—Encontreoutrolugar—repetiuNestha,comascostasesticadas.—Nãoos
queroemminhacasa.OupertodeElain.
—Nestha,porfavor—sussurrei.—Nãoháoutrolugar,lugaralgumemque
eupossairsemquealguémmecace,mecrucifique...
— E quanto a nós? Quando as pessoas aqui descobrirem que somos
simpatizantes de feéricos? Somos iguais aos Filhos dos Abençoados, então?
Qualquerposição,qualquerinfluênciaquetemos...desaparecerá.Eocasamentode
Elain...
—Casamento?—disparei.
Nãotinhareparadonoaneldepérolaediamanteemseudedo,oarodemetal
escurobrilhandoàluzdalareira.
OrostodeElainestavapálido,noentanto,enquantoolhavaparaoanel.
—Em cincomeses— revelouNestha.—Vai se casar com o filho de um
Senhor.Eopaidedicouavidaacaçarseutipoquandoelesatravessamamuralha.
Seutipo.
—Então,nãohaveráreuniãoaqui—decretouNestha,osombrosrígidos.—
Nãohaveráfeéricosnestacasa.
—Vocêmeincluinessadeclaração?—perguntei,baixinho.
OsilênciodeNesthafoirespostasuficiente.
MasElainfalou:
—Nestha.
Devagar,minhairmãmaisvelhaolhouparaela.
—Nestha— tentou Elain, de novo, contorcendo asmãos.— Se... se não
ajudarmos Feyre, não haverá um casamento. Nem mesmo as tropas de Lorde
Nolan e todos os seus homens poderiamme salvar de... deles.—Nestha nem
mesmoestremeceu.Elaininsistiu:—Manteremossegredo,mandaremososcriados
paralonge.Comaproximidadedaprimavera,ficarãofelizesporiremparacasa.E
se Feyre precisar se deslocar para reuniões, avisará com antecedência, e nós os
mandaremos embora. Inventaremosdesculpas para as férias.Papai sóvoltaráno
verão mesmo. Ninguém vai descobrir. — Elain colocou a mão no joelho de
Nestha,eolilásdovestidodeminhairmãquaseengoliuamãodecormarfim.—
Feyredeuedeu...duranteanos.Vamosajudá-laagora.Ajudar...outros.
Minhagargantaseapertou,emeusolhosseencheramd’água.
NesthaavaliouoanelescuronodedodeElain,omodocomoelaaindaparecia
aninhar o objeto. Uma senhora... era o que Elain se tornaria. O que estava
arriscandoporaquilo.
EncareiNestha.
—Nãoháoutrojeito.
Oqueixodelaseergueulevemente.
—Mandaremososcriadosemboraamanhã.
—Hoje—insisti.—Nãotemostempoaperder.Ordenequesaiamagora.
—Eufaçoisso—disseElain,erespirandofundo,esticouosombros.Elanão
esperoupornenhumadenósantesdesairandando,graciosacomoumacorça.
SozinhacomNestha,falei:
—Eleébom...ofilhodosenhorcomquemelavaicasar?
—Elaachaquesim.Elaoamacomosefosse.
—Eoquevocêacha?
OsolhosdeNestha—meusolhos,osolhosdenossamãe—encararamos
meus.
—Opaideleconstruiuumamuralhadepedraaoredordapropriedade, tão
altaquenemasárvoresalcançamotopo.Achoquepareceumaprisão.
—Dissealgumacoisaaela?
—Não.Ofilho,Graysen,ébom.TãoapaixonadoporElainquantoelapor
ele. É do pai que não gosto. Ele vê o dinheiro que Elain tem a oferecer a sua
propriedade, e à cruzada contra os feéricos.Mas o homem é velho. Vaimorrer
logo.
—Esperoquesim.
Nesthadeudeombros.Depois,perguntou:
—SeuGrão-Senhor...Vocêpassouportudoisso—elagesticuloucomamão
paramim,minhasorelhas,meucorpo—emesmoassimnãoacaboubem?
Sentiumpesonasveiasdenovo.
—AqueleSenhorconstruiuumamuralhaparamanterosfeéricosdoladode
fora.MeuGrão-Senhorqueriamemanterenjauladadoladodedentro.
—Porquê?Eledeixouquevoltasseparacátantosmesesatrás.
—Paramesalvar...meproteger.Eacho...achoqueoqueaconteceucomele,
conosco,SobaMontanha,opartiu.—Talvezmaisdoquetenhamepartido.—A
ânsiadeprotegeraqualquercusto,mesmoàcustademeubem-estar...Achoque
elequeriaconter isso,masnãoconseguia.Nãoconseguiaabrirmão.—Havia...
haviatantoqueeuaindaprecisavafazer,percebi.Paraconsertarascoisas.Parame
consertar.
—Eagoraestáemumanovacorte.
Nãofoibemumapergunta,masfalei:
—Gostariadeconhecê-los?
Levou horas para que Elain usasse o charme nos empregados a fim de que
agilmentefizessemasmalasepartissem,cadaumcomumabolsadedinheiropara
aceleraroprocesso.ASra.Laurent,emboratenhasidoaúltimaapartir,prometeu
manteremsegredotudoquevira.
Eunão sabiaondeRhys,CassianeAzriel esperavam,masdepoisqueaSra.
Laurentsubiunacarruagementulhadacomorestodosempregados,emdireçãoà
cidadeeaotransporteatéondequerquetivessemfamília,umabatidasoouàporta.
Já escurecia, e omundo do lado de fora estava espesso com tons de azul e
brancoecinzaemanchadodedouradoquandoabriaportaeosviaguardando.
NesthaeElainocupavama ampla salade jantar—oespaçomais abertoda
casa.
AoolharparaRhys,CassianeAzriel,soubequeacertaraaoescolherasalade
jantarcomolocaldareunião.
Eramenormes;selvagens,primitivoseantigos.
AssobrancelhasdeRhysseergueram.
—Aimpressãoqueseteméadequedisseramaosempregadosqueumapraga
recaiusobreacasa.
Abri a porta o bastante para deixá-los entrar, e depois rapidamente a fechei
contraofriofustigante.
—MinhairmãElainconsegueconvencerqualquerumafazerqualquercoisa
comalgunssorrisos.
Cassian soltou um assobio baixo quando se virou, observando o grande
corredordaentrada,amobíliaornamentada,aspinturas.TudopagoporTamlin
— inicialmente. Ele cuidara tão bem de minha família, mas a dele... Não quis
pensarnafamíliadeTamlin,assassinadaporumacorterivalqualquerquefosseo
motivo que ninguém jamaisme explicou.Não agora que eu estava vivendo em
meioaessacorte...
Eleforabom;haviaumapartedeTamlinqueeraboa...
Sim.Elemederatudodequeeuprecisavaparametornareumesma,parame
sentir segura. E, quando conseguiu o que quis... parou. Tentou, mas não de
verdade.Tamlinsedeixoupermanecercegoemrelaçãoaoqueeuprecisavadepois
deAmarantha.
—Seupaideveserumbommercador—disseCassian.—Jávicasteloscom
menosriquezas.
ViqueRhysmeobservava,ehaviaumaperguntasilenciosaestampadaemseu
rosto.
—Meu pai está fora, a negócios... e participando de uma reunião emNeva
sobreaameaçadePrythian—respondi.
— Prythian? — indagou Cassian, se virando em nossa direção. — Não
Hybern?
—Épossívelqueminhasirmãsestejamenganadas,suasterrassãoestranhasa
elas.Simplesmentedisseram“acimadamuralha”.Presumiqueachassemquefosse
Prythian.
Azrielseaproximoucompéstãosilenciososquantoosdegatos.
—Se humanos estão cientes da ameaça, se reunindo para enfrentá-la, então
issopodenosdarumavantagemquandoentrarmosemcontatocomasrainhas.
Rhysaindameobservava,comosepudesseveropesoquerecaírasobremim
desdequehavíamoschegado.Naúltimavezquetinhaestadonaquelacasa,euera
umamulherapaixonada—umamor tão frenéticoedesesperadoquevolteipara
Prythian, desci Sob a Montanha, como uma mera humana. Tão frágil quanto
minhasirmãsagoramepareciam.
— Venha — disse Rhys, me oferecendo um aceno de cabeça sutil e
compreensivoantesdegesticularparaqueeuliderasseocaminho.—Vamosfazer
essasapresentações.
Minhasirmãsestavamparadasàjanela,aluzdoslustresconvidavaodouradonos
cabelosabrilhar.Tãolindasejovensevivas—masquandoissomudaria?Como
seria falar com elas quando eu permanecesse dessa forma e a pele delas tivesse
ficado fina como papel e enrugada, as costas, curvadas como peso dos anos, as
mãosbrancas,cheiasdesardas?
Eumal estaria no início da existência imortal quando a delas seria apagada
comoumaveladiantedeumsoprofrio.
MaseupoderiadaraNesthaeElainalgunsbonsanos—anosseguros—até
então.
Atravesseiasala,ostrêsmachosficaramumpassoatrás,eopisodemadeira
estava tãobrilhante e polidoquantoum espelho sobnós.Eu tinha tirado a capa
agora que os criados partiram, e foi paramim—não para os illyrianos—que
minhasirmãsolharamprimeiro.Paraasroupasfeéricas,acoroa,asjoias.
Umaestranha;essapartedemimeraagoraestranhaparaelas.
Então, elas observaram os machos alados... ou dois deles. As asas de Rhys
tinham sumido, e as roupas de courohaviam sido substituídas pelo casacopreto
eleganteecalça.
Minhas irmãsenrijeceramocorpoaoverCassianeAzriel,aoveremaquelas
poderosas asas recolhidas rentes aos corpos fortes, as armas, e, depois, os rostos
arrasadoramentelindosdetodosostrêsmachos.
Elain,paraseucrédito,nãodesmaiou.
ENestha,porsuavez,nãosibilouparaosfeéricos.Elaapenasdeuumpasso
nada sutil para a frente de Elain e escondeu a mão fechada em punho atrás do
vestidosimpleseelegantedecorametista.Omovimentonãopassoudespercebido
pormeuscompanheiros.
Parei a um bommetro de distância, dando aminhas irmãs espaço a fim de
respirarememumasalaquesubitamentefoiprivadadear.Eudisseaosmachos:
—Minhasirmãs,NesthaeElainArcheron.
Nãopensavanosobrenomedeminhafamília,nãoousavahaviaanoseanos.
Porque,mesmo quando eu tinhame sacrificado e caçado por eles, não queria o
nomedemeupai—nãoquandose sentavadiantedeuma lareiraenosdeixava
passar fome. Deixava que eu caminhasse sozinha no bosque. Parara de usar o
sobrenomenodia emquematei aquele coelhoe sentio sanguemancharminhas
mãos,damesmaformaqueosanguedaquelesfeéricosasmacularaanosmaistarde,
comoumatatuageminvisível.
Minhasirmãsnãofizeramreverência.Seuscoraçõesbatiamfreneticamente,até
mesmoodeNestha,eocheirodeterrorenvolviaminhalíngua...
—Cassian—falei,inclinandoacabeçaparaaesquerda.Então,mevireiparaa
direita, grata porque aquelas sombras não podiam ser vistas em lugar algum
quando falei:—Azriel.—Fizumameia-volta.—ERhysand,Grão-Senhorda
CorteNoturna.
Rhystambémsecontivera,percebi.Anoitequeondulavadele,agraciosidade
sobrenaturaleopoderestrondoso.Masaoencararaquelesolhosvioletasalpicados
deestrelas,ninguémjamaispoderiaconfundi-locomqualquercoisaquenãofosse
extraordinária.
Elefezumareverênciaparaminhasirmãs.
—Obrigadopelahospitalidade...epelagenerosidade—disseRhysand,com
umsorrisocaloroso.Mashaviaalgotensoali.
Elaintentoudevolverosorriso,masfracassou.
E Nestha apenas olhou para os três e, depois, para mim e disse: — O
cozinheirodeixoujantarnamesa.Deveríamoscomerantesqueesfrie.—Elanão
esperouqueeuconcordasseantesdesairandando,bemparaacabeceiradamesade
cerejeirapolida.
—Éumprazerconhecê-los—disseElain,avozrouca,antesdecorreratrás
deNestha,eassaiasdesedadovestidocobaltofarfalharamsobreostacosdopiso.
Cassian fez uma careta conforme as seguimos, as sobrancelhas de Rhys
estavam erguidas, e Azriel parecia mais inclinado a se misturar à sombra mais
próximaeevitarcompletamenteaquelaconversa.
Nestha esperava à cabeceira damesa, uma rainha pronta para fazer a corte.
Elaintremianacadeirademadeiraentalhadaeestofadaàesquerdadela.
FizumfavoratodoseocupeiacadeiraàdireitadeNestha.Cassianreivindicou
o assento ao lado de Elain, a qual segurou o garfo com força, como se pudesse
empunhá-locontraofeérico;Rhyspassouparaoassentoaomeulado,eAzrielse
sentou do outro lado de Rhysand. Um leve sorriso se abriu na boca de Azriel
quandoelereparouosdedosdeElaincomasarticulaçõesesbranquiçadasnaquele
garfo, mas se manteve calado, concentrando-se, em vez disso, como Cassian
sutilmente tentava fazer, em ajustar as asas ao redor de uma cadeira humana.
Maldito Caldeirão.Devia ter lembrado. Embora duvidasse de que qualquer um
delesgostasseseeuagoratrouxessedoisbanquinhos.
Suspirei pelo nariz e tirei as tampas de várias travessas e panelas. Salmão
cozidocomanetoelimãodaestufa,purêdebatatas,frangoassadocombeterrabae
nabodacave,eumguisadodeovos,carnedecaçaealho-poró.Comidadaestação;
oquetinhasobradonofimdoinverno.
Coloquei comidanoprato, e os sonsdeminhas irmãs emeus companheiros
fazendo o mesmo preencheram o silêncio. Dei uma mordida e contive minha
reação.
Certavez,aquelacomidaseriaexuberanteesaborosa.
Agora,eracomocinzasemminhaboca.
Rhys comia o frango sem hesitar. Cassian e Azriel o faziam como se não
tivessemdesfrutadodeumarefeiçãohaviameses.Talvezporseremguerreiros,por
lutar emguerras, tivessemahabilidadede enxergar a comida como força... e de
deixardeladoosabor.
ViqueNesthameobservava.
—Temalgoerradocomnossacomida?—perguntouela,simplesmente.
Eumeobrigueiadaroutramordida,cadamovimentodemeumaxilareraum
esforço.
—Não.—Engolieentorneiumbelogoled’água.
—Entãonãopodemaiscomercomidanormal,ouéboademaisparaela?—
Umaperguntaeumdesafio.
OgarfodeRhystilintounoprato.Elainemitiuumruídobaixodenervosismo.
E, embora Nestha tivesse me deixado usar a casa, embora tivesse tentado
atravessar amuralha pormim e tivéssemos concordado emuma trégua frágil, o
tom,onojoeareprovação...
Coloqueiamãoespalmadanamesa.
—Possocomer,beber,treparelutartãobemquantoantes.Atémelhor.
Cassian engasgou com a água.Azriel semoveu na cadeira, posicionando-se
parasecolocarentrenóssefossepreciso.
Nesthasoltouumarisadabaixa.
Maspudesentirogostodefogonaboca,pudeouvi-lorugindonasveiase...
Sentiumpuxãosúbito,sólidonaligação,eescuridãotranquilizadoraentrando
emmim,meutemperamento,meussentidos,acalmandoaquelefogo...
Comeceiaerguerosescudosmentais.Maselesestavamintactos.
RhysnemmesmopiscouparamimantesdedizeraNestha:
—SealgumdiavieraPrythian,vaidescobrirporquenossacomidatemum
gostotãodiferente.
Nesthaolhouparaelecomsuperioridade.
—Tenhopoucointeresseemalgumdiapôrospésemsuasterras,então,vou
acreditaremsuapalavra.
—Nestha,porfavor—murmurouElain.
CassianobservavaNestha,ehaviaumbrilhoemseusolhosqueeusópodia
interpretar como um guerreiro se vendo diante de um novo e interessante
oponente.
Então, pela Mãe, Nestha voltou a atenção para Cassian, reparando naquele
brilho...enoqueestesignificava.
—Oqueestáolhando?—perguntouela,grunhindo.
AssobrancelhasdeCassianseergueram...agoracompoucointeresse.
— Alguém que deixou a irmã mais nova arriscar a vida todos os dias no
bosqueenquantonãofazianada.Alguémquedeixouqueumacriançade14anos
entrasse naquela floresta tão perto da muralha.— Meu rosto começou a ficar
mornoeabriaboca.Nãoseioquediria.—Suairmãmorreu...morreuparasalvar
meu povo. Ela está disposta a fazer isso de novo para proteger você da guerra.
Então, não espere que eu fique sentado aqui de boca fechada enquanto você a
desprezaporumaescolhaquesuairmãnãopôdefazer...eaindainsultameupovo
noprocesso.
Nestha não moveu um cílio enquanto observava as belas feições, o tronco
musculoso.Então,sevirouparamim.IgnorandocompletamenteCassian.
O rosto dele se tornou quase selvagem. Era um lobo caçando uma corça...
apenasparaencontrarumfelinoselvagemvestindoapeledacorça.
AvozdeElainfalouquandoelaobservouamesmacoisaerapidamentedissea
Cassian:
—É...émuitodifícil,entende,aceitar.—Percebiqueometalescurodoanel
dela... era ferro.Embora eu tivesse dito a elas que ferro era inútil, ali estava.O
presentedafamíliaodiadoradefeéricosdofuturomarido.Elainlançouumolhar
desúplicaparaRhys,edepoisparaAzriel,comummedotãomortalenvolvendoas
feições, seu cheiro. — Somos criados assim. Ouvimos histórias de seu povo
cruzandoamuralhaparanosferir.Nossaprópriavizinha,ClareBeddor,foilevada,
afamíliafoiassassinada...
Umcorponuempaladoàparede.Partido.Morto.Pregadoalidurantemeses.
Rhysencaravaoprato.Semsemover.Sempiscar.
Ele revelara aAmaranthao nomedeClare—apesar de saber que eu tinha
mentidoarespeitodaquilo.
—Étudomuitoconfuso—continuouElain.
—Possoimaginar—disseAzriel.Cassianlançouumolharderaivaparaele.
Mas a atenção de Azriel estava em minha irmã, um sorriso educado e calmo
estampava seu rosto. Os ombros de Elain relaxaram um pouco. Imaginei se o
mestre-espiãodeRhyscostumavaobterainformaçãopormeiodocomportamento
friocomopedra,tantoquantoporserfurtivoedassombras.
ElainsesentouumpoucomaiseretaquandodisseaCassian:
—EquantoàcaçadeFeyreduranteaquelesanos,nãoésóanegligênciade
Nestha a culpada. Estávamos com medo e não tínhamos recebido nenhum
treinamento,etudotinhasidolevado,efalhamoscomela.Nósduas.
Nesthanãodissenada,manteveascostasrígidas.
Rhysmedeuumolhardeaviso.SegureiobraçodeNestha,atraindoaatenção
delaparamim.
—Podemossimplesmente...começardenovo?
Quase consegui sentir o gosto de seu orgulho se acumulando nas veias,
gritandoparaqueNesthanãocedesse.
Cassian,malditofosse,deuumsorrisoprovocadorparaminhairmã.
MasNesthaapenassibilou:
—Tudobem.—Evoltouacomer.
CassianobservoucadamordidaqueNesthadeu,cadamovimentodagarganta
delaconformeelaengolia.
Eu me obriguei a limpar o prato, ciente da atenção de Nestha paraminha
comida.
ElainfalouparaAzriel,talvezosdoisúnicoscivilizadosali:
—Podemesmovoar?
Azriel soltou o garfo, piscando. Talvez pudesse até dizer que tinha ficado
envergonhado.
— Sim. Cassian e eu somos de uma raça de feéricos chamados illyrianos.
Nascemosouvindoacançãodovento—respondeuele.
— Isso émuito lindo—disse Elain.—Mas não é... assustador?Voar tão
alto?
—Àsvezesé—respondeuAzriel.Cassiandesviouaatenção irredutívelde
Nesthaportempoobastanteparaassentir.—Seforpegoemumatempestade,sea
corrente descer. Mas somos tão bem-treinados que o medo some antes de
largarmos as fraldas.—No entanto, Azriel não fora treinado até muito depois
disso. Você se acostuma com o vocabulário, dissera ele mais cedo. Com que
frequência precisava se lembrar de usar tais palavras? Será que “nós” e “nosso”
tinhamumgostotãoestranhonalínguadelequantotinhamnaminha?
—Vocês parecemGrão-Feéricos— interrompeuNestha, a voz como uma
lâminaafiada.—Masnãosão?
— Apenas os Grão-Feéricos que se parecem com eles — falou Cassian,
gesticulando com a mão para mim e para Rhys— sãoGrão-Feéricos. Todo o
resto,qualqueroutradiferença,emarcamvocêcomooqueelesgostamdechamar
defeéricos“inferiores”.
Rhysandfalou,porfim:
—Virouumtermousadopelapraticidade,masmascaraumahistórialongae
sangrenta de injustiças. Muitos feéricos inferiores se ressentem do termo... e
desejamquetodossejamoschamadosdamesmacoisa.
—Ecomrazão—ponderouCassian,bebendoágua.
Nesthameobservou.
—MasvocênãoeraGrã-Feérica,nãonoinício.Então,comoachamam?—
Eunãoconseguisentirsefoiumaalfinetada.
—Feyreéquemelaescolherser—respondeuRhys.
Nesthaagoraobservavatodosnós,erguendoosolhosparaaquelacoroa.Mas
falou:
—Escrevamsuascartasparaas rainhasagora.Amanhã,Elaineeu iremosà
cidade enviá-las. Se as rainhasvierematé aqui—acrescentouNestha, lançando
umolhar gélido paraCassian—, sugiro se prepararempara preconceitosmuito
maisprofundosqueosnossos.Econtemplemcomoplanejamtirartodosnósdessa
confusão,casoascoisasdeemerrado.
—Vamoslevarissoemconsideração—respondeuRhys,tranquilamente.
— Presumo que vão querer passar a noite — continuou Nestha, nada
impressionadacomnenhumdenós.
Rhys me olhou, uma pergunta silenciosa. Poderíamos facilmente partir, os
machos encontrariam o caminho para casa no escuro, mas... Muito em breve,
talvez,omundovirasseuminferno.Falei:
—Senãoincomodarmuito,entãosim.Partiremosamanhãdepoisdocafé.
Nesthanãosorriu,masElainseiluminou.
—Quebom.Achoquealgunsquartosjáestãoarrumados...
— Precisaremos de dois — interrompeu Rhys, silenciosamente. —
Adjacentes,comduascamascada.
Franziatestaparaele.
Rhysexplicouparamim:
— A magia é diferente do outro lado da muralha. Então, nossos escudos,
nossossentidos,podemnãofuncionarbem.Nãovouarriscar.Principalmenteem
uma casa com uma mulher prometida a um homem que deu a ela um anel de
noivadodeferro.
Elaincorouumpouco.
—Os...osquartosquetêmduascamasnãosãoadjacentes—murmurouela.
Suspirei.
—Nósmoveremos as coisas.Não tem problema. Este aqui— acrescentei,
comumolharde raivanadireçãodeRhys—sóestá ranzinzaporqueévelhoe
passoudahoradedormir.
Rhysriu,airadeCassiansedissipouobastanteparaqueelesorrisse,eElain,
aorepararqueAzrielrelaxaracomoprovadequeascoisasnãoestavam,defato,
prestesadarerrado,ofereceuumsorrisoprópriotambém.
Nesthaapenasficoudepé,umapilastraesguiadeaço,efalou,paraninguém
emespecial:
—Seterminamosdecomer,estarefeiçãoacabou.
Efoiisso.
Rhysescreveuacartapormim,CassianeAzrielinterromperamcomcorreções,e
levamos até meia-noite para fazer um rascunho que todos concordamos ser
impressionante,calorosoeameaçadorobastante.
Minhasirmãslavavamalouçaenquantotrabalhávamos,etinhamsedespedido
para se recolher horas antes, mencionando onde poderíamos encontrar nossos
quartos.
CassianeAzrieldividiriamum;Rhyseeu,ooutro.
FranziatestaaoveragrandecamadehóspedesquandoRhysfechouaporta
atrásdenós.Acamaeragrandeobastanteparadois,maseunãoadividiria.Virei
paraRhys.
—Nãovou...
Madeirabateunocarpete,eumapequenacamasurgiuaoladodaporta.Rhys
sedeitounela,tirandoasbotas.
—Nesthaéencantadora,aliás.
—Elaé...éumacriaturasingular—admiti.Talvezfosseacoisamaisbondosa
queeupoderiadizeraseurespeito.
— Faz alguns séculos desde que alguém tira Cassian do sério com tanta
facilidade.Umapenaqueprovavelmentematariamumaooutro.
Partedemimestremeceudiantedocaosqueosdoiscausariamsedecidissem
parardebrigar.
—EElain—falouRhys,suspirandoaoremoveraoutrabota—nãodeveria
se casar com o filho daquele senhor, não por uma dezena demotivos, omenor
deleséofatodequevocênãoseráconvidadaparaocasamento.Emboratalvezisso
sejabom.
—Issonãoéengraçado—ciciei.
—Pelomenosnãoprecisamandarumpresentetambém.Duvidoqueosogro
ouseaceitar.
—Vocêtemmuitacoragemaoinsultarminhasirmãsquandoseusamigostêm
amesmaquantidadedemelodrama.—AssobrancelhasdeRhysseergueramem
uma pergunta silenciosa. Ri com deboche.—Ah, então não reparou na forma
comoAzrielolhaparaMor?Oucomoelaàsvezesoobserva,odefende?Ecomoos
dois fazem um trabalho tão bom permitindo que Cassian sirva de amortecedor
entreelesnamaiorpartedotempo?
Rhysmeencarou.
—Sugiromanteressasobservaçõesparasi.
—Acha que sou uma fofoqueira enxerida?Minha vida já é bemmiserável
comoestá,porqueiriaespalharessamisériaparaaquelesaoredortambém?
—Émiserável?Suavida,querodizer.—Umaperguntacautelosa.
—Nãosei.Tudoestáacontecendotãorápidoquenãoseioquesentir.—Fui
maissinceradoqueeutinhasidoemumbomtempo.
—Hmm.Talvezdepois quevoltarmospara casa, eudevesse dar umdia de
folgaavocê.
—Quantaconsideração,meusenhor.
Rhysriucomdeboche,desabotoandoocasaco.Percebiqueestavacomtodas
asminhasroupasfinas—esemnadausávelparadormir.
Com um estalo dos dedos de Rhys, meu pijama e roupas íntimas exíguas
sugiramnacama
—Nãopudedecidirqualpedaçoderendaeuqueriaquevocêvestisse;então,
trouxealgumasopções.
—Porco—disparei,pegandoasroupaseseguindoparaobanheiroadjacente.
O quarto estava morno quando voltei; Rhys ocupava a cama que tinha
conjuradodeondequerque fosse,e todaa luz tinhasumido,excetopelasbrasas
estalando na lareira. Até mesmo os lençóis pareciam mornos quando me deitei
neles.
—Obrigadaporaqueceracama—falei,naescuridão.
Rhysestavadecostasparamim,maseuoouviclaramentequandoelefalou:
—Amaranthajamaismeagradeceuporisso.
Todoocalorsedissipou.
—Elanãosofreuosuficiente.
Nem perto, pelo que tinha feito. Comigo, com ele, com Clare, com tantos
outros.
Rhysnãorespondeu.Emvezdisso,comentou:
—Nãoacheiqueaguentariaaquelejantar.
—Oquequerdizer?—Rhysestiverabastante...calmo.Contido.
—Suas irmãs têm boa intenção, ou uma delas tem.Mas ao vê-las, sentadas
àquelamesa...Nãopercebiquemeatingiria com tanta força.Oquantovocê era
jovem.Oquantoelasnãoaprotegeram.
—Eumesaímuitobem.
—Nósdevemosaelasnossagratidãopornosdeixaremusarestacasa—disse
Rhysand,baixinho.—Masvailevarumbomtempoatéqueeuconsigaolharpara
suasirmãssemquererberrarcomelas.
—Partedemimsenteomesmo—admiti,meaninhandonoscobertores.—
Mas, se não tivesse entrado naquele bosque, se elas não tivessemme deixado ir
sozinha... você ainda estaria escravizado. E talvez Amarantha agora estivesse
preparandoasforçasparadestruirestasterras.
Silêncio.Então...
—Voupagarumsalárioavocê,sabe.Portudoisso.
—Nãoprecisa.—Mesmoque...mesmoqueeunãotivessenenhumdinheiro.
—Todomembrodeminhacorterecebeum.Jáexisteumacontabancáriaem
Velarisparavocê,ondeseusganhosserãodepositados.Etemlinhasdecréditona
maioriadaslojas.Assim,senãotiverosuficienteconsigoquandoestiverfazendo
compras,podemandaracontaparaaCasa.
— Eu... você não precisava fazer isso. — Engoli em seco. — E quanto
exatamentevourecebertodomês?
— O mesmo que os outros. — Sem dúvida um salário generoso, talvez
generosodemais.MasRhyssubitamenteperguntou:—Quandoéseuaniversário?
— Preciso continuar contando meus aniversários?— Ele apenas esperou.
Suspirei.—ÉnoSolstíciodeInverno.
Rhysparou.
—Issofoihámeses.
—Mmmhmm.
—Vocênão...Nãomelembrodevê-lacomemorar.
Pelolaço,pelaminhamenteconfusaedesprotegida.
—Nãoconteianinguém.Nãoqueriaumafestaquando já tinhatodaaquela
comemoraçãoacontecendo.Aniversáriospareceminsignificantesagoramesmo.
Rhysficouemsilêncioporumlongominuto.
—VocêrealmentenasceunoSolstíciodeInverno?
— É tão difícil de acreditar? Minha mãe alegava que eu era tão retraída e
estranhaporquetinhanascidonanoitemaislongadoano.Umavezelatentoufazer
meu aniversário em outro dia, mas esqueceu de fazer isso no ano seguinte...
provavelmentehaviaumafestamaisútilqueprecisavaplanejar.
—AgoraseiaquemNesthapuxou.Sinceramente,éumapenanãopodermos
ficarmais,aomenosparaverquemsobrevive:elaouCassian.
—EuapostoemNestha.
Uma risada baixa percorreumeus ossos; um lembrete de queRhysand certa
vezapostouemmim.ForaoúnicoSobaMontanhaqueapostoudinheiroqueeu
derrotariaoVermedeMiddengard.
—Eutambém—disseele.
Paradasobotrançadoformadopelasárvorescobertasdeneve,observeiafloresta
dormenteemepergunteiseospássarostinhamficadoquietosporcausademinha
presença.OudadoGrão-Senhoraomeulado.
—Congelarabundademanhãcedonãoécomoeupretendiapassarnossodia
defolga—comentouRhysand,franzindoatestaparaobosque.—Deverialevá-
laatéasestepesillyrianasquandovoltarmos,aflorestaláémuitomaisinteressante.
Emaisquente.
—Não faço ideia de onde ficam.—Neve estalou sob as botas que Rhys
conjurara quando declarei que queria treinar com ele. E não fisicamente, mas...
comospoderesque eu tinha.Oquequerque fossem.—Vocêmemostrouum
mapaembrancodaquelavez,lembra?
—Porprecaução.
—Algumdiavereiummapadecente,oumerestaráadivinharondetudofica?
—Vocêestácomumhumorótimohoje—observouRhys,eergueuamãono
arentrenós.Ummapadobradosurgiu,oqualelesedemoroubastanteaabrir.—
Para não achar que não confio em você, Feyre, querida...—Rhysand apontou
paraosuldasilhasNorte.—Estassãoasestepes.Quatrodiasnessadireçãoapé
—eletraçouodedoparacima,nadireçãodasmontanhasaolongodasilhas—a
levarãoaoterritórioillyriano.
Observeiomapa,repareinapenínsulaqueseprojetavaparacimaatéametade
dacostaoestedaCorteNoturna,enonomemarcadoali.Velaris.Rhyscertavez
memostraraummapavazio—quandoeupertencia aTamlin enãopassavade
umaespiãeprisioneira.PorqueelesabiaqueeucontariaaTamlinsobreascidades,
aslocalizações.
EqueIanthetambémpoderiadescobrirarespeitodelas.
Afasteiaquelepesonopeito,noestômago.
—Aqui—falouRhys,aoguardaromapanobolsoegesticularparaafloresta
aonossoredor.—Vamostreinaraqui.Estamosbemlongeagora.
Bemlongedacasa,dequalquerum,paraevitarsermosdetectados.Ouevitar
casualidades.
Rhysestendeuamão,eumavelaespessaecurtaapareceuemsuapalma.Elea
colocounochãonevado.
—Acenda,encharquecomáguaesequeopavio.
Eusabiaqueelequeriadizersemusarasmãos.
—Nãoconsigofazernenhumadessascoisas—admiti.—Equantoaoescudo
físico?—Pelomenoseutinhaconseguidofazerissoemparte.
—Issoéparaoutrahora.Hoje,sugiroquecomecetentandooutrafacetadeseu
poder.Quetalmetamorfose?
EncareiRhyscomraiva.
—Então,pratiquemosfogo,águaear.—Canalha...canalhainsuportável.
Rhys não insistiu no assunto, ainda bem; não perguntou por que mudar de
formatalvezfosseoúnicopoderqueeujamaismedariaotrabalhodedestrinchare
dominar.Talvezpelomesmomotivopeloqualeunãoqueriaexatamenteperguntar
sobreumapeça-chavedesuahistória,nãoqueriasaberseAzrieleCassianhaviam
ajudadoquandoafamíliagovernantedaCortePrimaverilforamorta.
Olhei para Rhys da cabeça aos pés: a vestimenta de guerreiro illyriano, a
espadasobreoombro,asasaseaquelasensaçãogeraldepodersobrepujanteque
sempreirradiava.
—Talvezvocêdevesse...ir.
—Porquê?Vocêpareceutãoinsistenteparaqueeuatreinasse.
—Nãopossomeconcentrarcomvocêporperto—confessei.—Evá...para
longe.Possosentirvocêaumcômododedistância.
UmacurvasugestivamoldouoslábiosdeRhysand.
Revireiosolhos.
—Porquenãoseescondeemumdaquelesreinos-bolsõesporumtempo?
—Nãofuncionaassim.Nãotemarlá.—LanceiumolharaRhysparaindicar
queentãoeledefinitivamentedeveriaseesconderlá,eRhysgargalhou.—Tudo
bem. Pode praticar o quanto quiser em privacidade. — Ele indicou minha
tatuagemcomoqueixo.—Gritepelolaçoseconseguirrealizaralgumacoisaantes
docafédamanhã.
Franziatestaparaoolhoemminhapalma.
—Oque...literalmentegritarparaatatuagem?
—Poderiatentaresfregá-laemcertaspartesdocorpoetalvezeucheguemais
rápido.
Rhysdesapareceuantesqueeuconseguisselheatiraravela.
Sozinhana floresta emolduradaporgelo, repassei as palavrasdeRhysand, e
umarisadabaixasaiudedentrodemim.
Imagineisedeveriatertestadooarcoeasflechasquetinharecebidoantesdepedir
queele saísse.Aindanãoexperimentarao arco illyriano—nãoatiravaemnada
haviameses,naverdade.
Encareiavela.Nadaaconteceu.
Umahorasepassou.
Pensei em tudo que me enraivecia, me enojava; pensei em Ianthe e sua
arrogância,asexigências.Nemmesmoumfiapodefumaçasurgiu.
Quandomeusolhosestavamquasesangrando,fizumapausaparavasculhara
sacola que levara. Encontrei pão fresco, uma lata de ensopado magicamente
aquecidaeumbilhetedeRhysandquedizia:
Estouentediado.Algumafaísca?
Nãofoisurpreendentequeumacanetativesseseagitadonofundodasacola.
Pegueiacanetaerabisqueiminharespostanotopodalataantesdeobservara
cartasumirdeminhamão:Não,enxerido.Nãotemcoisasimportantesafazer?
Acartavoltouummomentodepois.
Estou vendo Cassian eNestha se atracarem de novo por causa do chá.Vocême
submeteuquandomeexpulsoudotreinamento.Acheiquefossenossodiadefolga.
Ricomdebocheeescreviemresposta:TadinhodoGrão-Senhor.Avida é tão
difícil.
Opapelsumiue,então,reapareceu;aletradeleagoraestavapertodoaltodo
papel,aúnicapartedeespaçovazioquerestara.Avidaémelhorquandovocêestápor
perto.Eolhecomosualetraélinda.
Quase pude sentir Rhysand esperando do outro lado, na sala ensolarada do
cafédamanhã,prestandoatençãoemparteàbrigaentreminhairmãeoguerreiro
illyriano.Umlevesorrisocurvoumeuslábios.Vocêéumgalanteadorsem-vergonha,
escrevidevolta.
A página sumiu. Observei a palma de minha mão aberta, esperando que
retornasse.
E estava tão concentradanaquilo quenão reparei quehavia alguématrás de
mimatéqueamãocobriuminhabocaemelevantou.
Eu me debati, mordendo e arranhando, gritando conforme quem quer que
fossemelevantava.
Tenteimedesvencilhar,aneveseagitavaaonossoredor,comopoeiraemuma
estrada,masosbraçosquemepegaramnãosemoviam,eramcomofaixasdeferro
e...
Umavozroucasoouemmeuouvido:
—Pare,ouvoupartirseupescoço.
Euconheciaaquelavoz.Elaespreitavameuspesadelos.
OAttor.
OAttortinhasumidomomentosdepoisdeAmaranthamorrer;suspeitava-sede
quetivessefugidoparaoreideHybern.E,seestavaali,nasterrasmortais...
Fiquei imóvel em seus braços, ganhando umpouco de tempo para procurar
algo,qualquercoisaquepudesseusarcontraele.
—Bom—sibilouoAttoremmeuouvido.—Agorameconte...
Noiteexplodiuaonossoredor.
OAttorgritou—gritou—quandoaquelaescuridãonosengoliu;fuilargada
pelosbraçosfinoseduros,esuasunhasperfuraramminhapele.Caídecarananeve
firmeegelada.
Rolei,virandodebarrigaparacima,meagitandoparalevantar...
Aluzretornouquandomeagacheicomafacainclinada.
EláestavaRhysand,prendendooAttorcontraumcarvalhocobertodeneve,
com nada além de amarras de noite em espirais. Como aquelas que tinham
esmagadoamãodeIanthe.AsmãosdopróprioRhysandestavamnosbolsos,eo
rosto,frioelindocomoamorte.
—Estavameperguntandoparaondevocêteriarastejado.
OAttorestavaofeganteconformelutavacontraasamarras.
Rhysandapenasatirouduaslançasdenoitecontraasasasdodemônio.OAttor
gritouquandoaquelaslançasencontraramcarneeseenterraramfirmementecontra
acascadeárvoreatrásdesta.
—Respondaminhas perguntas e pode rastejar de volta para seumestre—
exigiuRhys,comoseestivesseperguntandoarespeitodotempo.
—Vadia—disparouoAttor.Sangueprateadolheescorreudasasas,chiando
aoatingiraneve.
Rhyssorriu.
— Você se esquece de que eu me divirto muito com essas coisas.— Ele
ergueuumdedo.
— Não! — O dedo de Rhys parou. — Fui enviado — disse a criatura,
ofegante.—Parabuscá-la—gritouoAttor.
Meusanguegeloutantoquantoobosqueaonossoredor.
—Porquê?—perguntouRhys,comaquelacalmacasualeassustadora.
—Essafoiminhaordem.Nãodevoquestionar.Oreiaquer.
—Porquê?—insistiuRhys.OAttorcomeçouagritar,dessavezsobaforça
deumpoderqueeunãoconseguiaver.Encolhiocorpo.
—Nãosei,nãosei,nãosei.—Acrediteinele.
—Ondeestáoreinomomento?
—Hybern.
—Exército?
—Viráembreve.
—Dequetamanho?
—Infinito.Temosaliadosemtodososterritórios,todosesperando.
Rhysinclinouacabeça,comoseconsiderasseoqueperguntaraseguir.Masele
seesticoueAzrielaterrissounaneve,lançando-apelosarescomosefosseáguaem
umapoça.Elevoara tão silenciosamentequenemouviobaterdas asas.Cassian
deviaterficadonacasaparadefenderminhasirmãs.
Não havia bondade no rosto deAzriel quando a neve baixou— amáscara
imóveldoencantadordesombrasdoGrão-Senhor.
OAttorcomeçoua tremer,equasemesentimalpelacriaturaquandoAzriel
foiandandoatéele.Quase...masnãosenti.Nãoquandoaquelesbosquesestavam
tãopertodopalacete.Deminhasirmãs.
RhysfoiparameuladoquandoAzrielchegouaoAttor.
—Dapróximavezquetentarlevá-la—falouRhysparaoAttor—,matarei
primeiro;perguntareidepois.
Azriel o encarou. Rhys assentiu. Os Sifões no topo das mãos cobertas de
cicatrizesseiluminaramcomofogoazulondulantequandoeleasestendeuparao
Attor.Antesqueacriaturapudessegritar,elaeomestre-espiãosumiram.
Nãoqueriapensarparaondeteriamido,noqueAzrielfaria.Nemmesmosabia
queAzrieltinhaahabilidadedeatravessar,ouqualquerquefosseopoderqueele
canalizarapelosSifões.Azriel permitira queRhys atravessasse conosconooutro
dia—anãoserqueopoderoexaurissedemaisparaserusadotãobanalmente.
—Azrielvaimatá-lo?—perguntei,arespiraçãoirregular.
— Não. — Estremeci diante do poder cru que cobria o corpo rígido de
Rhysand.—NósousaremosparamandarumamensagemparaHyberndeque,se
quiseremcaçarosmembrosdeminhacorte,terãodefazermelhorqueisso.
Eumeespantei;comaalegaçãoquefizerasobremimecomaspalavras.
—Vocêsabia...sabiaqueeleestavamecaçando?
—Estavacuriosoparasaberquemalevariaassimquevocêestivessesozinha.
Eunãosabiaporondecomeçar.Então,Tamlinestavacerto—emrelaçãoà
minhasegurança.Atécertoponto.Aquilonãodesculpavanada.
—Então, jamaisplanejou ficarcomigoenquantoeu treinava.Vocêmeusou
comoisca...
—Sim,efariadenovo.Vocêestavaseguraotempotodo.
—Deveriatermecontado!
—Talvezdapróximavez.
—Não haverá próxima vez!—Bati com amão no peito deRhysand, e ele
cambaleou para trás um passo devido à força do golpe. Pisquei. Tinha me
esquecido...esquecidodaquelaforçaduranteopânico.AssimcomocomaTecelã.
Tinhameesquecidodoquantoeueraforte.
—Sim,esqueceu—grunhiuRhysand,lendoasurpresaemmeurosto,aquela
calma fria se dissipando.— Esqueceu dessa força e de que pode queimar e se
tornarescuridãoecriargarras.Vocêesqueceu.Vocêparoudelutar.
ElenãoestavafalandoapenasdoAttor.OudaTecelã.
Eoódiosubiudentrodemimemumaondatãopoderosaquenãopenseiem
qualquercoisaanãoserira:comigomesma,comoquetinhasidoforçadaafazer,o
quetinhasidofeitocomigo,comele.
—Edaíseparei?—sibilei,eempurreiRhysdenovo.—Edaíseparei?
Fizmençãodeempurrá-lodenovo,masRhysatravessoualgunsmetros.
Dispareinadireçãodele,neveestalandosobmeuspés.
—Não é fácil.—O ódiome esmagava, me cegava. Ergui os braços para
golpearseupeitocomaspalmasdasmãos...
ERhyssumiudenovo.
Ele surgiu atrás de mim, tão perto que a respiração fez cócegas em minha
orelhaquandoelefalou:
—Nãotemideiadoquantonãoéfácil.
Virei,segurando-o.Rhyssumiuantesqueeuconseguisseacertá-lo,socá-lo.
Elesurgiudooutroladodaclareira,rindo.
—Tentecommaisafinco.
Nãopodiamedobraremescuridãoeparadentrodebolsões.Esepudesse...se
pudessemetransformaremfumaça,emarenoiteeestrelas,usariaissoparasurgir
bemdiantedeleearrancaraquelesorrisodeseurosto.
Eumemovi,mesmoquefosseinútil,mesmoconformeRhysondulouevirou
escuridão,eeuoodieiporaquilo:pelasasasepelahabilidadedesemovercomo
névoa ao vento. Rhys surgiu a um passo de distância, e golpeei, com as mãos
estendidas...comasgarrasestendidas...
Emechoqueicontraumaárvore.
Rhysandgargalhouquandoricocheteeiparatrás,osdenteszunindo,asgarras
doendoquandorasgaramamadeira.MaseujáestavadisparandoquandoRhysand
sumiu,disparandocomosepudessedesaparecerparaasdobrasdomundotambém,
rastreá-lopelaeternidade...
Então,consegui.
Otempoficoumaislento,epudeveraescuridãodeRhysandsetornarfumaça
evirar,comoseestivessefugindoparaoutrolugarnaclareira.Dispareiparaaquele
ponto,mesmoquandosentiminha leveza,dobrandomeupróprioseremventoe
sombraepó,aliberdadedaquiloirradiandoparaforademim,tudoissoenquanto
eumiravaparaondeRhysandsedirigia...
Eleapareceu,umafigurasólidaemmeumundodefumaçaeestrelas.
E seus olhos estavam arregalados, e a boca, entreaberta com um sorriso de
prazermalicioso,quandoatravesseiparadiantedeleeoderrubeinaneve.
Eu estava ofegante, caída sobre Rhysand na neve enquanto ele dava uma
gargalhadarouca.
—Nunca—grunhiparaorostodele—mais—empurreiosombrosduros
comorochasdeRhys,easgarrassecurvaramnaspontasdemeusdedos—meuse
comoisca.
Rhysparouderir.
Euempurreicommaisforça,aquelasunhasseenterraramnapeledele.
—Vocêdissequeeupoderiaserumaarma...meensineaviraruma.Nãome
usecomoumpeão.Ecasoserumpeãosejapartedemeutrabalhoparavocê,então,
chega.Chega.
Apesardaneve,ocorpodeRhysestavaquentesobmim,enãotinhacertezade
queeuentendiaoquantoeleeramaioratéquenossoscorposestivessemnivelados
—pertodemais.Muito,muitoperto.
Rhysinclinouacabeça,soltandoumbolodenevepresonocabelo.
—Éjusto.
EmpurreiRhysparasairdecimadele,eaneveestalouquandorecuei.Minhas
garrastinhamsumido.
Rhysseapoiounoscotovelos.
—Façaissodenovo.Memostrecomoconseguiu.
—Não.—AvelaqueRhystinhalevadoestavaempedaços,meioenterrada
sobaneve.—Querovoltaraopalacete.—Estavacomfrio,cansada,eele...
OrostodeRhysficousério.
—Desculpe.
Imagineicomquefrequênciaelediziaaquelapalavra.Nãomeimportei.
EspereiRhysselevantar,limparanevedocorpoeestenderamão.
Nãoeraapenasumaoferta.
Vocêseesqueceu,disseraRhysand.Eeutinha.
—PorqueoreideHybernmequer?Porquesabequepossoanularopoder
doCaldeirãocomoLivro?
Escuridão lampejou, o único sinal do temperamento que Rhysand tinha, de
novo,domado.
—Éoquevoudescobrir.
Vocêparoudelutar.
—Desculpe—repetiuele,aindacomamãoestendida.—Vamostomarcafé
damanhãedepoisirparacasa.
—Velarisnãoéminhacasa.
Eu podia jurar que mágoa percorreu os olhos de Rhys antes que ele nos
atravessassedevoltaparaacasademinhafamília.
Minhas irmãs tomaramcafédamanhãcomRhysecomigo;Azrielestavaonde
querquetivesselevadooAttor.Cassianvoaraparaseencontrarcomeleassimque
voltamos.ElefizeraaNesthaumareverênciadebochada,eeladevolveraumgesto
vulgarqueeunãosabiaqueminhairmãconhecia.
Cassianapenasriu,eosolhospercorreramovestidoazul-gelodeNesthacom
uma intenção predatória que, considerando o sibilo de ódio emitido por ela, ele
sabia: a deixara irritada. Então, o feérico se foi, abandonandominha irmã sob o
amploportal,oscabeloscastanho-douradosembaraçadospelovento frioagitado
pelasasaspoderosas.
Levamosminhasirmãsàcidadeparamandarnossacarta,eRhysnosencantou
para que ficássemos invisíveis enquanto elas entravam na lojinha para postá-la.
Depoisquevoltamospara casa, asdespedidas foramrápidas.Eu sabiaqueRhys
queriavoltaraVelaris—pelomenosparadescobriroqueoAttorplanejava.
Eu disse isso a ele enquanto voava conosco pela muralha, para o calor de
Prythian,edepoisnosatravessavaatéVelaris.
A névoa da manhã ainda cobria a cidade e as montanhas em volta. O frio
tambémpermanecia—masnãoeranemdepertotãoimpiedosoquantoofriodo
mundomortal. Rhys me deixou no saguão, soprando ar quente nas palmas das
mãoscongeladas,semsequerdizeradeus.
Com fome de novo, encontrei Nuala e Cerridwen e devorei bolinhos de
cebolinhacomqueijoenquantopensavanoquehaviavisto,noquetinhafeito.
Menosdeumahoradepois,Rhysmeencontrounasaladeestar,ospésparao
alto no sofá diante da lareira, um livro no colo e uma xícara de chá de rosa
fumegante na mesa de centro diante de mim. Levantei quando ele entrou,
observando-o em busca de um sinal de ferimento. Algum nó em meu peito se
afrouxouquandonãovinadadeerrado.
— Está feito — disse ele, e passou a mão pelo cabelo preto-azulado. —
Descobrimosoqueprecisávamos.—Eumeprepareiparaserisolada,paraouvir
queaquiloseriaresolvido,masRhysacrescentou:—Cabeavocê,Feyre,decidiro
quantodenossosmétodosquerconhecer.Comoquepode lidar.Oque fizemos
comoAttornãofoibonito.
—Querosabertudo—decidi.—Meleveatélá.
—OAttornãoestáemVelaris.EleestavanaCidadeEscavada,naCortede
Pesadelos,ondeAzriellevoumenosdeumahoraparafazê-lofalar.—Espereipor
mais,e,comosedecidissequeeunãopareciaprestesadesabar,Rhysseaproximou
até que menos de 30 centímetros do tapete ornamentado restasse entre nós. As
botas,emgeral impecavelmentepolidas...havia sangueprateadoborrifadonelas.
Apenasquandooencarei,Rhysfalou:—Voumostraravocê.
Eusabiaoqueelequeriadizer,emepreparei,bloqueandoofogocrepitantee
asbotas,eofrioquerestavaaoredordemeucoração.
Imediatamente, estava na antecâmara damente deRhysand... um bolsão de
lembrançaqueRhysescavaraparamim.
Escuridão fluiu ao meu redor, suave, sedutora, ecoando de um abismo de
podertãograndequenãotinhafimneminício.
—Conte como a encontrou— disse Azriel, a voz baixa que destruíra inúmeros
exércitos.
Eu— Rhys — estava encostada na parede mais afastada da cela, de braços
cruzados.Azrielseagachouemfrenteao lugarondeoAttorestavaacorrentadoauma
cadeira no centro da sala. Alguns andares abaixo, a Corte de Pesadelos seguia em
frente,alheiaaofatodequeseuGrão-Senhorviera.
Precisariavisitá-losembreve.Lembrarquemseguravaacoleira.
Embreve.Masnãohoje.NãoquandoFeyretinhaatravessado.
Eaindaestavatranstornadacomigo.
E com razão, se eu fosse honesto.Mas Azriel descobrira que uma pequena força
inimiga tinha se infiltrado no Norte havia dois dias, e minhas suspeitas foram
confirmadas.Paraafetar amimouaTamlin, eles queriamFeyre.Talvez para fazer
experimentospróprios.
OAttorsoltouumarisadabaixa.
—Recebinotíciadoreidequeeraondevocêestava.Nãoseicomoelesabia.Recebi
aordemevoeiatéamuralhaomaisrápidopossível.
A faca de Azriel estava desembainhada, apoiada em um joelho. Reveladora da
Verdade—onomeapareciaestampadonabainha,emprateadasrunasillyrianas.Ele
jádescobriraqueoAttorealgunsoutrosestavamposicionadosnoslimitesdoterritório
illyriano.FiqueitentadoajogaroAttoremumdosacampamentosdeguerraeveroque
osillyrianosfariamcomele.
OsolhosdoAttorsevoltaramparamim,brilhandocomumódioaoqualeutinha
meacostumado.
—Boasorteaotentarficarcomela,Grão-Senhor.
Azrielfalou:
—Porquê?
AspessoascostumavamcometeroerrodeacharqueCassianfosseomaisselvagem;
aquele que não podia ser domado. Mas Cassian era só esquentado — e seu
temperamentopodiaserusadoparaforjaresoldar.HaviaumódiogeladoemAzrielque
eujamaisconseguiraaquecer.Nosséculosemqueeuoconhecia,disserapoucoarespeito
da vida, daqueles anos na fortaleza do pai, trancado na escuridão.Talvez o dom de
encantar sombras tivesse vindo até ele então, talvez tivesse se ensinado a língua da
sombraedoventoedapedra.Osmeios-irmãostampoucoeramcomunicativos.Eusabia
porqueosconheci,pergunteisobreoassuntoelhesdestruíaspernasquando,emvezde
responderem,cuspiramemAzriel.
Elesvoltaramaandar...depoisdealgumtempo.
OAttorfalou:
—AchaquenãoédeconhecimentodetodosquevocêalevoudeTamlin?
Eujásabiadisso.Essaforaa tarefadeAzrielultimamente:monitorarasituação
comaCortePrimaverileseprepararparanossoataquecontraHybern.
MasTamlinfecharaasfronteiras;selara-astãofortementequenemmesmovoarpor
cimadelasànoiteseriapossível.EquaisquerouvidoseolhosqueAzrieltivesseumdia
nacortetinhamficadosurdosecegos.
—Oreipoderiaajudá-loaficarcomela,considerarpoupá-lo,setrabalhassecom
ele...
ConformeoAttor falava,vasculhei suamente, cadapensamentoeramais cruel e
terrívelqueoseguinte.Elenemmesmosabiaqueeutinhadeslizadoparadentrodela,
mas...ali:imagensdoexércitoqueforamontado,idênticoàquelecontraoqualeulutara
cinco séculos antes; dos litorais de Hybern cheios de navios, preparando-se para um
ataque; do rei, sentado no trono no castelo em ruínas. Nenhum sinal de Jurian se
arrastandoporali,oudoCaldeirão.NenhumsussurroarespeitodeoLivroocuparsuas
mentes.Tudo que oAttor tinha confessado era verdade.E a criatura não tinhamais
valor.
Az olhou por cima do ombro.OAttor entregara tudo a ele.Agora estava apenas
tagarelandoparaganhartempo.
Eumeafasteidaparede.
—Quebre suas pernas, destrua as asas e atire-o na costa de Hybern. Veja se
sobrevive.—OAttorcomeçouasedebater,aimplorar.Pareiàportaefaleiparaele:
—Lembrodetodososmomentos.Agradeçaporeupermitirquevocêviva.Porenquanto.
Não tinha me permitido ver as lembranças de Sob a Montanha: de mim, dos
outros... do que o Attor tinha feito com aquela garota humana que entreguei a
Amarantha no lugar de Feyre. Nãome permiti ver como tinha sido espancar Feyre,
atormentaretorturá-la.
Eupodia ter batido comoAttor contraasparedes.Eprecisavaque elemandasse
umamensagemmaisdoqueprecisavademinhavingança.
OAttorjágritavasobalâminaafiadadaReveladoradaVerdadequandodeixeia
cela.
Então,tudoacabou.Cambaleeiparatrás,retornandoparameucorpo.
Tamlinfecharaasfronteiras.
—QuesituaçãonaCortePrimaveril?
—Nenhuma.Apartirdeagora.MassabeatéquepontoTamlinpodeirpara...
protegeroqueeleachaqueédele.
A imagemde tinta escorrendopela parededestruídado escritório surgiu em
minhamente.
—Deveria termandadoMornaqueledia—disseRhys, comoumaameaça
silenciosa.
Erguiosescudosmentais.Nãoqueriafalarsobreaquilo.
—Obrigadapormecontar—agradeci,epegueiolivroeocháparalevaraté
oquarto.
—Feyre—disseRhys.Nãooimpedi.—Desculpe...porenganarvocêmais
cedo.
Eaquilo,medeixarentrarnamentedele...foiumaofertadepaz.
—Precisoescreverumacarta.
Acartafoibreve,simples.Mascadapalavrafoiumaluta.
Nãoporcausademeuantigoanalfabetismo.Não,agoraeupodialereescrever
muitobem.
EraporcausadamensagemqueRhys,depénosaguão,agoralia:
Saíporvontadeprópria.
Soubem-cuidadaeestousegura.Sougrataportudoquefezpormim,tudoquedeu.
Porfavor,nãovenhaatrásdemim.Nãovouvoltar.
Rhysandrapidamentedobrouacartaaomeio,eelasumiu.
—Temcerteza?
Talvezacartapudesseajudarcomqualquerquefosseasituaçãoqueestivesse
acontecendonaCortePrimaveril.Olheipelasjanelasalém.Anévoaquecobriaa
cidade tinha se dissipado, revelando um céu limpo e sem nuvens. E, de alguma
forma,minhacabeçapareciamaislevequediasantes;meses.
Haviaumacidadeláfora,queeumaltinhaobservado,oucomaqualmalme
importava.
Euqueriaaquilo:vida,pessoas.Queriavê-la,sentiraagitaçãoemmeusangue.
Semobstáculos,semlimitesparaoqueeupoderiaencontraroufazer.
—Nãosouobichodeestimaçãodeninguém—argumentei.Aexpressãode
Rhysestavacontemplativa,emepergunteiseeleselembravadequetinhamedito
amesmacoisaumavez,quandoeuestavaquaseperdida emminha culpa emeu
desesperoparaentender.—Eagora?
— Se faz alguma diferença, eu queria mesmo dar a você um dia para
descansar...
—Nãomepaparique.
—Nãoestou.Emalchamonossoencontrodessamanhãdedescansar.Masme
perdoeporprecisarfazeravaliaçõescombaseemsuacondiçãofísicaatual.
—Eudecidireiisso.EquantoaoLivrodosSopros?
—DepoisqueAzrielvoltardetratardoAttor,vaicolocarsuaoutrahabilidade
em uso e se infiltrar nas cortes das rainhasmortais para descobrir onde o estão
guardando, e quais podem ser os planos delas. E, quanto àmetade que fica em
Prythian...IremosàCorteEstivalemalgunsdiassemeupedidodevisitativersido
aprovado.Grão-Senhoresvisitandooutrascortesdeixamtodosalertas.Lidaremos
comoLivroentão.
Rhys se calou, sem dúvida esperando que eu subisse arrastando os pés, que
ficassedeprimidaefossedormir.
Bastava;jáestavacheiadedormir.
—Vocêmedisse eramelhorvisitar esta cidade ànoite.Era só conversaou
algumdiavaisedarotrabalhodememostrar?—perguntei.
SolteiumarisadabaixaenquantoRhysmeobservava.Nãomeencolhidiante
doolhar.
Quando os olhos de Rhysand encontraram os meus de novo, a boca se
contorceuemumsorrisoquemuitopoucosviam.Verdadeiradiversão—talvez
umpoucodefelicidadecomumapontadadealívio.Omachoportrásdamáscara
deGrão-Senhor.
—Jantar—disseele.—Estanoite.Vamosdescobrirsevocê,Feyrequerida,
estásódeconversa,ousepermitiráqueumSenhordaNoitealeveparasedivertir.
Amrenfoiatémeuquartoantesdojantar.Pelovisto,todossairíamosnaquelanoite.
Noandardebaixo,Cassian eMor implicavamumcomooutro sobreoque
seria mais rápido: Cassian voando uma certa distância, ouMor a atravessando.
PresumiqueAzrielestivesseperto,buscandoabrigonassombras.Esperavaqueele
tivessedescansadodepoisdelidarcomoAttor...equedescansasseumpoucomais
antesdeentrarnoreinomortalparaespionaraquelasrainhas.
Amrenpelomenosbateudessavez,antesdeentrar.NualaeCerridwen,que
tinham terminado de colocar pentes de madrepérola em meus cabelos, olharam
umavezparaadelicadafêmeaesumiramemlufadasdefumaça.
—Coisinhasassustadas—comentouAmren,os lábiosvermelhosformando
umalinhacruel.—Espectrossempresão.
—Espectros?—Eumevireinacadeiradiantedapenteadeira.—Acheique
fossemGrã-Feéricas.
—Metade—explicouAmren,avaliandominhas roupas turquesa, cobaltoe
brancas.—Espectrosnãopassamdesombrasenévoa,esãocapazesdeatravessar
paredes, pedras, seja lá o que for.Nemmesmo quero saber como aquelas duas
foramconcebidas.Grão-Feéricosenfiamospausemqualquerlugar.
Engasgueinoquepoderiatersidoumarisadaouumatosse.
—Elasdãoboasespiãs.
—PorqueachaqueagoraestãosussurrandoaoouvidodeAzrielqueestou
aqui?
—AcheiquerespondessemaRhys.
—Elasrespondemaosdois,masforamtreinadasporAzrielprimeiro.
—Estãomeespionando?
—Não.—Amrenfranziuatestaparaumfiosoltonacamisacordenuvemde
chuva. Os cabelos pretos na altura do queixo oscilaram quando ela ergueu a
cabeça.—Rhys já disse diversas vezes para não o fazerem,mas não acho que
Azriel algum dia vá confiar totalmente em mim. Então, estão relatando meus
movimentos.Ecomumbommotivo.
—Porquê?
—Porquenão?Eu ficariadesapontada seomestre-espiãodeRhysandnão
ficassedeolhoemmim.Senemmesmodesobedecesseaordensparaisso.
—Rhysnãoopunepordesobedecer?
Aquelesolhosprateadosbrilharam.
— A Corte do Sonhos é fundamentada em três coisas: defender, honrar e
preservar.Esperavaforçabrutaeobediência?MuitosdosaltosoficiaisdeRhysand
têmpoucoounenhumpoder.Elevalorizalealdade,esperteza,compaixão.Azriel,
apesardadesobediência,estáagindoparadefenderacortedeRhys,opovodele.
Então,não.Rhysandnãopuneisso.Háregras,massãoflexíveis.
—EquantoaoTributo?
—QueTributo?
Levanteidabanqueta.
—OTributo...impostos,oqueseja.Duasvezesporano.
—Háimpostossobreoshabitantesdacidade,masnãoháTributo.—Amren
emitiuumestalocomalíngua.—MasoGrão-SenhordaCortePrimaverilcobra
um.
Eunãoqueriapensarmesmonaquilo,aindanão;nãocomaquelacartaagoraa
caminhodeTamlin,seéquejánãotinhasidoentregue.Então,pegueiapequena
caixanapenteadeiraetireidedentrooamuletodeAmren.
—Aqui.—Entregueiacoisadeouroencrustadadejoias.—Obrigada.
AsobrancelhadeAmrenseergueuquandosolteioamuletonapalmadesua
mão.
—Vocêmedevolveu.
—Nãosabiaqueeraumteste.
Elacolocouoamuletodevoltanacaixa.
—Fiquecomele.Nãotemmagia.
Pisquei.
—Vocêmentiu...
Amrendeudeombros,dirigindo-seàporta.
—Encontreinofundodeminhacaixadejoias.Precisavadealgoqueafizesse
acreditarquepoderiasairdaPrisãodenovo.
—MasRhysficavaolhandoparaele...
—PorqueRhysmedeuocordãoháduzentosanos.Eleestavaprovavelmente
surpreso por vê-lo de novo, e se perguntou por que eu o tinha dado a você.
Provavelmentepreocupadocomofatodeeuterdadoajoiaavocê.
Trinquei os dentes, mas Amren já estava deslizando para a porta com um
alegre:
—Denada.
Apesardanoite fria, todasas lojas estavamabertas conformecaminhamospela
cidade.Músicostocavamnaspequenaspraças,eoPaláciodeLinhaseJoiasestava
lotadodefregueseseartistas,Grão-Feéricosefeéricosinferiores.Mascontinuamos
além deles, até o próprio rio, a água tão tranquila que as estrelas e as luzes se
misturavamnasuperfícieescura,comoumlaçodefitavivodeeternidade.
Oscinconãotinhampressaconformepasseávamosporumadasamplaspontes
demármorequeseestendiapelorioSidra,frequentementeseguindoadiante,ouse
detendoparaconversarunscomosoutros.Pelaslanternasdecoradasqueladeavam
a ponte, luzes feéricas projetavam sombras douradas nas asas dos três machos,
emoldurandoasgarrasnotopodecadauma.
Osassuntosdasconversasvariavamentreaspessoasqueconheciam,partidase
times esportivos dos quais eu jamais ouvira falar (aparentemente, Amren era a
crueleobsessivatorcedoradeumdeles),novaslojas,músicaquetinhamouvido,
clubes de que gostavam... Nenhuma menção a Hybern ou às ameaças que
enfrentávamos — sem dúvida por discrição, mas eu tinha a sensação de que
também era porque, naquela noite, naquele tempo que passávamos juntos... eles
não queriam a intromissão daquela presença terrível e horrorosa. Era como se
todosfossemapenascidadãoscomuns...atémesmoRhys.Comosenãofossemas
pessoas mais poderosas da corte, talvez de toda Prythian. E ninguém,
simplesmenteninguémnaruaparava,empalideciaoucorria.
As pessoas ficavam espantadas, talvez, um pouco intimidadas, mas... não
tinhammedo.Aquiloeratãoincomumquefiqueiemsilêncio,apenasobservando-
os:omundodeles.Anormalidadequecadaumlutavatantoparapreservar.Contra
aqualeuumdiamerevoltara,daqualmeressentira.
Masnãohavialugarcomoaquelenomundo.Nãotãosereno.Tãoamadopelo
povoepelosgovernantes.
O outro lado da cidade estava ainda mais lotado, com mecenas em roupas
elegantes indoaosmuitosteatrospelosquaispassamos.Eujamaistinhavistoum
teatro antes... nem vira uma peça, ou um concerto ou uma sinfonia. Em nossa
cidadeemruínas,tínhamos,nomáximo,músicosemenestréis;hordasdepedintes
lamuriando-seeminstrumentosimprovisados,nopiordoscasos.
Caminhamosaolongodamargemdorio,passandoporlojasecafés,emúsica
fluíadedentrodos lugares.Epensei—mesmoficandopara trásemrelaçãoaos
outros,comasmãosenluvadasenfiadasnosbolsosdosobretudoazulpesado—
que os sons daquilo tudo talvez fossem a coisa mais linda que eu já ouvira: as
pessoas,orio,amúsica;o tilintardos talheresnospratos,oarrastardascadeiras
puxadas e empurradas; os gritos de vendedores ambulantes oferecendo suas
mercadoriasconformepassavam.
Quantoeutinhaperdidonaquelesmesesdedesesperoetorpor?
Mas não mais. O sangue vital de Velaris ressoava em mim, e, em raros
momentos de silêncio, podia jurar que ouvia o mar quebrando, arranhando os
penhascosdistantes.
Porfim,entramosemumpequenorestauranteàmargemdorio,construídono
nívelmaisbaixodeumprédiodedoisandares;oespaçoeradecoradodeverdee
dourado, e mal era grande o suficiente para todos nós. E três pares de asas
illyrianas.
Masadonaosconheciaebeijoucadaumnabochecha,atémesmoRhysand.
Bem,excetoporAmren,paraquemadonafezumareverênciaantesdecorrerde
volta à cozinha enosmandar sentarnagrandemesaque ficavametadedentro e
metadeforadafachadaaberta.Anoiteestreladaestavafria,eoventofarfalhavaas
palmeiras em vasos, posicionadas commuito cuidado ao longo do parapeito do
passeio à margem do rio. Sem dúvida haviam sido enfeitiçadas para que não
morressemno inverno—assim comoo calor do restaurante evitava que o frio
perturbasseanósouaqualquerdaquelesquecomiamaoarlivre,nabeiradorio.
Então, as bandejas de comida começaram a brotar, assim como o vinho e a
conversa,ecomemossobasestrelasaoladodorio.Eujamaistinhaexperimentado
comida assim: quente, exótica, temperada, picante. Era como se a comida não
preenchesse apenas meu estômago, mas aquele buraco constante em meu peito
também.
Adona—umafêmeamagradepelenegraelindosolhoscastanhos—estava
aoladodeminhacadeira,conversandocomRhyssobreoúltimocarregamentode
especiariasquechegaraaosPalácios.
—Osmercadoresestavamdizendoqueospreçospodemsubir,Grão-Senhor,
principalmenteseosboatossobreodespertardeHybernforemverdadeiros.
No fim da mesa, senti a atenção dos demais se desviar para nós, mesmo
conformecontinuavamfalando.
Rhysserecostounacadeira,girandoataçadevinho.
—Encontraremosumaformadeevitarqueospreçossubammuito.
—Nãosepreocupe,éclaro—disseadona,retorcendoumpoucoosdedos.
—É só... é tão bom ter tantas especiarias disponíveis denovo... agoraque... as
coisasestãomelhores.
Rhys deu um sorriso gentil para a feérica, aquele que fazia com que ele
parecessemaisjovem.
—Eunãomepreocupariatanto...nãoquandoeugostotantodesuacomida.
Adonasorriu,corando,eolhouparaondeeutinhaviradoocorponacadeira
paraobservá-la.
—Estádoseugosto?
Afelicidadeemseurosto,a satisfaçãoqueapenasumdiade trabalhoárduo,
fazendoalgoqueseama,podedar,aquilomeatingiucomoumapedra.
Eu...eume lembreideque jámesentiradaquela forma.Depoisdepintarda
manhã até a noite. Certa vez, era tudo que eu queria para mim. Olhei para os
pratose,depois,devoltaparaamulherefalei:
—Vivi no reinomortal e vivi em outras cortes,mas jamais provei comida
assim.Comidaquemefazsentir...desperta.
Aquilopareceutãoidiotaquantomesentiquandoodisse,masnãoconseguia
pensar em outra forma de dizê-lo. Mas a dona assentiu como se entendesse e
apertoumeuombro.
—Então,voutrazerumasobremesaespecial—disseela,efoiatéacozinha.
Eumevireiparaoprato,masviqueRhysandmeolhava.Seu rostoparecia
maissuave,maiscontemplativodoqueeujamaisovira;aboca,levementeaberta.
Erguiassobrancelhas.Oquê?
Rhysandmedeuumsorrisoarroganteeseaproximouparaouvirahistóriaque
Morcontavasobre...
Esquecidoqueelafalavaquandoadonavoltoucomumagrandetaçademetal
cheiadelíquidonegroeacolocoudiantedeAmren.
A imediata deRhysnão tocaranoprato,mas remexeraumpouco a comida
como se estivesse realmente tentando ser educada. Quando viu a taça que foi
colocadadiantedesi,Amrenergueuassobrancelhas.
—Nãoprecisavafazerisso.
Adonafezumgestocomosombrosesbeltos.
— Está fresco e quente, e precisávamos da besta para o assado de amanhã
mesmo.
Tiveumasensaçãoterríveldequesabiaoquehaviaalidentro.
Amrengirouataça,olíquidoescurotransbordoupelaslateraiscomovinho,e
entãoelaobebeu.
—Vocêtemperoumuitobem.—SanguebrilhounosdentesdeAmren.
Adonafezumareverência.
—Ninguém deixameu estabelecimento com fome— disse ela, antes de ir
embora.
De fato, quase pedi que Mor me rolasse para fora do restaurante quando
terminamoseRhyspagouaconta,apesardosprotestosdadona.Meusmúsculos
doíamgraçasao treinamentomaiscedona florestamortal, e, emalgummomento
durantearefeição,cadapartedemimusadaparaderrubarRhysnanevecomeçoua
doer.
Moresfregouoestômagoemcírculospreguiçososconformeparamosaolado
dorio.
—Quero sair para dançar.Não conseguirei dormir tão cheia.ORita’s fica
logonofimdarua.
Dançar.Meucorpogemeuemprotestoeolheiemvoltaembuscadeumaliado
paramataraquelaideiaridícula.
MasAzriel...Azrielfalou,comosolhostotalmentevoltadosparaMor:
—Estoudentro.
—Éclaroqueestá—resmungouCassian,franzindoatestaparaele.—Não
precisapartiraoalvorecer?
A testa franzida de Mor agora copiava a de Cassian... como se tivesse
percebidoondeeoqueelefarianodiaseguinte.Então,MorfalouparaAzriel:
—Nãoprecisamos...
—Euquero—cortouAzriel,encarandoMorporbastantetempo.
Eladesviouoolhar,virouparaCassianedisse:
— Vai ousar se juntar a nós, ou tem planos de admirar seus músculos no
espelho?
Cassianriucomescárnio,entrelaçouobraçocomodeMorealevoupelarua.
—Voupelasbebidas,babaca.Nadadedança.
—GraçasàMãe.Vocêquasedestruiumeupédaúltimavezquetentou.
FoidifícilnãoencararAzrielenquantoeleobservavaosdoissubiremarua,de
braçosdados,discutindoacadapasso.Assombras se reuniramemvoltade seus
ombros,comoseestivessemdefatosussurrandoparaAzriel,protegendo-o,talvez.
Seu peito largo se expandiu com uma respiração profunda que fez as sombras
dispararem,e,depois,elecomeçouumacaminhadacasualegraciosaatrásdosdois.
SeAzrieliriacomeles,então,qualquerdesculpaqueeupudessedarparanãoir...
VolteimeusolhossuplicantesparaAmren,maseladesaparecera.
—Elafoibuscarmaissanguenosfundosparalevarparacasa—disseRhysao
meu ouvido, e me arrepiei toda. A risada de Rhys pareceu quente contra meu
pescoço.—Depois,vaidiretoatéoapartamentoparaseentupir.
TenteinãoestremecerquandomevireiparaRhys.
—Porquesangue?
—Nãopareceeducadoperguntar.
Franziatestaparaele.
—Vocêvaidançar?
Rhys olhou por cima demeu ombro para os amigos, que estavamquase no
topodaruaíngreme;algumaspessoasparavamafimdecumprimentá-los.
—Prefiroandaratéemcasa—disseRhys,porfim.—Foiumdialongo.
Morsevirounoaltodarua,asroupasroxasflutuandoaoredordocorpoao
ventodoinverno,eergueuumasobrancelhalouro-escura.Rhyssacudiuacabeça,
e ela gesticulou com a mão, ao que se seguiram gestos breves de Azriel e de
Cassian,oqualrecuouparafalarcomoirmãodeguerra.
Rhysindicouafrente.
—Vamos?Ouestácomfriodemais?
ConsumirsanguecomAmrennosfundosdorestaurantepareciamaisatraente,
massacudiacabeçaecomeceiaandaraoladodeRhysconformeseguimosorio,
nadireçãodaponte.
AbsorviacidadecomamesmafomecomqueAmrentinhaentornadoosangue
temperado,equasetropeceiaoveroreflexodecornaágua.
OArco-ÍrisdeVelarisbrilhavacomoumpunhadodejoias,comoseatintaque
tivessemusadonascasastomassevidaaoluar.
— Esta é minha vista preferida da cidade— confessou Rhys, parando ao
parapeitodemetalquepercorriaopasseiodorioeolhandoparaoquarteirãodos
artistas.—Tambémeraopreferidodeminha irmã.Meupaicostumavaprecisar
arrastá-laaoschutesegritosparaforadeVelaris,detantoqueelaamavaacidade.
Procurei a resposta certa para a tristeza silenciosa naquelas palavras. Mas,
comoumatolainútil,apenasperguntei:
— Então, por que suas casas ficam do outro lado do rio?— Encostei no
parapeito, observando os reflexos do Arco-Íris ondulando na superfície do rio,
comosefossempeixescoloridoslutandocontraacorrente.
—Porqueeuqueriaumaruacalma,parapodervisitarestabalbúrdiasempre
quequisesseeaindaassimterumlaraoqualmerecolher.
—Poderiatersimplesmentereorganizadoacidade.
—Porquediaboeumudariaalgumacoisaarespeitodestelugar?
— Não é isso o que Grão-Senhores fazem?— Meu hálito se condensava
diantedemimnanoitefria.—Oquequerem?
Rhysandobservoumeurosto.
—Temmuitascoisasquequerofazerenãoposso.
Nãotinhapercebidooquantoestávamospróximos.
—Então,quandocomprajoiasparaAmren,éparasemanternasgraçasdela,
ouporquevocêsestão...juntos?
Rhysdeuumagargalhada.
— Quando eu era jovem e burro, certa vez a convidei para minha cama.
Amren riu até ficar rouca.As joias são apenas porquegostode comprá-las para
uma amiga que trabalha muito para mim, e me protege sempre que preciso.
Permaneceremsuasgraçaséumbônus.
Nadadaquilomesurpreendia.
—Evocênãosecasoucomninguém.
—Tantas perguntas hoje.— Encarei Rhys até que ele suspirou.— Tive
amantes,masjamaismesentitentadoaconvidarumadelasacompartilharavida
comigo. E, sinceramente, acho que se tivesse perguntado, todas teriam dito que
não.
—Achei que elas estariam lutando umas com as outras para conquistar sua
mão.—ComoIanthe.
—Casar comigo significaumavida comumalvonas costas, e, sehouvesse
filhos,então,umavidasabendoqueseriamcaçadosdesdequefossemconcebidos.
Todossabemoqueaconteceucomminhafamília...emeupovosabeque,alémde
nossasfronteiras,somosodiados.
Aindanãoconheciaahistóriatoda,masperguntei:
—Porquê?Porquesãoodiados?Porquemanteremsegredoaverdadesobre
estelugar?Éumapenaqueninguémsaibaarespeitodele,dobemquefazemaqui.
—HouveumtempoemqueaCorteNoturnaeraumaCortedePesadelose
eragovernadadaCidadeEscavada.Hámuitotempo.MasumantigoGrão-Senhor
teve uma visão diferente e, em vez de permitir que o mundo visse o território
vulnerável em um momento de mudança, selou as fronteiras e deu um golpe,
eliminandoospioresdoscortesãosedospredadores,construindoVelarisparaos
sonhadores,estabelecendocomércioepaz.
OsolhosdeRhysse iluminaram,comoseelepudesseespiaropassadoever
aquilo.Comaquelesdonsincríveis,nãomesurpreenderia.
—Parapreservá-la—continuouRhys—,eleamanteveemsegredo,assim
comoseusfilhos,eosfilhosdeles.Hámuitosfeitiçosnaprópriacidade,conjurados
por ele e pelos herdeiros, que fazem com que aqueles que negociam aqui não
consigamcontarnossos segredos, eos tornamhabilidososemmentirparapoder
manteraorigemdasmercadorias,osnavios,ocultosdorestodomundo.Dizemos
boatos que aquele antigo Grão-Senhor colocou o próprio sangue vital sobre as
pedraseorioparamanteressefeitiçoeterno.
“Mas, pelo caminho, apesar das melhores intenções, a escuridão cresceu de
novo...nãotãoruimquantoforaumdia...Masruimobastanteparaquehouvesse
umadivisãopermanente emminha corte.Permitimosqueomundoveja a outra
metade, que a tema, para que jamais adivinhemque este lugar floresceu aqui.E
permitimos que a Corte dos Pesadelos continue, alheia à existência de Velaris,
porquesabemosque,semeles,algumascortesealgunsreinospodemnosatacar.E
invadir nossas fronteiras para descobrirmuitos,muitos segredos que guardamos
dosoutrosGrão-Senhoresedeoutrascortesaolongodosmilênios.”
—Então,realmente,nenhumdosoutrossabe?Nasoutrascortes?
—Nenhuma alma.Nãovai encontrá-la emumúnicomapa, oumencionada
emlivroalgumalémdaquelesescritosaqui.Talvezestejamosperdendoporsermos
tãocontidoseisolados,mas...—Rhysgesticulouparaacidadeaonossoredor.—
Meupovonãoparecesofrermuitoporisso.
Defato,elesnãosofriam.GraçasaRhyseaseuCírculoÍntimo.
—EstápreocupadocomaidadeAzàsterrasmortaisamanhã?
Rhysandtamboriloucomodedocontraoparapeito.
— É claro que estou. Mas Azriel se infiltrou em lugares muito mais
perturbadores que algumas cortes mortais. Ele acharia minha preocupação um
insulto.
—Elegostadoquefaz?Nãoaespionagem.OqueelefezcomoAttorhoje.
Rhyssuspirou.
—Édifícilsaber,eelejamaismecontará.JáviCassiandestruiroponentese
depoisvomitarastripasnofimdacarnificina,e,àsvezes,atéficardelutoporeles.
MasAzriel...Cassian tenta, eu tento,mas achoqueaúnicapessoaque consegue
fazer com que ele admita qualquer sentimento é Mor. E somente quando ela o
importunaaopontoemqueatémesmoapaciênciainfinitadeAzrielseesgota.
Sorriumpouco.
—MaseleeMor,elesnunca...?
—Issoéentreeles...eCassian.Nãosouburroouarroganteosuficientepara
mecolocarnomeio.
Oqueeucertamenteseriasemetesseonariznavidadeles.
Caminhamos em silêncio pela ponte lotada até o outro lado do rio. Meus
músculosestremeceramdiantedascolinasíngremesentrenóseacasa.
EstavaprestesaimploraraRhysquemelevassevoandoparacasaquandoouvi
trechos de música que vinha de um grupo de artistas do lado de fora de um
restaurante.
Minhas mãos ficaram inertes ao lado do corpo. Uma versão reduzida da
sinfoniaquetinhaouvidonaquelecalabouçofrio,quandoestavatãoperdidaparao
terror e o desespero que alucinei... alucinei enquanto aquelamúsica entrava em
minhacela...eimpediaqueeumedestruísse.
Emaisumavez,abelezadamelodiameatingiu,ascamadas,oritmo,aalegria
eapaz.
NuncahaviamtocadoaquelamúsicaSobaMontanha—nuncaaqueletipode
música.Eeujamaisouvimúsicanacela,excetoporaquelavez.
— Você — sussurrei, sem tirar os olhos dos músicos tocando tão
habilidosamente que até mesmo os fregueses soltaram os garfos nos cafés
próximos.—Vocêmandouaquelamúsicaparaminhacela.Porquê?
AvozdeRhysandestavarouca.
—Porqueestavasepartindo.Enãopudeencontraroutraformadesalvá-la.
A música se desenvolveu e aumentou. Eu vira um palácio no céu quando
alucinei, umpalácio entre o pôr do sol e o alvorecer... uma casa de pilastras de
pedradalua.
—EuviaCorteNoturna.
Rhysmeolhoudeesguelha.
—Nãoenvieiaquelasimagensparavocê.
Nãomeimportava.
—Obrigada.Portudo...peloquefez.Naquelaépoca...eagora.
—MesmodepoisdaTecelã?Depoisdessamanhãcomminhaarmadilhaparao
Attor?
Minhasnarinassedilataram.
—Vocêestragatudo.
Rhyssorriu,enãoreparei seaspessoasobservavamquandoeledeslizouum
braçosobminhaspernasenoslançouparaocéu.
Eupoderiaaprenderaamaraquilo,percebi.Ovoo.
Euestavalendonacama,ouvindooruídoalegredafogueiramornadebétulaque
queimavanalareiradiantedalumináriadoquarto,quandovireiapáginadolivroe
umpedaçodepapelcaiu.
Deiumaolhadanopapelcremeenaletraemesentei,reta.
Nopapel,Rhysandtinhaescrito:
Posso ser um galanteador sem-vergonha, mas pelo menos não tenho um
temperamento terrível.Você deveria vir cuidar demeus ferimentos de nossa briga na
neve.Estoutodocheiodehematomasgraçasavocê.
Algo estalou contra a cabeceira, e uma caneta rolou pelo mogno polido.
Sibilando,euapegueierabisquei:
Válamberseusferimentosemedeixeempaz.
Opapelsumiu.
Ele ficou um tempo sumido — bem mais do que deveria ter levado para
escreveraspoucaspalavrasquesurgiramnopapelquandoretornou.
Euprefeririaquevocêlambessemeusferimentosparamim.
Meu coração bateu, mais e mais rápido, e um estranho tipo de agitação
percorreuminhasveiasquandoliafrasediversasvezes.Aquiloeraumdesafio.
Fecheioslábiosparaevitarsorrirquandoescrevi:
Lambervocêonde,exatamente?
Opapelsumiuantesqueeuconseguissecompletarapontuação.
ArespostadeRhysdemorou.Então:
Ondequisermelamber,Feyre.
Eu gostaria de começar com “Em todos os lugares”, mas posso escolher, se for
necessário.
Escrevidevolta:
Esperoqueminhalínguasejamelhorqueasua.Lembrocomovocêerahorrívelnisso
SobaMontanha.
Mentira.Rhys lamberaminhas lágrimasquandoeuestavaa segundosdeme
destruir.
Ele fizera isso paramemanter distraída—memanter com raiva. Porque o
ódioeramelhorquesentirnada;porqueiraeódioeramocombustívelduradouro
naescuridãoinfinitademeudesespero.Damesmaformaqueaquelamúsicaevitou
queeuquebrasse.
Lucien fora tratar de minhas feridas algumas vezes, mas ninguém arriscara
tanto para memanter não apenas viva, mas tão mentalmente intacta quanto eu
pudesse ficar, considerando as circunstâncias. Exatamente como Rhys estava
fazendonasúltimas semanas:meprovocando, implicandocomigoparamantero
vaziolonge.Exatamentecomoelefaziaagora.
Euestavasobpressão,diziaobilheteseguintedeRhysand.Sequiser,ficariamais
que feliz emprovarqueestáerrada. Jámedisseramque soumuito,muitobomcoma
língua.
Aperteiosjoelhoseescrevidevolta:Boanoite.
Umsegundodepois,obilhetedeledizia:
Tentenãogemeraltodemaisquandosonharcomigo.Precisodemeusonodebeleza.
Eumelevantei,jogueiobilhetenofogoefizumgestovulgarparaele.
Podiaterjuradoqueumagargalhadaecooupelocorredor.
NãosonheicomRhys.
SonheicomoAttor,asgarrasemmim,meagarrandoenquantoeuerasocada.
Sonheicomarisadasibilanteecomseufedorterrível.
Masdormianoiteinteira.Enãoacordeiumasóvez.
Cassianpodiaexibirsorrisosarrogantesevulgaridadenamaiorpartedotempo,
mas,noringuedelutaemumpátioescavadodarochanoaltodaCasadoVento,
natardeseguinte,eleeraumassassinoasanguefrio.
Equandoaquelesinstintosletaisestavamvoltadosparamim...
Sobaroupadecourodeluta,mesmocomatemperaturafria,minhapeleestava
coberta de suor. Cada respiração machucava minha garganta, e meus braços
tremiamtantoqueaosequertentarusarosdedos,omindinhocomeçavaatremer
incontrolavelmente.
EuestavaobservandomeudedooscilarporvontadeprópriaquandoCassian
cobriuadistânciaentrenós,pegouminhamãoedisse:
—Issoéporqueestáforçandoasarticulaçõeserradas.Asduasprimeiras,do
indicadoredodedomédio,éondeossocosdevematingiroalvo.Acertaraqui—
instruiuele,batendoumdedocalejadonotrechodepelejároxodoarcoentremeu
mindinhoeoanelar—causarámaisdanosavocêqueaseuoponente.Temsorte
deoAttornãoquererentraremumabrigamanoamano.
Estávamosnaquilohaviaumahora,repassandoospassosbásicosdocombate
corpoacorpo.Epelovisto,eupodiaserboadecaça,comoarcoeflecha,mas...
usando meu lado esquerdo? Patética. Era tão descoordenada quanto um cervo
recém-nascidoaprendendoaandar.Socareavançarcomoladoesquerdodocorpo
aomesmotempoeraquaseimpossível,etropeceiemCassianmaisvezesdoqueo
acertei.Ossocoscomadireita,esseseramfáceis.
— Beba alguma coisa — disse Cassian. — Depois, vamos trabalhar sua
musculatura central. Não faz sentido aprender a socar se não pode sequer se
equilibrar.
Franzi a testa na direção do som de espadas se chocando no ringue de luta
abertodiantedenós.
Azriel,surpreendentemente,tinhavoltadodomundomortalantesdoalmoço.
Mor o interceptou primeiro,mas consegui um relatório em segundamão com a
explicaçãodeRhysdequeeletinhaencontradoalgumtipodebarreiraemvoltado
palácio das rainhas e precisara retornar para avaliar o que poderia ser feito a
respeito.
Avaliar...eficardeprimido,aoqueparecia,poisAzrielmalconseguiramedar
umoi educadoantesde começar a lutar comRhysand,o rosto sombrio e tenso.
Estavam naquilo havia uma hora, as lâminas finas eram como lampejos de
mercúrioconformeosdoissemoviamemcírculos.Imagineiseeraparapraticarou
paraqueRhysajudasseomestre-espiãoaselivrardafrustração.
Em algum momento desde que eu olhara pela última vez, apesar do dia
ensolaradodeinverno,osdoistinhamtiradooscasacosdecouroeascamisas.
Os braços bronzeados e musculosos estavam cobertos do mesmo tipo de
tatuagens que adornavam minha mão e meu antebraço, o nanquim fluía pelos
ombroseporcimadosmúsculospeitoraisesculturais.Entreasasas,umalinhade
tatuagensdesciapelacolunavertebral,bemabaixodeondeosfeéricostipicamente
prendiamaslâminas.
— Recebemos as tatuagens quando somos iniciados como guerreiros
illyrianos, para dar sorte e glória no campo de batalha — explicou Cassian,
seguindo meu olhar. Duvidava de que Cassian estivesse se deleitando com o
restantedaimagem,noentanto:osmúsculosdoestômagodeambosreluzindocom
suoràluzdosol,acontraçãodosmúsculosdaspoderosascoxas,aforçadelineada
nascostas,cercandoaquelasasaspoderosas,lindas.
Morteemasaságeis.
O título surgiu do nada, e, por ummomento, vi a pintura que eu criaria: a
escuridãodaquelasasas,fracamenteiluminadasporlinhasdevermelhoedourado
sob o radiante sol do inverno, o brilho das lâminas, a severidade das tatuagens
contraabelezadosrostos...
Pisquei,ea imagemsumiucomoumanuvemdehálitoquenteemumanoite
fria.
Cassianindicouosirmãoscomoqueixo.
—Rhysestá forade formaenãoadmite,masAzriel éeducadodemaispara
espancá-loatécairnaterra.
Rhys parecia qualquer coisa, menos fora de forma. Que o Caldeirão me
cozinhasse,quediaboelescomiamparateraquelaaparência?
Meus joelhos tremeramumpoucoquandocaminheiatéobanquinhoaoqual
Cassian tinha levadouma jarradeáguaedoiscopos.Eumeservideum,emeu
mindinhotremiadescontroladamentedenovo.
Minhatatuagem,percebi,tinhasidofeitacommarcasillyrianas.Talvezfossea
forma do próprio Rhys de me desejar sorte e glória enquanto enfrentava
Amarantha.
Sorteeglória.Nãomeimportariadeumpoucodecadaultimamente.
Cassian encheu um copo para si e brindou comigo, bemdiferente do brutal
mestredelutasque,momentosantes,mefizeracaminharemmeioasocos,golpear
suasalmofadasdetreinoetentarnãodesabarnochãoimplorandopelamorte.Bem
diferentedomachoqueenfrentaraminhairmã,incapazderesistirasetestarcontra
oespíritodeaçoechamasdeNestha.
—Então—falouCassian, tomandoa água.Atrásdenós,Rhys eAzriel se
chocaram,sesepararamesechocaramdenovo.—Quandovaifalarsobrecomo
escreveuumacartaaTamlindizendoaelequepartiudevez?
Aperguntameacertoutãocruelmentequedisparei:
—Que tal quando você falar sobe como provoca e implica comMor para
escondero quequer que sente por ela?—Porque eunão tinhadúvidas de que
Cassianestavabastante cientedopapelque tinhanopequeno triânguloamoroso
deles.
Osomdepassosestalandoelâminassechocandoatrásdenósparou...então
retornou.
Cassiansoltouumarisadasobressaltadaeáspera.
—Notíciavelha.
—Tenhoasensaçãodequeéissooqueelaprovavelmentedizsobrevocê.
—Volteparaoringue—mandouCassian,apoiandoocopovazio.—Nada
deexercíciosparaamusculaturacentral.Apenaspunhos.Querserengraçadinha,
entãoaprendasedefender.
Mas a pergunta queCassian tinha feito tomou conta deminhamente.Você
partiudevez;vocêpartiudevez;vocêpartiudevez.
Eutinha... sidosincera.Massemsaberoqueeleachava,seelese importaria
tanto... Não, eu sabia que ele se importaria. Provavelmente tinha destruído a
mansãonumataquedeódio.
SeasimplesmençãoaTamlindequeeleestavamesufocandoofizeradestruir
oescritório,então,aquilo...Eu tinha ficadocommedodaquelesataquesdepuro
ódio,intimidadaporeles.Eaquiloforaamor...euoamaratãoprofundamente,tão
imensamente,mas...
—Rhyscontouavocê?—perguntei.
Cassianteveasabedoriadeparecerumpouconervosodiantedaexpressãoem
meurosto.
—EleinformouaAzriel,queestá...monitorandoascoisaseprecisasaber.Az
mecontou.
—Presumoque tenha sido enquanto estavam forabebendo edançando.—
Entorneiorestodaáguaevolteiparaoringue.
—Ei!—chamouCassian,segurandomeubraço.Osolhosdeavelãestavam
mais esverdeados que marrons naquele dia.— Desculpe. Não quis atingir um
nervo.Az sóme contouporque contei a ele que eu precisava saber paraminhas
forças;saberoqueesperar.Nenhumdenós...nãoachamosqueéumapiada.Você
tomouumadecisãodifícil.Umadecisãomuitodifícil.Foisóumatentativaimbecil
minhadetentarversevocêprecisavafalasobreisso.Desculpe—repetiuCassian,
deixandooassuntodelado.
Aspalavras trôpegas, a sinceridadenosolhosdele...Assenti quando retomei
meulugar.
—Tudobem.
Embora Rhysand continuasse lutando com Azriel, eu podia jurar que seus
olhos estavam em mim — desde o momento em que Cassian fizera aquela
pergunta.
Cassianenfiouasmãosnasalmofadasdetreinoeasergueu.
—Trintasériesdedoissocoscada;depois,quarenta;depois,cinquenta.—Fiz
um gesto de sofrimento para ele por cima das almofadas enquanto enfaixava as
mãos. — Não respondeu minha pergunta — falou Cassian, com um sorriso
hesitante, umque eu duvidava que seus soldados ou os irmãos illyrianos jamais
viam.
Aquilotinhasidoamor,eeutinhasidosincera;afelicidade,odesejo,apaz...
Sentitodasessascoisas.Umdia.
Posicioneiaspernaseerguiasmãosatéaalturadorosto.
Mastalvezessascoisastivessemmecegadotambém.
Talveztivessemsidocomoumcobertorsobremeusolhosnoquediziarespeito
aotemperamento.Anecessidadedecontrole,anecessidadedeprotegerqueeratão
profundaapontodeTamlinmetrancafiar.Comoumaprisioneira.
—Estoubem—assegurei,avançandoesocandocomoladoesquerdo.Fluida,
suavecomoseda,comosemeucorpoimortaltivesse,porfim,sealinhado.
MeupunhosechocavacontraaalmofadadetreinodeCassian,retornandotão
rápido quanto a mordida de uma cobra quando golpeei com o lado direito, o
ombroeopégirando.
—Um— contou Cassian. De novo, golpeei, um-dois.—Dois. E bem é
bom...beméótimo.
Denovoedenovo.
Nósdoissabíamosque“bem”eraumamentira.
Eu tinha feito tudo... tudo por aquele amor. Tinha me despedaçado, tinha
matado inocentes eme degradado, e ele tinha se sentado ao lado de Amarantha
naqueletrono.Enãoconseguirafazernada,nãoarriscara;nãoarriscaraserpego
atéquerestasseumanoite,etudoqueelequisfazernãofoimelibertar,mastrepar
comigoe...
Denovoedenovoedenovo.Um-dois;um-dois;um-dois...
E quandoAmaranthame destruiu, quando ela partiumeus ossos e fezmeu
sanguefervernasveias,eleapenasseajoelhoueimplorouaela.Nãotentoumatá-
la,nãorastejoupormim.Sim,lutoupormim...maseuluteimaisporele.
Denovo,denovo,denovo,cadasocodemeuspunhosnasalmofadasdetreino
eramumaperguntaeumaresposta.
Eeleteveaousadia,depoisqueseuspoderesretornaram,demejogaremuma
jaula.Aousadia de dizer que eu não eramais útil; eu deveria ficar enclausurada
paraapazdeespíritodele.Tamlinmederatudodequeeuprecisavaparametornar
quemera,mesentirsegura,e,quandoconseguiuoquequis,quandoconseguiuo
poder de volta, as terras de volta... parou de tentar. Ainda era bom, ainda era
Tamlin,masestavasimplesmente...errado.
Então,comeceiachorarentreosdentestrincados,aslágrimaslavandoaquela
ferida infeccionada, e não me importei que Cassian estivesse ali, ou Rhys, ou
Azriel.
Ochoquedaslâminascessou.
Depois, meus punhos se chocaram contra pele exposta, e percebi que tinha
socadoatérasgarasalmofadasdetreino—não,queimaraasalmofadase...
Epareitambém.
As faixas emminhasmãoseramagoramerosborrõesde fuligem.Aspalmas
erguidasdeCassianaindaestavamdiantedemim—prontasparareceberogolpe
seeuprecisassedá-lo.
—Estoubem—disseele,emvozbaixa.Comsuavidade.
Etalvezeuestivesseexaustaepartida,massussurrei:
—Euosmatei.
Nãotinhaditoaspalavrasemvozaltadesdequeacontecera.
OslábiosdeCassiansecontraíram.
—Eusei.—Nemreprimenda,nemparabéns.Mascompreensãosombria.
Minhasmãosrelaxaramquandooutrosoluçopercorreumeucorpo.
—Deveriatersidoeu.
Eláestava.
Bem ali, sob o céu limpo, o sol de inverno emminha cabeça, nada aomeu
redor, exceto rocha, nenhuma sombra na qual me esconder, nada a que me
agarrar...Láestava.
Então,aescuridãodeslizouparamim,escuridãotranquilizadora,suave—não,
sombras—eumcorpomasculinocobertode suorparoudiantedemim.Dedos
carinhosos erguerammeuqueixoatéqueeuolhassepara cima... parao rostode
Rhysand.
As asas de Rhys nos envolveram, nos encasularam, a luz do sol projetou a
membrana em dourado e vermelho. Além de nós, do lado de fora, em outro
mundo, talvez, os sons de aço contra aço — Cassian e Azriel lutando —
começaram.
—Vocêvaisentirissotodososdiaspelorestodavida—disseRhysand.De
tãoperto,euconseguiasentirocheirodesuornele,ocheirodemarealgocítrico
porbaixo.OsolhosdeRhyseramsuaves.Tenteiviraro rosto,masele segurou
meuqueixo.—Eseidissoporqueeumesintoassimtodososdiasdesdequeminha
mãe e minha irmã foram assassinadas e precisei enterrá-las eu mesmo, e nem
mesmoavingança consertou as coisas.—Rhysand limpou as lágrimas emuma
bochecha, depois, outra.—Pode deixar que isso a destrua, deixar que a leve à
morte,comoquasefezcomaTecelã,oupodeaprenderavivercomisso.
Porum longomomento, apenas encareio rosto sinceroe calmo—talvezo
verdadeirorostodeRhys,aqueleporbaixodetodasasmáscarasqueeleusavapara
manteropovoasalvo.
—Sintomuito...porsuafamília—murmurei,avozrouca.
— Sinto muito por não ter encontrado uma forma de poupá-la do que
aconteceuSob aMontanha—disseRhys, igualmente baixo.—Demorrer.De
querermorrer.—Comeceiasacudiracabeça,masRhysfalou:—Tenhodoistipos
de pesadelos: aqueles emque soumais uma vez a vadia deAmarantha oumeus
amigossão...Eaquelesemqueouçoseupescoçoestalarevejoa luzdeixarseus
olhos.
Não tive resposta para aquilo... para o tom da voz intensa e grave. Então,
examinei as tatuagens no peito e nos braços de Rhysand, o brilho da pele
bronzeada, tão dourada agora que não estava mais enjaulado dentro daquela
montanha.
Pareioescrutínioquandochegueiaosmúsculosemformade“V”quesurgiam
dapartedebaixodacinturadesuacalçadecouro.Emvezdisso,flexioneiamão
diante do corpo, e minha pele estava quente com o calor que havia queimado
aquelasalmofadas.
— Ah — disse Rhysand, e as asas retornaram conforme ele as recolheu
graciosamenteatrásdocorpo.—Isso.
Semicerreiosolhoscomainundaçãodaluzdosol.
—CorteOutonal,certo?
Rhyspegouminhamão,examinando-a,apelejáestavaferidadevidoàluta.
—Certo.UmpresentedeseuGrão-Senhor,Beron.
OpaideLucien.Lucien...Imagineioqueeleachavadaquilo tudo.Sesentia
minhafalta.SeIanthecontinuava...caçandoLucien.
Ainda lutando,Cassian eAzriel estavam fazendoomelhorparanãoparecer
quebisbilhotavam.
—Nãosoubemversadonascomplexidadesdosdonselementaresdeoutros
Grão-Senhores — explicou Rhys. — Mas podemos descobrir, um dia após o
outro,seforpreciso.
—Sevocê é oGrão-Senhormais poderosodahistória... será que isso quer
dizerqueagotaquerecebidevocêtemmaisforçaqueasdosdemais?—Porque
eutinhaconseguidoentrarnamentedeledaquelavez?
—Tente.—Rhysinclinouoqueixoemminhadireção.—Vejaseconsegue
conjuraraescuridão.Nãovoupedirquetenteatravessar—acrescentou,comum
sorriso.
—Nãoseicomofizisso,parainíciodeconversa.
—Desejequetomevida.
Euoencareiinexpressivamente.
Rhysdeudeombros.
—Tentepensaremmim,emcomosoubonito.Quantosoutalentoso...
—Quantoéarrogante.
—Issotambém.—Rhyscruzouosbraçossobreopeitonu,eomovimento
fezosmúsculosdeseuestômagosecontraírem.
—Aproveiteecoloqueumacamisa—provoquei.
Umsorrisofelino.
—Issoadeixadesconfortável?
—Ficosurpresapornãohavermaisespelhosnestacasa,poisvocêpareceamar
tantoseolhar.
Azrielteveumataquedetosse.Cassianapenasseviroucomamãotapandoa
boca.
OslábiosdeRhyssecontraíram.
—AíestáaFeyrequeadoro.
Fizumacareta,masfecheiosolhosetenteiolharparadentro—nadireçãode
qualquercantoescuroqueeupudesseencontrar.Haviamuitos.
Atédemais.
E nomomento... nomomento cada um deles continha a carta que eu tinha
escritonodiaanterior.
Umadespedida.
Porminhasanidade,porminhasegurança...
—Hátiposdiferentesdeescuridão—falouRhys.Mantiveosolhosfechados.
—Háaescuridãoqueassusta,aescuridãoqueacalma,aescuridãododescanso.—
Visualizeicadauma.—Háaescuridãodosamantes,eaescuridãodosassassinos.
Ela se torna o que o portador deseja que seja, precisa que seja. Não é
completamenteruimouboa.
Só vi a escuridão da cela daquele calabouço; a escuridão do covil do
EntalhadordeOssos.
Cassian xingou, mas Azriel murmurou um desafio baixinho que fez suas
lâminassechocaremnovamente.
—Abraosolhos.—Abri.
Eencontreiescuridãoaomeuredor.Nãodemim...masdeRhys.Comoseo
ringuedelutativessesidovarrido,comoseomundoaindaestivesseparacomeçar.
Silenciosa.
Suave.
Pacífica.
Luzescomeçaramapiscar:pequenasestrelas,írisfluorescentesdeazuleroxoe
branco.Estendiamãonadireçãodeuma,eluzestelardançounaspontasdemeus
dedos.Bemlonge,emoutromundotalvez,AzrieleCassianlutavamnaescuridão,
semdúvidausando-acomoexercíciodetreinamento.
Moviaestrelaentremeusdedos,comoumamoedanamãodeummágico.Ali,
naescuridão tranquilizadorae reluzente,umfôlegoapaziguadorpreencheumeus
pulmões.
Não conseguiame lembrardaúltimavezque tinha feito tal coisa.Respirara
comfacilidade.
Então,aescuridãosepartiuesumiu,maiságilquefumaçaaovento.Eumevi
piscandodenovonosolofuscante,comobraçoaindaestendido,Rhysandainda
diantedemim.
Aindasemcamisa.
Elefalou:
—Podemos trabalhar nisso depois. Por enquanto.—Rhys cheirou.—Vá
tomarumbanho.
Mostrei a ele um gesto particularmente vulgar... e pedi que Cassian voasse
comigoparacasaemvezdeRhys.
–Nãodancemuitona ponta dos pés—disseCassianparamimquatrodias
depois,enquantopassávamosahabitual tardemornanoringuedetreino.—Pés
plantados, adagas em punho. Olhos nos meus. Se estivesse em um campo de
batalha,estariamortacomaquelemovimento.
Amren riu com escárnio enquanto limpava as unhas sentada em uma
espreguiçadeira.
—Elaouviudasprimeirasdezvezesquevocêfalou,Cassian.
—Continue falando,Amren, e vou arrastá-la para o ringue e ver o quanto
realmentetempraticado.
Amrenapenascontinuoulimpandoasunhas;comumossominúsculo,percebi.
—Metoque,Cassian,evouarrancarsuapartepreferida.Pormenorqueseja.
Elesoltouumarisadagrave.Depéentreosdoisnoringuedetreinonoaltoda
Casa do Vento, uma adaga em cada mão, suor escorrendo por meu corpo, me
perguntei se deveria encontrar uma forma de fugir. Talvez atravessar... embora
não tivesse conseguido fazer isso de novo desde aquelamanhã no reinomortal,
apesardemeusesforçossilenciososnaprivacidadedoquarto.
Quatrodiasdaquilo:treinandocomCassian,entãotrabalhandocomRhysem
tentarconjurarchamasouescuridão.Nãoerasurpresaqueeutivesseprogredido
maiscomoprimeiro.
AindanãotinhamchegadonotíciasdaCorteEstival.OudaCortePrimaveril,
comrelaçãoaminhacarta.Eunãosabiaseaquiloerabom.Azrielcontinuoucom
suatentativadeseinfiltrarnascortesdasrainhashumanas,arededeespiõesagora
buscavaumaposiçãoparaentrar.Ofatodeeleaindanãoterconseguidoodeixara
maissilenciosoqueonormal...maisfrio.
OsolhosprateadosdeAmrenseergueramdasunhas.
—Quebom.Podebrincarcomela.
— Brincar com quem? — indagou Mor, saindo das sombras do vão das
escadas.
AsnarinasdeCassiansedilataram.
—Aondefoinaoutranoite?—perguntoueleaMor,semsequerumacenode
cumprimento.—NãoavisairdoRita’s.—Osalãoquefrequentavamparabeber
efestejar.
Elestinhammearrastadoparaforaduasnoitesantes,epasseiamaiorpartedo
temposentadanamesa,medemorandocomovinho,falandoporcimadamúsica
comAzriel,quechegaracomvontadedeficarremoendosuaspreocupações,mas
relutantemente me acompanhou em ver Rhys fazer a corte no bar. Fêmeas e
machosseguiamRhysandpelosalão...eoencantadordesombraseeufizemosum
jogo,apostandoemquem,exatamente,teriacoragemdeconvidaroGrão-Senhor
atéacasa.
NãofoisurpresaqueAztivessevencidotodasaspartidas.Masaomenosestava
sorrindonofimdanoite...paraafelicidadedeMorquandoelavoltoucambaleando
paranossamesa,afimdeentornaroutrabebidaantesdedeslizardevoltaàpistade
dança.
Rhysnãoaceitounenhumadasofertasfeitas,nãoimportavaoquantofossem
belos,oquantosorrissemegargalhassem.Easrecusaserameducadas;firmes,mas
educadas.
Será que tinha estado com alguém desdeAmarantha? Será que queria outra
pessoaemsuacamadepoisdeAmarantha?Mesmoovinhonãomederacoragem
paraperguntaraAzrielarespeito.
Mor, ao que parecia, ia ao Rita’s mais que qualquer um — praticamente
moravaali,naverdade.EladeudeombrosdiantedaperguntadeCassian,eoutra
espreguiçadeiracomoadeAmrensurgiu.
—Eusó...saí—respondeuela,sentando-se.
—Comquem?—insistiuCassian.
—Daúltimavezqueverifiquei—disseMor,recostando-senacadeira—não
recebiaordensdevocê,Cassian.Oumereportavaavocê.Então,ondeeuestavae
comquemestavanãoédaporcariadesuaconta.
—TambémnãocontouaAzriel.
Parei, sopesando aquelaspalavras, os ombros rígidosdeCassian. Sim,havia
alguma tensão entre ele eMor que resultara naquela implicância,mas... talvez...
talvezCassianaceitasseopapeldeamortecedornãoparamantê-losseparados,mas
paraevitarqueoencantadordesombrasseferisse.Quesetornassenotícia velha,
comoeuotinhachamado.
Cassianfinalmenteselembroudequeeuestavaparadadiantedele,reparouno
olhardecompreensãoemmeurostoemedeuumdeavisoemtroca.Justo.
Dei de ombros e tomei um momento para apoiar as adagas e recuperar o
fôlego.Porumsegundo,desejeiqueNesthaestivesseali,apenasparaverosdoisse
bicarem. Não tínhamos ouvido nada de minhas irmãs ou das rainhas mortais.
Imagineiquandomandaríamosoutracarta,outentaríamosoutrocaminho.
—Porque,exatamente—disseCassianaAmreneMor,semsequersedaro
trabalhodetentarsoaragradável—,vocês,damas,estãoaqui?
Morfechouosolhosquandoinclinouacabeçaparatrás,deixandoosolbater
no rosto dourado com a mesma irreverência da qual Cassian talvez tentasse
proteger Azriel; e a própria Mor talvez tentasse proteger Azriel de si mesma
também.
— Rhys virá em alguns momentos para nos dar notícias, aparentemente.
Amrennãolhedisse?
— Esqueci — comentou Amren, ainda limpando as unhas. — Estava me
divertindo demais vendo Feyre fugir das técnicas infalíveis de Cassian para
conseguircomqueaspessoasfaçamoqueelequer.
AssobrancelhasdeCassianseergueram.
—Vocêestáaquiháumahora.
—Ops!—exclamouAmren.
Cassianergueuasmãos.
—Levantedacadeiraepaguevinteflexões...
Umgrunhidocruelesobrenaturalointerrompeu.
MasRhysdesceuasescadasenãopudedecidirsedeveriamesentiraliviadaou
desapontadaporquealutaCassianversusAmrenfoitãosubitamenteinterrompida.
Eleestavacomasroupasfinas,nãoocourodeluta,asasasforadevista.Rhys
olhouparatodos,paramim,paraasadagasqueeutinhadeixadonaterra,edepois
disse:
—Desculpeinterromperquandoascoisasficavaminteressantes.
—Felizmente,paraasbolasdeCassian—disseAmren,aninhando-sedevolta
naespreguiçadeira—,vocêchegounahoracerta.
Cassiandeuumgrunhidofracoparaela.
Rhysgargalhouedisseparanenhumdenósemespecial:
—Prontosparatirarumasfériasdeverão?
—ACorteEstivalconvidouvocê?—QuissaberMor.
—Éclaroquesim.Feyre,Amreneeuvamosamanhã.
Apenasnóstrês?Cassianpareceupensaromesmo,asasasfarfalharamquando
cruzouosbraçoseencarouRhys.
— A Corte Estival é cheia de tolos esquentados e canalhas arrogantes—
avisouele.—Eudeveriairjunto.
—Vocêseencaixariadireitinho—cantarolouAmren.—Éumapenaquenão
vaimesmoassim.
Cassianapontouodedoparaela.
—Cuidado,Amren.
Elaexibiuosdentesemumsorrisomalicioso.
—Acrediteemmim,prefironãoirtambém.
Fecheiabocaparaconterumsorrisoouumacareta,nãosabiaqual.
Rhysesfregouastêmporas.
—Cassian,considerandoofatodequedaúltimavezquevisitou,nãoacabou
bem...
—Eudestruíumprédio...
—E—interrompeuRhys.—Considerandoquemorremdemedodadoce
Amren,elaéaescolhamaissábia.
EunãosabiasehaviaalguémvivoquenãomorriademedodeAmren.
—Poderiafacilmenteserumaarmadilha—insistiuCassian.—Quempode
dizer que o atraso na resposta não foi porque estão contatando nossos inimigos
parafazerumaemboscada?
—ÉporissotambémqueAmrenvai—explicouRhys,simplesmente.
Amrenfranziaatesta;entediadaeirritada.
Rhyscontinuou,casualmentedemais:
—HátambémmuitotesouroquepodeserencontradonaCorteEstival.Seo
Livro estiver escondido, Amren, você pode encontrar outros objetos de que
gostará.
—Merda!—xingouCassian,erguendoasmãosdenovo.—Sério,Rhys?Jáé
ruimobastantequevamosfurtardeles,masroubardescaradamente...
—Rhysandtemrazão—ponderouAmren.—OGrão-Senhordeleséjovem
e inexperiente. Duvido que tenha tido muito tempo para catalogar o tesouro
herdadodesdequefoinomeadoSobaMontanha.Duvidoquesaibaquetemalgo
faltando.Muitobem,Rhysand...Estoudentro.
Nãoeramesmomelhorqueumdragãocuspidordefogoguardandootesouro.
Morme lançouumolhar secreto, sutil, que comunicavaomesmo, e engoli uma
risada.
Cassiancomeçouaprotestardenovo,masRhysdisse,baixinho:
—Vouprecisardevocê,nãodeAmren,noreinohumano.ACorteEstivalo
baniu pela eternidade, e, embora sua presença servisse como uma boa distração
enquantoFeyre faz o que precisa, poderia levar amais problemasdoquevale a
pena.
Enrijeciocorpo.Oqueeuprecisavafazer...ouseja,rastrearaqueleLivrodos
Soproseroubá-lo.Feyre,QuebradoradaMaldição...eladra.
— Apenas fique calmo, Cassian— disse Amren, com os olhos um pouco
distantes, pois sem dúvida imaginava o tesouro que poderia roubar da Corte
Estival.— Ficaremos bem sem sua arrogância e sem que saia grunhindo para
todos.OGrão-SenhordelesdeveumfavoraRhysporlhetersalvadoavidaSoba
Montanha,eporterguardadoseussegredos.
AsasasdeCassianestremeceram,masMorseintrometeu:
—EoGrão-Senhorprovavelmentetambémquersaberqualénossaposição
noconflitoiminente.
AsasasdeCassianseacalmaramdenovo.Eleinclinouoqueixoparamim.
—Feyre,noentanto...Umacoisaé tê-laaqui,mesmoquando todossabem.
Outracoisaélevá-laparaumacortediferenteeapresentá-lacomoummembroda
sua.
A mensagem que aquilo mandaria para Tamlin. Como se minha carta não
bastasse.
MasRhystinhaterminado.EleinclinouacabeçaparaAmrenecaminhouatéo
portalemarco.Cassianavançouumpasso,masMorergueuamão.
—Esqueça—murmurouela.Cassianaolhoucomraiva,masobedeceu.
Tomei isso comouma chance de seguirRhys, a escuridão quente dentro da
Casa do Ventome cegava.Meus olhos feéricos se ajustaram rapidamente, mas,
durante os primeiros passos pelo estreito corredor, segui Rhys apenas pela
memória.
—Maisalgumaarmadilhadaqualeudevasaberantesdepartirmosamanhã?
—pergunteiàscostasdele.
Rhysolhouporcimadoombro,parandonoaltodaplataformadasescadas.
—Eaquiestavaeu,pensandoqueseusbilhetesnaoutranoiteindicavamque
meperdoara.
Presteiatençãoàquelemeiosorriso,aopeitoqueeutalveztivessesugeridoque
lamberia,eparaoqualevitaraolharduranteosúltimosquatrodias,epareiauma
distânciasegura.
—EradesepensarqueumGrão-Senhorteriacoisasmaisimportantesafazer
quepassarbilhetinhosdeumladoparaoutroànoite.
—Tenhocoisasmaisimportantesafazer—ronronouRhys.—Masachoque
souincapazderesistiràtentação.Damesmaformaquevocênãopoderesistirame
observarsemprequesaímos.Tãociumenta.
Minhaboca ficouumpouco seca.Mas... flertar comele, lutar comele...Era
fácil.Divertido.
Talvezeumerecesseaquelasduascoisas.
Então,encurteiadistânciaentrenós,passeisuavementeporRhysefalei:
—VocênãoconsegueficarlongedemimdesdeoCalanmai,aoqueparece.
AlgoondulounosolhosdeRhysand,algoquenãoidentifiquei,maseledeuum
petelecoemmeunariz...comtantaforçaqueeusibileiebatiemsuamão.
—MalpossoesperarparaveroqueessasualínguaafiadapodefazernaCorte
Estival—disseRhys,comoolharfixoemminhaboca,esedissipounasombra.
Nofimdascontas,apenasAmreneeunosjuntamosaRhys;Cassianfracassara
emconvenceroGrão-Senhor,Azrielaindaestavafora,supervisionandosuarede
de espiões e investigando o reino humano, e Mor fora incumbida de cuidar de
Velaris.RhysatravessariaconoscodiretoparaAdriata,acidade-castelodaCorte
Estival— e ali nós ficaríamos, por quanto tempo fosse necessário para que eu
detectasseeentãoroubasseaprimeirametadedoLivro.
ComoomaisnovobichodeestimaçãodeRhys,euteriadireitoapasseiospela
cidadeeamehospedarnaresidênciapessoaldoGrão-Senhor.Setivéssemossorte,
nenhum deles perceberia que o cachorrinho deRhys na verdade era um cão de
caça.
Eeraumdisfarcemuito,muitobom.
RhyseAmrenestavamnosaguãodacasanodiaseguinte,osolabundanteda
manhã entrava pelas janelas e cobria o tapete ornamentado. Amren usava os
habituais tonsdecinza—acalça largacomcós logoabaixodoumbigo,ablusa
esvoaçantecurtaosuficienteparamostrarumtrechoínfimodepelenotronco.Tão
atraentequantoummarcalmosobumcéudetempestade.
Rhys estava de preto da cabeça aos pés, acentuado pelo bordado prateado...
nenhuma asa. O macho contido e sofisticado que eu conhecera. Sua máscara
preferida.
Paramim,escolhiumvestido lilásesvoaçante,as saiasoscilandoaumvento
inexistente, sob o cinto encrustado de prata e pérolas. Flores noturnas prateadas
combinandoforambordadasapartirdabainha,roçandominhascoxas,ealgumas
mais se entrelaçavam pelas dobras de meus ombros. O vestido perfeito para
combaterocalordaCorteEstival.
Ovestidofarfalhouesuspirouconformedesciosdoisúltimoslancesdeescada
atéosaguão.Rhysmeobservoucomumolharlongoeindecifrável,desdeospés
em sandálias de prata até o cabelo presopelametade.Nuala cacheara asmechas
que tinhamsidodeixadasparabaixo—cachosmaciose levesqueressaltavamo
douradoemmeuscabelos.
Rhysapenasdisse:
—Bom.Vamos.
Minhabocaseabriu,masAmrenexplicoucomumsorrisoamploefelino:
—Eleestáirritadinhoestamanhã.
— Por quê?— perguntei, observando Amren pegar a mão de Rhys, e os
dedosdelicadospareciamencolhernosdele.Rhysestendeuaoutramãoparamim.
—Porque—respondeuRhysporAmren—fiqueiforaatétardecomCassian
eAzrieleelesmelimparamnascartas.
—Mauperdedor?—Segurei amãodele.Os calos deRhys arranharamos
meus,oúnicolembretedoguerreirotreinadosobasroupaseamáscara.
—Eusouquandomeusirmãossejuntamcontramim—murmurouRhys.Ele
nãoofereceuavisoantesdesumiremumventodameia-noite;então...
Eu estava semicerrando os olhos diante do sol incandescente em um mar
turquesa,aomesmotempoquetentavareorganizarmeucorposobocalorsecoe
sufocante,mesmocomabrisarefrescantedaágua.
Pisquei algumas vezes... e foi o máximo de reação que me permiti mostrar
quandomedesvencilheidamãodeRhys.
Parecíamosestardepéemumaplataformadepousonabasedeumpaláciode
pedra, o próprio prédio ficava empoleirado no alto de uma ilha-montanha, no
coraçãodeumabaíaemmeia-lua.Acidadeseestendiaaoredoreabaixodenós,na
direção daquele mar reluzente; os prédios eram todos feitos daquela pedra, ou
brilhavam com um material branco que podia ser coral ou pérola. Gaivotas
sobrevoavamosmuitos torreões e pináculos, nenhumanuvemacimadelas, nada
comelasnabrisa,alémdearsalgadoedosruídosdacidadeabaixo.
Várias pontes conectavam a ilha tumultuada à massa de terra maior que a
circundavaemtrêslados,eumadelasseerguianomomentoparaqueumnaviode
muitosmastros pudesse atravessar.De fato, haviamais navios do que eu podia
contar; alguns navios comerciais, alguns de pesca e alguns, ao que parecia,
transportavam pessoas da cidade na ilha para o continente cujo litoral inclinado
estavaabarrotadodemaisprédios,maispessoas.
Mais pessoas como ameia dúzia diante de nós, emolduradas por um par de
portas devidromarinhoque se abria para o próprio palácio.Emnossa pequena
varanda,nãohaviarotadefuga,nenhumcaminhoalémdeatravessar...oupassar
pelasportas.Ou,imaginei,omergulhoquenosesperavaemdireçãoaostelhados
vermelhosdaslindascasas30metrosabaixo.
—Bem-vindosaAdriata—disseomachoaltonocentrodogrupo.
Eeuoconhecia...melembravadele.
Nãopelamemória.Eu jáme lembraradequeobeloGrão-SenhordaCorte
Estivaltinhapelemarromexuberante,cabelosbrancoseolhosdeumazul-turquesa
impressionantes.Jámelembraradequeeletinhasidoobrigadoaassistirenquanto
amentedeumdeseuscortesãoserainvadidae,então,avidadesteeraextinguida
por Rhysand. E Rhysand mentira para Amarantha a respeito do que tinha
descoberto,epouparaohomemdeumdestinotalvezpiorqueamorte.
Não;nomomentoeumelembravadoGrão-SenhordaCorteEstivaldeuma
formaquenãopodiaexplicar,comosealgumfragmentomeusoubessequetinha
vindo dele, daquele lugar. Como se algum pedaço meu dissesse: eu lembro, eu
lembro,eulembro.Somosiguais,vocêeeu.
Rhysapenascantarolou:
—Bomvervocêdenovo,Tarquin.
As outras cinco pessoas atrás do Grão-Senhor da Corte Estival trocaram
expressõesdeseveridadediversa.Comoosenhordelas, tinhamapeleescura,os
cabelosemtonsdebrancoouprata,comosetivessemvividosobosolforteavida
inteira.Osolhos,noentanto,eramdetodasascores.Eagorasemoviamdemim
paraAmren.
RhyscolocouumadasmãosnobolsoegesticuloucomaoutraparaAmren.
— Acho que conhece Amren. Embora não a tenha visto desde sua...
promoção.—Umagraciosidadefriaecalculista,comumapontadadeseveridade.
TarquindeuomaisbreveacenodecabeçaparaAmren.
—Bem-vindadevoltaàcidade,senhora.
Amren não assentiu, não fez reverência, sequer uma cortesia. Ela olhou
Tarquin de cima a baixo, alto e musculoso, com as roupas verde-mar, azul e
dourado,efalou:
—Pelomenosvocêémuitomaisbonitoqueseuprimo.Olharparaeleferiaos
olhos.— Uma fêmea atrás de Tarquin não disfarçou a expressão de ódio. Os
lábios vermelhos de Amren sorriram. — Minhas condolências, é claro —
acrescentouela,comtantasinceridadequantoumacobra.
Maliciosos,cruéis;eraoqueAmreneRhyseram...Oqueeudeveriaserpara
aquelaspessoas.
Rhysgesticulouparamim.
—NãoacreditoquevocêsdoistenhamsidoformalmenteapresentadosSoba
Montanha. Tarquin, Feyre. Feyre, Tarquin. — Rhys não mencionou nenhum
títuloali,ouparairritá-los,ouporqueosachavaumdesperdíciodefôlego.
Os olhos deTarquin—de um azul-cristal tão espantoso— se fixaram em
mim.
Eumelembrodevocê,eumelembrodevocê,eumelembrodevocê.
OGrão-Senhornãosorriu.
Mantiveorostoneutro,vagamenteentediado.
O olhar de Tarquin desceu até meu peito, a pele nua revelada pelo decote
acentuadodovestido,comoseelepudesseverparaondeaquelafaíscadevida,o
poderdele,tinhaido.
Rhysacompanhouaqueleolhar.
—Osseiosdelasãoespetaculares,nãosão?Deliciososcomomaçãsmaduras.
Lutei contra a vontade de fazer uma careta, e, em vez disso, voltei minha
atençãoparaele,comamesmaindolênciacomqueRhysolharaparamim,paraos
demais.
—Eaquiestavaeupensandoquevocêtinhaumafascinaçãoporminhaboca.
SurpresasatisfeitailuminouosolhosdeRhys,surgiuesefoiemumsegundo.
Nósdoisviramosdevoltaparaosanfitriões,aindacomexpressõespetrificadas
ecostasrígidas.
Tarquin pareceu calcular o ar entremeus companheiros e eu, e então falou,
comcautela:
—Vocêtemumahistóriaacontar,parece.
—Temosmuitashistóriasacontar—avisouRhys,indicandocomoqueixoas
portasdevidroatrásdeles.—Então,porquenãoficarmosconfortáveis?
AfêmeaqueestavameiopassoatrásdeTarquinseaproximou.
—Temosbebidasprontas.
Tarquinpareceuselembrardelaecolocouamãonoombromagrodamulher.
—Cresseida,princesadeAdriata.
AgovernantedacapitalouesposadeTarquin?Nãohaviaanelnosdedosde
nenhumdeles, e não reconheciCresseidadeSob aMontanha.O cabelo longo e
prateadosopravasobreolindorostoàbrisasalgada,enãoconfundialuznosolhos
castanhosdamulhercomqualqueroutracoisaquenãoespertezaafiada.
—Éumprazer—murmurouCresseida, comavoz rouca,paramim.—E
umahonra.
Meucafédamanhãvirouchumbonoestômago,masnãodeixeiqueelavisseo
efeitoqueaquelaspalavrasdereverênciatinhamsobremim;nãodeixeiquevisse
queerammunição.Emvezdisso,fizminhamelhorimitaçãodeRhysanddandode
ombros.
—Ahonraéminha,princesa.
Os outros foram apressadamente apresentados: três conselheiros que
supervisionavam a cidade, a corte e o comércio. E, então, um lindo homem de
ombros largos chamado Varian, o irmão mais novo de Cresseida, capitão da
guarda deTarquin, príncipe deAdriata.A atenção dele estava fixa somente em
Amren,comosesoubesseondeestavaamaiorameaça.Eficariafelizemmatá-lase
tivesseachance.
Durante o breve período de tempo em que eu conhecia Amren, ela jamais
pareceramaisencantada.
Fomos levados para um palácio feito de passagens e paredes de conchas, e
incontáveisjanelasseabriamparaabaíaeparaocontinenteouomarabertoalém.
Lustres de vidro marinho oscilavam à brisa morna sobre córregos e fontes que
jorravamáguafresca.Grão-Feéricos—criadosecortesãos—seapressavamalém
e ao redor deles, amaioria de pelemarrome vestidos em roupas largas e leves,
todos preocupados demais com os próprios problemas para notar ou se
interessarempornossapresença.Nenhumfeéricoinferiorcruzounossocaminho...
sequerum.
EumemantiveumpassoatrásdeRhysandconformeelecaminhavaaoladode
Tarquin,aquelepodermagníficoestavadomadoereduzido,eosoutrosseguiam
atrásdenós.Amrenpermaneceuaoalcance,emepergunteiseelatambémdeveria
ser minha guarda-costas. Tarquin e Rhys conversavam casualmente, ambos já
entediados, sobre o iminenteNynsar; sobre as flores nativas que as duas cortes
exibiriamparaapequenaebrevefestividade.
OCalanmaiacontecerialogodepois.
Meuestômagoserevirou.SeTamlinestavadeterminadoaseguiratradição,se
eu não estava mais com ele... não me permiti ir tão longe. Não seria justo.
Comigo...comele.
—Temosquatrocidadesprincipaisemmeuterritório—disseTarquinpara
mim, olhando por cima do ombro musculoso. — Passamos o último mês de
invernoeosprimeirosmesesdeprimaveraemAdriata,queéquandoacidadeestá
emsuamelhorforma.
Defato,supusque,comoverãointerminável,nãohavialimiteparacomose
poderiaaproveitaro tempo.Nocampo,aomar,emumacidadesobasestrelas...
Assenti.
—Émuitolinda.
TarquinmeencarouportantotempoqueRhysfalou:
—Osreparosestãoindobem,suponho.
AquilochamouaatençãodeTarquindevolta.
—Emgrandeparte.Aindarestamuitoafazer.Ametadeposteriordocastelo
estáemruínas.Mas,comopodever,terminamosamaiorpartedointerior.Nósnos
concentramosprimeironacidade,eessesconsertosestãoemcurso.
Amaranthatinhadestruídoacidade?
—Esperoquenadadevalortenhasidoperdidoduranteaocupação—disse
Rhys.
—Nãoascoisasmaisimportantes,graçasàMãe—respondeuTarquin.
Atrás demim,Cresseida ficou tensa.Os três conselheiros se afastaram para
cuidardeoutrosafazeres,murmurandoumadespedida...comolharescautelososna
direçãodeTarquin.Comoseaquelapudessemuitobemseraprimeiravezqueele
precisasse bancar o anfitrião e os conselheiros estivessem de olho em todos os
movimentosdoGrão-Senhor.
Tarquindeuaelesumsorrisoquenãochegouaosolhos,enãorespondeunada
maisquandonoslevouparaumasalaabobadadadecarvalhobrancoevidroverde
—comvistaparaaaberturadabaíaeparaomarqueseestendiainfinitamente.
Eujamaistinhavistoáguatãovibrante.Verdeecobaltoecordemeia-noite.E,
porumsegundo,umapaletadecores lampejouemminhamente,comoazuleo
amareloeobrancoeopretodequeeupoderiaprecisarparapintaraquilo...
—Estaéminhavistapreferida—disseTarquin,aomeulado,epercebique
tinhaidoatéasamplasjanelasenquantoosdemaishaviamsesentadoaoredorda
mesademadrepérola.Umpunhadodecriadosempilhavafrutas,saladasdefolhase
mariscosnovaporemseuspratos.
— Você deve se sentir muito orgulho — falei. — Por ter terras tão
deslumbrantes.
OsolhosdeTarquin,tãoparecidoscomomaralémdenós,sevoltarampara
mim.
—Comosãoemcomparaçãoàsquejáviu?—Umaperguntacuidadosamente
elaborada.
Respondi,inexpressivamente:
—TudoemPrythianélindoemcomparaçãoaomundomortal.
—Eserimortalémelhorqueserhumana?
Euconseguiasentiraatençãodetodosemnós,mesmoquandoRhysenvolveu
Cresseida e Varian em uma discussão inútil e acalorada sobre o estado dos
mercados de peixes deles. Então, olhei para oGrão-Senhor daCorte Estival de
cimaabaixo,assimcomoelemeexaminara,indisfarçadamenteesemumpingode
educação,efalei:
—Digavocê.
OsolhosdeTarquinseenrugaram.
—Vocêéumapérola.Emboraeu soubessedissodesdeodiaemqueatirou
aqueleossoemAmaranthaesujoudelamaseuvestidopreferido.
Afasteiaslembranças,oterrorofuscantedaquelaprimeiratarefa.
Oqueeleachavadaquelepuxãoquehaviaentrenós;seráquepercebiaqueera
mesmo seu poder, ou achava que era um laço próprio, algum tipo de atração
estranha?
E se eu precisasse roubar dele... talvez isso significasse que eu precisavame
aproximar.
—Nãome lembrodevocêser tãobonitoSobaMontanha.A luzdosoleo
marlhecaembem.
Ummachodeposição inferior poderia ter se empertigado.MasTarquin era
esperto demais para isso, sabia que eu estivera comTamlin e estava agora com
Rhys,eque tinha sido levadaatéali.Talvezachassequeeunãoeramelhorque
Ianthe.
—Como,exatamente,vocêseencaixanacortedeRhysand?
Uma pergunta direta, depois de tantas voltas, para sem dúvida me
desconcentrar.
Quasefuncionou;euquaseadmiti:“Nãosei”,masRhysfalou,damesa,como
setivesseouvidocadapalavra:
— Feyre é um membro de meu Círculo Íntimo. E é minha Emissária nas
TerrasMortais.
Cresseida,sentadaaoladodeRhysand,falou:
—Temmuitocontatocomomundomortal?
Tomei aquilo comoumconvite parame sentar... e fugir doolhar carregado
demais de Tarquin. Um assento tinha sido deixado vago para mim ao lado de
Amren,diantedeRhys.
OGrão-SenhordaCorteNoturnacheirouovinho—branco,espumante—,e
me perguntei se estava tentando irritá-los ao insinuar que o vinho tinha sido
envenenadoquandofalou:
— Prefiro estar pronto para cada situação potencial. E, considerando que
Hybernparecedeterminadaasetornarumaborrecimento,abrirodiálogocomos
humanospodeserdenossointeresse.
Varian desviou a atenção de Amren por tempo suficiente para dizer,
grosseiramente:
—Então,foiconfirmadomesmo?Hybernestásepreparandoparaaguerra.
—Játerminaramdesepreparar—revelouRhys,porfimtomandoovinho.
Amrennãotocounoprato,emborativesseremexidoacomida,comosemprefazia.
Imaginei o que, ouquem, ela comeria enquanto estivesse ali.Varianparecia um
bompalpite.—Aguerraéiminente.
—Sim,vocêmencionounacarta—falouTarquin,reivindicandoumassento
àcabeceiradamesaentreRhyseAmren.Ummovimentoousado,secolocarentre
dois seres tão poderosos. Arrogância ou uma tentativa de amizade?O olhar de
Tarquin,denovo,sevoltouparamimantesdeseconcentraremRhys.—Evocê
sabe que contra Hybern nós lutaremos. Perdemos muita gente boa Sob a
Montanha.Não tenho interesse em que viremos escravos de novo.Mas, se está
aquiparamepedirqueluteemoutraguerra,Rhysand...
—Issonãoéumapossibilidade—interrompeuRhys,suavemente.—Enem
mesmopassouporminhamente.
Meu vislumbre de confusão deve ter transparecido, poisCresseidame disse,
cantarolando:
— Grão-Senhores já guerrearam por muito menos, sabe. Fazê-lo por uma
fêmeatãoincomumnãoseriainesperado.
Eprovavelmenteporissoaceitaramoconvite,afavorounão.Paranosavaliar.
Se...seTamlinentrasseemguerraparamerecuperar.Não.Não,issonãoseria
umaopção.
Eu tinha escrito para ele, dissera que ficasse longe.ETamlinnão era tolo o
bastanteparacomeçarumaguerraquenãopoderiavencer.Nãoquandonãolutaria
comoutrosGrão-Feéricos,mascomguerreirosillyrianos,lideradosporCassiane
Azriel.Seriaummassacre.
Eufalei,entediadaeinexpressivaeinsipidamente:
— Tente não parecer animada demais, princesa. O Grão-Senhor da Corte
PrimaverilnãotemplanosdeguerrearcomaCorteNoturna.
—EvocêestáemcontatocomTamlin,então?—Umsorrisodoce.
Minhaspalavrasseguintesforambaixas,lentas,edecidiquenãomeimportaria
deroubardeles,nemumpouco.
—Há coisas que são de conhecimento público, e coisas que não são. Meu
relacionamento com ele é conhecido.A situação atual, no entanto, não é de sua
conta.Oudadequalqueroutro.MasconheçoTamlineseiquenãohaveráguerra
internaentrecortes,pelomenosnãoporminhacausa,ouporminhasdecisões.
—Quealívio,então—disseCresseida,bebericandodovinhobrancoantesde
quebrarumaenormegarradecaranguejo,rosada,brancae laranja.—Saberque
não estamos abrigando uma noiva roubada, e que não precisamos nos dar o
trabalhodedevolvê-laaomestre,comoexigealei.Ecomoqualquerpessoasábia
deveriafazer,paramanterosproblemaslongedecasa.
Amrentinhaficadocompletamenteimóvel.
—Partiporvontadeprópria—falei.—Eninguémémeumestre.
Cresseidadeudeombros.
—Podepensaroquequiser,senhora,masa leiéa lei.Vocêé...eraanoiva
dele.JurarlealdadeaoutroGrão-Senhornãomudaisso.Então,émuitobomque
elerespeitesuasdecisões.Casocontrário,seriaprecisoapenasumacartadeTamlin
paraTarquinpedindoseuretorno,eprecisaríamosobedecer.Ouarriscaraguerra
também.
Rhysandsuspirou.
—Vocêésempreumadiversão,Cresseida.
—Cuidado,Grão-Senhor.Minhairmãdizaverdade—avisouVarian.
Tarquincolocouamãonamesapálida.
— Rhysand é nosso convidado, assim como seus cortesãos. E nós os
trataremos como tal. Nós os trataremos, Cresseida, como tratamos pessoas que
salvaramnossascabeçasquandotudoqueseriaprecisoeraumapalavradelespara
quetodosestivéssemosmuito,muitomortos.
Tarquin avaliou a mim e a Rhys... cujo rosto parecia gloriosamente
desinteressado.OGrão-SenhordaCorteEstivalsacudiuacabeçaefalouparaele:
—Temosmaisadiscutirdepois,vocêeeu.Estanoite,voudarumarecepção
para todos em minha barca de festas na baía. Depois disso, estão livres para
perambularporondequiseremnacidade.Perdoemaprincesaseforsuperprotetora
comseupovo.A reconstruçãodurante essesmeses temsido longae árdua.Não
desejamosfazerissodenovotãocedo.
OsolhosdeCresseidaficaramsombrios,comoseassombrados.
—Cresseida fezmuitos sacrifícios em nome do povo— explicouTarquin,
cuidadosamente,paramim.—Nãolevesuacautelaparaoladopessoal.
—Todosfizemossacrifícios—argumentouRhysand,otédiogélidoagorase
tornando algo afiado.—Evocê se senta a estamesa com sua família por causa
daquelesqueFeyrefez.Então,precisameperdoar,Tarquin,sedigoasuaprincesa
que,seelaavisaraTamlin,ousequalquerumdeseupovotentarlevá-laparaele,
vidasserãotomadas.
Atémesmoabrisadomarmorreu.
—Nãome ameace emminha casa, Rhysand— avisouTarquin.—Minha
gratidãovaiapenasatécertoponto.
—Nãoéumaameaça—replicouRhys,aspatasdecaranguejoemseuprato
seabrindosobmãosinvisíveis.—Éumapromessa.
Todosmeolharam,esperandoalgumaresposta.
Então, ergui a taça de vinho, encarei cada um, detendo-me nos olhos de
Tarquinpormaistempo,efalei:
—Nãoéàtoaqueaimortalidadejamaisviraumtédio.
Tarquinriu...emepergunteiseoarqueeleexpiravaseriadealívioprofundo.
Epormeiodaquelelaçoentrenós,sentiolampejodeaprovaçãodeRhysand.
Recebemos uma suíte de quartos conectados, todos centralizados ao redor de
uma grande e exuberante sala de estar, que se abria para omar e para a cidade
abaixo.Meuquartoeradecoradonacordaespumadomarenomaissuavetomde
azul,comdetalhesemdourado—comoaconchadouradasobreminhacômodade
madeira clara. Eu tinha acabado de colocá-la de volta no lugar quando a porta
brancaatrásdemimseabriucomumcliqueeRhysentrou.
Eleserecostouàportadepoisdefechá-la,comapartedecimadatúnicapreta
desabotoadarevelandoasespiraissuperioresdatatuagemquelhecobriaopeito.
—Oproblema,percebi,seráquegostodeTarquin—disseRhys,comoum
cumprimento.—AtémesmogostodeCresseida.Varian,eupoderiaviversemele,
masapostoquealgumassemanascomCassianeAzriel,eelesseriamcomounhae
carne, e eu precisaria aprender a gostar dele. Ou estaria envolto nos dedos de
Amren,eeuprecisariadeixá-loempazdevez,ouarriscariasuaira.
—E?—Ocupeiumlugarcontraacômoda,naqualroupasqueeunãotinha
levado,masque,obviamente,vinhamdaCorteNoturna,jáesperavampormim.
Oespaçodoquarto—agrandecama,asjanelas,aluzdosol—preenchiamo
silêncioentrenós.
—E—emendouRhysand—queroqueencontreumaformadefazeroque
precisafazersemtorná-losinimigos.
—Então,estámedizendoparanãoserpega.
Umaceno.Então:
—GostaqueTarquinnãoconsigaparardeaolhar?Nãoseiseéporqueaquer
ouporquesabequetemopoderdeleequerverquanto.
—Nãopodeserpelosdoismotivos?
—Éclaro.MasterumGrão-Senhoradesejandoéumjogoperigoso.
—Primeiro,vocêmeprovocacomCassian;agora,comTarquin?Nãopode
encontraroutrasformasdemeirritar?
Rhysseaproximou,emeprepareiparaseucheiro,paraocalor,oimpactode
poder. Ele estendeu asmãos de cada ladomeu, apoiando-as na cômoda. Eume
recuseiaencolherocorpo.
—Vocêtemumatarefaaqui,Feyre.Umatarefasobreaqualninguémpode
saber.Então,façaoqueforprecisopararealizá-la.Masconsigaaquelelivro.Enão
sejapega.
Eunãoeraumatolaalegrinha.Conheciaosriscos.Eaqueletom,aqueleolhar
queelesempremelançava...
—Oqueforpreciso?—AssobrancelhasdeRhysseergueram.Sussurrei:—Se
eutrepassecomTarquinpelolivro,oquevocêfaria?
AspupilasdeRhyssedilataram,eoolharrecaiusobreminhaboca.Acômoda
demadeirarangeusobsuasmãos.
—Vocêdizcoisastãoatrozes.—Esperei,asbatidasdocoraçãoirregulares.
Rhysandporfimmeencaroudenovo.—Ésemprelivreparafazeroquequiser,
comquemquiser.Então,sequermontarTarquin,váemfrente.
—Talvezeumonte.—Emborapartedemimquisesseresponder:Mentiroso.
—Tudobem.—ArespiraçãodeRhysacariciouminhaboca.
—Tudobem—respondi, cientede cadacentímetroentrenós,dadistância
cadavezmenor,dodesafioqueaumentavaacadasegundoquenenhumdenósse
movia.
—Não—disseRhys,baixinho,osolhosparecendoestrelas—coloqueesta
missãoemrisco.
— Eu conheço o custo. — O puro poder de Rhys me envolveu, me
despertando.
Osal,omareabrisamepuxaram,cantaramparamim.
Como seRhys também os ouvisse, ele inclinou a cabeça na direção da vela
apagadanacômoda.
—Acenda.
Penseiemdiscutir,masolheiparaavela,conjureifogo,conjureiaqueleódio
incandescentequeeleconseguiaagitar...
Avelafoiderrubadadacômodaporumjatoviolentodeágua,comosealguém
tivesseviradoumbaldecheio.
Olhei boquiaberta para a água que ensopava a cômoda, as gotas no piso de
mármoreeramoúnicosom.
Rhys,comasmãosaindaapoiadasdecadaladomeu,riubaixinho.
—Nãoconsegueseguirordens?
Masoquequerqueeufosse—estarali,pertodeTarquinedeseupoder...eu
conseguia sentir aquela água respondendo a mim. Senti conforme ela cobriu o
chão,sentiomarseagitareoscilarnabaía,ogostodosalnabrisa.EncareiRhys.
Ninguém era meumestre, mas eu podia ser mestre de tudo se quisesse. Se
ousasse.
Comoumachuvaestranha,aáguaselevantoudochãoquandodesejeiqueela
se tornasse como aquelas estrelas que Rhys conjurara em seu cobertor de
escuridão. Desejei que as gotinhas se separassem até que pendessem ao nosso
redor,refletindoaluzebrilhandocomocristaisemumlustre.
Rhysdesviouosolhosdosmeusparaobservarasgotas.
—Sugiro—murmurouele—quenãomostreaTarquinessepequenotruque
noquarto.
LanceicadaumadasgotasemdisparadacontraorostodoGrão-Senhor.
Rápidodemais,ágildemaisparaqueeleseprotegesse.Algumasgotascaíram
emmimquandoricochetearamdele.
Nósdoisestávamosagoraensopados.Rhysentreabriuaboca...edepoissorriu.
—Bomtrabalho—disseele,porfimseafastandodacômoda.Nãosedeuo
trabalhodelimparaáguaquereluziaemsuapele.—Continuetreinando.
Maseudisse:
—Elevaiàguerra?Porminhacausa?
Rhyssabiadoqueeuestavafalando.Otemperamentoesquentadonoseurosto
momentosantessetornouumacalmaletal.
—Nãosei.
—Eu...euvoltaria.Sechegasseaesseponto,Rhysand.Euvoltaria,emvezde
obrigarvocêalutar.
Rhyscolocouamãoaindamolhadanobolso.
—Vocêgostaria de voltar? Ir à guerra por você faria comqueo amasse de
novo?Seriaumgestograndiosoparaconquistá-la?
Engoliemseco.
—Estoucansadademorte.Nãogostariadevermaisninguémmorrer,muito
menospormim.
—Issonãorespondeaminhapergunta.
— Não. Eu não gostaria de voltar. Mas voltaria. Dor e morte não me
conquistariam.
Rhysmeencaroupormaisumtempo,aexpressãoestavaindecifrável,antesde
caminharatéaporta.Eleparoucomosdedosnamaçanetaemformatodeouriço.
— Ele trancafiou você porque sabia, o desgraçado sabia que você era um
tesouro.Quevalemaisque terrasououroou joias.Ele sabia equeriaguardá-la
inteiraparasi.
As palavras me golpearam, mesmo que tivessem alisado alguma ponta
irregularemminhaalma.
—Eleamava...elemeama,Rhysand.
—Aquestãonãoé seamavavocê,éoquanto.Demais.Amorpode serum
veneno.
Eelesefoi.
Abaíaestavabastantecalma—talvezamansadaporseusenhoremestre—para
que a barca de festas mal oscilasse ao longo das horas em que jantávamos e
bebíamosabordo.
Feitadamadeiramaisfinaedeouro,oenormebarcoeraconfortávelparaos
cem ou mais Grão-Feéricos que faziam o possível para não observar cada
movimentoqueRhys,Amreneeufazíamos.
Odequeprincipalestavacheiodemesasbaixasesofásparacomererelaxar,e,
no nível superior, sob um dossel de azulejos composto commadrepérola, nossa
longamesatinhasidomontada.Tarquineraoverãoencarnado,usandoturquesae
ouro,epedaçosdeesmeraldabrilhavamnosbotõeseemseusdedos.Umacoroa
feitadesafiraeourobrancoemformadeondasquebrandorepousavanoaltodo
cabelocordeespumadomar;tãoexóticaqueeumesurpreendiaolhandoparaela
frequentemente.
Como estava naquele momento, quando Tarquin se virou para onde eu
sentara,asuadireita,ereparouemmeuolhar.
— Era de se pensar que nossos habilidosos joalheiros pudessem fazer uma
coroaumpoucomaisconfortável.Estaéterrível.
Uma tentativabastanteagradáveldeconversaquandoeu tinha ficadocalada
duranteaprimeirahora,emvezdeobservaracidade-ilha,aágua,ocontinente—
lançandouma redede cautela, de poder cego, nadireçãodeles, para ver se algo
respondia.SeoLivroestavadormenteemalgumdaqueleslugares.
Nada responderaameuchamadosilencioso.Então, acheiqueaqueleeraum
momentotãobomquantoqualqueroutroquandofalei:
—Comovocêamantevelongedasmãosdela?
Dizer o nome deAmarantha ali, entre pessoas tão felizes, comemorando, se
assemelhavaaconvidarumanuvemdetempestade.
SentadoàesquerdadeTarquin,conversandocomCresseida,Rhyssequerme
olhou.Defato,elemalfalaracomigomaiscedo,nemmesmorepararaemminhas
roupas.
Incomum, considerando que até eu estava satisfeita com minha aparência e
tinha,denovo,escolhidoaroupasozinha:cabelossoltoseafastadosdorostopor
um arco de ouro rosa trançado, o vestido de alça de chiffon rosa-crepúsculo—
justonopeitoenacintura—quaseidênticoaoroxoqueeutinhausadodemanhã.
Feminino, suave, lindo. Não me sentia daquela forma havia muito tempo. Não
tinhavontade.
Mas ali ser tais coisas não me garantiria um ingresso para uma vida como
planejadora de festas. Ali eu podia ser tranquila e encantadora ao pôr do sol, e
acordardemanhãparacolocarmeucourodelutaillyriano.
Tarquinfalou:
— Conseguimos contrabandear a maior parte de nosso tesouro quando o
territóriocaiu.Nostrus,meupredecessor,erameuprimo.Euserviadepríncipeem
outra cidade.Então, recebi aordemdeescondero tesourona caladadanoite,o
maisrápidopossível.
Amarantha matara Nostrus quando ele se rebelou... e executara a família
inteira por pura maldade. Tarquin devia ser um dos poucos membros
sobreviventesseopodertinhapassadoparaele.
—NãosabiaqueaCorteEstivalvalorizavatantoostesouros—comentei.
Tarquinconteveumagargalhada.
—Os primeiros Grão-Senhores sim. Agora fazemos isso por tradição, em
grandeparte.
Falei,comcautela,casualmente:
—Então,sãoouroejoiasquevocêsvalorizam?
—Entreoutrascoisas.
Bebidovinhoparaganhar tempoepensar emuma formadeperguntar sem
levantarsuspeitas.Mastalvezserdiretaarespeitofossemelhor.
—Forasteiros podem ver a coleção?Meu pai eramercador, passei amaior
parte da infância em seu escritório, ajudando com as mercadorias. Seria
interessantecompararriquezasmortaiscomaquelasfeitaspormãosfeéricas.
Rhys continuava conversando com Cresseida, nem mesmo um pingo de
aprovaçãooudiversãopassoupornossolaço.
Tarquininclinouacabeça,asjoiasnacoroareluzindo.
—Éclaro.Amanhã,depoisdoalmoço,talvez?
Elenãoeraburroe,talvez,estivessecientedojogo,mas...aofertaerasincera.
Sorri um pouco, assentindo. Fiquei olhando na direção da multidão que
perambulavapelodequeabaixo,nadireçãodaáguaacesaporumalanternaalém,
atémesmoquandosentioolhardeTarquinsedemorar.
—Comoera?Omundomortal?—perguntouele.
Mexinasaladademorangonoprato.
—Sóviumapartemuitopequenadele.MeupaierachamadodeoPríncipe
dosMercadores,mas eu era jovemdemais para ser levada em suas viagens para
outraspartesdomundomortal.Quandoeutinha11anos,eleperdeunossafortuna
emumcarregamentoparaBharat.Passamososoitoanosseguintesnapobreza,na
cidade esquecida perto da muralha. Então, não posso falar por todo o mundo
mortalquandodigoqueoquevialiera...difícil.Cruel.Aqui,asdivisõesdeclasse
sãomuitomais confusas,parece.Lá, sãodefinidaspordinheiro.Ouvocê tem, e
nãodivide,ouédeixadoparapassarfomeelutarparasobreviver.Meupai...Ele
recuperou a riqueza quando vim para Prythian.— Meu coração se apertou, e
depoismeuestômagopesou.—Easmesmaspessoasquetinhamficadofelizesao
nos deixar passar fome mais uma vez se tornaram nossas amigas. Eu preferiria
enfrentar todasas criaturasdePrythianaosmonstrosdooutro ladodamuralha.
Semmagia,sempoder,odinheirosetornouaúnicacoisaqueimporta.
Os lábios de Tarquin estavam contraídos, mas os olhos pareciam
contemplativos.
—Vocêospoupariaseaguerraacontecesse?
Uma pergunta muito perigosa e intensa. Não diria a ele o que estávamos
fazendodooutroladodamuralha,nãoatéqueRhysindicassequedeveríamos.
—Minhasirmãsvivemcommeupainapropriedadedele.Porelas,eulutaria.
Maspeloshipócritaseostentadores...Eunãomeimportariadeveraordemdestes
serabalada.—ComoafamíliacheiadeódiodoprometidodeElain.
Tarquinfalou,bembaixo:
—HáalgunsemPrythianquepensariamomesmodascortes.
—Oque...selivrardosGrão-Senhores?
—Talvez.MasemgrandeparteeliminarosprivilégiosinerentesqueosGrão-
Feéricostêmsobreosfeéricosinferiores.Osprópriostermosqueusamosparanos
descrever sugerem um nível de injustiça. Talvez aqui sejamais como omundo
humanodoquevocêpercebe,enãotãoconfusoquantopodeparecer.Emalgumas
cortes,osmaisbaixosdoscriadosdosGrão-Feéricostêmmaisdireitosqueosmais
ricosdosfeéricosinferiores.
Percebi quenão éramosos únicosna barca, naquelamesa.Eque estávamos
cercadosporGrão-Feéricoscomaudiçãoaguçada.
—Concordacomeles?Quedeveriamudar?
—SouumjovemGrão-Senhor—explicouTarquin.—Malfiz80anos.—
Então, ele tinha 30 quando Amarantha assumiu o controle. — Talvez outros
possammechamarde inexperienteou tolo,masvi essas crueldadesemprimeira
mãoeconhecimuitosfeéricosinferioresquesofreramporapenasteremnascidodo
ladoerradodopoder.Mesmoemminhasresidências,oconfinamentodatradição
me pressiona a aplicar as leis de meus predecessores: os feéricos inferiores não
devem ser vistos ou ouvidos enquanto trabalham. Gostaria de um dia ver uma
Prythiannaqualelestêmvoz,tantoemmeularquantonomundoalém.
ObserveiTarquinembuscadeardil,demanipulação.Nãoencontreinada.
Roubardele...euroubariadele.Maseseapenaspedisse?Seráquemedaria,ou
seráqueastradiçõesdosancestraisestavamarraigadasdemais?
— Diga o que esse olhar significa — pediu Tarquin, apoiando os braços
musculososnatoalhademesadourada.
Falei,diretamente:
—Estoupensandoqueseriamuitofácilamarvocê.Eaindamaisfácilchamá-
lodemeuamigo.
Tarquinsorriuparamim;umsorrisolargo,semseconter.
—Eutambémnãoresistiriaaisso.
Fácil...eramuitofácilseapaixonarporummachobondoso,zeloso.
Mas olhei para Cresseida, que agora estava quase no colo de Rhysand. E
Rhysand sorria como um gato, um dedo traçando círculos no dorso damão de
Cresseida enquanto ela mordia o lábio e sorria. Encarei Tarquin, com as
sobrancelhaserguidasemumaperguntasilenciosa.
Elefezumacaretaesacudiuacabeça.
Euesperavaquefossemparaoquartodela.
Porque, se eu tivesse de ouvirRhys fazendo sexo comCresseida...Nãome
deixeiterminaropensamento.
Tarquinponderou:
—Fazmuitosanosdesdequeavejodessaforma.
Minhasbochechascoraram:vergonha.Vergonhadoquê?Dequereravançar
emCresseida semmotivo?Rhysand implicava eme provocava, ele jamais...me
seduziu, comaquelesolhares longosedeterminados,osmeios sorrisosqueeram
puraarrogânciaillyriana.
Supusqueeutivesserecebidoessedomcertavez...eodesgasteieluteiporele
e o destruí.E supus queRhysand, por tudoque tinha sacrificado e feito... ele o
mereciatantoquantoCresseida.
Mesmo...mesmoqueporummomentoeuquisesse.
Euquisessemesentirdaquelaformadenovo.
E...euestavasolitária.
Andavasolitária,percebi,pormuito,muitotempo.
RhysseaproximouparaouviralgoqueCresseidadizia,oslábiosdafeéricalhe
roçandoaorelha,amãoagoraentrelaçadanadele.
E não foi pesar, desespero ou terror que me atingiu, mas... tristeza. Uma
tristezatãopuraeintensaquefiqueidepé.
OsolhosdeRhysseviraramemminhadireção,porfimselembrandodeque
euexistia,enãohavianadanorostodele,nenhumindíciodequesentiaumpingo
doqueeusentiapornossaligação.Nãomeimportavaseestivessesemescudo,se
meuspensamentosestavamabertoseRhysoslessecomoumlivro.Elenãopareceu
se importar também. Rhysand voltou a rir do que quer que Cresseida estivesse
contandoaele,aproximando-se.
Tarquinficoudepé,olhandoparamimeparaRhys.
Euestavainfeliz...nãoapenasquebrada.Masinfeliz.
Umaemoção,percebi.Eraumaemoção,emvezdovazioinfinitooudoterror
guiadopelanecessidadedesobreviver.
—Preciso de ar puro— comentei, embora estivéssemos a céu aberto.Mas
com as luzes douradas, as pessoas de um lado a outro da mesa... Precisava
encontrarumlocalnabarcaondepudesseestarsozinha,apenasporummomento,
comousemmissão.
—Gostariaqueeumejuntasseavocê?
OlheiparaoGrão-SenhordaCorteEstival.Nãotinhamentido.Seriafácilme
apaixonarporummachocomoele.Masnãotinhacertezaabsolutadequemesmo
comasdificuldadesquetinhaencontradoSobaMontanha,Tarquinpodiaentender
a escuridão que talvez sempre vivesse dentro de mim. Não apenas devido a
Amarantha,maspelosanospassadoscomfome,desesperada.
Que eu sempre poderia ser um pouco cruel ou inquieta. Que eu poderia
almejarapaz,masjamaisumajauladeconforto.
—Estoubem,obrigada—respondi,eseguiparaaescadaespiraladaquedava
para a popa da embarcação, bem iluminada, porémmais silenciosa que as áreas
principaisnaproa.Rhyssequerolhouemminhadireçãoconformeeusaí.Eujáia
tarde.
EuestavaameiocaminhodosdegrausdemadeiraquandoviAmreneVarian
—ambos recostados em pilastras adjacentes, ambos bebendo vinho, ambos se
ignorando.Mesmoquenãofalassemcommaisninguém.
Talvezfosseoutroomotivopeloqualelanosacompanharaatéali:paradistrair
ocãodeguardadeTarquin.
Cheguei ao deque principal, encontrei um ponto ao lado do parapeito de
madeiraqueeraumpoucomaissombreadoqueoresto,emeencosteiali.Magia
movimentavaabarca;nenhumremo,nenhumavela.Portanto,nosmovíamospela
baíaemsilêncioecomsuavidade,maldeixandoondulaçõesparatrás.
Nãopercebiqueoesperavaatéqueabarcaaportounabasedacidade-ilha,e,
dealgumaforma,eutinhapassadotodaaúltimahorasozinha.
Quandoseguipara terra firmecomorestantedamultidão,Amren,Variane
Tarquinestavammeaguardandonasdocas,todoscomascostasumpoucorígidas.
RhysandeCresseidanãoestavamemlugaralgum.
Aindabemquenenhumruídoveiodoquartofechado.Enenhumsomfoiemitido
naquelanoite,quandoacordeisobressaltadadeumpesadeloemqueeragiradaem
umespetoenãoconseguiamelembrardeondeestava.
Oluardançavanomaralémdeminhasjanelasabertas,ehaviasilêncio,muito
silencio.
Umaarma.Eueraumaarmaparaencontraraquelelivro,paraimpedirqueo
reiquebrasseamuralha,afimdeimpediroquequerqueeletivesseplanejadopara
Jurian e para a guerra que poderia destruir meu mundo. Que poderia destruir
aquele lugar...eumGrão-Senhorquepoderiamuitobemsubverteraordemdas
coisas.
Porumsegundo,senti faltadeVelaris, senti faltadas luzesedamúsicaedo
Arco-Íris.Senti faltadocaloraconchegantedosolarparameacolherdo inverno
frio,sentifalta...decomotinhasidofazerpartedapequenaunidadedeles.
Talvezenvolverasasasaomeuredoremeescreverbilhetestivessemsidoas
formasdeRhysdegarantirquesuaarmanãosequebrariaparasempre.
Tudo bem... era justo. Nós não devíamos nada um ao outro além das
promessasdetrabalharedelutarjuntos.
Ele ainda podia sermeu amigo.Companheiro; o que quer que aquela coisa
entrenósfosse.Ofatodeelelevaralguémparaacamanãomudavaessascoisas.
Foraapenasumalíviopensarque,porummomento,Rhysandpoderiasertão
solitárioquantoeu.
Nãotivecoragemdesairdoquartoparatomarcafé,deverseRhysvoltara.
Deverquemelelevariaparaocafédamanhã.
Nãotinhamaisnadaafazer,disseamimmesmaqueficarianacamaatéminha
visitanahoradoalmoçocomTarquin.Então,fiqueialiatéqueoscriadosviessem,
pedissem desculpas porme perturbar e começassem a ir embora. Eu os impedi,
disse que tomaria banho enquanto limpavam o quarto. Eles foram educados—
talveznervosos—eapenasassentiramconformefizoquehaviadito.
Eu me demorei no banho. E, por trás da porta trancada, deixei que aquela
sementedopoderdeTarquinsaísse,primeirofazendoaáguasubirdabanheira,e
depoismoldandopequenosanimaisecriaturascomela.
Eraomaispróximodetransformaçãoqueeumepermitirachegar.Contemplar
comoeupoderiamedarformasanimalescasapenasmedeixavatrêmula,enjoada.
Podiaignoraraquilo,ignoraraqueleocasionalarranhardegarrasemmeusangue
duranteumtempo.
Eufaziaborboletasdeáguavoarempelocômodoquandomedeicontadeque
estavanabanheirahaviatantotempoqueobanhotinhaesfriado.
Comonanoiteanterior,Nualaatravessouasparedesvindadeondequerque
elaestivessehospedadanopalácio,emevestiu,dealgumaformaalertaaquando
eu deveria estar pronta. Cerridwen, contou Nuala, tirara o palito mais curto e
estavacuidandodeAmren.NãotivecoragemdeperguntarsobreRhystambém.
Nualaescolheuverde-marressaltadoporourorosa,cacheoueentãotrançou
meuscabelosemumatrançagrossaelargaquebrilhavacomtoquesdepérola.Se
Nuala sabia por que eu estava lá, o que faria, não disse. Mas tomou cuidado
especial com meu rosto, colorindo meus lábios com rosa-cereja e salpicando
minhasbochechascomomaisleveblush.Eupodiaparecerinocente,encantadora...
nãofossepelosolhosazul-cinzentos.Maisvaziosquenanoiteanterior,quandome
admireinoespelho.
EuviraosuficientedopalácioparaencontrarolugaremqueTarquindissera
paraencontrá-loantesdedarmosboa-noite.Osalãoprincipalficavaemumandar
intermediário; o local de encontro perfeito para aqueles que moravam nos
pináculosacimaeaquelesquetrabalhavamsemservistosououvidosabaixo.
Aquele andar abrigava todas as diversas salas de conselho, salões de baile,
salões de jantar e quaisquer outros salões que pudessem ser necessários para
visitantes,eventos,reuniões.Oacessoaosandaresresidenciaisdosquaiseutinha
vindoeravigiadoporquatrosoldadosemcadaescada:todosmeobservaramcom
cautelaconformeeuesperavacontraumapilastradeconchaporseuGrão-Senhor.
Imaginei se Tarquin podia sentir que eu estava brincando com seu poder na
banheira,queopedaçodesiqueeleentregaraestavaagoraalieobedeciaamim.
Tarquinsurgiudeumadassalasadjacentesquandoorelógiosoou14horas...
seguidopormeuscompanheiros.
OolhardeRhysmepercorreu,reparandonasroupasqueobviamenteeramem
honra de meu anfitrião e de seu povo. Reparando que não o encarei nem a
CresseidaquandoolheiapenasparaTarquineAmrenaoladodeRhys—Varian
agoracaminhavaatéossoldadospróximosàsescadas—edeiaosdoisumsorriso
inexpressivo,delábiosfechados.
—Vocêestábonitahoje—elogiouTarquin,inclinandoacabeça.
Nuala,aoqueparecia,eraumaespiãespetacular.Atúnicacordechumbode
Tarquin era ressaltada pelo mesmo tom de verde-mar que minhas roupas.
Poderíamosmuitobemestarvestindoroupasdomesmoconjunto.Supusque,com
oscabeloscastanho-alouradoseapelepálida,eueraseuopostoperfeito.
ConseguisentirRhysmeavaliando.
Euoafastei.TalvezmandasseumcachorrodeáguaatrásdeRhysdepois—e
deixassequelhemordesseabunda.
—Esperoquenãoestejainterrompendo—disseeuaAmren.
Amren fez um gesto com os ombros magros, aquele dia vestidos em cinza
comoaslajotasdocalçamento.
—Estávamosterminandoumdebatebastanteacaloradosobrearmadasequem
poderiaestarnocomandodeumafrenteunificada.Sabia—disseAmren—que
antes de se tornarem tão grandiosos e poderosos,Tarquin eVarian lideravam a
frotadeNostrus?
Varian,aalgunsmetros,enrijeceuocorpo,masnãosevirou.
EncareiTarquin.
— Não mencionou que era um marinheiro. — Foi um esforço parecer
intrigada,comosenadameincomodasse.
Tarquinesfregouopescoço.
— Planejava contar durante nosso passeio. — Ele estendeu o braço. —
Vamos?
Nenhumapalavra;eunãodisseraumapalavraaRhysand.Enãoestavaprestes
acomeçarconformedeiobraçoaTarquinefalei,paranenhumdelesemespecial:
—Vejovocêsdepois.
Algo roçou contra meu escudo mental, o estremecer de algo sombrio,
poderoso.
Talvez um aviso para que tomasse cuidado.Embora parecessemuito com a
emoçãosombriae tremeluzentequemeassombrara; tantoquedeiumpassopara
mais perto deTarquin.E, então, lancei um sorriso bonito e banal para oGrão-
SenhordaCorteEstival,umquenãodirigiaaninguémhaviamuitotempo.
Aqueletoquedeemoçãoficousilenciosodooutroladodemeusescudos.
Quebom.
Tarquinmelevouaumsalãodejoiasetesourostãoamploquefiqueiboquiaberta
porumbomminuto.Umminutoqueuseiparaverificarasprateleirasembuscade
qualquer lampejo de sensação— alguma coisa que desse a mesma sensação do
machoaomeulado,comoopoderqueeutinhaconjuradonabanheira.
—Eestaé...éapenasumadassalasdotesouro?—Osalãoforaescavadobem
nointeriordocastelo,atrásdeumapesadaportadechumboquesóseabriaquando
Tarquincolocavaamãonela.Nãoouseimeaproximarosuficientedatrancapara
versepodiafuncionarcommeutoque,comaassinaturaforjadadele.
Umaraposanogalinheiro.Eraissooqueeuera.
Tarquinsoltouumagargalhada.
—Meusancestraiseramunscanalhasgananciosos.
Sacudi a cabeça, caminhando até as prateleiras embutidas na parede. Pedra
sólida,nenhumaformadeinvadir,anãoserqueeuescavasseumtúnelpelaprópria
montanha. Ou se alguém me atravessasse. Embora ali provavelmente houvesse
feitiçossemelhantesàquelesdosolaredaCasadoVento.
Caixastransbordandojoiasepérolasegemasbrutas,ouroempilhadoembaús
tão altos que se derramava no piso de paralelepípedo. Trajes de armadura
ornamentadosmontavamguarda contraumaparede; vestidos tecidosde teiasde
aranhaeluzestelarestavamapoiadosunscontraosoutros.Haviaespadaseadagas
detodosostipos.Masnenhumlivro.Nenhum.
—Conheceahistóriaportrásdecadaartigo?
—Dealguns—respondeuTarquin.—Nãotivemuitotempoparaaprender
sobretudo.
Quebom;talvezelenãosoubessesobreoLivro,nãosentissesuafalta.
Eumevirei.
—Qualéacoisamaisvaliosaaqui?
—Pensandoemroubar?
Contiveumarisada.
—Fazeressaperguntanãometornariaumapéssimaladra?
Miserável,mentirosaduas-caras:eraissoquefazeressaperguntametornava.
Tarquinmeobservou.
—Eudiriaqueestouolhandoparaacoisamaisvaliosaaqui.
Nãofingiorubornasbochechas.
—Vocêé...muitoencantador.
O sorriso de Tarquin era suave. Como se sua posição ainda não tivesse
destruídoacompaixãoquetinha.Euesperavaquejamaisdestruísse.
—Sinceramente, não sei qual é a coisamais valiosa daqui. Essas são todas
herançasinestimáveisdeminhacasa.
Caminheiatéumaprateleira,observando.Umcolarde rubisestavadisposto
emumaalmofadadeveludo—cadaumdosrubistinhaotamanhodeumovode
tordo. Seria precisoumamulher e tantoparausar aquele colar, para dominar as
gemasenãoocontrário.
Emoutraprateleira,umcolardepérolas.Depois,safiras.
Eemoutra...umcolardediamantesnegros.
Cadaumadaspedrasnegraseraummistério...eumaresposta.Cadaumadelas
estavadormente.
Tarquinseaproximouportrásdemim,olhandoporcimademeuombropara
oquetinhaatiçadomeuinteresse.Oolharpassouparameurosto.
—Leve.
—Oquê?—Eumevireiparaele.
Tarquinpassouamãonanuca.
—Comoumagradecimento.PorSobaMontanha.
Peçaagora...peçaoLivroemvezdisso.
Masissoexigiriaconfiança,e...pormaisbondosoquefosse,eleeraumGrão-
Senhor.
Tarquin tirou a caixa do local emque repousava e fechou a tampa antes de
entregá-laparamim.
—Você foi a primeira pessoa quenão riu deminha ideia de acabar comas
barreirasdeclasse.MesmoCresseidadebochouquandoconteiaela.Senãoaceitar
ocolarpornossalvar,entãoaceiteporisso.
—Éumaboaideia,Tarquin.Masvocênãoprecisamerecompensarpelofato
deeuvalorizarsuaideia.
Elesacudiuacabeça.
—Apenasleve.
Seriauminsultoaeleseeumerecusasse...então,fecheiasmãosemvoltada
caixa.
—VaicombinarcomvocênaCorteNoturna—comentouTarquin.
—Talvezeufiqueaquieajudevocêarevolucionaromundo.
AbocadeTarquinsecontraiuparaolado.
—Umaaliadanonorteseriaútil.
Seriaporissoqueelemelevaraatéali?Porquemederaopresente?Nãotinha
percebidooquantoestávamossozinhosaliembaixo,queeuestavanosubterrâneo,
emumlugarquepoderiaserfacilmenteselado...
—Não temnada a temerdemim—assegurouTarquin, emeperguntei se
meu cheiro seria tão evidente.—Mas estou falando sério, você consegue... ter
influência sobreRhysand.E ele é notoriamente difícil de lidar.Consegue o que
quer,templanossobreosquaisnãocontaaninguématédepoisdetercompletado,
e nãopededesculpas por nada. Seja emissária dele nomundohumano,mas seja
também a nossa.Viuminha cidade.Tenhomais três assim.Amarantha destruiu
todasquase imediatamentedepoisdeassumir.Tudoquemeupovoqueragoraé
pazesegurança,ejamaisprecisarolharporcimadoombrodenovo.OutrosGrão-
Senhoresmecontarama respeitodeRhysemeavisaramcomrelaçãoaele.Mas
Rhys me poupou Sob a Montanha. Brutius era meu primo, e tínhamos forças
reunidasemtodasascidadesparaatacarSobaMontanha.Elesopegaramsaindo
defininhopelostúneisparaseencontrarcomessasforças.Rhysviuissonamente
deBrutius,seiqueviu.MasmentiuparaAmaranthaeadesafiouquandoestadeua
ordem para transformar meu primo em um fantasma vivo. Talvez fosse pelos
planosprópriosdele,masseique foiumgestodemisericórdia.Elesabequesou
jovem, e inexperiente, eme poupou.—Tarquin sacudiu a cabeça,mais para si
mesmo.—Àsvezes achoqueRhysand... achoque ele pode ter sido a vadia de
Amaranthaparapoupartodosnósdesuatotalatenção.
Eunão trairianadadoquesabia.MassuspeiteiqueTarquinpudesseverem
meusolhos...atristezaaopensarnaquilo.
— Sei que devo olhar para você — falou Tarquin — e ver que ele a
transformou emumbichode estimação, emummonstro.Masvejo bondade em
você.Eachoque issorefletemaisaeledoqueaqualqueroutracoisa.Achoque
mostraquevocêeelepodemtermuitossegredos...
—Pare—disparei.—Apenas...pare.Sabequenãopossocontarnada.Enão
possoprometernada.RhysandéGrão-Senhor.Sósirvoasuacorte.
Tarquinolhouparaochão.
—Perdoe-me se fuidireto.Aindaestouaprendendoa jogaros jogosdessas
cortes...paraatristezademeusconselheiros.
—Esperoquejamaisaprendaajogarosjogosdessascortes.
Tarquinmeencarou,orostocauteloso,umpoucotriste.
—Então,mepermitafazerumaperguntadireta.ÉverdadequedeixouTamlin
porqueeleatrancafiouemcasa?
Tenteibloquearalembrança,oterroreadordemeucoraçãosepartindo.Mas
assenti.
—EéverdadequevocêfoisalvadoconfinamentopelaCorteNoturna?
Assentidenovo.
Tarquinfalou:
—ACortePrimaveriléminhavizinhaaosul.Tenho laços tênuescomeles.
Masanãoserquemesejaperguntado,nãomencionareiqueesteveaqui.
Ladra,mentirosa,manipuladora.Nãomereciamealiaraele.
Masfizumareverênciaemagradecimento.
—Maisalgumasaladetesouroparamemostrar?
—Ouroejoiasnãosãoimpressionantesosuficiente?Equantoaseuolhode
mercadora?
Deiumtapinhanacaixa.
—Ah,conseguioquequeria.Agora,estoucuriosaparaverquantovalesua
aliança.
Tarquinriu,osomecoounapedraenasriquezasaoredor.
—Nãoestavamesmocomvontadedeiraminhasreuniõesdessatarde.
—QuejovemGrão-Senhorinconsequenteeselvagem.
Tarquinmeofereceuobraçodenovo,dandoumtapinhanomeuconformeme
levavadacâmara.
—Sabe,achoquetambémpodesermuitofácilamarvocê,Feyre.Emaisfácil
serseuamigo.
Eume obriguei a virar o rosto, timidamente, quandoTarquin selou a porta
atrásdenós,colocandoapalmadamãoabertanoespaçoacimadamaçaneta.Ouvi
ocliquedastrancasdeslizandoparaolugar.
Tarquin me levou para outros salões sob o palácio, alguns cheios de joias,
outroscomarmas,outroscomroupasdeerashámuitopassadas.Elememostrou
umcheiodelivros,emeucoraçãodeuumsalto—masnãohavianadaali.Nada
alémdecouroepoeiraesilêncio.Nenhumagotadepoderquedesseasensaçãodo
machoaomeulado;nenhumaindicaçãodolivrodequeeuprecisava.
Tarquinmelevouparaumúltimosalão,cheiodecaixasempilhadascobertas
comlençóis.E,enquantoeuolhavaparaasobrasdeartequeesperavamalémda
portaaberta,falei:
—Achoquejáviobastanteporhoje.
Tarquin não fez perguntas ao selar de novo a câmara eme acompanhar de
voltaaosandaressuperiorestumultuadoseensolarados.
DeviahaveroutroslugaresemqueoLivropoderiaestarguardado.Anãoser
quefosseemoutracidade.
Eu precisava encontrá-lo. Logo. Rhys e Amren só poderiam estender os
debatespolíticosporumtempolimitadoantesdeprecisarmospartir.Eusórezava
para que o encontrasse rápido o suficiente... e não me odiasse mais do que já
odiava.
Rhysandestavadeitadoemminhacamacomosefosseodonodesta.
Olheiumavezparaasmãoscruzadasatrásdacabeça,aslongaspernasjogadas
sobreabeiradocolchãoetrinqueiosdentes.
—O que você quer?—Bati a porta alto o suficiente para enfatizar o tom
afiadonaspalavras.
—FlertaredarrisadinhascomTarquinnãoadiantounada,suponho?
AtireiacaixanacamaaoladodeRhys.
—Digavocê.
Osorrisohesitouquandoelesesentoueabriuatampa.
—IssonãoéoLivro.
—Não,maséumlindopresente.
—Querqueeucomprejoiasparavocê,Feyre,entãopeça.Mas,considerando
seuguarda-roupa,acheiqueestivessecientedequetudoécompradoparavocê.
Nãotinhapercebido,masfalei:
—Tarquinéumbommacho,umbomGrão-Senhor.Deveria simplesmente
pediraeleaporcariadoLivro.
Rhysfechouatampa.
—Entãoeleaenchedejoiasedespejamelemseusouvidoseagoravocêse
sentemal?
—Elequersuaaliança,desesperadamente.Querconfiaremvocê,contarcom
você.
— Bem, Cresseida tem a impressão de que o primo é bastante ambicioso;
então,eutomariaocuidadodelerasentrelinhasdoqueelediz.
—Ah, é?Ela disse isso a você antes, durante oudepois que a levoupara a
cama?
Rhysficoudepécomummovimentograciosoelento.
—Éporissoquevocênãoquismeolhar?Porqueachaquetrepeicomelapor
informações?
—Informaçõesouporseuprazer,nãomeimporta.
Rhysdeuavoltanacama,enãomemovi,mesmoquandoeleparouapouco
menosdeumpalmoentrenós.
—Ciúmes,Feyre?
—Seestoucomciúmes,entãovocê temciúmesdeTarquineomelqueele
derrama.
Rhysandmostrouosdentes.
—Achaquegostodeprecisarflertarcomumafêmeasolitáriaparaconseguir
informações sobre sua corte, sobre seu Grão-Senhor? Acha que me sinto bem
comigomesmo ao fazer isso?Achaquegostode fazer isso para quevocê tenha
espaço para manipular Tarquin com seus sorrisos e olhos lindos, para
conseguirmosoLivroeirmosparacasa?
—Vocêpareceusedivertirmuitoontemànoite.
OgrunhidodeRhysandsaiubaixo,cruel.
—Nãoaleveiparaacama.Cresseidaqueria,masnemmesmoabeijei.Eua
leveiparabebernacidade,deixeiquefalassesobreavida,aspressões,ealeveide
voltaaoquartoenãopasseidaporta.Espereiporvocênocafédamanhã,masvocê
dormiuatétarde.Oumeevitou,aparentemente.Etenteiolharemseusolhosessa
tarde,masfoitãoeficienteemmeafastartotalmente.
—Foi issoqueodeixou irritado?Queeuoafastei,ouquefoi tãofácilpara
Tarquinseaproximar?
—Oquemeirritou—disseRhys,comarespiraçãoumpoucoirregular—
foiquevocêsorriuparaele.
Orestodomundosedissipouemnévoaquandoaspalavrasforamabsorvidas.
—Estácomciúmes.
Rhysandsacudiuacabeça,caminhouatéapequenamesacontraaparedemais
afastadaebebeuumcopodeumlíquidoâmbar.Eleapoiouasmãosnamesa,os
músculos poderosos das costas estremeceram sob a camisa quando a sombra
daquelasasaslutouparatomarforma.
—Ouvioquevocêdisseaele—revelouRhys.—Queachavaqueseriafácil
seapaixonarporele.Efoisincera.
—Edaí?—Foiaúnicacoisaquepenseiemdizer.
— Fiquei com ciúmes... disso. Porque não sou... esse tipo de pessoa. Para
ninguém.ACorteEstivalsemprefoineutra;sómostroucoragemduranteaqueles
anosSobaMontanha.PoupeiavidadeTarquinporquetinhaouvidofalarqueele
queriaaigualdadeentreGrão-Feéricosefeéricosinferiores.Estoutentandofazer
issoháanos.Semsucesso,mas...eusóopoupeiporisso.ETarquin,comsuacorte
neutra...jamaisprecisarásepreocuparcomofatodealguémterdefugirporquea
ameaça contra a vida da pessoa, contra a vida dos filhos dela, sempre existirá.
Então,sim,senticiúmesdele,porqueserásemprefácilparaele.ETarquinjamais
saberáoqueéolharparaocéuànoiteedesejar.
ACortedeSonhos.
Aspessoasquesabiamquehaviaumpreço,eumquevaliaapenapagar,por
aquelesonho.Osguerreirosbastardos,osmestiçosillyrianos,omonstropresoem
um lindo corpo, a sonhadoranascida emuma corte de pesadelos...E a caçadora
comalmadeartista.
E talvez porque fosse a coisa mais vulnerável que ele tinha dito para mim,
talvez fosse a ardência emmeus olhos, mas caminhei até onde Rhys estava, no
pequenobar.Nãoolheiparaelequandopegueiodecantadorcomlíquidoâmbare
meservideumdedo,enchendoocopodeleemseguida.
MasencareiRhysquandobrindeicomele,ocristaldoscopostilintounítidae
alegrementeporcimadobarulhodomarquequebravaabaixo,efalei:
—Àspessoasqueolhamparaasestrelasedesejam,Rhys.
Elepegouocopocomumolhartãointensoquemepergunteiporquetinhame
dadootrabalhodecorarparaTarquin.
Rhysbrindoucomocopocontraomeu.
—Àsestrelasqueouvemeaossonhosquesãoatendidos.
Doisdias sepassaram.Cadamomentoeraumnúmerodemalabarismoentrea
verdadee asmentiras.Rhys se certificoudeque eunão fosse convidadapara as
reuniõesqueeleeAmrenconvocaramparadistrairmeugentilanfitrião,oqueme
deutempoparavasculharacidadeembuscadequalquersinaldoLivro.
Mas nãomuito ansiosamente; nãomuito avidamente. Eu não podia parecer
intrigadademaisconformepercorresseasruaseasdocas,nãopodiafazermuitas
perguntas tendenciosas às pessoasque encontrasse, a respeitodos tesouros e das
lendasdeAdriata.Mesmoquandoacordei,aoalvorecer,meobrigueiaesperaraté
uma hora razoável antes de sair pela cidade, me obriguei a tomar um banho
demorado para secretamente praticar aquela magia de água. E embora moldar
animaisdeáguahoraapóshorativessesetornadoentediante...erafácilparamim.
TalvezporcausadaproximidadecomTarquin,talvezporcausadequalquerque
fosse a afinidade com a água que já estivesse em meu sangue, minha alma—
emboraeucertamentenãoestivesseemposiçãoparaperguntar.
Depoisqueocafédamanhãfoifinalmenteservidoeconsumido,mecertifiquei
de parecer um pouco entediada e sem rumo quando saí pelos corredores
iluminadosdopalácioacaminhodacidadequedespertava.
Quaseninguémmereconheceuconformeeucasualmenteexaminavaaslojase
as casas e as pontes, em busca de qualquer lampejo de um feitiço que tivesse a
sensação de Tarquin, embora duvidasse que tivessemmotivo para isso. Haviam
sido os Grão-Feéricos— a nobreza— que foram mantidos Sob a Montanha.
Aquelaspessoasforamdeixadasali...paraserematormentadas.
Cicatrizescobriamosprédios,asruas,peloquetinhasidofeitoemretaliaçãoà
rebelião deles: queimaduras, pedras sulcadas, prédios inteiros transformados em
escombros.Osfundosdocastelo,conformeTarquinalegara,pareciamrealmente
nomeiodeumaobra.Trêstorresdevigiaestavampelametade,apedramarrom,
chamuscadaequebradiça.NenhumsinaldoLivro.Trabalhadoresseocupavamali
—eportodaacidade—,consertandoaquelasáreasquebradas.
Exatamente como as pessoas que eu via — Grão-Feéricos e feéricos com
escamaseguelraselongosefinosdedospalmados;todospareciamestarsecurando
lentamente.Haviacicatrizesemembros faltandoemmaisdeumquecontei.Mas
nosolhos...nosolhos,aluzbrilhava.
Eutambémossalvara.
Libertara-os de quaisquer que fossem os horrores que ocorreram durante
aquelascincodécadas.
Tinhafeitoalgoterrívelparasalvá-los...masossalvara.
Ejamaisseriaosuficienteparameredimir,mas...Eunãomesentiatãopesada,
apesar de não encontrar um lampejo da presença do Livro, quando voltei ao
palácionoaltodacolinanaterceiranoiteparaesperarorelatóriodeRhysandsobre
asreuniõesdodia;esaberseeletinhadescobertoalgumacoisatambém.
Conformesubiosdegrausdopalácio,mexingandoporpermanecertãoforade
formamesmocomasliçõesdeCassian,viAmrenempoleiradanabeiradavaranda
deumatorredevigia,limpandoasunhas.
Varianestavaencostadoàsoleiradavarandadeoutratorre,aoalcancedeum
salto— e me perguntei se ele estava imaginando se conseguiria cobrir aquela
distânciarápidoobastanteparaempurrarAmren.
Um gato brincando com um cão... era o que aquilo era. Amren estava
praticamente tomando banho, silenciosamente desafiando-o a se aproximar o
bastanteparafarejá-la.DuvideidequeVarianfossegostardasgarrasdela.
Anãoserquefosseporissoqueeleaseguissediaenoite.
Sacudiacabeça,continueiasubirosdegraus—observandoconformeamaré
baixava.
Océumanchadopelopôrdosolserefletianaáguaenalamaexpostapelamaré
baixa.Umpoucodebrisanoturnapassousussurrandopormim,emeinclineiem
suadireção,deixandoqueesfriassemeusuor.Certavezhouveumtempoemque
euodiavao fimdoverão, rezava para que se estendesse pelomáximode tempo
possível. Agora, pensar no calor interminável e no sol me deixava... entediada.
Inquieta.
Estavaprestesavoltarparaasescadasquandovio trechode terraquetinha
sidoreveladopróximoaoquebra-mar.Opequenoprédio.
Nãoeraàtoaqueeunãootinhavisto,poisjamaissubiratantoduranteodia
quando amaré baixava... E durante o resto do dia, pela lama e pelas algas que
agorareluziamali,aquelaáreaestariatotalmentesubmersa.
Mesmoagora,estavasubmersapelametade.Maseunãoconseguiadesviaros
olhos.
Como se aquele fosse um pedacinho de meu lar, por mais que parecesse
molhadoedeprimente,eeusóprecisavacorrerpeloquebra-marenlameadoentrea
partemais tranquila da cidade e o continente—muito,muito rápido, e, então,
poderiaalcançá-loantesquesumissesobasondasdenovo.
Masolocaleravisíveldemais,e,delonge,eunãoconseguiadizercomcerteza
seeraoLivroqueelecontinha.
Precisaríamos ter certezaabsolutaantesdeentrarmos...paraafastaros riscos
dabusca.Certezaabsoluta.
Desejeinãooter,maspercebiquejátinhaumplanoparaaquilotambém.
JantamoscomTarquin,CresseidaeVarianemsuasaladejantardefamília—uma
indicaçãocerteiradequeoGrão-Senhorqueriamesmoaquelaaliança,comousem
ambição.
VarianobservavaAmrencomoseestivessetentandoresolverumacharadaque
elapropuseraaele,eAmrennãolhedeuqualqueratençãoconformedebatiacom
Cresseida as diversas traduções de algum texto antigo. Eu me aproximava de
minhapergunta,contandoaTarquinascoisasquetinhavistonacidadenaqueledia
—ospeixesfrescosquecompraranasdocas.
—Vocêcomeulá—comentouTarquin,erguendoassobrancelhas.
Rhysapoiouacabeçanopunhoenquantoeufalava:
—Eles fritaram com o almoço dos outros pescadores. Nãome cobraram a
maisporisso.
Tarquinsoltouumarisadaimpressionada.
—Nãopossodizerquejáfizisso,marinheiroounão.
—Deveria—aconselhei,sinceraemcadapalavra.—Estavadelicioso.
EuestavausandoocolarqueTarquinmedera,eNualaplanejaraminharoupa
apartirdajoia.Decidimosporcinza—umtomsuave,colombino—paraexibiro
preto reluzente.Nãouseimaisnada:nenhumbrinco,nenhumapulseira,nenhum
anel.Tarquinparecerasatisfeitocomaquilo,emboraVariantivesseengasgadoao
meverusandoumaherançadesuacasa.Cresseida,surpreendentemente,medisse
quecombinavacomigoequenãoseadequavaàquelelugarmesmo.Umelogioàs
avessas,maseraobastante.
—Bem,talvezeuváamanhã.Sevocêsejuntaramim.
Sorri paraTarquin, ciente de todos os sorrisos que oferecia a ele agora que
Rhystinhacomentado.Alémdemedarbrevesatualizaçõesnoturnassobreafalta
deprogressocomadescobertadequalquercoisaarespeitodoLivro,nãohavíamos
conversadodeverdadedesdeaquelanoiteemqueeulheencheraocopo;embora
fosseporcausadenossosdiascheios,nãodeestranheza.
—Eugostariadisso—falei.—Talvezpudéssemoscaminhardemanhãno
quebra-mar,quandoamaréestiverbaixa.Temaquelepequenoprédionocaminho,
parecefascinante.
Cresseidaparoudefalar,masprossegui,tomandovinho.
— Acho que, como já vi a maior parte da cidade agora, poderia ver essa
construçãoquandoformosvisitarpartedocontinentetambém.
OolhardeTarquinparaCresseidafoitodaaconfirmaçãodequeeuprecisava.
Aqueleprédiodepedradefatoguardavaoqueprocurávamos.
— É a ruína de um templo— explicou Tarquin, simplesmente, a mentira
suave como seda. — Apenas lama e alga por enquanto. Estamos querendo
restaurá-loháanos.
— Talvez seja melhor pegarmos a ponte então. Já chega de lama por um
tempo.
Lembre-se de que o salvei, que lutei contra oVerme deMiddengard, esqueça a
ameaça...
OsolhosdeTarquinencararamosmeus—porummomentolongodemais.
Naduraçãodeumpiscardeolhos,dispareimeupodersilenciosoeocultoem
sua direção, uma lança apontada para a mente de Tarquin, para aqueles olhos
desconfiados.
Havia um escudo erguido; um escudo de vidro marinho e coral e o mar
ondulante.
Eumetorneiaquelemar,metorneiosussurrodeondascontrapedra,obrilho
daluzdosolnasasasbrancasdeumagaivota.Eumetorneiele—metorneiaquele
escudomental.
Então, passei por ele, uma corda nítida, escura, memostrava o caminho de
volta caso eu precisasse. Deixei que o instinto, sem dúvida vindo de Rhys, me
guiasseparaafrente.Paraoqueeuprecisavaver.
Os pensamentos de Tarquin me atingiram como pedrinhas. Por que ela
perguntasobreotemplo?Detodasascoisasqueelapodiamencionar...Aomeuredor,
eles continuaram comendo.Eu continuei comendo.Obrigueimeu rosto, emum
corpodiferente,emummundodiferente,asorrirencantadoramente.
Porquequiseramtantovir?Porqueperguntarsobremeutesouro?
Comoondasbatendo,lanceimeuspensamentossobreosdele.
Elaéinofensiva.Éboa,etriste,epartida.Vocêaviucomseupovo—viucomo
elaostratou.Comotratavocê.Amaranthanãodestruiuessabondade.
DespejeimeuspensamentosparaTarquin,tingindo-oscommaresiaeocanto
dasandorinhas-do-mar—envolvendo-osnaessênciaqueeraTarquin,aessência
queelemedera.
Leve-aparaocontinenteamanhã.Issoaimpedirádeperguntarsobreotemplo.Ela
salvouPrythian.Ésuaamiga.
Meuspensamentos se assentaramemTarquin comoumapedra solta emum
lago. E quando a desconfiança se dissipou de seus olhos, eu soube que meu
trabalhoestavafeito.
Recueimais emais, deslizando por aquelamuralha de oceano e pérola, me
recolhendoparadentroatéquemeucorpofosseumajaulaaomeuredor.
Tarquinsorriu.
—Vamosnosencontrardepoisdocafédamanhã.AnãoserqueRhysandme
queira levar paramais reuniões.—NemCresseida nemVarian sequer olharam
paraTarquin.SeráqueRhyscuidaradesuassuspeitas?
Umraiopercorreumeusangue,mesmoconformeelegelouquandopercebio
quehaviafeito...
Rhysgesticuloucomamãopreguiçosa.
—Porfavor,Tarquin,passeodiacomminhasenhora.
Minha senhora. Ignorei as duas palavras. Mas afastei meu próprio assombro
diantedoqueeurealizara,dohorrorqueseacumulavadevagardiantedaviolação
invisíveldaqualTarquinjamaissaberia.
Eumeinclineiparaafrente,apoiandoosantebraçosexpostosnamesafriade
madeira.
—Conte o que há para ver no continente— disse a Tarquin, e desviei o
assuntodotemplonoquebra-mar.
RhyseAmrenesperaramatéqueas luzesdacasadiminuíssemantesde irematé
meuquarto.
Eu estava sentada na cama, contando os minutos, armando meu plano.
Nenhumdosquartosdehóspedesdavaparaoquebra-mar,comosenãoquisessem
queninguémonotasse.
Rhyschegouprimeiroeseinclinoucontraaportafechada.
—Comovocêaprenderápido.Amaioriadodaematilevaanosparadominar
essetipodeinfiltração.
Minhasunhasseenterraramnaspalmasdasmãos.
—Vocêsabia...queeu fizaquilo?—Dizeraspalavrasemvozaltapareceu
demais,pareceu...realdemais.
Umacenobrevedecabeça.
—Equetrabalhodeespecialistavocêfez,usandoaessênciadeleparaenganar
osescudosdeTarquin,parapassarporeles...Senhoraesperta.
—Elejamaismeperdoará—sussurrei.
—Ele jamaissaberá.—Rhys inclinouacabeça,eoscabelospretossedosos
caíram sobre sua testa. — Você se acostuma. Com a sensação de que está
ultrapassando um limite, de que o está violando. Se ajuda, não gosteimuito de
convencerVarianeCresseidaaencontraroutrosassuntosmaisinteressantes.
Abaixeioolharparaopisodemármorepálido.
— Se não tivesse cuidado de Tarquin— continuou ele—, provavelmente
estaríamosenterradosatéojoelhoembostaagora.
—Aculpafoiminhamesmo,fuieuquemperguntousobreotemplo.Sóestava
limpandominhasujeira.—Sacudiacabeça.—Nãoparececerto.
—Nuncaparece.Ounãodeveriaparecer.Muitosdaematiperdemessanoção.
Masaqui,estanoite...osbenefíciosforammaioresqueoscustos.
—Tambéméissoquedisseasimesmoquandoentrouemminhamente?Qual
foiobenefícioentão?
Rhysseafastoudaporta,caminhandoatéondeeuestavasentadanacama.
—Hápartesdesuamentequedeixeiintactas,coisasquepertencemapenasa
você,esemprepertencerão.Equantoaoresto...—OmaxilardeRhyssecontraiu.
— Você me apavorou durante um bom tempo, Feyre. Mandando sensações
daquela forma... Eu não podia sair andando para dentro da Corte Primaveril e
perguntarcomovocêestava,podia?—Passoslevessoaramnocorredor:Amren.
Rhysmeencarou,noentanto,aodizer:—Explicoorestooutrahora.
Aportaseabriu.
—Pareceumlugaridiotaparaesconderumlivro—disseAmren,comoum
cumprimento,aoentrar,sentando-senacama.
— E o último lugar em que alguém procuraria — argumentou Rhys, se
afastando demim para sentar no banquinho da penteadeira diante da janela.—
Poderiam protegê-lo facilmente com feitiços contra água e erosão. Um lugar
apenasvisívelporbrevesmomentosaolongododia,quandoaterraaoredorestá
expostaparaquetodosvejam?Nãopoderiahaver lugarmelhor.Temososolhos
demilharesnosobservando.
—Então,comoentramos?—perguntei.
—Provavelmenteestáguardadocontratravessia—disseRhys,apoiandoos
antebraços nas coxas.—Não vou arriscar soar algum alarme ao tentar. Então,
vamosànoite,àmodaantiga.Possocarregarvocêsduase,depois,montarguarda
—acrescentouRhys,quandoerguiassobrancelhas.
—Tãogalanteador—ironizouAmren—fazeraparte fácil,eentãodeixar
quenós,fêmeasindefesas,chafurdemosnalamaenasalgasmarinhas.
— Alguém precisa circular alto o bastante para ver qualquer um se
aproximando,ousoandoumalarme.Eocultarvocêsdevista.
Franziatesta.
—Astrancasrespondemaotoquedele;tomaraquerespondamaomeu.
—Quandoagimos?—indagouAmren.
—Amanhãànoite—respondi.—Observaremososturnosdosguardasesta
noiteduranteamarébaixa,descobriremosondeestãoosvigias.Quempodemos
precisareliminarantesdeagirmos.
—Vocêpensacomoumillyriano—murmurouRhys.
—Acreditoqueissodeveriaserumelogio—confidenciouAmren.
Rhysriucomescárnio,esombrassereuniramaoredordelequandooGrão-
Senhorafrouxouocontrolesobreopoder.
—NualaeCerridwenjáestãoagindodentrodocastelo.Voutomaroscéus.
Vocês duas deveriam sair para uma caminhada à meia-noite, considerando o
quantoestáquente.—Então,elesefoicomumfarfalhardeasasinvisíveiseuma
brisamornaeescura.
OslábiosdeAmrenestavamvermelhoscomosangueaoluar.Eusabiaquem
teriaaincumbênciadeeliminarqualquerolhoespião,eacabariacomumarefeição.
Minhabocasecouumpouco.
—Quetalumpasseio?
Odiaseguintefoiumatortura.Umatorturalenta,interminável,quentecomoo
inferno.
FingirinteressenocontinenteconformecaminhavacomTarquin,conheciaseu
povo, sorria para eles, ficoumais difícil conformeo sol percorreuo céu e então
finalmentecomeçouadesceremdireçãoaomar.Mentirosa,ladra,enganadora—
eraassimquemechamariamembreve.
Esperavaquesoubessem—queTarquinsoubesse—queoquetínhamosfeito
erapelobemdeles.
Arrogânciasuprema,talvez,pensarassim,mas...eraverdade.Considerandoa
rapidez com que Tarquin e Cresseida tinham se olhado, me guiado para longe
daquele templo... Aposto que não teriam entregado o livro. Por quaisquer que
fossemosmotivos,queriamoartefato.
TalvezessenovomundodeTarquin sópudesse ser construídocombasena
confiança...Maselenãoteriaachancedeconstruí-losetudofossedestruídopelos
exércitosdoreideHybern.
Foi o que disse paramimmesma, repetidas vezes, conforme caminhávamos
pelacidadedeTarquin;conformeeuaturavaoscumprimentosdeseupovo.Talvez
não tão alegres quanto aqueles emVelaris, mas... era uma acolhida esforçada e
merecida.Aquelaspessoastinhamsuportadoopioreagoratentavamsuperá-lo.
Comoeudeveriasuperarminhaescuridão.
Quandoo solpor fimdeslizounohorizonte, confessei aTarquinqueestava
cansadaecomfome—e,porsergentilehospitaleiro,elemelevoudevolta,eme
comprouumatortadepeixeassadoacaminhodecasa.Eleatémesmocomeraum
peixefritonasdocasnaquelatarde.
Ojantarfoiopior.
Partiríamos antes do café da manhã, mas eles não sabiam disso. Rhys
mencionou voltar à Corte Noturna na tarde do dia seguinte, então, talvez uma
partidamaiscedonãoparecessetãosuspeita.Eledeixariaumbilhetesobreassuntos
urgentes,agradeceriaaTarquinpelahospitalidadeeentãosumiriaparacasa...para
Velaris.Setudocorressedeacordocomoplanejado.
Havíamosdescobertoondeosguardasestavamposicionados,comoosturnos
funcionavameondeospostosficavamnocontinentetambém.
E,quandoTarquinbeijouminhabochechaaomedarboa-noite,dizendoque
desejava que aquela não fosse minha última noite e que talvez visse se poderia
visitaraCorteNoturnaembreve...Quasecaídejoelhosparaimplorarseuperdão.
A mão de Rhysand em minhas costas era um aviso sólido para que eu
mantivesseacalma...mesmoqueorostosóestampasseaqueladiversãofria.
Fui para o quarto. E encontrei trajes de couro de guerra illyrianos me
esperando.Juntodaquelecintodefacasillyrianas.
Então,mevestiparabatalhamaisumavez.
Rhysvoou conoscopara perto damaré baixa e nos deixou antes tomaros céus,
onde ele circularia, monitoraria os guardas na ilha e no continente enquanto
caçávamos.
A lama fedia, emitia ruídos aquosos e nos espremia a cada passo desde a
estreita estrada do quebra-mar até a pequena ruína do templo. Cracas, algas
marinhaselapasseagarravamapedrascinza—ecadapassoparadentrodaúnica
câmara interna fazia comque aquela coisa emmeu peito dissesse onde você está,
ondevocêestá,ondevocêestá?
Rhys e Amren tinham verificado feitiços ao redor do local, mas não
encontraram nada. Era estranho,mas era uma sorte.Graças à porta aberta, não
ousamos arriscar acender uma luz, e, com as rachaduras na pedra acima, o luar
forneciailuminaçãosuficiente.
Com os joelhos enterrados em lama, a água recuando e escorrendo pelas
rochas,Amreneeuverificamosacâmara,compoucomaisde12metrosdelargura.
—Consigosentir—sussurrei.—Comoamãodealguém,cheiadegarras,
percorrendo minha coluna. — De fato, minha pele formigava, os pelos se
arrepiavamsobotrajequentedecouro.—Estádormente.
—Nãoéàtoaqueotenhamescondidosobpedraelamaemar—murmurou
Amren,comalamafazendobarulhosaquososquandoelasevirouondeestava.
Estremeci,asfacas illyrianasemmimagorapareciamtãoúteisquantopalitos
dedente,emaisumavezmevireiondeestava.
—Nãosintonadanasparedes.Masestáaqui.
Defato,nósduasolhamosparabaixonamesmahoraenosencolhemos.
—Devíamostertrazidoumapá—ponderouAmren.
—Não há tempo de pegar uma.—Amaré estava totalmente baixa agora.
Cada minuto contava. Não apenas para a água, que retornaria, mas para o
alvorecer,quenãoestavamuitolonge.
Cadapassoeraumesforçoemmeioaoapertofirmedalama,emeconcentrei
naquela sensação, naquele chamado.Parei no centro da câmara; bemno centro.
Aqui,aqui,aqui,sussurrouacoisa.
Eumeinclineiparabaixo,estremecendoparaalamagelada,paraospedaçosde
conchaededestroçosquearranharamminhasmãosexpostasconformecomeceia
empurrá-los.
—Rápido.
Amrensibilou,masseabaixouparapuxaralamapesadaedensa.Caranguejos
ecoisasligeirasfizeramcócegasemmeusdedos.Eumerecuseiapensarneles.
Então, cavamos e cavamos, até estarmos cobertas de lama salgada que
queimavanossosinúmerospequenoscortesconformeofegávamosparaumpisode
pedra.Eumaportadechumbo.
Amrenxingou.
—Chumboparamanteraforçatotaldeledoladodedentro,parapreservá-lo.
Costumavam cobrir os sarcófagos dos grandes governantes com isso, porque
achavamqueumdiaacordariam.
—Seo rei deHybern sair por aí comaqueleCaldeirão, podemmuito bem
acordar.
Amrenestremeceueapontou.
—Aportaestáselada.
Limpeiamãonaúnicapartedemimqueestavalimpa—opescoço—euseia
outra para raspar o restante da lama da porta redonda. Cada esbarro contra o
chumbo lançava pontadas de frio por mim. Mas ali estava: um redemoinho
entalhadonocentrodaporta.
—Issoestáaquihámuitotempo—murmurei.
Amrenassentiu.
— Não ficaria surpresa se, apesar da marca do poder do Grão-Senhor,
Tarquin e seus predecessores jamais tivessem colocado os pés aqui, o feitiço de
sangue neste lugar tivesse sido imediatamente transferido para eles depois que
assumiramopoder.
—PorquedesejaroLivro,então?
—Nãoiriaquereresconderumobjetodeterrívelpoder?Paraqueninguém
pudesseusá-loparaomal,ouparaganhopessoal?Outalvezotenhamtrancafiado
paraterpoderdebarganhasealgumdiafossenecessário.Eunãotinhaideiadepor
queeles,detodasascortes,receberamametadedoLivroparainíciodeconversa.
Sacudiacabeçaeespalmeiamãonoredemoinhonochumbo.
Um sobressalto me percorreu o corpo como relâmpago, e resmunguei,
descendomeupesosobreaporta.
Meusdedoscongelaramali,comoseopoderestivessesugandominhaessência,
bebendocomoAmrenbebia,eeuosentihesitar,questionar...
SouTarquin.Souverão;soucalor;soumarecéuecamposcultivados.
EumetorneicadasorrisoqueTarquinmelançara,metorneioazulcristalino
deseusolhos,omarromdesuapele.Sentiminhapelemudar,sentimeusossosse
esticarememudarem.Atéqueeu fosse ele, eatéqueentãoeu tivesseumparde
mãosmasculinas,queagorafaziamforçacontraaporta.Atéqueminhaessênciase
tornasseoqueeutinhaprovadonaqueleescudomentalinteriordeTarquin:mare
solemaresia.Nãomedeiummomentoparapensaremquepoderteriaacabadode
usar. Não permiti que nenhuma parte de mim que não fosse o Grão-Senhor da
CorteEstivaltransparecesse.
Souseumestre,evocêmedeixarápassar.
Atrancaresistiucommaisemaisforça,emalconseguirespirar...
Então,ouviu-seumcliqueeumrangido.
Volteiparaminhapeleerecueiparaalamaamontoadanomomentoemquea
porta afundou e se afastou, entrando sob as pedras e revelando uma escada
espiralada que descia para uma escuridão primitiva. E, com uma brisa úmida e
salgada,debaixosubiramgavinhasdepoder.
Dooutroladodaescada,orostodeAmrenficaramaispálidoqueocomum,os
olhosprateadosbrilhavamfortemente.
—NuncavioCaldeirão—disseAmren.—Masdevesermesmoterrívelse
apenasumgrãodeseupodertem...essasensação.
De fato, aquele poder estava preenchendo a câmara, minha cabeça, meus
pulmões;sufocando,afogandoeseduzindo...
—Rápido—avisei,eumapequenaboladeluzfeéricadisparouparabaixoda
curvadasescadas,iluminandodegrauscinzadesgastadosescorregadioscomlodo.
Saqueiafacadecaçaedesci,comumadasmãosapoiadanaparededepedra
gelada,paraevitarescorregar.
Desciumacurva,comAmrenlogoatrás,antesdeluzfeéricadançarsobreuma
águapútridanaalturadacintura.Verifiqueiapassagemaopédasescadas.
—Temumcorredoreumacâmaraalémdele.Tudolivre.
—Então,subacorrendo—disseAmren.
Eu me preparei e avancei para a água escura, contendo o grito diante da
temperatura quase congelante, da oleosidade dali. Amren quase vomitou, pois a
águapraticamentelheatingiaopeito.
—Este lugar semdúvida enche rápidodepois que amaré sobedenovo—
observouAmren, conforme arrastávamos as pernas pela água, franzindo a testa
paraosmuitosvãosdedrenagemnasparedes.
Seguimosdevagarobastanteparaqueeladetectassequalquertipodefeitiçoou
armadilha,mas...nãohavianada.Nadamesmo.Noentanto,quemdesceriaatélá,
atétallugar?
Tolos...tolosdesesperados,issosim.
Olongocorredordepedraterminavaemumasegundaportadechumbo.Atrás
dela,aquelepoderestavacontido,cobrindoamarcadeTarquin.
—Estáali.
—Obviamente.
FizumacarafeiaparaAmren,nósduasestremecemos.Ofrioestavaintensoo
bastanteparaqueeumeperguntassesetalvezjáestariamortacasoaindativesseum
corpodehumana.Oupertodemorrer.
Espalmeiamãonaporta.Ospuxões,osquestionamentoseaexaustãoforam
pioresdessavez.Muitopiores,epreciseiapoiaramãotatuadanaportaparaevitar
cairdejoelhosegritarconformeopodermepilhava.
Souverão,souverão,souverão.
Nãome transformeiemTarquindessavez—nãoprecisei.Umcliqueeum
rangido, e a porta de chumbo deslizou para a parede, águas se encontraram e
agitaramquandocambaleeiparatrás,paraosbraçospacientesdeAmren.
—Fechadura tão travessa—sibilouela, estremecendonãoapenasdevidoà
água.
Minha cabeça estava girando. Mais uma fechadura e eu poderia muito bem
desmaiar.
Masaluzfeéricatremeluziuparadentrodacâmaradiantedenóseparamos.
Aáguanãotinhaseencontradocommaisumacâmara,masparadocontraum
umbralinvisível.Acâmarasecaalémestavavazia,excetoporumaltarredondoe
umpedestal.
Umapequenacaixadechumboestavasobreele.
Amren gesticulou com a mão hesitante no ar acima de onde a água
simplesmente... parava. Então, satisfeita por não haver feitiços ou truques, ela
entrou,pingandonaspedrascinzaaoficardepénacâmara,encolhendoumpouco
ocorpo,emechamar.
Arrastandoaspernasomaisrápidopossívelnaágua,euasegui,quasecaindo
nochãoquandomeucorposeajustouaoarrepentino.Eumevirei...e,defato,a
águaeraumaparedenegra,comosehouvesseumpaineldevidromantendo-ano
lugar.
—Sejamosrápidas—ordenouAmren,enãodiscordei.
Nósduascuidadosamenteverificamosacâmara:pisos,paredes,tetos.Nenhum
sinaldemecanismosougatilhosocultos.
Embora não fosse maior que um livro comum, a caixa de chumbo parecia
engoliraluzfeérica;edentrodela,sussurrando...oselodopoderdeTarquineo
Livro.
Eagoraouvi,comtantaclarezaquantoseaprópriaAmrentivessesussurrado:
Quem é você... o que é você?Cheguemais perto,me deixe sentir seu cheiro,me
deixevê-la...
Paramosdeladosopostosdopedestal,aluzfeéricapairavasobreatampa.
—Nenhumfeitiço—disseAmren,avozpoucomaisaltaqueoraspardesuas
botasnapedra.—Nenhumfeitiço.Precisaretirá-lo...carregá-loparafora.—A
ideia de tocar naquela caixa, deme aproximardaquela coisa dentrodela...—A
maréestávoltando—acrescentouAmren,verificandooteto.
—Cedoassim?
—Talvezomarsaiba.TalvezomarsejaoservodoGrão-Senhor.
Eseficássemospresasaliembaixoquandoaáguasubisse...
Nãoacheiquemeuspequenosanimaisdeáguaajudariam.Pânicosecontorceu
emmeuestômago,maseuoafasteiereunicoragem,erguendooqueixo.
Acaixadeviaserpesadaefria.
Quemévocê,quemévocê,quemévocê...
Flexioneiosdedoseestaleiopescoço.Souverão;soumaresolecoisasverdes.
—Vamos lá, vamos lá—murmurouAmren.Acima, a água escorria pelas
pedras.
Quemévocê,quemévocê,quemévocê...
SouTarquin;souGrão-Senhor;souseumestre.
Acaixasecalou.Comosefosserespostaobastante.
Peguei a caixa do pedestal, a frieza dometal feriu minhasmãos, e o poder
percorreumeusangue,comoumamanchadeóleo.
Umavozantigaecruelsibilou:
Mentirosa.
Eaportabateu.
–Não!—gritouAmrenparaaportaemumsegundo,opunhocomoumaforja
radiantequandogolpeoucontraochumbo,uma,duasvezes.
Eacima,acorrenteeo ruídodaáguaescorrendoescadaabaixo,enchendoa
câmara...
Não,não,não...
Chegueiàporta,guardeiacaixanograndebolsointernodocasacodecouro
enquanto a palma da mão incandescente de Amren pressionava a porta,
queimando, aquecendo o metal, espirais e redemoinhos irradiavam pela porta
comosefossemumalínguasódela,então...
Aportaseabriucomumaexplosão.
Apenasparaqueumaenchenteentrassecomtudo.
Segurei o umbral, mas errei quando a água me empurrou de volta, me
varrendoparadebaixodasuperfícieescuraegelada.Ofrioroubouoardemeus
pulmões.Encontrarochão,encontrarochão...
Meuspéstocaramochãoedeiumimpulsoparacima,puxandoar,avaliandoa
câmara escura em busca de Amren. Ela estava agarrada ao umbral, de olho em
mim,amãoestendida,brilhandoforte.
Aáguajásubiraatéaalturademeusseios,ecorriatéAmren,lutandocontrao
ataque que inundava a câmara, desejando que aquela nova força tomasse meu
corpo,meusbraços...
A água ficoumais tranquila, como se aquela semente de poder acalmasse a
corrente,suaira,masAmrenagorasubiaoumbral.
—Estácomele?—gritouela,porcimadorugidodaágua.
AssentiepercebiqueamãoestendidadeAmrennãoeraparamim,masparaa
portaqueelaforçaradevoltaparadentrodaparede.Amrenamanteveafastadaaté
queeupudessesair.
Forceimeucaminhopelaaberturaemarco,eAmrendeslizoupeloumbral—
no momento em que a porta se fechou de novo, com tanta violência que me
maravilheidiantedopoderqueAmrentinhausadoparaafastá-la.
A única desvantagem era que a água no corredor agora tinhamuitomenos
espaçoapreencher.
—Vá!—mandouAmren,masnãoespereiporaprovaçãoantesdepegá-la,
prendendoseuspésdeemvoltadaminhabarrigaquandoacoloqueinascostas.
—Apenas...façaoqueprecisafazer—disseeu,opescoçocurvadoacimada
águaquesubia.Nãofaltavamuitoatéasescadas,asescadasqueagoraeramuma
cachoeira.OndediaboestavaRhysand?
Mas Amren estendeu a palma da mão diante de nós, e a água recuou e
estremeceu.Não eraumcaminho livre,masumabrechana corrente.Direcionei
aquelasementedopoderdeTarquin—demeupoderagora—paraela.Aáguase
acalmoumaisainda,lutandoparaobedecermeucomando.
Corri,segurandoascoxasdeAmren,provavelmentecomforçasuficientepara
deixarhematomas.Passoapasso,aáguaagoradescendoviolentamente,emmeu
maxilar,emminhaboca...
Mas cheguei às escadas, quase escorreguei no degrau coberto de lodo, e o
arquejodeAmrenquasemeparousubitamente.
Nãofoiumarquejodechoque,masembuscadearquandoumamuralhade
águajorroupelasescadas.Comoseumaondapoderosativessevarridoolocal.Até
mesmomeudomíniosobreoelementonãopodiafazernadacontraela.
Tive tempoobastante para tomar fôlego, segurar as pernas deAmren eme
preparar...
Eobservarquandoaquelaportanoaltodasescadassefechou,nosselandoem
umatumbadeágua.
Euestavamorta.Sabiaqueestavamorta,enãotinhacomoescapar.
Tinhaconsumidomeuúltimofôlegoeestariaconscientedurantecadasegundo
atéquemeuspulmõescedessememeucorpometraísse,eeutragasseaquelegole
fataldeágua.
Amrenbateuemminhasmãosatéqueeusoltasse,atéquenadasseatrásdela,
tentandoacalmarmeucoraçãoempânico,meuspulmões,tentandoconvencê-losa
fazercadasegundocontarconformeAmrenalcançavaaportaebatianelacoma
palma da mão. Símbolos se incendiaram; de novo e de novo. Mas a porta se
mantevefirme.
AlcanceiAmren,eempurreimeucorpocontraaporta,denovoedenovo,eo
chumbocedeu sobmeusombros.Entãoeu tinhapresas,presas,nãogarras, e eu
cortavaesocavaometal...
Meus pulmões pareciam em fogo. Meus pulmões estavam entrando em
colapso...
Amren esmurrava a porta, aquela faísca de luz feérica se extinguia, como se
estivessefazendoacontagemregressivadasbatidasdoprópriocoração...
Precisava tomar fôlego, precisava abrir a boca e tomar fôlego, precisava
acalmaraqueimação...
Então,aportafoidestruída.
Ea luz feéricapermaneceu forteo suficienteparaqueeuvisseos três rostos
lindoseetéreossibilandocomdentescomoosdepeixesconformeosdedosfinose
palmadosnospuxavamdasescadasparaseusbraçoscompelederã.
Espectrosdaágua.
Masnãoconseguiaguentar,quandoaquelasmãosfinassegurarammeubraço,
abriaboca,aáguaentrou,cortandopensamentose sonse fôlego.Meucorpose
convulsionou,eaquelaspresassumiram...
Escombrosealgasmarinhaseáguapassaramemdisparadapormim,etivea
vaga sensação de ser lançada pela água, tão rápido que esta ardeu sob minhas
pálpebras.
Então, ar quente; ar, ar, ar, mas meus pulmões estavam cheios de água
quando...
Um punho golpeou meu estômago e vomitei água nas ondas. Inspirei ar,
piscandodiantedoroxohematomaedorosacoradodocéumatinal.
Uma tosse e um arquejo, nãomuito longe demim, eme arrastei pela água
quandomevireinabaíaparaverAmrenvomitandotambém...masviva.
E,nasondasentrenós,comcabeloônixcoladoàscabeçasestranhascomose
fossem capacetes, os espectros da água flutuavam, encarando-nos com olhos
grandesepretos.
Osolestavanascendoatrásdeles—acidadequenoscercavaseagitava.
Oespectroqueestavanocentrofalou:
—Adívidadenossairmãestápaga.
Então,seforam.
Amrenjáestavanadandoparaolitoraldistantedocontinente.
Rezandoparaqueelesnãovoltassemenostransformassememrefeição,segui
compressaatrásdeAmren,tentandomantermeusmovimentoscurtosparaevitar
serdetectada.
Nósduaschegamosaumrecessotranquilodeareiaedesabamos.
Umasombrabloqueouosol,eumabotachutouminhapanturrilha.
—Oque—falouRhysand,aindavestidodepretoparaabatalha—vocês
duasestãofazendo?
AbriosolhoseencontreiAmrenapoiadasobreoscotovelos.
—Ondediabosvocêestava?—indagouela.
—Vocêsduasdispararamtodasasporcariasdegatilhosdopalácio.Euestava
caçandocadaguardaquesoariaoalarme.—Minhagargantaardia,eareia fazia
cócegas em minhas bochechas, em minhas mãos expostas. — Achei que você
estavacuidandodetudo—disseRhysandaAmren.
Elasibilou.
— Aquele lugar, ou aquele maldito livro, quase anularam meus poderes.
Quasenosafogamos.
Oolhardeledisparouparamim.
—Nãosentipelolaço...
—Provavelmenteanulouissotambém,seucanalhaburro—disparouAmren.
OsolhosdeRhysseiluminaram.
—ConseguiupegaroLivro?—Elenãoestavanemumpoucopreocupadose
quasenoshavíamosafogadoemorrido.
Toqueimeucasaco;opedaçodometalpesadoestavadentrodobolso.
—Quebom—falouRhys,eolheiparatrásdeledevidoàurgênciasúbitaem
seutomdevoz.
Edefato,nocastelodooutroladodabaía,aspessoascorriam.
—Deixeialgunsguardasescaparem—disseele,edepoispegounossosbraços
edesaparecemos.
Oventoescuroestavafrioerugia,eeumaltinhaforçasparamesegurarem
Rhysand.
Perditotalmenteasforças,assimcomoAmren,quandoaterrissamosnosaguão
dosolar...enósduasdesabamosnopisodemadeira,derramandoareiaeáguano
carpete.
Cassiangritoudasaladejantaratrásdenós:
—Quediabos?
OlheicomraivaparaRhysand,queapenasseaproximoudamesadecaféda
manhã.
—Tambémestouesperandoumaexplicação—disseele,simplesmente,para
Cassian,AzrieleMor,todosdeolhosarregalados.
MaseumevireiparaAmren,queaindasibilavanochão.Seusolhosvermelhos
sesemicerraram.
—Como?
—DuranteoTributo,aemissáriadosespectrosdaáguadissequenãotinham
ourooucomidacomquepagar.Estavampassandofome.—Cadapalavradoía,e
acheiquepoderiavomitardenovo.Elemereceriaseeuvomitassenotapeteinteiro.
EmboraRhysprovavelmentedescontasseoprejuízodemeusalário.—Então,dei
aelaalgumasdeminhasjoiasparapagarosimpostos.Oespectrojurouqueelaeas
irmãsjamaisseesqueceriamdabondade.
—Alguémpodeexplicar,porfavor?—gritouMor,dasalaalémdenós.
Permanecemosno chão, eAmren começou agargalharbaixinho, opequeno
corpotremia.
—Oquê?—indaguei.
—Apenas uma imortal com coraçãomortal daria dinheiro a uma daquelas
bestasterríveis.Étão...—Amrenriudenovo,oscabelospretosestavamcolados
comareiaealgasmarinhas.Porummomento,atépareceuhumana.—Qualquer
quesejaasortequeamantémviva,garota...agradeçaaoCaldeirãoporela.
Osoutrosobservavam,massentiumrisosair,sussurrado,demim.
Seguido por uma gargalhada, rouca e crua como meus pulmões. Mas uma
gargalhadareal,talvezimpulsionadapelahisteria...eporalívioprofundo.
Nósnosolhamoserimosdenovo.
—Senhoras—ronronouRhys,umaordemsilenciosa.
Gemiquandofiqueidepé,areiacaiuportodaparte,eofereciamãoparaque
Amren se levantasse. Seu aperto era firme, mas os olhos de mercúrio estavam
surpreendentemente suaves quando ela segurou minha mão antes de estalar os
dedos.
Nósduasfomosinstantaneamentelimpaseaquecidas,asroupasestavamsecas.
Excetoporumtrechomolhadopertodemeuseio,ondeaquelacaixaesperava.
Meuscompanheirosexibiamumaexpressãosoleneconformemeaproximeie
leveiamãoaobolso.Ometalferiumeusdedos,tãofrioquepareceuqueimar.
Solteioobjetonamesa.
Eleemitiuumestampido,etodosseencolheram,xingando.
Rhysapontouumdedoflexionadoparamim.
—Umaúltimatarefa,Feyre.Destranque-o,porfavor.
Meus joelhos estavam falhando, minha cabeça girava, e minha boca parecia
secaecheiadesaleareia,mas...euqueriamelivrardaquilo.
Então,mesenteiemumacadeira,puxandoaquelamalditacaixaparamim,e
coloqueiamãonotopo.
Oi,mentirosa,ronronouoobjeto.
—Oi—falei,baixinho.
Vaimeler?
—Não.
Os outros não disseram uma palavra, embora eu sentisse sua confusão,
fervilhandopelasala.ApenasRhyseAmrenmeobservavamcomatenção.
Abra,falei,emsilêncio.
Digaporfavor.
—Porfavor—pedi.
A caixa — o Livro — ficou em silêncio. Então, disse: Semelhante atrai
semelhante.
—Abra!—ordenei,entredentes.
DesfeitaeFeita;FeitaeDesfeita—esseéociclo.Semelhanteatraisemelhante.
Empurrei amãocommais força, tão cansadaquenãome importava comos
pensamentosque saíamaos tropeços, comospunhadoseospedaçosqueerame
nãoerampartesdemim:caloreáguaegeloeluzesombra.
QuebradoradaMaldição,disseparamimoLivro,eacaixaseabriu.
Relaxeinacadeira,gratapelofogocrepitantenalareirapróxima.
OsolhosdeavelãdeCassianestavamsombrios.
—Jamaisqueroouviraquelavozdenovo.
—Bem, vai ouvir— falouRhysand, casualmente, levantando a tampa.—
Porque virá conosco ver aquelas rainhasmortais assim que se dignem a receber
visitas.
Euestavacansadademaisparapensarnaquilo:noqueaindatínhamosdefazer.
Olheidentrodacaixa.
Nãoeraumlivro;nãocompapelecouro.
Tinhasido feitodeplacasdemetalescurasamarradasemtrêsanéisdeouro,
prataebronze,cadapalavraentalhadacomprecisãoimpecável,emumalfabetoque
eu não reconhecia. Sim, de fato, minhas aulas de leitura haviam sido
desnecessárias.
Rhysodeixoudentrodacaixaenquantoolhávamosparaela—edepoisnos
encolhíamos.
ApenasAmren continuouobservandoo livro.O sangue totalmentedrenado
dorosto.
—Quelínguaéessa?—perguntouMor.
Achei que as mãos de Amren estivessem tremendo, mas ela as enfiou nos
bolsos.
—Nãoéumalínguadestemundo.
ApenasRhyspermaneceuinabaladopelochoquenorostodeAmren.Comose
suspeitasseque língua seria aquela.Porque a escolhera para fazer parte daquela
caçada.
—Oqueé,então?—perguntouAzriel.
Amren encarou oLivro semparar— como se fosse um fantasma, como se
fosseummilagre—efalou:
—ÉoLeshonHakodesh.ALínguaSagrada.—Aquelesolhosdemercúriose
voltaramparaRhysand,epercebiqueAmrentambémentendiaporquetinhaido.
Rhysandfalou:
— Ouvi uma lenda que diz que ele foi escrito em uma língua de seres
poderososque temiamopoderdoCaldeirãoe fizeramoLivropara combatê-lo.
Serespoderososqueestavamaqui... edepois sumiram.Vocêé aúnicaquepode
decodificá-lo.
FoiMorquemavisou:
—Nãoentrenessestiposdejogos,Rhysand.
Maselesacudiuacabeça.
—Nãoéumjogo.FoiumpalpitedequeAmrenconseguiria lê-lo,eumde
sorte.
As narinas de Amren se dilataram delicadamente, e, por um momento, me
pergunteiseelapoderiaatacarRhyspornãolhetercontadosobresuassuspeitas,
dequeoLivropoderia,defato,sermaisqueachaveparanossasalvação.
Rhys sorriu para Amren de uma forma que dizia que ele estaria disposto a
permitirqueelatentasse.
AtémesmoCassiandeslizouamãoparaafacadeguerra.
Mas,então,Rhysandfalou:
—EutambémacheiqueoLivropudesseconterofeitiçoparalibertarvocê...e
mandá-ladevoltaparacasa.Seforamelesqueescreveram.
AgargantadeAmrenosciloulevemente.
—Merda—disseCassian.
Rhyscontinuou:
—Nãoconteisobreminhassuspeitasporquenãoqueriadaresperançasavocê.
Mas,seaslendassobrealínguaforemmesmoverdadeiras...talvezencontreoque
andaprocurando,Amren.
—Precisodaoutraparteantesquepossacomeçaradecodificá-lo.—Avozde
Amrensoavaáspera.
—Esperoquenossopedidoàsrainhasmortaissejaatendidoembreve—disse
Rhys,franzindoatestaparaaareiaeaáguaquemanchavamosaguão.—Eespero
queopróximoencontrosejamelhorqueesse.
AbocadeAmrensecontraiu,osolhosbrilhavamintensamente.
—Obrigada.
Dezmilanosemexílio;sozinha.
Mor suspirou — um ruído alto e dramático, sem dúvida destinado a
interromperosilênciocarregado—ereclamousobrequererouvirahistóriatoda
sobreoqueacontecera.
MasAzrieldisse:
—MesmoqueolivropossaanularoCaldeirão...Teremosaindaqueenfrentar
Jurian.
Todosolhamosparaele.
—Essa é a peça que não se encaixa— esclareceuAzriel, batendo com um
dedo coberto de cicatrizes na mesa.— Por que ressuscitá-lo? E como o rei o
mantémpreso?OqueoreitemquegarantealealdadedeJurian?
—Penseinisso—confessouRhys,sentando-sediantedemimàmesa,entre
osdois irmãos.Éclaroque tinhapensado.Rhysdeudeombros.—Jurianera...
obsessivo em sua busca por coisas. Ele morreu commuitas daquelas metas por
cumprir.
OrostodeMorempalideceuumpouco.
—SesuspeitarqueMiryamestáviva...
—ÉmaisprovávelqueJurianacreditequeMiryamsefoi—disseRhys.—E
quemmelhor para ressuscitar sua antiga amante que um rei com umCaldeirão
capazdelevantarosmortos?
—Seráque Jurian se aliaria aHybernapenasporqueachaqueMiryamestá
mortaeaquerdevolta?—argumentouCassian,apoiandoosbraçosnamesa.
—Ele faria isso para se vingar deDrakon por ter conquistadoMiryam—
respondeuRhys.Elesacudiuacabeça.—Discutiremosdepois.—Efizumanota
mentalparaperguntaraRhysquemeramaquelaspessoas,qualeraahistóriadelas,
perguntar a Rhys por que ele jamais indicara Sob a Montanha que conhecia o
homem por trás do olho no anel de Amarantha. Depois que eu tivesse tomado
banho.Ebebidoágua.Etiradoumasoneca.
MastodosolharamparamimeparaAmrendenovo—aindaesperandopela
história.Depois de limpar algunsgrãosde areia, deixei queAmren começasse o
conto,cadapalavraeramaisinacreditávelqueaúltima.
Dooutroladodamesa,erguioolhardeminhasroupaseviosolhosdeRhysjá
sobremim.
Inclineilevementeacabeçaeabaixeioescudoportemposuficienteparadizer
pelaligação:Aossonhosquesãoatendidos.
Umsegundodepois,umacaríciasensualpercorreumeusescudosmentais—
umpedidoeducado.Deixeiquecaíssem,deixeiqueeleentrasse,eavozdeRhys
tomou conta de minha cabeça.Às caçadoras que se lembram de ajudar os menos
favorecidos—eaosespectrosdaáguaquenadammuito,muitorápido.
AmrenlevouoLivroparaondequerquefossesuacasaemVelaris,deixandonós
cinco para comer. Enquanto Rhys contava sobre nossa visita à Corte Estival,
conseguitomarmeucafédamanhãantesqueaexaustãodeterficadoacordadaa
noite inteira, de ter destrancado aquelas portas e de ter chegadomuito perto de
morrerme atingisse.Quando acordei, a casa parecia vazia, o sol da tarde estava
mornoedourado,eodia,tãoincomumentequenteelindoqueleveiumlivropara
opequenojardimnosfundos.
Osol,por fim,mudou, sombreandoo jardimatéesfriardenovo.Aindanão
estavamuitodispostaadesistirdeseusraios;então,subiostrêsandaresatéopátio
dotelhadoparavê-losepôr.
Éclaro—éclaro—queRhysandjáestavasentadoemumadascadeirasde
ferropintadas de branco, comumdos braços jogadopara trás enquanto a outra
mãoseguravacasualmenteumcopocomalgumtipodebebida,eumdecantadorde
cristalcheiodamesmaestavanamesadiantedeRhys.
Asasasestavamabertasàscostas,atéopisodeazulejo,emepergunteiseRhys
estaria aproveitando o dia incomumente ameno para banhá-las ao sol; depois,
pigarreei.
—Euseiquevocêestáaí—disseRhys,semdarascostasàvistadorioSidra
edomarvermelho-douradoalém.
Fizumaexpressãoderaiva.
—Sequerficarsozinho,possoir.
Rhysapontoucomoqueixonadireçãodacadeiravaziaàmesadeferro.Não
eraumconviteentusiasmado,mas...eumesentei.
Haviaumacaixademadeiraaoladododecantador;etalvezeutivessepensado
queeraalgumingredienteparaoquequerqueRhysestivessebebendo,casonão
tivessenotadoaadagademadrepérolanatampa.
Senãotivessejuradoquesentiaocheirodomaredocaloredosoloqueeram
deTarquin.
—Oqueéisso?
Rhysesvaziouocopo,ergueuamão—odecantador flutuouatéeleemum
ventofantasma—eseserviudemaisumdedoantesdefalar.
—Debatiporumbomtempo, sabe—revelouRhys,encarandosuacidade.
—Sedeveria simplesmente pedir oLivro aTarquin.Mas achei que ele poderia
muitobemdizerquenão,eemseguidavendera informaçãoparaquemfizesseo
lancemais alto.Achei que pudesse dizer que sim, e ainda acabaria com pessoas
demais a par de nossos planos e com o potencial para que essa informação se
espalhasse. E, no fim das contas, precisava que o motivo de nossa missão
permanecesseemsegredopelomáximodetempopossível.—Rhysbebeudenovo
epassouumadasmãospeloscabelospreto-azulados.—Nãogosteideroubardele.
Não gostei de ferir os guardas deTarquin.Não gostei de sumir sem dizer uma
palavra,quando,comousemambição,elerealmentequeriaumaaliança.Talvez
até mesmo amizade. Nenhum outro Grão-Senhor sequer se deu o trabalho, ou
ousou.MasachoqueTarquinqueriasermeuamigo.
OlheideRhysandparaacaixaerepeti:
—Oqueéisso?
—Abra.
Cuidadosamente,abriatampa.
Dentro,aninhadosemumacamadeveludobranco,trêsrubisbrilharam,cada
umdotamanhodeumovodegalinha.Cadaumtãopuroedecortãointensaque
pareciamfeitosde...
—Rubisdesangue—explicouRhys.
Afasteiosdedosqueestavamseaproximandodaspedras.
—NaCorteEstival,quandouminsultograveécometido,elesmandamum
rubidesangueaoofensor.Umadeclaraçãooficialdequeháumpreçosobresua
cabeça,dequeagora sãocaçadose,embreve,estarãomortos.Acaixachegouà
CortedosPesadelosháumahora.
PelaMãe.
—Presumoqueumdessesrubistenhameunome.Eoseu.EodeAmren.
Atampasefechoucomumventosombrio.
—Cometiumerro—disseele.Abriaboca,masRhysandcontinuou:—Eu
deveria ter apagadoasmentesdosguardasedeixadoque continuassem.Emvez
disso,euosapaguei.Fazumtempodesdequeprecisei...medefenderfisicamente
daquele jeito, e estava tão concentrado no treinamento illyriano que esqueci o
outro arsenal aminha disposição.Eles provavelmente acordaram e foramdireto
paraTarquin.
—Mesmoassim,elelogoterianotadoqueolivrosumira.
—Poderíamosternegadoorouboeditoquehaviasidoumacoincidência.—
Rhysandesvaziouocopo.—Cometiumerro.
—Nãoéofimdomundosefizerissodevezemquando.
—Você acaba de saber que é agora inimiga pública número um da Corte
Estivalenãovêproblemanisso?
—Vejo.Masnãooculpo.
Rhysexpirou,encarouacidadeconformeocalordodiasucumbiaaofriodo
invernomaisumavez.Aquilonãoimportavaparaele.
—TalvezpossadevolveroLivrodepoisqueneutralizaroCaldeirão...pedir
desculpas.
Rhysriucomescárnio.
—Não.Amrenvaificarcomaquelelivroporquantotempoprecisar.
—Então, compenseTarquinde alguma forma.Obviamente,vocêqueriaser
amigodele tantoquantoTarquinqueriaserseu.Nãoestaria tãochateadosenão
fosseverdade.
—Nãoestouchateado.Estoucomraiva.
—Semântica.
Rhysmedeuummeiosorriso.
—Disputascomoaqueacabamosdeiniciarpodemdurarséculos,milênios.Se
esseéocustodeimpediressaguerra,deajudarAmren...euopago.
Elepagariacomtudoquetinha,percebi.Comqualqueresperançaquealgum
diateveparasi,comaprópriafelicidade.
—Osoutrossabem...sobreosrubisdesangue?
— Azriel foi quem os trouxe para mim. Estou debatendo como contar a
Amren.
—Porquê?
Escuridãopreencheuaqueleslindosolhos.
—PorquearespostadelaseriairatéAdriataeapagaracidadedomapa.
Estremeci.
—Exatamente—declarouRhys.
ContempleiVelariscomele,ouvindoossonsdodiaseencerrando...edanoite
iniciando.Adriatapareciarudimentaremcomparação.
—Entendo—falei,esfregandoasmãosfriasparaaquecê-las—porquefezo
queprecisou fazerparaprotegeresta cidade.—Imaginaradestruiçãoque tinha
sido infligida aAdriata ali, emVelaris, fezmeu sanguegelar.OsolhosdeRhys
desviaramparamim,cautelososeinexpressivos.Engoliemseco.—Eentendopor
quefariadetudoparamantê-laasalvoduranteostemposquevirão.
—Eseuargumentoé?
Umdia ruim;aqueleeraumdia ruimparaRhys,percebi.Nãomostrei raiva
diantedeseutomríspido.
— Enfrente essa guerra, Rhysand, e depois se preocupe comTarquin e os
rubisdesangue.AnuleoCaldeirão,impeçaoreidedestruiramuralhaeescravizar
oreinohumanodenovo;pensaremosnorestodepois.
—Parecequevocêplanejaficaraquiumtempo.—Umaperguntacasual,mas
carregada.
—Possoencontrarminhaprópriaresidênciaseéaissoqueestásereferindo.
Talvezuseaquelesaláriogenerosoparaconseguiralgoexuberanteparamim.
Vamoslá.Pisqueparamim.Brinquecomigo.Apenas...tireessaexpressãodorosto.
Rhysapenasdisse:
—Poupeseusalário.Seunomejáfoiacrescentadoàlistadaquelesaprovados
parausarmeucréditoresidencial.Compreoquequiser.Compreumacasainteira
sequiser.
Trinqueiosdentes,etalvezfossepânicooudesespero,masfalei,emtomdoce:
—ViumalojabonitinhanaoutramargemdoSidraoutrodia.Vendiaoque
pareciam ser muitas coisinhas de renda. Posso comprar isso com seu crédito
também,ousaidemeusfundospessoais?
Aquelesolhosvioletasevoltaramparamimdenovo.
—Nãoestouafim.
Nãohaviahumor, nenhumamalícia.Eupoderiame aquecer emuma lareira
dentrodacasa,mas...
Rhysandtinhaficado.Elutadopormim.
Semanaapóssemana,elelutoupormim,mesmoquandoeunãotinhareação,
mesmoquandomalconseguiafalar,meimportarseviviaoumorriaoucomiaou
passava fome. Não podia deixar Rhys com seus pensamentos sombrios, com a
própriaculpa.Rhysossuportarasozinhospormuitotempo.
Então,euoencareidevolta.
—Nuncasoubequeillyrianoserambêbadostãodeprimidos.
—Nãoestoubêbado,estoubebendo—argumentouele,exibindoumpouco
osdentes.
—Denovo,semântica.—Eumerecosteinacadeira,desejandoterlevadoum
casaco.—TalvezdevesseterdormidocomCresseidanofimdascontas,paraque
vocêsdoispudessemficartristesesolitáriosjuntos.
—Então, você pode ter tantos dias ruins quanto quiser,mas eu não tenho
direitoaalgumashoras?
—Ah,podelevarotempoquequiserparasedeprimir.Euoconvidariaparair
comigocompraraquelasrendinhasíntimas,mas...fiquesentadoaíparasemprese
precisar.
Rhysnãorespondeu.
Continuei:
—TalvezeumandealgumasaTarquin,comumaofertadeusá-lasparaelese
nosperdoar.Talvezpegueessesrubisdesanguedevolta.
AbocadeRhyslevemente,muitolevementeserepuxounoscantos.
—Tarquinveriaissocomoumaprovocação.
—Eu dei a ele alguns sorrisos, e eleme entregou uma herança de família.
Aposto que me daria as chaves do território se eu aparecesse naquelas roupas
íntimas.
—Alguémaquiseachamuito.
—Porquenãodeveria?Vocêpareceterdificuldadesparanãomeolhardiae
noite.
Aliestava:umgrãodeverdadeeumapergunta.
—Devonegar—começouRhys,masalgoseiluminounaquelesolhos—que
aachoatraente?
—Vocêjamaisdisseisso.
—Jádissemuitasvezes,ecommuitafrequência,oquantoaachoatraente.
Deideombros,mesmoaopensaremtodasaquelasvezes,quandoasignorara
comoelogiosprovocadores,nadamais.
—Bem,talvezdevessefazerumtrabalhomelhor.
O brilho nos olhos de Rhysand se tornou algo predatório. Adrenalina
percorreumeucorpoquandoeleapoiouosbraçosfortesnamesaeronronou:
—Issoéumdesafio,Feyre?
Encarei aquele olhar predatório... o olhar do macho mais poderoso de
Prythian.
—Será?
AspupilasdeRhyssedilataram.Atristezasilenciosasumira,comaculpaque
o isolava. Apenas aquela concentração letal... em mim. Em minha boca. No
movimento da minha garganta enquanto eu tentava manter a respiração
equilibrada.Elefalou,devagar,emvozbaixa:
— Por que não vamos até aquela loja agora mesmo, Feyre, para que você
possa experimentar aquelas coisinhas de renda, para que eu possa ajudá-la a
escolherumaparamandaraTarquin.
Meus dedos dos pés se contraíram dentro dos chinelos forrados de lã.
Estávamosprestesacruzarjuntosumafronteiraperigosa.Oventonoturnobeijado
pelofriofarfalhounossoscabelos.
Mas o olhar deRhys se voltou para o céu—e, um segundo depois,Azriel
disparoudasnuvenscomoumalançadeescuridão.
Eu não tinha certeza se deveriame sentir aliviada,mas saí antes queAzriel
pudessepousar,dandoaoGrão-Senhoreaomestre-espiãoalgumaprivacidade.
Assimqueentreinaescuridãodaescada,ocalorseesvaiudedentrodemim,
deixandoumasensaçãofriaenauseanteemmeuestômago.
Umacoisaeraflertar,eoutraera...aquilo.
EuamaraTamlin.Amaratantoquenãomeimporteidemedestruirporisso—
porele.Então,tudoaconteceu,eagoraeuestavaali,e...poderiamuitobemterido
àquelalojinhabonitacomRhysand.
Quaseconseguiaveroqueaconteceria:
Asmoçasdalojateriamsidoeducadas—umpouconervosas—enosdariam
privacidadeenquantoRhyssesentavanosofánosfundosdalojaeeuiriaparatrás
dacabinefechadapelacortinaafimdeexperimentaroconjuntoderendavermelha
quejáviratrêsvezes.E,quandoeusaíssedacabine,reunindomaiscoragemque
sentia,Rhysteriameolhadodecimaabaixo.Duasvezes.
E teria continuadome olhando enquanto informava asmoças da loja que o
estabelecimentoestava fechadoequeelasdeveriamvoltarnodia seguinte,enós
deixaríamosacontanobalcão.
Eu teria ficado ali, nua, exceto pelos retalhos de renda vermelha, enquanto
ouvíamososruídosdiscretoserápidosdasvendedorasfechandoalojaepartindo.
E Rhysand teria me olhado o tempo inteiro: para meus seios, visíveis pela
renda;paraminhabarrigareta,agorafinalmenteparecendomenosfamintaedura.
Paraacurvademeusquadrisecoxas—paraopontoentreelas.Então,Rhysand
meencarariadenovoeflexionariaumdedocomumúnicomurmúrio:
—Venhacá.
Eeuteriacaminhadoatéele,cientedecadapasso,conforme,porfim,parasse
diantedeondeeleestava.EntreaspernasdeRhys.
Asmãosdeledeslizariamporminhacintura,oscalosarranhariamminhapele.
Então,Rhysmepuxariamaisparapertoantesdeseinclinarpararoçaroslábiosem
meuumbigo,alíngua...
Xingueiquandomechoqueicontraapilastranaplataformadaescada.
Episquei;pisqueiquandoomundoretornouepercebi...
Olheicomraivaparaoolho tatuadoemminhamãoesibilei,coma línguae
comaquelavozsilenciosadentrodenossaligação:
—Canalha.
Nofundodamente,umavozmasculinasensualriuumarisadacomoameia-
noite.
Meu rosto queimava, eu xingava Rhys pela visão que ele passara pormeus
escudosmentais,eosreforceiquandoentreinoquarto.Etomeiumbanhomuito,
muitofrio.
ComicomMornaquelanoite,aoladodofogocrepitantenasaladejantardosolar,
Rhys e os demais estavam em algum outro lugar, e, quando Mor finalmente
perguntou por que eu fazia cara feia toda vez que o nome de Rhysand era
mencionado,conteiaelasobreavisãoqueRhysmemandara.Morriuatésoltar
vinhopelonarize,quandofizcarafeiaparaela,medissequeeudeveriamesentir
orgulhosa:quandoRhysestavaprontoparaficardeprimido,apenasummilagreo
tiravadaquilo.
Tenteiignoraralevesensaçãodetriunfo—mesmoquandomedeitei.
Estavaapenascomeçandoacairnosono,bemdepoisdas2horasdamanhã,
pois conversara comMor no sofá da sala durante horas e horas sobre todos os
lugaresótimoseterríveisqueelavira,quandoacasasoltouumgemido.
Comoseaprópriamadeiraestivessesentodobrada,acasacomeçouagemere
aestremecer;aslâmpadasdevidrocoloridoemmeuquartotilintaram.
Eu me sentei, sobressaltada, virando-me para a janela aberta. Céus limpos,
nada...
Nadaalémdeescuridãoentrandoemmeuquartopelaportadocorredor.
Euconheciaaquelaescuridão.Umasementeviviaemmim.
Elaescorriaparadentropelasrachadurasnaporta,comoumaenchente.Acasa
estremeceudenovo.
Disparei da cama, escancarei a porta, e a escuridão passou pormim em um
ventofantasma,cheiadeestrelasebaterdeasase...dor.
Tantador,edesespero,eculpa,emedo.
Dispareiparaocorredor,completamenteceganaescuridãoimpenetrável.Mas
haviaum fioentrenós, e euo segui—atéonde sabiaqueoquartodele ficava.
Procureiamaçaneta,então...
Mais noite e estrelas e vento saíram,meus cabelos voando aomeu redor, e
erguiumbraçoparaprotegerorostoquandoentreinoquarto.
—Rhysand.
Nenhumaresposta.Maseuconseguia senti-loali, sentir aquela linhadavida
entrenós.
Seguialinhaatéminhascanelasbateremnoquesópodiaseracamadele.
—Rhysand—chamei,porcimadoventoedaescuridão.Acasaestremeceu,
as tábuas do piso estalaram sob meus pés. Bati na cama, sentindo lençóis e
cobertoreseabaixo,então...
Então, um corpo masculino duro, tenso. Mas a cama era enorme, e não
conseguiaencontrá-lo.
—Rhysand!
Portodaavolta,aescuridãogirava,oinícioeofimdomundo.
Subinacama,atrapalhada,disparandoatéRhys,sentindooqueeraseubraço,
depois,abarriga,então,osombros.ApeledeRhysestavacongelandoquandolhe
segureiosombrosegriteiseunome.
Nenhumaresposta,edeslizeiamãoparacima,paraopescoçodeRhys,atéa
boca—paramecertificardequeeleestavarespirando,dequeaquelenãoerao
poderdeRhysandfluindoparalongedele...
Hálito gélido atingiu a palma de minha mão. E, me preparando, fiquei de
joelhos,mirandoàscegas,eoestapeei.
Minhapalmadoeu...masRhysnãosemoveu.Euoacerteidenovo,puxando
aquelelaçoentrenós,gritandoonomedelepelaligação,comosefosseumtúnel,
esmurrando aquela parede de ébano e adamantino dentro da mente de Rhys,
rugindoparaela.
Umafendanaescuridão.
Então, as mãos de Rhys estavam em mim, me virando, me prendendo ao
colchãocomhabilidade,amãocomgarrasemmeupescoço.
Fiqueiimóvel.
—Rhysand.—Respirei.Rhys,chameipelaligação,colocandoamãocontra
aqueleescudointerno.
Aescuridãoestremeceu.
Projeteimeupoder;trevascontratrevas,acalmandosuaescuridão,asbeiradas
ásperas, desejandoque se acalmasse, que se suavizasse.Minha escuridão cantava
uma canção de ninar para a dele, uma canção que minha babá cantara quando
minhamãemeatiravaemseusbraçosafimdevoltarparaasfestas.
— Foi um sonho— esclareci. A mão de Rhys estava tão fria.— Foi um
sonho.
De novo, a escuridão parou. Lancei meus véus de noite para que a
acariciassem,percorrendomãossalpicadasdeestrelascontraela.
Eporumsegundo,aescuridãocomonanquimsedissipouobastanteparaque
eu visse o rosto de Rhys acima de mim: lívido, lábios pálidos, olhos violeta
arregalados,avaliando.
— Feyre — avisei. — Sou Feyre. — A respiração de Rhys estava
entrecortada,irregular.Segureiopulsoquepegavaminhagarganta,pegava,mas
semmachucar.—Vocêestavasonhando.
Desejei que aquela escuridão dentro de mim ecoasse isso, que cantasse até
colocaraquelesmedos selvagensparadormir,queacariciassemaquelaparedede
ébanodentrodamentedeRhysand,comcuidado,suavidade...
Então, comoneve sacudidadeumaárvore, a escuridãodeRhys sedissipou,
levandoaminhaconsigo.
Eoluarinvadiuoquarto—juntodossonsdacidade.
Oquartodeleeraparecidocomomeu,acama,tãograndequedeviatersido
construídaparaacomodarasas,mastudoeradecoradocombomgostoeconforto.
ERhysand estava nu acima demim... completamente nu.Não ousei olharmais
parabaixodoqueastatuagensemseupeito.
—Feyre—disseRhys,avozrouca.Comoseestivessegritando.
— Sim — falei. Ele observou meu rosto, a mão com garras em minha
garganta.Emesoltouimediatamente.
Fiqueideitadaali,encarandoopontoemqueRhysagoraestavaajoelhadona
cama,esfregandoorostocomasmãos.Meusolhostraidoresdefatoousaramolhar
maisparabaixoqueopeitodele,masminhaatençãoparounastatuagensgêmeas
nosjoelhosdeRhys:umamontanhaaltaencimadaportrêsestrelas,umaemcada
joelho.Linda...masdealgumaformabrutal.
— Você estava tendo um pesadelo — comentei, me sentando. Como se
algumarepresativesseestouradodentrodemim,olheiparaamão,edesejeiqueela
sedissipasseemsobras.Esedissipou.
Meiopensamentoespalhouaescuridãodenovo.
AsmãosdeRhys,noentanto,aindaterminavamemgarraslongasenegras—
eos pés... também terminavam emgarras.As asas estavam expostas, apontando
para baixo atrás dele. E me perguntei o quanto ele teria chegado perto de se
transformarcompletamentenaquelabestaquecertavezmedissequeodiava.
Rhysandabaixouasmãos,easgarrassedissiparamemdedos.
—Desculpe.
—Porissoficaaqui,enãonaCasa.Nãoquerqueosoutrosvejamisso.
—Eucostumomanterissocontidoemmeuquarto.Desculpeseaacordou.
Fecheiasmãosempunhonocolo,paraevitartocá-lo.
—Comquefrequênciaissoacontece?
OsolhosvioletadeRhysencontraramosmeus,eeusoubearespostaantesde
eledizer:
—Amesmacomqueacontececomvocê.
Engoliemseco.
—Comquesonhouestanoite?
Rhys sacudiu a cabeça, olhando pela janela... para onde neve cobrira os
telhadospróximos.
—HálembrançasdeSobaMontanha,Feyre,queémelhornãocompartilhar.
Mesmocomvocê.
Rhysandcompartilharacoisasterríveisosuficientecomigoparaquefossem...
pioresquepesadelos,então.Mascoloqueiamãoemseucotovelo,mesmocomo
corponu.
—Quandoquiserfalar,meavise.Nãocontareiaosdemais.
Fiz menção de deslizar para fora da cama, mas Rhys pegou minha mão,
segurando-acontraobraço.
—Obrigado.
Observei amão, o rosto sofrido. Tanta dor permanecia ali... e exaustão.O
rostoqueRhysjamaisdeixariaquealguémvisse.
Fiqueidejoelhosebeijeisuabochecha;apeledeRhysestavamornaemacia
sobminhaboca.Aquilotinhaacabadoantesdecomeçar,mas...masquantasnoites
euquisquealguémfizesseomesmopormim?
OsolhosdeRhysandpareciamumpoucoarregaladosquandomeafastei,eele
nãome impediuquando saí da camadevagar.Eu estavaquase cruzando a porta
quandomevolteidenovoparaele.
Eleaindaestavaajoelhado,asasasabaixadassobreoslençóisbrancos,acabeça
curvada, as tatuagens contrastantes com a pele dourada.Umpríncipe sombrio e
caído.
Apinturasurgiuemminhamente.
Surgiu...eficouali,reluzindo,antesdesedissipar.
Maselapermaneceu,brilhandodeleve,naqueleburacodentrodemeupeito.
Oburacoque,devagar,começavaasecurar.
–Achaqueconseguedecodificardepoisqueconseguirmosaoutrametade?—
pergunteiparaAmren,depéàportadeseuapartamentonatardeseguinte.
Amreneradonadoúltimoandardeumprédiodetrêsandaresemqueoteto
inclinadoterminava,dosdois lados,emumaimensa janela.Umadavaparaorio
Sidra;aoutra,paraumapraçaarborizada.Oapartamentointeiroconsistiaemum
cômodo gigante: os pisos de carvalho desbotado estavam cobertos em carpetes
igualmente desgastados, e a mobília, espalhada pela casa como se Amren
constantementeamovesseporqualquerquefosseomotivo.
Apenasacama,umamonstruosidadedequatromastroscomdosseldeorganza,
pareciaposicionadaemumlocalpermanentecontraaparede.Nãohaviacozinha
—apenasumalongamesaeumalareiraquequeimavaosuficienteparadeixaro
cômodoquasecomoumaestufa.Anevequecaírananoiteanteriorsumiranosol
seco de inverno antes do meio da manhã, e a temperatura estava gelada, mas
suficientementeamenaparaqueacaminhadaatéalitivessesidorevigorante.
Sentadanochãodiantedeumamesabaixacobertadepapéis,Amrenergueuo
rostodometal reluzente do livro.O rosto pareciamais pálidoqueonormal, os
lábios,lívidos.
—Fazmuitotempodesdequeuseiessalíngua,querodominá-ladenovoantes
depegaroLivro.Esperoqueentãoaquelasrainhasarrogantesjátenhamnosdado
apartedelas.
—Equantotempolevaráparaaprenderalínguadenovo?
—SuaEscuridãonãoainteirou?—AmrenretornouaoLivro.
Caminheiatéamesademadeiraepouseiopacotequelevarasobreasuperfície
arranhada. Alguns potes de sangue quente, direto do açougueiro. Quase tinha
corridoatéaliparaevitarqueesfriasse.
—Não—respondi,tirandoospotesdedentro.—Nãointeirou.—Rhysjá
tinhapartidonahoradocafédamanhã,emboraumdeseusbilhetesestivessena
mesadecabeceira.
Obrigado...porontemànoite,eratudoquedizia.Nenhumacanetaparaescrever
umaresposta.
Masencontreiumamesmoassimeescrevidevolta:Oqueasestrelastatuadase
amontanhaemseusjoelhossignificam?
O papel sumiu um segundo depois. Quando não voltou, eu me vesti e fui
tomarcafé.Tinhacomidometadedosovosedatorradaquandoopapelsurgiuao
ladodemeuprato,perfeitamentedobrado.
Quenãomecurvareidiantedeninguémenadaalémdeminhacoroa.
Dessavez,umacaneta surgiu.Apenasescreviemresposta:Tão dramático. E
pormeiodenossaligação,dooutroladodemeusescudosmentais,podiaterjurado
queouvisuarisada.
Sorrindoaome lembrar, abri a tampadoprimeiropote, eoodorde sangue
preencheuminhasnarinas.Amrenfungoue,depois,virouacabeçaparaospotes
devidro.
—Você...ah,eugostodevocê.
—Écordeiro,sefazalgumadiferença.Querqueeuesquente?
AmrenseafastoudoLivro,eapenasobserveienquantoelaseguravaopotenas
duasmãosebebiacomosefosseágua.
Bem, pelomenos eu não precisariame preocupar em encontrar uma panela
naquelelugar.
Amrenbebeumetadedeuma sóvez.Umagotade sangue lhe escorreupelo
queixo,eeladeixouquepingassenacamisacinza—amarrotadadeumaformaque
eu jamaisvira.Depoisde esfregarum lábionooutro,Amrencolocouopotena
mesacomumsuspirointenso.Sanguereluziaemseusdentes.
—Obrigada.
—Temumpreferido?
Amren ergueu o queixo ensanguentado e, então, limpou-o com um
guardanapoquandopercebeuquetinhafeitosujeira.
—Cordeirosemprefoimeupreferido.Pormaisquesejahorrível.
—Não...humano?
Amrenfezumacareta.
—Aguadoegeralmentetemgostodaúltimacoisaqueelescomeram.Ecomo
amaioriadoshumanostêmumpaladarsofrível,équestãodesorte.Mascordeiro...
Tambémgostodebode.Osangueémaispuro.Maisintenso.Melembrade...outra
época.Elugar.
— Interessante — comentei, e fui sincera. Imaginei de que mundo,
exatamente,elafalava.
Amrenbebeuo restante, a cor já ruborizava seu rosto, e colocouo pote em
umapequenapiaaolongodaparede.
—Acheiquemorariaemalgumlugarmais...enfeitado—admiti.
De fato, todas as roupas finas de Amren estavam penduradas em araras
próximasdacama,easjoias,espalhadasemalgunsarmáriosemesas.Haviajoiaso
suficienteparapagaroresgatedeumimperador.
Amrengesticuloucomosombros,sentando-semaisumavezaoladodoLivro.
—Tentei issoumavez.Fiquei entediada.Enãogostavade ter criados.Era
muitobarulhento.Jámoreiempaláciosechalésenasmontanhasenapraia,mas,
poralgummotivo,gostomaisdesteapartamentoaoladodorio.—Elafranziua
testa para as claraboias que ocupavam o teto.—Também significa que jamais
precisodarfestasoureceberconvidados.Duascoisasqueabomino.
Euri.
—Entãovoumanterminhavisitabreve.
Amrensoltouumarisadadediversãoecruzouaspernassobocorpo.
—Porquevocêestáaqui?
—Cassiandissequevocêestavaentocadaaquidiaenoitedesdequevoltamos,
eacheiquetalvezestivessecomfome.E...eunãotinhamaisnadaparafazer.
—Cassianéumenxerido.
—Eleseimportacomvocê.Comtodosvocês.Sãoaúnicafamíliaquetem.—
Eramtodosaúnicafamíliaquecadaumtinha.
— Eca!— exclamou Amren, avaliando um pedaço de papel. Mas pareceu
agradá-lamesmoassim.Umlampejodecorchamouminhaatençãonochãoperto
dela.
Amrenusavaorubidesanguecomopesodepapel.
—RhysconvenceuvocêanãodestruirAdriataporcausadorubidesangue?
Os olhos de Amren se voltaram para cima, cheios de tempestades e mares
violentos.
—Elenãofeznadadisso.AquilomeconvenceuanãodestruirAdriata.—Ela
apontouparaacômoda.
Dispostosobreotopo,comoumacobra,estavaumcolarfamiliardediamantes
erubis.Euoviraantes...notesourodeTarquin.
—Como...oquê?
Amrensorriuconsigomesma.
—Varianomandouparamim.ParasuavizaradeclaraçãodeTarquindenossa
rixadesangue.
Euacharaqueosrubissópodiamserusadosporumafêmeapoderosa—enão
conseguiapensaremumafêmeamaispoderosaqueaqueladiantedemim.
—VocêeVarian...?
—Tentador,masnão.Ocanalhanãoconseguedecidirsemeodeiaouseme
quer.
—Porquenãopodemserosdois?
Umarisadabaixa.
—Defato.
Então,começaramsemanasdeespera.EsperaparaqueAmrenreaprendesseuma
língua falada por mais ninguém em nosso mundo. Espera até que as rainhas
respondessemnossopedidoporumencontro.
Azrielcontinuoucomatentativadeseinfiltrarnascortesdelas—aindasem
sucesso. Ouvi a respeito, principalmente de Mor, que sempre sabia quando ele
voltariaparaaCasadoVento,esemprefaziaquestãodeestarláassimqueAzriel
tocasseochão.
Elamecontavapoucodosdetalhes;aindamenossobrecomoa frustraçãode
não poder conseguir colocar os espiões dele ou a si mesmo naquelas cortes o
atormentava. Os padrões que Azriel se impunha, confidenciou Mor a mim,
beiravamosadismo.
Conseguir que Azriel tirasse qualquer tempo para si que não envolvesse
trabalho ou treinamento era quase impossível. E, quando observei que ele ia ao
Rita’scomMorsemprequeestapedia,Morsimplesmentemeinformouquelevara
quatroséculosparaqueelaconseguissequeelefosse.Euàsvezesmeperguntavao
queacontecianaCasadoVentoenquantoRhyseeuestávamosnacasadacidade.
Eu só visitavamesmo pelasmanhãs, quando ocupava a primeirametade de
meudiatreinandocomCassian—oqual,comMor,decidiraindicarquecomidas
eudeveriacomerpararecuperaropesoqueperdera,parametornarforteeágilde
novo. E conforme os dias se passavam, passei de defesa pessoal a aprender a
empunharumaarmaillyriana,queera tãoafiadaquequasearranqueiobraçode
Cassian.
Masestavaaprendendoausá-la...devagar.Dolorosamente.Tiveraumafolga
dotreinamentocrueldeCassian:apenasumamanhã,quandoelevoouatéoreino
humanoparaver seminhas irmãshaviamrecebidonotíciadas rainhaseentregar
outracartadeRhysparaserenviadaaelas.
Presumi que ver Nestha correra tão mal quanto se podia imaginar, porque
minhaliçãonamanhãseguintefoimaislongaemaisdifícilquenosdiasanteriores.
Pergunteioque,exatamente,Nesthadisseraaeleparairritá-lotãofacilmente.Mas
Cassianapenasgrunhiuemedisseparacuidardeminhavida,equeminhafamília
eracheiadefêmeasmandonasesabe-tudo.
PartedemimseperguntouseCassianeVariantalvezprecisassemtrocarumas
ideias.
Amaioriadastardes...seRhysestavaporperto,eutreinavacomele.Mentea
mente, poder a poder. Trabalhamos devagar os dons que eu tinha recebido—
chama e água, gelo e escuridão. Havia outros, sabíamos, que não haviam sido
descobertos, não foram desenterrados. Atravessar ainda era impossível. Não
conseguirafazê-lodesdeaquelamanhãdenevecomoAttor.
Levaria tempo,me diziaRhys todos os dias, quando eu inevitavelmenteme
irritavacomele...tempoparaaprenderedominarcadadom.
Ele enriquecia cada lição com informações sobre os Grão-Senhores cujos
poderes eu roubara: sobre Beron, o cruel e vaidoso Grão-Senhor da Corte
Outonal; sobre Kallias, o silencioso e esperto Grão-Senhor da Invernal; sobre
Helion Quebrador de Feitiços, o Grão-Senhor da Diurna, cujas mil bibliotecas
tinham sido pessoalmente saqueadas por Amarantha, e cujo povo inteligente
possuíaexcelentedomíniodosfeitiçosearquivaraoconhecimentodePrythian.
Saberde quem viera meu poder, dissera Rhys, era tão importante quanto
aprender a natureza do próprio poder. Jamais falamos de metamorfose— das
garrasqueeuàsvezesconjurava.Osfiosqueacompanhavamaanálisedessedom
estavamemaranhadosdemais,ahistórianãoditaeraviolentaesangrentademais.
Então,aprendiapolíticaeashistóriasdasoutrascortes,eaprendiospoderes
deseusmestres,atéqueminhashorasacordadaedormindofossempassadascom
chama queimando minha boca e gelo estalando entre meus dedos. E todas as
noites,exaustadepoisdeumdia treinandocorpoepoderes,eucaíaemumsono
pesado,entrelaçadocomescuridãoperfumadaajasmim.
Atémesmomeuspesadelospareciamcansadosdemaisparameassombrar.
Nos dias em que Rhys era chamado para outro lugar, para lidar com os
assuntosinternosdaprópriacorte,paralembrá-losdequemosgovernavaoupara
exercerjulgamento,paraseprepararparanossainevitávelvisitaaHybern,eulia,
ou me sentava com Amren enquanto ela trabalhava no Livro, ou passeava por
VelariscomMor.Essaúltimaatividadetalvez fosseaminhapreferida,ea fêmea
eramesmoexcelente emencontrar formasdegastar dinheiro.Olhei apenasuma
vezparaacontaqueRhysabriraparamim—apenasumavez,epercebiqueele
mepagavaabsurdamente,absurdamentemuito.
TenteinãoficardesapontadanastardesemqueRhyspartia,tenteinãoadmitir
quecomeçavaaansiarporaquilo:dominarmeuspoderese... implicarcomRhys.
Mas, mesmo quando ele estava fora, falava comigo, nos bilhetes que tinham se
tornadonossoestranhosegredo.
Umdia,RhysescreveuparamimdeCesere,umacidadezinhaanordesteonde
seencontrariacomalgumassacerdotisassobreviventesparadiscutirreconstruirseu
templo,queforadestruídopelasforçasdeHybern.Nenhumadassacerdotisasera
comoIanthe,prometeraRhysand.
Mecontesobreapintura.
Escrevidevoltadacadeiranojardim,afontefinalmentevoltaraajorrarágua
comoretornodeclimamaisameno:Nãotenhomuitoadizer.
Contemesmoassim.
Eupreciseideumtempoparaelaborararesposta,parapensarnaquelepequeno
buracoemmimeoqueumdiasignificaraequaleraasensação.Mas,então,falei:
Houveumaépocaemquetudoqueeuqueriaeradinheiroparaalimentarminhafamília
eparapoderpassarosdiaspintando.Eratudoqueeuqueria.Sempre.
Umapausa.Então,eleescreveu:Eagora?
Agora,respondi,nãoseioquequero.Nãoconsigomaispintar.
Porquê?
Porqueessapartedemimestávazia.Emboratalveznaquelanoiteemqueovi
ajoelhadonacama...talvezissotivessemudadoumpouco.Eutinhacontempladoa
fraseseguinteedepoisescrevi:VocêsemprequisserGrão-Senhor?
Umapausa longadenovo.Sim.Enão.Via comomeu pai governava, e sabia
desdecedoquenãoqueriasercomoele.Portanto,decidiserumtipodiferentedeGrão-
Senhor; queria proteger meu povo, mudar as percepções dos illyrianos e eliminar a
corrupçãoqueassolavaaterra.
Por ummomento, não consegui deixar de comparar:Tamlin não queria ser
Grão-Senhor.Eleseressentiaporisso;etalvez...talvezessafosseempartearazão
paraa cortedele ter se tornadooqueera.MasRhysand, comumavisão, coma
vontadeeodesejoeapaixãoparafazeraquilo...Eleconstruíraalgo.
Edepoisforaàlutaparadefenderisso.
EraoqueRhystinhavistoemTarquin,eporqueaquelesrubisdesangueo
atingiramcomtantaforça.OutroGrão-Senhorcomvisão...umavisãoradicalpelo
futurodePrythian.
Então, escrevi de volta:Pelo menos você compensa os galanteios sem-vergonha
sendoumGrão-Senhoretanto.
Rhysandvoltaranaquelanoite,sorrindocomoumgato,eapenasdissera,como
cumprimento:
—UmGrão-Senhoretanto?
Eujogueioequivalenteaumbalded’águaemsuacara.
Rhysnão se incomodou em se proteger.E emvezdisso, sacudiuos cabelos
molhadoscomoumcachorro,memolhandoatéqueeugritasseefugisse.Arisada
deRhysmeperseguiuescadaacima.
Oinvernoaospoucosseesvaíaquandoacordeicertamanhãeencontreioutra
cartadeRhysaoladodacama.Semcaneta.
Nenhum treinamento com seu segundo illyriano preferido hoje. As rainhas
finalmenteousaramresponder.Irãoàpropriedadedesuafamíliaamanhã.
Não tive tempode ficar nervosa.Partimosdepois do jantar, voandopara as
terrashumanas,quedescongelavam,sobomantodaescuridão;oventofriogritava
conformeRhysmeseguravacomforça.
Minhasirmãsestavamprontasnamanhãseguinte,ambasvestindoasroupasmais
finasparareceberqualquerrainha,feéricaoumortal.
Supusqueeutambémestava.
Usava umvestido branco de chiffon e seda, com o corte típico da moda da
CorteNoturnapararevelarapele;osdestaquesdouradosnovestidorefletiamaluz
domeiodamanhã,queentravapelasjanelasdasaladeestar.Meupai,aindabem,
permanecerianocontinentepormaisdoismeses—devidoaqualquerquefosseo
comérciovitalquebuscavaentrereinos.
Perto da lareira, eu me coloquei ao lado de Rhys, vestido com o preto de
sempre,asasasocultas,orosto,umamáscaracalma.Apenasacoroaescuranoalto
dacabeça—ometalmoldadocomopenasdecorvos—eradiferente.Aquelaeraa
coroaqueerairmãdemeudiademadourado.
CassianeAzrielmonitoravamtudodomuromaisafastado,semarmasàvista.
MasosSifõesbrilhavam,emepergunteiquetipodearmaexatamentepodiam
forjarcomelessenecessário.Poisforaumadasexigênciasdasrainhasparaaquela
reunião: nenhuma arma. Não importava que os próprios guerreiros illyrianos
fossemarmasosuficiente.
Mor, com um vestido vermelho semelhante ao meu, franziu a testa para o
relógiosobrealareirabranca,batendocomopénotapeteornamentado.Apesarde
meusdesejos para que ela conhecesseminhas irmãs,Nestha eElain estavam tão
tensasepálidasquandochegamosqueeuimediatamentedecidiquenãoeraahora
detalencontro.
Um dia— um dia eu reuniria todas. Se não morrêssemos naquela guerra
primeiro.Seaquelasrainhasescolhessemnosajudar.
Orelógiobateu11horas.
Haviaduasoutrasdemandas.
Areuniãodeveriacomeçaràs11horas.Nãoantes.Nãodepois.
Equeriamalocalizaçãogeográficaexatadacasa.Adisposiçãoeotamanhode
cadaquarto.Ondeestavaamobília.Ondeestavamasjanelaseasportas.Emque
cômodo,provavelmente,nósasreceberíamos.
Azrielforneceratudo,comaajudademinhasirmãs.
Asbatidasdorelógiosobrealareiraeramoúnicoruído.
Epercebi,quandoeleterminouaúltimabadalada,queaterceiraexigêncianão
foraapenasporsegurança.
Não, quando um vento soprou pela sala e cinco figuras surgiram,
acompanhadaspordois guardas cada, percebi que era porque as rainhas podiam
atravessar.
As rainhasmortais eramumamisturade idade, cor, altura e temperamento.A
maisvelha,usandoumvestidodelãbordadodomaisprofundotomdeazul,tinha
pele marrom, os olhos inteligentes e frios, e não andava curvada, apesar das
pesadasrugasquelhesulcavamorosto.
Asduasquepareciamdemeia-idadeeramopostos:umanegra,aoutraclara;
umaderostodoce,outraesculpidaemgranito;umasorrindo,eaoutrafranzindoa
testa.Atémesmousavamvestidosempretoebranco—epareciamsemovercomo
em pergunta e resposta uma à outra. Imaginei como seriam seus reinos, que
relaçõesteriam.Seosanéisdepratacombinandoquecadaumausavaasuniamde
outrasformas.
Easduasrainhasmaisjovens...Umatalvezfossealgunsanosmaisvelhaque
eu, de cabelos e olhos pretos, uma esperteza cautelosa escorrendo de cada poro
conformeelanosavaliava.
Eaúltimarainha,aquelaque falouprimeiro,eraamaisbela—aúnicabela
entre as rainhas. Aquelas eram mulheres que, apesar da elegância, não se
importavam se eram jovens ou velhas, gordas oumagras, baixas ou altas. Essas
coisaseramsecundárias;essascoisaseramcomocartasnamanga.
Masaúltima,essalindarainha,talveznãotivessemaisque30anos...
Oscabelos selvagemente cresposeram tãodouradosquantoosdeMor, eos
olhos eramdomais puro âmbar.Atémesmo a pelemarrome coberta de sardas
pareciasalpicadadeouro.Ocorpoerafirmenoslocaisemqueelaprovavelmente
descobrira que os homens consideravam uma distração, suave onde mostrava
graciosidade.Umleãoempelehumana.
—Saudações—falouRhys,permanecendo imóvel conformeosguardasde
rostoimpassíveldasrainhasnosobservavam,observavamocômodo.Enquantoas
rainhasnosavaliavam.
Asaladeestareraenormeobastanteparaqueumacenodecabeçadarainha
douradalevasseosguardasaseafastarparaseposicionaremàsparedes,àsportas.
Minhasirmãs,silenciosasdiantedajaneladasacada,semoveramparaoladopara
abrirespaço.
Rhysdeuumpassoadiante.Todasasrainhasinspiraram,comoseestivessem
sepreparando.Osguardas,casualmente,talveztolamente,levaramumadasmãos
ao cabo das espadas longas— tão grandes e ruidosas em comparação às armas
illyrianas.Como se tivessem chance... contra qualquer um de nós. Inclusive eu,
percebi,umpoucosurpresa.
Mas eramCassian eAzriel que fariamopapel demerosguardas aquele dia;
distrações.
Mas Rhys fez uma reverência com a cabeça, levemente, e disse às rainhas
reunidas:
— Somos gratos por terem aceitado nosso convite. — Ele ergueu uma
sobrancelha.—Ondeestáasexta?
Arainhaidosa,comovestidoazulpesadoeexuberante,apenasrespondeu:
—Elanãoestábemenãopôdefazeraviagem.—Arainhameobservou.—
Vocêéaemissária.
Minhascostasenrijeceram.Sobseuescrutínio,minhacoroapareciaumapiada,
umaquinquilharia,mas...
—Sim—respondi.—SouFeyre.
UmolharsúbitoparaRhysand.
—EvocêéoGrão-Senhorquenosescreveuumacartatãointeressantedepois
queasprimeirasforamignoradas.
Nãoouseiolharparaele.Rhystinhamandadomuitascartasporminhasirmãs
àquelaaltura.
Você não perguntou o que havia dentro delas, disse ele, com amente ligada a
minha, gargalhadas dançando pelo laço. Eu tinha deixado os escudos mentais
abaixados...sóparaocasodeprecisarmosnoscomunicarsilenciosamente.
—Eusou—disseRhysand,comumínfimoaceno.—Eestaéminhaprima,
Morrigan.
Mor caminhou até nós, o vestido carmesim fluía comumvento fantasma.A
rainhadouradaaolhoudecimaabaixo,acadapassodeMor,cada fôlego.Uma
ameaça:porbelezaepoderedomínio.Morfezumareverênciaaomeulado.
—Fazmuitotempodesdequeconheçoumarainhamortal.
Arainhavestidaempretolevouamãobrancacomoaluaàalturadoventre.
—Morrigan...aMorrigandaGuerra.
Todospararam,comosesentissemsurpresa.Eumpoucodeespantoemedo.
Morfezoutrareverência.
—Porfavor...sentem-se.—Elaindicouascadeirasquetínhamosdispostoa
uma distância confortável umas das outras, todas bem separadas para que os
guardaspudessemsecolocaraoladodasrainhas,casoachassemnecessário.
Quase ao mesmo tempo, as rainhas se sentaram. Os guardas, no entanto,
permaneceramnospostosemvoltadasala.
Arainhadecabelosdouradosabaixouavolumosasaiaedisse:
—Presumoqueestassejamnossasanfitriãs.—Umolharabruptoparaminhas
irmãs.
Nestha tinha enrijecido as costas, mas Elain fez uma reverência desajeitada,
corandorosa-choque.
—Minhasirmãs—esclareci.
Olhosâmbardeslizaramatémim.Atéminhacoroa.Depois,paraadeRhys.
—Umaemissáriausaumacoroadeouro.IssoétradiçãoemPrythian?
—Não—respondeuRhys,emtomsuave.—Maselaficatãobememuma
quenãoconsigoresistir.
Arainhadouradanãosorriuquandoponderou:
—UmahumanatransformadaemGrã-Feérica...equeagoraestáaoladode
umGrão-Feéricoemlugardehonra.Interessante.
Mantiveosombrosparatrás,oqueixoerguido.Cassianestavameensinando
ao longo das últimas semanas como avaliar um oponente... e o que eram as
palavrasdelasenãoosmovimentosiniciaisemoutrotipodebatalha?
AmaisvelhadeclarouparaRhys:
—Temumahoradenossotempo.Façavalerapena.
—Comoconseguematravessar?—perguntouMor,sentadaaomeulado.
A rainha dourada deu um sorriso — um sorriso breve, de deboche — e
respondeu:
—Énossosegredo,eumdomquerecebemosdeseupovo.
Tudobem.Rhysmeolhoueengoliemsecoquandomeinclineiparaafrente
nacadeira.
—Aguerraseaproxima.Chamamosvocêsaquiparaavisar...eparasuplicar
porumfavor.
Não haveria truques, nada de roubo nem sedução. Rhys não podia sequer
arriscarolhardentrodasmentesdelaspormedodedispararosfeitiçosinerentesao
Livroedestruí-lo.
—Sabemosqueaguerraseaproxima—revelouamaisvelha,cujavozsoava
comofolhasquebrando.—Estamosnospreparandoparaelahámuitosanos.
Pareciaqueastrêsoutrasestavamposicionadascomoobservadorasenquantoa
maisvelhaeadecabelosdouradoslideravam.
Eufalei,omaiscalmaenitidamentepossível:
—Oshumanosneste territórioparecemalheiosàameaçamaior.Nãovimos
sinaisdepreparação.—Defato,Azrielhaviadeduzidoaquiloduranteasúltimas
semanas,parameudesapontamento.
—Esteterritório—explicouadourada,friamente—éumfiapodeterraem
comparação com a vastidão do continente.Não é de nosso interesse defendê-lo.
Seriaumdesperdícioderecursos.
Não.Não,isso...
Rhysfalou:
—Certamenteaperdadesequerumavidainocenteseriaterrível.
Arainhamaisvelhacruzouasmãosenrugadasnocolo.
— Sim. Perder uma vida é sempre um horror. Mas guerra é guerra. Se
precisarmos sacrificar este minúsculo território para salvar a maioria, então
faremosisso.
Nãoouseiolharparaminhasirmãs.Paraaquelacasa,quepoderiamuitobem
virarescombros.Eudisse,avozrouca:
—Hápessoasboasaqui.
Arainhadouradareplicouemtomdoce:
—Então,queosGrão-FeéricosdePrythianasdefendam.
Silêncio.
EfoiNesthaqueciciouatrásdenós.
—Temos criados aqui.Com famílias.Há crianças nestas terras. E quer nos
deixartodosnasmãosdosfeéricos?
Orostodamaisvelhasesuavizou.
—Nãoéumaescolhafácil,menina...
—Éaescolhadecovardes—disparouNestha.
InterrompiantesqueNesthanoscavasseumacovamaisprofunda.
—Apesar do tanto que seu tipo odeia o nosso... deixariam que os feéricos
defendessemseupovo?
—Nãodeveriam?—perguntouadourada,jogandoacascatadecachossobre
umombroquandoinclinouacabeçaparaolado.—Nãodeveriamdefendercontra
umaameaçaqueelesmesmocriaram?—Umrisodeescárnio.—Sanguefeérico
nãodeveriaserderramadopeloscrimesdelesaolongodosanos?
— Nenhum dos lados é inocente — replicou Rhys, calmamente. — Mas
podemosprotegeraquelesquesão.Juntos.
— Ah?! — exclamou a mais velha, e as rugas pareceram se enrijecer, se
aprofundar.—OGrão-SenhordaCorteNoturnanos pedequenos juntemos a
ele,para salvarmosvidascomele.Para lutarmosporpaz.Equantoàsvidasque
vocêtiroudurantesualongaeterrívelexistência?EquantoaoGrão-Senhorque
caminhacomaescuridãoaoencalçoedestróimentes conformeachanecessário?
— Ela riu como um corvo.—Ouvimos falar de você, mesmo no continente,
Rhysand. Ouvimos falar do que a Corte Noturna faz, do que fazem com seus
inimigos.Paz? Para um macho que derrete mentes e tortura por diversão, não
acheiqueconheciaapalavra.
Ira começou a fervilhar emmeu sangue; brasas estalaramemmeusouvidos.
Masesfrieiessefogo,queaospoucoseucultivavaaolongodasúltimassemanas,e
tentei:
— Se não enviar forças para defender seu povo, então, o artefato que
requeremos...
— Nossa metade do Livro, criança— interrompeu a idosa—, não deixa
nossolocalsagrado.Nãodeixouaquelasparedesbrancasdesdeodiaemquenos
foi dada como parte do Tratado. Jamais deixará aquelas paredes, não enquanto
enfrentarmososterroresdonorte.
—Porfavor.—Foitudoqueeudisse.
Silênciodenovo.
—Por favor— repeti.Emissária... eu era emissária deles, eRhys tinhame
escolhidoparaaquilo.Paraseravozdedoismundos.—Fuitransformadanisto,
emfeérica,porqueumacomandantedeHybernmematou.
Pormeiodenossolaço,podiajurarquesentiRhysencolherocorpo.
—Durantecinquentaanos—insisti—elaaterrorizouPrythiane,quandoeu
aderrotei,quando liberteiopovodePrythian,mematou.E,antesde fazer isso,
testemunhei os horrores que ela liberou sobre humanos e feéricos. Um deles,
apenasumdelesfoicapazdecausartaldestruiçãoesofrimento.Imagineoqueum
exércitocomoelaseriacapazdefazer.Eagoraoreidelesplanejausarumaarma
paradestruiramuralha,paradestruirtodosvocês.Aguerraserábreve,ebrutal.E
vocêsnãovencerão.Nósnãovenceremos.Sobreviventesserãoescravizados,eos
filhos dos filhos deles serão escravos. Por favor... por favor, nos deem a outra
metadedoLivro.
A rainha mais velha trocou um olhar com a dourada antes de dizer,
gentilmente,emtomapaziguador:
—Vocêé jovem,criança.Temmuitoaaprendersobreo funcionamentodo
mundo...
—Não—cortouRhys, comum tombaixomortal— seja condescendente
comela.—Arainhamaisvelha,quenãopassavadeumacriançaparaele,paraos
séculosdeexistênciadeRhysand, teveobomsensodeparecernervosaaoouvir
aquele tom.OsolhosdeRhys estavamvítreos, o rosto, tão impiedosoquanto a
voz,conformeelecontinuou:—NãoinsulteFeyreporfalarcomocoração,com
compaixãoporaquelesquenãopodemsedefender,quandovocêfalaapenaspor
egoísmoecovardia.
Amaisvelhaenrijeceuocorpo.
—Pelobemmaior...
—Muitasatrocidades—disseRhys, rosnando—foramfeitasemnomedo
bemmaior.
Boapartedemimficouimpressionadaquandoarainhaoencaroudevolta.Ela
disse,simplesmente:
—OLivropermaneceráconosco.Nóssuperaremosessatempestade...
—Basta—interrompeuMor.
Elaselevantou.
EMorolhoucadaumadaquelasrainhasnosolhosquandofalou:
—SouaMorrigan.Vocêsmeconhecem.Sabemoquesou.Sabemquemeu
dom é a verdade. Então, ouvirão minhas palavras agora e saberão que são
verdadeiras...comosuasancestraisumdiasouberam.
Nenhumapalavra.
Morgesticulouparatrásdesi...paramim.
— Acha que é uma simples coincidência que uma humana tenha sido
transformadaemimortaldenovo,noexatomomentoemquenossovelhoinimigo
ressurge? Eu lutei ao lado deMiryam naGuerra, lutei ao seu lado conforme a
ambição e a sede por sangue de Jurian o levaram à loucura, e os separaram.
LevaramJurianatorturarClythiaatéamortee,depois,alutarcomAmaranthaaté
aprópriamorte.—Morrespiroufundo,epudejurarqueAzrielseaproximouao
ouviraquilo.MasMorcontinuou:—MarcheidevoltaàTerraNegracomMiryam
para libertar os escravos que foram deixados naquelas areias em chamas, a
escravidão da qual ela mesma escapara. Os escravos que Miryam prometera
devolver à liberdade.Marchei comela,minha amiga. Junto à legiãodopríncipe
Drakon.Miryameraminhaamiga,comoFeyreéagora.Esuasancestrais,aquelas
rainhasqueassinaramoTratado...Eramminhasamigas também.Equandoolho
para vocês...—Mor exibiu os dentes.—Não vejonada daquelasmulheres em
vocês.Quandoolhoparavocês,seiquesuasancestraisteriamvergonha.
“Vocêsriemdaideiadepaz?Dequepodemostê-laentrenossospovos?—A
vozdeMorfalhou,e,denovo,Azrielsubitamenteseaproximoumaisdela,embora
seu rosto não revelasse nada. — Há uma ilha em uma parte tempestuosa e
esquecidadomar.Umailhagrandeeexuberante,protegidadotempoedeolhos
espiões.E, nessa ilha,MiryameDrakon aindavivem.Com seus filhos.Comos
povosdeambos.Feéricosehumanosemestiços.Ladoalado.Háquinhentosanos,
têmprosperadonaquelailha,deixandoqueomundoacreditequeestãomortos...”
—Mor—disseRhys,fazendoumareprimendasilenciosa.
Aqueleeraumsegredo,percebi,quetalvez tivessepermanecidoocultohavia
cincoséculos.
UmsegredoquealimentaraossonhosdeRhysandedesuacorte.
Umaterranaqualdoissonhadorestinhamencontradopazentreseuspovos.
Ondenãohaviamuralha.Nenhumfeitiçodeferro.Nenhumaflechadefreixo.
Arainhadouradaearainhaidosaseentreolharamdenovo.
Osolhosdaidosabrilharamquandodeclarou:
—Prove.SenãoéoGrão-Senhorqueosboatosalegamser,nosdêumpingo
deprovadequeéoquediz:ummachodepaz.
Havia apenas uma forma.Apenasuma formademostrar a elas, de provar a
elas.
Velaris.
Meus ossos reclamaram diante da ideia de revelar aquela joia àquelas...
aranhas.
Rhysselevantoucomummovimentofluido.Asrainhasfizeramomesmo.A
vozeracomoumanoitesemluaquandoRhysfalou:
—Desejamprova?—Prendi a respiração, rezando... rezando para que ele
nãocontasse.Rhysanddeudeombros,obordadoprateadonocasacorefletiualuz
do sol.— Vou obter provas para vocês. Aguardem notícias minhas, e voltem
quandoasconvocarmos.
— Não somos convocadas por ninguém, humanos ou feéricos— rebateu,
rindo,arainhadourada.
Talvez fosse por isso que elas tivessem levado tanto tempo para responder.
Parafazeralgumjogodepoder.
—Então,venhamporvontadeprópria—disseRhys,comumtomafiadoo
bastanteparaqueosguardasdasrainhasdessemumpassoadiante.Cassianapenas
sorriuparaeles,eomaissábiodosguardasimediatamenteempalideceu.
Rhyssomenteinclinouacabeçaaoacrescentar:
—Talvez então você entenda o quanto o Livro é vital para os esforços de
ambos.
—Vamos considerardepoisque tivermos suaprova.—Amaisvelhaquase
cuspiuapalavra.Algumapartedemimmelembroudequeelaeravelha,ereal,e
lhe arrancar aquela arrogância do rosto a tapas não nos ajudaria em nada. —
Aquelelivroénossoparaprotegerháquinhentosanos.Nãooentregaremossema
devidaconsideração.
Osguardasseposicionaramaoladodasrainhas,comoseaspalavrastivessem
sido algum sinal predeterminado.A rainha dourada deu um risinho paramim e
disse:
—Boasorte.
Então, elas se foram. A sala de estar ficou subitamente grande demais,
silenciosademais.
EfoiElain—Elain—quemsuspirouemurmurou:
—Tomaraquetodaselasqueimemnoinferno.
FicamospraticamenteemsilêncioduranteovooeatravessiaatéVelaris.Amren
jáaguardavanacasa,asroupasamarrotadaseorostoperturbadoramentepálido.
Fizumanotamentalparacomprarmaissangueparaelaimediatamente.
Masemvezdenosreunirmosnasaladejantarounadeestar,Rhysseguiupelo
corredor,asmãosnosbolsos,passoupelacozinha,esaiuparaojardimdopátionos
fundos.
Orestodenóspermaneceunovestíbulo,olhandoparaele—silêncioirradiava
deRhys.Comoacalmaantesdatempestade.
—Foibem,suponho—disseAmren.Cassianaolhoueseguiuoamigo.
O sol e o dia árido haviam aquecido o jardim, trechos verdes agora
despontavamláforaenosincontáveiscanteirosevasos.Rhyssesentounabeirada
fonte, com os antebraços apoiados nos joelhos, encarando o piso de lajotas
manchadodemusgoentreospés.
Todosocupamosnossosassentosnascadeirasdeferropintadasdebranco.Se
apenas os humanos pudessem ver: feéricos sentados em ferro. Jogariam fora
aquelasbijuterias e joias ridículas.Talvez atémesmoElain recebesseumanelde
noivadoquenãotivessesidoforjadocomódioemedo.
—Seveioaquiforaparasedeprimir,Rhys—disseAmren,empoleiradaem
umbanquinho—,então,diga,quevoltoparameutrabalho.
Olhosvioletaseergueramparaosdela.Frios,semhumor.
—Ashumanasqueremprovadenossasboasintenções.Dequepodemconfiar
emnós.
AatençãodeAmrenpassouparamim.
—Feyrenãobastou?
Tentei não deixar que as palavrasme ferissem.Não, eu não fora suficiente;
talvezatémesmotivessefracassadocomoemissária...
— Ela mais que basta — decretou Rhys, com aquela calma mortal, e me
perguntei seeuenviarameuspatéticospensamentospela ligação.Erguioescudo
denovo.—Sãotolas.Pior...tolascommedo.—Rhysobservouochãodenovo,
como se o musgo seco e a pedra formassem algum padrão que somente ele
conseguisseenxergar.
—Poderíamos... derrubá-las. Colocar rainhasmais novas,mais inteligentes
emseustronos.Queestejamdispostasanegociar—disseCassian.
Rhysfezquenãocomacabeça.
—Um,demorariamuito.Nãotemosessetempotodo.—Penseinasúltimas
semanas, em como Azriel tentara entrar naquelas cortes. Se nem mesmo suas
sombraseespiões tinhamconseguidopenetraraorganização internadasrainhas,
entãoeuduvidavaqueumassassinoconseguisse.OgestonegativoqueAzrielfez
comacabeçaparaCassiandiziaisso.—Dois—continuouRhys—,quemsabese
isso de alguma forma impactaria amagia de suametade doLivro?Ela deve ser
dadavoluntariamente.Épossívelqueamagiasejaforteobastanteparavernossos
planos.—Rhysinspirou,entredentes.—Estamosempacadoscomelas.
—Poderíamostentardenovo—disseMor.—Deixequeeufalecomelas,
queváaopalácio...
—Não— respondeuAzriel.Mor ergueu as sobrancelhas, e um leve rubor
manchouorostodeAzriel.Massuaexpressãoeradeterminada,osolhosdeavelã
pareciamsólidos.—Nãovaicolocarospésnaquelereinohumano.
—Euluteinaguerrasenãoselembra...
—Não—disseAzriel,denovo,recusando-seatirarosolhosdosdeMor.As
asasagitadasroçaramcontraoencostodacadeira.—Elasaamarrariameafariam
deexemplo.
—Precisariammepegarprimeiro.
—Aquelelugaréumaarmadilhamortalparanossaespécie—replicouAzriel,
avozbaixaeáspera.—Construídopormãosfeéricasparaprotegeroshumanosde
nós.Secolocarospésládentro,Mor,nãosairádenovo.Porqueachaqueestamos
comtantosproblemasparainfiltraralguém?
—Seentrarnoterritóriodelesnãoéumaopção—interrompi,antesqueMor
pudessedizeroquequerqueo temperamentoque lhedeformavaaexpressãodo
rosto tivesse sussurrado para que ela replicasse, o que certamente feria o
encantador de sombras mais do que Mor pretendia —, e enganar ou fazer
manipulaçãomentalpodemlevaramagiaadestruiroLivro...Queprovapodeser
oferecida?—Rhysergueuacabeça.—Quemé...queméessaMiryam?Quemela
foi para Jurian, e quemera esse príncipedequemvocê falou...Drakon?Talvez
nós... talvez eles pudessem ser usados como prova. Pelomenos para falar a seu
favor.
OcalorsedissipoudosolhosdeMorquandoelaarrastouopécontraomusgo
eopisodelajotas.
MasRhysentrelaçouosdedosentreosjoelhosantesdedizer:
—Háquinhentos anos, nos anosqueprecederamaGuerra, havia um reino
feériconapartesuldocontinente.Eraumreinodeareiaquecercavaoexuberante
deltadeumrio.ATerraNegra.Nãohavialugarmaiscruelparasenascerhumano,
pois nenhumhumano ali nascia livre.Eram todos escravos, forçados a construir
grandes templos e palácios para os Grão-Feéricos que governavam. Não havia
escapatória;nenhumachancedecompraraliberdade.EarainhadaTerraNegra...
—AmemóriaseestampounaexpressãodeRhys.
—ElafaziaAmaranthaparecertãodocequantoElain—explicouMor,com
delicadoveneno.
—Miryam—continuouRhys—eraumafêmeameio-feéricanascidademãe
humana.Ecomoamãeeraescrava,aconcepçãofoi...contraavontadedamulher,
e Miryam também nasceu em grilhões e, considerada humana, teve negados
quaisquerdireitosàherançafeérica.
—Conte a história toda outra hora— interrompeuAmren.—O resumo,
garota— disse Amren para mim— é queMiryam foi dada como presente de
casamentodarainhaparaseuprometido,umpríncipefeéricoestrangeirochamado
Drakon.Eleficouhorrorizado,edeixouMiryamescapar.Temendoairadarainha,
ela fugiu pelo deserto, atravessou o mar, mais deserto... e foi encontrada por
Jurian.MiryamsejuntouaosexércitosrebeldesdeJurian,setornousuaamantee
era uma curandeira entre os guerreiros.Até que uma batalha devastadora levou
Miryam a cuidar dos novos aliados feéricos de Jurian: inclusive do príncipe
Drakon.No fim das contas,Miryam abrira os olhos deDrakon para omonstro
comquemeleplanejavasecasar.Drakondesfezonoivado,aliouseusexércitosaos
humanos e estava à procura da linda garota escrava havia três anos. Jurian não
tinha ideia de que o novo aliado cobiçava sua amante. Ele estava concentrado
demais em vencer a Guerra, em destruir Amarantha no norte. Conforme a
obsessãodeJuriantomavaconta,oguerreironãoenxergouMiryameDrakonse
apaixonandoàssuascostas.
—Não foi pelas costas!—disparouMor.—Miryam terminou com Jurian
antesdesequercolocarumdedoemDrakon.
Amrengesticuloucomosombros.
— Resumindo, garota, quando Jurian foi massacrado por Amarantha, e
durante os longos séculos depois disso, ela contou ao guerreiro o que tinha
acontecidocomsuaamante.QueMiryamo traíraporummacho feérico.Todos
acreditavam que Miryam e Drakon haviam morrido libertando o povo dela da
TerraNegra,nofimdaGuerra,atémesmoAmarantha.
—Enãotinham—concluí.RhyseMorassentiram.—Foitudoumaforma
defugir,nãofoi?Decomeçardenovoemoutrolugar,comospovosdeambos?
—Maisacenos.—Então,porquenãomostrarissoàsrainhas?Vocêcomeçoua
contaraelas...
— Porque— interrompeu Rhys—, além de não provar nada sobremeu
caráter,quepareciaseromaiorproblema,seriaumagravetraiçãoanossosamigos.
Seu único desejo era permanecer escondidos, viver em paz com os respectivos
povos.Lutaramesangraramesofrerammuitoporisso.Nãovouarrastá-lospara
esteconflito.
—OexércitoaéreodeDrakon—ponderouCassian—eratãobomquantoo
nosso.Talvezprecisemoschamá-lonofim.
Rhysapenassacudiuacabeça.Fimdepapo.Etalvezeleestivessecerto:revelar
a existência pacífica de Drakon e Miryam não explicava nada a respeito das
intençõesdopróprioRhys.Sobreseusméritoseseucaráter.
—Então,oqueoferecemosemtroca?—perguntei.—Oquemostramosa
elas?
OrostodeRhyspareceuarrasado.
—MostramosVelarisaelas.
—Oquê?—disparouMor.MasAmrenasilenciou.
—Nãoésérioquequertrazê-lasaqui—protestei.
—Éclaroquenão.Osriscossãograndesdemais,recebê-lasporsequeruma
noiteprovavelmenteresultariaemderramamentodesangue.—Rhyscontinuou:
—Então,planejoapenasmostraraelas.
—Elasvãoignorar,comoumtruquemental—replicouAzriel.
—Não—respondeuRhys,eselevantou.—Queromostraraelas,deacordo
comasregrasdelasmesmas.
Amrentamborilouasunhasumascontraasoutras.
—Comoassim,Grão-Senhor?
MasRhysapenasdisseaMor:
—Aviseseupai.Vamosfazerumavisitaaeleeaminhaoutracorte.
Meusanguegelou.ACortedosPesadelos.
Existiaumaesfera,pelovisto,quepertencera à famíliadeMorhaviamilênios: a
Veritas.Transbordava amagiadaverdadequeMor alegavapossuir; quemuitos
emsualinhagemtambémtinham.EaVeritaseraumdeseustalismãsmaisvaliosos
evigiados.
Rhysnãoperdeutempocomplanejamento.IríamosparaaCortedosPesadelos
dentro da Cidade Escavada na tarde seguinte, atravessaríamos para perto da
enormemontanhadentrodaqualeraconstruída,eentãovoaríamosorestantedo
caminho.
Mor,CassianeeuéramosmerasdistraçõesparatornaravisitasúbitadeRhys
menossuspeita...enquantoAzrielroubavaaesferadosaposentosdopaideMor.
Aesferaeraconhecidaentreoshumanos,foraempunhadaporelesnaGuerra,
contou-me Rhys em um jantar tranquilo naquela noite. As rainhas saberiam. E
saberiamqueeraamaisabsolutaverdade,nãoumailusãoouumtruque,quandoa
usássemos paramostrar a elas— como espiar uma pintura viva— que aquela
cidadeeobompovoexistiam.
Osdemais tinhamsugeridooutros lugaresdentrodo territóriodeRhyspara
provarqueelenãoeraumsádicobeligerante,masnenhumtinhaomesmoimpacto
de Velaris, alegava Rhys. Pelo povo dele, pelo mundo, Rhysand ofereceria às
rainhasaquelepedaçodeverdade.
Depoisdojantar,fuipassearpelasruasemevi,porfim,nabeiradoArco-Íris,
anoiteatoda,mecenaseartistasecidadãoscomunsentrandoesaindodelojaem
loja,olhandoasgalerias,comprandosuprimentos.
Emcomparaçãocomas luzes forteseascoresalegresdapequenacolinaque
desciaatéorioadiante,asruasatrásdemimpareciamsombreadas,dormentes.
Eu estava ali havia quase dois meses e não tinha reunido coragem para
caminharpeloquarteirãodosartistas.
Mas aquele lugar...Rhys arriscaria aquela linda cidade, aquele povo amável,
tudoporumachancedeterpaz.TalvezaculpaporterdeixadoVelarisprotegida
enquanto o resto de Prythian sofria o guiasse; talvez oferecer Velaris em uma
bandejafosseaprópriatentativadeRhysanddealiviaressepeso.Esfregueiopeito,
poisumpesoseacumulavaali.
Deiumpassonadireçãodoquarteirão...eparei.
TalvezdevesseterpedidoaMorqueviessecomigo.Maselapartiradepoisdo
jantar, de rosto pálido e sobressaltada, ignorando a tentativa de Cassian de
conversar. Azriel saíra voando para contatar os espiões. Ele silenciosamente
prometera a um Cassian impaciente que encontraria Mor quando tivesse
terminado.
ERhys...Eletinhamuitonascostas.Enãofizeraobjeçõesquandoeudisseque
sairia para caminhar.Nemmesmome avisara para que tomasse cuidado. Se era
confiançaoutotalfénasegurançadaquelacidade,ouapenasofatodeRhyssabero
quantoeureagiriamalseeletentassemedizerparanãoiroumedesseumaviso,eu
nãosabia.
Sacudi a cabeça, limpando a mente, quandomais uma vez olhei para a rua
principaldoArco-Íris.
Eu sentira faíscas nas últimas semanas, naquele buraco dentro do peito—
faíscasdeimagens,masnadasólido.Nadaquerugissecomvidaeexigências.Não
da forma como acontecera naquela noite, quando viRhysand ajoelhado naquela
cama,nuetatuadoecomasasasàmostra.
Seria burrice me aventurar no quarteirão, de toda forma, quando poderia
muitobemserdestruídoemumconflitoiminente.Seriaburricemeapaixonarpor
ele,quandopoderiaserarrancadodemim.
Então,comoumacovarde,eumevireiefuiparacasa.
Rhysaguardavanovestíbulo,encostadonomastrodocorrimãodaescada.O
rostoestavasombrio.
Pareinomeiodotapetedaentrada.
—Oquefoi?
—Estoupensandoempedirquevocêfiqueaquiamanhã.—AsasasdeRhys
nãoestavamvisíveis,nemmesmosuasombra.
Cruzeiosbraços.
—Acheiqueeuiria.—Nãometranquenestacasa,nãomeafaste...
Elepassouamãopelocabelo.
—Oqueprecisoseramanhã,quemprecisometornar,nãoé...nãoéalgoque
queroqueveja.Comotratareivocê,tratareiosdemais...
—AmáscaradoGrão-Senhor—falei,baixinho.
—Sim.—Rhyssesentounabasedasescadas.
Permanecinocentrodosaguãoquandoperguntei,comcautela:
—Porquenãoquerqueeuvejaisso?
— Porque você acabou de começar a me ver como se eu não fosse um
monstro, e não suporto a ideia de nada do que verá amanhã estar sob aquela
montanha,colocarvocêdevoltanaquelelugarondeaencontrei.
Sob aquela montanha — no subterrâneo. Sim, tinha me esquecido disso.
Esquecido que eu veria a corte na qual Amarantha inspirara a própria, que eu
estariapresasobaterra...
MascomCassian,AzrieleMor.Com...ele.
Espereipelopânico,pelosuorfrio.Nenhumveio.
—Medeixeajudar.Comoeupuder.
Tristezaofuscoualuzestelarnaquelesolhos.
—Opapelqueprecisaráinterpretarnãoéagradável.
—Confio em você.—Eume sentei ao lado deRhys nas escadas, perto o
bastanteparaqueocalordocorpodeleaquecesseoarfriodanoitequeseagarrava
aomeusobretudo.—PorqueMorpareciatãoperturbadaquandofoiembora?
Rhysengoliuemseco.Eupodiaverqueeraódio,edor,queevitavamqueele
me contasse diretamente; não falta de confiança.Depois de ummomento,Rhys
falou:
—Euestava lá,naCidadeEscavada,nodiaemqueopaideclarouqueMor
seriavendidaemcasamentoaEris,o filhomaisvelhodoGrão-SenhordaCorte
Outonal.—IrmãodeLucien.—Eristinhaareputaçãodesercruel,eMor...me
implorouparaqueeunãodeixasseaquiloacontecer.Apesardetodoopoder,deser
tão selvagem, elanão tinhavoz,não tinhadireitospara aquelagente.Emeupai
nãoseimportavamuitoseosprimosusassemascriascomoanimaisdereprodução.
—Oqueaconteceu?—sussurrei.
—LeveiMoraoacampamento illyrianoporalgunsdias.EelaviuCassiane
decidiuquefariaaúnicacoisaquedestruiriaseuvalorparaaquelaspessoas.Não
soube até depois, e... foi uma confusão. Com Cassian, com ela, com nossas
famílias.Eéoutralongahistória,masaversãoresumidaéqueErisserecusouase
casarcomela.DissequeMortinhasidomaculadaporumbastardofeéricoinferior,
epreferiatreparcomumaporca.Afamíliadela...eles...—NuncaviRhystãosem
palavras. Ele pigarreou.— Quando terminaram, jogaram Mor na fronteira da
CorteOutonal,comumbilhetepregadoaocorpo;diziaqueMoreraproblemade
Eris.
Pregado...pregadoaela.
Rhysfalou,comira,baixinho:
— Eris deixou Mor à beira da morte no meio do bosque deles. Azriel a
encontrou um dia depois. Fiz o possível para evitar queAzriel fosse a qualquer
umadascortesemassacrasseatodos.
Pensei naquele rosto alegre, nagargalhada irreverente, na fêmeaquenão se
importava com quem a aprovasse. Talvez porque tivesse visto o pior que sua
espécietinhaaoferecer.Esobrevivera.
E entendi; por que Rhys não podia suportar Nestha por mais de alguns
minutos,porquenãoconseguiasedesvencilhardaqueleódionoquediziarespeito
asuasfalhas,mesmoqueeuotivessefeito.
OfogodeBeroncomeçouacrepitaremminhasveias.Meufogo,nãoodele.E
nemodofilhodele.
PegueiamãodeRhys,eseupolegarroçoucontraodorsodapalmadaminha.
Tentei não pensar na familiaridade daquela carícia quando falei, com uma voz
firmeecalmaquemalreconheci:
—Digaoqueprecisofazeramanhã.
Eunãoestavacommedo.
NãodopapelqueRhystinhapedidoqueeuinterpretassenaqueledia.Nãodo
vento estrondoso conformeatravessávamos atéuma cadeiamontanhosa familiar,
cobertadeneve,queserecusavaasedobraraobeijododespertardaprimavera.
NãodadescidaviolentaconformeRhysnoslevouvoandoentreospicosevales,
ágil e suavemente. Cassian e Azriel nos flanqueavam;Mor nos encontraria nos
portões,nabasedamontanha.
O rosto de Rhys estava contraído, e os ombros, tensos enquanto eu os
segurava.Sabiaoqueesperar,mas...mesmodepoisdeRhystermecontadooque
precisava que eu fizesse, mesmo depois de eu concordar, ele estava... distante.
Perturbado.
Preocupadocomigo,percebi.
Esóporcausadaquelapreocupação,sóparatiraraquelatensãodeseurosto,
mesmoqueduranteospoucosminutosantesdeenfrentarmosaquelereinomaldito
sobamontanha,eufalei,acimadoruídodovento:
—AmreneMormedisseramqueaextensãodasasasdeummachoillyriano
dizmuitosobreotamanhode...outraspartes.
OsolhosdeRhyssevoltaramparamim,edepois,paraasencostascobertasde
pinheirosabaixo.
—Disseram,é?
Dei de ombros, tentando não pensar no corpo nu daquela noite, há tantas
semanas,emboraeunãotivessevistomuito.
—TambémdisseramqueasasasdeAzrielsãoasmaiores.
Malícia dançou naqueles olhos violeta, levando embora a distância fria, a
tensão.Omestre-espiãoeraumborrãopretocontraocéuazulpálido.
—Quandovoltarmosparacasa,vamospegarafitamétrica,quetal?
Belisqueiomúsculo firmecomopedradoantebraçodeRhys.Eleme lançou
umsorrisomaliciosoantesdedescer...
Montanhas e neve e árvores e sol e queda livre total em meio a fiapos de
nuvem...
Umgritosemfôlegosaiudemimquandomergulhamos.Porinstinto,envolvi
opescoçodeRhyscomosbraços.Suarisadagravefezcócegasemminhanuca.
—Estádispostaadesbravarminhaescuridãoeerguerasua,dispostaaentrar
emumtúmuloinundadoeenfrentaraTecelã,masumaquedinhalivreafazgritar?
—Voudeixá-loapodrecerdapróximavezque tiverumpesadelo—sibilei,
ainda de olhos fechados e como corpo travado quandoRhys abriu as asas para
suavizarnossaquedaconstante.
—Nãovainão—cantarolouele.—Gostoudemaisdemevernu.
—Canalha.
A risada deRhys ressoou contramim.De olhos fechados, o vento rugindo
comoumanimalselvagem,ajusteiminhaposição,segurando-ocommaisforça.Os
nósdemeusdedosroçaramemumadasasasdeRhys—lisaefriacomoseda,mas
firmetalpedraquandototalmenteesticada.
Fascinante.Tateeiàscegasdenovo...eouseipassarapontadodedoporuma
dasbordasinternas.
Rhysandestremeceu,umgemidobaixoescapuliuaoladodeminhaorelha.
—Aí—falouele,contendoavoz—émuitosensível.
Puxeiodedodevolta,meafasteiobastanteparaverorostodeRhys.Como
vento,preciseisemicerrarosolhos,emeuscabelostrançadosvoavamdeumladoa
outro, mas... Rhys estava completamente concentrado nas montanhas ao nosso
redor.
—Fazcócegas?
Ele voltou o olhar para mim, e depois, para a neve e os pinheiros que se
estendiaminfinitamente.
— A sensação é esta — disse Rhys, e se aproximou tanto que os lábios
roçaram a parte externa deminha orelha quando ele lhe lançou um leve sopro.
Minhascostassearquearamporinstinto,eerguioqueixodiantedacaríciadaquele
sopro.
— Ah!— Eu consegui dizer. Senti Rhys sorrir contra minha orelha e se
afastar.
—Sequiseraatençãodeummachoillyriano,seriamelhorpuxá-lopelasbolas.
Somos treinados a proteger nossas asas a todo custo. Alguns machos atacam
primeiroefazemperguntasdepoisseasasasforemtocadassemconvite.
—Eduranteosexo?—Aperguntasaiusemquerer.
OrostodeRhyserapurointeressefelinoenquantomonitoravaasmontanhas.
—Duranteosexo,ummachoillyrianopodeatingirumorgasmosomentese
alguémtocarasasasnolugarcerto.
Meusanguelatejava.Territórioperigoso;maisqueaquedaletalabaixo.
—Vocêjátestouseissoéverdade?
OsolhosdeRhysmedespiram.
—Nunca permiti que ninguém visse ou tocasse emminhas asas durante o
sexo.Issotornavocêvulneráveldeumaformacomaqual...nãoestouconfortável.
— Uma pena — lamentei, olhando casualmente demais na direção da
grandiosa montanha que agora surgia no horizonte, erguendo-se por cima das
demais.Eencimada,reparei,poraquelepalácioreluzentedepedradalua.
—Porquê?—perguntouRhys,cauteloso.
Deideombros,lutandocontraosorrisoemmeuslábios.
— Porque aposto que poderia fazer umas posições interessantes com essas
asas.
Rhys soltou uma gargalhada ruidosa, e seu nariz roçouminha orelha. Eu o
sentiabrirabocaparasussurraralgo,mas...
Umacoisaescurae rápidae lustrosadisparoucontranós,eRhysmergulhou
parabaixoeparalonge,xingando.
Então,outra,eoutra,elascontinuaramvindo.
Nãoeramapenasflechascomuns,percebiquandoRhysdesviouepegouuma
noar.MaisflechasricochetearaminofensivamentedeumescudoqueRhysergueu.
Eleverificouamadeiranapalmadamãoeasoltoucomumchiado.Flechasde
freixo.Paramatarfeéricos.
Eagoraqueeuerauma...
Maisrápidoqueovento,maisrápidoqueamorte,Rhysdisparouparaochão.
Voou, não atravessou, porque queria saber onde estavam nossos inimigos, não
queriaperdê-los.Oventoferiumeurosto,emitiuumguinchoemmeusouvidos,se
entrelaçouemmeuscabeloscomgarrascruéis.
AzrieleCassianjásedirigiamaténós.Escudosdeazulevermelhotranslúcidos
osenvolviam—lançandoaquelasflechaspelosares.EramosSifõesemação.
Asflechaseramdisparadasdaflorestadepinheiroquecobriaasmontanhas,e,
depois,sumiam.
Rhysatingiuochão,nevesubindoaoseuencalço,eumafúriacomoeunãovia
desde aquele dia na corte deAmarantha deformou a expressão de seu rosto. Eu
conseguiasentiraqueleódio latejandoemmim,reunindo-sepelaclareiranaqual
agoraestávamos.
Azriel e Cassian chegaram em um instante, e seus escudos coloridos se
encolheram de volta para os Sifões. Os três eram como forças da natureza na
florestadepinheiros,eRhysandnemmesmomeolhouquandoordenouaCassian:
—Leve-aparaopalácioefiqueláatéeuvoltar.Az,vocêvemcomigo.
Cassianestendeuamãoparamim,maseumeafastei.
—Não.
—Oquê?—grunhiuRhys,apalavrasaiuquasegutural.
—Melevejunto—pedi.Nãoqueriairparaaquelepaláciodepedradaluae
ficarandandodeumladoaoutro,eesperaretorcerosdedos.
Cassian e Azriel, sabiamente, ficaram calados. E Rhys, que a Mãe o
abençoasse, apenas recolheu as asas e cruzou os braços... esperando ouvirmeus
motivos.
—Jáviflechasdefreixo—falei,umpoucosemfôlego.—Possoreconhecer
ondeforamfeitas.EsevieramdamãodeoutroGrão-Senhor...possodetectarisso
também.—Se tinhamvindodeTarquin...—Epossorastrear tãobemnochão
quanto qualquer um de vocês.— Exceto por Azriel, talvez.— Então, você e
Cassian vão pelo céu — sugeri, ainda esperando a rejeição, a ordem de me
trancafiar.—EvoucaçarnochãocomAzriel.
Airaqueirradiavapelaclareiranevadaseconteveemumódiogélido,calmo
demais.Porém,Rhysfalou:
—Cassian,queropatrulhasaéreasnasfronteirasmarítimas,posicionadasem
círculosde3,5quilômetros,atéHybern.Querosoldadosdeinfantarianosvalesdas
montanhas ao longo da fronteira sul; certifique-se de que aquelas fogueiras de
aviso estejam prontas em cada cume. Não vamos nos fiar emmagia.— Ele se
voltouparaAzriel.—Quandoterminarem,aviseseusespiõesdequepodemestar
comprometidos, e prepare-se para extraí-los. E coloque novos espiões no lugar.
Vamos conter isso. Não contaremos a ninguém dentro daquela corte o que
aconteceu.Sealguémmencionar,digamquefoiumtreinamento.
Porquenãopodíamoscorreroriscodedeixarqueessafraquezatransparecesse,
mesmoentreseussúditos.
OsolhosdeRhysandfinalmenteencontraramosmeus.
—Temosumahoraatéprecisarmosestarnacorte.Façamvalerapena.
Nósbuscamos,masasflechascaídasforamlevadaspornossosagressores—enem
mesmo as sombras e o vento disseram algo a Azriel, como se nosso inimigo
tambémtivesseseescondidodeles.
MasaquelaeraasegundavezquesabiamondeRhyseeuestaríamos.
Mornosencontroudepoisdevinteminutos,querendosaberquediaboshavia
acontecido. Nós explicamos, e ela atravessou para dar qualquer que fosse a
desculpaqueevitarialevantarsuspeitassobrealgoerradoemsuaterrívelfamília.
Mas, ao fim de uma hora, não tínhamos encontrado uma única pista. E não
podíamosmaisatrasarnossareunião.
A Corte dos Pesadelos ficava atrás de um conjunto imenso de portas
entalhadasnaprópriamontanha.Edabase,amontanhaseerguiatãoaltaqueeu
nãoconseguiaveropalácionoqualumdiaeuficara,acimadesta.Apenasnevee
rocha, e pássaros circulando ao alto. Não havia ninguém do lado de fora —
nenhumacidade,nenhumsinaldevida.Nadaqueindicassequeumacidadeinteira
depessoasmoravaalidentro.
Mas não deixei que minha curiosidade, ou qualquer temor remanescente,
transparecesse quando Mor e eu entramos. Rhys, Cassian e Azriel chegariam
minutosdepois.
Haviasentinelasaosportõesdepedra,vestidosnãodepreto,comoeupoderia
tersuspeitado,masdecinzaebranco—trajefeitoparasecamuflarcomafaceda
montanha.Morsequerolhouparaelesaomelevarsilenciosamenteparadentroda
cidadenamontanha.
Meucorpoenrijeceuassimqueaescuridão,ocheiroderochaedefogoede
carneassandomeatingiram.Eutinhaestadoaliantes,sofridoali...
NãoSobaMontanha.AquilonãoeraSobaMontanha.
Defato,acortedeAmaranthaforaotrabalhodeumacriança.
ACortedosPesadeloseraotrabalhodeumdeus.
EnquantoSob aMontanha consistia emuma série de corredores e quartos e
andares,aquela...aquelaeraumaverdadeiracidade.
A passagem pela qual Mor nos levou era uma avenida, e, ao nosso redor,
erguendo-se na escuridão, havia prédios e pináculos, lares e pontes. Uma
metrópole entalhada da pedra escura da própria montanha, nenhum centímetro
deixado de fora ou sem algum adorável e terrível trabalho artístico gravado.
Figurasdançavame fornicavam; imploravame festejavam.Pilastras tinham sido
entalhadas para parecerem vinhas curvas de flores noturnas. Água percorria
pequenoscórregos,eriosbrotavamdocoraçãodaprópriamontanha.
ACidadeEscavada.Umlugardebeleza tão terrívelqueeradifícilmantero
espantoeopesar longedeminhaexpressão.Música já tocavaemalgumlugar,e
nossos anfitriões ainda não haviam vindo nos cumprimentar. As pessoas pelas
quaispassávamos—somenteGrão-Feéricos—estavamvestidaselegantemente,
osrostosmortalmentepálidosefrios.Ninguémnosparou,ninguémsorriuoufez
reverência.
Mor ignorou todos.Nenhuma de nós dissera uma palavra.Rhysme avisara
quenãofalasse—queasparedesalitinhamouvidos.
Mormelevoupelaavenidanadireçãodeoutroconjuntodeportõesdepedra,
escancaradosnabasedoquepareciaserumcastelodentrodamontanha.Oassento
oficialdoGrão-SenhordaCorteNoturna.
Imensas bestas negras cobertas de escamas estavam entalhadas naqueles
portões, todas reunidas em um ninho de garras e presas, dormindo e lutando,
algumas presas emum ciclo eterno, devorando outras. Entre as bestas, heras de
jasmim e de boas-noites. Eu podia jurar que as bestas pareciam se contorcer ao
brilhoprateadodasluzesfeéricastremeluzentesaolongodacidadenamontanha.
OsPortõesdaEternidade;eraassimqueeuchamariaapinturaquelampejaraem
minhamente.
Morprosseguiuatravésdosportões,umlampejodecoredevidanaquelelugar
estranhoefrio.
Elaestampavaumvermelhointenso,ostecidosdeorganzaegazedovestido
sem mangas se ajustavam aos seios e aos quadris de Mor, enquanto fendas
cuidadosamente localizadasdeixavammuitodabarriga e das costas expostas.Os
cabelosdeMorestavamsoltosemumacascatadeondas,epulseirasdeourosólido
reluziam em seus pulsos. Uma rainha — uma rainha que não se curvava a
ninguém,umarainhaqueenfrentaratodosetriunfara.Umarainhaqueeradonado
própriocorpo,davida,dodestino,ejamaissedesculpavaporisso.
Mortomaraumtemponobosquedepinheiroparamevestir,eminhasroupas
eramdeummodelosemelhante,quaseidênticasàquelasqueeuhaviasidoforçada
ausarSobaMontanha.Duasfaixasdetecidoquemalcobriammeusseiosfluíam
atéabaixodoumbigo,ondeumcintonosquadrisprendiaas faixasde tecidoem
umasó,longa,quedesciaporminhaspernasemalcobriaapartedetrás.
Masdiferentedochiffonedascoresalegresqueeuusaraentão,esseerafeitode
umtecidopretoebrilhante,querefletialuzacadaoscilaçãodequadril.
Morarrumarameucabelocomoumacoroanoaltodacabeça—logoatrásdo
diadema preto que tinha colocado diante do penteado, ressaltado por grãos de
diamante que faziam com que brilhasse como o céu noturno. Mor escurecera e
alongarameus cílios, passando uma linha elegante emaliciosa de delineador no
cantoexteriordecadaum.Meuslábios,Morpintaradevermelho-sangue.
E entramos no castelo abaixo da montanha. Havia mais pessoas ali,
perambulando pelos intermináveis corredores, observando cada fôlego que
tomávamos.Alguns se pareciamcomMor, comos cabelos dourados e os lindos
rostos.Atémesmosibilavamparaela.
Mordava risinhospara eles.PartedemimdesejavaqueMor lhes rasgasse a
gargantaemvezdisso.
Por fim,chegamosaumsalãodo tronodeébanopolido.Maisdas serpentes
dosportõesdaentradaestavamentalhadasali...dessavez,enroscadasnasinúmeras
colunas que apoiavam o teto de ônix. Era tão alto que a escuridão escondia os
detalhes mais finos, mas eu sabia que mais delas haviam sido entalhadas ali
também.Eramgrandesbestasparamonitorarasmanipulaçõeseastramasdentro
daquela sala. O próprio trono tinha sido feito de algumas delas, uma cabeça
serpenteavaaoredordecadaladodoencosto...comoseobservassemporcimados
ombrosdoGrão-Senhor.
Umamultidãoestavareunida;e,porummomento,euestavadenovonosalão
do trono deAmarantha, de tão parecida que era a atmosfera, amalícia.De tão
parecidoqueeraoaltardooutrolado.
Umhomemlindo,decabeloslouros,secolocouemnossocaminhonadireção
daqueletronodeébano,eMorparousuavemente.Eusoubequeeraopaidelasem
queohomemdissesseumapalavra.
Elevestiapreto,umdiademadepratanoaltodacabeça.Osolhoscastanhosdo
feéricoeramcomoterraantigaquandoeledisseaMor:
—Ondeeleestá?
Nenhumcumprimento,nenhumaformalidade.Elemeignorouporcompleto.
Mordeudeombros.
—Elechegaquandoquiser.—Elaseguiuemfrente.
OpaideMormeolhouentão.Eobrigueimeurostoaestamparumamáscara
comoadela.Desinteresse.Distância.
O pai de Mor observou meu rosto, meu corpo— e onde achei que veria
escárnio e provocação... não havia nada. Nenhuma emoção. Apenas um frio
desalmado.
SeguiMorantesqueodesprezodestruísseminhamáscaragélida.
Mesasdebanquetecontraasparedesnegrasestavamcobertasdefrutasfartase
suculentas e trançasdepãodourado, interrompidas por carnes assadas, barris de
cidra e cerveja e tortas e tortinhas e pequenos bolos, de todos os tamanhos e
variedades.
Talvez tivesse feito minha boca se encher d’água... Não fosse pelos Grão-
Feéricos em toda a elegância. Não fosse pelo fato de que ninguém tocava na
comida;opodereariquezaestavamemdeixarquefossedesperdiçada.
Morfoidiretoparaoaltardeobsidiana,epareiaopédosdegrausquandoela
ocupouumlugaraoladodotronoedisseparaamultidão,comumavozqueera
nítida,crueleastuta:
—SeuGrão-Senhorseaproxima.Estádepéssimohumor,então,sugiroquese
comportem,anãoserquedesejemseroentretenimentodanoite.
E,antesqueamultidãopudessecomeçaramurmurar,eusenti.Senti...ele.
Aprópriarochasobmeuspéspareceutremer,umabatidapulsanteeconstante.
Seuspassos.Comoseamontanhaestremecesseacadatoque.
Todos naquele salão ficaram mortalmente imóveis. Como se petrificados
porque a própria respiração poderia atrair a atenção do predador que agora
caminhavaemnossadireção.
OsombrosdeMorestavamesticados,eoqueixo,erguido—orgulhobestiale
lascivodiantedachegadadomestre.
Aomelembrardemeupapel,abaixeimeuqueixo,observandoporbaixodas
sobrancelhas.
Primeiro Cassian e Azriel surgiram à porta. O general e o encantador de
sombrasdoGrão-Senhor...eosillyrianosmaispoderososdahistória.
Nãoeramosmachosqueeuconhecera.
Usandopretodebatalha,quedelineavaasformasmusculosas,suasarmaduras
eram complexas, com escamas — os ombros impossivelmente mais largos, os
rostos eram um retrato da brutalidade insensível. Os dois me lembraram, por
algum motivo, das bestas de ébano entalhadas nas pilastras pelas quais eles
passavam.
Mais Sifões, percebi, brilhavam, além daqueles no dorso de cada mão. Um
Sifãonocentrodopeito.Umemcadaombro.Umemcadajoelho.
Porummomento,meusjoelhosfraquejaram,eentendioqueossenhoresdo
acampamento tinham temido nos dois. Se um Sifão era do que a maioria dos
illyrianosprecisavapara controlaropodermortal...CassianeAzriel tinhamsete
cada.Sete.
Os cortesãos tiveram o bom senso de recuar um passo conforme Cassian e
Azrielseguiamemmeioàmultidão,nadireçãodoaltar.Asasasreluziam,asgarras
notopoestavamafiadasobastanteparacortaroar—comoseastivessemafiado.
A concentraçãodeCassian foi diretoparaMor;Azriel se permitiu umolhar
antesdeobservaraspessoasaoredor.Amaioriaseesquivavadoolhardomestre-
espião...emboratremessemaoveraReveladoradaVerdadeaoseulado,alâmina
illyrianadespontandosobreoombroesquerdo.
Azriel,orostocomoumalindamáscarademorte,silenciosamenteprometiaa
todostormentoinfinitoeirrefreável,eatémesmoassombrasestremeciamquando
elepassava.Eusabiaporquê;sabiaporquemeleficariafelizemfazeraquilo.
Tinhamtentadovenderumajovemde17anosemcasamentoparaumsádico
—eentãoabrutalizamdeformasqueeunãopodia,nãomepermitiriaconsiderar.
E aquelas pessoas agora viviam em profundo pavor dos três companheiros que
estavamaoaltar.
Quebom.Deveriamsentirmedodeles.
Medodemim.
E,então,Rhysandsurgiu.
Ele libertara o controle sobre o poder, sobre quem era. O poder de Rhys
tomoucontadosalãodotrono,docastelo,dasmontanhas.Domundo.Nãotinha
fimoucomeço.
Nenhuma asa. Nenhuma arma. Nenhum sinal do guerreiro. Nada além do
elegante e cruelGrão-Senhor que omundo acreditava que ele era. Asmãos de
Rhysandestavamnosbolsos,a túnicapretapareciaengolira luz.Enacabeçade
Rhysestavaumacoroadeestrelas.
Nenhumsinaldomachoquebebianotelhado;nenhumsinaldopríncipecaído,
ajoelhadonacama.OimpactototaldeRhysandameaçoumesobrepujar.
Ali—alieleeraoGrão-Senhormaispoderosoquejánascera.
Orostodesonhosepesadelos.
Os olhos de Rhys encararam os meus brevemente do outro lado do salão
conformeelecaminhouentreaspilastras.Atéo tronoqueera seupordireitode
sangue, sacrifício e poder. Meu próprio sangue cantava diante do poder que
latejavadentrodeRhysand,diantedesuapurabeleza.
Mordesceudoaltaresecolocousobreumjoelhocomumareverênciasuave.
CassianeAzrielacompanharamemseguida.
Assimcomotodosnosalão.
Inclusiveeu.
O piso de ébano estava tão polido que pude ver meus lábios pintados de
vermelho;vermeurostoinexpressivo.Osalãoestavatãosilenciosoquepudeouvir
cadaumdospassosdeRhysemnossadireção.
—Ora,ora—disseele,paraninguémemespecial.—Parecequechegaram
todosnahora,paravariar.
Erguendo a cabeça enquanto aindade joelhos,Cassiandeuummeio sorriso
paraRhys— o comandante doGrão-Senhor encarnado, ansioso para derramar
sangueporele.
AsbotasdeRhyspararamemmeucampovisual.
OsdedospareceramgeloemmeuqueixoquandoRhysergueumeurosto.
O salão inteiro, ainda no chão, observava. Mas aquele era o papel que eu
precisava interpretar. Ser uma distração e uma novidade. Os lábios de Rhys se
curvaramparacima.
—Bem-vindaameular,Feyre,QuebradoradaMaldição.
Abaixei o olhar, os cílios espessos com rímel fizeram cócegas na bochecha.
Rhysemitiuumestalocoma língua,eamão seapertouemmeuqueixo.Todos
repararam na pressão dos dedos dele, no ângulo predatório da cabeça de Rhys
quandoeledisse:
—Venhacomigo.
Umpuxãoemmeuqueixoefiqueidepé.Rhyspassouosolhospormeucorpo,
emepergunteiseseriamesmoapenasatuaçãoquandoelesbrilharamumpouco.
Rhysand me guiou pelos poucos degraus até o altar... até o trono. Ele se
sentou, sorrindo levemente para a monstruosa corte. Rhys dominava cada
centímetrodotrono.Daquelaspessoas.
Ecomumpuxãoemminhacintura,elemecolocounocolo.
AvadiadoGrão-Senhor.QuemeutinhametornadoSobaMontanha...quem
omundoesperavaqueeufosse.Operigosonovobichodeestimaçãoqueopaide
Moragoratentariaavaliar.
AmãodeRhysdeslizouporminhacinturaexposta,eaoutrapercorreuminha
coxanua.Frias—asmãosestavamtãofriasquequasegritei.
Eledeviatersentidoquandomeencolhisilenciosamente.Umsegundodepois,
asmãosestavammornas.OpolegardeRhys,curvando-separaointeriordeminha
coxa,fezumacarícialentaelonga,comosedissesse:Desculpe.
Rhys chegou a se inclinar para aproximar a boca deminha orelha, bastante
ciente dequeos súditos não tinham se levantado.Como se, certa vez, hámuito
tempo,otivessemfeitosemserordenadosetivessemaprendidoasconsequências.
Rhysandsussurrouparamim,comaoutramãoagoraacariciandoapeleexpostade
minhascostelasemcírculospreguiçosos,indolentes:
—Tentenãodeixarlhesubiràcabeça.
Eusabiaquetodospodiamouvir.Eletambém.
Encarei as cabeças curvadas dos súditos,meu coração batia forte,mas falei,
comasuavidadedameia-noite:
—Oquê?
OhálitodeRhysacariciouminhaorelha, idênticoàquelequeelemesoprara
umahoraantesnocéu.
—Quecadamachoaquiestáconsiderandodequeestariadispostoaabrirmão
parateressasuaboquinhalindaevermelhaparasi.
Espereiqueoruboreatimideztomassemconta.
Maseueralinda.Eraforte.
Tinha sobrevivido... triunfado. Como Mor tinha sobrevivido àquela casa
terrível,venenosa...
Então, sorri de leve, o primeiro sorriso de minha nova máscara. Que eles
vissemaquelalindabocavermelhaemeusdentesbrancoseretos.
AmãodeRhysdeslizoumaisparacimaemminhacoxa,otoqueterritorialde
um macho que sabia que era dono de alguém, de corpo e alma. Rhys tinha se
desculpado com antecedência por aquilo, por aquele jogo, aqueles papéis que
precisaríamosinterpretar.
Mas eume inclinei nadireçãodaquele toque,me inclinei para trás no corpo
firmeequente.EstavatãopertodeRhysqueconseguisentirotremorgravedesua
vozquandoeledisseparaacorte:
—Depé.
Comoum,eles se levantaram.Ridealgunsdeles,gloriosamenteentediadae
infinitamentedivertida.
Rhys roçou o nó de um dedo contra a parte interna demeu joelho, e cada
nervodemeucorpoficoutensoàqueletoque.
—Vãobrincar—disseRhysatodos.
Elesobedeceram,amultidãosedispersou,músicasurgiudeumcantodistante.
—Keir—falouRhys,comavozperfurandoosalãocomorelâmpagoemuma
noitedetempestade.
EratudooqueeleprecisavafazerparaconvocaropaideMoraopédoaltar.
Keir fez nova reverência, o rosto estampando ressentimento gélido ao observar
Rhys,e,depois,amim...olhandoumavezparaMoreosillyrianos.Cassiandeua
Keir um aceno lento que disse a ele que o illyriano se lembrava— e jamais se
esqueceria — do que o administrador da Cidade Escavada tinha feito com a
própriafilha.
MaseradeAzrielqueKeirseesquivava.DavisãodaReveladoradaVerdade.
Umdia,percebi,Azrielusariaaquela lâminanopaideMor.E levariamuito,
muitotempoparaabrirohomem.
—Relatório—disseRhys,acariciandominhascostelascomonódodedo.Ele
deuumacenodecabeçaparadispensarCassian,MoreAzriel, eo trio sumiuna
multidão.Emumsegundo,Azriel tinha sedissipadoemsombrasepartido.Keir
nemmesmosevirou.
DiantedeRhys,Keirnãopassavadeumacriançaemburrada.Maseusabiaque
opaideMor eramaisvelho.Muitomaisvelho.Oadministrador se agarrava ao
poder,aoqueparecia.
Rhyserapoder.
— Saudações, senhor — cumprimentou Keir, a voz grave polida até se
suavizar.—Esaudaçõesasua...convidada.
AmãodeRhysespalmouminhacoxaquandoele inclinoua cabeçaparame
olhar.
—Encantadora,nãoé?
—De fato— respondeuKeir, abaixando os olhos.—Há pouco a relatar,
senhor.Tudoestácalmodesdeaúltimavisita.
—Ninguémparaeupunir?—Umgatobrincandocomacomida.
—Anãoserquequeiraqueeuselecionealguémaqui,não,senhor.
Rhysemitiuumestalocomalíngua.
—Quepena.—Elemeobservoudenovoe,depois,seaproximouparapuxar
minhaorelhacomosdentes.
E maldição, eu me inclinei ainda mais para trás quando os dentes de Rhys
puxarampara baixonomesmomomento emqueo polegar subiupela lateral de
minhacoxa,percorrendoapelesensívelcomumtoquelongoelascivo.Meucorpo
ficourelaxadoetensoaomesmotempo,eminharespiração...MalditoCaldeirãode
novo, o cheiro, algo cítrico e o mar, o poder escorrendo de Rhys... minha
respiraçãofalhouumpouco.
EusabiaqueRhystinhapercebido;sabiaquesentiraaquelamudançaemmim.
Osdedosficaramimóveisemminhaperna.
Keir começou amencionar pessoas que eu não conhecia da corte, relatórios
casuaissobrecasamentosealianças,disputasdefamília,eRhysodeixoufalar.
Opolegarmeacaricioudenovo—dessavezjuntocomoindicador.
Um rugido constante preenchia meus ouvidos, abafava tudo exceto aquele
toquenaparte internademinhaperna.Amúsica latejava,antiga, selvagem,eas
pessoasseesfregavamaosomdela.
Comosolhosnoadministrador,Rhysacenavavagamentedevezemquando.
Enquantoosdedoscontinuavamascarícias lentaseconstantesemminhascoxas,
subindoacadatoque.
Aspessoasobservavam.Mesmoenquantobebiamecomiam,mesmoenquanto
algumas dançavam em pequenos círculos, as pessoas observavam. Eu estava
sentada no colo de Rhys, seu brinquedinho pessoal, cada toque era visível às
pessoas...noentanto,podíamosmuitobemestarasós.
Keirlistouasdespesaseoscustosdeadministraracorte,eRhysdeumaisum
breveacenodecabeça.Dessavez,onarizroçouolugarentremeupescoçoemeu
ombro,seguidoporumacaríciapassageiracomaboca.
Meusseiosenrijeceram,tornando-sefartosepesados,doendo—doendocomo
aquilo que agora se acumulava dentro de mim. Calor encheu meu rosto, meu
sangue.
MasKeirdisse,porfim,comoseoautocontroletivesseescapadodacoleira:
—Ouviosboatosenãoacrediteimuito.—Seuolharrecaiusobremim,sobre
meusseios,firmessobasdobrasdovestido,sobreminhaspernas,maisabertasdo
queestavamminutosantes,esobreamãodeRhysemterritórioperigoso.—Mas
pareceverdade:obichodeestimaçãodeTamlinagoratemoutromestre.
—Deveriavercomoeuafaçoimplorar—murmurouRhys,cutucandomeu
pescoçocomonariz.
Keirentrelaçouasmãosàscostas.
—Presumoqueatenhatrazidocomoumadeclaração.
—Vocêsabequetudoquefaçoéumadeclaração.
—É claro.Essa, ao que parece, você gosta de vestir com teias de aranha e
coroas.
AmãodeRhysparou,emesenteimaiseretaaoouvirotomdevoz,onojo.E
disseparaKeir,comumavozquepertenciaaoutramulher:
—Talvezeucoloqueumacoleiraemvocê.
AaprovaçãodeRhysdeubatidinhasemmeuescudomental,amãoemminhas
costelasagoraformavacírculospreguiçosos.
—Elagostadebrincar—ponderouele,sobremeuombro.—Rhysindicouo
administradorcomoqueixo.—Peguevinhoparaela.
Purocomando.Nenhumaeducação.
Keirenrijeceuocorpo,massaiuandando.
Rhys não ousou sair do personagem, mas o leve beijo que deu sob minha
orelhamedisseobastante.Desculpaegratidão—emaisdesculpas.Nãogostava
daquilomaisqueeu.Mas,paraconseguiroqueprecisava,paraganhartempopara
Azriel...eleofaria.Eeutambém.
Imaginei,então,comasmãosdelesobmeusseioseentreminhaspernas,oque
Rhys não daria de si. Imaginei se... se talvez a arrogância e o orgulho... se
ocultariamummachoquetalvezachassequenãovaliamuito.
Uma nova música começou, como mel gotejando, e depois se desenvolveu
paraumventoágil,pontuadoportamboresmelódicos,incansáveis.
Eumevirei,observandoorostodeRhys.Nãohavianadadecalorosonaqueles
olhos,nadadoamigoqueeufizera.Abrioescudoosuficienteparadeixarqueele
entrasse.Oquê?AvozdeRhysentrouemminhamente.
Percorrialigaçãoentrenós,acariciandoaquelamuralhadeébanoadamantino.
Umapequenafendaseabriu...apenasparamim.Efaleiparadentrodela:Você é
bom,Rhys.Vocêégentil.Essamáscaranãomeassusta.Vejovocêporbaixodela.
As mãos de Rhys se apertaram sobre mim, e ele me encarou quando se
aproximoupararoçarabocacontraminhabochecha.Foirespostasuficiente—e...
umalibertação.
Eumeinclineiumpoucomaiscontraeleeabri levementeaspernas.Por que
parou?,faleiparasuamente,paradentrodeRhys.
Um grunhido quase silencioso reverberou contra mim. Rhysand acariciou
minhas costelas de novo, ao ritmo da batida da música, o polegar se erguendo
quaseosuficientepararoçarmeusseios.
Deixeiacabeçasereclinarparatrás,emseuombro.
Eume liberteidapartedemimqueouvia aspalavrasdeles—vadia, vadia,
vadia...
Libertei-medapartequeacompanhavaaquelaspalavras—traidora,mentirosa,
vadia...
Esimplesmentemetornei.
Eumetorneiamúsica,ostamboreseacoisaselvagemesombrianosbraçosdo
Grão-Senhor.
OsolhosdeRhysestavamcompletamentevidrados...enãoporpoderouódio.
Algovermelho incandescenteeemolduradoporescuridãoreluzenteexplodiuem
minhamente.
PasseiamãopelacoxadeRhys,sentindoaforçadoguerreiroocultoali.Puxei
a mão para cima de novo, em uma carícia longa, distraída, precisando tocá-lo,
senti-lo.
Euestavaprestesapegarfogoequeimar.Começariaaqueimarbemali...
Calma, disse Rhys, com um interesse malicioso, pela fenda aberta em meu
escudo.Sevocêsetornarumavelaviva,opobreKeirvaidarumataque.Eentãovai
estragarafestadetodos.
Porqueofogomostrariaatodosqueeunãoeranormal—esemdúvidaKeir
informariaaosquasealiadosnaCorteOutonal.Oualgumdaquelesmonstrosda
corteinformaria.
Rhysmoveuosquadris,esfregando-secontramimcomtantapressãoque,por
umsegundo,nãomeimporteicomKeir,oucomaCorteOutonal,oucomoque
Azrielpoderiaestarfazendonaquelemomentopararoubaraesfera.
Eu estava tão fria, tão solitária, por tanto tempo, e meu corpo gritava ao
contato,àalegriadesertocadaeabraçadaeestarviva.
Amãoqueestavaemminhacinturadeslizouparaoabdômen,agarrando-seao
cinto baixo. Apoiei a cabeça entre o ombro e o pescoço de Rhys, encarando a
multidãoconformeelesmeencaravam,saboreandocada lugaremqueRhyseeu
nostocávamos,equerendomais,mais,mais.
Porfim,quandomeusanguecomeçouaferver,quandoRhysdeslizouonódo
dedo sob meu seio, olhei para onde eu sabia que Keir estava parado, nos
observando,meuvinhoesquecidonamão.
Nósdoisolhamos.
Oadministradorencarava,semdisfarçar,conformeseencostavaàparede.Sem
saber se deveria interromper. Meio apavorado de fazer isso. Nós éramos sua
distração.NóséramosacartanamangaenquantoAzroubavaaesfera.
EusabiaqueRhysaindaencaravaKeirquandoapontadalínguadeslizoupor
meupescoço.
Arqueeiascostas,aspálpebraspesadas,respiraçãoentrecortada.Euqueimaria
equeimariaequeimaria...
Achoqueeleestátãoenojadoquepoderiamedaraesferaapenasparasairdaqui,
disseRhys,emminhamente,comaoutramãoescorregandoperigosamenteparao
sul. Mas havia um desejo tão crescente ali, e eu não usava nada abaixo para
disfarçarasconsequênciasseRhysdeslizasseamãoumpoucomaisparacima.
Vocêeeudamosumshowetanto,falei,devolta.Apessoaquedisseisso,coma
vozroucaeabafada—eujamaisouviraaquelavozsairdemimantes.Mesmoem
minhamente.
AmãodeRhys deslizoupara a parte de cimademinha coxa, e os dedos se
curvaramparadentro.
Eume esfreguei contra Rhys, tentando afastar suasmãos do que ele estava
prestesadescobrir...
Emedeicontadequeeleestavadurocontraminhascostas.
Cada pensamento se esvaiu deminha cabeça.Apenas a adrenalina do poder
permaneceuenquantoeumeesfregavaaolongodaquelaextensãoimpressionante.
Rhyssoltouumarisadagraveerouca.
Keir apenasobservava eobservava eobservava.Rígido.Horrorizado.Preso
ali,atéqueRhysodispensou—eelenãopensouduasvezesnomotivo.Ouem
paraondeteriaidoomestre-espião.
Então,mevireidenovo,encareiosolhosagoraincandescentesdeRhysande
lhelambiaextensãodopescoço.Ventoemarealgocítricoesuor.Aquiloquase
medestruiu.
Olhei para a frente, e Rhys passou a boca por minha nuca, logo acima da
coluna, no momento em que me movi contra a ereção que estava pressionada
contramim, insistente, dominante. Exatamente quando a mão dele deslizou um
poucomaisaltonaparteinternademinhacoxa.
SentiaconcentraçãopredatóriasevoltardiretoparaaumidadequeRhysand
sentiuali.Provademeucorpotraidor.OsbraçosdeRhysficaramtensosemvolta
demeucorpo,emeurostocorou—talvezumpoucoporvergonha,mas...
Rhyssentiuminhaconcentraçãoseextinguindoemeufogoseinsinuando.Não
temproblema,disseele,masaquelavozmentalpareciasemfôlego.Não quer dizer
nada.Éapenasseucorporeagindo...
Porque você é tão irresistível? Minha tentativa de desviar do assunto pareceu
forçada,atémesmonamente.
MasRhysgargalhou,provavelmentepormim.
Nós dançávamos, provocávamos e implicávamos um com o outro durante
meses.Etalvezfosseareaçãodemeucorpo,talvezfosseareaçãodocorpodele,
masogostodeRhysameaçavamedestruir,meconsumire...
Outromacho.Eutiveasmãosdeoutromachoemmeucorpointeiroquando
Tamlineeutínhamosacabado...
Lutandocontraanáusea,estampeiumsorrisosonolentoeenvoltoemluxúria
no rosto.Nomomento emqueAzriel voltouparadar umaceno sutil de cabeça
paraRhys.Eletinhaconseguidoaesfera.
Mordeslizoudiretoparaomestre-espião,percorrendocommãossenhoriaisos
ombrosdeAzriel,opeito,conformeeladavaavoltaparaencará-lo.Amãocoberta
de cicatrizes deAz envolveu a cintura exposta deMor, apertando-a uma vez.A
confirmaçãodequeMorprecisavatambém.
ElaofereceuumbrevesorrisoaAzrielquesemdúvidainiciariaboatos,esaiu
andando para a multidão de novo. Estonteante, uma distração, deixando que
pensassemqueAzestiveraaliotempotodo,deixandoqueseperguntassemseMor
tinhaestendidoaAzumconviteparasuacama.
AzrielapenasencarouMor,distanteeentediado.Eumepergunteiseeleseria
tãoperturbadopordentroquantoeuera.
Rhys flexionou o dedo paraKeir, o qual, fazendo uma careta na direção da
filha,seaproximouaos tropeçoscommeuvinho.Elemal tinhaalcançadooaltar
quandoopoderdeRhystomouovinhodoadministrador,fazendoataçaflutuar
aténós.
Rhys apoiou a taçano chão, ao ladodo trono; aquela havia sidouma tarefa
idiotaquederaaKeirparalembraroadministradordoquantoeleeraimpotente,
dequeaqueletrononãoeradele.
—Devoprovarparaversetemveneno?—perguntouRhys,enquantodizia
paraminhamente:Cassianestáesperando.Vá.
Rhystinhaamesmaexpressãodesnorteadadedesejonorostoperfeito,masos
olhos...EunãoconseguialerassombrasnosolhosdeRhys.
Talvez... talvez, apesarde toda a provocação, depois deAmarantha, ele não
quisesse ser tocado por umamulher daquela forma.Nemmesmo gostava de ser
desejadodaquelaforma.
Eu tinha sido torturada e atormentada, mas os horrores de Rhys haviam
passadoparaoutronível.
—Não,meusenhor—grunhiuKeir.—Eujamaisousaria feri-lo.—Mais
umadistração,aquelaconversa.Tomei issocomominhadeixaparacaminharaté
Cassian, que estavagrunhindo ao ladodeumapilastra para qualquer umque se
aproximasse.
Senti os olhos da corte deslizarem para mim, senti quando farejaram
delicadamente o que estava tão obviamente estampado em meu corpo. Mas,
quandopasseiporKeir,mesmocomoGrão-Senhoremminhascostas,elesibilou,
quasebaixodemaisparaserouvido:
—Vaireceberoquemerece,vadia.
Noiteexplodiunosalão.
Pessoasgritaram.E,quandoaescuridãosedissipou,Keirestavadejoelhos.
Rhys ainda estava sentado no trono. O rosto era uma máscara de ódio
congelado.
Amúsica parou.Mor surgiu à frente damultidão—a expressão estampava
umasatisfaçãoarrogante.MesmoenquantoAzrielseaproximavadoladodeMor,
pertodemaisparaparecercasual.
—Peçadesculpas—disseRhys.Meucoraçãobateuforteaopurocomando,à
iraprimitiva.
OsmúsculosdopescoçodeKeirsecontraíramesuorescorreuporseulábio.
—Eudisse—entoouRhys,comumacalmatãoterrível—peçadesculpas.
Oadministradorgemeu.Equandooutrosegundosepassou...
Ossoestalou.Keirgritou.
Eeuobservei...observeiseubraçoserfraturadonãoemdois,nãoemtrês,mas
emquatro partes diferentes, a pele ficando esticada e frouxa em todos os lugares
errados...
Outroestalo.OcotovelodeKeirsedesintegrou.Meuestômagoserevirou.
Keircomeçouachorar,as lágrimaseramemparteódio,a julgarpela iranos
olhos enquanto me encarou, e depois virou para Rhys. Mas os lábios do
administradorformaramapalavraDesculpe.
Osossosdooutrobraçosepartiram,efoidifícilnãoencolherocorpo.
RhyssorriuquandoKeirgritoudenovo;depois,disseaosalão:
—Devomatá-loporisso?
Ninguémrespondeu.
Rhysriu.Eledisseaoadministrador:
—Quandoacordar,nãodeveverumcurandeiro.Seeusouberqueviu...—
Outroestalo,omindinhodeKeirficoumole.Omachogritou.Ocalorquefervera
meusanguesetornougelo.—Seeusouberqueviu,voucortarvocêempedaçose
enterrá-losondeninguémconseguiráemendá-lodenovo.
OsolhosdeKeirsearregalaramcomterrorverdadeiroagora.Então,comose
amãoinvisíveldealguémotivesseapagado,oadministradordesabounochão.
Rhysdisse,paraninguémemespecial:
—Jogue-onoquarto.
Dois machos que pareciam primos ou irmãos de Mor se adiantaram,
recolhendo o administrador. Mor os observou, com um leve riso de escárnio,
emboraestivessepálida.
Eleacordaria.FoioqueRhysfalou.
EumeobrigueiacontinuarandandoquandoRhysconvocououtromembroda
corteparadarrelatóriossobrequaisquerquefossemosassuntostriviais.
Masminhaatençãopermaneceunotronoatrásdemim,mesmoquandofuipara
oladodeCassian,desafiandoacorteaseaproximar,abrincarcomigo.Ninguémo
fez.
Edurantealongahoradepoisdisso,minhaconcentraçãopermaneceuemparte
noGrão-Senhorcujasmãoseabocaeocorpotinhamsubitamentemefeitosentir
desperta — queimando. Não me fez esquecer, não me fez apagar feridas ou
tristezas,apenasmetornou...viva.Eumesenticomoseestivessedormindohavia
um ano, dentro de um caixão de vidro, eRhys tivesse acabado de quebrar esse
caixãoemesacudidoatéqueeurecobrasseaconsciência.
O Grão-Senhor cujo poder não tinha me assustado. Cuja ira não tinha me
destruído.
Eagora...agoraeunãosabiaondetudoissomedeixava.
Submersaatéosjoelhosemproblemaspareciaumbomlugarparacomeçar.
OventorugiaemvoltademimeRhysconformeeleatravessavadocéuacimada
corte.MasVelarisnãonosrecebeu.
Emvezdisso,estávamosdepéàmargemdeumlagomontanhosoiluminado
peloluarecercadoporpinheiros,bemacimadomundo.Deixamosacortecomo
chegamos—comarrogânciaedeformaameaçadora.AondeCassian,AzrieleMor
tinhamidocomaesfera,eunãofaziaideia.
Sozinhonabeiradolago,Rhysfalou,avozrouca:
—Desculpe.
Pisquei.
—Quemotivovocêteriaparasedesculpar?
As mãos de Rhys tremiam... como consequência da fúria devido ao
xingamentoqueKeirdirecionouamim,aoqueeleameaçara.Talveznos tivesse
levadoatéláantesdevoltarmosparacasaatrásdealgumaprivacidadeantesdeos
amigosinterromperem.
—Eunãodeveriatê-ladeixadoir.Deixadoquevisseaquelapartedenós.De
mim.—EujamaisviraRhystãoaberto,tão...hesitante.
—Estoubem.—Eunãosabiaoquepensararespeitodoqueforafeito.Tanto
entrenósquantocomKeir.Mastinhasidominhaescolha.Interpretaraquelepapel,
vestir aquelas roupas. Deixar que Rhys me tocasse. Mas... falei devagar: —
Sabíamosoqueestanoiteexigiriadenós.Porfavor,porfavor,nãocomece...ame
proteger.Nãodessaforma.—Elesabiaoqueeuqueriadizer.Tinhameprotegido
SobaMontanha,masaqueleódioprimitivodemachoquemostraraaKeir...Um
escritóriodestruídosujodetintasurgiuemminhamemória.
—Eununca,nuncaavoutrancafiar,obrigá-laaficarparatrás.Mas,quando
eleaameaçouestanoite,quandoachamoude...—Vadia.Eracomochamavama
ele. Durante cinquenta anos, sibilavam aquilo. Eu ouvira Lucien disparar as
palavrasnacaradeRhys.Elesoltouumfôlegoentrecortado.—Édifícilsegurar
meusinstintos—explicouRhys,avozrouca.
Instintos.Exatamentecomo...comooutrapessoatinhainstintosdeproteger,de
meesconder.
—Então,deveriatersepreparadomelhor—disparei.—Pareciaestarmuito
bematéqueKeirfalou...
—Matareiqualquerumquefaçamalavocê—grunhiuRhys.—Matarei e
demorareimuitofazendoisso.—Eleficousemfôlego.—Váemfrente.Podeme
odiar...medesprezar.
—Você émeuamigo—declarei, eminha voz falhou na palavra.Odiei as
lágrimas que me escorreram pelo rosto. Nem mesmo sabia por que estava
chorando.Talvezdevidoaofatodequetinhaparecidorealnaqueletronocomele,
mesmo que por ummomento, e... e provavelmente não fora. Não para ele.—
Você é meu amigo, e entendo que é Grão-Senhor. Entendo que defenderá sua
verdadeiracorte,epuniráameaçascontraela.Masnãoposso...Nãoqueroquepare
demecontar as coisas,demeconvidarpara fazer coisas, por causadas ameaças
contramim.
Escuridãoondulou,easasseabriramnascostasdeRhys.
—Nãosouele—sussurrouRhys.—Jamais serei ele, agirei comoele.Ele
trancafiouvocêeadeixoudefinharemorrer.
—Eletentou...
—Paredecomparar.Paredemecompararaele.
Aspalavrasmeinterromperam.Pisquei.
—Acha que não sei como as histórias são escritas, como esta história será
escrita?—Rhyslevouasmãosaopeito,orostomaisaberto,maisangustiadodo
queeujávira.—Souosenhorsombrioqueroubouanoivadaprimavera.Souum
demônioeumpesadelo,etereiumfinaltriste.Eleéopríncipedeouro,oheróique
poderáficarcomvocêcomorecompensapornãomorrerdeburriceouarrogância.
Ascoisasqueamotêmumatendênciaasertiradasdemim.RhysadmitiraissoSob
aMontanha.
Mas suas palavras eram como combustível para meu temperamento, para
qualquerpoçodemedoqueestivesseseabrindodentrodemim.
—Equantoaminhahistória?—sibilei.—Equantoaminharecompensa?E
quantoaoqueeuquero?
—Oquevocêquer,Feyre?
Nãotiveresposta.Nãosabia.Nãomais.
—Oquevocêquer,Feyre?
Fiqueiemsilêncio.
ArisadadeRhyssaiuamargamentesuave.
—Foioquepensei.Talvezdevessetirarumtempoparadescobririssoumdia
desses.
—Talvezeunãosaibaoquequero,maspelomenosnãoescondooquesou
atrásdeumamáscara—argumentei,fervilhando.—Pelomenosdeixoquevejam
quemsou,pedaçosquebradosetudo.Sim,éparasalvarseupovo.Masequantoàs
outrasmáscaras,Rhys?Equantoadeixarqueseusamigosvejamseuverdadeiro
rosto? Mas talvez seja mais fácil não o fazer. Porque o que acontece se deixar
alguémentrar?Eseapessoavirtudo,masaindaassimderascostas?Quempoderia
culpá-la,quemiriaquererlidarcomessetipodeconfusão?
Eleseencolheu.
OGrão-Senhormaispoderosodahistóriaseencolheu.Eeusabiaqueotinha
atingidocomforça...eprofundamente.
Muitaforça.Muitoprofundamente.
—Rhys—falei.
—Vamosparacasa.
Apalavrapairouentrenós,emepergunteiseelearetiraria—mesmoquando
esperei queminhabocadisparasse quenão eraminha casa.Mas pensar nos céus
azuislimposefrescosdeVelarisaopôrdosol,afaíscadasluzesdacidade...
Antesqueeupudessedizerquesim,Rhyspegouminhamão,semmeencarar,
enosatravessou.
Oventoparecia vazio conforme rugia aonosso redor, a escuridão era fria e
estranha.
Cassian,AzrieleMorestavam,defato,esperandonacasadacidade.Deiboa-noite
aelesenquantocercavamRhysandembuscaderespostasarespeitodoqueKeir
tinhaditoparaprovocá-lo.
Euaindaestavacomovestido—quepareciavulgaremVelaris—,masme
pegueiseguindoparaojardim,comoseoluareofriopudessempurificarminha
mente.
Noentanto,sequisessesersincera...Euesperavaporele.Oquetinhadito...
Eu forahorrível.Rhysmecontouaquelessegredos,aquelasvulnerabilidades
emconfidência.Eeuasatireinacaradele.
Porqueeusabiaqueomachucaria.EsabiaquenãoestavafalandosobreRhys,
nãodeverdade.
Minutossepassaram,anoiteaindapareciafriaobastanteparamelembrarde
que a primavera não tinha chegado de vez, e estremeci, esfregando os braços
conformealuacruzavaocéu.Ouviaafonteeamúsicadacidade...Elenãoveio.
EunãotinhacertezadoquesequerdiriaaRhys.
SabiaqueeleeTamlineramdiferentes.SabiaquearaivaprotetoradeRhysand
naquelanoiteforajustificada,queeuteriaumareaçãosemelhante.Estavasedenta
porsangueaoouvirosmínimosdetalhesdosofrimentodeMor,queriapuni-lospor
aquilo.
Eu conhecia os riscos. Sabia que ficaria sentada em seu colo, tocando-o,
usando-o.Eu o estava usando havia um tempo agora. E talvez devesse contar a
Rhysquenão...nãoqueriaouesperavanadadele.
TalvezRhysandprecisasseflertarcomigo,meprovocar,comodistraçãoepara
terumsensodenormalidade,tantoquantoeu.
Etalvezeutivesseditooquedisseaeleporque...porquepercebiquepoderia
muitobemserapessoaquenãodeixavaninguémmeconhecer.Enaquelanoite,
quandoRhysseencolheudepoisqueviucomoelemeafetava...aquiloesmagara
algoemmeupeito.
Eu tinha sentido ciúmes... de Cresseida. Estava tão profundamente infeliz
naquelabarcaporquequeriaseraquelaparaquemelesorriadaquelaforma.
Esabiaqueeraerrado,mas...NãoachavaqueRhysmechamariadevadiase
euquisesse...seeuoquisesse.Nãoimportavaquãopoucotempotinhasepassado
depoisdeTamlin.
E seus amigos também não. Não quando haviam sido chamados da mesma
coisa,oupior.
Eaprenderamaviver—eaamar—depoisdisso.Apesardisso.
Então,talvezfosseahoradeconfessarissoaRhysand.Deexplicarqueeunão
queria fingir. Não queria ignorar como se fosse uma piada, um plano ou uma
distração.
E seria difícil, e eu estava commedo, e talvez fosse difícil lidar com aquilo,
mas...euestavadispostaatentar—comele.Tentar...seralgumacoisa.Juntos.Se
aquiloerapuramentesexual,ouseeramais,ouummeio-termo,oualémdisso,eu
nãosabia.Nósdescobriríamos.
Euestavacurada—oumecurando—osuficienteparaquerertentar.
Seeleestivessedispostoatentartambém.
Senãodesseascostasquandoeudissesseoquequeria:ele.
NãooGrão-Senhor,nãoomachomaispoderosodahistóriadePrythian.
Apenas... ele. A pessoa que mandara música para aquela cela; que pegara
aquela faca no trono de Amarantha para lutar por mim quando ninguém mais
ousou,equecontinuoulutandopormimtododiadesdeentão,recusando-seame
deixardesabaredefinhar.
Então,espereiporRhysnojardimfriosoboluar.
Maselenãoveio.
Rhysnãoapareceunocafédamanhã.Ounoalmoço.Nãoestavanemnacasa.
Euatéescreviumbilhetenoúltimopapelqueusamos.
Querofalarcomvocê.
Espereitrintaminutosatéopapelsumir.
Maselepermaneceunapalmademinhamão—atéqueoatireiaofogo.
Eufiqueitãoirritadaquesaíandandopelasruasbatendoospés,emalreparei
que o dia estavamorno, ensolarado, que o próprio ar agora parecia envolto em
limão e flores selvagens e grama nova. Agora que tínhamos a esfera, ele sem
dúvida entraria emcontato comas rainhas.Asquais semdúvidadesperdiçariam
nossotempo,apenasparanoslembrardequeeramimportantes;queelastambém
tinhampoder.
PartedemimdesejavaqueRhyspudesse lhes esmagarosossos, como tinha
feitocomKeirnanoiteanterior.
Fui para o apartamento de Amren do outro lado do rio, precisando da
caminhadaparaespairecer.
Oinvernotinha,defato,cedidolugaràprimavera.Quandochegueiàmetade
do caminho,meu sobretudo estava jogado sobreo braço, emeu corpo, brilhoso
comsuorsobosuéterpesadocordecreme.
EncontreiAmrendamesmaformaqueaviradaúltimavez:curvadasobreo
Livro,papéisespalhadosaoredor.Apoieiocorponobalcão.
Amrenfalou,semerguerorosto:
—Ah.OmotivopeloqualRhysquisarrancarminhacabeçaessamanhã.
Encosteinobalcão,franzindoatesta.
—Paraondeelefoi?
—Caçarquematacouvocêsontem.
Se tinham flechas de freixo no arsenal... Tentei acalmar a preocupação
profunda.
—AchaquefoiaCorteEstival?—Orubidesangueaindaestavanochão,
ainda usado como peso de papel contra a brisa do rio que soprava das janelas
abertas.OcolardeVarianestavaagoraaoladodacamadeAmren.Comoseela
tivessecaídonosonoolhandoparaele.
—Talvez—ponderou,passandoodedoporuma linhade texto.Eladevia
estarrealmenteabsorta,parasequerseincomodarcomosangue.Penseiemdeixá-
lasozinha.MasAmrencontinuou:—Independentementedisso,parecequenossos
inimigoscolocaramumrastreadornamagiadeRhys.Oquesignificaquepodem
encontrá-loquandoeleatravessaparaqualquer lugar,ouseusaseuspoderes.—
Amrenpor fim ergueuo rosto.—Vocês vãodeixarVelaris emdois dias.Rhys
querque se posicionememumdos acampamentos deguerra illyrianos, deonde
voarãoatéasterrashumanasquandoasrainhasmandaremnotícias.
—Porquenãohoje?
—Porque aQuedadasEstrelas é amanhã à noite, a primeira que passamos
juntosemcinquentaanos.Espera-sequeRhysparticipe,emmeioaopovo.
—OqueéQuedadasEstrelas?
OsolhosdeAmrenbrilharam.
—Foradestas fronteiras,o restodomundocelebra adatade amanhã como
Nynsar,oDiadasSementeseFlores.—Quasemeencolhiaoouviraquilo.Não
tinhapercebidoquantotempohaviasepassadodesdequeeuchegaraali.—Masa
Queda das Estrelas — falou Amren —, apenas na Corte Noturna é possível
testemunhá-la,apenasnesteterritórioaQuedadasEstrelasécomemoradanolugar
das festividades de Nynsar. O restante, o porquê disso, você vai descobrir. É
melhorseforsurpresa.
Bem, isso explicavaporque as pessoas pareciam já estar se preparandopara
algumtipodecomemoração:Grão-Feéricosefeéricoscorrendoparacasacomos
braços cheios de buquês de flores selvagens de cores vibrantes, e laços de fita e
comida.Asruaseramvarridaselimpas,asfachadasdaslojas,arrumadascommãos
ágeisehabilidosas.
—Vamosvoltarparacádepoisdepartirmos?—perguntei.
AmrenvoltouparaoLivro.
—Nãoporumtempo.
Algoemmeupeitocomeçouaafundar.Paraumimortal,umtempodeviaser...
muitotempo.
Tomeiaquilocomoumconviteparapartir,eseguiatéaportanosfundosdo
apartamento.MasAmrendisse:
—QuandoRhysvoltou, depois deAmarantha, ele eraum fantasma.Fingia
quenãoera,masera.Vocêofezrecuperaravida.
As palavras ficaram emperradas, e eu não quis pensar naquilo, não quando
qualquer que fosse o bem que eu tivesse feito, qualquer que fosse o bem que
tínhamosfeitoumparaooutro,pudessetersidovarridopeloqueeudisseraaRhys.
Então,falei:
—Eletemsorteportertodosvocês.
—Não—rebateuAmren, baixinho, commais suavidadedoque eu jamais
ouvira.—Nós temossortedetê-lo,Feyre.—Eumevireidaporta.—Conheci
muitos Grão-Senhores — continuou Amren, estudando o papel. — Cruéis,
espertos,fracos,poderosos.Masnuncaumquesonhava.Nãocomoele.
—Sonhacomoquê?—Sussurrei.
—Compaz.Comliberdade.Comummundounido,ummundoquefloresça.
Comalgomelhor...paratodosnós.
—Eleachaqueserálembradocomoovilãodahistória.
Amrenriucomdeboche.
—Maseumeesquecidecontaraele—falei,baixinho,abrindoaporta—que
ovilãocostumaserapessoaquetrancafiaadonzelaejogaachavefora.
—Ah?
Deideombros.
—Foielequemmelibertou.
Sevocêsemudouparaoutrolugar,escrevi,depoisdesairdoapartamentodeAmren
evoltarparacasa,poderiaaomenostermedadoaschavesdestacasa.Sempredeixoa
portadestrancadaquandosaio.Estáficandotentadordemaisparaladrões.
Nenhumaresposta.Acartanemmesmosumiu.
Tentei depois do café damanhã, nodia seguinte—amanhãdaQuedadas
Estrelas.CassiandizquevocêestáemburradonaCasadoVento.Quecomportamento
maisindignodeumGrão-Senhor.Emeutreinamento?
Denovo,nenhumaresposta.
Minhaculpae...eoquemais fosseaquilo...começouamudar.Malconsegui
mecontrolarparanãorasgaropapelquandoescrevio terceirobilhetedepoisdo
almoço.
Issoépunição?OuaspessoasemseuCírculoÍntimonãorecebemsegundaschances
quandooirritam?Vocêéumcovardedesprezível.
Euestava saindodabanheira, e a cidade fervilhava comos preparativosdas
festividadesaopôrdosol,quandoolheiparaamesanaqualtinhadeixadoacarta.
Eavisumir.
NualaeCerridwenchegaramparameajudaramevestir,etenteinãoencarara
mesaconformeesperava,esperavaeesperavapelaresposta.
Elanãoveio.
Mas,apesardacarta,apesardaconfusãoentrenós,quandoolheinoespelhouma
horadepois,nãoconseguiacreditarnoqueviarefletido.
Fiquei tão aliviada nas últimas semanas por conseguir dormir que me
esqueceradeagradecerpormanteracomidanoestômago.
Meurostoemeucorpoestavamcheiosdenovo.Oquedeveriaterlevadomais
semanasnaformahumanaforaapressadopelomilagredemeusangueimortal.Eo
vestido...
Jamaistinhavestidonadacomoaquilo,eduvidavaquealgumdiavestiriaalgo
assimdenovo.
Feitodeminúsculasgemasazuis,tãopálidasquequasepareciambrancas,elese
agarravaatodasascurvasetodasasdepressõesantesdedesceraochãoeformar
uma cauda que parecia luz estelar líquida. As mangas longas eram justas,
terminando nos pulsos com punhos de puro diamante. O decote roçava minha
clavícula,eamodéstiaeracompensadapelaformacomoovestidoenvolviaáreas
que supus que interessariam a uma fêmea exibir. Meus cabelos haviam sido
afastadosdorostocomdoispentesdeprataediamante,esoltoscomoumacascata
porminhas costas.Epensei, enquantoestava sozinhanobanheiro,que talvezeu
parecesseumaestrelacadente.
Rhysandnãoestavaemlugaralgumquandotomeicoragemparairaojardim
dotelhado.Aspedrasnovestidotilintavamefarfalhavamcontraopisoconforme
eu caminhava pela casa quase escura, todas as luzes haviam sido atenuadas ou
apagadas.
Naverdade,acidadeinteiraapagaraasluzes.
Umafiguraaladaemusculosaestavanoaltodotelhado,emeucoraçãodeuum
salto.
Masentãoelesevirou,nomomentoemqueocheirodofeéricomeatingiu.E
algoemmeupeitopesouumpoucoquandoCassiansoltouumassobiobaixo.
—DeviaterdeixadoNualaeCerridwenmevestirem.
Eunãosabiasesorriaouseencolhiaocorpo.
—Vocêestámuitobonitoapesardisso.—Eleestava.Tinhatiradootrajede
combateeaarmadura,vestiaumatúnicapretacujocorteressaltavaaquelecorpo
deguerreiro.O cabelo pretodeCassian fora penteado e domado, atémesmo as
asaspareciammaislimpas.
Cassian estendeuos braços.OsSifões ainda estavam lá—umamanopla de
metalcomburacosnolugardosdedosqueseestendiaporbaixodasmangasfeitas
sobmedidadeseucasaco.
—Pronta?
Ele tinha me feito companhia nos últimos dois dias, me treinava todas as
manhãs. Enquanto me mostrava mais detalhes sobre como usar uma lâmina
illyriana, em grande parte como estripar alguém com ela, conversávamos sobre
tudo:nossasvidas igualmentemiseráveis quando crianças, caça, comida...Tudo,
excetoRhysand.
CassianmencionaraapenasumavezqueRhysandestavanaCasa,esupusque
minhaexpressãodisserao suficiente a ele sobrenãoquerer sabermaisnada.Ele
sorriaparamimagora.
— Com todas essas pedras e contas, pode estar pesada demais para ser
carregada.Esperoqueestejapraticandoatravessar,casoeuadeixecair.
— Engraçadinho. — Deixei que Cassian me pegasse nos braços antes de
dispararmospara cima.Eupodia aindanão conseguir atravessar,masdesejei ter
asas, percebi. Asas grandes e poderosas para que eu pudesse voar o quanto
quisesse;paraquepudesseveromundoetudoqueestetinhaaoferecer.
Abaixodenós, cada luz restante se apagou.Nãohavia lua;nenhumamúsica
fluíanasruas.Sóhaviaosilêncio—comoseestivesseesperandoalgo.
CassiandisparoupelaescuridãosilenciosaatéondeaCasadoVentoseerguia.
Eu conseguia distinguir multidões reunidas nas muitas varandas e nos pátios
apenaspelo levebrilhode luzestelaremseuscabelos,e,depois,pelo tilintardos
coposeconversasbaixasconformenosaproximávamos.
Cassianmecolocounopátiolotadodoladodeforadasaladejantar,eapenas
alguns convivas se deram o trabalho de olhar para nós. Esferas com luz feérica
tênuedentrodaCasa iluminavam travessasdecomidae intermináveis fileirasde
garrafasverdesdevinhoespumantesobreasmesas.Cassiansumiuevoltouantes
queeudesseporsuafalta,colocandoumataçadovinhoemminhamão.Nenhum
sinaldeRhysand.
Talvezelemeevitasseafestainteira.
AlguémchamouonomedeCassiandooutroladodopátio,eelemedeuum
tapinhanoombroantesdesair.Ummachoalto,comorostoocultoemsombras,
entrelaçouoantebraçocomodeCassianemumcumprimento,seusdentesbrancos
reluziramnaescuridão.Azriel jáestavacomoestranho,easasasrecolhidaspara
evitar que os convivas esbarrassem nelas. Ele, Cassian e Mor ficaram entre si
duranteodia—oqueeracompreensível.Busqueisinaisdemeusoutros...
Amigos.
Apalavraressoouemminhacabeça.Seriaissooqueeram?
Amrennãoestavaàvista,masnoteiumacabeçadouradanomesmomomento
em que ela me viu, eMor veio até meu lado. Ela usava um vestido totalmente
branco,poucomaisqueumafaixadesedaquemostravaasgenerosascurvas.De
fato,umolharporcimadoombrodeMorrevelavaAzrielolhandoostensivamente
paraascostasdafeérica,eCassianeoestranhojáestavamdistraídosemconversa
paranotaroquechamaraaatençãodomestre-espião.Porummomento,acobiça
norostodeAzrielfezmeuestômagoseapertar.
Eumelembravademesentirdaquelaforma.Lembravacomoeracederàquilo.
Comoeutinhachegadopertodefazê-lonaoutranoite.
—Nãovaidemorarmuito—avisouMor.
—Oquê?—Ninguémtinhamecontadooqueesperar,comosenãoquisesse
estragarasurpresadaQuedadasEstrelas.
—Atéadiversão.
Olheiparaafestaaonossoredor...
—Estanãoéadiversão?
Morergueuumasobrancelha.
—Nenhum de nós se importamuito com essa parte.Depois que começar,
vocêverá.—Mor tomouumgoledovinhoespumante.—Esseéumvestidoe
tanto.TemsortequeAmrenestáescondidanosótão,ouprovavelmenteoroubaria
devocê.Aqueladragoavaidosa.
—Elanãovaifazerumapausanadecodificação?
—Sim,enão.AlgoarespeitodaQuedadasEstrelasaperturba,éoquediz.
Quemsabe?Provavelmentefazissoparaserrebelde.
Mesmo enquanto falava, as palavras deMor estavam distantes, o rosto, um
poucotenso.Eudisse,baixinho:
—Está...prontaparaamanhã?—Amanhã,quandodeixaríamosVelarispara
evitarquequalquerumreparasseemnossosmovimentosnaquelaárea.Mor,Azriel
mecontara,nervoso,nocafédamanhã,voltariaparaaCortedosPesadelos.Para
verificara...recuperaçãodopai.
Provavelmentenãoeraomelhor lugarparadiscutirnossosplanos,masMor
deudeombros.
— Não tenho escolha a não ser estar preparada. Vou com vocês para o
acampamento,e,então,sigomeucaminhodepoisdisso.
—Cassian ficará feliz com isso—comentei.Mesmoque fosseAzrielquem
estivessetentandoaomáximonãoencararMor.
Morriucomdeboche.
—Talvez.
Erguiumasobrancelha.
—Entãovocêsdois...?
Outrogestodeombros.
—Umavez.Bem,nemisso.Eutinha17anos,elenãoerasequerumanomais
velho.
Quandotudoaconteceu.
MasnãohaviaescuridãonorostodeMorquandoelasuspirou.
— Pelo Caldeirão, aquilo foi há muito tempo. Visitei Rhys durante duas
semanasnoacampamentodeguerraquandoeleestavatreinando,eCassian,Azriel
e eu viramos amigos.Uma noite, Rhys e amãe precisaram voltar para a Corte
Noturna,eAzriel foicomeles;então,Cassianeeu ficamossozinhos.E,naquela
noite,umacoisalevouàoutrae...EuqueriaquefosseCassianquemfizesseaquilo.
Euqueriaescolher.
Umterceirogestodeombros.EumepergunteiseAzrieltinhadesejadosero
escolhidoemvezdoamigo.SetinhaadmitidoaMor,ouaRhys.Seeleseressentia
porterestadoforanaquelanoite,porMornãooterconsiderado.
— Rhys voltou na manhã seguinte e, quando descobriu o que tinha
acontecido...—Morriubaixinho.—TentamosnãofalarsobreoIncidente.Elee
Cassian...Nuncaosvibrigardaquelejeito.Tomaraquenuncamaisveja.Seique
Rhysnãoestava comraivapor causademinhavirgindade,maspeloperigoque
perdê-lame fazia correr.Azriel ficou aindamais irritado, embora tenha deixado
Rhysbrigar.Elessabiamoqueminhafamíliafariaporeutermerebaixadocomum
bastardofeéricoinferior.—Morpassouamãopeloabdômen,comoseconseguisse
sentiraquelepregoquehaviamcravadonela.—Estavamcertos.
— Então, você e Cassian — falei, querendo desviar o assunto, aquela
escuridão—nuncamaisficaramjuntosdepoisdaquilo?
— Não — disse Mor, rindo baixinho. — Eu estava desesperada, fui
inconsequente naquela noite. Escolhi Cassian não apenas pela bondade, mas
porque queria que minha primeira vez fosse com um dos lendários guerreiros
illyrianos.Euqueriamedeitarcomomelhordosguerreirosillyrianos,naverdade.
EolheiumavezparaCassianesoube.Depoisqueconseguioquequeria,depois...
de tudo, não gostei que aquilo tivesse causado um abismo entre ele e Rhys, ou
mesmoentreeleeAz,então...nuncamais.
— E nunca ficou com mais ninguém depois disso?— Nem o frio e belo
encanador de sombras que tentava com tanto afinco não a olhar com desejo no
rosto?
—Eu tive amantes— esclareceuMor.—Mas... fico entediada. ECassian
também as teve, então, não fique com esse olhar meloso de amor não
correspondido.Ele só quer o quenãopode ter, e se irrita há séculos porque fui
emboraenuncamaisolheiparatrás.
—Ah,issoodeixalouco—disseRhys,atrásdemim,edeiumsalto.Maso
Grão-Senhormecircundava.Cruzeiosbraçosquandoeleparouedeuumrisinho.
—Vocêpareceumamulherdenovo.
—Sabemesmoelogiarasmulheres,primo—ironizouMor,edeuumtapinha
noombrodeRhysaoverumconhecidoeircumprimentá-lo.
Tentei não olhar para Rhys, que estava de casaco preto, casualmente
desabotoadonoaltoparaqueacamisabrancaabaixo—tambémdesabotoadano
pescoço—mostrasseastatuagensnopeitoexposto.Tenteinãoolhar,efracassei.
—Planejameignorarumpoucomais?—perguntei,comfrieza.
— Estou aqui agora, não estou? Não quero que me chame de covarde
desprezíveldenovo.
Abriaboca,massentitodasaspalavraserradascomeçaremasair.Então,eua
fecheieprocureiporAzrielouCassianouqualquerumquepudessefalarcomigo.
Ir até um estranho começava a parecer agradável quandoRhys falou, a voz um
poucorouca:
—Eunãoestavapunindovocê.Só...precisavadetempo.
Não queria ter aquela conversa ali — com tanta gente ouvindo. Então,
gesticuleiparaafestaefalei:
—Pode,porfavor,medizersobreoquesetrataessa...reunião?
Rhysandpassouparatrásdemim,rindoaodizeraomeuouvido:
—Olheparacima.
Defato,quandoolhei,amultidãosecalou.
— Nenhum discurso para os convidados? — murmurei. Tranquilas... só
queriaqueascoisasficassemtranquilasentrenósdenovo.
—Estanoitenãosetratademim,emboraminhapresençasejareconhecidae
observada—disseele.—Estanoitesetratadisso.
Quandoeleapontou...
Uma estrela disparou pelo céu,mais brilhante emais próxima que qualquer
umaqueeutivessevisto.Amultidãoeacidadeabaixocomemoraram,erguendoos
coposconformeaestrelapassoubemacima,eapenasquandoeladesapareceuna
curvadohorizonteéqueelesbeberamintensamente.
Recueiumpasso,nadireçãodeRhys—erapidamentemeafastei,paralonge
docalor,dopoderedocheirodele.Tínhamoscausadodanossuficientesemuma
posiçãosemelhantenaCortedosPesadelos.
Outra estrela cruzou o céu, rodopiando e girando no próprio eixo, como se
estivessecelebrandoaprópriabelezailuminada.Elafoiseguidaporoutra,eoutra,
atéumabrigadadeestrelasserlançadadohorizonte,comosemilharesdearqueiros
astivessemsoltadodospoderososarcos.
As estrelas passaramem cascata por cimadenós, enchendoomundode luz
branca e azul. Eram como fogos de artifício vivos, emeu fôlego ficou preso na
gargantaconformeasestrelascontinuavamcaindoecaindo.
Eujamaisviraalgotãolindo.
Equandoocéuestavacheiodelas,quandoasestrelasdisparavamedançavam
efluíampelomundo,amúsicacomeçou.
Onde quer que estivessem, as pessoas começaram a dançar, se balançando e
girando,algumasdavamasmãoserodopiavam,rodopiavamerodopiavamaosom
dos tambores, das cordas, das harpas tilintantes. Não era como o rilhar e as
estocadasdaCortedosPesadelos,masumadançaalegreepacífica.Peloamorao
som,aomovimentoeàvida.
FiqueicomRhysandno limiar,entreobservaraspessoasdançandonopátio,
comasmãoserguidas,easestrelasdescendo,maisemaisperto,atéqueeujurava
quepodiatê-lastocadosemeinclinasse.
E láestavamMoreAzriel...eCassian.Os trêsdançando juntos,acabeçade
Morvoltadaparaocéu,osbraçoserguidos,aluzdasestrelasbrilhandonobranco
do vestido. Dançando como se pudesse ser a última vez, fluindo entre Azriel e
Cassian,comoseostrêsfossemumaunidade,umúnicoser.
OlheiparatráseviRhysobservandoostrês,comumaexpressãosuave.Triste.
Separadosdurantecinquentaanosereunidos—apenasparaseremseparados
tãorapidamenteparalutardenovopelaliberdade.
Rhysmeencarouedisse:
—Venha.Temumavistamelhor.Maissilenciosa.—Eleestendeuamãopara
mim.
Aquela tristeza, aquelepeso,permaneceunosolhosdeRhys.Enãoaguentei
vê-la;assimcomonãoaguentavavermeustrêsamigosdançandojuntoscomose
fosseaúltimavezqueofariam.
Rhysme levouparaumavarandapequenae reservadaqueseprojetavadonível
superiordaCasadoVento.Nospátiosabaixo,amúsicaaindatocava,aspessoas
aindadançavam,asestrelasdisparavam,próximaseágeis.
Rhys me soltou quando me sentei no parapeito da varanda. Imediatamente
desistidissoquandoviaaltura,erecueiumpassoporsegurança.
Rhysandriu.
— Se você caísse, sabe que eu me daria o trabalho de salvá-la antes que
atingisseochão.
—Masnãoatéeuestarpertodamorte?
—Talvez.
Apoieiamãocontraoparapeito,olhandoparaasestrelasquepassavam.
—Comopuniçãopeloquefaleiavocê?
—Eutambémdissecoisashorríveis—murmurouRhys.
—Eunãofuisincera—disparei.—Estavafalandomaisdemimquedevocê.
Epeçodesculpas.
Rhysobservouasestrelasporummomentoantesderesponder:
—Masestavacerta.Eumeafasteiporquevocêestavacerta.Emborafiquefeliz
emsaberqueminhaausênciapareceuumapunição.
Ricomescárnio,masmesentigratapelohumor,pelaformacomoelesempre
conseguiramedivertir.
—Algumanovidadecomaesferaoucomasrainhas?
—Aindanada.Estamosesperandoquedecidamresponder.
Ficamosemsilênciodenovo,eobserveiasestrelas.
—Nãosão...nãosãoestrelas,naverdade.
—Não.—Rhysfoiatémeuladonoparapeito.—Nossosancestraisachavam
quesim,mas...Sãoapenasespíritos,emumamigraçãoanualparaalgumlugar.Por
queescolhemestediaparaaparecer,ninguémsabe.
SentiosolhosdeRhyssobremim,edesvieioolhardasestrelascadentes.Luze
sombrapassarampelorostodele.Ascomemoraçõeseamúsicadacidademuito,
muitoabaixomaleramaudíveisporcimadobarulhodamultidãoreunidanaCasa.
—Devehavercentenasdeles!—Euconseguidizer,voltandomeuolharpara
asestrelasquepassavamzunindo.
—Milhares—replicouRhys.—Vãocontinuarpassandoatéoalvorecer.Ou
esperoquesim.HámenosdelesdoquedaúltimavezqueviaQuedadasEstrelas.
AntesdeAmaranthaotrancafiar.
—Oqueestáacontecendocomeles?—Olheia tempodeverRhysdarde
ombros.Algodoeuemmeupeito.
—Euqueriasaber.Maselescontinuamvoltando,apesardisso.
—Porquê?
—Porqueascoisasseatêmaoutras?Talvezamemtantoolugarparaonde
vãoquevaleapena.Talvezcontinuemvoltandoatéqueresteapenasumaestrela.
Talvezessaúnicaestrelafaçaaviagemparasempre,comaesperançadequeum
dia,secontinuarvoltandocomfrequência,outraestrelaaencontredenovo.
Franziatestaparaovinhoemminhamão.
—Esseé...umpensamentomuitotriste.
—Realmente.—Rhys apoiou os antebraços na beira da varanda, perto o
bastanteparaquemeusdedosostocassemseeuousasse.
Um silêncio calmo, intenso, nos envolveu. Palavras demais; eu ainda tinha
palavrasdemaisemmim.
Nãoseiquantotemposepassou,masdevia tersidoumbomtempo,porque,
quandoRhysfaloudenovo,eumesobressaltei.
—A cada ano que passei Sob aMontanha e aQueda dasEstrelas chegava,
Amarantha se certificava de que eu... a satisfizesse. A noite toda. AQueda das
Estrelas não é um segredo, mesmo para forasteiros, até mesmo a Corte dos
PesadelossaidedentrodaCidadeEscavadaparaolharocéu.Então,elasabia...Ela
sabiaoquesignificavaparamim.
Pareideouvirascomemoraçõesaonossoredor.
—Sintomuito.—Eratudooqueeupodiaoferecer.
— Enfrentava aquilo me lembrando de que meus amigos estavam em
segurança;queVelaris estavaemsegurança.Nadamais importava, contantoque
eutivesseisso.Elapodiausarmeucorpocomoquisesse.Eunãomeimportava.
— Então, por que não está lá embaixo com eles?— perguntei, mesmo ao
guardarohorrordoquetinhasidofeitoaelenocoração.
—Elesnãosabem...oqueelafaziacomigoduranteaQuedadasEstrelas.Não
queroqueissoestraguesuanoite.
— Não acho que estragaria. Eles ficariam felizes por você deixar que eles
dividissemofardo.
—Assimcomovocêcontacomosoutrosparaajudarcomosproblemas?
Nósnosencaramos,pertoobastanteparadividirmosumarespiração.
Etalveztodasaquelaspalavrasacumuladasemmim...Talvezeunãoprecisasse
delasnomomento.
Meusdedos tocaramosdele.Quentes e firmes;pacientes comosequisessem
veroquemaiseupoderiafazer.Talvezfosseovinho,maslheacaricieiodedocom
omeu.
E,quandomevireimaiscompletamenteparaRhys,algoofuscanteebrilhante
sechocoucontrameurosto.
Recuei,dandoumgritoaodobrarocorpoparaafrente,protegendoorostoda
luzqueeuaindaconseguiaenxergarmesmodeolhosfechados.
Rhyssoltouumagargalhadasobressaltada.
Umagargalhada.
E,quandopercebiquemeusolhosnãotinhamsidoqueimadosnasórbitas,eu
mevireiparaRhys.
—Eupodiaterficadocega!—sibilei,empurrandoRhys.Eleolhoumeurosto
e caiu na gargalhada de novo. Gargalhada verdadeira, sincera, prazerosa e
encantadora.
Limpeiorostoe,quandoabaixeiasmãos,fiqueiboquiaberta.Luzverdepálida
—comogotasdetinta—brilhavacomosardasemminhamão.
Umespíritoestelaresmagado.Nãosabiaseficavahorrorizadaoumaravilhada.
Ouenojada.
Quandofuilimpar,Rhyssegurouminhasmãos.
—Não—disseele,aindarindo.—Parecequesuassardasestãobrilhando.
Minhas narinas se dilataram, e fui empurrar Rhysand de novo, não me
importavaseminhanovaforçaoderrubassedavaranda.Elepodiaconjurarasas;
podialidarcomisso.
Rhysdesvioudemim,virandoparaoparapeitodavaranda,masnãorápidoo
bastanteparaevitaraestrelaemdisparadaquecolidiucomalateraldeseurosto.
Rhysdeuumsaltoparatrás,xingando.Euri,osomsaiuroucodemim.Não
umarisadaalegreouumrisinho,masumagargalhadaruidosa.
Egargalheidenovo,edenovo,quandoRhystirouasmãosdosolhos.
Oladoesquerdointeirodeseurostohaviasidoatingido.
Uma tinta de guerra celestial, era o que parecia. Eu conseguia ver por que
Rhysnãoqueriaqueeumelimpasse.
Rhysestavaexaminandoasmãos, cobertasdapoeira, edeiumpassona sua
direção,olhandoparaaformacomoaquilobrilhavaereluzia.
Rhysficoucompletamenteimóvelquandopegueiumadesuasmãosnaminha
e tracei a forma de uma estrela no alto da palma, brincando com o brilho e as
sombras,atéqueparecessequeumadasestrelastinhanosatingido.
OsdedosdeRhyssefecharamcomfirmezasobreosmeus,eerguiorosto.Ele
sorria. E parecia tão dissonante de umGrão-Senhor, com a poeira brilhante na
lateraldorosto,quesorridevolta.
NãotinhasequerpercebidooquefizeraatéqueosorrisodeRhyssedissipoue
abocaseabriulevemente.
—Sorriadenovo—sussurrouele.
Não tinha sorridopara ele.Nunca.Ougargalhado. Sob aMontanha, jamais
sorria,jamaisdavarisada.Edepois...
Eaquelemachodiantedemim...meuamigo...
Apesar de tudo que Rhys havia feito, eu jamais sorrira para ele também.
Mesmoquandotinhaacabado...eutinhaacabadodepintaralgo.Nele.Paraele.
Eutinhapintadodenovo.
Então,sorriparaRhys,umsorrisolargo,semmeconter.
—Vocêélinda—sussurrouRhysand.
Oarestavatensodemais,pertodemaisentrenossoscorpos,entrenossasmãos
unidas.Maseufalei:
—Vocêmedevedoispensamentos,desdequandoeutinhaacabadodechegar
aqui.Digaemqueestápensando.
Rhysesfregouopescoço.
— Quer saber por que eu não falei ou vi você? Porque estava muito
convencidodequevocêmejogariaparafora.Eusó...—Rhyspassouamãopelo
cabeloeconteveumagargalhada.—Acheiquemeesconderseriaumaalternativa
melhor.
— Quem diria que o Grão-Senhor da Corte Noturna teria medo de uma
humana analfabeta?— ronronei. Ele sorriu, me cutucando com o cotovelo.—
Esseéum—insisti.—Conteoutropensamento.
OsolhosdeRhyssedetiveramemminhaboca.
—QueriapoderpegardevoltaaquelebeijoSobaMontanha.
Euàsvezesesqueciaaquelebeijo,quandoRhys fizeraaquiloparaevitarque
AmaranthasoubessequeTamlineeuestávamosnocorredoresquecido,agarrados.
ObeijodeRhysandforabrutal,exigente,mas...
—Porquê?
Oolhardelerecaiusobreamãoqueeupintaraentão,comosefossemaisfácil
encará-la.
—Porquenãootorneiprazerosoparavocê,eestavacomciúmeeirritado,e
sabiaquevocêmeodiava.
Territórioperigoso,aviseiamimmesma.
Não. Sinceridade, era isso. Sinceridade e confiança. Eu jamais tivera aquilo
comalguém.
Rhysergueuorosto,meencarando.Eoquequerqueestivesseemmeurosto,
achoquedeviaestarespelhadonodele:afomeeodesejoeasurpresa.
Engoliemsecoetraceioutralinhadepoeiraestelarpelointeriordopulsoforte
deRhys.Acheiqueelenãoestivesserespirando.
—Você...vocêquerdançarcomigo?—sussurrei.
Ele ficou em silêncio por tanto tempo que ergui a cabeça para observar seu
rosto.Masseusolhosestavamiluminados,emolduradosemprata.
—Querdançar?—perguntouRhys,avozrouca,entrelaçandoosdedosnos
meus.
Aponteicomoqueixonadireçãodacomemoraçãoabaixo.
—Láembaixo...comeles.—Ondeamúsicachamava,ondeavidachamava.
Ondeeledeveriapassaranoitecomosamigos,eondeeuqueriapassaranoitecom
elestambém.Atémesmocomosestranhosqueparticipavamdafesta.
Nãomeimportavadesairdassombras,nãomeimportavadesequerestar nas
sombras, na verdade, contanto que ele estivesse comigo.Meu amigo por tantos
perigos—quelutarapormimquandoninguémmaislutaria,nemmesmoeu.
—Éclaroquedançocomvocê—disseRhys,avozaindarouca.—Anoite
toda,sequiser.
—Mesmoqueeupisenosseuspés?
—Mesmoassim.
Rhysandseinclinouparamimeroçouabocacontraminhabochechacorada.
Fecheiosolhosdiantedosussurrodeumbeijo,dodesejoquemedevastoudepois
dele,quetalvezdevastassePrythian.Eaonossoredor,comoseoprópriomundo
estivesse,defato,sedesfazendo,choviaestrelas.
Grãosdepoeira estelarbrilhavamnos lábiosdeRhysquandoele se afastou,
enquantoeuoencarava,semfôlego,enquantoRhyssorria.Osorrisoqueomundo
provavelmente jamaisveria,o sorrisodoqualeleabriramãopelobemdopovo,
dasterras.Eledisse,baixinho:
—Eu...soumuitofelizportê-laconhecido,Feyre.
Pisqueiparaafastaraqueimaçãoemmeusolhos.
—Vamos—falei,puxandoamãodeRhys.—Vamosnosjuntaràdança.
O acampamentodeguerra illyrianono interiordasmontanhasaonorteestava
congelante.Aparentemente,aprimaveraaindaerapoucomaisqueumsussurrona
região.
Mornosatravessouparalá,RhysandeCassiannosacompanharamaolado.
Tínhamosdançado.Todosnós, juntos.EeununcaviraRhystãofeliz,rindo
comAzriel,bebendocomMor,discutindocomCassian.Eudançaracomcadaum
delese,quandoanoiteviroualvorecereamúsicasetornousuaveemelíflua,deixei
queRhysmepegasse nos braços e dançasse comigo, devagar, até queos outros
convidadostivessempartido,atéqueMorestivessedormindoemumsofánasala
dejantar,atéqueodiscodouradodosolemoldurasseVelaris.
Rhysvooucomigodevoltaparaacasanacidadeemmeioaos tonsderosa,
roxoecinzadoalvorecer,nósdoisemsilêncio,emebeijounatestaumavez,antes
deseguirpelocorredorparaopróprioquarto.
Não menti para mim mesma sobre por que tinha esperado durante trinta
minutosparaverseminhaportaabriria.Ouparaaomenosouvirumabatida.Mas
nada.
Estávamosdeolhosvermelhos,masfomoseducadosàmesadoalmoço,horas
depois;MoreCassianpareciamincomumentesilenciosos,conversandomaiscom
AmreneAzriel,queforamsedespedir.AmrencontinuariatrabalhandonoLivro
atérecebermosasegundametade—searecebêssemos;oencantadordesombras
estava partindo para reunir informações e gerenciar os espiões posicionados em
outras cortes, tentando penetrar a corte humana. Consegui falar com eles, mas
grande parte de minha energia foi para não olhar para Rhysand, ou pensar na
sensação de seu corpo pressionado contra omeu enquanto dançávamos durante
horas,aqueleroçardebocacontraminhapele.
Maltinhaconseguidocairnosonoporcausadaquilo.
Traidora.MesmoqueeutivessedeixadoTamlin,eraumatraidora.Estavafora
havia dois meses — apenas dois. Em termos feéricos, era provavelmente
consideradomenosdeumdia.
Tamlinmederatanto,fizeratantascoisasboaspormimeporminhafamília.E
ali estava eu, querendo outromacho, pormais que odiasseTamlin pelo que ele
tinhafeito,porcomotinhafracassadocomigo.Traidora.
Apalavracontinuavaecoandoemminhacabeçaenquantoeuestavaaoladode
Mor, Rhys e Cassian alguns passos adiante, e olhava para o acampamento com
fortes ventos.Mormal deramais queumbreve abraço emAzriel antes de dizer
adeus.E,apesardetudo,omestre-espiãopareceunãose importar—atémedar
umolharágil,deaviso.Euaindaestavadivididaentrediversãoerevoltadianteda
presunçãodequeeumeteriaonariznosnegóciosdele.Defato.
Construído perto do topo de uma montanha florestada, o acampamento de
guerraillyrianonãopassavaderochanuaelama,interrompidasapenasportendas
grosseiras,fáceisdeguardar,centralizadasaoredordegrandesfogueiras.Pertodo
limite das árvores, uma dezena de prédios permanentes fora erguida a partir da
pedra cinzenta da montanha. Fumaça subia das chaminés contra a fria manhã
nublada,ocasionalmenteespiraladaporasasquepassavamacima.
Tantosmachosaladosdisparandoacaminhodeoutrosacampamentos,ouem
treinamento.
Defato,doladoopostodoacampamento,emumaárearochosaqueterminava
emummergulhoíngremedamontanha,estavamosringuesdelutaetreinamento.
Estantes de armas eram deixadas a céu aberto; no ringue delimitado por giz,
machos de todas as idades agora treinavam com bastões e espadas e escudos e
lanças.Rápidos,letais,brutais.Nenhumareclamação,nenhumgritodedor.
Não havia calor ali, nenhuma alegria. Mesmo as casas do outro lado do
acampamento não tinham toques pessoais, como se fossem usadas apenas como
abrigoearmazém.
EeraaliqueRhys,AzrieleCassianhaviamcrescido;ondeCassianforaisolado
parasobreviversozinho.Eratãofrioquemesmoenroscadaemcouroforradode
pele eu tremia. Não conseguia imaginar uma criança passando uma noite sem
roupasadequadas—ousemabrigo—muitomenosoitoanos.
OrostodeMorestavapálido,tenso.
— Odeio este lugar — disse ela, sussurrando, o calor do hálito dela se
condensounoardiantedenós.—Deveriaserqueimadoatévirarcinzas.
Cassian e Rhys ficaram em silêncio quando ummachomais velho, alto, de
ombroslargos,seaproximou,acompanhadoporcincooutrosguerreirosillyrianos,
todoscomasasasrecolhidas,asmãoscasualmenteaoalcancedasarmas.
NãoimportavaqueRhyspudessedestruirsuasmentessemerguerumdedo.
Cada illyrianousavaSifõesde coresdiferentesnodorsodasmãos, e aquelas
pedraserammenoresqueasdeAzrieleCassian.Etinhamapenasuma.Nãosete
cadaum,comomeusdoisamigosusavamparaconterseuimensopoder.
Omachoàfrentedisse:
—Outra inspeçãono acampamento?Seu cão—ele apontou comoqueixo
paraCassian—esteveaquinaoutrasemana.Asgarotasestãotreinando.
Cassiancruzouosbraços.
—Nãoasvejonoringue.
—Elasfazemastarefasdecasaprimeiro—explicouomacho,comosombros
para trás e as asas se abrindo levemente. — Então, quando terminam, podem
treinar.
UmgrunhidobaixosaiudabocadeMor,eomachovirouemnossadireção.
Eleenrijeceuocorpo.Morlançouumsorrisomaliciosoparaohomem.
—Oi,LordeDevlon.
Olíderdoacampamento,então.
EleexaminouMordecimaabaixocomdesprezoevoltouoolharparaRhys.O
grunhidodeavisodeCassianecoouemmeuestômago.
Rhysfalou,porfim:
—Um prazer o ver, como sempre,Devlon,mas há duas questões a serem
tratadas: primeiro, as garotas, como você foi claramente instruído por Cassian,
devem treinar antes das tarefas, não depois. Coloque-as no campo. Agora. —
Estremeci ao puro comando naquele tomde voz.Rhys continuou:—Segundo,
ficaremos aqui por enquanto. Esvazie a antiga casa de minha mãe. Não há
necessidadedefaxineira.Cuidaremosdenósmesmos.
—Acasaestáocupadapormeusmelhoresguerreiros.
—Então,desocupe-a—mandouRhysand,simplesmente.—Efaçacomque
alimpemantesdesaírem.
AvozdoGrão-SenhordaCorteNoturna,queseregozijavacomdorefaziaos
inimigostremerem.
Devlon farejou em minha direção. Concentrei cada gota de exaustão
emburradaemsustentar-lheoolharsemicerrado.
—Outradessas...criaturasquevocêtrazaqui?Acheiqueeraaúnicadotipo
dela.
—Amren—falouRhys—mandoulembranças.Equantoaesta...—Tentei
nãodesviar o olhar dele.—Ela éminha—declarouRhys, baixinho,mas com
malícia suficiente paraqueDevlon eos guerreiros próximosouvissem.—E, se
algum de vocês colocar a mão nela, perderá essa mão. E, depois, a cabeça.—
Tenteinãoestremecer,poisCassianeMornãomostraramqualquerreação.—E
depoisqueFeyre terminardematá-los—Rhysdeuumrisinho—,vou triturar
seusossosatévirarempoeira.
Eu quase ri. Mas os guerreiros agora avaliavam a ameaça que Rhys
estabelecera que eu era... e não conseguiam pensar em respostas.Dei um breve
sorrisoatodoselesmesmoassim,umsorrisoqueeuviraAmrenesboçarcentenas
devezes.Deixeiqueimaginassemoqueeupoderiafazerseprovocada.
— Vamos sair — disse Rhys a Cassian e Mor, sem se dar o trabalho de
dispensarDevlon antes de caminhar até o limite das árvores.—Voltaremos ao
anoitecer.— Ele olhou para a prima.— Tente ficar longe de problemas, por
favor.Devlon nos odeiamenos que os demais senhores da guerra, e não quero
encontraroutroacampamento.
Pela Mãe, os outros deviam ser... desagradáveis se Devlon era o mais
moderado.
Morpiscouumolhoparanósdois.
—Voutentar.
RhysapenassacudiuacabeçaefalouparaCassian:
— Verifique as forças; depois, certifique-se de que as garotas estejam
praticandocomodeveriamestar.SeDevlonouosdemaisprotestarem,façaoque
forpreciso.
Cassiansorriudeumaformaquemostravaqueficariamaisquefelizaofazer
exatamenteisso.EraogeneraldoGrão-Senhor...noentanto,Devlonochamava
decão.NãoqueriaimaginarcomotinhasidoparaCassiancrescersemtítulo.
Então,porfim,Rhysolhouparamimdenovo,eseusolhossefecharam.
—Vamos.
—Tevenotíciasdeminhasirmãs?
Umacenonegativocomacabeça.
—Não.Azrielestáverificandohojesereceberamumaresposta.Vocêeeu...
—OventofarfalhouseucabeloquandoRhyssorriu.—Vamostreinar.
—Onde?
Rhysindicouoamploterritórioalém:asestepesflorestaisqueelemencionara
certavez.
—Longedepotenciaiscausalidades.—Rhysofereceuamãoquandoasasas
seestenderam,ocorposepreparandoparaovoo.
Mas só ouvi aquelas três palavras que ele dissera, ecoando contra o latejar
constantedetraidora,traidora.
Elaéminha.
EstarnosbraçosdeRhysdenovo,contraseucorpo,eraumtestedeteimosia.Para
nósdois.Paraverquemfalariaarespeitodaquiloprimeiro.
Estávamosvoandoacimadasmontanhasmaislindasqueeujávira—nevadas
e salpicadas de pinheiros —, seguindo na direção de colinas de estepes além,
quandoeudisse:
—Estãotreinandoguerreirasillyrianas?
—Tentando.—Rhysolhouparaapaisagemcruel.—Baniocortedeasashá
muito,muito tempo,mas... nos acampamentosmais inflamados, bemno interior
das montanhas, ainda o praticam. E, quando Amarantha assumiu, mesmo os
acampamentosmaisliberaiscomeçaramdenovo.Paramanterasmulheresseguras,
eraoquealegavam.Duranteosúltimoscemanos,Cassianvemtentandomontar
umaunidadedecombateaéreoentreasmulheres,tentandoprovarqueelastêmum
lugar no campo de batalha. Até agora, conseguiu treinar algumas guerreiras
dedicadas, mas os machos tornam a vida tão miserável que muitas partiram. E
quantoàsgarotasemtreinamento...—Eleexalouruidosamente.—Éumlongo
caminho.MasDevlonéumdospoucosquesequerdeixaasgarotastreinaremsem
darumataque.
—Dificilmenteeuchamariadesobedecerordensde“semdarumataque”.
—Algunsacampamentospublicaramdecretosdizendoque,seumafêmeafor
pega treinando, deve ser considerada imprópria para o casamento. Não posso
combateressetipodecoisa,nãosemassassinaroslíderesdecadaacampamentoe
pessoalmentecriarcadaumdeseusfilhos.
—E,mesmoassim,suamãeosamava,evocêstrêsusamsuastatuagens.
— Fiz as tatuagens em parte por minha mãe, em parte para honrar meus
irmãos,quelutaramtodososdiasdavidapelodireitodetê-las.
—PorquedeixaDevlonfalarcomCassiandaquelejeito?
— Porque sei quais brigas comprar comDevlon, e sei que Cassian ficaria
transtornado se eume intrometesse e destruísse amente deDevlon, como uma
uva,quandoopróprioCassianpodecuidardisso.
Umsussurrofriopercorreumeucorpo.
—Jápensouemfazerisso?
—Acabeidepensar.Masamaioriadossenhoresdeacampamentosjamaisteria
dadoumachanceanóstrêsnoRitodeSangue.Devlondeixouqueummestiçoe
doisbastardospassassempeloRito,enãonosnegounossavitória.
Pinheiroscobertosdenevefrescapassavamsobnóscomoumborrão.
—OqueéoRitodeSangue?
—Tantasperguntashoje.—AperteioombrodeRhyscomforçaobastante
paramachucar, e ele riu.—Você entra desarmado nasmontanhas, semmagia,
nenhumSifão,asasatadas,semsuprimentosouroupasalémdasqueestáusando.
Você e qualquer outro macho illyriano que queira passar de um novato para
verdadeiro guerreiro.Algumas centenas seguempara asmontanhas no início da
semana,enemtodosvoltamnofim.
Apaisagembeijadapelogeloseestendiainfinitamente,tãoirredutívelquanto
osguerreirosqueagovernavam.
—Vocês...sematam?
—Amaioriatenta.Porcomidaeroupas,porvingança,porglóriaentreclãs
inimigos.DevlonnospermitiuparticipardoRito,mastambémsecertificoudeque
Cassian,Azrieleeufôssemosjogadosemlocaisdiferentes.
—Oqueaconteceu?
—Nós nos encontramos.Matamos para abrir caminho pelasmontanhas até
chegarmosumaooutro.Nofimdascontas,muitosguerreiros illyrianosqueriam
provar que eram mais fortes e mais espertos que nós. E, pelo visto, estavam
errados.
OuseiolharparaorostodeRhys.Porumsegundo,pudever:sujodesangue,
selvagem,lutandoematandoparachegaraosamigos,paraprotegeresalvá-los.
Rhys nos desceu emuma clareira, os pinheiros eram tão altos que pareciam
acariciarabasedasnuvenscinzaepesadasquepassavamaoventosuave.
—Então,vocênãovaiusarmagia,maseuvou?—perguntei,dandoalguns
passosparalongedeRhys.
—Nosso inimigo está ligado ameuspoderes.Você, no entanto, permanece
invisível.—Rhysgesticuloucomamão.—Vejamosemqueseutreinoresultou.
Eunãoestavaafim.Apenasfalei:
—Quando...quandovocêconheceuTamlin?
SabiaoqueopaideRhysandfizera.Nãomepermitiapensarmuitoarespeito.
ArespeitodecomoeletinhamatadoopaieosirmãosdeTamlin.Eamãe.
Mas agora, depois da noite anterior, depois da Corte de Pesadelos... Eu
precisavasaber.
OrostodeRhyseraumamáscaradepaciência.
— Mostre algo impressionante e contarei a você. Magia... em troca de
respostas.
—Seiquetipodejogoestáfazendo...—Eumeinterrompiaoindíciodeum
risinho.—Muitobem.
Estendi amãodiante do corpo, a palma em concha, e desejei queo silêncio
tomasseminhasveias,minhamente.
Silêncioecalmaepeso,comoestardebaixod’água.
Naminhamão,umaborboletadeáguabateuasasasedançou.
Rhyssorriuumpouco,masadiversãosedissipouquandoelefalou:
— Tamlin era mais novo que eu, nasceu quando a Guerra começou. Mas,
depois da Guerra, quando amadureceu, passamos a nos conhecer em diversos
eventosdascortes.Ele...—Rhystrincouosdentes.—Elepareciadecenteparao
filhodeumGrão-Senhor.Melhorqueos filhosdeBeron,naCorteOutonal.Os
irmãosdeTamlineramigualmenteruins,noentanto.Piores.EsabiamqueTamlin
assumiriaotítuloumdia.Eparaumillyrianomestiçoquetevedeprovarovalor,
defender seu poder, eu enxergava o que Tamlin passava... E fiquei seu amigo.
ProcuravaporTamlinsemprequeconseguiaescapardosacampamentosdeguerra
oudacorte.Talvezfosseporpena,mas...ensineiaelealgumastécnicasillyrianas.
—Alguémsabia?
Rhysergueuassobrancelhas...elançouumolharcarregadoparaminhamão.
Fizumacaretaparaeleeconjureiavescantoras feitasdeágua,deixandoque
batessem as asas pela clareira, como tinham voado por meu banheiro na Corte
Estival.
— Cassian e Azriel sabiam— continuou Rhys.—Minha família sabia. E
reprovava. — Os olhos de Rhys eram como lascas de gelo. — Mas o pai de
Tamlinsesentiaameaçadoporaquilo.Pormim.Eporqueeleeramaisfracoque
eu eTamlin, queria provar aomundo que não o era.Minhamãe eminha irmã
deveriamviajaratéoacampamentodeguerraillyrianoparamevisitar.Eudeveria
meencontrarcomelasnomeiodocaminho,masestavaocupado, treinandouma
novaunidade,edecidificar.
Meuestômagoserevirou,edenovo,edenovo,edenovo,edesejeiteralgo
contraoqualmeencostarconformeRhysfalou:
—Opai deTamlin, os irmãos e o próprioTamlin partiram para a floresta
illyriana,tendosabidoporTamlin,pormim,ondeminhamãeeirmãestariam,que
eutinhaplanosdevê-las.Eudeveriaestarlá;masnãoestava.Eelesassassinaram
minhamãeeminhairmãmesmoassim.
Comecei a sacudir a cabeça, os olhos queimando. Não sabia o que estava
tentandonegarouapagaroucondenar.
—Deveriatersidoeu—disseRhys,eentendi...entendioqueelehaviadito
naquelediaemquechoreidiantedeCassiannoringuedetreinamento.
“Eles colocaram suas cabeças em caixas e mandaram pelo rio, até o
acampamentomaispróximo.OpaideTamlinficoucomasasascomotroféus.Fico
surpresoporvocênãoastervistopregadasnoescritório.
Estavaprestasavomitar;acairdejoelhosechorar.”
MasRhysolhouparaavariedadedeanimaisdeáguaqueeufizera,edisse:
—Oquemais?
Talvezfosseofrio,talvezfosseahistória,masogeloestalouemminhasveiase
a canção selvagem de um vento de inverno uivou em meu coração. Eu senti
então...comoseriafácilsaltarentreeles,uni-los,meuspoderes.
Cada um dos animais parou no ar... e congelou em pedaços perfeitamente
entalhadosdegelo.
Umaum,elescaíramnaterra.Esequebraram.
Ospodereseramumsó.Tinhamvindodamesmaorigemsombria,domesmo
poço eterno de poder. Certa vez, há muito tempo, antes de a linguagem ser
inventada,quandoomundoeranovo.
Rhysapenascontinuou:
—Quandoeusoube,quandomeupaisoube...Nãofuitotalmentesincerocom
você quando contei Sob a Montanha que meu pai matou o pai e os irmãos de
Tamlin. Eu fui com ele. Ajudei. Nós atravessamos para o limite da Corte
Primaveril naquela noite e, depois, seguimos o restante do caminho a pé, até a
mansão. Matei os irmãos de Tamlin quando os vi. Controlei suas mentes e os
deixei indefesos enquanto os cortava em pedaços, e, em seguida, derreti seus
cérebros dentro dos crânios. E, quando cheguei ao quarto doGrão-Senhor, ele
estavamorto.Emeupai...meupaitinhamatadoamãedeTamlintambém.
Eunãoconseguiaparardesacudiracabeça.
—Meupaiprometeranãotocarnela.Dissequenãoéramosotipodemacho
quefariaaquilo.Maselementiuparamim,eofezmesmoassim.Edepoisfoiatéo
quartodeTamlin.
Eunãoconseguiarespirar...nãoconseguiarespirarquandoRhysfalou:
—Tenteiimpedir.Elenãoouviu.IamatarTamlintambém.Eeunãopodia...
Depoisdetodasaquelasmortes,paramim,bastava.NãomeimportavaqueTamlin
tivesseestadolá,tivessedeixadoqueelesmatassemminhamãeeminhairmã,que
tivesseidomematarporquenãoqueriaarriscarenfrentá-los.Paramim,bastavade
morte.Então,impedimeupaidiantedaporta.Eletentoupassarpormim.Tamlin
abriuaporta,nosviu,sentiuocheirodesanguequejáescorriaparaocorredor.E
nemmesmoconseguidizerumapalavraantesdeTamlinmatarmeupaicomum
golpe.
“Sentiopoderpassarparamim,mesmoaoverquandoopoderpassouparaele
também. E simplesmente nos olhamos, conforme ambos fomos subitamente
coroadosGrão-Senhores...então,eucorri.”
Ele assassinou a família de Rhysand. O Grão-Senhor que eu amara —
assassinou a família do amigo e, quando perguntei a ele a respeito de como a
famíliadele haviamorrido,Tamlinapenasmedissequeumacorte rivalo fizera.
Rhysandotinhafeitoe...
—Elenãolhecontounadadisso.
—Eu...sintomuito—sussurrei,avozrouca.
—Porquevocêdeveriasentirmuito?
—Eunãosabia.Nãosabiaqueeletinhafeitoisso...
ERhysachouqueeuoestavacomparando...comparandoeleeTamlin,como
seeuachassequeesteeraalgumtipodemodelo...
—Porqueparou?—perguntouRhys,indicandooscacosdegelonotapete
defolhasdepinheiro.
As pessoas que ele mais amava; mortas. Assassinadas a sangue frio.
AssassinadasporTamlin.
Aclareiraexplodiuemchamas.
Asfolhasdepinheirosumiram,asárvoresgemeram,eatémesmoRhysxingou
conformeofogovarreuaclareira,meucoração,edevoroutudonocaminho.
NãoeraàtoaquefizeraTamlinimplorarnaquelediaemquefuiformalmente
apresentadaaRhys.Nãoeraàtoaqueeletivesseaproveitadotodasaschancesde
provocarTamlin.Talvezminhapresençaalifosseapenaspara...
Não.Eu sabiaquenão eraverdade.Sabiaque estar ali não tinhanada aver
comoquehaviaentreRhyseTamlin,emboraele,semdúvida,tivessegostadode
interrompernossocasamento.Demesalvardaquelecasamento,naverdade.
—Feyre—disseRhys,conformeofogoseextinguia.
Masaliestava... crepitandoemminhasveias.Crepitandoao ladodeveiasde
geloeágua.
Eescuridão.
Brasassubiamaonossoredor,flutuandonoar,elanceiumsoprodeescuridão
tranquilizadora,umsoprodegeloeágua,comose fosseumvento;umventono
crepúsculo,limpandoomundo.
OpodernãopertenciaaosGrão-Senhores.Nãomais.
Elepertenciaamim;assimcomoeusópertenciaamim,comomeufuturoera
meuparadecidir,paraforjar.
Depoisquedescobrisseedominasseoqueosdemaistinhammedado,poderia
entrelaçá-los:emalgonovo,algodetodasascortesedenenhumadelas.
Chamas chiaram quando se extinguiram tão completamente que nenhuma
fumaçarestou.
Mas encontrei o olhar de Rhys, os olhos pareciam um pouco arregalados
enquantomeobservavatrabalhar.Falei,comavozrouca:
—Porquenãomecontouantes?
Ao ver Rhys com o traje de combate illyriano, as asas abertas por toda a
extensãodaclareira,aespadadespontandoporcimadoombro...
Ali, naquele buraco em meu peito; eu vi a imagem ali. À primeira
interpretação, Rhys pareceria assustador, a vingança e a ira encarnadas.Mas de
perto... apinturamostraria abelezano rosto, as asas abertasnãopara ferir,mas
paramelevarparalongedoperigo,parameproteger.
— Não queria que pensasse que estava tentando jogá-la contra ele —
respondeuRhysand.
Apintura...euconseguiavê-la;senti-la.Euqueriapintá-la.
Euqueriapintar.
NãoespereiqueRhysestendesseamãoparameaproximardele.E,encarando-
o,falei:
—Queropintarvocê.
Rhysmeergueunosbraçoscomcuidado.
—Nuseriamelhor—disseele,aomeuouvido.
Eu estava com tanto frio que talvez jamaisme aquecesse de novo.Mesmo no
invernonomundomortal,conseguiraencontraralgumafontedecalor,masdepois
de quase esvaziar meu estoque de magia naquela tarde, nem mesmo o fogo
crepitantedalareiraconseguiriadescongelarofrioqueenvolviameusossos.Será
queaprimaveraalgumdiachegavaàquelelugarmaldito?
— Eles escolhem esses lugares— disse Cassian, diante de mim, conforme
comíamosensopadodecordeiroàmesadispostanocantodaparteanteriordacasa
depedra.—Apenasparasecertificardequeosmaisfortesentrenóssobrevivam.
—Pessoashorríveis—resmungouMorparaatigeladebarro.—Nãoculpo
Azporjamaisquererviraqui.
—Suponhoquetreinarasgarotastenhaidobem—observouRhys,aomeu
lado,comacoxatãopróximaqueocalorroçoucontraaminha.
Cassianesvaziouacanecadecerveja.
—Conseguiqueumadelasconfessassequenão tinhamuma liçãohaviadez
dias.Todasestavamocupadasdemaiscom“tarefas”,aparentemente.
—Nenhumaguerreiranatanessebando?
—Três,naverdade—disseMor.—Trêsemdeznãoénadamal.Asoutras,
euficariafelizseapenasaprendessemasedefender.Masaquelastrês...Elastêmo
instinto,asgarras.Sãoasfamíliasidiotasquequeremquetenhamasasascortadase
viremreprodutoras.
Eumelevanteidamesaeleveiatigelaparaapiaembutidanaparede.Acasa
erasimples,masaindaeramaioreestavaemmelhorescondiçõesquenossovelho
chalé. A sala da frente servia como cozinha, sala de estar e de jantar, com três
portasnos fundos:umaparaobanheiro,outraparaadespensa,ea terceiraeraa
saídados fundos,poisnenhumverdadeiro illyriano,deacordocomRhys, jamais
construíaumlarcomapenasumasaída.
—Quando parte para aCidadeEscavada amanhã?—perguntouCassian a
Mor,tãobaixoqueeusoubequeprovavelmenteestavanahoradesubir.
Morarranhouofundodatigela.Aparentemente,Cassianfizeraoensopado...e
nãoestavanadamal.
—Depois do café.Antes.Não sei.Talvez à tarde, quando estiverem todos
acordando.
Rhys estavaumpasso atrásdemim, coma tigelanamão, e indicoupara eu
deixassealouçasujanapia.Eleinclinouacabeçanadireçãodaescadaíngremee
estreita nos fundos da casa. Era ampla o bastante para que coubesse apenas um
guerreiroillyriano—maisumamedidadesegurança—,eolheiparaamesauma
últimavezantesdedesaparecerparaoandardecima.
Mor e Cassian encaravam as tigelas vazias de comida, conversando
tranquilamente,paravariar.
Acadapasso,euconseguiasentirRhysàscostas,ocalor,ateiaeafluidezde
seupoder.Enaquelepequenoespaço,ocheirodeRhystomoucontademim,me
chamou.
Oandardecimaeraescuro,iluminadopelapequenajanelanofimdocorredor,
eo luarentravaporuma fendaestreitaentreospinheirosaonosso redor.Havia
apenasduasportasali,eRhysapontouparaumadelas.
—VocêeMorpodemdividirestequartoestanoite,apenasdigaaelaparase
calarsetagarelardemais.—Eunãodiria,noentanto.Seprecisasseconversar,se
distrair e estar pronta para o que viria no dia seguinte, eu a ouviria até o
amanhecer.
Rhyscolocouamãonaprópriamaçaneta,maseumeinclineicontraamadeira
deminhaporta.
Seriatãofácildarostrêspassosparacruzarocorredor.
Passarasmãosporaquelepeito,tracejaraqueleslindoslábioscomosmeus.
EngoliemsecoquandoRhyssevirouparamim.
Não queria pensar no que queria dizer, no que estava fazendo. O que era
aquilo—oquequerquefosse—entrenós.
Porque as coisas entre nós jamais tinham sido normais, desde o primeiro
momentoemquenosconhecemosnoCalanmai.Eunãoconseguirameafastardele
comfacilidadeentão,quandoacheiqueeramortal,perigoso.Masagora...
Traidora,traidora,traidora...
Rhysabriuaboca,maseujáestavadentrodoquartoefecharaminhaporta.
Chuvacongelantepingavaentreosgalhosdospinheirosconformeeucaminhava
emmeioànévoacommeu trajedecombatedecouro illyriano,armadacomum
arco,umaaljavaefacas,tremendocomoumcãomolhado.
Rhysestavaalgunsmetrosatrás,carregandonossabagagem.Tínhamosvoado
bemparao interiordas estepesda floresta, tão longequeprecisaríamospassar a
noiteali.Tãolongequeninguémenadapoderiaveroutra“gloriosaexplosãode
chamas e temperamento”, como Rhys chamara. Azriel não recebera notícias de
minhasirmãsarespeitodadecisãodasrainhas,então,tínhamostemposdesobra.
EmboraRhys certamentenãoparecesse ter tempoquandome informounaquela
manhã.Maspelomenosnãoprecisaríamosacamparláfora.Rhysmeprometeuque
haviaalgumtipodeestalagemparaviajantesporperto.
Eume virei para ondeRhys caminhava, atrás demim, e vi as imensas asas
primeiro. Mor tinha partido antes de eu sequer acordar, e Cassian estava
irritadinhoeansiosonocafédamanhã...Tantoquefiqueifelizempartirassimque
termineiomingau.Emesentiumpoucomalpelosillyrianosqueprecisariamlidar
comelenaqueledia.
Rhysparouquandomealcançou,e,mesmocomasárvoreseachuvaentrenós,
pudeversuassobrancelhasseerguerememumaperguntasilenciosasobreporque
eutinhaparado.NãotínhamosfaladosobreaQuedadasEstrelasousobreaCorte
dosPesadelos—e,nanoiteanterior,enquantoeumereviravanaminúsculacama,
decidi: diversão e distração. Não precisava ser complicado. Manter as coisas
puramentefísicas...bem,nãopareciamuitocomtraição.
Ergui amão, sinalizando para que Rhys ficasse onde estava.Depois do dia
anterior,nãoqueriaqueele seaproximassemuito,paraqueeunãooqueimasse.
Oupior.Rhysfezumareverênciadramática,erevireiosolhosconformecaminhei
atéo córregoadiante, contemplandoondepoderia,de fato, tentarbrincar como
fogodeBeron.Meufogo.
Acadapasso,euconseguia sentiroolhardeRhysmedevorando.Ou talvez
fossealigação,tocandonosmeusescudosmentais;lampejosdefometãoinsaciável
queeradifícilmeconcentrarnatarefadiantedemim,enãonasensaçãodassuas
mãosacariciandominhascoxas,meempurrandocontraele.
Eupodiajurarquesentiumpingodediversãodooutroladodoescudomental
também.Sibileiefizumgestovulgarporcimadoombro,quandodeixeioescudo
cair,apenasumpouquinho.
Aqueladiversãosetransformouempuroprazer—e,depois,emumacarícia
dedesejoquepercorreuminhaespinhaatéembaixo.Maisembaixo.
Meurostoficouquente,eumgalhosepartiusobminhabota,osomtãoalto
quanto relâmpago. Trinquei os dentes. O chão se inclinava na direção de um
córrego cinzento e forte, tão rápido que só podia ser alimentado pelas altas
montanhascobertasdeneveaolonge.
Bom; aquele ponto era bom.Havia ali um suprimento amais de água para
afogarquaisquerchamasquepudessemescapar, emuitoespaçoaberto.Ovento
sopravaparalongedemim,levandomeucheiroparaosul,maisparaointeriorda
floresta,quandoabriabocaparadizeraRhysqueficasseparatrás.
Comaqueleventoeocórregoruidoso,nãofoisurpresaqueeunãoostivesse
ouvidoatéquemecercassem.
—Feyre.
Eumevirei,comaflechaarmadaeapontadaparaafontedavoz...
Quatro sentinelas da Corte Primaveril saíram andando das árvores atrás de
mimcomoespectros,armadosatéosdentesedeolhosarregalados.Doisdeleseu
conhecia:BroneHart.
EentreelesestavaLucien.
Seeuquisesseescapar,poderiaencararorio,ouencararosfeéricos.MasLucien...
Os cabelos vermelhos estavam presos para trás, e não havia um pingo de
elegância:apenasarmaduradecouro,espadas,facas...OolhodemetaldeLucien
mepercorreu,apeledouradapareciapálida.
—Estamoscaçandovocêhámaisdedoismeses—sussurrouLucien,agora
observandoobosque,ocórrego,océu.
Rhys.QueoCaldeirãomesalvasse.Rhysestavamuitoparatráse...
—Comomeencontrou?—Nãoreconheciminhavozcalmae fria.Masme
caçando.Comoseeurealmentefosseumapresa.
Se Tamlin estava ali... Meu sangue gelou mais que a chuva congelante
escorrendopormeurosto,minhasroupas.
—Alguém nos deu a informação de que estaria aqui, mas foi sorte termos
sentidoseucheironoventoe...—Luciendeuumpassoemminhadireção.
Eurecuei.Apenasummetroentremimeorio.
OolhodeLuciensearregaloulevemente.
—Precisamossairdaqui.Tamlinestá...nãotemsidoelemesmo.Voulevá-la
diretopara...
—Não—sussurrei.
Apalavraecoouroucapelachuva,pelocórrego,pelaflorestadepinheiros.
As quatro sentinelas se entreolharam, então olharam para a flecha que eu
mantinhapuxada.
Lucienmeobservoudenovo.
Epudeveroqueeleagoraenxergava:ocourodecombateillyriano.Acorea
vivacidadequetinhamvoltadoameurosto,ameucorpo.
Eoaçosilenciosoemmeuolhar.
—Feyre—disseLucien,estendendoamão.—Vamosparacasa.
Nãomemovi.
—Aqueledeixoudesermeularnodiaemquevocêodeixoumetrancafiarlá
dentro.
AbocadeLuciensecontraiu.
— Foi um erro. Todos cometemos erros. Ele está arrependido, mais
arrependidodoquevocêpode imaginar.Eeu também.—Luciendeuumpasso
emminhadireção,erecueimaisalgunscentímetros.
Nãorestavamuitoentremimeaságuasagitadasabaixo.
O treinamento de Cassian me atingiu, como se todas as lições que ele me
impunhatodasasmanhãsfossemumaredequemesegurouenquantoeumeatirava
aopânicocrescente.DepoisqueLucienmetocasse,elenosatravessaria.Nãopara
longe—elenãoeratãopoderosoassim,maserarápido.Saltariaporquilômetros,
edepoismaisemais longe,atéqueRhysnãopudessemealcançar.Elesabia que
Rhysestavaali.
—Feyre—implorouLucien,eousoudaroutropassocomamãoestendida.
Minhaflechaseinclinouemsuadireção,oarcorangeu.
Não tinhapercebidoque, emboraLucien fosse treinado comoumguerreiro,
Cassian,Azriel,MoreRhyseramGuerreiros.CassianpodiaapagarLuciendaface
daterracomumúnicogolpe.
—Abaixe a flecha—murmurou Lucien, como se estivesse acalmando um
animalselvagem.
Atrásdeleasquatrosentinelasseaproximaram.Estavammecercando.
ObichodeestimaçãoeapossedoGrão-Senhor.
—Não—sussurrei.—Me.Toque.
—Vocênãoentendeasituaçãoemqueestamos,Feyre.Nós...euprecisode
vocêemcasa.Agora.
Eunãoqueriaouvir.Olhandoparaorioabaixo,calculeiminhaschances.
Olharmecustou.Lucienavançoucomamãoestendida.Umtoque,eratudo
queseriapreciso...
EunãoeramaisobichodeestimaçãodoGrão-Senhor.
Etalvezomundodevesseaprenderqueeutinhamesmopresas.
OdedodeLucienroçouamangademeucasacodecouro.
Eeumetorneifumaçaecinzasenoite.
O mundo ficou silencioso e se dobrou, e ali estava Lucien, avançando tão
lentamente no que agora era espaço vazio quando desviei dele, quando disparei
paraasárvoresatrásdassentinelas.
Parei, e o tempo retomou o ritmo natural. Lucien cambaleou, segurando-se
paranãocairdopenhasco—esevirou,deolhosarregalados,parameveragora
depéatrásdassentinelas.BroneHartseencolheramerecuaram.Demim.
EdeRhysand,aomeulado.
Lucien congelou. Transformeimeu rosto em um espelho de gelo: o gêmeo
insensíveldadiversãocruelnaexpressãodorostodeRhysandquandoelelimpou
umfiapodetecidodatúnicaescura.
Roupasescuraseelegantes—semasas,semcourodecombate.
Asroupaselegantesesemvincos...Outraarma.Paraesconderoquantoeleera
habilidosoepoderoso;paraesconderdeondevinhaeoqueamava.Umaarmaque
valiaocustodamagiaqueRhysusavaparaescondê-la;mesmoquenospusesseem
riscodesermosrastreados.
—PequenoLucien—ronronouRhys.—ASenhoradaCorteOutonalnão
ensinouavocêquequandoumamulherdiznão,énão?
— Canalha — grunhiu Lucien, passando em disparada para além das
sentinelas,massemousartocarasarmas.—Seucanalhaimundoedevasso.
Solteiumgrunhido.
OsolhosdeLuciensesemicerraramparamim,eelefalou,comhorrorquase
silencioso:
—Oquevocêfez,Feyre?
—Nãovenhaatrásdemimdenovo—avisei,comamesmavozbaixa.
—Elenuncavaiparardeprocurá-la;nuncavaiparardeesperarquevoltepara
casa.
Aspalavrasmeatingiramnoestômago...comoeraoobjetivo.Deveterficado
estampadoemmeurosto,porqueLucieninsistiu:
—Oqueelefezcomvocê?Elepegousuamentee...
—Basta—disseRhys, inclinandoacabeçacomaquelagraciosidadecasual.
—Feyre e eu estamosocupados.Voltepara suas terras antesque eumande sua
cabeça como um lembrete ao meu velho amigo do que acontece quando
subalternosdaCortePrimaverilcolocamospésemmeuterritório.
A chuva congelante escorreu pela gola de meu traje, descendo por minhas
costas.OrostodeLucienestavamortalmentepálido.
—Vocêjáprovouoquequeria,Feyre...Agora,volteparacasa.
—Não souumacriança fazendo joguinhos—falei, entredentes.Eraassim
queelesmeviam:precisandoserpaparicada,ouvirdesculpas,serdefendida...
— Cuidado, Lucien — aconselhou Rhysand. — Ou a querida Feyre vai
mandarvocêdevoltaempedaçostambém.
—Nãosomosseusinimigos,Feyre—suplicouLucien.—Ascoisasficaram
ruins,Ianthesaiudocontrole,masnãoquerdizerquevocêdesiste...
—Vocêdesistiu—sussurrei.
SentiatémesmoRhysficarimóvel.
—Você desistiu de mim— repeti, um poucomais alto.—Você era meu
amigo.Eoescolheu,escolheuobedecê-lo,mesmoquandoviuoqueasordenseas
regrasdelefaziamcomigo.Mesmoquandomeviudefinhandodiaapósdia.
—Nãotemideiadecomoaquelesprimeirosmesesforamvoláteis—disparou
Lucien.—Precisávamosapresentarumafrenteunidaeobediente,eeudeviasero
exemploparatodososoutrosnacorte.
—Vocêviuoqueestavaacontecendocomigo.MastemiaTamlindemaispara
realmentefazeralgoarespeito.
Era medo. Lucien tinha insistido com Tamlin, mas só até certo ponto. Ele
semprecedianofinal.
—Euimploreiavocê—falei,aspalavrasafiadaseofegantes.—Imploreia
você tantasvezesparaquemeajudasse,queme tirasseda casa,mesmoporuma
hora.Evocêmedeixousozinha,oumeenfiouemumquartocomIanthe,oume
disseparaaguentar.
Lucienfalou,baixodemais:
—EsuponhoqueaCorteNoturnasejamuitomelhor?
Lembrei...melembreidoqueeudeveriasaber,tervivido.OqueLucieneos
demais jamais poderiam saber, nem mesmo que isso significasse abrir mão de
minhavida.
E eu faria isso. Para manter Velaris segura, para manter Mor e Amren e
CassianeAzriele...Rhysasalvo.
Eudisse aLucien, emvozgrave ebaixa e tão cruelquanto asgarrasque se
formavam na ponta de meus dedos, tão cruel quando o peso assombroso entre
minhasescápulas:
—Quandosepassatantotempopresanaescuridão,Lucien,sepercebequea
escuridãopassaaolhardevolta.
Umpulsodesurpresa,deprazermaliciosocontrameusescudosmentais,para
asasasescurasepalmadasqueeusabiaqueagoradespontavamporcimademeus
ombros.Cadabeijogeladodachuvalançavadescargasfriaspormim.Sensíveis...
tãosensíveisaquelasasasillyrianas.
Lucienrecuouumpasso.
—Oquefezcomvocêmesma?
Deiumbrevesorrisoparaele.
—AgarotahumanaquevocêconheciamorreuSobaMontanha.Nãotenho
interessealgumempassara imortalidadecomobichodeestimaçãodeumGrão-
Senhor.
Luciencomeçouasacudiracabeça.
—Feyre...
—DigaaTamlin—falei,engasgandoaopronunciaronome,aopensarno
que ele fizera a Rhys, à família dele— que se mandar mais alguém para estas
terras, vou caçar cada um de vocês. E vou demonstrar exatamente o que a
escuridãomeensinou.
HaviaalgocomodorgenuínanorostodeLucien.
Eunãomeimportava.Apenasoobservei,irredutível,friaesombria.Acriatura
queumdiaeupoderiatermetornadocasotivesseficadonaCortePrimaveril,caso
tivesse permanecido quebrada durante décadas, séculos... até aprender a
silenciosamentedirecionaraquelescacosdedorparafora,aprendesseasaboreara
dordosoutros.
Lucien assentiu para as sentinelas. Bron e Hart, de olhos arregalados e
trêmulos,sumiramcomosoutrosdois.
Luciensedemorouummomento,nadaalémdearechuvaentrenós.Eledisse
baixinho,paraRhys:
—Vocêestámorto.Vocêetodaasuacortemaldita.
Então,Luciensefoi.Encareiaqueleespaçovazioondeeleestivera,esperando,
esperando,semdeixarqueaquelaexpressãodeixassemeurostoatéqueumdedo
quenteefortetraçasseumalinhapelabeirademinhaasadireita.
Pareceu...pareceuumsoproemminhaorelha.
Estremeci,arqueandoocorpoaomesmotempoemqueexpirei.
E,então,Rhysestavanaminhafrente,observandomeurosto,asasasatrásde
mim.
—Como?
— Metamorfose — consegui dizer, e observei a chuva descer pelo rosto
bronzeadodeRhys.Emedistraítantoqueasgarras,asasas,aescuridãoondulante
sumiram,efiqueileveecomfrioemminhapele.
Metamorfose...aopensarempartedahistória,nomachodequemeunãome
permitialembrar.Metamorfose;umdomdeTamlinqueeunãoqueria,doqualnão
precisara...atéagora.
OsolhosdeRhyssesuavizaram.
—Foiumaatuaçãomuitoconvincente.
—DeiaeleoqueLucienqueriaver—murmurei.—Deveríamosencontrar
outrolugar.
Ele assentiu, e a túnica e a calça de Rhys sumiram, foram substituídas por
aqueletrajedecourofamiliar,asasas,aespada.Meuguerreiro...
Nadameu.
—Você está bem?— perguntou Rhys, quandome pegou nos braços para
voarconoscoparaoutrolugar.
Eumeaninheiemseucalor,aproveitando.
—Ofatodequefoitãofácil,dequeeumesentitãopequena,medeixamais
chateadaqueopróprioencontro.
Talvezessefossemeuproblemadesdeoinício.Porqueeunãotinhaousado
dar aquele passo final naQueda das Estrelas. Eume sentia culpada por nãome
sentirterrível,nãodeverdade.NãoporquererRhysand.
Algumas batidas poderosas das asas nos lançaram para o alto das árvores e
disparandobaixoporcimadafloresta;achuvaferiameurosto.
— Eu sabia que as coisas estavam ruins— disse Rhysand, com um ódio
silencioso,quaseinaudívelporcimadalâminadegelodoventoedachuva.—Mas
acheiqueLucien,aomenos,teriaseintrometido.
—Eutambém—falei,avozmaisbaixadoquepretendia.
Rhys me apertou com carinho, e pisquei para ele em meio à chuva. Pela
primeiravez,eleestavacomosolhosemmim,enãonapaisagemabaixo.
—Vocêficabemdeasas—disseRhys,ebeijouminhatesta.
Atémesmoachuvaparoudeparecertãofria.
Aparentemente, a “estalagem” próxima não passava de pouco mais que uma
tavernabarulhenta,comalgunsquartosparaalugar—emgeralporhora.E,pelo
visto,nãohaviavagas.Excetoporumquartominúsculo,minúsculo,noqueumdia
forapartedosótão.
Rhys não queria que ninguém soubesse quem, exatamente, estava entre os
Grão-Feéricos, os feéricos e os illyrianos, e quem mais estava hospedado na
estalagemabaixo.EmboraeumaloreconhecessequandoRhys—semmagia,sem
qualquer coisa exceto ajustar a postura — calou aquela sensação de poder
sobrenatural até não passar de um guerreiro illyriano comum e muito belo,
nervosinhopor precisar pegaroúltimoquartodisponível, tãono alto quehavia
apenasumaescadaestreitaatéele:nenhumcorredor,nenhumoutrocômodo.Seeu
precisasse usar o banheiro, teria de me aventurar no nível abaixo, o qual...
considerando os cheiros e os sons da meia dúzia de quartos naquele nível, fiz
questãodeusarrapidamentequandosubimoseentão jurarnãovisitá-lodenovo
atéamanhã.
Umdia brincando com água e fogo e gelo e escuridão na chuva congelante
tinhame exaurido tanto que ninguémme olhava, nemmesmo omais bêbado e
solitáriodosclientesdatavernadacidade.Apequenacidademalpassavadaquilo:
umconjuntoformadopelaestalagem,umaalfaiataria,umamerceariaeumbordel.
Tudo voltado para os caçadores, os guerreiros e os viajantes que passavam por
aquela parte da floresta a caminho das terras illyrianas, ou para fora delas. Ou
apenasparaos feéricosquemoravamali, solitáriose felizescom isso.Pequenae
remotademaisparaqueAmaranthaeseuséquitosequerseimportassem.
Sinceramente,nãome interessavaondeestávamos,contantoquefossesecoe
quente.Rhysabriuaportaparanossosótãoeseafastouparamedeixarpassar.
Bem,pelomenosoquartoeraseco.
Otetoeratãorebaixadoque,parachegaraooutroladodacama,euprecisaria
engatinharpelocolchão;oquartoeratãominúsculoqueeraquaseimpossíveldara
volta pela cama até o armário mínimo enfiado contra a outra parede. Eu podia
facilmentesentarnacamaeabriroarmário.
Acama.
—Eupediduas—falouRhys,jácomasmãoserguidas.
Arespiraçãodele secondensoudiantedorosto.Nãohavianemmesmouma
lareira.EnãohaviaespaçobastanteparaqueeusequerexigissequeRhysdormisse
no chão.Não confiei nomeudomíniodas chamaspara tentar aquecer o quarto.
Provavelmentequeimariaaquelaespeluncatodaatéochão.
—Senãopodearriscarusarmagia,entãoprecisaremosaquecerumaooutro
—falei,eimediatamentemearrependi.—Calordocorpo—esclareci.E,sópara
tirar aqueleolhardo rostodele, acrescentei:—Minhas irmãs e euprecisávamos
dividirumacama,estouacostumada.
—Voutentarsegurarasmãos.
Minhabocaficouumpoucoseca.
—Estoucomfome.
Rhysparoudesorriraoouvirisso.
—Voudescerepegarcomidaparanósenquantovocêsetroca.—Erguiuma
sobrancelha.Rhysfalou:—Pormaisqueminhashabilidadesdememisturarsejam
notáveis, meu rosto é reconhecível. Prefiro não ficar lá embaixo por tempo
suficienteparasernotado.—Defato,eletirouummantodasacolaeovestiu,as
faixas verticais cobriram as asas, as quais Rhys não arriscaria fazer sumirem de
novo.Eleusarapodermaiscedonaqueledia,muitopouco,dissera,paratalveznão
sernotado,masnãovoltaríamosparaaquelapartedaflorestatãocedo.
Rhysvestiuocapuz,emedelicieicomassombras,aameaçaeasasas.
Morteemasasligeiras.Eracomoeuchamariaapintura.
Rhysfalou,baixinho:
—Adoroquandovocêmeolhaassim.
Oronronarnavozaqueceumeusangue.
—Como?
—Comosemeupodernãofossealgodoqualfugir.Comosevocêmevisse
realmente.
E para ummacho que tinha crescido sabendo que era o Grão-Senhor mais
poderoso da história de Prythian, que podia destruir mentes se não tomasse
cuidado,queestavasozinho,sozinhocomaquelepoder,aquelefardo,queomedo
era sua armamaispoderosa contra as ameaças a seupovo...Euacertei emcheio
quandobrigamos,depoisdaCortedosPesadelos.
—Tivemedodevocêaprincípio.
OsdentesbrancosdeRhysbrilharamnassombrasdocapuz.
—Não tevenão.Nervosa, talvez,mas jamais sentiumedo. Já sentio terror
genuíno em pessoas suficientes para saber a diferença. Talvez por isso eu não
conseguisseficarlonge.
Quando?Antesqueeupudesseperguntar,Rhysdesceuasescadas,fechandoa
portaatrásdesi.
Foiumsuplíciotirarminhasroupassemicongeladas,poisseagarravamàpele
molhada de chuva, e me choquei contra o teto rebaixado, contra as paredes
próximas,ebaticomojoelhonomastrodelatãodacamaenquantometrocava.O
quarto estava tão frio que precisei me despir aos poucos: troquei uma camisa
congeladaporumaseca,acalça,porleggingcomforrodelã,easmeiasensopadas,
pormeiõesde crochêespessos, feitos àmão,que subiamaté as canelas.Quando
vestiumsuétergrandedemaisquetinhaumlevecheirodeRhys,senteidepernas
cruzadasnacamaeesperei.
Acamanãoerapequena,mascertamentenãoeragrandeobastanteparaque
eufingissequenãoestariadormindoaoladodele.Principalmentecomasasas.
Achuvapingavanotelhadoapoucocentímetrosdeondeeuestava:umabatida
constanteparaospensamentosqueagoralatejavamemminhamente.
SóoCaldeirãosabiaoqueLucienestavarelatandoaTamlin,provavelmente
naqueleexatomomento,senãohorasantes.
Eu tinhamandado aquele bilhete aTamlin... e ele decidiu ignorá-lo.Assim
como ignorara ou rejeitara quase todos os meus pedidos, agira de acordo com
aquele senso iludidodoqueele acreditavasercertoparameubem-estareminha
segurança.ELucienestavapreparadoparamelevarcontraavontade.
Machos feéricos eram territoriais, dominantes, arrogantes—mas aquelesna
CortePrimaveril... tinhaalgodepodre emseu treinamento.Porqueeu sabia—
bemnofundo—queCassianpodiainsistiretestarmeuslimites,mas,assimqueeu
dissessenão,elerecuaria.Eeusabiaquese...seeuestivessedefinhandoeRhysnão
fizesse nada para impedir,Cassian ouAzriel teriamme salvado. Eles teriamme
levado para algum lugar—onde quer que eu precisasse estar— e lidado com
Rhysdepois.
MasRhys...Rhysjamaisterianãovistooqueaconteciacomigo;jamaisestaria
tãoerrado,seriatãoarroganteouautocentrado.ElesabiaoqueIantheeradesdeo
momento em que a conheceu. E entendia como era ser uma prisioneira, e estar
indefesa,elutar—todososdias—contraoshorroresdeambos.
EuamaraoGrão-Senhorquetinhamemostradoosconfortoseasmaravilhas
dePrythian;amaraoGrão-Senhorquemedeixoutertempoecomidaesegurança
para pintar. Talvez uma pequena parte de mim sempre se importasse com ele,
mas...Amaranthanosquebrara,aosdois.Oumequebraratantoquequemeleera
nãopareciamaisadequado.
E eu podiame libertar disso. Podia aceitar isso.Talvez fosse difícil por um
tempo,mas...talvezmelhorasse.
OspésdeRhyseramquasesilenciosos,delatadosapenaspeloleverangidodas
escadas. Fiquei de pé para abrir a porta antes que ele pudesse bater, e o vi ali,
parado, com uma bandeja emmãos.Nela havia duas pilhas de pratos cobertos,
alémdeduastaças,umagarrafadevinhoe...
—Digaque esse cheiro é de ensopado.— Inspirei, saí da frente e fechei a
portaenquantoRhyscolocavaabandejanacama.Certo...nãohavianemmesmo
espaçoparaumamesaali.
—Ensopadodecoelho,seéquepodemosacreditarnocozinheiro.
—Eupodiaviversemouvir isso—falei,eRhyssorriu.Aquelesorrisodeu
umpuxãoemalgonofundodemeuestômago,evireiorosto,sentandoaoladoda
comida,comocuidadodenãoagitarabandeja.Tireiatampadospratosdecima:
duastigelasdeensopado.—Oqueéooutropratoaquiembaixo?
—Tortadecarne.Nãoouseiperguntarquetipodecarne.—OlheiparaRhys
com raiva, mas ele já estava dando a volta na cama, até o armário, com sua
bagagemnamão.—Podecomer—falouRhys.—Voutrocarderoupaprimeiro.
Defato,eleestavaensopado;esópodiaestarcongeladoedolorido.
—Vocêdeveria ter trocadode roupa antes dedescer.—Peguei a colher e
revireioensopado,suspirandoaoverasespiraisquentesdevaporqueseergueram
parabeijarmeurostofrio.
Ofarfalhareosruídosderoupasmolhadassendotiradaspreencheuoquarto.
Tentei não pensar naquele peito nu, bronzeado, nas tatuagens. Nos músculos
firmes.
—Foivocêquempassouodia treinando.Trazerumarefeiçãoquenteerao
mínimoqueeupodiafazer.
Tomeiumpoucodoensopado.Insípido,porémcomestívele,maisimportante,
quente.Comiemsilêncio,ouvindoofarfalhardasroupasdeRhyssendotrocadas,
tentandopensarembanhosfrios,ouferidasinfeccionadas,oumicoses—qualquer
coisa,menosocorponu,tãoperto...eacamanaqualeuestavasentada.Serviuma
taçadevinhoparamim,edepoisenchiadele.
Porfim,Rhysseespremeuentreacamaeocantodaparedequeseprojetava
parafora,asasasbemrecolhidas.Rhysusavacalçalargaefina,eumacamisajusta
doquepareciaseroalgodãomaismacio.
—Comoapassaporcimadasasas?—perguntei,enquantoRhysdevoravao
próprioensopado.
—Ascostassãofeitascomfendasquesefechamcombotõesescondidos...mas
emcircunstânciasnormais,euapenasusomagia.
—Parecequevocêtemmuitamagiaemusoconstantedeumavez.
Umgestodeombros.
—Meajudaatrabalharocontrolesobreopoder.Amagiaprecisadealívio,
drenagem,ouseacumulaemedeixalouco.Porissochamamosaspedrasillyrianas
deSifões:elasajudamacanalizaropoder,aesvaziá-loquandonecessário.
—Loucodeverdade?—Afasteiatigelavaziadeensopadoeretireiatampa
datortadecarne.
—Loucodeverdade.Ouéoquemeavisaram.Maspossosentiropuxãose
ficarmuitotemposemliberaropoder.
—Issoéhorrível.
Outrogestodeombros.
—Tudotemseucusto,Feyre.Seopreçodeserforteobastanteparaproteger
meupovoéprecisarlutarcomessemesmopoder,então,nãomeimporto.Amren
me ensinou o suficiente sobre como controlá-lo.O suficiente para que eu deva
muitoaela.Inclusiveoescudoatualsobreminhacidadeenquantoestamosaqui.
TodosaoredordeRhystinhamalgumautilidade,algumahabilidadepoderosa.
Mas ali estava eu... nadamais que uma estranha híbrida.Mais problema do que
valiaapena.
—Nãoé—contestouRhys.
—Nãoleiameuspensamentos.
—Nãopossoevitaroquevocêàsvezesgritapelaligação.E,alémdisso,tudo
costumaestarestampadoemseurosto,sesouberondeprocurar.Oquetornousua
atuaçãohojemuitomaisimpressionante.
Rhysdeixouoensopadode ladoquando termineidedevorarminha tortade
carneedeslizeipara trásnacama,atéos travesseiros, segurandoa taçadevinho
entreasmãosfrias.Observei-ocomerenquantoeubebia.
—Achouqueeuiriacomele?
Rhysparounomeiodeumagarfadae,então,abaixouogarfo.
—Ouvicadapalavraentrevocês.Eusabiaquepodiacuidardesi,mas...—
Rhysretornouàtorta,engolindoumamordidaantesdecontinuar:—Masmevi
decidindoque,sevocêtomasseamãodele,euencontrariaumaformadevivercom
isso.Seriasuaescolha.
Bebiovinho.
—Eseeletivessemeagarrado?
NãohavianadaalémdeforçadevontadeirredutívelnosolhosdeRhys.
—Então,euteriadestruídoomundopararesgatá-la.
Umcalafriopercorreuminhaespinha,enãopudetirarosolhosdele.
—Euteriadisparadoaflecha—sussurrei.—Seeletivessetentadoferirvocê.
Eunãoadmitiraaquilonemparamimmesma.
OsolhosdeRhysbrilharam.
—Eusei.
Ele terminou de comer, colocou a bandeja vazia no canto eme encarou na
cama,enchendomeucopoantesdecuidardodele.Rhyseratãoaltoqueprecisava
seabaixarparanãobatercomacabeçanotetorebaixado.
— Um pensamento em troca de outro — sugeri. — Sem treinamento
envolvido,porfavor.
UmarisadaroucasaiudeRhys,eeleesvaziouataça,apoiando-anabandeja.
Rhysmeobservoutomarumlongogole.
—Estoupensando—disse ele, seguindoomovimentodeminha línguano
lábio inferior—queolhoparavocêeme sinto como se eu estivessemorrendo.
Como se não conseguisse respirar. Estou pensando que a quero tanto que não
consigomeconcentrarnametadedo tempoqueestoucomvocê,eestequartoé
pequeno demais para que eume deite com você direito. Principalmente com as
asas.
Meucoraçãodeuumsalto.Nãosabiaoquefazercomosbraços,aspernas,o
rosto.Bebiorestantedovinhoelargueiataçaaoladodacama,tomandocoragem
aodizer:
—Estoupensandoquenãoconsigoparardepensaremvocê.Emesintoassim
hámuito tempo.MesmoantesdeeudeixaraCortePrimaveril.E talvez issome
torneumlixotraidorementiroso,mas...
—Nãotorna—garantiuRhys,orostosério.
Mastornava.EuqueriaverRhysandduranteaquelassemanasentreasvisitas.
E não me importei quando Tamlin parou de visitar meu quarto. Tamlin tinha
desistidodemim,maseutambémdesistiradele.Eeraumlixomentirosoporcausa
disso.
—Deveríamosirdormir—murmurei.
ObarulhodachuvafoioúnicosomduranteumbomtempoantesdeRhysand
dizer:
—Tudobem.
Eu engatinhei por cima da cama, até o lado quase enfiado contra o teto
rebaixado,emeenfieidebaixodacolcha.Lençóis frioseásperosmeenvolveram
como a mão fria de alguém. Mas meu tremor vinha de outra coisa, totalmente
diferente, conforme o colchão semovia, o cobertor se agitava e, então, as duas
velasaoladodacamaseapagavam.
EscuridãomeatingiunomesmomomentoemqueocalordocorpodeRhys
veio.Foidifícilnãomearrastaratéele.Nenhumdenóssemoveu,noentanto.
Encareiaescuridão,ouvindoaquelachuvagélida,tentandoroubarocalorde
Rhys.
—Estátremendotantoqueacamaestásacudindo—disseele.
—Meucabeloestámolhado—expliquei.Nãoeramentira.
Rhysficoucalado,eentãoocolchãorangeu,afundandodiretamenteatrásde
mimquandoseucalormeenvolveu.
—Nenhumaexpectativa—falouRhys.—Apenascalorcorporal.—Fizuma
caretaparaarisadaemsuavoz.
Mas asmãos largas de Rhys deslizaram por baixo e por cima demim: uma
espalmada contra minha barriga e me puxando contra seu calor firme, a outra
deslizando sob as costelas e os braços para envolver meu peito, pressionando a
frente de Rhys contramim. Ele entrelaçou as pernas nasminhas, e depois uma
escuridãomais pesada emais quente se assentou sobre nós, com cheiro de algo
cítricoedemar.
Erguiamãonadireçãodaquelaescuridãoetoqueiummaterialmacio,sedoso
— a asa de Rhys,me encasulando e aquecendo. Passei o dedo por ela, e Rhys
estremeceu,eosbraçosmeapertaram.
— Seu dedo... está muito frio— disse Rhys, com os dentes trincados, as
palavrasquentesemmeupescoço.
Tenteinãosorrir,mesmoquandoinclineiumpoucomaisopescoço,esperando
queocalordarespiraçãodeRhyspudesseacariciá-lodenovo.Arrasteiodedopor
suaasa,eaunharaspousuavementecontraasuperfícielisa.Rhysficoutenso,ea
mãoseabriuemmeuestômago.
— Coisinha cruel e travessa — ronronou Rhys, o nariz roçando a parte
exposta de pescoço que eu tinha arqueado sob ele. — Ninguém lhe ensinou
modos?
— Não sabia que os illyrianos eram bebês tão sensíveis — comentei,
deslizandooutrodedopelointeriordaasadeRhys.
Algoduropressionouminhabunda.Calortomoucontademeucorpo,efiquei
tensaerelaxadaaomesmotempo.AcaricieiaasadeRhysdenovo,agoracomdois
dedos,eeleestremeceucontraminhascostasaoritmodacarícia.
Os dedos que Rhys tinha aberto sobre minha barriga começaram a fazer
carícias suaves epreguiçosas.Rhysgirouumemvoltademeuumbigo, e eume
aproximeiimperceptivelmente,roçandoocorpocontraodele,mearqueandoum
poucomais,paradaràquelaoutramãoacessoaosmeusseios.
—Gananciosa—murmurouRhys, os lábioshesitantes sobremeupescoço.
—Primeiro,vocêmeaterrorizacomasmãosfrias,agoravocêquer...oquevocê
quer,Feyre?
Mais,mais,mais, quase implorei a Rhys conforme seus dedos percorriam a
curvademeusseios,enquantoaoutramãocontinuavaascaríciaspreguiçosasna
alturadabarriga,doabdômen,devagar—tãodevagar—seguindonadireçãodo
cósbaixodeminhacalçaedodesejoqueseacumulavaabaixodeste.
OsdentesdeRhysandroçaramcontrameupescoçoemumacaríciademorada.
—Oquevocêquer,Feyre?—Rhysmordiscouminhaorelha.
Dei umgritinho, arqueando totalmenteo corpo contra ele, como se pudesse
fazercomqueaquelamãodeslizasseexatamenteparaondeeuqueria.Sabiaoque
Rhysqueriaqueeudissesse.Nãodariaaeleessasatisfação.Aindanão.
Então,eudisse:
—Queroumadistração.—Saiusemfôlego.—Euquero...diversão.
OcorpodeRhysficoutensodenovoatrásdemim.
Emepergunteiseele,dealgumaforma,nãoviaaquilopelamentiraqueera;se
achava...seachavaqueerarealmentetudoqueeuqueria.
MasasmãosdeRhysretomaramascarícias.
—Então,mepermitaoprazerdedistraí-la.
Rhyspassouamãoporbaixodapartede cimademeu suéter,mergulhando
diretosobablusa.Pelecompele,oscalosdasmãosmefizeramgemerconforme
roçaramnoaltodemeuseioecircularammeumamilofirme.
—Amoesses—sussurrouRhys,emmeupescoço,comamãodeslizandopara
meuoutroseio.—Nãotemideiadoquantoosamo.
GemiquandoRhysacaricioumeumamilocomonódodedo,emeentreguei
ao toque, silenciosamente implorando. Rhys estava duro como granito atrás de
mim,eeuesfregueiocorponodele,oquefezcomqueRhyssoltasseumchiado
baixoemalicioso.
—Pare com isso—grunhiu ele contraminha pele.—Vai estragarminha
diversão.
Eunãofariatalcoisa.Comeceiamevirar,buscandoRhys,precisandoapenas
senti-lo,maseleemitiuumestalocomalínguaeempurrouocorpocommaisforça
contraomeu,atéquenãorestasseespaçoparaminhamãosequerdeslizar.
—Quero tocá-la primeiro— falouRhys, comavoz tãogutural quemal a
reconheci.—Apenas... me deixe tocar você.—Rhys espalmoumeu seio para
enfatizar.
Foiumasúplicatãopartidaqueparei,cedendoquandoaoutramãodeRhys,
denovo,traçoulinhasemminhabarriga.
Nãoconsigorespirarquandoolhoparavocê.
Medeixetocá-la.
Porqueeuestavacomciúmeseirritado...
Elaéminha.
Afasteiospensamentos,osfragmentosqueRhysmelançava.
Eledeslizouodedopelocósdeminhacalçadenovo,umgatobrincandocomo
jantar.
Denovo.
Denovo.
—Porfavor!—Euconseguidizer.
Rhyssorriucontrameupescoço.
—Aí estão seus modos.— Sua mão, por fim, desceu sob minha calça. O
primeiro toque de Rhys contra mim me arrancou um gemido do fundo da
garganta.
Elegrunhiucomsatisfaçãopelaumidadequeencontrouesperando,eopolegar
circulou por aquele ponto no ápice deminhas coxas, provocando, roçando para
cima,contraele,massemchegara...
AoutramãodeRhyssuavementepressionoumeuseioaomesmotempoem
queopolegardesceuatéondeeuqueria.Empineioquadril,minhacabeçaestava
totalmenteparatráscontraoombrodeRhysagora,semfôlegoenquantoopolegar
deleesfregava...
Solteiumgritinho,eRhysgargalhou,umagargalhadagraveebaixa.
—Assim?
Umgemidofoiminhaúnicaresposta.Maismaismais.
OsdedosdeRhysdeslizarampara baixo, lentos e diretos, atémeu centro, e
cadapontodemeucorpo,minhamente,minhaalmasecontraiudiantedasensação
dosdedosdeleali,comosetivessemtodootempodomundo.
Desgraçado.
—Porfavor—pedi,denovo,eempineiabundaemsuadireçãoparaenfatizar.
Rhys chiou ao sentir o toque e deslizou um dedo para dentro de mim. Ele
xingou.
—Feyre...
Maseujátinhacomeçadoamemovercontraele,eRhysxingoudenovo,com
uma exalação longa.Os lábios pressionarammeu pescoço, beijandomais emais
paracima,nadireçãodeminhaorelha.
Soltei um gemido tão alto que abafou a chuva conforme Rhys deslizou um
segundodedoparadentro,mepreenchendodetalformaquenãoconseguipensar
emmaisnada,nãoconseguirespirar.
—Isso—murmurouele,epercorreuminhaorelhacomoslábios.
Euestavacansadademeupescoçoeminhaorelhaganharemtantaatenção.Eu
mevirei omáximoque consegui, e viRhysme encarando, encarando amãona
frentedeminhacalça,observandoeumeaproximar.
Rhysaindameencaravaquandopegueiabocadelenaminha,mordendoseu
lábioinferior.
Rhysgemeu,mergulhandoosdedosmaisprofundamente.Commaisforça.
Nãomeimportava;nãomeimportavanemumpoucocomoqueequemeuera
eondetinhaestadoquandomeentregueitotalmenteaele,abrindoaboca.Alíngua
deRhysentrou,movendo-sedeumaformaquemediziaexatamenteoqueelefaria
seestivesseentreminhaspernas.
OsdedosdeRhysmergulhavamesaíam,devagarecomforça,eminhaprópria
existênciapareceuseresumiràquelasensação,à tensãoemmimquesubiaacada
caríciaprofunda,acadaimpulsoequivalentedalínguaemminhaboca.
—Vocênão tem ideiadoquantoeu...—Rhys se interrompeu,egemeude
novo.—Feyre.
O som demeu nome em seus lábiosme desfez.O alívio desceu porminha
espinha,egritei,apenasparaqueoslábiosdeRhyscobrissemosmeus,comoseele
pudessedevorarosom.AlínguadeRhysroçouocéudeminhabocaenquantoeu
estremeciaemvoltadele,retesandoocorpo.Rhysxingoudenovo,respirandocom
dificuldade, enquanto os dedosme acariciavamdurante os últimos tremores, até
queeuestivesseinerteetrêmulaemseusbraços.
Eunãoconseguiatomarfôlegosuficiente,rápidoosuficiente,eRhystirouos
dedos,recuandoparaeupudesseencará-lo.Eledisse:
—EuqueriafazerissoquandosentioquantovocêestavaencharcadanaCorte
dosPesadelos.Queriatomarvocêbemali,nomeiodetodos.Mas,principalmente,
só queria fazer isso.—Os olhos deRhys encararamosmeus quando ele levou
aquelesdedosàbocaechupou.
Meugosto.
Euocomeriavivo.DeslizeiamãopelopeitodeRhysparaprendê-lonacama,
eeleseguroumeupulso.
—Quando vocême lamber— disse ele, com a voz rouca—, quero estar
sozinho,muito longede todos.Porquequandovocême lamber,Feyre— falou
Rhys,dandobeijosbrevesemmeumaxilar,meupescoço—,voumedeixarrugir
altoobastanteparaderrubarumamontanha.
Imediatamente,meliquefizdenovo,eRhysgargalhoubaixo.
—Equandolambervocê—disseele,deslizandoosbraçosaomeuredoreme
puxandoparajuntodocorpo—,queroqueestejadeitadaemumamesacomomeu
banquetepessoal.
Solucei.
— Tive muito, muito tempo para pensar em como e onde quero isso —
continuouRhys,contraapeledemeupescoço,osdedosdeslizaramsobocósde
minhacalça,maspararam logoabaixo.O lardelesnaquelanoite.—Não tenho
intençãoalgumadefazertudoemumanoite.Ouemumquartoondenemconsiga
treparcomvocêcontraaparede.
Estremeci. Rhys permanecia longo e duro contramim. Eu precisava sentir,
precisavacolocartodoaqueletamanhodentrodemim...
—Durma— disse Rhys. Ele poderiamuito bem termemandado respirar
debaixod’água.
Mas ele começou a acariciarmeu corpodenovo; nãopara excitar,mas para
acalmar,caríciaslongaselascivasporminhabarriga,pelaslateraisdocorpo.
Osonomeencontroumaisrápidodoquepensei.
E talvez fosse o vinho, ou a consequência do prazer queRhys arrancara de
mim,masnãotivesequerumpesadelo.
Acordeiaquecida,descansadaecalma.
Segura.
Luzdosolentravapelajanelaimunda,iluminandoosvermelhoseosdourados
damuralhade asa diante demim; onde ficara a noite inteira,meprotegendodo
frio.
OsbraçosdeRhysandmeenvolviam,suarespiraçãoeraprofundaeconstante.
E eu sabia que era igualmente raro que ele dormisse tão profundamente, tão
pacificamente.
Oquetínhamosfeitonanoiteanterior...
Comcuidado,eumevireiparaolharparaRhys,seusbraçosmeapertaramde
leve,comoseparaevitarqueeusumissecomanévoadamanhã.
OsolhosdeRhysestavamabertosquandoaninheiacabeçacontraseubraço.
DentrodoabrigodaasadeRhys,nósnosobservamos.
Epercebiquepodiamuitobemmecontentaremfazerexatamenteaquilopara
sempre.
Eudisse,baixinho:
—Por que fez aquele acordo comigo?Por que exigir uma semana demim
todomês?
OsolhosvioletadeRhysestremeceram.
Enãoouseiadmitiroqueesperavaemresposta,masnãoera:
—PorquequeriameimporperanteAmarantha;porquequeriairritarTamlin,
eprecisavamantê-lavivadeumaformaquenãofossevistacomopiedosa.
—Ah.
Suabocasecontraiu.
—Sabe... sabe quenãohá nadaque eunão faria pormeupovo, porminha
família.
Eeueraumpeãonaquelejogo.
AasadeRhyssefechou,episqueidiantedaluzaguada.
—Banhoounão?—disseele.
Eumeencolhidiantedalembrançadobanheirosujoefétidonoandarabaixo.
Usá-loparaatenderminhasnecessidadesjáseriabemruim.
—Prefiromebanharemumcórrego—falei,afastandoasensaçãodepesar
emmeuestômago.
Rhyssoltouumarisadabaixaerolouparaforadacama.
—Então,vamossairdaqui.
Porumsegundo,mepergunteiseteriasonhadotudoquetinhaacontecidona
noiteanterior.Pelaleveeagradáveldormênciaentreminhaspernas,eusabiaque
nãotinha,mas...
Talvezfossemaisfácilfingirquenadatinhaacontecido.
Aalternativapoderiasermaisdoqueeupodiasuportar.
Voamosduranteamaiorpartedodia,parabemlonge,próximodeondeasestepes
da floresta se erguiam para encontrar as montanhas Illyrianas. Não falamos da
noiteanterior—malfalamos.
Outraclareira.Outrodiabrincandocommeupoder.Conjurarasas,atravessar,
fogo e gelo e água e... agora, vento.O vento e as brisas que ondulavam pelos
amplosvalesecamposdetrigodaCorteDiurna,equedepoissopravamaneveque
cobriaospicosmaisaltosdestes.
Euconseguiasentiraspalavrassubindoporeleconformeashorassepassaram.
Euopegavameolhandosemprequeeufaziaumapausa;flagravaRhysabrindoa
boca...edepoisfechando-a.
Choveuemummomento,eentãoficoumaisemaisfriocomotemponublado.
Aindanãotínhamosficadonaflorestadepoisdoanoitecer,emepergunteiquetipo
decriaturaspoderiaespreitarporali.
OsoldefatodesciaquandoRhysmecolocounosbraçosedecolou.
Haviaapenasovento,eocalordele,eoestrondodaspoderosasasas.
—Oquefoi?—arrisquei.
AatençãodeRhyspermanecianospinheirosescurosquepassavam.
—Temmaisumahistóriaqueprecisocontar.
Esperei.Elenãocontinuou.
ColoqueiamãonabochechadeRhys,oprimeirotoqueíntimoquetínhamoso
diainteiro.Apeleestavafria,eosolhos,tristesquandoelemeolhou.
—Nãodouascostas...nãoavocê—jurei,baixinho.
OolhardeRhyssesuavizou.
—Feyre...
Rhysrugiudedor,arqueandoocorpocontramim.
Sentioimpacto;sentiumadorofuscantepormeiodolaçoquedestruiumeus
escudosmentais, senti o estremecer das dezenas de lugares em que as flechas o
tinham atingido quando dispararam de arcos ocultos abaixo da folhagem da
floresta.
E,então,estávamoscaindo.
Rhysmeagarrou,esuamagiaseenroscouaonossoredoremumventoescuro,
preparando-separanoatravessarparaforadali...efracassou.
Fracassou porque aquelas eram flechas de freixo perfurando-o. Perfurando
suasasas.Haviamnosrastreado—nodiaanterior,porcausadapoucamagiaque
Rhys usara contra Lucien, eles tinham, de alguma forma, rastreado e nos
encontrado,mesmotãolonge...
Maisflechas...
Rhysliberouseupoder.Tardedemais.
Flechaslherasgaramasasas.Atingiramaspernas.
Eachoqueeuestavagritando.Nãopormedo, conformemergulhamos,mas
por ele... pelo sangue e pelobrilho esverdeadonaquelas flechas.Não era apenas
freixo,masvenenotambém.
Umventoescuro—opoderdeRhys—sechocoucontramim,e,então,fui
atiradapara longequandoRhysme lançouàs cambalhotaspara alémdoalcance
dasflechas,àscambalhotaspeloar...
OrugidodeiradeRhysestremeceuafloresta,asmontanhasalém.Pássarosse
ergueramemondas,fugindodaqueleurro.
Eumechoqueicontraafolhagemdensa,meucorporeclamoudedorquando
fuiatiradacontramadeiraepinhasefolhas.Emaisemaisparabaixo...
Concentraçãoconcentraçãoconcentração.
Disparei uma onda daquele ar sólido que uma vez me protegera do
temperamentodeTamlin.Atirei-aabaixodemimcomoumarede.
Colidicomumaparede invisível, tãosólidaqueacheiquemeubraçodireito
pudessesequebrar.
Mas...pareidecairentreosgalhos.
Dezmetrosabaixo,ochãoeraquaseimpossíveldevernaescuridãocrescente.
Nãoconfieinaqueleescudoparasegurarmeupesopormuitotempo.
Eumearrasteiatéultrapassaroescudo,tentandonãoolharparabaixo,esaltei
pelos últimos metros até um amplo galho de pinheiro. Disparando acima da
floresta,chegueiaotroncodaárvoreemeagarreiaele,ofegante,reorganizandoa
menteemtornodador,daestabilidadedeestarnochão.
Ouvi—procurandoRhys,asasas,opróximorugido.Nada.
NenhumsinaldosarqueirosaoencontrodosquaisRhysandcaía.Dosquaisele
me atirara tão longe. Tremendo, cravei as unhas na casca da árvore e prestei
atençãoembuscadeRhys.
Flechasdefreixo.Flechasdefreixoenvenenadas.
A floresta ficou ainda mais escura, as árvores pareciam definhar em cascos
esqueléticos.Atémesmoospássarossecalaram.
Encarei a palma de minha mão — o olho pintado ali — e lancei um
pensamentoàscegasporele,poraquelelaço.Ondevocêestá?Diga,eireiatévocê.
Encontrareivocê.
Não havia muralha adamantina de ônix no fim do laço. Apenas sombras
intermináveis.
Coisas—coisasgrandes,enormes—farfalhavamnafloresta.
Rhysand.Nenhumaresposta.
Aúltimaluzdodiasefoi.
Rhysand,porfavor.
Nenhumsom.Eolaçoentrenós...silencioso.Sempreosentiameprotegendo,
meseduzindo,rindoparamimdooutroladodosescudos.Eagora...sumira.
Um uivo gutural ondulou ao longe, como rochas arrastando-se umas nas
outras.
Cadapelodemeu corpo se arrepiou. Jamais tínhamos ficado foradepois do
anoitecer.
Respirei parame tranquilizar, armando uma das poucas flechas restantes no
arco.
Nochão,algoescorregadioeescuropassouserpenteando,asfolhasestalaram
sob o que pareciam ser enormes patas que terminavam emgarras semelhantes a
agulhas.
Algocomeçouagritar.Guinchosagudosdepânico.Comoseestivessesendo
dilacerado.NãoeraRhys;eraoutracoisa.
Comecei a tremer de novo, a ponta de minha flecha reluzia conforme
estremeciacomigo.
Ondeestáondeestáondeestá.
Medeixeencontrá-lomedeixeencontrá-lomedeixeencontrá-lo.
Desarmeioarco.Qualquerpingodeluzpoderiamedenunciar.
Escuridãoeraminhaaliada;escuridãopoderiameproteger.
Fora ódio da primeira vez que atravessei — e ódio da segunda vez que
consegui.
Rhysestavaferido.TinhamferidoRhys.Eleeraoalvo.Eagora...agora...
Nãoeraódioincandescentequeescorriapormim.
Masalgoantigo,econgelado,etãocruelqueafiavaminhaconcentraçãocomo
umalâmina.
E, se eu quisesse rastreá-lo, se quisesse chegar ao ponto no qual o vira pela
últimavez...eutambémmetornariaumserdaescuridão.
Estava percorrendo o galho no momento em que algo se chocou contra a
vegetaçãopróxima,grunhindoesibilando.Masmedobreiemfumaçaeluzestelar,
eatravesseidabeirademeugalhoparaaárvoredooutrolado.Acriaturaabaixo
soltouumgrito,masnãopresteiatenção.
Eranoite;eueravento.
Deárvoreemárvore,atravessei, tãorápidaqueasbestasqueperambulavam
pelo chão da florestamal notaramminha presença. E se eu podia criar garras e
asas...podiamudarmeusolhostambém.
Eujáhaviacaçadoosuficienteaopôrdosolparavercomoosolhosanimais
funcionavam,comobrilhavam.
Um comando frio fez meus olhos se arregalarem, transformando-se: uma
cegueira temporáriaconformeeuatravessavaentreasárvoresdenovo,correndo
porumgalhoamploeatravessandopeloaratéoseguinte...
Aterrissei, e a floresta noturna se tornou clara. E as coisas caminhando
abaixo...nãoolheiparaelas.
Não,mantive a atenção em atravessar pelas árvores até chegar ao limite do
ponto no qual eu fora atacada, o tempo todo dando puxões naquele laço,
procurandoaquelaparedefamiliardooutrolado.Então...
Uma flecha estava presa nos galhos acima demim.Atravessei para o galho
largo.
E,quandoarranqueiaquelavarademadeiradefreixo,quandosentimeucorpo
imortalseesquivaremsuapresença,umgrunhidobaixoescapuliudemim.
Nãotinhaconseguidocontarquantas flechasatingiramRhys.Dequantasele
haviameprotegido,usandooprópriocorpo.
Enfieiaflechanaaljavaecontinueiemfrente,circundandoaáreaatéveroutra
—notapetedefolhasdepinheiro.
Achei que gelo pudesse ter refletido atrás de mim conforme atravessei na
direção de onde a flecha teria sido atirada, encontrando outra, e mais outra.
Guardeitodas.
Até descobrir o lugar em que os galhos de pinheiro estavam quebrados e
destruídos.Por fim, senti o cheirodeRhys, e as árvores ao redor reluziam com
geloquandoviosanguemanchandoosgalhos,ochão.
Eflechasdefreixoportodoolocal.
Era como se uma emboscada estivesse esperando e tivesse disparado uma
saraivada de centenas de flechas, rápidas demais para queRhys as detectasse ou
evitasse.Principalmenteseeleestavadistraídocomigo.Distraídoodiatodo.
Atravesseiemrompantespelo local,comocuidadodenãoficarnochãopor
muitotempo,paraqueascriaturasperambulandoporpertonãomefarejassem.
Ele caíra com força, diziam os rastros. E precisaram arrastá-lo para longe.
Rapidamente.
Haviamtentadoesconderorastrodesangue,masmesmosemamentedeRhys
falando comigo, eu podia encontrar aquele cheiro em qualquer lugar. Eu
encontrariaaquelecheiroemqualquerlugar.
Talvezfossembonsemesconderoprópriorastro,maseueramelhor.
Continueiminhacaçada,comumaflechadefreixoagoraengatilhadanoarco
conformeeuliaossinais.
Duasdúzias,pelomenos,levaramRhysparalonge,emboramaisestivessemlá
para o ataque inicial. Os demais tinham atravessado para longe, deixando um
grupomenorparaarrastarRhysnadireçãodasmontanhas...nadireçãodequem
pudesseestaresperando.
Estavam se movendo rapidamente. Mais e mais para dentro da floresta, na
direção das gigantes dormentes que eram asmontanhas illyrianas.O sangue de
Rhysescorreraportodoocaminho.
Vivo, aquilo me dizia. Ele estava vivo, mas... se os ferimentos não
coagulavam...asflechasdefreixoestavamfazendoseutrabalho.
EumataraumadassentinelasdeTamlincomapenasumaflechadefreixobem
direcionada.Tenteinãopensarnoqueumasaraivadapoderiafazer.Orugidode
dordeRhysecoavaemmeusouvidos.
E em meio àquele ódio impiedoso e irredutível, decidi que, se Rhys não
estivesse vivo, se ele estivesse ferido ao ponto de não poder ser salvo... nãome
importavaquemfossemeporquetinhamfeitoaquilo.
Estariamtodosmortos.
Pegadasdesviaramdogrupoprincipal:batedoresprovavelmenteenviadospara
encontrar um local para passar a noite. Reduzi a velocidade das travessias,
cuidadosamente rastreando as pegadas agora. Dois grupos haviam se dividido,
comosetentassemesconderaondetinhamido.OcheirodeRhysestavaemambos.
Tinham levado as roupas dele, então. Porque sabiam que eu os rastrearia,
tinham me visto com Rhys. Sabiam que eu iria atrás dele. Uma armadilha;
provavelmenteeraumaarmadilha.
Pareinosgalhosmaisaltosdeumaárvorequedavaparaondeosdoisgrupos
tinham se separado, avaliando o território. Um seguia mais para o fundo das
montanhas.Ooutroseguiapelolimitedestas.
Montanhas eram território illyriano; nas montanhas eles corriam o risco de
seremdescobertosporumapatrulha.Presumiriamqueeraparaláqueeu duvidaria
dequeseriamestúpidosdemaisparair.Presumiriamqueeuachariaqueseateriam
àflorestanãovigiadaenãopatrulhada.
Considereiminhasopções,farejadoosdoiscaminhos.
Não tinham contado com o leve segundo cheiro que se agarrava ali,
entrelaçadoaodele.
Enãomedeixeipensarnissoconformeatravessavanadireçãodosrastrospara
amontanha,correndomaisqueovento.Nãomepermitipensarnofatodequemeu
cheiroestavaemRhys,agarrando-seaeledepoisdanoitepassada.Rhystrocarade
roupanaquelamanhã,masocheiroemseucorpo...Semtomarbanho,euestava
sobreeleinteiro.
Então,atravesseinadireçãodeRhys,emminhadireção.E,quandoaestreita
caverna surgiu ao pé de umamontanha, omais leve brilho de luz escapando da
entrada...parei.
Umchicoteestalou.
E cada palavra, cada pensamento e sensação se esvaiu de mim. Outra
chicotada...eoutra.
Jogueioarcoporcimadoombroepuxeioutraflechadefreixo.Rapidamente
amarrei as duas flechas, para que uma ponta reluzisse de cada lado— e fiz o
mesmocomoutrasduas.Equandoterminei,quandoolheiparaasadagasgêmeas
improvisadasemcadamão,quandoaquelechicotesooudenovo...atravesseipara
dentrodacaverna.
Tinhamescolhidoumacomentradaestreita,queseabriaparaumtúnelamplo
esinuoso,montandoacampamentodepoisdacurvadacaverna,paraevitarserem
detectados.
Os batedores na frente — dois machos Grão-Feéricos sem armaduras
característicasequeeunãoreconheci—nãorepararamquandopassei.
Dois outros batedores patrulhavam do lado de dentro da boca da caverna,
vigiandoaquelesnafrente.Euchegueiepartidaliantesqueelesconseguissemme
ver. Passei pela curva, o tempo escorregava e se dobrava, emeus olhos escuros
comoanoitequeimaramdiantedaluz.Euosmudei,atravesseientreumpiscare
outro,alémdosoutrosdoisguardas.
E,quandoolheiparaosquatrooutrosnaquelacaverna,olheiparaapequena
fogueira que tinham acendido e para o que já tinham feito com ele... Fiz força
contra o laço entre nós — quase chorando quando senti aquela muralha
adamantina...Masnãohavianadaalémdela.Apenassilêncio.
Tinham encontrado correntes estranhas de pedra azulada para manter os
braçosdeleabertos,suspendendo-odecadaumadasparedesnacaverna.Ocorpo
pendiainertedascorrentes,ascostaspareciamumpedaçodestruídodecarne.Eas
asas...
Tinhamdeixadoasflechasdefreixonasasas.Setedelas.
Eleestavadecostasparamim,eapenasavisãodosangueescorrendopelapele
medissequeRhysestavavivo.
Eaquilobastou—aquilobastouparaqueeuexplodisse.
Atravesseiatéosdoisguardasqueseguravamchicotesidênticos.
Osdemaisaoredorgritaramquandoenfieiminhas flechasde freixoemsuas
gargantas, fundo e com brutalidade, exatamente como eu tinha feito inúmeras
vezes enquanto caçava. Um, dois— então, estavam no chão, chicotes inertes.
Antesqueosguardaspudessematacar,atravesseidenovo,atéosmaispróximos.
Sanguejorrou.
Travessia,golpe;travessia,golpe.
Aquelasasas—aquelaslindas,poderosasasas...
Osguardasnaentradadacavernatinhamentradoàspressas.
Foramosúltimosamorrer.
EosangueemminhasmãospareciadiferentedaqueleSobaMontanha.Desse
sangue... eu gostei. Sangue por sangue. Sangue por cada gota que tinham
derramadododele.
Silêncio recaiu na caverna quando os últimos gritos terminaram de ecoar, e
atravessei para a frente de Rhys, enfiando as adagas ensanguentadas no cinto.
Segurei-lheorosto.Pálido...pálidodemais.
MasosolhosdeRhysseabriramcomofendaseelegemeu.
Nãodissenadaquandodispareiparaascorrentesqueoseguravam,tentando
nãorepararnasimpressõesdemãosensanguentadasqueeudeixavaemRhys.As
correntes pareciamgelo— erampiores que gelo.Tinhamuma sensação errada.
Afasteiadoreaestranheza,eafraquezaquedesciaporminhacoluna,eosoltei.
OsjoelhosdeRhyscaíramnarochacomtantaforçaquemeencolhi,mascorri
atéooutrobraço,aindaerguido.SanguefluíapelascostasdeRhys,pelafrente,ese
empoçavanossulcosformadosporseusmúsculos.
—Rhys—sussurrei.Quasecaídejoelhostambémquandosentiumlampejo
deleportrásdosescudosmentais,comoseadoreaexaustãootivessemreduzidoà
espessuradeumajanela.AsasasdeRhys,salpicadasdaquelasflechas,continuavam
abertas, tãodolorosamente esticadasque encolhi o corpo.—Rhys... precisamos
atravessarparacasa.
Osolhosdeleseabriramdenovo,eRhysarquejou.
—Nãoposso.
Qualquerquefosseovenenonaquelasflechas,então,amagiadele,aforça...
Masnãopodíamosficarali,nãoquandoooutrogrupoestavapróximo.Então,
eudisse:
—Segurefirme.—EsegureiamãodeRhysantesdenosatirarànoiteeà
fumaça.
Atravessareratãopesado,comsetodoopesodeRhysand,todoaquelepoder,
mearrastasseparatrás.Eracomoandarnalama,masmeconcentreinafloresta,em
uma caverna coberta pormusgo que tinha visto no início daquele dia enquanto
saciavaminhasede,ocultanalateraldamargemdorio.Eutinhaolhadodentroda
caverna, enãohavianada alémde folhas ali.Pelomenos era segura, senãoum
poucoúmida.Melhorqueficarmosacéuaberto—eeranossaúnicaopção.
Cada quilômetro foi um esforço. Mas continuei lhe segurando a mão,
apavoradaporque, se soltasse,odeixariaemalgum lugaremque talvez jamaiso
encontrasse,e...
E,então,tínhamoschegadoàquelacaverna,eRhysgemeudedorquandonos
chocamoscontraochãomolhadoefriodepedra.
— Rhys — supliquei, aos tropeços na escuridão, uma escuridão tão
impenetrável,ecomaquelascriaturasaonossoredor,nãoarrisqueiumafogueira...
Maseleestavatãofrio,eaindasangrava.
Fizmeusolhosmudaremdenovo,eminhagargantadeuumnóquandovios
danos.Aslaceraçõespelascostascontinuavampingandosangue,masasasas...
—Precisotiraressasflechas.
Rhys gemeu de novo, asmãos apoiadas no chão. E, ao vê-lo daquele jeito,
incapazdesequerfazerumcomentáriomaliciosooudarummeiosorriso...
FuiatéaasadeRhys.
—Issovaidoer.—Trinqueiomaxilarconformeestudavaaformacomoas
flechas tinham perfurado a lindamembrana. Precisaria partir as flechas em dois
pedaçosedeslizarcadapontaparafora.
Não...nãopartir.Precisariacortar—devagar,comcuidado,suavemente,para
evitarquequalquerpedaçoouparteásperacausassemaisdanos.Quemsabiaoque
umafarpadefreixopoderiafazerseficassepresaali?
—Váemfrente—disseRhys,ofegante,avozrouca.
Haviaseteflechasnototal:trêsemumaasa,quatronaoutra.Tinhamretirado
aquelas das pernas, não sei por que motivo... os ferimentos já estavam quase
coagulados.
Sanguepingounochão.
Tireiafacadeondeestavapresaaminhacoxa,avalieioferimentodeentrada
e,cuidadosamente,segureiahastedaflecha.Rhyschiou.Parei.
—Váemfrente—repetiuRhys,osnósdosdedosbrancosquandosocouo
chão.
Aponteiapequenapartedalâminaserradacontraaflechaecomeceiaserraro
maiscuidadosamentepossível.OsmúsculoscobertosdesanguedascostasdeRhys
semoverameretesaram,esuarespiraçãoficouintensa,irregular.Lentademais—
euestavasendolentademais.
Mas, se fosse mais rápido, poderia machucar mais, poderia danificar a asa
sensível.
—Você sabia—falei,porcimado somda serragem—queemumverão,
quando eu tinha 17 anos, Elain comprou tintas para mim? Tínhamos apenas o
suficiente para gastar em coisas supérfluas, e ela comprou presentes paramim e
paraNestha.Nãotinhaosuficienteparaumconjuntocompleto,masmecomprou
vermelho, azul e amarelo. Eu usei as tintas até a última gota, aproveitando o
máximopossível,epinteipequenasdecoraçõesemnossochalé.
ArespiraçãodeRhyssaiupesada,e,porfim,serreiaflecha.Nãodeixeiqueele
soubesseoqueeufaziaantesdearrancarapontadaflechacomumpuxãosuave.
Rhysxingou,travandoocorpo,esanguejorrou—e,depois,parou.
Quasesolteiumsuspirodealívio.Comeceiatrabalharnapróximaflecha.
—Pinteiamesa,osarmários,aporta...Etínhamosumacômodavelha,preta,
em nosso quarto, com uma gaveta para cada uma.Não tínhamosmuitas roupas
paracolocarali,dequalquermodo.—Serreiasegundaflechamaisrápido,eRhys
se preparou quando a puxei para fora. Sangue escorreu e, depois, coagulou.
Comeceinaterceira.—PinteifloresparaElainemsuagaveta—falei,serrandoe
serrando.—Pequenasrosasebegôniaseíris.EparaNestha...—Aflechacaiuno
chão,eeupuxeiaoutraponta.
Observei o sangue fluir e parar; observei Rhys abaixar devagar a asa até o
chão,ocorpotremendo.
—Nestha— continuei, começando com a outra asa—, para ela eu pintei
chamas.Elaestavasemprenervosa,semprequeimando.AchoqueNesthaeAmren
se tornariam amigas rapidamente. Acho que gostaria de Velaris, apesar de não
admitir. E acho que Elain... Elain também gostaria. Embora provavelmente
grudasseemAzriel,apenasporumpoucodepazesilêncio.
Sorriaopensarnaquilo...emcomoelesficariambonitosjuntos.Seoguerreiro
algum dia deixasse de amar Mor em segredo. Duvidava disso. Azriel
provavelmenteamariaMoratéodiaemquesetornasseumsussurrodeescuridão
entreasestrelas.
Termineiaquartaflechaecomeceiaquinta.
AvozdeRhysestavaásperaquandoeledisse,nadireçãodochão:
—Oquepintouparavocê?
Puxeiaquintaeseguiparaasextaantesderesponder:
—Pinteiocéunoturno.
Rhysficouimóvel.Acrescentei:
—Pinteiestrelasealuzenuvenseapenascéuescuroeinfinito.—Termineia
sextaflechaeestavaacaminhodeserrarasétimaantesdedizer:—Nuncasoube
porquê.Euraramentesaíaànoite;geralmente,estavatãocansadadecaçarquesó
queria dormir. Mas me pergunto... — Puxei a sétima e última flecha. — Me
perguntosealgumaparteminhasabiaoquemeesperava.Queeujamaisseriauma
cultivadoramansa,oualguémquequeimavacomofogo,masqueseriasilenciosae
determinadaecheiadefacetas,comoanoite.Queeuteriabeleza,paraaquelesque
soubessemondeprocurar,e,seaspessoasnãosedessemotrabalhodemeolhar,
masapenasdemetemer...Então,eunãogostariamuitodelasmesmo.Mepergunto
se,mesmoemmeudesesperoeminhafaltadeesperança, jamaisestiverealmente
só.Meperguntoseestavaprocurandoestelugar,procurandoportodosvocês.
O sangue parou de escorrer, e a outra asa de Rhys se abaixou até o chão.
Devagar, as lacerações nas costas começaram a cicatrizar. Dei a volta até onde
Rhysestavacaídonochão,comasmãosapoiadasnarocha,emeajoelhei.
Eleergueuacabeça.Olhoscheiosdedor,lábiosdrenadosdesangue.
—Vocêmesalvou—constatouRhys,rouco.
—Podemeexplicarquemeramdepois.
—Emboscada—disseRhysmesmoassim,osolhosobservandomeurosto,
em busca de sinais de dor. — Soldados de Hybern com correntes antigas do
própriorei,paraanularmeupoder.Devemterrastreadoamagiaqueuseiontem...
Desculpe.—AspalavrassaíramaostropeçosdeRhys.Afasteiseuscabelospretos
paratrás.Porissoelenãoconseguirausarolaçoparafalarentrenossasmentes.
—Descanse—pedi, ememovi para alcançar o cobertor deminha sacola.
Teriadeservir.Rhysseguroumeupulsoantesqueeupudessemelevantar.Suas
pálpebras se abaixaram.A consciência se esvaía,muito rápido.Rápido demais e
muitointensamente.
—Eutambémestavaprocurandoporvocê—murmurouRhys.
Edesmaiou.
Dormi ao seu lado, oferecendo o calor que podia, monitorando a entrada da
cavernaanoiteinteira.Asbestasdaflorestapassavamcaminhandoemumdesfile
infinito,e,apenasà luzcinzentaantesdoalvorecer,osgrunhidoseoschiadosse
foram.
Rhys estava inconsciente quando a luz aquosa do sol pintou as paredes de
pedra,apele,suada.Verifiqueiosferimentoseviquemalsecuravam;umlíquido
oleosobrilhanteescorriadeles.
E,quandocoloqueiamãonatestadeRhys,xingueiaosentirocalor.
Venenocobriaaquelasflechas.Eessevenenoaindaestavaemseucorpo.
O acampamento de guerra illyriano ficava tão distante que meus poderes,
frágeisporcausadanoiteanterior,nãonoslevariamlonge.
Mas,setinhamaquelascorrentesterríveisparaanularopoderdeRhys,tinham
flechasdefreixoparaderrubá-lo,então,aqueleveneno...
Umahorasepassou.Rhysnãomelhorou.Não,apeledouradaestavapálida...
empalidecendo;arespiração,curta.
—Rhys—chamei,baixinho.
Elenãosemoveu;tenteisacudi-lo.SeRhyspodiamedizeroqueovenenoera,
talvezeupudessetentarencontraralgoparaajudar...Elenãoacordou.
Porvoltadomeio-dia,pânicometomoucomoumpunhogigante.
Nãosabianadasobrevenenosouremédios.Eláfora,tãolongedetodos...Será
queCassian nos encontraria a tempo? Será queMor atravessaria até lá? Tentei
despertarRhysdiversasvezes.
O veneno o arrasara profundamente. Eu não arriscaria esperar que ajuda
chegasse.
NãoarriscariaavidadeRhys.
Então, eu o envolvi em tantas camadas de roupas quanto pude,mas peguei
meumanto,beijeiatestadeRhysesaí.
Estávamosaapenasalgumascentenasdemetrosdeondeeuestavacaçandona
noiteanterior,e,quandosaídacaverna,tenteinãoolharparaosrastrosdasbestas
quetinhampassadologoacimadenós.Rastrosenormes,terríveis.
Oqueeuestavaprestesacaçarseriapior.
Já estávamos próximos de água corrente — então, montei uma armadilha
perto,construindo-acommãosqueserecusavamatremer.
Coloquei o manto— praticamente novo, elegante, lindo— no centro da
armadilha.Eesperei.
Umahora.Duas.
EuestavaprestesacomeçarabarganharcomoCaldeirão,comaMãe,quando
umsilêncioarrepiante,familiar,recaiusobreobosque.
Ondulandoemminhadireção,ospássarospararamdecantar,oventoparoude
suspirarcontraospinheiros.
E,quandoumestalosoounafloresta,seguidoporumguinchoquedoeuem
meusouvidos,encaixeiumaflechanoarcoedispareiparaveroSuriel.
Eratãoterrívelquantoeumelembrava:
Roupasemfrangalhosmalescondiamumcorpofeitonãodepele,masdoque
pareciaserossosólidoegasto.Abocasemlábiostinhadenteslargosdemais,eos
dedos—longos,finos—emitiamcliquesunscontraosoutrosenquantoacriatura
segurava o elegante manto que eu colocara no centro da armadilha, como se o
tecidotivessesidosopradopelovento.
—FeyreQuebradoradaMaldição—disseele,sevirandoparamim,comuma
vozqueeratantoumaquantomuitas.
Abaixeioarco.
—Precisodevocê.
Tempo;euestava ficandosemtempo.Podiasentirpelo laçoaquelaurgência
implorandoqueeumeapressasse.
—Quemudançasfascinantesumanoinfligiuavocê,aomundo—comentou
oSuriel.
Umano.Sim,faziamaisdeumanoagoradesdequetinhacruzadoamuralha
pelaprimeiravez.
—Tenhoperguntas—declarei.
O Suriel sorriu, e cada um daqueles dentes marrons, manchados e grandes
demaisficouexposto.
—Vocêtemduasperguntas.
Umarespostaeumaordem.
Não desperdicei tempo; não com Rhys, não quando aquele bosque poderia
estarcheiodeinimigosnoscaçando.
—Quevenenofoiusadonaquelasflechas?
—Venenodesangue—respondeuele.
Nãoconheciaaqueleveneno...jamaisouvirafalar.
—Ondeencontroacura?
OSurieltamborilouosdedosossudosunscontraosoutros,comosearesposta
estivessedentrodosom.
—Nafloresta.
Sibileiefizumaexpressãoapática.
—Porfavor,porfavor,nãosejaenigmático.Qualéacura?
OSurielinclinouacabeça,oossoreluziuàluz.
—Seusangue.Dêseusangueaele,QuebradoradaMaldição.Estácheiodo
domdecuradoGrão-SenhordaCrepuscular.Vaipoupá-loda iradovenenode
sangue.
—Sóisso?—insisti.—Quantosangue?
—Algunspunhadosservirão.—Umventovazio,seco,nadaparecidocomos
véus nevoentos e frios que costumavam passar, acaricioumeu rosto.—Ajudei
você antes. Ajudei agora. E vai me libertar antes que eu perca a paciência,
QuebradoradaMaldição.
Algumapartehumanaprimitivaepermanente tremeuemmimquandoolhei
para amesma armadilha em volta das pernas do Suriel, que o prendia ao chão.
TalvezdessavezoSurieltivessesedeixadoserpego.Esoubessecomoselibertar.
Talveztenhaaprendidoassimqueeuopoupeidosnaga.
Umteste...dehonra.Eumfavor.Pelaflechaqueeudispareiparasalvá-lono
anoanterior.
Masprendiumaflechadefreixonoarco,encolhendoocorpodiantedacamada
devenenoqueacobria.
—Obrigadapelaajuda—agradeci,mepreparandoparafugir,casooSuriel
avançassecontramim.
OsdentesmanchadosdoSurielestalaramunscontraosoutros.
—Sedesejaaceleraracuradeseuparceiro,alémdeseusangue,umaervade
floresrosacrescepertodorio.Façacomqueeleamastigue.
Dispareiaflechanaarmadilhaantesdeterminardeouviraspalavras.
Aarmadilhasesoltou.Eapalavrafoiabsorvidapormim.
Parceiro.
—Oquevocêdisse?
O Suriel ficou totalmente de pé,mais alto que eumesmo do outro lado da
clareira.Nãotinhapercebidoque,apesardosossos,eramusculoso...poderoso.
— Se deseja...—O Suriel parou e sorriu, mostrando quase todos aqueles
dentesmarronseespessos.—Nãosabia,então.
—Diga—disparei.
—OGrão-SenhordaCorteNoturnaéseuparceiro.
Eunãotinhacertezaabsolutadequerespirava.
—Interessante—falouoSuriel.
Parceiro.
Parceiro.
Parceiro.
Rhysanderameuparceiro.
Não amante, não marido, mas mais que isso. Um laço tão profundo, tão
permanente,queerahonradoacimadetodososoutros.Raro,celebrado.
NãoaparceiradeTamlin.
DeRhysand.
Euestavacomciúmes,eirritado...
Vocêéminha.
Aspalavrasescapuliramdemim,baixasedistorcidas:
—Elesabe?
OSurielagarrouotecidodonovomantonosdedosossudos.
—Sim.
—Hámuitotempo?
—Sim.Desde...
—Não.Elepodemecontar...Queroouvirdoslábiosdele.
OSurielinclinouacabeça.
—Vocêestá...estásentindodemais,muitorápido.Nãoconsigoler.
—Comopossosersuaparceira?—Parceiroseramiguais,combinavam,pelo
menosdealgumasformas.
— Ele é o Grão-Senhormais poderoso que já andou nesta terra. Você é...
nova. É feita de todos os sete Grão-Senhores. Diferente de tudo. Não são
semelhantesnisso?Nãocombinam?
Parceiro.Eelesabia...elesabia.
Olheiparaorio,comosepudesseveratéacaverna,ondeRhysanddormia.
QuandoolheidevoltaparaoSuriel,eletinhasumido.
Encontreiaervarosaearranquei-adochãonocaminhodevoltaparaacaverna.
AindabemqueRhysestavasemiacordado,ascamadasderoupaqueeuhavia
jogado sobre ele agora estavam espalhadas pelo cobertor, e Rhys me deu um
sorrisocontidoquandoentrei.
Atireiaervacontraele,enchendoopeitonudeRhysdeterra.
—Mastigueisso.
Elepiscou,confuso,paramim.
Parceiro.
MasRhysobedeceu,franzindoatestaparaaplantaantesdearrancaralgumas
folhasecomeçaramastigar.Rhysfezumacaretaaoengolir.Tireiocasaco,puxeia
mangaparacimaecaminheiatéele.Rhyssabiaeesconderademim.
Seráqueosoutrossabiam?Seráquetinhamadivinhado?
Ele...eleprometeranãomentir,nãoescondercoisasdemim.
Eaquilo;aquelacoisamaisimportantedaminhaexistênciaimortal...
Passei uma adaga pormeu antebraço, fiz um corte longo e profundo, eme
ajoelheidiantedeRhysand.Nãosentidor.
—Bebaisto.Agora.
Rhyspiscoudenovo,erguendoassobrancelhas,masnãodeiaeleachancede
protestarantesde segurá-lopelanuca,erguerobraçoaté suabocaeoempurrar
contraminhapele.
Rhysand parou quando meu sangue tocou seus lábios. Então, abriu mais a
boca,ea línguaroçoumeubraçoconformeelebebiameusangue.Umpunhado.
Dois.Três.
Puxeiobraçodevolta,oferimentojáestavasecurando,eabaixeiamanga.
—Vocênãotemodireitodefazerperguntas—avisei,eeleergueuoolhar
paramim, exaustão e dor estampados no rosto, meu sangue brilhando naqueles
lábios. Parte de mim odiava as palavras, por agir daquela forma quando Rhys
estavaferido,masnãomeimportava.—Sópoderespondê-las.Enadamais.
CautelatomoucontadosolhosdeRhysand,maseleassentiu,mordendooutro
punhadodaervaemastigando.
Euoencarei,oguerreiromeioillyrianoqueerameuparceirodealma.
—Háquantotemposabequesousuaparceira?
Rhysficouimóvel.Omundointeiroficouimóvel.
Eleengoliuemseco.
—Feyre.
—Háquantotemposabequesousuaparceira?
—Você... Você pegou o Suriel?—ComoRhys tinha descoberto, nãome
importava.
—Eudissequevocênãotemodireitodefazerperguntas.
Achei que algo como pânico pudesse ter surgido em suas feições. Rhys
mastigou de novo a planta— como se ajudasse instantaneamente, como se ele
soubessequequeriaestarcomtodasasforçasparaenfrentaraquilo,meenfrentar.
Acorjáfloresciaemsuasbochechas,talvezporqualquerquefosseacuraemmeu
sangue.
—Suspeitavahaviaumtempo—disseRhys,engolindoemsecodenovo.—
Tive certeza quando Amarantha estavamatando você. E, quando estávamos na
varanda Sob a Montanha, logo depois de sermos libertados, eu senti aquilo se
encaixarentrenós.AchoquequandovocêfoiFeita,isso...issoaguçouocheirodo
laço.Olheiparavocêentão,eaforçameatingiucomoumgolpe.
Ele tinha ficadodeolhosarregalados,cambalearapara tráscomoseestivesse
chocado...apavorado.Esumira.
Issoacontecerahaviamaisdemeioano.
Meusanguelatejavanasorelhas.
—Quandoiamecontar?
—Feyre.
—Quandoiamecontar?
—Nãosei.Queriacontarontem.Ouquandovocêtivessepercebidoquenão
havia apenas um acordo entre nós. Esperava que pudesse perceber quando eu a
levasseparaacamae...
—Osoutrossabem?
—AmreneMor.AzrieleCassiansuspeitam.
Meurostocorou.Elessabiam...eles...
—Porquenãomecontou?
—Vocêestavaapaixonadaporele; iasecasarcomele.Então,você...estava
passandoportudoaquilo,enãopareceucertocontar.
—Eumereciasaber.
—Naoutra noite, vocêmedissequequeria umadistração, queriadiversão.
Nãoum laçode parceria.Enão alguémcomo eu... uma confusão.—Então, as
palavrasqueeutinhadisparadodepoisdaCortedePesadelosassombraramRhys.
—Vocêprometeu...prometeunadadesegredos,nadadejogos.Prometeu.
Algoemmeupeitoestavadesabando.Algumapartedemimqueeuacheique
tivesseperdidohaviamuitotempo.
—Eu sei que sim— concedeuRhys, o brilho lhe retornando ao rosto.—
Você achaque eunãoqueria contar?Achaquegostei de ouvir quevocê sóme
queriaparadiversãoealívio?Achaquenãomedeixoucompletamenteloucoofato
de que aqueles desgraçados me derrubaram do céu porque eu estava ocupado
demaismeperguntandosedeveriacontarouesperar,outalvezaceitarasmigalhas
quevocêmeofereciaeficarfelizcomisso?Ouquetalvezdeveriadeixá-lair,para
não ter uma vida inteira de assassinos e Grão-Senhores a caçando por estar
comigo?
—Nãoqueroouvirisso.Nãoqueroouvirvocêexplicarcomopresumiuque
sabiaoqueeramelhor,queeunãopodialidarcomisso...
—Nãofoioquefiz...
—Nãoqueroouvirvocêmecontarquedecidiuqueeudeveriapermanecer
ignoranteenquantoseusamigossabiam,enquanto todosvocês decidiamo que era
certoparamim...
—Feyre...
—Melevedevoltaaoacampamentoillyriano.Agora.
Rhysestavaofegante,puxandoaremgrandequantidadeeestremecendo.
—Porfavor.
MasdispareiatéeleesegureiamãodeRhys.
—Melevedevoltaagora.
Então,viadoreamágoaemseusolhos.Vienãomeimportei,nãoquando
aquelacoisaemmeupeitosecontorciaesequebrava.Nãoquandomeucoração...
meucoração...doía tantoquepercebiquedealguma forma tinha sidoconsertado
nosúltimosmeses.Consertadoporele.
Eagoradoía.
Rhysviutudoissoemaisemmeurosto,eeunãovinadaalémdedornodele
quando ele reuniu a sua força e, grunhindo de dor, atravessou conosco para o
acampamentoillyriano.
Nósnoschocamoscontra lamacongelantedo ladode foradapequenacasade
pedra.
Acho queRhys pretendia nos atravessar para dentro dela,mas seus poderes
tinhamseesvaído.Dooutro ladodopátio,viCassian—eMor—na janelada
casa,tomandocafédamanhã.Seusolhossearregalaram,edepoiselesdispararam
paraaporta.
—Feyre—gemeuRhys,osbraçosnuscedendoconformeeletentavaficarde
pé.
DeixeiRhysdeitadonalamaedispareiparaacasa.
A porta se escancarou, e Cassian e Mor corriam até nós, verificando cada
centímetro de nossos corpos. Cassian percebeu que eu estava inteira e disparou
paraRhys,quelutavaparaselevantar,apeleexpostacobertadelama,masMor...
Morviumeurosto.
Fuiatéela,comfrio,vazia.
—Queroquemeleveparaalgumlugarbemlonge—falei.—Agoramesmo.
—Euprecisavafugir,precisavapensar,terespaço,silêncioepaz.
Morexaminounósdois,mordendoolábio.
—Porfavor—pedi,eminhavozfalhouàpalavra.
Atrásdemim,Rhysgemeumeunomedenovo.
Morobservoumeurostooutravezesegurouminhamão.
Nóssumimosemventoenoite.
A claridade me agrediu, e absorvi os arredores: montanhas e neve a nossa
volta,frescaereluzenteàluzdomeio-dia,tãolimpacontraaterraemmim.
Estávamos no alto dos picos, e, a cerca de 100metros, um chalé repousava,
enfiadoentredoispicosmaisaltosdasmontanhas,protegendo-odovento.Acasa
pareciaescura,nãohavianadaaoredoratéondeeuenxergava.
— A casa está protegida, para que ninguém possa atravessar para dentro.
Ninguém pode passar além deste ponto, na verdade, sem a permissão de nossa
família.—Mordeuumpassoadiante,aneveestalandosobasbotas.Semovento,
odiaestavaamenoobastanteparamelembrardequeaprimaveratinhachegado
ao mundo, embora apostasse que estaria congelando depois que o sol se fosse.
SeguiMor,ealgoformigavaemminhapele.—Vocêtem...permissãodeentrar—
disseMor.
—Porquesouaparceiradele?
Elacontinuoucaminhandopelanevenaalturadosjoelhos.
—Adivinhou,ouelecontou?
—O Suriel me contou.Depois que fui caçá-lo buscando informação sobre
comocurarRhys.
Elaxingou.
—Ele...eleestábem?
— Vai viver — respondi. Mor não fez mais perguntas. E não estava me
sentindogenerosaparafornecermais informações.Chegamosàportadochalé,a
qualMordestrancoucomumgestodemão.
Umcômodoprincipal,compainéisdemadeira,consistindodeumacozinhaà
direita,eumasaladeestarcomumsofádecourocobertodepelesàesquerda;eum
pequeno corredor nos fundos que dava para dois quartos e um banheiro
compartilhado,nadamais.
—Éramosmandadosparacápara“refletir”quandoéramos jovens—disse
Mor.—Rhyscostumavacontrabandearparacálivrosebebidaalcoólicaparamim.
Eumeencolhiaoouvirseunome.
—Éperfeito—assegurei,tensa.Morgesticuloucomamão,eumafogueira
tomou vida na lareira; o calor inundou a sala. Comida apareceu nos balcões da
cozinha, e algonos canos rangeu.—Nãoprecisa de lenha—disse ela.—Vai
queimaratéquevocêváembora.—Morergueuumasobrancelhacomosepara
perguntarquandoseria.
Vireiorosto.
—Porfavor,nãoconteaeleondeestou.
—Elevaitentarencontrá-la.
—Digaquenãoqueroserencontrada.Nãoporumtempo.
Mormordeuolábio.
—Nãoédeminhaconta...
—Então,nãodiganada.
Eladissemesmoassim.
—Elequeriacontar.Eestavaacabandocomelenãoofazer.Mas...Eununcao
vitãofelizquantocomoficaquandoestãojuntos.Enãoachoqueessafelicidade
tenhaalgoavercomvocêserparceiradele.
—Nãome importo.—Mor ficouemsilêncio,econsegui sentiraspalavras
queelaqueriadizer se acumulando.Então, eudisse:—Obrigadaporme trazer
aqui.—Umadispensaeducada.
Morfezumareverênciacomacabeça.
—Voltarei em três dias.Há roupas nos quartos, e toda a água quente que
quiser.Acasaéencantadaparacuidardevocê,apenasdesejeoufaledecoisas,e
tudoseráfeito.
Eusóqueriasolidãoesilêncio,mas...umbanhoquentepareciaumaboaforma
decomeçar.
Mordeixouochaléantesqueeuconseguissedizermaisalgumacoisa.
Sozinha,semninguémporpertoemquilômetros,fiqueinacabinesilenciosae
encareionada.
PARTETRÊS
ACASADENÉVOA
Haviaumabanheirafundaembutidanochãodochalénamontanha—grandeo
bastanteparaacomodarasasillyrianas.Euaenchicomáguaquaseescaldante,sem
me importar com como a magia daquela casa operava, apenas que funcionava.
Sibilandoemeencolhendo,entrei.
Trêsdiassemumbanho,eeupodiaterchoradoaosentirocalorealimpeza.
Não importavaque certavez eu tivesse passado semanas sembanho—não
quando conseguir água quente para isso no chalé de minha família era mais
problemáticodoquevalia a pena.Nãoquando sequer tínhamosumabanheira e
eramprecisosbaldesebaldesdeáguaparanoslimparmos.
Eume laveicomumsaboneteescuroque tinhacheirode fumaçaepinho,e,
quandoterminei, fiqueisentadaali,observandoovaporespiralarentreaspoucas
velas.
Parceira.
Apalavrameafugentoudobanhomais cedodoque euqueria, eme cercou
enquantoeucolocavaasroupasqueencontraraemumagavetadoquarto:legging
preta,umsuétergrande,cordecreme,queiaatéomeiodacoxa,emeiasgrossas.
Meuestômagoroncouepercebiquenãocomiadesdeodiaanterior,porque...
Porqueeleestavaferidoeeutinhaperdidoacabeça—ficadocompletamente
louca—quandoRhysfoitiradodemim,abatidodocéucomoumpássaro.
Agiporinstinto,porumimpulsodeprotegerRhysquevinhadeumlugartão
profundoemmim...
Tãoprofundoemmim...
EncontreiumpotedesopanobalcãodemadeiraqueMordeviaterlevado,e
descobriumapaneladeferroparaaquecê-la.Pãofrescoecrocanteestavapertodo
fogão,ecomimetadeenquantoesperavaasopaesquentar.
ElesuspeitaradaquiloantesdequeeunostivesselibertadodeAmarantha.
Meucasamento...Rhysointerromperaparamepoupardeumerroterrível,ou
por interessepróprio?Porqueeu era suaparceira, epermitirque eumeatasse a
outrapessoaerainaceitável?
Janteiemsilêncio,apenascomocrepitardofogocomocompanhia.
Esobabarreirademeuspensamentos,umlatejardealívio.
Meu relacionamento comTamlin estava condenado desde o início. Eu tinha
partido—apenasparaencontrarmeuparceiro.Parairatémeuparceiro.
Se eu tentava poupar nós dois da vergonha, de boatos, somente... somente
haverencontradomeuparceirofuncionaria.
Eu não era um lixomentiroso e traidor.Nem de perto.Mesmo queRhys...
Rhyssoubessequeeuerasuaparceira.
EnquantoeudividiaacamacomTamlin.Pormesesemeses.Elesabiaqueeu
estavacompartilhandoacamacomTamlin,enãodeixaratransparecer.Outalvez
nãoseimportasse.
Talveznãoquisesseolaço.Esperavaquesedesfizesse.
EunãodevianadaaRhysandentão...nãotinhanadaporquemedesculpar.
Mas ele sabia que eu reagiria mal. Que me machucaria mais do que me
ajudaria.
Eseeusoubesse?
EseeusoubessequeRhyserameuparceiroenquantoamavaTamlin?
Aquilonãodesculpavao fatode ele não terme contado.Nãodesculpava as
últimassemanas,duranteasquaismeodieitantopordesejarRhystãointensamente
—quandoeledeveriatermecontado.Mas...euentendia.
Laveialouça,limpeiasmigalhasdapequenamesadejantarentreacozinhaea
saladeestar,edeiteiemumadascamas.
Apenasnanoiteanterior,estavaaninhadaaoseulado,contandoasrespirações
de Rhys para me certificar de que ele não tinha parado de respirar. E na noite
anterior a essa, estava nos braços dele, com seus dedos entre minhas pernas, a
língua em minha boca. E agora... Embora o chalé estivesse quente, os lençóis
estavamfrios.Acamaeragrande;vazia.
Pela pequena janela de vidro, a propriedade coberta de neve ao meu redor
brilhava azul ao luar. O vento parecia um gemido oco, soprando grandes e
reluzentestufosdeneveparaalémdochalé.
EumepergunteiseMorteriacontadoaRhysondeeuestava.
Seele,defato,iriaatrásdemim.
Parceiro.
Meuparceiro.
A luz do sol refletida na neve me acordou, e semicerrei os olhos diante da
claridade,mexingandopornãoterfechadoascortinas.Preciseideummomento
para me lembrar de onde estava; de por que estava naquele chalé isolado, no
interiordasmontanhasde—nãosabiaquemontanhaseramaquelas.
Rhys certa vez mencionara um retiro preferido que Mor e Amren tinham
queimadoatévirarcinzasduranteumabriga.Eumepergunteiseseriaaquele;se
fora reconstruído. Tudo era confortável; gasto, mas relativamente em boas
condições.
MoreAmrensabiam.
Nãoconseguiadecidirseeuasodiavaporaquilo.
Semdúvida,Rhysordenaraqueficassemquietas,eelasrespeitaramseudesejo,
mas...
Fizacama,prepareiocafédamanhã,laveialouçae,depois,fiqueinocentro
dasaladeestar.
Eutinhafugido.
Exatamente comoRhysesperavaqueeu fugisse—comoeu tinhadito a ele
quequalquerumemsã consciência teria fugidodele.Comoumacovarde, como
umatola,deixeiRhysferidonalamagelada.
Tinhafugidodele—umdiadepoisdedizerqueeleeraaúnicacoisaàqualeu
jamaisdariaascostas.
Tinhaexigidosinceridadee,noprimeirotesteverdadeiro,nemmesmodeixara
queRhysademonstrasse.NãoderaaRhysaconsideraçãodeouvirseulado.
Vocêmevê.
Bem, eu tinhame recusado a vê-lo.Talvez tivesseme recusado a ver o que
estavabemdiantedemim.
Tinhalhedadoascostas.
Etalvez...talveznãodevesse.
Otédiomeatingiunomeiododia.
Tédio supremoe inflexível,porqueestavapresado ladodedentroenquanto
ouvia a neve que derretia pingar morosamente do telhado no dia ameno de
primavera.
Issome deixou curiosa— e depois que terminei de revirar as gavetas e os
armáriosdosdoisquartos(roupas, fitasvelhas, facasearmasentreelas,comose
alguém as tivesse enfiado ali dentro e simplesmente esquecido), os armários da
cozinha(comida,conservas,panelasefrigideiras,umlivrodereceitasmanchado),
easaladeestar(cobertores,algunslivros,maisarmasescondidasportoda parte),
eumeaventureinadespensa.
ParaoretirodeumGrão-Senhor,ochaléera... incomum,porquetudotinha
sido feito e decorado com esmero, mas... casualmente. Como se aquele fosse o
único lugar ao qual todos pudessem ir, se jogar em camas e no sofá, e não ser
ninguém além deles mesmos, se revezando na cozinha à noite e na caça e na
limpezae...
Família.
Parecia uma família; aquela que eu jamais tivera, nunca ousara desejar de
verdade.Tinhaparadodeesperarporissoquandomeacostumeicomoespaçoea
formalidadedemoraremumamansão.Deserumsímbolodeumpovoquebrado,
oídolodeouroeamarionetedeumaGrã-Sacerdotisa.
Abriaportadadespensa,eumalufadadearfriomecumprimentou,masvelas
seacenderam,graçasàmagiaquemantinhaolugaraconchegante.Prateleirassem
poeira (outro truque mágico, sem dúvida) brilhavam com mais comida
armazenada.Livros, equipamento esportivo,mochilas e cordas e, surpresa,mais
armas.Vasculhei tudo,aquelesresquíciosdeaventurasdopassadoedofuturo,e
quasenãoviquandopasseiporelas.
Meiadúziadelatasdetinta.
Papelealgumastelas.Pincéisvelhosesalpicadosdetintademãospreguiçosas.
Haviaoutrosmateriaisdedesenhoepintura—tintaspasteleaquarela,oque
pareciasercarvãoparadesenho,mas...encareiatinta,ospincéis.
Qualdeleshavia tentadopintarenquantoestavapresoaqui,ouaproveitando
umasfériascomtodoseles?
Eu disse a mim mesma que minhas mãos estavam trêmulas devido ao frio
quandoasestendiparaatintaeabriatampa.
Aindafresca.Provavelmentedevidoàmagiaquepreservavaolugar.
Olheiparaointeriorescuroereluzentedalataquetinhaaberto:azul.
Então,comeceiapegarosmateriais.
Pinteiodiatodo.
Equandoosolsumiu,pinteianoitetoda.
Aluatinhadescidoquandolaveiasmãoseorostoeopescoço,ecaínacama,
semmeincomodaremtirararoupaantesdeainconsciênciamelevarembora.
Euestavaacordada,comopincelnamão,antesqueosoldaprimaverapudesse
voltaraotrabalhodedescongelarasmontanhasaomeuredor.
Parei apenas por tempo o bastante para comer. O sol se punha de novo,
exaustodevidoàdepressãoquetinhacausadoàcamadadenevedoladodefora,
quandoumabatidasoouàportadafrente.
Cobertadetinta—comosuétercremetotalmentearruinado—congelei.
Outrabatida,leve,masinsistente.Depois,um:
—Porfavor,nãoestejamorta.
Nãosabiasefoialíviooudesapontamentoquefezmeupeitoafundarquando
abriaportaeencontreiMorsoprandoarquentenasmãosemconcha.
Elaolhouparaatintaemminhapele,emmeuscabelos.Paraopincelemminha
mão.
E,então,paraoqueeutinhafeito.
Mor entrou, vinda da noite fria de primavera, e soltou um assobio baixo
quandofechouaporta.
—Bem,vocêcertamenteandaocupada.
Defato.
Pinteiquasetodasassuperfíciesdasalaprincipal.
Enãoapenascomgrandespinceladasdecor,mascomdecorações—pequenas
imagens.Algumaserambásicas:gruposdeestacasdegelocaindopelaslateraisdo
portal.Elassederretiamaosprimeirossinaisdenevee,depois,setornavamflores
exuberantesdeverão,antesdeficaremmaisclarasemaisintensascomofolhasde
outono.Eutinhapintadoumaneldefloresaoredordamesadecarteado,pertoda
janela;efolhasechamascrepitantesemvoltadamesadejantar.
Mas entre as decorações intricadas, eu os tinha pintado. Pedaços de Mor e
CassianeAzrieleAmren...eRhys.
Mor foi até a grande lareira, onde eu pintara a moldura superior de preto,
ressaltadocomveiosdeouroevermelho.Deperto,eraumtrechosólidoebelode
tinta.Masdosofá...
—Asasillyrianas—falouMor.—Ah,elesnuncavãoparardesegabardisso.
Maselafoiatéajanela,aqualeutinhaemolduradocommechasespiraladasde
dourado,cobreebronze.Morlevouodedoaocabelo,inclinandoacabeça.
—Bonito—elogiouela,observandoasaladenovo.
OsolhosdeMorrecaíramsobreoportalquedavaparaocorredordosquartos,
eelafezumacareta.
—Porque—disseela—osolhosdeAmrenestãoali?
Defato,acimadaporta,nocentrodoaro,eu tinhapintadoumpardeolhos
prateadosbrilhantes.
—Porqueelaestásemprevigiando.
Morriucomescárnio.
— Isso não vai funcionar. Pinte meus olhos ao lado dos dela. Assim, os
machosdestafamíliasaberãoquenósduasestamosvigiandodapróximavezque
vieremparacáseembebedarporumasemanaseguida.
—Elesfazemisso?
—Costumavam fazer.—Antes deAmarantha.—Todo outono, os três se
trancavamnestacasadurantecincodias,ebebiamebebiamecaçavamecaçavam,
então voltavam paraVelaris parecendo quasemortos,mas sorrindo como tolos.
Meucoraçãoseaqueceaosaberque,deagoraemdiante,precisarãofazerissocom
Amreneeuencarando.
Umsorrisorepuxoumeuslábios.
—Dequeméessatinta?
—Amren—respondeuMor, revirandoosolhos.—Estávamos todos aqui
umverão,eelaqueriaseensinarapintar.Fezissoduranteunsdoisdias,antesdese
cansaredecidircomeçaracaçarpobrescriaturas.
Umarisadasilenciosaescapoudemim.Caminheiatéamesa,aqualeutinha
usado como superfície principal paramisturar e organizar as tintas. E talvez eu
fosseumacovarde,masfiqueidecostasparaMoraodizer:
—Algumanotíciademinhasirmãs?
Morcomeçouavasculharosarmários,paraprocurarcomidaouparaavaliaro
queeuprecisava.Eladisse,porcimadeumombro:
—Não.Aindanão.
—Eleestá...ferido?—Euotinhadeixadonalamagelada,feridoelimpando
ovenenodoorganismo.Tenteinãopensarnissoenquantopintava.
—Ainda se recuperando,mas bem. Com raiva demim, é claro,mas pode
enfiaressaraivanaquelelugar.
Combineioamarelo-douradodeMorcomovermelhoquetinhausadonasasas
illyrianas,emistureiatéqueumlaranjavibrantesurgisse.
—Obrigada...pornãocontaraelequeeuestouaqui.
Um gesto de ombros. Comida começou a aparecer no balcão: pão fresco,
frutas,potescomalgoqueeuconseguiacheirardooutroladodacozinhaequase
mefezgemerdefome.
—Masvocêdeveria conversar comele.Fazer comque remoa isso, é claro,
mas... ouçao ladodele.—Mornãomeolhouao falar.—Rhys sempre temos
motivos dele, e pode ser infernalmente arrogante,mas em geral está certo com
relaçãoaosprópriosinstintos.Cometeerros,mas...Vocêdeveriaouvi-lo.
Eutinhadecididoqueouviria,masfalei:
—ComofoisuavisitaàCortedosPesadelos?
Morparou,orostoficouincomumentepálido.
—Boa.Ésempreumprazervermeuspais.Comovocêdeveimaginar.
—Seupaiestámelhorando?—AcrescenteiocobaltodosSifõesdeAzrielao
laranjaemistureiatéqueummarromintensosurgisse.
Umpequenosorrisosombrio.
— Devagar. Talvez eu tenha partido mais alguns ossos quando o visitei.
Minhamãemebaniudosaposentosparticularesdeambosdesdeentão.Umapena.
Algumaparteselvagemdemimsorriucomprazerprimitivoaoouviraquilo.
—Umapenamesmo—ironizei.Acrescenteiumpoucodebranco-nevepara
clarear omarrom, verifiquei contra o olhar queMor lançou paramim, e depois
peguei umbanquinho a fimde alcançar, e comecei a pintar o portal.—Rhys a
obrigamesmoafazerissocomfrequência?Aturarasvisitasaeles?
Morseencostounobalcão.
—Rhysmedeupermissão,nodiaemquesetornouGrão-Senhor,paramatar
todos eles quando eu tivesse vontade. Vou a essas reuniões, vou à Corte dos
Pesadelospara... lembrar-lhesdissoàsvezes.Eparamanteracomunicaçãoentre
nossasduascortes,pormaisdifícilqueseja.Seentrasseláamanhãematassemeus
pais,elenãopiscaria.Talvezfosseuminconveniente,mas...ficariafeliz.
Eume concentrei namancha demarrom-caramelo que pintava ao lado dos
olhosdeAmren.
—Sintomuito...portudoquevocêsuportou.
—Obrigada—agradeceuMor,aproximando-separameobservar.—Visitá-
lossempremedeixanervosa.
—Cassianpareceupreocupado.—Outraperguntaintrometida.
Mordeudeombros.
— Cassian, acho, também aproveitaria a oportunidade para destruir aquela
corte inteira.Começando pormeus pais.Talvez eu deixe que faça isso um ano,
comopresente.ParaeleeparaAzriel.Seriaumpresenteperfeitodesolstício.
Perguntei,talvezumpoucocasualmentedemais:
—VocêmecontousobreavezcomCassian,mas...ecomAzriel,já...?
Umarisadaafiada.
—Não.Azriel?DepoisdaquelavezcomCassian,jureimeafastardetodosos
amigosdeRhys.Azrielnãotempoucasamantes,noentanto,nãosepreocupe.Ele
asmantémemsegredomelhorquenós,mas...eleastem.
—Então,seestivesseinteressado,você...?
—Aquestão,naverdade,nãoseriaeu.Seriaele.Eupoderiatirararoupabem
na frente de Azriel, e ele não moveria um músculo. Talvez tenha enfrentado e
provadoqueaquelescanalhas illyrianosestavamerrados todasasvezes,masnão
importa se Rhys o fizer príncipe de Velaris, Azriel vai se enxergar como um
bastardoqualquer,enãoseacharábomobastanteparaninguém.Principalmente
eu.
—Mas...vocêestáinteressada?
—Porqueestáperguntandoessascoisas?—AvozdeMorficoutensa,afiada.
Maiscautelosadoqueeujamaistinhaouvido.
—Aindaestoutentandoentendercomovocêstrabalhamjuntos.
Umrisodeescárnio,eaquelacautelasedissipou.Tenteinãopareceraliviada.
—Temoscincoséculosdehistóriacomplicadaparavocêentender.Boasorte.
Defato.Termineiosolhosdela:umpoucodecastanho-melnosolhoscorde
mercúriodeAmren.Mas,quaseemresposta,Mordeclarou;
— Pinte os de Azriel. Ao lado dos meus. E os de Cassian ao lado dos de
Amren.
Erguiassobrancelhas.
Mormedeuumsorrisoinocente.
—Paratodospodermosvigiarvocê.
Apenassacudiacabeçaedescidobanquinhoparacomeçaraentendercomo
pintarolhoscordeavelã.
— É tão ruim assim... ser a parceira dele? Ser parte de nossa corte, nossa
família,comhistóriacomplicadaetudo?—perguntouMor,baixinho.
Misturei a pintura no pequeno prato, as cores se mesclando a tantas vidas
misturadas.
—Não—sussurrei.—Não,nãoé.
Etiveminharesposta.
Mor passou a noite ali e até chegou ao ponto de pintar uns bonecos palito
rudimentares na parede ao lado da porta da despensa.Três fêmeas com cabelos
absurdamente longos e oscilantes que se pareciam com os dela; e três machos
alados, que, de alguma forma, Mor conseguiu fazer com que parecessem
empertigadoscomsensodeimportância.Euriasemprequeosolhava.
Morpartiudepoisdocafédamanhã,precisandocaminharatéondeoescudo
queimpediaatravessiaterminava,eaceneiparaasilhuetadistanteetrêmulaantes
deelasumir.
Olhei para a extensão branca reluzente, descongelada o bastante para que
trechosvaziosapontuassem—revelandopartedegramabrancacomooinverno
queseestendiaatéocéuazuleasmontanhas.Eusabiaqueoverãotinhade,em
algummomento,chegaratémesmoàquela terradossonhosderretida,pois tinha
visto varas de pesca e equipamento esportivo que sugeriam uso em tempomais
quente, no entanto era difícil imaginar neve e gelo se tornando grama macia e
floresselvagens.
Comarapidezdeumacristadeonda,eumeviali:correndopelocampoque
dormiasobafinacamadadeneve,pisoteandoaáguadospequenoscórregosquejá
cobriamochão,mebanqueteandocomfrutasvermelhasdeverãoconformeosol
sepunhaatrásdasmontanhas...
Depois, eu iria para casa, para Velaris, onde finalmente passearia pelo
quarteirãodosartistaseentrarianaquelaslojasegalerias,edescobririaoqueeles
sabiam, e talvez— talvez um dia— abriria minha loja. Não para vendermeu
trabalho,masparaensinaraosoutros.
Talvez ensinar a outros que eram como eu: quebrados em alguns lugares e
tentando lutar contra isso, tentandoaprenderquemeramalémdaescuridãoeda
dor.Eeuiriaparacasanofimdecadadiaexausta,mascontente...realizada.
Feliz.
Euiriaparacasatododia,paraacasanacidade,parameusamigos,cheiosde
histórias dos respectivos dias, e nos sentaríamos em volta daquela mesa e
comeríamosjuntos.
ERhysand...
Rhysand...
Eleestarialá.Elemedariaodinheiroparaabrirminhaloja;eporqueeunão
cobrariadeninguém,venderiaminhaspinturasparapagá-lodevolta.Porqueeu
pagariadevolta,parceiroounão.
E ele estaria aqui no verão, voaria sobre o campo, me perseguiria pelos
pequenos córregos, até a encosta da montanha íngreme e gramada. Rhys se
sentaria comigo sob as estrelas, me daria frutas vermelhas de verão na boca. E
estariaàmesadosolar,gargalhandoalto—nuncamaisseriafrioecruelesevero.
Nuncamaisseriaoescravoouavadiadeninguém.
Eànoite...Ànoitesubiríamosasescadasjuntos,eRhyssussurrariahistóriasde
suasaventuras,eeusussurrariasobremeudiae...
Eaíestava.
Umfuturo.
Ofuturoqueeuviaparamim,alegrecomoonascerdosolsobreoSidra.
Uma direção, uma meta e um convite para ver o que mais a imortalidade
poderiameoferecer.Nãopareciamaistãoinsípido,tãovazio.
Eeulutariaatéomeuúltimosuspiroparaobtê-lo...paradefendê-lo.
Então,eusoubeoqueprecisavafazer.
Cincodiassepassaram,epinteicadaquartodochalé.Moratravessaracommais
tintaantesdepartir,commaiscomidadoqueeuconseguiriacomer.
Mas, depois de cinco dias, estava cheia de meus pensamentos como
companhia...cheiadeesperar,cheiadanevedescongelandoepingando.
Ainda bem que Mor voltou naquela noite, batendo à porta, estrondosa e
impaciente.
Eutinhatomadoumbanhoumahoraantes,limparatintadelugaresquenem
mesmosabiaserpossívelsujar,emeuscabelosaindasecavamquandoabriaporta
paraalufadadearfrio.
MasnãoeraMorqueestavaparadasoboportal.
EncareiRhys.
Elemeencarou.
AsbochechasdeRhysestavamcoradasdevidoaofrio,oscabelospretoscaíam
embaraçados, e ele realmente parecia estar congelando parado ali, com as asas
recolhidas.
Eeusabiaque,comumapalavraminha,Rhyssairiavoandonoitefriaadentro.
Que,seeufechasseaporta,elesairiaenãoinsistiria.
AsnarinasdeRhyssedilataram,sentindoocheirodatintaatrásdemim,mas
elenãodeixoudemeencarar.Esperando.
Parceiro.
Meu...parceiro.
Aquele macho lindo, forte, altruísta... Que se sacrificara e se destruíra pela
família,pelopovo,enãoachavaqueeradigno,queelenãoeradignodeninguém...
Azriel acreditava que não merecia alguém como Mor. E eu me perguntava se
Rhys... seeledealguma formasentiaomesmoemrelaçãoamim.Saída frente,
segurandoaportaabertaparaele.
Podiajurarquesentiumpulsodealívioquelhefraquejouosjoelhospormeio
dolaço.
MasRhysobservouaspinturasqueeufizera,absorvendoascoresalegresque
agoradavamvidaaochalé,efalou:
—Vocênospintou.
—Esperoquenãoseimporte.
Rhysavaliouoportalparaocorredordoquarto.
—Azriel,Mor,AmreneCassian—listouRhys,observandoosolhosqueeu
haviapintado.—Sabequeumdelesvaipintarumbigodesobosolhosdequemo
irritarprimeiro.
Segureioslábiosparaconterosorriso.
—Ah,Morjáprometeufazerisso.
—Equantoaosmeusolhos?
Engoliemseco.Tudobem.Semenrolação.
Meu coração batia tão incontrolavelmente que eu sabia queRhys conseguia
ouvi-lo.
—Tivemedodepintá-los.
—Porquê?
Rhysmeencaroudefrente.
—Porquê?
Nadadejogos,nadadeprovocações.
— A princípio, porque eu estava muito irritada com você por não ter me
contado. Depois, porque temia gostar demais deles e descobrir que você... não
sentia omesmo.E, depois, porque eu tinhamedo de pintar e começar a desejar
tantoquevocêestivesseaquiquesimplesmenteosencarariaodiatodo.Eparecia
umaformapatéticadepassarmeutempo.
Elecontraiuoslábios.
—Defato.
Olheiparaaportafechada.
—Vocêvoouatéaqui.
Rhysassentiu.
—Mornãoquismedizerondevocêestava,eexisteumnúmerolimitadode
lugarestãosegurosquantoeste.ComoeunãoqueriaquenossosamigosdeHybern
merastreassematévocê,preciseifazerissoàmodaantiga.Levou...umtempo.
—Vocêestá...melhor?
—Completamentecurado.Rapidamente,considerandoovenenodesangue.
Graçasavocê.
Eviteiseuolhar,mevirandoparaacozinha.
—Deveestarcomfome.Vouesquentaralgumacoisa.
Rhysesticouocorpo.
—Você...fariacomidaparamim?
—Esquentaria—esclareci.—Nãoseicozinhar.
Não parecia fazer diferença. Mas o que quer que fosse, o ato de oferecer
comidaaele...coloqueisopafriaemumapanelaeacendiofogão.
—Nãoconheçoas regras—comecei,de costaspara ele.—Então,precisa
explicarparamim.
Ele ficou no centro do chalé, observando todos osmeusmovimentos. Rhys
falou,rouco:
— É um... momento importante quando uma fêmea oferece comida ao
parceiro. Desde o tempo de quaisquer que fossem as bestas que nós fomos, há
muito tempo. Mas ainda importa. A primeira vez importa. Alguns pares de
parceiros tornam isso uma ocasião especial, dão uma festa só para que a fêmea
possa formalmente oferecer comida ao parceiro... Isso em geral é feito entre os
ricos.Massignificaqueafêmea...aceitaaparceria.
Encareiasopa.
—Meconteahistória...contetudo.
Rhysentendeuminhaoferta:contarenquantoeucozinhava,eeudecidiriano
fimseofereceriaounãoaquelacomida.
UmacadeiraarranhouochãodemadeiraquandoRhyssesentouàmesa.Por
ummomento, houve apenas silêncio, interrompido pelo raspar deminha colher
contraapanela.
Então,Rhysfalou:
—FuicapturadoduranteaGuerra.PeloexércitodeAmarantha.
Pareidemexer,meuestômagoserevirou.
—CassianeAzrielestavamemlegiõesdiferentes,então,nãofaziamideiade
queminhasforçastinhamsidofeitasprisioneiras.EqueoscapitãesdeAmarantha
nos detiveram durante semanas, torturando e matando meus guerreiros. Eles
colocaramparafusosdefreixoemminhasasasetinhamaquelasmesmascorrentes
daoutranoiteparamesegurar.Aquelascorrentessãoumdosmaiorestrunfosde
Hybern:pedraextraídadasprofundezasdesuasterras,capazdeanularospoderes
de um Grão-Feérico. Até mesmo os meus. Então, me acorrentaram entre duas
árvores,me espancaram quando tinham vontade, tentaramme fazer dizer a eles
ondeestavamasforçasdaCorteNoturna,usandomeusguerreiros,amorteeador
deles,paramefazerceder.
“Masnãocedi—continuouRhys,avozáspera.—Eeleseramburrosdemais
parasaberqueeueraillyriano,etudoqueprecisavamfazerparameobrigarame
curvar era tentar cortar minhas asas. E talvez tenha sido sorte, mas jamais as
cortaram.EAmarantha...Elanãose importavaqueeuestivesse lá.Eramaisum
filhodeGrão-Senhor,eJuriantinhaacabadodeassassinarairmãdela.Amarantha
sóse importavacomchegaratéele,commatar Jurian.Não fazia ideia de que, a
cada segundo, a cada fôlego, eu planejava sua morte. Estava disposto a tornar
aquilo minha resistência final: matar Amarantha a qualquer custo, mesmo que
significassedestruirminhasasasparamelibertar.Observeiosguardaseaprendios
turnosdeAmarantha;então,sabiaondeelaestaria.Marqueiumdiaeumhorário.
Eestavapronto,estavatãoprontoparaacabarcomaquiloeesperarporCassiane
AzrieleMordooutrolado.Nãohavianadaalémdemeuódio,eoalíviopormeus
amigosnãoestaremali.MasnodiaanterioràquelequeeumatariaAmarantha,em
quefariaminharesistênciafinalechegariaameufim,elaeJurianseenfrentaram
nocampodebatalha.”
Rhysparou,engolindoemseco.
— Eu estava acorrentado à lama, fui forçado a assistir enquanto eles
batalhavam. Assistir Jurian dar meu golpe mortal. Mas... Amarantha o matou.
ObserveiquandoelaarrancouoolhodeJurian,e,depois,odedo,e,quandoJurian
estavacaídodecostas,euaobserveicarregá-lodevoltaaoacampamento.Eouvi
Amarantha,devagar, ao longodeváriosdias, esquartejar Jurian.Osgritoseram
intermináveis. Ela estava tão concentrada em torturá-lo que não detectou a
chegada de meu pai. Em meio ao pânico, matou Jurian, para não o ver em
liberdade, e fugiu. Então, meu pai me resgatou e disse a seus homens, disse a
Azriel,paradeixaro freixo emminhas asas comopuniçãopor ter sidopego.Eu
estavatãoferidoqueoscurandeirosmeinformaram:seeutentasselutarantesdeas
asassecurarem,jamaisvoariadenovo.Então,fuiobrigadoavoltarparacasaeme
recuperar,enquantoasbatalhasfinaiseramtravadas.
“Eles fizeram o Tratado, e a muralha foi construída. Tínhamos libertado
nossos escravos na Corte Noturna havia muito tempo. Não confiávamos nos
humanosparaguardarnossossegredos,nãoquandoelessereproduziamtãorápida
e frequentementequemeusancestraisnãoconseguiamconter todasasmentesao
mesmotempo.Masnossomundoestavamudado,mesmoassim.Todosmudamos
com a Guerra. Cassian e Azriel voltaram diferentes; eu voltei diferente. Nós
viemos até aqui... para este chalé. Ainda estava tão ferido que me carregaram.
EstávamosaquiquandochegaramasmensagenscomostermosfinaisdoTratado.
“ElesficaramcomigoquandourreiparaasestrelasqueAmarantha,apesardo
quetinhafeito,decadacrimecometido,sairiaimpune.QueoreideHybernsairia
impune. Muitas mortes tinham ocorrido dos dois lados para que todos fossem
levadosàjustiça,disserameles.Atémesmomeupaimedeuaordemdeesquecer,
de construir comvistas emum futurode coexistência.Mas jamaisperdoeioque
Amaranthahavia feitocommeusguerreiros.E jamaisesqueci também.Opaide
Tamlin...eraamigodela.E,quandomeupaiomatou,eufiqueiconvencidodeque
talvezAmarantha tivesse sentido uma pontada do que eu vivenciara quando ela
assassinoumeussoldados.”
Minhasmãos estavam trêmulas enquanto eumexia a sopa. Jamais soubera...
Jamaisachei...
—QuandoAmaranthavoltouparaesseslados,séculosdepois,euaindaqueria
matá-la. A pior parte era que ela nemmesmo sabia quem eu era. Nemmesmo
lembravaque eu erao filhodoGrão-Senhor, aquele quemantivera cativo.Para
Amarantha,eueraapenasofilhodohomemquemataraseuamigo...eraapenaso
Grão-SenhordaCorteNoturna.OsoutrosGrão-Senhores estavamconvencidos
dequeAmaranthaqueriapaze comércio.ApenasTamlindesconfioudela.Euo
odiava,mas ele conheciaAmarantha pessoalmente, e, se não confiava nela... Eu
sabiaqueAmaranthanãotinhamudado.
“Então,planejeimatá-la.Nãoconteianinguém.NemmesmoaAmren.Deixei
Amaranthapensarqueeuestavainteressadoemcomércio,emaliança.Decidique
iriaàfestaSobaMontanhaparaquetodasascortescelebrassemnossoacordode
comércio comHybern... E, quandoAmarantha estivesse bêbada, eu entraria em
suamente,fariacomquerevelassecadamentiraecrimequecometera,edepoislhe
transformaria o cérebro em líquido antes que alguém pudesse reagir. Eu estava
prontoparairàguerraporaquilo.”
Eumevirei,encostadanobalcão.Rhysolhavaparaasmãos,comoseahistória
fosseumlivroqueelepudesselerentreelas.
—Maselapensoumaisrápido,agiumaisrápido.Foratreinadacontraminha
habilidadeemparticularetinhadiversosescudosmentais.Euestavatãoocupado
trabalhandoparaabrirumtúnelatravésdelesquenãopenseinabebidaemminha
mão. Não queria que Cassian, Azriel ou mais ninguém naquela noite
testemunhasseoqueeuestavaprestesafazer,entãoninguémsedeuotrabalhode
cheirarolíquido.
“Quando senti meus poderes sendo arrancados por aquele feitiço que
Amaranthacolocounaminhabebidaduranteobrinde,disparei-osumaúltimavez,
apagandoVelaris,osfeitiços,tudoqueerabomdamentedosfeéricosdaCortedos
Pesadelos,osúnicosquetiverampermissãodemeacompanhar.Projeteioescudo
sobre Velaris, atando-o a meus amigos para que precisassem permanecer, ou
arriscariam que aquela proteção desabasse, e usei as últimas gotas para contar a
eles,pelasmentes,oqueestavaacontecendo,eparaavisarqueficassemlonge.Em
algunssegundos,meupoderpertenciacompletamenteaAmarantha.”
OsolhosdeRhysseergueramparaosmeus.Assombrados,tristes.
—Elamatoumetade daCorte dos Pesadelos bem ali. Parame provar que
podia.UmavingançapelopaideTamlin.Eeusoube...soube,naquelemomento,
quenãohavianadaqueeunãofariaparaevitaroescrutíniodeAmaranthasobre
minhacortedenovo.Evitarqueolhasseportempodemaisparaquemeueraeo
queeuamava.Então,disseamimmesmoqueaquelaeraumanovaguerra,umtipo
diferentedebatalha.E, naquelanoite, quandoAmaranthavoltou a atençãopara
mim,eusabiaoqueelaqueria.Eusabiaqueoobjetivonãoeratreparcomigo,mas
sevingardofantasmademeupai.Mas,seeraissooqueelaqueria,então,eraoque
conseguiria.Eua fiz imploraregritar,euseimeuspoderes restantespara tornar
aquilotãobomparaAmaranthaqueelaquismais.Desejoumais.
Segureiobalcãoparaevitardeslizaratéochão.
—Então, ela amaldiçoouTamlin. Emeu outro grande inimigo se tornou a
brecha que poderia libertar todos nós. Todas as noites que eu passava com
Amarantha,sabiaqueelaestavaseperguntandoseeutentariamatá-la.Nãopodia
usarmeuspoderesparaferi-la,eelatinhaerguidoproteçõescontraataquesfísicos.
Mas,durantecinquentaanos,semprequeeuestavadentrodela,pensavaemmatá-
la.Amaranthanãofaziaideia.Nenhuma.Porqueeueratãobomemmeutrabalho
queelaachavaqueeutambémgostava.Ecomeçouaconfiaremmim,maisdoque
nos outros. Principalmente quando provei o que podia fazer com seus inimigos.
Maseuficavafelizemfazê-lo.Eumeodiava,masficavafelizemfazê-lo.Depoisde
uma década, parei de esperar ver meus amigos oumeu povo de novo. Esqueci
comoeramseusrostos.Epareideteresperanças.
OsolhosdeRhysbrilharamprateado,eelepiscouparaafastaraumidade.
—Hátrêsanos—disseRhys,baixinho—,comeceiateresses...sonhos.A
princípio, eram lampejos, como se estivesse vendo pelos olhos de outra pessoa.
Umalareiracrepitandoemumlarescuro.Umrolode fenoemumceleiro.Uma
tocadecoelhos.Asimagenseramturvas,comoolharporvidroembaçado.Eram
rápidas,umlampejoaquieali,acadapoucosmeses.Nãopenseimuitonelas,até
que uma das imagens foi a da mão de alguém... Uma linda mão humana.
Segurandoumpincel.Pintando...floresemumamesa.
Meucoraçãodeuumsalto.
—E,nessemomento,mandeidevoltaumpensamentocomomensagem.Do
céunoturno,daimagemquemelevavaalegriaquandoeumaisprecisava.Olimpo
céunoturno, estrelas e a lua.Não sabia se amensagem tinha sido recebida,mas
tenteimesmoassim.
Eunãotinhacertezaseestavarespirando.
— Aqueles sonhos, os lampejos daquela pessoa, daquela mulher... Eu os
cultivava.Eramumlembretedequehaviaalgumapazláforanomundo,alguma
luz.Quehaviaumlugar,eumapessoa,quetinhasegurançaobastanteparapintar
flores em umamesa. Eles se prolongaram durante anos, até... um ano atrás. Eu
estavadormindoaoladodeAmaranthaeacordeisobressaltadodeumsonho...esse
eramaisnítidoemaisclaro,comoseaquelanévoativessesidolimpa.Ela...você
estava sonhando. Eu estava em seu sonho, observando enquanto você tinha um
pesadelosobreumamulhercortandosuagarganta,enquantoeraperseguidapelo
Bogge...Nãoaconseguiaalcançar,falarcomvocê.Masvocêestavavendonosso
povo. E percebi que a névoa provavelmente era a muralha, e que você... você
estavaagoraemPrythian.
“Vi você por meio de seus sonhos e guardei as imagens, selecionando-as
diversasvezes,tentandolocalizá-la,identificá-la.Mastinhapesadelostãohorríveis,
eascriaturaspertenciamatodasascortes.Euacordavacomseucheirononariz,e
aquilomeassombravaodiatodo,cadapasso.Mas,então,umanoite,vocêsonhou
que estava de pé em meio àquele verde, vendo fogueiras apagadas para o
Calanmai.”
Haviaumsilêncioprofundoemminhamente.
—Eusabiaquehaviaapenasumacomemoraçãotãogrande;conheciaaquelas
colinas...e sabiaquevocêprovavelmenteestava lá.Então,conteiaAmarantha...
—Rhysengoliuemseco.—ConteiaelaquequeriaveraCortePrimaverilparaa
comemoração, para espionarTamlin e ver se alguém tinha aparecido,desejando
conspirar comele.Estávamos tãopertodoprazodamaldiçãoqueAmarantha se
sentiaparanoica,inquieta.Elamedisseparavoltarcomtraidores.Euprometique
ofaria.
OsolhosdeRhysseergueramparamimdenovo.
—Chegueiláeconseguisentirseucheiro.Então,seguiaquelecheiro,e...Elá
estava você. Humana, completamente humana, e sendo arrastada por aqueles
porcosdemerdaquequeriam...—Rhyssacudiuacabeça.—Penseiemmatá-los
bemali,masentãoelesaempurraram,eeuapenas...agi.Comeceiafalarsemsaber
oqueestavadizendo,apenasquevocêestavaali,equeeuaestavatocandoe...—
Eleexpirou,estremecendo.
Aíestávocê.Estavaasuaprocura.
AsprimeiraspalavrasdeRhysparamim—nãoeramentiraalguma,nemuma
ameaçaparamanteraquelesfeéricoslonge.
Obrigadoporencontrá-laparamim.
Tiveavagasensaçãodequeomundoescorregavaporbaixodemeuspéscomo
areiaseafastandodapraia.
—Vocêmeolhou—disseRhys—,eeusoubequevocênãotinhaideiade
quemeuera.Queeupodiatervistoseussonhos,masvocênãotinhavistoosmeus.
Eeraapenas...humana.Era tão jovemefrágilenãotinhaqualquer interesseem
mim, e eu soube que, se eu ficasse por tempo demais ali, alguém me veria e
relatariadevolta,eelaencontrariavocê.Então,comeceia recuar,pensandoque
vocêficariafelizporselivrardemim.Masdepoisvocêmechamou,comosenão
conseguissemedeixarpartirainda,casosoubesseounão.Eeusabia...Sabiaque
estávamosemterritórioperigoso,dealgumaforma.Sabiaquejamaispoderiafalar
comvocê,ouvê-la,oupensaremvocêdenovo.
“NãoquissaberporquevocêestavaemPrythian;nãoquissequersaberseu
nome.Porquevê-laemmeussonhoseraumacoisa,maspessoalmente...Naquele
momento, bem no fundo, acho que eu sabia o que você era. E nãome permiti
admitir,porque,sehaviasequeramínimachancedevocêserminhaparceira...Eles
teriamlhefeitocoisastãoinomináveis,Feyre.
“Então,deixeiquedesseascostas.Disseamimmesmodepoisquevocêsefoi
quetalvez...talvezoCaldeirãotivessesidobondoso,enãocruel,pormepermitir
vê-la.Apenaumavez.Umpresentepeloqualeuestavapassando.E,quandovocê
sefoi,encontreiaquelestrêsporcos.Invadisuasmentes,remodeleisuasvidas,as
histórias, e os arrastei perante Amarantha. Fiz com que confessassem ter
conspiradoparaencontraroutrosrebeldesnaquelanoite.Fizcomquementisseme
alegassem que a odiavam. Observei Amarantha dilacerá-los enquanto ainda
estavamvivos,alegandoinocência.Egosteidaquilo,porquesabiaoquequeriam
fazer com você. E sabia que aquilo teria sido banal em comparação com o que
Amaranthateriafeitoseaencontrasse.”
Leveiamãoaopescoço.Tivemeusmotivosparaestarforanaquelanoite, dissera
Rhyscertavez,SobaMontanha.Nãopense,Feyre,quenãomecustou.
Rhyscontinuouolhandoparaamesaaodizer:
— Eu não sabia. Que você estava com Tamlin. Que estava na Corte
Primaveril.AmaranthameenviounaquelediadepoisdoSolstíciodeVerãoporque
eufora tãobem-sucedidonoCalanmai.EstavaprontoparadebochardeTamlin,
talvezcomeçarumabriga.Mas,então,entreinaquelasalaeocheiroerafamiliar,
maspareciaoculto...Edepoisvioprato,sentioencantamentoe...Aliestavavocê.
Morandonacasademeusegundopiorinimigo.Jantandocomele.Fedendoaele.
Olhandoparaelecomo...Comoseoamasse.
OsnósdosdedosdeRhysficarambrancos.
—EdecidiqueprecisavaassustarTamlin.PrecisavaassustarvocêeLucien,
mas,principalmente,Tamlin.Porquevicomoeleaolhavatambém.Então,oque
fiznaqueledia...—OslábiosdeRhysestavampálidos,contraídos.—Invadisua
mente e a tomei por tempo o bastante para que você sentisse, para que a
aterrorizasse, a ferisse.ObrigueiTamlin a implorar, comoAmaranthame fizera
implorar,paramostraraeleoquantoeraimpotenteparasalvá-la.Erezeiparaque
minha atuação bastasse para fazer com que Tamlin a mandasse para longe. De
voltaaoreinohumano,paralongedeAmarantha.Porqueelaencontrariavocê.Se
vocêquebrasseaquelamaldição,elaaencontrariaeamataria.
“Mas fui tãoegoísta, tãoestupidamenteegoísta,quenãopudesair semsaber
seunome.Evocêestavameolhandocomoseeufosseummonstro,e,depois,disse
amimmesmoquenãoimportavamesmo.Masvocêmentiuquandoperguntei.Eu
sabia que haviamentido. Tinha suamente nasmãos, e você teve a ousadia e a
precauçãodementirdescaradamente.Então,deiascostasavocêdenovo.Vomitei
astripasassimquesaí.”
Meuslábiosestremeceram,eeuosfecheicomforça.
— Verifiquei de novo uma vez. Para me certificar de que você tinha ido
embora.Fuicomelesnodiaemquesaquearamamansão...paracompletarminha
atuação. Disse a Amarantha o nome daquela garota, achando que você o teria
inventado.Não fazia ideia...Não fazia ideia de que elamandaria os subalternos
atrásdeClare.Mas,seeuadmitisseminhamentira...—Rhysengoliuemseco.—
InvadiamentedeClarequandoalevaramSobaMontanha.Tireisuadoredisse
paragritarquandofosseesperado.Entãoeles...elesfizeramaquelascoisascomela,
e tentei consertar, mas... Depois de uma semana, não conseguia deixar que
continuassem.Queaferissemmais.Então,enquantoatorturavam,entreinamente
deClare de novo e acabei comaquilo.Ela não sentiunenhumador.Não sentiu
nadadoquefizeramcomela,mesmonofim.Mas...Maseuaindaavejo.Emeus
homens.EosoutrosquemateiporAmarantha.
DuaslágrimasescorrerampelasbochechasdeRhys,ligeirasefrias.
Elenãoaslimpouconformedisse:
— Achei que tivesse terminado depois daquilo. Com a morte de Clare,
Amarantha acreditava que você estivesse morta. Então, você estava segura, e
muito,muito longe, emeupovo estava seguro, eTamlin tinhaperdido, então...
havia acabado.Nós estávamos acabados.Mas, depois...Eu estavanos fundosda
sala do trono naquele dia em que oAttor a levou. E jamais conheci tal horror,
Feyre,quantoaoassistirvocêfazeraqueleacordo.Terrorirracionaleestúpido,eu
nem a conhecia. Nem mesmo sabia seu nome. Mas pensei naquelas mãos de
pintora, nas flores que a vi criar.E em como ela sentiria prazer ao quebrar seus
dedos.PreciseiassistirenquantooAttoreseusseguidoresaespancaram.Precisei
observar o desprezo e o ódio emmeu rosto enquantome olhava,me observava
ameaçardestruiramentedeLucien.Então...então,descobriseunome.Ouvirvocê
pronunciá-lo... foi como a resposta para uma pergunta que eu fazia havia
quinhentosanos.
“Decidinaquelemomentoque lutaria.Elutariasujo,ematariae torturariae
manipularia,mas lutaria.Sehaviaumachancedenos libertardeAmarantha,era
você.Pensei...PenseiqueoCaldeirãoestavamemandandoaqueles sonhospara
medizerqueseriavocênossasalvadora.Salvadorademeupovo.
“Então, assisti a sua primeira tarefa. Fingindo... sempre fingindo ser aquela
pessoa que você odiava. Quando se feriu tão gravemente contra o Verme...
Encontrei o caminho até você. Uma forma de desafiar Amarantha, de semear
esperançaparaaquelesquesoubessemleramensagem,eumaformademantê-la
viva sem parecer suspeito. E uma forma de me vingar de Tamlin... De usá-lo
contraAmarantha,sim,mas...Demevingardeleporminhamãeeminhairmã,e
por...tervocê.Quandofizemosaqueleacordo,vocêestavatãocheiadeódioque
eusabiaquetinhafeitomeutrabalhodireito.
“Então,conseguimossuportaraquilo.Euaobrigueiasevestirdaquelaforma
paraqueAmaranthanãosuspeitasse,efizcomquebebesseovinhoparaquenãose
lembrasse dos horrores noturnos naquela montanha. E na última noite, quando
encontreivocêsdoisnocorredor...Fiqueicomciúmes.Fiqueicomciúmesdele,e
comraivaporterusadoaquelaúnicachancedenãosernotadonãoparalibertá-la,
masparaestarcomvocê,e...Amaranthaviuesseciúme.Elameviubeijá-lapara
esconder a prova, mas viu o motivo. Pela primeira vez, viu o motivo. Então,
naquela noite, depois que deixei você, precisei... satisfazê-la. Amarantha me
manteve lá pormais tempo que o habitual, tentando arrancar respostas demim.
Masdeioqueelaqueriaouvir:quevocênãoeranada,queeralixohumano,queeu
ausariaedescartaria.Depois...quisvervocê.Umaúltimavez.Sozinha.Penseiem
contartudo,masquemeutinhametornado,quemvocêachavaqueeuera...Não
ouseidestruiraqueleardil.
“Suaúltimatarefachegou,e...Quandoelacomeçouatorturá-la,algumacoisa
separtiudeuma formaquenãopudeexplicar,apenasquevervocê sangrandoe
gritandome devastou.Por fim,me destruiu. E eu soube, quando peguei aquela
faca para matá-la... eu soube naquele momento o que você era. Soube que era
minha parceira e estava apaixonada por outro macho, e tinha se destruído para
salvá-lo, e isso... isso não importava. Se vocêmorresse, eumorreria junto.Não
podiaparardepensarnisso,denovoedenovo,conformevocêgritava,enquanto
eu tentava matar Amarantha: você era minha parceira, minha parceira, minha
parceira.
“Mas,depois,elapartiuseupescoço.”
LágrimasescorrerampelorostodeRhys.
—Eeuasentimorrer—sussurrouele.
Lágrimasescorriamporminhasbochechas.
—Eaquelacoisalindaemaravilhosaquetinhaentradoemminhavida,aquela
dádivadoCaldeirão...tinhapartido.Emmeudesespero,eumeagarreiàquelelaço.
Nãoodoacordo,oacordonãoeranada,oacordoeracomoumateiadearanha.
Masmeagarreiàquelelaçoentrenós,epuxei,edesejeiquevocêsesegurasse,que
ficassecomigo,porquesepudéssemosserlivres...Sepudéssemosserlivres,então,
nós sete estávamos lá. Poderíamos trazê-la de volta. E nãome importava se eu
precisasse dilacerar as mentes de todos para fazer isso. Eu os obrigaria a salvar
você.—AsmãosdeRhystremiam.—Vocênostinhalibertadocomseuúltimo
suspiro, e meu poder... envolvi meu poder naquele laço. O laço da parceria.
Conseguiasenti-latremeluzindoali,segurando.
Meu lar. Meu lar ficava na outra ponta da ligação, fora o que eu disse ao
EntalhadordeOssos.NãoTamlin,nãoaCortePrimaveril,mas...Rhysand.
—Então,Amaranthamorreu,efaleicomosGrão-Senhores,emsuasmentes,
convencendo-osaseapresentarem,aofereceremaquelafaíscadepoder.Nenhum
discordou.Achoque estavamchocadosdemais paradizer não.E... eumais uma
vezpreciseiverTamlinabraçarvocê.Beijarvocê.Queriairparacasa,paraVelaris,
mas precisava ficar,me certificar de que as coisas estivessem acontecendo como
deviam,dequevocêestivessebem.Então,espereiomáximopossívelelanceium
puxãopelolaço.Evocêveiomeencontrar.
“Quaseconteinaquelemomento,mas...Vocêestavatãotriste.Ecansada.E,
pelaprimeiravez,olhouparamimcomo...Comoseeutivessealgumvalor.Então,
prometiamimmesmoque,dapróximavezqueavisse,eualibertariadoacordo.
Porqueeraegoísta,sabiaquesealibertassenaquelemomento,eleatrancafiariae
eu jamais averiadenovo.Quandoestavaparadeixá-la...Achoque transformar
vocêemfeéricafezolaçoseencaixarpermanentemente.Eusabiaqueeleexistia,
mas me atingiu naquele momento, me atingiu com tanta força que entrei em
pânico.Sabiaque,seficassemais,ignorariaasconsequênciasealevariacomigo.E
vocêmeodiariaparasempre.
“AterrisseinaCorteNoturnaquandoMormeesperava,eestavatãoagitado,
tão...descontrolado,queconteitudoaela.Nãoaviaemcinquentaanos,eminhas
primeiraspalavrasparaMor foram:Ela éminha parceira. E durante trêsmeses...
durante três meses, tentei me convencer de que você estava melhor sem mim.
Tenteimeconvencerdequetudooqueeutinhafeitolevaravocêameodiar.Mas
a sentiapela ligação,por seuescudomentalaberto.Sentia suador, sua tristezae
solidão. Sentia que lutava para escapar da escuridão de Amarantha da mesma
formaqueeu.Ouviquesecasariacomele,edisseamimmesmoqueestavafeliz.
Eudeveriadeixá-laserfeliz,mesmoqueaquiloacabassecomigo.Mesmoquefosse
minhaparceira,haviamerecidoaquelafelicidade.
“Nodiadocasamento,euplanejaracairdebêbadocomCassian,quenãofazia
ideiadomotivo,mas...Mas,então,asentidenovo.Sentiseupânicoedesespero,e
ouvi implorar a alguém, qualquer um, para que a salvasse. Perdi a cabeça.
Atravessei até o casamento e mal me lembrava de quem deveria ser, que papel
deveriainterpretar.Sópodiavervocê,naquelevestidodecasamentoidiota... tão
magra.Tão,mastãomagraepálida.EtivevontadedematarTamlinporisso,mas
precisavatirá-ladali.Precisavacobraraqueleacordo,apenasumavez,paratirá-la
delá,verseestavabem.”
Rhysergueuosolhosparamim,desolado.
—Fiqueiarrasado,Feyre,aomandarvocêdevolta.Aovê-ladefinhar,mêsa
mês. Fiquei arrasado por saber que ele compartilhava sua cama. Não apenas
porque você era minha parceira, mas porque eu...— Rhys abaixou o olhar e,
depois,ergueu-oparamimdenovo.—Eusabia...sabiaqueestavaapaixonadopor
vocênomomentoemquepegueiafacaparamatarAmarantha.
“Quandovocêfinalmenteveioparacá...decidiquenãocontaria.Nada.Nãoa
libertariadoacordo,porqueseuódioeramelhorqueenfrentarasduasalternativas:
quenãosentianadapormim,ouque...quetalvezsentissealgosemelhantee,seeu
mepermitisseamá-la,vocêseriatiradademim.Assimcomominhafamíliaofoi,
assimcomomeusamigosoforam.Então,nãoconteiavocê.Observei-adefinhar.
Atéaqueledia...Aquelediaemqueeleatrancafiou.
“Eu o teria matado se estivesse lá. Mas quebrei regras muito fundamentais
quandoalevei.Amrendisseque,seeufizessecomquevocêadmitissequesomos
parceiros, manteria qualquer problema longe de nossa porta, mas... Não podia
imporolaçoavocê.Nãopodiatentarseduzi-laparaqueaceitasseolaçotambém.
MesmoqueissodessepermissãoaTamlinparaquedeclarasseguerracontramim.
Vocêjátinhapassadoportantacoisa.Nãoqueriaquepensassequetudoquefizfoi
para conquistá-la, apenas para manter meu território a salvo. Mas eu não
conseguia...Nãoconseguiaparardeestarcomvocê,edeamarvocê,edequerer
você.Aindanãoconsigoficarlonge.”
Rhysserecostou,soltandoumlongosuspiro.
Devagar,eumevirei,paraondeasopaagora fervia,eserviumaconchaem
umatigela.
Rhys observou cada passo que dei até a mesa, com a tigela fumegante nas
mãos.
Pareidiantedele,olhandoparabaixo.
Efalei:
—Vocêmeama?
Rhysassentiu.
Emepergunteiseamorseriaumapalavramuitofracaparaoqueelesentia,o
quetinhafeitopormim.Peloqueeusentiaporele.
ColoqueiatigeladiantedeRhys.
—Então,coma.
ObserveiRhysconsumircadacolherada,eseusolhosdesviavamdemimparaa
sopa.
Quandoeleterminou,soltouacolher.
—Nãovaidizernada?—indagouRhys,porfim.
—Euiacontaroquetinhadecididoassimqueoviàporta.
Rhyssevirouemminhadireçãonacadeira.
—Eagora?
Cientedecadarespiração,decadamovimento,senteiemseucolo.Asmãosde
Rhys carinhosamente se apoiaram em meu quadril enquanto eu observava seu
rosto.
—Eagoraqueroquesaiba,Rhysand,queamovocê.Queroquesaiba...—Os
lábiosdeletremiam,elimpeialágrimaquelheescorreupelabochecha.—Quero
quesaibaque—sussurrei—queestouquebrada,emecurando,mascadapedaço
demeucoraçãopertenceavocê.Emesintohonrada,honrada,porsersuaparceira.
OsbraçosdeRhysmeenvolveram,eeleapoiouatestaemmeuombrocomo
corpotrêmulo.Acaricieioscabelossedosos.
—Amovocê—repeti.Nãoousaradizeraspalavrasemminhamente.—E
enfrentariacadasegundodaquilodenovo,parapoderencontrá-lo.E,seaguerra
vier,vamosenfrentá-la.Juntos.Nãodeixareiquemetiremdevocê.Enãodeixarei
queotiremdemimtambém.
Rhys ergueu o olhar, e seu rosto brilhava com lágrimas. Ele ficou imóvel
quandomeaproximei,beijandoumalágrima.Depois,outra.ComoRhyscertavez
beijaraminhaslágrimas.
Quandomeuslábiosestavamsalgadosporcausadelas,eumeafasteiobastante
paraverosolhosdeRhysand.
—Vocêémeu—sussurrei.
OcorpodeRhys estremeceu comoquepodia serum soluço,masos lábios
encontraramosmeus.
Foicarinhoso...suave.ObeijoquetalvezRhysmedessesetivéssemostempoe
espaçoparanosconheceremnossosmundosseparados.Paracortejarumaooutro.
Deslizeiosbraçosemvoltade seusombros, abri abocaparaRhys,e sua língua
deslizouparadentro,acariciandoaminha.Parceiro...meuparceiro.
Rhysficourígidocontramim,egemiemsuaboca.
OsomlibertouqualquerquefosseocontrolequeRhystinhasobresi,eeleme
pegou comummovimento fluido eme deitou de costas namesa— emmeio e
sobretodasastintas.
Rhysandintensificouobeijo,eentrelaceiaspernasàscostasdele,puxando-o
paraperto.Rhystirouoslábiosdeminhaboca,foiatémeupescoçoealiroçouos
dentesealínguapelapele,conformedeslizouasmãosporbaixodemeusuétere
subiu mais e mais, até agarrar meus seios. Arqueei ao toque e ergui os braços
quandoRhysandarrancoumeusuétercomummovimentosimples.
Ele recuou parame olhar;meu corpo estava nu da cintura para cima.Tinta
encharcavameus cabelos, meus braços.Mas eu só conseguia pensar na boca de
Rhysquandoeladesceuatémeuseioeosugou,alínguaacariciandomeumamilo.
EntrelaceiosdedospeloscabelosdeRhys,eeleapoiouamãoaoladodeminha
cabeça—acertandoumapaletadetinta.Rhyssoltouumarisadagrave,eobservei,
sem fôlego, quando ele pegou aquelamão e traçouum círculo emvolta demeu
seio,edepoisdesceu,atépintarumasetaapontandoparabaixo,sobmeuumbigo.
—Casovocêesqueçaondeissotermina—disseRhys.
Grunhipara ele,umaordemsilenciosa, eRhysgargalhoudenovo, e aboca
encontroumeuoutroseio.Elepressionouoquadrilcontraomeu,provocando—
provocando tão terrivelmentequeprecisava tocá-lo,precisavaapenas sentirmais
deRhys.Tinta cobriaminhasmãos,meus braços,mas nãome importei quando
agarrei as roupas dele. Rhys se moveu o suficiente para permitir que eu as
removesse, armas e armadura caíram no chão com um ruído, revelando aquele
lindocorpotatuado,osmúsculospoderososeasasasagoradespontandoacima.
Parceiro...meuparceiro.
AbocadeRhyssechocoucontraaminha,apeleexpostaparecia tãoquente
contraaminha,elhesegureiorosto,sujando-odetintatambém.Sujeioscabelos
deRhysatéquegrandesmechasdeazulevermelhoeverdedescessemporele.As
mãosdeRhysencontraramminhacintura,eafasteioquadrildamesaparaajudá-lo
aretirarminhasmeias,minhacalça.
Rhysrecuoudenovo,esolteiumruídodeprotesto—queseabafouemum
arquejoquando ele segurouminhas coxas emepuxoupara a beira damesa, em
meioatintas,pincéisecoposd’água,edepoisprendeuminhaspernasporcimados
ombros, para que se apoiassem uma de cada lado daquelas lindas asas, e, em
seguida,seajoelhoudiantedemim.
Ajoelhousobreaquelasestrelasemontanhaspintadasnosjoelhos.Rhysnãose
curvariaaninguémeanada...
Excetoasuaparceira.Porsuaigual.
OprimeirotoquedalínguadeRhysmeincendiou.
Queroqueestejadeitadanamesacomomeubanquetepessoal.
Rhysgrunhiuemaprovaçãodiantedemeugemido,meugosto,e se libertou
completamentesobremim.
Comumadasmãosprendendomeuquadrilàmesa,Rhyssededicavaamim
com carícias longas, curvas. E quando sua língua deslizou para dentro demim,
estiqueiamãoparaagarrarabordadamesa,parameagarraraolimitedomundo
doqualeuestavamuitopertodecair.
Rhyslambeuebeijouatéchegaraoápicedeminhascoxas,exatamentequando
osdedossubstituíramaboca,impulsionando-separadentrodemimenquantoele
sugava,comosdentesroçandomuitodeleve...
Arqueei o corpo, afastando-o da mesa, quando meu clímax o devastou,
estilhaçando minha consciência em milhões de pedaços. Rhys continuou me
lambendo,eseusdedosaindasemoviam.
—Rhys!—exclamei,rouca.
Agora.Euoqueriaagora.
MasRhyspermaneceudejoelhos,banqueteando-seemmim,comaquelamão
meprendendoàmesa.
Alcancei o prazer de novo. E somente quando eu estava trêmula, quase
soluçando,inertedeprazer,Rhysselevantoudochão.
Ele me olhou de cima a baixo, nua, coberta de tinta, o rosto e o corpo do
próprioRhysmanchadoscomela,emedeuumsorrisolentoesatisfeito.
—Vocêéminha—grunhiuele,emepegounosbraços.
Euqueriaaparede;queriaqueRhysapenasmetomassecontraaparede,mas
elemecarregouatéoquartoqueeuocupavaemeapoiounacamacomumcarinho
departirocoração.
Completamente nua, observei Rhys desabotoar a calça, e seu tamanho
considerávelselibertou.Minhabocasecouaoveraquilo.Euoqueria,queriacada
gloriosocentímetrodeRhysdentrodemim,queriaagarrá-loatéquenossasalmas
seunissem.
Rhysnãodissenadaquandoseaproximoudemim,asasasbemrecolhidas.Ele
jamaislevaraumafêmeaparaacamacomasasasexpostas.Maseuerasuaparceira.
Rhyssecurvariaapenasamim.
Eeuqueriatocá-lo.
Aproximei o corpo, estendendo a mão por cima do ombro de Rhys para
acariciarapoderosacurvadesuaasa.
Rhysestremeceu,eviseupaucontrair.
—Brinquedepois—disparouRhys.
Certo.
AbocadeRhysencontrouaminha,obeijofoiinfinitoeintenso,umchoquede
línguasedentes.Rhysmedeitounostravesseiros,eentrelaceiaspernasàscostas
dele,tomandocuidadocomasasas.
Maspareidemeimportarquandoeleroçouàminhaentrada.Parou.
—Brinquedepois—grunhicontraabocadeRhys.
Ele riu de uma forma que estremeceu meus ossos, e, depois, deslizou para
dentro.Edenovo.Edenovo.
Mal consegui respirar, mal consegui pensar além de onde nossos corpos
estavam unidos. Rhys ficou imóvel dentro de mim, permitindo que eu me
ajustasse,e,então,abriosolhoseovimeencarando.
—Digadenovo—murmurouRhys.
Eusabiaoqueelequeriadizer.
—Vocêémeu—sussurrei.
Rhys recuou levemente e, depois, impeliu o corpo de volta, devagar. Tão
angustiantementedevagar.
—Vocêémeu—declarei,arquejando.
Denovo,Rhysrecuoue,depois,seimpulsionouparafrente.
—Vocêémeu.
Denovo;maisrápido,maisprofundoagora.
Eeusenti,então,olaçoentrenós,comoumacorrenteindestrutível,comoum
raiodeluzinextinguível.
Acadaimpulsolatejante,olaçoficavamaisnítidoemaisclaroemaisforte.
—Vocêémeu—sussurrei,passandoasmãosporseuscabelos,pelascostas,
pelasasasdeRhys.
Meuamigoemmeioatantosperigos.
Meuamante,quetinhacuradominhaalmaquebradaeexausta.
Meu parceiro, que esperara pormim contra todas as expectativas, apesar da
sorte.
MoviosquadrisaoritmodeRhys.Elemebeijoudenovoedenovo,nossos
rostos ficaram úmidos. Cada centímetro meu queimava e se retesava, e meu
controleseperdeucompletamentequandoelesussurrou:
—Amovocê.
Alívio irrompeupormeucorpo, eRhys se impulsionoucontramim, firmee
rápido,atraindomeuprazeratéqueeusentisseevisseecheirasseaquelelaçoentre
nós,atéquenossoscheirossemesclassem,eeueradeleeeleerameu,eéramoso
início,omeioeofim.Éramosumacançãocantadadesdeaprimeirabrasadeluzno
mundo.
Rhysrugiuquandoalcançouoprazer,mepenetrandoatéabase.Doladode
fora, asmontanhas tremeram, a neve restante farfalhavapara foradelas emuma
cascata de branco reluzente, apenas para ser engolida pela noite que esperava
abaixo.
Silênciocaiu,interrompidoapenaspornossasrespiraçõesofegantes.
SegureiorostomanchadodetintadeRhysentreasmãoscoloridaseoobriguei
ameolhar.
Seusolhosestavamradiantescomoasestrelasqueeupintaracertavez,havia
muitotempo.
EsorriparaRhysquandodeixeiqueaquelelaçodaparceriabrilhassenítidoe
luminosoentrenós.
Não sabia por quanto tempo tínhamos ficado deitados ali, nos tocando
preguiçosamente,comosepudéssemosdefatotertodootempodomundo.
—Acho que me apaixonei por você—murmurou Rhys, acariciando meu
braçocomodedo—assimquepercebiqueestavaafiandoaquelesossosparafazer
umaarmadilhaparaoVermedeMiddengard.Outalveznomomentoemqueme
respondeudevoltaporterdebochadodevocê.MelembroutantodeCassian.Pela
primeiravezemdécadas,tivevontadedegargalhar.
—Vocêseapaixonoupormim—falei,inexpressiva—porqueolembreide
seuamigo?
Eledeuumpetelecoemmeunariz.
—Eumeapaixoneiporvocê,espertinha,porqueeraumadenós,porquenão
tinha medo de mim e decidiu encerrar sua vitória espetacular ao atirar aquele
pedaço de osso contra Amarantha como se fosse uma lança. Senti o espírito de
Cassianaomeuladonaquelemomento,epodia jurarqueoouvidizer:Senãose
casarcomela,seucanalhaidiota,eumecaso.
Deiumarisadaabafada,deslizandoamãocobertadetintapelopeitotatuado.
Tinta...certo.
Estávamos,osdois,cobertosdetinta.Eacamatambém.
Rhys acompanhoumeus olhos eme deu um sorriso que era completamente
malicioso.
—Queconvenientequeabanheirasejagrandeosuficienteparadois.
Meusangue ferveu,eme levanteidacama,apenasparaqueRhys fossemais
rápido emepegasse nos braços.Ele estava sujode tinta, o cabelo formavauma
crosta com ela, e as pobres e lindas asas... Eram as impressões deminhasmãos
nelas.Nu,Rhysmecarregouatéobanheiro,ondeaáguajáestavacaindo;amagia
daquelechaléagiaemnossofavor.
Eledesceuosdegrausatéaágua,ochiadodeprazerfoicomoumsoprodear
contraminhaorelha.Etalvezeutambémtivessegemidoumpoucoquandoaágua
quentemeatingiueRhysnossentounabanheira.
Umcestodesaboneteseóleossurgiunabordadepedra,emeempurreipara
longedeRhysafimdepoderafundarmaisnasuperfície.Ovaporfluíaentrenós;
Rhyspegouumabarradaquelesabonetecomcheirodepinho,aentregouamime
medeuumtoalhete.
—Alguém,parece,sujouminhasasas.
Meurostocorou,massentiumapertonoestômago.Machosillyrianosesuas
asas...tãosensíveis.
GireiodedoparaindicarqueRhyssevirasse.Eleobedeceu,abrindoaquelas
asas magníficas o suficiente para que eu encontrasse as manchas de tinta. Com
cuidado, com muito cuidado, passei sabão na toalha e comecei a limpar o
vermelho,oazuleoroxo.
Aluzdevelasdançavasobreas inúmerasedesbotadascicatrizesdeRhys—
quaseinvisíveis,excetopelaspartesmaisespessasdemembrana.Rhysestremeceu
acadamovimentomeu,asmãosestavamapoiadasnabordadabanheira.Olheipor
cimadoombroparaveraprovadaquelasensibilidade,efalei:
— Pelo menos os boatos sobre a envergadura das asas corresponder ao
tamanhodeoutraspartesestavamcertos.
Os músculos das costas de Rhys ficaram tensos quando ele soltou uma
gargalhada.
—Quebocasujaetravessa.
Pensei em todos os lugares em que queria colocar aquela boca e corei um
pouco.
— Acho que eu estava me apaixonando por você havia um tempo —
confessei,aspalavrasquase inaudíveisporcimadospingosdaáguaenquantoeu
lavavaas lindasasas.—Mas soubenaQuedadasEstrelas.Ouchegueipertode
saber, e fiquei com tanto medo que não quis prestar mais atenção. Fui uma
covarde.
—Tinhamotivosperfeitamenteaceitáveisparaevitarisso.
—Não,não tinha.Talvez...graçasaTamlin,sim.Masnãotinhanadaaver
comvocê,Rhys.Nada a ver comvocê. Jamais sentimedodas consequências de
estarcomvocê.Mesmoquecadaassassinodomundonoscace...Valeapena.Você
valeapena.
AcabeçadeRhyssecurvouumpouco.Eledisse,rouco:
—Obrigado.
Meu coração se partiu para Rhys nesse momento, pelos anos que ele havia
passadopensandoooposto.Beijei opescoçonu, e ele levouamãopara trás até
passarodedoporminhabochecha.
TermineiasasasesegureioombrodeRhysafimdevirá-loparamim.
—Eagora?—Semdizernada,Rhyspegouosabonetedeminhasmãoseme
virou,esfregandominhascostas,esfregandolevementecomotecido.
—Cabeavocê—disseRhys.—PodemosvoltarparaVelaris epedirque
uma sacerdotisa verifique o laço, ninguém como Ianthe, prometo, e seremos
oficialmente declarados Parceiros. Podemos fazer uma pequena festa para
comemorar,jantarcomnosso...grupo.Anãoserqueprefiraumafestagrandiosa,
emboraacreditequevocêeeuconcordemosemnossaaversãoaelas.—Asmãos
fortes de Rhys pressionaram músculos tensos e doloridos em minhas costas, e
gemi.—Tambémpodíamosficardiantedeumasacerdotisaesermosdeclarados
marido e mulher, além de parceiros, se quer um nome mais humano para me
chamar.
—Comovocêvaimechamar?
—Parceira—disseRhys.—Emborachamá-lademulhertambémsoemuito
atraente. — Os dedos de Rhys massagearam minha coluna. — Ou, se quiser
esperar, podemos não fazer nada disso. Somos parceiros, não importa se isso é
divulgadopelomundoounão.Então,nãohápressaemdecidir.
Eumevirei.
—Estavaperguntando a respeitode Jurian, o rei, as rainhas e oCaldeirão,
mas fico feliz por saber que tenho tantas opções no que diz respeito a nosso
relacionamento.Equevocêfaráoqueeuquiser.Devotê-lonasmãos.
OsolhosdeRhysdançaramcomdiversãofelina.
—Coisacruelelinda.
Ricomescárnio.Aideiadequeelemeachavabonita...
—Vocêé—insistiuRhys.—Éacoisamaislindaquejávi.Penseiissoassim
queavinoCalanmai.
Eeraalgomuito,muitoestúpidoquebelezasignificassequalquercoisa,mas...
Meusolhosseencheramdelágrimas.
— Isso é bom— acrescentou Rhys—, porque você achou que eu fosse o
machomaislindoquevocêjáviu.Então,issonostornaquites.
Fiz uma careta, e Rhys gargalhou, deslizando as mãos para agarrar minha
cinturaemepuxarparasi.Elesesentounobancoembutidonabanheira,emontei
nele,acariciandodistraidamenteosbraçosmusculosos.
— Amanhã— falou Rhys, e as feições se tornaram sérias.— Partiremos
amanhã para a propriedade de sua família. As rainhas mandaram notícias. Elas
retornamemtrêsdias.
Fiqueiespantada.
—Estámecontandoissosóagora?
—Medistraí—respondeuRhys,osolhosbrilhando.
Ealuznaquelesolhos,aalegriasilenciosa...Elasmedeixaramsemfôlego.Um
futuro...teríamosumfuturojuntos.Euteriaumfuturo.Umavida.
OsorrisodeRhyssedissolveuemalgoespantado,algo...reverente,eestendia
mãoparasegurarseurosto...
Então,viqueminhapelebrilhava.
Levemente,comosealgumaluzinteriorbrilhassesobminhapele,escorrendo
para omundo.Luz quente e branca, como a do sol; comouma estrela.Aqueles
olhoscheiosdeassombromeencararam,eRhyspercorreumeubraçocomodedo.
—Bem,pelomenosagorapossomegabardeliteralmentefazerminhaparceira
brilhardefelicidade.
Gargalhei, e o brilho ficou um pouco mais forte. Rhys se aproximou, me
beijandosuavemente,emederretiporele,envolvendoseupescoçocomosbraços.
Rhys ficou firme como uma rocha contra mim, empurrando enquanto eu me
sentava,montada,bemacimadele.Seriaprecisoapenasummovimentosuavepara
queentrasseemmim...
MasRhys ficoudepénaágua,nósdoispingávamos,eentrelaceiaspernasa
sua volta quando ele nos levou outra vez ao quarto. Os lençóis haviam sido
trocados pelamagia doméstica da casa e pareciam quentes emacios contrameu
corponuquandoRhysmedeitouemeencarou.Brilhando...euestavabrilhando,
forteepuracomoumaestrela.
—CorteDiurna?
—Nãomeimporta—declarouRhys,avozrouca,etirouoencantamentoque
recaíasobreele.
Eraumapequenamagia,disseraRhyscertavez,paraconterquemeleera,qual
eraaaparênciadoseupoder.
Quando o mistério total de Rhys foi liberado, ele preencheu o quarto, o
mundo,minhaalma,comreluzentepoderébano.Estrelaseventoesombras;paze
sonhoseolimiarafiadodepesadelos.EscuridãoonduloudeRhyscomogavinhas
devaporquandoeleestendeuamãoeaapoiou,aberta,contraapelereluzentede
minhabarriga.
Amãodanoiteespalmada,aluzvazandopelassombrasvaporosas,emeapoiei
nocotoveloparabeijá-lo.
Fumaçaenévoaeorvalho.
Gemiaosentiraquelegosto,eRhysabriuabocaparamim,medeixandoroçar
a língua contra a dele, passá-la por seus dentes. Tudo que Rhys era tinha sido
expostodiantedemim—umaúltimapergunta.
Euqueriatudo.
Segurei seus ombros, guiandoRhys até a cama. E, quando ele se deitou de
costas,violampejodeprotestodiantedasasasesmagadas.Mascantarolei:
—Bebêillyriano.—EpasseiasmãospeloabdômenmusculosodeRhys...e
alémdele.Rhysparoudeprotestar.
Ele era enorme emminhamão: tão firme,mas tão sedosoque simplesmente
passeiodedo,maravilhada.Rhyssibilou,opênistremeuquandopasseiopolegar
pelacabeça.Deiumrisinhoquandoofizdenovo.
Rhysestendeuamãoparamim,maseuoimpedicomumolhar.
—Minhavez—avisei.
Rhysmedeuumsorrisopreguiçosodemachoantesdeserecostar,levantando
amãoparatrásdacabeça.Esperando.
Desgraçadoarrogante.
Então,meabaixeieoguieiparaminhaboca.
Rhys estremeceu diante do contato e soltou umMerda; então, ri sobre ele,
mesmoaotomá-lomaisfundonaboca.
Asmãos de Rhys estavam agora em punhos nos lençóis, os nós dos dedos
brancosconformeeudeslizavaalínguaporele,roçandolevementecomosdentes.
OgemidodeRhyseracomofogoemmeusangue.
Sinceramente,fiqueisurpresaporeleteresperadoumminutointeiroantesde
meinterromper.
AvançareraumapalavramelhorparaoqueRhysfez.
Em um segundo, ele estava emminha boca, minha língua percorria aquela
cabeçagrossa;noseguinte,asmãosdeRhysestavamemminhacintura,eeuera
viradadebruços.Eleabriuminhaspernascomosjoelhos,separando-asenquanto
seguravameuquadril,erguendomaisemaisantesdemepenetrarprofundamente
comumúnicoímpeto.
Gemi no travesseiro a cada glorioso centímetro, erguendo o corpo sobre os
antebraçosconformemeusdedosagarravamoslençóis.
Rhys recuou e mergulhou de novo, a eternidade explodiu ao meu redor
naqueleinstante,eacheiquepoderiamepartirpornãoconseguirosuficientedele.
— Olhe só para você — murmurou Rhys ao entrar em mim, e beijou a
extensãodeminhacoluna.
Conseguimeerguerosuficienteparaverondeestávamosunidos—veraluz
dosolbrilhardedentrodemimcontraanoiteondulante,nosmesclandoeunindo,
crescendo.Everaquilomearrasoutãocompletamentequealcanceioprazercomo
nomedelenoslábios.
Rhysmepuxoucontrasi,umadasmãosagarravameuseioenquantoaoutra
deslizava e acariciava aquele emaranhado de nervos entreminhas pernas, e não
consegui distinguir o fim de um prazer do início do seguinte quando Rhys
penetroudenovoedenovo,oslábiosemmeupescoço,emminhaorelha.
Eupodiamorrerdaquilo,decidi.DequererRhys,doprazerdeestarcomele.
Rhys nos virou, recuando apenas o suficiente para se deitar de costas eme
puxarsobreocorpo.
Um lampejonaescuridão—um flash de dor remanescente, uma cicatriz. E
entendiporqueelemequeriadaquelejeito,queriaterminardaquelejeito,comigo
montadanele.
Aquilopartiumeucoração.EumeinclineiparaafrenteafimdebeijarRhys,
suaveecarinhosamente.
Quando nossas bocas se encontraram, deslizei sobre Rhys, o encaixe ainda
maisprofundo,eelemurmuroumeunomecontraminhaboca.Beijei-odenovoe
denovo,eomonteisuavemente.Maistarde—haveriaoutrosmomentosparaser
firmeerápida.Masagora...Nãopensariaemporqueaquelaposiçãoeraumana
qualRhysqueria terminar,paraqueeu expulsasse amanchanaescuridãocoma
luz.
Maseubrilharia...porele,eubrilharia.Pormeufuturo,eubrilharia.
Então, me sentei, com as mãos apoiadas no peito largo de Rhys, e liberei
aquelaluzemmim,deixandoqueelaafastasseaescuridãodoquequerquetivesse
sidofeitoaele,meuparceiro,meuamigo.
Rhys grunhiu meu nome, impulsionando o quadril para cima. Estrelas
dispararamquandoelemepenetrouprofundamente.
Acho que a luz que emanava demim podia ser luz estelar, ou talvezminha
visão tivesse se partido quando o prazer irrompeu em mim de novo e Rhys
alcançou o próprio prazer, arquejandomeu nome diversas vezes ao transbordar
dentrodemim.
Quando terminamos, permaneci sobreRhys, as pontas dos dedos enterradas
emseupeito,ememaravilheicomele.Conosco.
Elepuxoumeucabelomolhado.
—Precisaremosencontrarumaformadeabafaressaluz.
—Possoesconderassombrascomfacilidade.
—Ah,massóperdecontroledelasquandoestá irritada.Ecomotenhototal
intençãode fazê-laomais felizquealguémpode ser...Tenhoa sensaçãodeque
precisaremoscontrolaressebrilhoespantoso.
—Semprepensando;semprecalculando.
Rhysbeijouocantodeminhaboca.
—Nãotemideiadequantascoisasjápenseinoquedizrespeitoavocê.
—Melembrodamençãoaumaparede.
ArisadadeRhysfoiumapromessasensual.
—Dapróximavez,Feyre,voutreparcomvocêcontraaparede.
—Comtantaforçaquevaifazerosquadroscaírem.
Rhysgargalhou.
—Mostredenovooquepodefazercomessabocasafada.
Obedeci.
Eraerradocomparar,porqueeusabiaqueprovavelmentetodososGrão-Senhores
podiam evitar que uma mulher dormisse a noite inteira, mas Rhysand era...
faminto. Consegui talvez uma hora completa de sono à noite, embora, talvez,
devessecompartilharaculpaigualmente.
Nãoconseguiaparar,nãoconseguiamesaciarcomseugostonaboca,coma
sensação de Rhys dentro de mim. Mais, mais, mais... até eu achar que podia
explodirdetantoprazer.
— É normal — garantiu Rhys, depois de uma mordida no pão enquanto
estávamos sentados àmesa para tomar café damanhã.Mal tínhamos chegado à
cozinha.Rhysderaumpassoparaforadacama,mefornecendoumavistatotaldas
gloriosas asas, das costas musculosas e daquela linda bunda, e avancei nele.
Rolamos no chão, e Rhys destruiu o belo tapete com as garras enquanto eu o
cavalgava.
—Oqueénormal?—perguntei.MalconseguiaolharparaRhyssemquerer
entraremcombustão.
—O... frenesi— respondeu ele, com cautela, como se commedodeque a
palavraerradanosfizessedispararumcontraooutroantesdenutrirmosocorpo.
—Quandoumcasalaceitaolaçodaparceriaé...sobrepujante.Denovo,desdea
épocadasbestasqueumdiafomos.Provavelmentetemalgoavercomsecertificar
dequeafêmeasejaemprenhada.—Meucoraçãodeuumsaltoaoouviraquilo.—
Algunscasaisnãodeixamacasaporumasemana.Machosficamtãovoláteisque
podeserperigosoparaelesatémesmoaparecerempúblico.Jávimachosracionais
eeducadosdestruíremumcômodoporqueoutromachoolhouportempodemais
nadireçãodesuasparceiras,logodepoisdeteremviradoparceiros.
Expirei,sibilando.Outrocômododestruídomeveioàmente.
Rhysfalou,baixinho,sabendooquemeassombrava:
—Gosto de acreditar que tenhomais controle que omacho comum,mas...
Sejapacientecomigo,Feyre,seeuparecerumpoucoansioso.
Ofatodeeleadmitiraquilo...
—Nãoquerdeixarestacasa.
—Queroficarnaquelequartoetreparcomvocêatéficarmosroucos.
E, rápido assim, eu estava pronta para ele, ardendo de desejo, mas... mas
precisávamospartir.Rainhas.Caldeirão.Jurian.Guerra.
—Quantoà...gravidez—comentei.
Podiamuitobemterjogadoumbaldeáguafriasobrenós.
—Nósnão...nãoestoutomandoumtônico.Nãotenhotomado,querodizer.
Rhyssoltouopão.
—Quercomeçaratomardenovo?
Seeuquisesse,secomeçassenaqueledia,anulariaoquetínhamosfeitonanoite
anterior,mas...
—SesouparceiradeumGrão-Senhor,espera-sequeeucarregueseusfilhos,
não?Então,talvezeunãodevesse.
—Não se espera que você carregue nada para mim— grunhiu Rhys.—
Filhossãoraros,sim.Muitorarosemuitopreciosos.Masnãoqueroqueostenha,a
nãoserquevocêqueira,anãoserquenósdoisqueiramos.Eagora,comessaguerra
vindo,comHybern...Admitoqueestouapavoradoaopensaremminhaparceira
grávidacomtantosinimigosaonossoredor.Apavoradopeloqueeupossafazerse
vocêestivergrávidaeemperigo.Ouferida.
Algoapertadoemmeupeitosealiviou,mesmoquandoumcalafriopercorreu
minhas costas ao considerar aquele poder, aquele ódio que eu vira na Corte
Noturna,libertadosobreaterra.
—Então,começareiatomarhoje,quandovoltarmos.
Eumelevanteidamesa,comjoelhostrêmulos,efuiparaoquarto.Precisava
tomarbanho—estavacobertadele,minhabocatinhaogostodele,apesardocafé
damanhã.Rhysfaloubaixinho,atrásdemim:
—Euficaria infinitamente felizsevocêumdiamehonrassecomfilhos.Por
compartilharissocomvocê.
EumevolteiparaRhys.
—Quero viver primeiro— falei.—Com você.Quero ver coisas e viver
aventuras.Queroaprenderoqueé ser imortal, ser suaparceira, serpartede sua
família.Queroestar...prontaparaeles.E,pormaisquesejaegoísta,querotervocê
todoparamimporumtempo.
OsorrisodeRhysfoicarinhoso,doce.
—Leveotempoqueprecisar.E,seeutivervocêinteiraparamimpeloresto
daeternidade,então,nãovoureclamar.
ChegueiàbordadabanheiraantesdeRhysmepegar,mecarregarparaaágua
efazeramorcomigo,devagareintensamente,emmeioaovaporquesubia.
Rhysatravessouconoscoatéoacampamentoillyriano.Nãoficaríamostempoo
suficiente para corrermos riscos — e com dez mil guerreiros illyrianos nos
cercandonosdiversos picos,Rhysduvidavaque alguém seria burroo suficiente
paraatacar.
Tínhamos acabado de aparecer na lama do lado de fora da pequena casa
quandoCassiandisse,atrásdenós:
—Bem,jáestavanahora.
OgrunhidoselvagemedescontroladoqueRhysemitiueradiferentedetudo
queeutinhaouvido,esegureiseusbraçosquandoelesevirouparaCassian.
CassianolhouparaRhyseriu.
Mas os guerreiros illyrianos no acampamento começaram a levantar voo,
levandomulheresecriançascomeles.
—Viagemdifícil?—Cassianprendeuocabelopretocomumafaixadecouro
desgastada.
Silêncio sobrenatural agora escorria de Rhys, de onde o grunhido tinha
disparado apenas momentos antes. E para não ver Rhys transformar o
acampamentoemruínas,eudisse:
—Quandoeleesmagarseusdentesparadentrodaboca,Cassian,nãovenha
chorandoatémim.
Cassiancruzouosbraços.
—Olaçodaparceriaestádeixandovocêirritadinho,Rhys?
Rhysnãorespondeu.
Cassianriu.
—Feyrenãoparecemuitocansada.Talvezelapossamemontar...
Rhysexplodiu.
Asasemúsculosedentesestalando,eosdoissaíramrolandopelalama,punhos
pelosares,e...
ECassiansabiaexatamenteoqueestavadizendoe fazendo,percebi,quando
chutou Rhys de cima dele, pois Rhys não tocou naquele poder que poderia ter
derrubadoasmontanhas.
EleviraaansiedadenosolhosdeRhysesoubequeprecisavaliberá-laantesde
prosseguirmos.
Rhys também sabia. Por isso ele atravessou para lá primeiro... e não para
Velaris.
Eram uma visão e tanto, dois illyrianos lutando na lama e nas pedras,
ofegantes,cuspindosangue.Nenhumdosoutrosillyrianosousoupousar.
Enãopousariam,percebi,atéqueRhystivesseacalmadootemperamento...ou
deixadooacampamentodevez.Seomachocomumprecisavadeumasemanapara
seajustar...OqueseriaprecisodeRhysand?Ummês?Dois?Umano?
Cassian gargalhou quando Rhys lhe acertou um soco no rosto, e sangue
jorrou. Cassian devolveu o soco, e encolhi o corpo quando a cabeça de Rhys
disparouparaolado.TinhavistoRhyslutarantes,controladoeelegante,eovira
comraiva,masnuncatão...selvagem.
—Eles vão ficar nessa por um tempo—disseMor, encostada aoportal da
casa.Elamantinhaaportaaberta.—Bem-vindaàfamília,Feyre.
Eacheiqueaquelaspoderiamseraspalavrasmaislindasqueeujáouvira.
RhyseCassianpassaramumahorasesocandoatéaexaustão,e,quandovoltaram
arrastandoospésparaacasa,ensanguentados, imundos,bastouapenasumolhar
parameuparceiroparaqueeudesejasseseucheiroesensação.
CassianeMorimediatamenteencontraramoutrolugarparair,eRhysnãose
incomodou em tirar completamente minhas roupas antes de me curvar sobre a
mesadacozinhaemefazergemerseunomealtoobastanteparaqueosillyrianos
queaindacircundavamoscéusnosouvissem.
Mas,quandoterminamos,a tensãonosombrosdeRhyseaquelacontidanos
olhos tinham sumido... E uma batida à porta de Cassian fez com que Rhysme
entregasse um pano úmido para que eume limpasse.Ummomento depois, nós
quatrotínhamosatravessadoparaamúsicaealuzdeVelaris.
Paracasa.
OsolmaltinhasepostoquandoRhyseeucaminhamosdemãosdadasparaasala
de jantar da Casa do Vento e encontramos Mor, Azriel, Amren e Cassian já
sentados.Esperandopornós.
Aomesmotempo,elesselevantaram.
Aomesmotempo,olharamparamim.
Aomesmotempo,fizeramumareverência.
FoiAmrenquemdisse:
—Vamosservireproteger.
Cadaumlevouamãoaocoração.
Esperando...porminharesposta.
Rhysnãohaviameavisado,emepergunteiseaspalavrasdeveriamvirdemeu
coração,ditassemsegundasintençõesouardis.Então,euasdisse.
— Obrigada — agradeci, desejando que minha voz fosse firme. — Mas
prefeririasefossemmeusamigosantesdaservidãoedaproteção.
Morfalou,piscandoumolho:
—Nóssomos.Masvamosservireproteger.
Meurostocorou,esorriparaeles.Minha...família.
—Agoraqueissoestádefinido—disseRhys,atrásdemim—,podemos,por
favor, comer? Estou morto de fome.— Amren abriu a boca com um sorriso
sarcástico,maseleacrescentou:—Nãodigaoqueestavaprestesadizer,Amren.
— Rhys lançou um olhar afiado a Cassian. Os dois ainda estavam cheios de
hematomas, mas se curavam rápido.— A não ser que queira resolver isso no
telhado.
Amrenemitiuumestalocomalínguaemeapontoucomoqueixo.
— Ouvi dizer que você criou presas na floresta e matou umas bestas
hybernianas.Bomparavocê,garota.
—Na verdade, ela salvou a pele dele— revelouMor, enchendo a taça de
vinho.—OpobrezinhodoRhysacabouamarrado.
ErguiminhataçaparaqueMoraenchesse.
—Eleprecisamesmoserexcepcionalmentepaparicado.
Azriel engasgou com o vinho e me encarou: com o olhar acolhedor, para
variar. Até mesmo suave. Senti Rhys ficar tenso ao meu lado, e rapidamente
desvieiorostodomestre-espião.
UmolharparaaculpanosolhosdeRhysmedissequeeleestavaarrependido.
E lutava contra aquilo. Tão estranho, os Grão-Feéricos com as parcerias e os
instintosprimitivos.Tãodestoantedastradiçõesantigasedeseusensinamentos.
Partimos para as terras mortais logo depois do jantar. Mor levou a esfera;
Cassian carregouMor,Azriel voouperto, eRhys...Rhysme carregou firme, os
braços fortes e determinados em volta de mim. Ficamos em silêncio conforme
disparamossobreaáguaescura.
Conformeseguíamosafimdemostraràsrainhasosegredoquetodoshaviam
sofridotanto,portantotempo,paraguardar.
A primavera por fim chegara ao mundo humano; açafrões e narcisos
despontavamdaterradescongelada.
Apenasarainhamaisvelhaeadecabelosdouradosvieramdessavez.
Masforamescoltadaspelomesmonúmerodeguardas.
Maisumavez,useimeuvestidomarfimesvoaçanteeacoroadepenasdeouro,
mais uma vez estava ao lado de Rhysand quando as rainhas e as sentinelas
atravessaramparaasaladeestar.
MasagoraRhyseeudávamosasmãos—semhesitar,umacançãosemfimou
começo.
Arainhamaisvelhanosobservoucomosolhosinteligentes,viunossasmãos,
nossas coroas, e simplesmente se sentou sem que a convidássemos a fazê-lo,
arrumando a saia do vestido esmeralda em volta do corpo. A rainha dourada
permaneceu de pé por mais um momento, e a cabeça reluzente e cacheada se
inclinoulevemente.Oslábiosvermelhossecurvaramparacimaquandoocupouo
assentoaoladodacompanheira.
Rhyssequerabaixouacabeçaparaelasaodizer:
—Agradecemosportomaremotempoparanosverdenovo.
Arainhamais jovemapenasdeuumcurtoacenodecabeça,eoolharâmbar
passouparanossosamigosatrásdenós:CassianeAzrieldecadaladodasjanelas
recuadas,ondeElaineNesthaestavamdepécomasroupasmaisfinas,ojardimde
Elaintodofloridoatrásdeambas.OsombrosdeNesthajáeretos.Elainmordeuo
lábio.
MorestavadooutroladodeRhys,dessavezusandoazul-esverdeadoqueme
lembroudaságuascalmasdoSidra;acaixaônixquecontinhaaVeritasestavanas
mãosbronzeadas.
A rainha idosa, avaliando todos nós com olhos semicerrados, soltou um
suspiro.
—Depoisdetersidotãogravementeinsultadadaúltimavez...—Elalançou
umolharincandescentenadireçãodeNestha.Minhairmãdevolveuumolharque
erapurachamairredutívelparaarainha.Aidosaemitiuumestalocomalíngua.—
Debatemosdurantemuitosdias se deveríamosvoltar.Comopodemver, três de
nósacharamoinsultoimperdoável.
Mentirosa. Culpar Nestha, tentar semear a discórdia entre nós pelo que ela
tentaradefender...Eudisse,comcalmasurpreendente:
—Seaquelefoiopiorinsultoquejáouviramemsuasvidas,diriaentãoque
vãoficarmuitochocadasquandoaguerravier.
Oslábiosdamaisjovemsecontraíramdenovo,olhosâmbarincandescentes...
umaleoaencarnada.Elamedisse,ronronando:
— Então, ele conquistou seu coração no fim das contas, Quebradora da
Maldição.
Encarei a rainha de volta enquanto Rhys e eu nos sentávamos em nossas
poltronas;Morpassouparaaquelaaomeulado.
— Não acho — comecei — mera coincidência que o Caldeirão tenha
permitido que nos encontrássemos às vésperas do retorno de uma guerra entre
nossosdoispovos.
—OCaldeirão?Edoispovos?—Arainhadouradabrincoucomumanelde
rubinodedo.—NossopovonãoevocaumCaldeirão;nossopovonãotemmagia.
Da formacomovejo,há seupovo,eonosso.Você é poucomelhor que aqueles
FilhosdosAbençoados.—Ela ergueuuma sobrancelhabem-cuidada.—O que
acontece comeles quando atravessamamuralha?—A rainha inclinou a cabeça
para Rhys, Cassian e Azriel.—Viram presas?Ou são usados e descartados, e
deixados para envelhecer e morrer enquanto vocês permanecem jovens para
sempre? Uma pena... é tão injusto que você, Quebradora da Maldição, tenha
recebido o que todos aqueles tolos sem dúvida imploraram para obter.
Imortalidade, juventude eterna... O que Lorde Rhysand teria feito se você
envelhecesse,eelenão?
—Háumobjetivoportrásdesuasperguntas,alémdeouvirasimesmafalar?
—perguntouRhys,impassível.
Uma risada baixa, e a rainha se voltou para a idosa, o vestido amarelo
farfalhando com o movimento. A mulher mais velha apenas estendeu a mão
enrugadaparaacaixanosdedosfinosdeMor.
—Essaéaprovaquepedimos?
Nãofaçaisso,meucoraçãocomeçouasuplicar.Nãomostreaelas.
AntesqueMorconseguissesequerassentir,eudisse:
— Meu amor pelo Grão-Senhor não é prova suficiente de nossas boas
intenções?A presença deminhas irmãs aqui não lhes diz nada?Há um anel de
noivadodeferronodedodeminhairmã,e,mesmoassim,elaestádonossolado.
Elainparecialutarcontraavontadedeesconderamãoatrásdasaiadovestido
rosa-claroeazul,maspermaneceualtivaenquantoasrainhasaavaliavam.
— Eu diria que é prova da estupidez dela— disse a rainha dourada, com
escárnio— estar noiva de um homem que odeia feéricos... e arriscar a união
associando-seavocês.
—Não julgue algo sobre o qual não sabenada— sibilouNestha, comum
venenosilencioso.
Arainhadouradacruzouasmãossobreocolo.
— A víbora fala de novo. — Ela ergueu as sobrancelhas para mim. —
Certamenteseriasábioevitarqueelaparticipassedestareunião.
—Elaofereceacasaearriscaaposiçãosocialparaquetenhamosasreuniões
— argumentei. — Tem o direito de ouvir o que é dito. De participar como
representantedopovodestasterras.Asduastêm.
Aidosainterrompeuamaisnovaantesqueelapudesseresponder,e,denovo,
gesticuloucomaquelamãoenrugadaparaMor.
—Mostre,então.Provequeestamoserradas.
Rhys deu um aceno sutil de cabeça para Mor. Não... não, não era certo.
Mostraraelas,revelarotesouroqueeraVelaris,queerameular...
Guerraésacrifício,disseRhysemminhamente,pelapequenafendaqueeuno
momentomantinha aberta para ele.Se não apostarmos Velaris, arriscamos perder
Prythian...emais.
Morabriuatampadacaixapreta.
Aesferadepratadoladodedentroreluziucomoestrelasobumvidro.
—EstaéVeritas—falouMor, comumavozqueera jovemevelha.—O
dom de meu primeiro ancestral para nossa linhagem. Apenas algumas vezes na
históriadePrythiannósausamos,nósliberamossuaverdadesobreomundo.
Morergueuaesferadoninhodeveludo.Nãoeramaiorqueumamaçãmadura
ecabiadentrodaspalmasdasmãosemconchadeMor,comoseocorpointeiro,
todooserdeMortivessesidomoldadoparaaesfera.
—Verdadeémortal.Verdadeéliberdade.Verdadepodequebrareconsertare
unir.AVeritascontémaverdadedomundo.EusouMorrigan—disseMor,com
osolhosnãototalmenteterrenos.Ospelosemmeubraçosearrepiaram.—Vocês
sabemquefaloaverdade.
MorcolocouaVeritasnotapeteentrenós.Asduasrainhasseaproximaram.
MasfoiRhysquemdisse:
—Desejamprova de nossa bondade, de nossas intenções, para que possam
confiaroLivroemnossasmãos?—AVeritascomeçouapulsar,umateiadeluz
irradiandoacadapulso.—Háumlugaremminhasterras.Umacidadedepaz.E
arte. E prosperidade. Como duvido que seus guardas ousem cruzar a muralha,
mostrareiavocês,mostrareiaverdadedessaspalavras,mostrareiesselugardentro
daprópriaesfera.
Morestendeuamão,eumanuvempálidarodopioudaesfera,unindo-seàluz
doobjetoquandopassouflutuandopornossostornozelos.
As rainhas se encolheram, e os guardas se aproximaram com as mãos nas
armas.Masasnuvenscontinuaramfluindoconformeaverdadedaquilo,deVelaris,
escorriadaesfera,deondequerqueseoriginasse,deMor,deRhys.Daverdadedo
mundo.
E,naluzcinzenta,umaimagemsurgiu.
EraVelaris,vistadecima—vistaporRhys,voandoparaacidade.Umgrão
na costa, mas, conforme ele descia, a cidade e o rio se tornaram mais nítidos,
vibrantes.
Então, a imagem deu uma guinada e fez uma curva, como se Rhys tivesse
voadoporVelarisnaquelamanhãmesmo.Eladisparouentrebarcosedocas,além
delareseruaseteatros.AlémdoArco-ÍrisdeVelaris,tãocoloridoelindosobo
novosoldaprimavera.Pessoas,felizesereflexivas,boaseacolhedoras,acenavam
paraele.Momentoapósmomento,imagensdosPalácios,dosrestaurantes,daCasa
doVento.Tudo—todaaquelacidadesecretaeimpressionante.Meular.
E eu podia jurar que havia amor naquela imagem. Não conseguia explicar
comoaVeritascomunicavaaquilo,masascores...Entendiascores,ealuz,oque
elaspassavam,oqueaesfera,dealgumaforma,captavadequalquerque fossea
ligaçãocomasmemóriasdeRhys.
Ailusãosedissipou,ecoreluzenuvensforampuxadasdevoltaparadentro
daesfera.
—EssaéVelaris—disseRhys.—Durantecincomilanos,nósamantemos
emsegredodeforasteiros.Eagoravocêssabem.Éissoqueprotejocomosboatos,
comossussurros,comomedo.PorqueluteiporseupovonaGuerra,apenaspara
darinícioaomeusupostoreinodeterrordepoisquesubiaotronoemecertifiquei
dequetodosouvissemaslendasarespeitodisso.Mas,seocustodeprotegerminha
cidadeemeupovoéodesprezodomundo,então,queseja.
Asduasrainhasolhavamboquiabertasparaotapete,comosepudessemvera
cidade ali. Mor pigarreou. A rainha dourada, como se Mor tivesse latido, se
assustou e soltou um lenço decorado no chão. Ela se abaixou para pegá-lo, as
bochechasumpoucorosadas.
Masaidosaergueuoolharparanós.
—Suaconfiançaé...valorizada.
Esperamos.
Seusrostosficaramseveros,insensíveis.Eagradeciporestarsentadaquandoa
maisvelhaacrescentou,porfim:
—Vamosconsiderar.
—Nãohátempoparaconsiderar—replicouMor.—Cadadiaperdidoémais
umqueHybernseaproximadedestruiramuralha.
—Discutiremos entre nossas companheiras e os informaremos quando nos
aprouver.
—Não entendemos riscos que estão tomando ao fazer isso?—perguntou
Rhys, sem um pingo de condescendência. Apenas... apenas, talvez, choque.—
Precisadessaaliançatantoquantonós.
Arainhaidosafezumgestocomosombrosfrágeis.
—Achouqueficaríamoscomovidascomsuacarta,suasúplica?—Amulher
indicouoguardamaispróximocomoqueixo,eelelevouamãoàarmadurapara
tirar de dentro dela uma carta dobrada.A idosa leu:—Escrevo não comoGrão-
Senhor, mas como um macho apaixonado por uma mulher que um dia foi humana.
Escrevopara implorarqueaja rapidamente.Quesalveseupovo,queajudea salvaro
meu.Escrevoparaqueumdiapossamosencontraraverdadeirapaz.Paraqueeupossa,
umdia,conseguirviveremummundonoqualamulherqueamopossavisitarafamília
semmedodeódioereprimendas.Ummundomelhor.—Arainhasoltouacarta.
Rhysescreveraacartasemanasantes...antesdenossaparceria.Nãoerauma
exigênciaparaqueasrainhasnosencontrassem,masumacartadeamor.Estendia
mãopeloespaçoentrenósepegueiamãodele,apertando-asuavemente.Osdedos
deRhysseapertaramsobreosmeus.
Mas,então,aidosadisse:
—Quemsabeissonãoétudoalgumagrandemanipulação?
—Oquê?—disparouMor.
ArainhadouradaassentiuemconcordânciaeousoudizeraMor:
—MuitascoisasmudaramdesdeaGuerra.Desdesuassupostasamizadescom
nossasancestrais.Talveznãosejamquemdizemser.TalvezoGrão-Senhortenha
entradoemsuasmentesparanosfazercrerquevocêéaMorrigan.
Rhysficouemsilêncio;todosficamos.AtéqueNesthadisse,baixinho:
—Essaéaconversademulheresloucas.Detolasarroganteseestúpidas.
ElaintentoupegaramãodeNesthaparasilenciá-la.MasNesthadeuumpasso
adiante,comorostobrancodeódio.
—DêoLivroaeles.
Asrainhaspiscaram,enrijecendoocorpo.
Minhairmãdisparou:
—DêoLivroaeles.
Earainhamaisvelhasibilou:
—Não.
Apalavraecooudentrodemim.
MasNestha continuoue estendeuobraço,paranos indicar, indicar a sala,o
mundo.
—Hápessoas inocentesaqui.Nestas terras.Senãoqueremarriscarasvidas
contraas forçasquenosameaçam,entãoconcedaaessaspessoasumachancede
lutar.DêoLivroaminhairmã.
Avelhaemitiuumsuspiroagudopelonariz.
—Umaevacuaçãopodeserpossível...
— Você precisaria de dez mil navios— disse Nestha, a voz falhando.—
Precisaria de uma armada. Fiz os cálculos. E, se estiver se preparando para a
guerra,nãoenviaráseusnaviosparanós.Estamosabandonadosaqui.
Aidosasegurouosbraçospolidosdapoltronaquandoseinclinouumpoucoà
frente.
—Então, sugiro pedir que umde seusmachos alados a carregue pelomar,
garota.
Nesthaengoliuemseco.
— Por favor.— Não achei que jamais ouviria aquela palavra da boca de
Nestha.—Porfavor,nãonosabandoneparaenfrentarissosozinhos.
Arainhamaisvelhapermaneceuimóvel.Eunãotinhapalavrasnamente.
Tínhamosmostradoaelas...tínhamos...tínhamosfeitotudo.AtémesmoRhys
estavaemsilêncio,orosto,indecifrável.
Mas, então,Cassian caminhou atéNestha, e os guardas enrijeceramo corpo
quandooillyrianopassouporelescomosefossemtalosdetrigoemumcampo.
Cassian observou Nestha por um longo momento. Ela ainda encarava as
rainhas com raiva, osolhos cheiosde lágrimas— lágrimas de ódio e desespero,
daquele fogo que queimava tão violentamente por dentro. Quando Nestha
finalmentereparouemCassian,ergueuoolharparaele.
AvozdeCassianestavaroucaquandoelefalou:
—Há quinhentos anos, lutei em campos de batalha não muito longe desta
casa. Lutei ao lado de humanos e feéricos, sangrei ao lado deles. Ficarei de pé
naquelecampodebatalhadenovo,NesthaArcheron,paraprotegerestacasa,seu
povo. E não consigo pensar em formamelhor de encerrarminha existência que
defenderaquelesquemaisprecisam.
Observeiuma lágrimaescorrerpelabochechadeNestha.EobserveiCassian
estenderamãoparalimpá-la.
Nesthanãoseencolheuaotoque.
Nãosabiaporque,masolheiparaMor.
Ela estava comos olhos arregalados.Não de ciúmes, ou de irritação,mas...
algotalvezparecidocomassombro.
Nesthaengoliuemsecoe,porfim,deuascostasaCassian.Eleencarouminha
irmãpormaisummomentoantesdeencararasrainhas.
Semaviso,asduasmulheresselevantaram.
Morindagou,tambémdepé:
—Éumaquantiaquequerem?Digamseupreço,então.
Arainhadouradadeuumrisodeescárnioquandoseusguardasascercaram.
— Temos todas as riquezas de que precisamos. Agora voltaremos a nosso
palácioparadeliberarcomnossasirmãs.
—Vocêsjávãodizerquenão—insistiuMor.
Arainhadouradadeuumrisinho.
—Talvez.—Elasegurouamãoenrugadadaidosa.
Arainhaidosaergueuoqueixo.
—Agradecemosogestodesuaconfiança.
Então,elasseforam.
Morxingou.EolheiparaRhys,meucoraçãosepartiu,estavaprestesaindagar
porquenãoinsistira,porquenãodisseramais...
MasosolhosdeRhysestavamnapoltronanaqualarainhadouradaestivera
sentada.
Abaixodela,dealgumaformaescondidapelavolumosasaiaenquantoamulher
estavasentada,haviaumacaixa.
Uma caixa... que ela devia ter removido de onde quer que a estivesse
escondendoquandoseabaixouparapegarolenço.
Rhyssederaconta.Tinhaparadode falarpara tirarasmulheresdaliomais
rápidopossível.
Como e onde ela contrabandeara aquela caixa de chumbo era a menor de
minhaspreocupações.
NãoquandoavozdasegundaeúltimapartedoLivrotomoucontadasalae
cantouparamim.
Vidaemorteeressurreição
Soleluaeescuridão
Putrefaçãoeflorescênciaeossos
Oi, coisinhadoce.Oi,Senhoradanoite, princesadadecomposição.Oi, bestade
presasecorçatrêmula.Meame,metoque,mecante.
Loucura.Enquantoaprimeirametadeerainteligênciacalculista,aquelacaixa...
aquiloeraocaos,eadesordem,edesgovernança,alegriaedesespero.
Rhyssuavementepegouacaixaeacolocounapoltronadarainhadourada.Ele
nãoprecisoudemeupoderparaabri-la...porqueofeitiçodenenhumGrão-Senhor
estavapresoaela.
Rhysabriuatampa.Umbilheteestavasobreometaldouradodolivro.
Lisuacarta.Sobreamulherqueama.Acreditoemvocê.Eacreditoempaz.
Acreditoemummundomelhor.
Sealguémperguntar,vocêroubouistoduranteareunião.
Nãoconfienasoutras.Asextarainhanãoestavadoente.
Sóisso.
RhyspegouoLivrodosSopros.
Luzeescuridãoecinzaeluzeescuridãoecinza...
Eledisseparaminhasduasirmãs,CassianpermanecendopróximoaNestha:
— A escolha é de vocês, senhoras, se desejam ficar aqui, ou vir conosco.
Ouviram falar da situação em curso. Fizeram os cálculos a respeito de uma
evacuação.—Um aceno de aprovação quandoRhys encontrou o olhar azul de
Nestha.—Seescolheremficar,umaunidadedemeussoldadosestaráaquiemuma
horaparaguardarestelugar.Sedesejaremvirmorarconosconaquelacidadeque
acabamosdemostraraelas,sugiroquefaçamasmalasagora.
NesthaolhouparaElain,aindaemsilêncioedeolhosarregalados.Ocháque
ela havia preparado... o chámais fino e exótico que o dinheiro podia comprar,
estavaintocadonamesa.
Elaintocouoaneldeferronodedo.
—Aescolhaésua—disseNestha,comsuavidadeincomum.Porela,Nestha
iriaparaPrythian.
Elainengoliuemseco,umacorçapresaemumaarmadilha.
—Eu...eunãoposso.Eu...
Masmeuparceiroassentiu,carinhosamente.Comcompreensão.
—Assentinelasestarãoaqui,epermanecerãoinvisíveisenãoserãosentidas.
Elasseviram,nãoprecisasepreocuparcomelas.Semudaremdeideia,umadelas
estaráàesperanestasalatododiaaomeio-diaeàmeia-noiteparaquefalem.Meu
laréseular.Asportasestãosempreabertasavocês.
Nestha olhou de Rhys para Cassian e, depois, para mim. Desespero ainda
empalidecia seu rosto,mas... ela fez uma reverência com a cabeça. E disse para
mim:
—Foiporissoquepintouestrelasemsuagaveta.
Imediatamente voltamos para Velaris, sem confiar que as rainhas demorariam
muitoaperceberaausênciadoLivro,principalmente seavagamençãodasexta
rainhapoderiasignificaraexistênciademaisardisentreelas.
Amrenrecebeuasegundametadeemminutosenemmesmosedeuotrabalho
deperguntarsobreareuniãoantesdesumirparaasaladejantardacasadacidadee
fecharasportasatrásdesi.Então,esperamos.
Eesperamos.
Doisdiassepassaram.
Amrenaindanãodesvendaraocódigo.
RhyseMorpartiramno inícioda tardeparavisitaraCortedePesadelos—
paradevolveraVeritasaKeirsemqueelesoubesse,eparasecertificardequeo
administradorestivessedefatopreparandosuasforças.Cassianreceberarelatórios
dequeaslegiõesillyrianasestavamagoraacampadaspelasmontanhas,esperandoa
ordemdevoarparaondequerquenossaprimeirabatalhapudesseser.
Haveriauma,percebi.MesmoqueanulássemosoCaldeirãousandooLivro,
mesmoqueeuconseguisseimpediraqueleCaldeirãoeoreideusá-loparadestruir
amuralhaeomundo,eletinhaexércitosreunidos.Talvezlevássemosabrigaatéo
reidepoisqueoCaldeirãofosseinutilizado.
Não recebemos notícias deminhas irmãs, nenhum relatório dos soldados de
Azrieldequetinhammudadodeideia.Meupai, lembrei,aindafazianegóciosno
continente;comque tipodemercadorias, sóaMãesabia.Outravariávelnaquilo
tudo.
E não houve notícias das rainhas. Era nelas que eu pensava com mais
frequência.Narainhaduas-caras,deolhosdourados,comnãoapenasascoresde
umleão,masocoraçãodeumleãotambém.
Esperavavê-ladenovo.
ComRhyseMorfora,CassianeAzriel foramsehospedarnacasaconforme
continuavamaplanejarnossainevitávelvisitaaHybern.Depoisdaqueleprimeiro
jantar, quandoCassian abrira uma das garrafas de vinhomuito antigas de Rhys
paraquepudéssemoscomemorarminhaparceriaemgrandeestilo,percebiqueeles
vieram me fazer companhia, jantar comigo e... os illyrianos tinham passado a
cuidardemim.
Rhysdisseissonaquelanoiteemqueescreviumacartaaeleeavidesaparecer.
Aparentemente,elenãoseincomodavaemdeixarqueosinimigossoubessemque
estavanaCortedosPesadelos.SeasforçasdeHybernorastreassematé lá...boa
sorteparaelas.
EuhaviaescritoaRhys:ComodigoaCassianeAzrielquenãoprecisoqueelesme
protejam?Companhiatudobem,masnãoprecisodesentinelas.
Rhysescreveudevolta:Nãodigaaeles.Imponhalimitesseelesoscruzarem,mas
é amiga deles... e minha parceira. Eles a protegerão por instinto. Se expulsá-los da
casa,vãosimplesmentesesentarnotelhado.
Escrevi:Vocês,machosillyrianos,sãoinsuportáveis.
Rhys apenas respondeu:Que bom que compensamos isso com as envergaduras
impressionantesdasasas.
MesmocomRhysdooutroladodoterritório,meusanguetinhaesquentado,e
meus dedos dos pés se contraíram.Mal consegui segurar a caneta por tempo o
suficiente para escrever: Sinto falta dessa envergadura impressionante em minha
cama.Dentrodemim.
Rhysrespondeu:Claroquesente.
Sibilei,rabiscando:Porco.
Quase senti a risada de Rhys pelo laço — nosso laço de parceria. Rhys
escreveu:Quandoeuvoltar,visitaremosaquelalojadooutroladodoSidra,evocêvai
experimentartodasaquelascoisinhasderendaparamim.
Caí no sono pensando naquilo, desejando que minha mão fosse a dele,
torcendopara queRhys terminasse naCortedosPesadelos e voltasse logopara
mim.AprimaverairrompiaportodasascolinaseospicosemVelaris.Queriavoar
sobreasfloresamarelaseroxascomele.
Na tarde seguinte,Rhys ainda estava fora,Amren, ainda enterradano livro,
Azrielpatrulhavaacidadeeolitoralpróximo,eCassianeeu—entretantascoisas
— terminávamos de assistir a uma apresentação vespertina de alguma antiga
sinfoniafeéricareverenciada.OanfiteatroficavadooutroladodoSidra,e,embora
Cassian tivesse oferecido me levar voando, eu quis andar. Até mesmo meus
músculosestavamgritandoemprotestodepoisdaliçãocrueldaquelamanhã.
A música era linda — estranha, mas linda, escrita em uma época, dissera
Cassian, em que humanos nem mesmo caminhavam sobre a terra. Ele achou a
músicaintrigante,desafinada,mas...euficarahipnotizada.
Voltandoapéporumadaspontesprincipaissobreorio,fazíamoscompanhia
umaooutroemsilêncio.DeixamosmaissanguecomAmren—queagradeceue
nosmandoudaroforadelá—eagoraseguíamosparaoPaláciodeLinhaseJoias,
onde eu queria comprar presentes para minhas irmãs, por terem nos ajudado.
Cassianprometeramandá-loscomopróximobatedor,enviadoafimderecuperar
orelatóriomaisrecente.ImagineiseeleaproveitariaparamandaralgoaNestha.
Pareino centrodapontedemármore, eCassianparouaomeu ladoquando
olhei para a água azul-esverdeada que corria suavemente. Eu conseguia sentir a
direção da corrente abaixo, sal e água doce se entrelaçando, as algas oscilantes
cobrindooleitocheiodemexilhões,osruídosdepequenascriaturasligeirassobre
rochaelama.SeráqueTarquinconseguiasentiraquelascoisas?Seráquedormia
nopaláciodesuailhanomarenadavapelossonhosdepeixes?
Cassian apoiou os antebraços no amplo parapeito de pedras; os Sifões
vermelhoseramcomopoçasvivasdechamas.
Eudisse, talvezporquefosseumaenxeridaquegostavadememeternavida
dosoutros:
—Significoumuitoparamim...oquevocêprometeuaminhairmãnooutro
dia.
Cassiandeudeombros,farfalhandoasasas.
—Euofariaporqualquerum.
— Também significou muito para ela.—Olhos de avelã se semicerraram
levemente.Masobserveioriocasualmente.—Nesthaédiferentedamaioriadas
pessoas—expliquei.—Elapareceserseveraecruel,masachoqueéumaparede.
Umescudo...comoaquelesqueRhystemnamente.
—Contraoquê?
—Sentimentos.EuachoqueNesthasentetudo...vêdemais;vêesentetudo.E
elaqueimapor causadisso.Manter essaparedeerguida ajuda a evitarque ela se
sintasobrepujada,queseimportedemais.
—ElamalpareceseimportarcommaisalguémalémdeElain.
EncareiCassian,observandoaquelerostobonitoebronzeado.
—ElanuncaserácomoMor—falei.—Nuncaamarálivrementeeentregará
esse amor a todos os que cruzem seu caminho. Mas os poucos com que se
importar...achoqueNesthadestruiriaomundoporeles.Elasedestruiriaporeles.
Elaeeutemosnossos...problemas.MasElain...—Minhabocaseinclinouparao
lado.— Ela jamais vai esquecer, Cassian, que você se ofereceu para defender
Elain.Defenderopovodela.Enquantoviver,vaiselembrardessabondade.
Eleesticouocorpo,batendoosnósdosdedoscontraomármoreliso.
—Porqueestámedizendoisso?
—Eusó...acheiquevocêdeveriasaber.ParaquandoavirdenovoeNesthao
irritar.Oquetenhocertezadequeacontecerá.Massaibaque,bemnofundo,elase
sente grata, e talvez não tenha a habilidade de dizer isso.Mas o sentimento... o
coração...estálá.
Parei, pensando se deveria insistir com Cassian, mas o rio fluindo sob nós
mudou.
Nãofoiumamudançafísica.Mas...umtremornacorrente,no leitorochoso,
nascoisasligeirasquerastejavamabaixo.Comosenanquimtivessecaídonaágua.
Cassianimediatamenteficoualertaenquantoeuverificavaorio,asmargensde
cadalado.
—Quediaboé isso?—murmurouele.CassianbateunoSifãodecadamão
comumdedo.
Fiqueiboquiabertaquandoumaarmadurapretadeescamascomeçouaseabrir
e deslizar por seus pulsos, pelos braços, substituindo a túnica que estava ali.
Camadaapóscamada,cobrindoCassiancomosefosseumasegundapele,fluindo
atéseusombros.OsSifõesadicionaissurgiram,emaisarmaduraseespalhoupor
seupescoço,pelosombros,opeitoeacintura.Pisquei,eaarmaduratinhacoberto
aspernasdeCassiane,depois,ospés.
Océuestavalimpo,asruas,cheiasdeconversaevida.
Cassiancontinuouobservando,comumalentarotaçãoaoredordeVelaris.
O rio abaixo de mim permaneceu constante, mas conseguia senti-lo se
reunindo,comosetentasseselibertarde...
—Domar—sussurrei.OolhardeCassiandisparouparaafrente,paraorio
diantedenós,paraospenhascosaltosao longe,quemarcavamasondasrevoltas
ondeoSidraencontravaooceano.
E ali, no horizonte, um borrão negro. Ágil, espalhando-se conforme se
aproximava.
—Digaquesãopássaros—pedi.Meupoderfluíanasveias,efecheiosdedos
empunhos,desejandoqueopoderseacalmasse,secontrolasse...
—Não há patrulha illyriana que deveria saber sobre este lugar...— disse
Cassian, como se em resposta.O olhar se voltou paramim.—Vamos retornar
agoramesmo.
O borrão negro se separou, fraturando-se em incontáveis figuras. Grandes
demaisparaserempássaros.Muitograndes.Eudisse:
—Vocêprecisasoaroalarme...
Masaspessoasjáofaziam.Algumasapontavam,outrasgritavam.
Cassianme segurou,mas saltei para trás.Gelo dançava nas pontas demeus
dedos,ventourravaemmeusangue.Euosderrubariaumaum...
—ChameAzrieleAmren...
Tinhamchegadoaospenhascosdomar. Inúmerascriaturasaladasde longos
braçosepernas,algumascomsoldadosnosbraços...Umahordainvasora.
—Cassian.
Mas uma lâmina illyriana surgiu na mão de Cassian, idêntica àquela a suas
costas.Umafacadelutaagorareluzianaoutra.Cassianasestendeuparamim.
—Volteparacasa...agoramesmo.
Eucertamentenãoiria.Seestavamvoando,eupoderiausarmeupodercomo
vantagem:congelarsuasasas,queimá-los,destruí-los.Mesmoquehouvessetantos,
mesmoque...
Muito rápido, como se fosse carregada por umvento descontrolado, a força
alcançou os limites externos da cidade. E disparou flechas sobre o povo, que
gritavaecorriaparaseabrigarnasruas.PegueiasarmasestendidasdeCassian,e
oscabosdemetalfriosibilaramsobaspalmasdeminhasmãos,quentescomouma
forja.
Cassianergueuamãonoar.LuzvermelhaexplodiudoSifão,disparandopara
cima e para longe — formando uma parede sólida no céu acima da cidade,
diretamentenocaminhodaquelaforçainvasora.
Ele trincou os dentes, grunhindo quando a legião alada se chocou contra o
escudo.ComoseCassiantivessesentidocadaimpacto.
Oescudovermelho translúcido se estendeuparamais longe, empurrando as
forças...
Nós dois observamos com horror silencioso quando as criaturas avançaram
contraoescudo,debraçosestendidos...
Nãoeramapenasqualquertipodefeérico.Qualquermagiaqueseacumulava
emmimestremeceueseextinguiuquandoosvi.
EramtodoscomooAttor.
Todosdebraçosepernaslongos,pelecinza,comfocinhosviperinosedentes
afiados como lâminas. E, quando a legião daquelas criaturas se chocou contra o
escudodeCassian,comosefosseteiadearanha,vinosbraçoscinzentoseesguios,
manoplasdaquelapedraazuladaqueeuviraemRhys,reluzindoaosol.
Pedraquequebravaerepeliamagia.DiretodocovilmalditodoreideHybern.
Umapósooutro,elespenetraramoescudodeCassian.
Cassian lançou outra parede contra as criaturas. Algumas se afastaram da
hordaeseatiraramcontraosarredoresdacidade,vulneráveisforadoescudo.O
calor que estava se acumulando em minhas palmas se dissipou em um suor
grudento.
Aspessoasgritavam,fugiam.EeusoubequeosescudosdeCassiannãodariam
conta...
— VÁ! — rugiu Cassian. Disparei em movimento, sabendo que ele
provavelmentepermaneceraaliporqueeutinhaficado;sabendoqueeleprecisava
deAzrieleAmrene...
Acima de nós, três das criaturas se chocaram contra o domo do escudo
vermelho.Rasgando-o,destroçando camada após camada comaquelasmanoplas
depedra.
Eraissoquedetinhaoreinosúltimosmeses:eleprecisavareunirseuarsenal.
Armasparacombatermagia,paracombaterGrão-Feéricosquesefiariamnelas...
Umburaco se abriu, eCassianme atirou ao chão,me empurrando contra o
parapeitodemármore,esuasasasseabriramsobremim;suaspernaseramsólidas
comofaixasderochaescavadaàsminhascostas...
Gritosnaponte,gargalhadaschiadas,então...
Umruídoaquosoedealgosendoesmagado.
—Merda!—exclamouCassian.—Merda...
Eledeuumpassoadiante,edispareidebaixodeCassianparaveroqueera,
quemera...
Sanguebrilhounapontedemármorebranco,reluzindocomorubisaosol.
Ali, em um daqueles imponentes e elegantes postes de luz que ladeava a
ponte...
O corpo estava quebrado, as costas arqueadas devido ao impacto, como se
estivessesentindoosespasmosdapaixão.
Os cabelos dourados tinham sido tosados. Os olhos dourados tinham sido
arrancados.
Elaestavaestremecendonolocalemqueforaempaladanoposte,omastrode
metalperfuravaotorsoesguiodiretamente,sangueseagarravaaometalacima.
Alguémnapontevomitoue,depois,continuoucorrendo.
Maseunãoconseguiadeixardeolharparaarainhadourada.OuparaoAttor,
quevooupeloburacoquetinhafeitoeseempoleirounotopodoposteensopado
desangue.
—Cumprimentos—sibilouacriatura—dasrainhasmortais.EdeJurian.—
Então,oAttorlevantouvoo,rápidoeágil,seguindodiretamenteparaodistritode
teatrosdoqualtínhamossaído.
Cassiantinhameprendidodenovocontraochãodaponte...edisparoucontra
oAttor.Depois,parou,lembrandodemim,maseudisse,rouca:
—Vá.
—Corraparacasa.Agora.
Essafoiaordemfinal;eoadeusdeCassianquandoeledisparoupelocéuatrás
doAttor,quejádesapareceraparaasruashistéricas.
Aomeuredor,buracoapósburacoeraabertonaqueleescudovermelho,eas
criaturas aladas entravam aos montes, soltando os soldados hybernianos que
tinhamcarregadopelomar.
Soldadosdetodasasformasetamanho:feéricosinferiores.
Abocaescancaradadarainhadouradaseabriaesefechavacomoumpeixeem
terrafirme.Salve-a,ajude-a...
Meusangue.Eupoderia...
Deiumpasso.Ocorpodamulherficouinerte.
Edeondequerquefossequeaquelepoderemmimseoriginava,sentiamorte
darainhapassaremumsussurro.
Osgritos,asasasbatendo,ofarfalhareoestampidodeflechasirromperamno
silênciosúbito.
Corri.Corri parameu lado do Sidra, para casa.Não confiava emmimpara
atravessar—mal conseguia pensar em meio ao pânico que latejava em minha
mente.Eutinhaminutos,talvez,antesdequechegassemaminharua.Minutospara
chegar lá e levar o máximo de pessoas para dentro comigo. A casa estava
encantada.Ninguémentraria,nemmesmoaquelascoisas.
Feéricospassavamàspresas,corriamembuscadeabrigo,deamigosefamília.
Chegueiaofimdaponte,ascolinasíngremesseerguiam...
Soldados hybernianos já ocupavam o topo daquela colina, os dois Palácios,
rindo dos gritos, das súplicas, conforme invadiam prédios e arrastavam pessoas
parafora.Sangueescorriapelosparalelepípedos,formandocórregos.
Elashaviamfeitoaquilo.Aquelasrainhastinham...entregadoaquelacidadede
arteemúsicaecomidaparaaqueles...monstros.OreideviaterusadooCaldeirão
paraquebrarosencantamentos.
Uma explosão estrondosa estremeceu o outro lado da cidade, e caí com o
impacto; lâminas dispararam, mãos foram cortadas nos paralelepípedos. Eu me
virei na direção do rio,me levantando comdificuldade, avançando paraminhas
armas.
CassianeAzrielestavam,ambos,nocéuagora.Eondeelesvoavam,aquelas
criaturas aladasmorriam. Flechas vermelhas e azuis disparavam deles, e aqueles
escudos...
Escudosgêmeosdevermelhoeazulseuniram,chiando,esechocaramcontra
orestantedasforçasaéreas.Carneeasasforamdestruídas,ossosderreteram...
Atéquemãos encasuladas empedra caíramdo céu.Apenasmãos.Emitindo
estampidos contra os telhados, levantando a águado rio.Era tudooque restara
deles:oquedoisguerreirosillyrianostinhamconseguidofazer.
Mas havia inúmeros mais que já haviam pousado. Muitos. Telhados foram
destruídos,portas,estilhaçadas,gritossubiamedepoissecalavam...
Aquelenãoeraumataqueparasaquearacidade.Eraumextermínio.
Eerguendo-seacimademim,apenasalgunsquarteirõesabaixo,oArco-Írisde
Velarisestavabanhadoemsangue.
OAttoreascriaturascomoeleconvergiramparalá.
Como se as rainhas tivessem dito onde atacar; onde Velaris estaria mais
vulnerável.Ocoraçãopulsantedacidade.
Fogoondulava,fumaçanegramanchavaocéu...
OndeestavaRhys,ondeestavameuparceiro...
Dooutroladodorio,trovãoecooudenovo.
EnãoeramCassianouAzrielquelutavamdooutroladodorio.MasAmren.
Asmãosfinassóprecisavamapontareossoldadoscaíam—caíamcomoseas
próprias asas falhassem. Eles se chocavam contra as ruas, se debatendo,
engasgando,agitandoasgarras,gritando,assimcomoopovodeVelarisgritara.
Virei a cabeça para o Arco-Íris a alguns quarteirões de distância —
desprotegido.Indefeso.
Aruadiantedemimestavalivre,asolitáriapassagem,segurapeloinferno.
Uma fêmeagritoudentrodoquarteirãodosartistas.Eeudescobriporonde
tinhadeir.
Virei a lâmina illyriana na mão e atravessei para o Arco-Íris em chamas e
ensanguentado.
Aqueleerameular.Aqueleerameupovo.
Se eumorressedefendendo-os, defendendo aquelepequeno lugarnomundo
ondeaarteflorescia...
Então,queassimfosse.
Emetorneiescuridão,esombra,evento.
AtravesseiparaolimitedoArco-ÍrisquandoosprimeirossoldadosdeHybern
viravamnaesquinamaisafastada,disparandoparaaavenidadorio,destruindoos
cafés nos quais eu tinha me sentado e gargalhado. Não me viram até que eu
estivessesobreeles.
Atéqueminhaespadaillyrianapartissesuascabeças,umaapósaoutra.
Seiscaíramatrásdemim,e,quandopareiaopédoArco-Íris,encarandoofogo
eosangueeamorte...Muitos.Soldadosdemais.
Jamaisconseguiria,jamaismatariatodos...
Mashaviaumajovemfêmea,depeleverdeeesguia,comumpedaçodecano
velhoe enferrujadoerguidoacimadoombro.Eladefendiao territóriodianteda
fachadadaloja—umagaleria.Aspessoasagachadasdentrodalojachoravam.
Diantedelas,rindodosfeéricos,dopedaçodemetalerguidodafêmea,cinco
soldadosaladosacircundavam.Brincandocomela,provocando.
Mesmoassim,a feéricadefendiao local.Mesmoassim, suaexpressãonão se
alterava. Pinturas e cerâmica estavam destruídas ao redor da mulher. E mais
soldadospousavam,espalhando-se,massacrando...
Dooutro ladodorio, trovãoecoou—AmrenouCassianouAzriel,eunão
sabia.
Orio.
Trêssoldadosmeviramdoaltodacolina.Correramatémim.
Mascorrimaisrápido,devoltaaorioaopédacolina,atéomelódicoSidra.
Atingiolimitedoquarteirão,aáguajáestavamanchadadesangue,ebatiopé,
umapisadaforte.
Comoseemresposta,oSidraseergueu.
Eume curvei àquele poder estrondoso dentro demeus ossos,meu sangue e
meu fôlego. Eu me tornei o Sidra, antigo e profundo. E dobrei o rio à minha
vontade.
Erguiaslâminas.Desejandoqueoriosubissemais,moldando-o,forjando-o.
Aqueles soldados hybernianos pararam imediatamente quando me virei na
direçãodeles.
Elobosdeáguadispararamdetrásdemim.
Ossoldadosseviraram,fugindo.
Masmeus loboserammaisrápidos.Eu eramais rápidaconformecorria com
eles,nocoraçãodamatilha.
LoboapóslobosaiurugindodoSidra,tãocolossaisquantoaquelequeumdia
eumatara,disparandopelasruas,correndoparacima.
Deicincopassosatéamatilhachegaraossoldadosqueprovocavamadonada
loja.
Deisetepassosatéamatilhaosmatar,águadesceupelasgargantas,afogando-
os...
Alcancei os soldados, e minha espada cantou quando cortei as cabeças
arquejantesdoscorpos.
A dona da loja soluçou quando me reconheceu, a barra enferrujada ainda
estavaerguida.Masafeéricaassentiu—apenasumavez.
Corri de novo, me perdendo entre os lobos d’água. Alguns dos soldados
disparavamparaocéu,batendoasasasparacima,recuando.
Então,cresceramasasegarrasemmeuslobos,esetornaramfalcõesegaviões
eáguias.
Eles se chocaram contra os soldados, as armaduras, encharcando-os. Os
soldados no ar, ao perceber que não tinham se afogado, pararam de voar e
gargalharam...debochando.
Erguiamãoparaocéuefecheiosdedosempunho.
Aáguaosencharcou,asasas,aarmadura,osrostos...Evirougelo.
Gelotãofrioqueexistiaantesda luz,antesdeosolaquecera terra.Gelode
uma terra envolta em inverno, gelo de partes demimque não sentiam piedade,
nenhumasimpatiapeloqueaquelascriaturastinhamfeitoeestavamfazendocom
meupovo.
Congelados,dezenasde soldadosaladoscaíramna terradeumasóvez.Ese
quebraramsobreosparalelepípedos.
Meus lobos avançavam aomeu redor, dilacerando e afogando e caçando. E
aqueles que fugiamdeles, aqueles que subiam aos céus— eles congelavam e se
estilhaçavam;congelavameseestilhaçavam.Atéqueasruasestivessemcheiasde
geloesangueepedaçosquebradosdeasaepedra.
Atéqueosgritosdemeupovopararam,eosgritosdossoldadossetornaram
uma canção emmeu sangue. Um dos soldados se ergueu acima dos prédios de
coresalegres...Euoconhecia.
OAttorbatiaasasas,frenético,comsanguedeinocentescobrindo-lheapele
cinza,asmanoplasdepedra.Lanceiumaáguiadeáguacontraele,masoAttorfoi
maisrápido,ligeiro.
Ele fugiu deminha águia, e demeu gavião, e demeu falcão, subindomais,
escalandooarcomasgarras.Paralongedemim,demeupoder—deCassianede
Azriel, que protegiam o rio e a maioria da cidade, longe de Amren, que usava
qualquerquefosseopodersombrioquepossuíapara lançar tantosdelesaochão
semferimentosvisíveis.
NenhumdemeusamigosviuoAttorsubindo,voandoparaaliberdade.
ElevoltariaparaHybern—paraorei.Tinhaescolhido iraté lá.Liderá-los.
Poródio.Eeunãotinhadúvidasdequearainhadourada,aleoa,tinhasofridoem
suasmãos.ComoClaresofrera.
Ondeestávocê?
AvozdeRhyssooudistanteemminhamente,pelafendaemmeuescudo.
ONDEESTÁVOCÊ?
OAttorestavafugindo.Acadabatidademeucoração,elevoavamaisaltoe
maislonge...
ONDE...
Embainhei a espada illyriana e a espadade luta no cinto, eme atrapalhei ao
pegarasflechasquetinhamcaídonarua.Disparadascontrameupovo.Flechasde
freixo,cobertasemumvenenoesverdeadofamiliar.Venenodesangue.
Estouexatamenteondeprecisoestar,disseeuaRhys.
E,então,atravesseiparaocéu.
Atravessei para um telhado próximo, com uma flecha de freixo em cadamão,
verificandoondeestavaoAttor,batendoasasas,noalto...
FEYRE.
Dispareiumescudomentaladamantinocontraaquelavoz;contraele.
Agoranão.Nãonessemomento.
Conseguia sentir Rhys batendo vagamente contra aquele escudo. Rugindo
contraele.Masnemmesmoeleconseguiaentrar.
OAttorerameu.
Ao longe, correndoemminhadireção,nadireçãodeVelaris,umaescuridão
poderosadevorouomundo.Soldadosemseucaminhonãoemergiamdenovo.
Meuparceiro.Morteencarnada.Anoitetriunfante.
VioAttordenovo,desviandoparaomar,nadireçãodeHybern,aindasobrea
cidade.
Atravessei, projetando minha consciência na direção dele como uma rede,
perfurandodeumamenteparaaoutra,usandoofiocomoumacorda,meguiando
pelotempoepeladistânciaepelovento...
Mirei o borrão oleoso da malícia da criatura, localizando meu próprio ser,
minhaconcentração,nocentrodele.Eleeraumfaroldecorrupçãoeimundície.
Quandoemergidoventoedassombras,estavalogoacimadoAttor.
Ele gritou, e suas asas se curvaram quandome choquei contra ele.Quando
mergulheiaquelasflechasenvenenadasemcadaasa,bemnomúsculoprincipal.
OAttorarqueoudedor,ealínguabifurcadapartiuoarentrenós.Acidadeera
umborrãoabaixo,oSidra,ummerocórregoàquelaaltura.
Em um segundo, eu me enrosquei no Attor. Virei uma chama viva que
queimavatudoquetocava,metorneitãoindestrutívelquantoaparedeadamantina
emminhamente.
Gritando, oAttor se debateu contramim,mas as asas, com aquelas flechas,
presasemminhasmãos...
Quedalivre.
Diretoparaomundo.Parasangueedor.Oventonosagredia.
OAttor não conseguia se desvencilhar demeu toque incandescente.Ou de
minhas flechas envenenadas que espetavam suas asas. Aleijando-o. A pele em
chamasdoAttorfaziameunarizarder.
Conformecaíamos,minhamãoencontrouaadaga.
Aescuridãoqueconsumiaohorizonteseaproximouemdisparada—comose
mevisse.
Aindanão.
Aindanão.
InclineiaadagasobreacaixatorácicaossudaealongadadoAttor.
—IssoéporRhys—sibileicontraaorelhapontudadacriatura.
Areverberaçãodoaçosobreossoressoouemminhamão.
Sangueprateadoaqueceumeusdedos.OAttorgritou.
Arranqueiaadaga,esanguejorrouparacima,sujandomeurosto.
—IssoéporClare.
Mergulheialâminadenovo,girando-a.
Já sepodiamverosvultosdosprédios.OSidra corriavermelho,maso céu
estavavazio...livredesoldados.Assimcomoasruas.
OAttorgritavaesibilava,xingavaesuplicava,quandoarranqueialâmina.
Euconseguiadistinguiraspessoas,distinguirsuas formas.Ochãocresciaao
nosso encontro. O Attor estava se contorcendo tão violentamente que fiz o
possívelparamantê-loemminhasmãosquentescomoforjas.Peleincandescentese
soltou,voandoacimadenós.
— E isso— sibilei, me aproximando para dizer as palavras ao ouvido do
Attor,parasuaalmapútrida.Deslizeiaadagaumaterceiravez,medeliciandocom
ossosecarneserasgando.—Issoépormim.
Eu conseguia contar os paralelepípedos. Via a Morte chamando de braços
abertos.
MantiveabocaaoladodaorelhadoAttor,perto,comoumaamante,conforme
nossoreflexoemumapoçadesanguesetornavanítido.
—Vejo você no inferno— sussurrei, e deixei a lâmina na lateral do corpo
dele.
Oventoondulounosanguesobreosparalelepípedosapoucoscentímetrosde
distância.
Eatravesseiparalonge,deixandooAttorparatrás.
Ouvioestaloeochoque,mesmoconformedeslizavapelomundo, impulsionada
pormeupoderepelavelocidadedomergulho.Emergiapoucosmetros—meu
corpolevoumaistempoqueamenteparaseadaptar.
Meuspéseminhaspernascederam,ecambaleeidecostasatéaparededeum
prédiopintadoderosaatrásdemim.Comtantaforçaqueogessocedeuerachou
contraminhacoluna,meusombros.
Ofeguei,trêmula.Enaruaadiante—oqueestavaquebradoeescorrendonos
paralelepípedos... As asas do Attor eram uma destruição retorcida. Além disso,
pedaçosdearmadura,ossospartidosecarnequeimadaeramtudoquerestava.
Aondadeescuridão,opoderdeRhysand,porfimchegouaomeuladodorio.
Ninguémgritoudiantedacascatadenoitesalpicadadeestrelasquecortoutoda
aluz.
Achei que tivesse ouvido leves grunhidos e um arranhar — como se a
escuridãotivessebuscadosoldadosocultos,escondidosnoArco-Íris,mas,então...
Aondasumiu.Luzdosol.
Umesmagardebotasdiantedemim,abatidaeosussurrodeasaspoderosas.
Amãoemmeurosto,erguendomeuqueixoconformeeuencaravaeencarava
aruínadestruídaqueeraoAttor.Olhosvioletaencontraramosmeus.
Rhys.Rhysestavaali.
E...Eeutinha...
Ele se inclinou para a frente, com a testa coberta de suor, a respiração
entrecortada.Rhysdeuumbeijocarinhosoemminhaboca.
Para lembrarnósdois.Queméramos,oqueéramos.Meucoraçãogelado se
descongelou, o fogo em meu estômago foi apaziguado por uma gavinha de
escuridão,eaáguaescorreudeminhasveiasdevoltaaoSidra.
Rhys recuou, acariciando minha bochecha com o polegar. As pessoas
choravam.Lamentavam-se.
Masnãoseouviunenhumgritodeterror.Nenhumderramamentodesangue
oudestruição.
Meuparceiromurmurou:
—FeyreQuebradoradaMaldição,defensoradoArco-Íris.
AbraceiacinturadeRhysechorei.
E,mesmoenquantoacidadedelechorava,oGrão-SenhordaCorteNoturna
me abraçou até que eu por fim conseguisse encarar aquele mundo novo,
encharcadodesangue.
–Velaris está segura — disse Rhys, nas altas horas da noite. — Os
encantamentosqueoCaldeirãotirouforamrefeitos.
Não tínhamos parado a fim de descansar até então. Durante horas,
trabalhamos,assimcomoorestodacidade,paracurar,paraemendar,paracaçar
respostasdequalquerformapossível.E,agora,estávamostodosreunidosdenovo;
orelógiosoava3horasdamanhã.
Eu não sabia comoRhys se aguentava em pé enquanto ele se encostava na
lareiradasaladeestar.JáeuquasecaíanosofáaoladodeMor,nósduascobertas
deterraesangue.Comoorestantedeles.
Jogado em uma poltrona feita para asas illyrianas, Cassian exibia uma
expressãoarrasadaesecuravadevagarobastanteparaqueeusoubessequetinha
drenado o poder durante aqueles longos minutos em que defendera a cidade
sozinho.Masosolhoscordeavelãaindabrilhavamcomaschamasdoódio.
Amren não parecia muito melhor. As roupas cinzentas da minúscula fêmea
estavam praticamente em frangalhos, e a pele por baixo era pálida como neve.
Quase dormindo no sofá diante demim, ela se encostava emAzriel, que ficava
lançandoolharesalarmadosparaela,mesmoqueosprópriosferimentossagrassem
um pouco.No dorso dasmãos cobertas de cicatrizes, seus Sifões azuis estavam
apagados,mudos.Completamentevazios.
Enquanto eu ajudava os sobreviventes no Arco-Íris a cuidar dos feridos, a
contarosmortoseacomeçarosconsertos,Rhysvinhachecardevezemquando,
enquantoreconstruíaosencantamentoscomqualquerpoderquetivesserestadoem
seuarsenal.Duranteumadenossasbrevespausas,RhysmecontouoqueAmren
tinhafeitodoladodeladorio.
Comopodersombrio,eladisparouilusõesparaasmentesdossoldados.Eles
acreditavamque tinhamcaídonoSidra e estavam se afogando; acreditavamque
voavammilharesdequilômetros acima e tinhammergulhado, rápidos e ligeiros,
paraacidade—apenasparaencontrararuaapoucosmetros,eteremoscrânios
esmagados.Sobreosmaiscruéis,osmaisvis,Amrenliberouosprópriospesadelos
—atéquemorressemdeterror,oscoraçõescedendo.
Algunshaviamcaídonorio,bebendooprópriosangue,queseesvaíaenquanto
seafogavam.Algunstinhamdesaparecidodevez.
—Velarispodeestarsegura—respondeuCassian,semsedarotrabalhode
levantaracabeçadeondeelarepousavacontraoencostodapoltrona.—Maspor
quanto tempo?Hybern sabe sobreeste lugar,graçasàquelas rainhas.Paraquem
mais vão vender a informação? Quanto tempo teremos até que outras cortes
venhamxeretar?OuatéqueHybernuseaqueleCaldeirãodenovoparaderrubar
nossasdefesas?
Rhysfechouosolhos,osombrosestavamtensos.Eujáconseguiaveropeso
querecaíasobreaquelacabeçadecabelospretos.
Odiavaacrescentaraofardo,masfalei:
—Se todos formos aHybernparadestruir oCaldeirão... quemdefenderá a
cidade?
Silêncio.Rhysengoliuemseco.
Amrendisse:
—Eufico.—Cassianabriuabocaparaprotestar,masRhysolhoulentamente
paraaimediata.Amrenoencaroudevoltaaoacrescentar:—SeRhysprecisarira
Hybern, então sou a única de vocês que pode guardar a cidade até que ajuda
chegue.Hoje foi uma surpresa.Uma ruim.Quando partirem, estaremosmelhor
preparados.Osnovosencantamentosquefizemosnãocairãotãofacilmente.
Morsoltouumsuspiro.
—Então,oquefazemosagora?
—Dormimos.Comemos—respondeuAmren,simplesmente.
EfoiAzrielquemacrescentou,comavozroucaemconsequênciadacólerada
batalha:
—Edepoisretaliamos.
Rhysnãofoideitar.
E,quandosaídobanho,aáguacheiade sujeirae sangue,elenãoestavaem
lugaralgum.
Masprocurei pelo laço entre nós e subi, arrastandoos pés, as pernas rígidas
reclamandodedor.Eleestavasentadonotelhado,noescuro.Asasas imensasse
abriamatrásdeRhys,caindosobreosazulejos.
Deslizeiparaseucolo,abraçandoseupescoço.
Eleolhavaparaacidadeàvolta.
—Tãopoucasluzes.Tãopoucasluzesrestantesestanoite.
Nãoolhei.ApenastraceiaslinhasdorostodeRhyse,depois,passeiopolegar
porsuaboca.
—Nãoéculpasua—garanti,emvozbaixa.
OsolhosdeRhyssevoltaramparaosmeus,malvisíveisnaescuridão.
—Não é? Entreguei a cidade a elas.Disse que estava disposta a arriscá-la,
mas...nãoseiquemodeiomais:orei,aquelasrainhasouamim.
Eu lhe afastei os cabelos do rosto. Rhys pegou minha mão, impedindo os
movimentosdemeusdedos.
—Você me deixou de fora— sussurrou Rhys.—Você... fez um escudo
contramim.Completamente.Nãoconseguiencontrarumaentrada.
—Desculpe.
Rhyssoltouumarisadaamarga.
—Desculpe?Sinta-seimpressionada.Aqueleescudo...Oquevocêfezcomo
Attor...—Rhyssacudiuacabeça.—Poderiatersidomorta.
—Vaimedarumsermãoporisso?
Rhysfranziuatesta.Depois,enterrouorostoemmeuombro.
—Comopoderiadarumsermãopordefendermeupovo?Querobrigar,sim,
por não ter voltado para casa, mas... escolheu lutar por eles. Por Velaris. —
Rhysandbeijoumeupescoço.—Nãomereçovocê.
Meucoraçãoseapertou.Rhysfoisincero:sesentiarealmentedaquelaforma.
Acariciei seuscabelosdenovo.EdisseaRhys,aspalavraseramoúnicosomna
cidadesilenciosaeescura:
—Merecemosumaooutro.Emerecemosserfelizes.
Rhys estremeceu contra mim. E quando seus lábios encontraram os meus,
deixei que me deitasse nos azulejos do telhado e fizesse amor comigo sob as
estrelas.
Amrendesvendouocódigonatardeseguinte.Anotícianãoeraboa.
— Para anular o poder do Caldeirão — disse ela, como cumprimento,
conformenosreuníamosemvoltadamesadejantarnacasadacidade,depoisde
voltarmos às pressas dos reparos que estávamos todos fazendo, tendo dormido
muito pouco—, é preciso tocar o Caldeirão e dizer estas palavras.— Ela as
escreveraparamimemumpedaçodepapel.
—Temcertezadisso?—perguntouRhys.Eleaindaestavaarrasadodevido
aoataque,portercuradoeajudadoopovoodiainteiro.
Amrensibilou.
—Estoutentandonãomesentirofendida,Rhysand.
Morcutucou-osparaabrircaminho,encarandoosdoispedaçosdoLivrodos
Soprosreunidos.
—Oqueacontecesejuntarmosasduasmetades?
—Nãoasjunte—disseAmren,simplesmente.
Comcadapedaçodisposto,asvozessemisturavamecantavamesibilavam—
malebemeloucura;escuridãoeluzecaos.
—Seuniraspartes—esclareceuAmren,quandoRhyslhelançouumolhar
inquisidor—,aexplosãodepoderpoderásersentidaemtodososcantoseburacos
da terra.Não vai apenas atrair o rei deHybern.Vai atrair inimigosmuitomais
antigosemaisdesprezíveis.Coisasqueestãodormenteshámuitotempo...edevem
permanecerassim.
Eumeencolhiumpouco.Rhyscolocouamãoemminhascostas.
— Então, atacamos agora— disse Cassian. O rosto havia se curado, mas
Cassianmancavadevidoaum ferimentoque eunãoconseguiaverporbaixodo
traje de combate. Ele indicou Rhys com o queixo. — Como você não pode
atravessarsemserrastreado,MoreAzatravessamcomtodosnós,Feyrequebrao
Caldeirão, e nós partiremos. Entraremos e sairemos antes que qualquer um
perceba,eoreideHybernteráumanovapanela.
Engoliemseco.
—Podeestaremqualquerlugardocastelo.
—Sabemosondeestá—replicouCassian.
Pisquei.Azrieldisse,paramim:
—Conseguimosdescobrirqueeleestánosandaresinferiores.—Pormeioda
espionagem,doplanejamentoparaaquelaviagemdurante tantosmeses.—Cada
centímetro do castelo e da terra ao redor é pesadamente vigiado, mas não é
impossível passar. Calculamos o tempo para um pequeno grupo de nós entrar,
rápidaesilenciosamente,esairantesquesaibamoqueestáacontecendo.
—Mas o rei de Hybern poderia notar a presença de Rhys assim que ele
chegar. E se Feyre precisar de tempo para anular o caldeirão, e não soubermos
quantotempo,essaéumavariávelarriscada—argumentouMor.
Cassianrebateu:
—Consideramos isso.Então,vocêeRhysatravessarãoconoscoatéa costa;
voaremos,eelefica.—Precisariammeatravessar,percebi,porqueeuaindanão
tinhaahabilidadeparafazerissoporlongasdistâncias.Pelomenosnãocommuitas
paradasnomeio.—Equantoao encantamento—continuouCassian—,éum
riscoqueprecisaremoscorrer.
Fez-sesilêncioenquantoelesesperavampelarespostadeRhys.Meuparceiro
observoumeurosto,deolhosarregalados.
—Éumplanosólido—insistiuAzriel.—Oreinãoconhecenossoscheiros.
DestruímosoCaldeirãoesumimosantesqueelenote...Seráuminsultomaisgrave
que a rota direta e sangrenta que estávamos considerando, Rhys. Nós os
derrotamos ontem, então entrarmos naquele castelo...—A vingança realmente
dançavanaquelerostonormalmenteplácido.—Deixaremosalguns lembretesde
queganhamosaúltimaemalditaguerraporummotivo.
Cassianassentiusombriamente.AtémesmoMorsorriuumpouco.
—Estámepedindo—disseRhys,porfim,calmodemais—paraficardefora
enquantominhaparceiraentranafortalezadorei?
—Sim—respondeuAzriel,comigualcalma,eCassiansecolocoulevemente
entreosdois.—SeFeyrenãoconseguiranularoCaldeirãofácilourapidamente,
nós o roubaremos, enviaremos os pedaços de volta ao desgraçado quando
terminarmos de destruí-lo. De toda forma, Feyre o chama pelo laço quando
tivermosterminado,evocêeMornosatravessamparafora.Nãopoderãorastreá-
lorápidoobastanteseforapenasnosbuscar.
Rhysand se sentou no sofá aomeu lado, por fim, suspirando.Ele desviou o
olharparamim.
—Sequiserir,entãová,Feyre.
Seeujánãoestivesseapaixonadaporele,poderiatê-loamadoporaquilo,por
nãoinsistirqueeuficasse,mesmoqueaquiloenlouquecesseosinstintosdeRhys,
pornãometrancafiardepoisdoqueaconteceranodiaanterior.
E percebi... percebi o quanto tinha sido maltratada antes se meus padrões
tinham se tornado tão baixos. Se a liberdade que eu tinha recebido parecia um
privilégioenãoumdireitoinerente.
OsolhosdeRhysficaramsombrios,eeusoubequeeleliaoqueeupensavae
sentia.
—Vocêpodeserminhaparceira—começouRhysand.—Masaindaéuma
pessoaindependente.Decideseudestino,fazsuasescolhas.Nãoeu.Vocêescolheu
ontem.Escolhetodososdias.Parasempre.
E talvez ele só entendesse porqueRhysand também estivera impotente, sem
escolhas, fora forçado a fazer coisasmuito terríveis, e trancafiado.Tranceimeus
dedosnosdeleeapertei.Juntos... juntosencontraríamosnossapaz,nossofuturo.
Juntoslutaríamosporeles.
—VamosparaHybern—decidi.
Eu estavanomeiodas escadas, umahoradepois, quandopercebi que aindanão
fazia ideia de para que quarto ir. Tinha usadomeu quarto desde que tínhamos
voltadodochalé,mas...eodele?
ComTamlin, ele ficara com o próprio quarto e dormia nomeu. E supus...
supusqueseriaigual.
EuestavaquasenaportadoquartoquandoRhysandfalou,atrásdemim:
—Podemosusarseuquartosequiser,mas...—Eleseinclinavacontraaporta
abertadopróprioquarto.—Ouoseuouomeu,masvamosdividirumdeagora
emdiante.Apenasmedigaseeudeveriapassarminhasroupasparaoseu.Senão
temproblemaparavocê.
—Nãoquer...nãoquerseupróprioespaço?
— Não — respondeu Rhys, diretamente. — A não ser que você queira.
Precisoquemeprotejadenossosinimigoscomseuslobosd’água.
Ricomdeboche.Ele tinhameobrigadoacontaressapartedahistóriavárias
vezes.IndiqueioquartodeRhyscomoqueixo.
—Suacamaémaior.
Efoiisso.
Entreieencontreiminhasroupasjáali,umsegundoarmárioagoraaoladodo
dele.Encareiaimensacamae,depois,oespaçoabertoaonossoredor.
Rhysfechouaportaefoiatéumapequenacaixanamesa...esilenciosamentea
entregouparamim.
Meu coração acelerou quando abri a tampa. A safira em formato de estrela
reluziuàluzdavela,comosefosseumdosespíritosdaQuedadasEstrelaspresona
pedra.
—Oaneldesuamãe?
—Minhamãemedeuesseanelparamelembrardequeestariasemprecomigo,
mesmoduranteapiorpartedemeutreinamento.Equandoalcanceiamaioridade,
elao tirou.Eraumaherançade sua família, foraentreguedeuma fêmeaaoutra
durantemuitos,muitos anos.Minha irmã ainda não tinha nascido, então, não o
teriaentregueaela,mas...MinhamãeodeuàTecelã.Eentãomedisseque,seeu
devesseme casar ou ter uma parceira, essa fêmea deveria ser esperta ou forte o
bastante para recuperá-lo. E, se a fêmea não fosse qualquer dessas coisas, não
sobreviveriaaocasamento.Prometiaminhamãequequalquercoisaempotencial
ouparceiraseriatestada...Então,oanelficouláduranteséculos.
Meurostocorou.
—Vocêdissequeeraalgodevalor...
—É.Paramimeparaminhafamília.
—Então,minhaviagemàTecelã...
—Vitalparaquedescobríssemossevocêpodiadetectaressesobjetos.Mas...
escolhioobjetoporpuroegoísmo.
—Então,ganheimeuaneldecasamentosemnemserperguntadasequeriame
casarcomvocê?
—Talvez.
Inclineiacabeça.
—Você...vocêquerqueeuouse?
—Apenassevocêquiser.
— Quando formos para Hybern... digamos que as coisas não deem certo.
Alguémvaipodernotarquesomosparceiros?Poderiamusarissocontravocê?
ÓdiolampejounosolhosdeRhys.
— Se nos virem juntos e puderem sentir nosso cheiro ao mesmo tempo,
saberão.
—Eseeuaparecersozinha,usandoumaneldecasamentodaCorteNoturna...
Rhysgrunhiubaixinho.
Eufecheiacaixa,deixandooaneldentro.
—DepoisqueanularmosoCaldeirão,querofazertudo.Declararaparceria,
casar,darumafestaidiotaeconvidartodosemVelaris,tudoisso.
Rhyspegouacaixademinhasmãoseacolocounacômoda,antesdemelevar
paraacama.
—Eseeuquiserdarumpassoalémdisso?
—Estououvindo—ronronei,quandoRhysmedeitounoslençóis.
Eu jamais usara tanto aço. Lâminas foram presas por todo o meu corpo,
escondidasnasbotas,nosmeusbolsosinternos.Eaindatinhaaespadaillyrianaem
minhascostas.
Apenasalgumashorasantes,eusentiraumafelicidadetãosobrepujantedepois
detantohorrore tristeza.Apenasalgumashorasantes,euestiveranosbraçosde
Rhysenquantoelefaziaamorcomigo.
Eagora,Rhysand,meuparceiroeGrão-Senhoreigual,estavaaomeuladono
vestíbulo, com Mor, Azriel e Cassian armados e prontos nas armaduras
semelhantesaescamas,todosnóscalados.
—O rei de Hybern é velho, Rhys, muito velho. Não se demore— dizia
Amren.
Umavozpertodemeupeitosussurrou:Oi,lindaetravessamentirosa.
As duas metades do Livro dos Sopros, cada uma enfiada em um bolso
diferente. Em uma delas, o feitiço que eu deveria dizer havia sido nitidamente
escrito.Nãoouseipronunciá-lo,emboraotivesselidodezenasdevezes.
— Entraremos e sairemos antes que dê por nossa falta— disse Rhys.—
GuardebemVelaris.
Amrenobservouminhasmãosenluvadaseminhasarmas.
— Aquele Caldeirão— disse ela— faz o Livro parecer inofensivo. Se o
feitiço falhar,ousenãoconseguiremmovê-lo,então, fujam.—Assenti. Ela nos
observou de novo. — Voem bem. — Supus que esse fosse o máximo de
preocupaçãoqueAmrenmostraria.
Nós nos viramos paraMor, cujos braços estavam estendidos, esperando por
mim.CassianeRhysatravessariamcomAzriel,meuparceiroseriadeixadoalguns
metros fora da costa, antes que os illyrianos encontrassem Mor e eu segundos
depois.
Eumemovi na direção dela,masRhys se colocou naminha frente, o rosto
tenso.Fiqueinaspontasdospéseobeijei.
—Ficareibem,todosficaremosbem.—OsolhosdeRhysencararamosmeus
duranteobeijo,e,quandomeafastei,oolhardelerecaiusobreCassian.
Cassianfezumareverência.
—Comminhavida,Grão-Senhor.Vouprotegê-lacomminhavida.
RhysolhouparaAzriel.Eleassentiucomumareverênciaefalou:
—Comasvidasdenósdois.
Aquilofoisatisfatórioparameuparceiro,que,porfim,olhouparaMor.
Elaassentiuumavez,masdisse:
—Conheçominhasordens.
Eu me perguntei quais seriam, porque eu não fora informada, mas Mor
segurouminhamão.
AntesqueeuconseguissemedespedirdeAmren,partimos.
Partimos— e mergulhamos no ar livre, na direção de ummar escuro como a
noite...
Umcorpoquentesechocoucontraomeu,mepegandoantesqueeuentrasse
empânicoetalvezmeatravessasseparaoutrolugar.
—Calma—disseCassian,desviandoparaadireita.OlheiparabaixoeviMor
aindamergulhando;depois,elaatravessoudenovo,paraonada.
NenhumsinaloulampejodapresençadeRhyspertoouatrásdenós.Alguns
metrosadiante,Azrieleraumasombraligeiraporcimadaáguanegra.Nadireção
damassadeterradaqualagoranosaproximávamos.
Hybern.
Nenhuma luz acesa ali. Mas parecia... antiga. Como se fosse uma aranha
esperandoemsuateiahaviamuito,muitotempo.
— Já estive aqui duas vezes— murmurou Cassian.— Em ambas, estava
contandoosminutosparairembora.
Eupodiaverporquê.Umaparededepenhascosbrancoscomoossosseerguia,
ostopos,chatosegramados,eabriacaminhoparaumterrenodecolinasíngremes
eestéreis.Eumasensaçãosobrepujantedenada.
Amaranthatinhaassassinadotodososseusescravos,emvezdelibertá-los.Ela
foracomandanteali,umademuitos.Seaquela forçaqueatacouVelaris fossede
vanguarda...Engoliemseco,flexionandoasmãossobasluvas.
—Ali está o castelo, adiante— indicouCassian, com os dentes trincados,
desviando.
Emumacurvanacosta,construídonopenhascoeempoleiradoacimadomar,
umcasteloestreitoeemruínasdepedrabranca.
Nenhummármoreimperial,nenhumapedradecalcárioelegante,mas...creme.
Cor de osso. Talvez uma dúzia de pináculos espetasse o céu noturno. Algumas
luzestremeluziamnasjanelasenasvarandas.Nãohavianinguémdoladodefora,
nenhumapatrulha.
—Ondeestãotodos?
—Trocadaguarda.—Elestinhamplanejadomuitobemaquilo.—Háuma
pequenaportapelomar,nabase.Morestaráanossaesperaali...éaentradamais
próximadosníveismaisinferiores.
—Presumoqueelanãopossanosatravessarparadentro.
—Hámuitosencantamentosafimdearriscarotempoquecustariaparaque
Mor os quebrasse. Rhys pode conseguir. Mas nós o encontraremos à porta, na
saída.
Minhabocaficouumpoucoseca.Sobremeucoração,oLivrodizia:Casa...me
leveparacasa.
E,defato,euconseguiasentir.Acadacentímetroquevoávamos,maisemais
rápido,mergulhandodeformaqueaáguadooceanomeesfriasseatéosossos,eu
conseguiasentir.
Antigo—cruel.Semlealdadeaninguém,apenaselemesmo.
OCaldeirão.Nãoprecisavamsedaro trabalhodedescobrirondeele estava
dentrodocastelo.Eusemdúvidaseriaatraídadiretoatéele.Estremeci.
— Calma — pediu Cassian de novo. Descemos na direção da base dos
penhascosparaveraportaapartirdomardiantedeumaplataforma.Morestavaà
espera,comaespadaempunho,eaportaaberta.
Cassiansoltouumsuspiro,masAzrielaalcançouprimeiro,aterrissandoágile
silenciosamente,e,nomesmomomento,entrounocasteloparaverificarocorredor
adiante.
Mornosesperava—estavacomosolhosemCassianquandopousamos.Eles
nãosefalaram,masoolharfoilongodemaisparaquefossequalquercoisa,menos
casual.Imagineioqueotreinamento,ossentidosaguçados,teriamdetectado.
Apassagemadianteeraescura,silenciosa.Azrielsurgiuumsegundodepois.
—Neutralizeiosguardas.—Haviasangueemsuafaca,umafacadefreixo.
OsolhosfriosdeAzencararamosmeus.—Rápido.
NãopreciseideconcentraçãopararastrearoCaldeirãoatéoesconderijo.Eleme
puxavaacadarespiração,mechamandoparaoabraçosombrio.
Semprequechegávamosaumabifurcação,CassianeAzriel sedividiam,em
geralvoltandocomlâminasensanguentadas,rostossombrios,silenciosamenteme
avisandoparameapressar.
Estavamtrabalhandonaquelassemanas,comquaisquerquefossemasfontesde
Azriel,paracronometraraqueleencontroemumitinerárioexato.Seeuprecisasse
demais tempo que o reservado, se o Caldeirão não pudesse sermovido... tudo
poderia ter sido emvão.Mas não aquelasmortes.Não, com aquelas eu nãome
importavamesmo.
Aquelas pessoas — aquelas pessoas tinham ferido Rhys. Tinham levado
ferramentas consigo para incapacitá-lo. Haviam mandado aquela legião para
destruireassassinarminhacidade.
Desci para um calabouço antigo, as pedras escuras e manchadas. Mor se
manteveaomeulado,sempremonitorando,aúltimalinhadedefesa.
SeCassianeAzrielestivessemferidos,percebi,eladeveriasecertificardeque
eusaísseporquaisquermeiosnecessários.Depois,voltaria.
Masnãohavianinguémnocalabouço;nãoqueeutivessevisto,depoisqueos
illyrianos acabaram com eles. Haviam executado aquilo com maestria.
Encontramosoutraescada,quedavacadavezmaisparabaixo...
Apontei,anáuseaseacumulando.
—Ali.Ficaaliembaixo.
Cassianpegouasescadas,comaespadaillyrianamanchadadesangueescuro.
NemMornemAzrielpareceramrespiraratéqueoassobiobaixodeCassiansoou
pelaspedrasdasescadasabaixo.
Morcolocouamãoemminhascostas,edescemosatéaescuridão.
Casa,suspirouoLivrodosSopros.Casa.
Cassianestavaparadoemumacâmararedondasobocastelo—umaesferade
luzfeéricaflutuavaacimadeseuombro.
E,nocentrodasala,noaltodeumpequenoaltar,estavaoCaldeirão.
OCaldeirão era ausência e presença.Escuridão e... de ondequer queviesse a
escuridão.
Masnãovida.Nãoalegriaouluzouesperança.
Talvezfossedotamanhodeumabanheira,forjadoemferroescuro,comastrês
pernas—aquelastrêspernasqueoreitinhasaqueadoostemplosparaencontrar
—entalhadascomosefossemgalhosdeervas-daninhas,cobertosdeespinhos.
Eujamaisviraalgotãohorrível;eatraente.
OrostodeMorficousemcor.
—Rápido—disseelaparamim.—Temosalgunsminutos.
Azrielverificouasala,asescadaspelasquaisdescemos,oCaldeirão,aspernas
deste.Fizmençãodemeaproximardoaltar,masAzrielestendeuumbraçoemmeu
caminho.
—Ouça.
Então,ouvimos.
Nãoerampalavras.Masumapulsação.
Comosanguepulsandopelasala.ComoseoCaldeirãotivesseumcoração.
Semelhanteatraisemelhante.Eumemoviemsuadireção.Morestavaàsminhas
costas,masnãomeimpediuquandosubiaoaltar.
DentrodoCaldeirãonãohavianadaalémdetintapretarodopiante.
Talvezouniversointeirotivessevindodele.
Azriel eCassian ficaram tensos quando apoiei amãona borda.Dor... dor e
êxtaseepoderefraquezafluírampormim.Tudoqueeraenãoera,fogoegelo,luz
eescuridão,dilúvioeseca.
Omapadacriação.
Contendo-me,eumeprepareiparaleraquelefeitiço.
O papel tremeu quando o tirei do bolso. Quando meus dedos roçaram a
metadedoLivrodentrodele.
Mentirosadelínguadoce,senhorademuitosrostos...
ComumadasmãosnametadedoLivrodosSopros,eaoutra,noCaldeirão,
saí de dentro demim, e um sobressalto percorreumeu sangue, como se eu não
passasseseumpara-raios.
Sim,vocêvêagora,princesadaputrefação—vêoqueprecisafazer...
—Feyre—murmurouMor,emaviso.
Mas minha boca era estrangeira, meus lábios podiam muito bem estar em
VelarisenquantooCaldeirãoeoLivrofluíampormim,emcomunhão.
Aoutra,sibilouoLivro.Tragaaoutra...permitaquenosunamos,permitaquenos
libertemos.
Tirei o Livro do bolso, enfiando-o sob o braço quando peguei a segunda
metade.Boamenina,lindamenina—tãodoce,tãogenerosa.
Juntasjuntasjuntas.
—Feyre.—AvozdeMorcortouacançãodasduasmetades.
Amrenestavaerrada.Comaspartesseparadasopoderestavapartido;nãoera
obastanteparadestruiroabismodopoderdoCaldeirão.Masjuntas...Sim,juntas
fariamofeitiçofuncionarquandoeuopronunciasse.
Comeleinteiro,eunãometornariaumcondutorentreaspartes,masmestre
delas.NãoerapossívelmoveroCaldeirão;precisavaseragora.
Percebendooqueeuestavaprestesafazer,Mordisparouatémim,xingando.
Lentademais.
ColoqueiasegundametadedoLivrosobreaoutra.
Umaondulaçãosilenciosadepodermeensurdeceu,fraquejoumeusossos.
Depois,nada.
Delonge,Morfalou:
—Nãopodemosarriscar...
—Dêumminutoaela—interrompeuCassian.
EueraoLivroeoCaldeirãoesomesilêncio.
Eu era um rio vivo pelo qual um fluía para o outro, subindo e descendo,
diversasvezes,umamarésemfimoucomeço.
Ofeitiço,aspalavras.
Olhei para o papel namão,masmeus olhos não viram,meus lábios não se
moveram.
Eunãoeraumaferramenta,nãoeraumpeão.Nãoseriaumcondutor,nãoseria
lacaiadaquelascoisas...
Memorizaraofeitiço.Euodiria,sussurraria,pensaria.
Dopoçodeminhamemória,aprimeirapalavraseformou.Avanceinadireção
dela,estendendoamãoparaaquelaúnicapalavra,aúnicapalavraqueseriaumfio
devoltaamimmesma,paradentrodequemeuera...
Mãosfortesmepuxaramdevolta,meafastando.
Luzescuraepedramusgosafluíramparadentrodemim,asalagirouquando
arquejei e encontrei Azriel me sacudindo, os olhos tão arregalados que eu
conseguiaverapartebrancaemvoltadeles.Oqueacontecera,oque...
Passossoavamacima.Azrielimediatamentemeempurrouparatrás,ealâmina
ensanguentadaseergueu.
O movimento desanuviou minha mente por tempo o bastante para que eu
sentissealgoúmidoequenteescorrendopormeulábioepeloqueixo.Sangue—
meunarizestavasangrando.
Mas aqueles passos ficaram mais altos, e meus amigos tinham as armas em
punho quando um homem bonito, de cabelos castanhos, entrou, arrogante,
descendoosdegraus.Humanos...asorelhaseramredondas.Masosolhos...
Eu conhecia a cor daqueles olhos. Encarei um deles, envolto em cristal,
durantetrêsmeses.
—Tolaidiota—falouohomemparamim.
—Jurian—sussurrei.
MediadistânciaentremeusamigoseJurian,compareiminhaespadaàsespadas
gêmeascruzadasàscostasdele.Cassiandeuumpassonadireçãodoguerreiroque
desciaegrunhiu:
—Você.
Jurianriucomescárnio.
—Trabalhouatéconseguirsubirdepatente,foi?Parabéns.
Sentiquandoeledeslizouaténós.Comoumaondulaçãodenoiteeira,Rhys
surgiu ao meu lado. O Livro sumiu imediatamente, o movimento foi tão sutil,
quandoRhysotiroudemimeoenfiounoprópriocasaco,quemalregistreique
acontecera.
Masassimqueometaldeixouminhasmãos...PelaMãe,oqueacontecera?Eu
tinhafracassado,tãocompletamente,ficaratãopateticamentesobrepujadaporele...
—Você parece bem, Jurian— comentou Rhys, caminhando até o lado de
Cassian, casualmente se colocando entremim e o antigo guerreiro.—Para um
cadáver.
—Daúltimavezqueovi—disseJurian,comdesprezo—,estavaaquecendo
oslençóisdeAmarantha.
—Então,vocêselembra—ponderouRhysand,mesmoenquantomeuódio
disparava.—Interessante.
OsolhosdeJuriansevoltaramparaMor.
—OndeestáMiryam?
—Estámorta—respondeuMor,simplesmente.Amentiraqueeracontadahá
quinhentos anos.— Ela e Drakon se afogaram no mar Erythrian.—O rosto
impassíveldaprincesadospesadelos.
—Mentirosa—cantarolouJurian.—Semprefoiumamentirosa,Morrigan.
Azrielgrunhiu,osomeradiferentedetudoqueeujáouviradeleantes.
Jurianoignorou,opeitocomeçavaaseinquietar.
—ParaondelevouMiryam?
— Para longe de você — sussurrou Mor. — Eu a levei para o príncipe
Drakon.Elessetornaramparceirosesecasaramnanoiteemquevocêassassinou
Clythia.Eelanuncamaispensouemvocê.
Iracontraiuorostobronzeadodele.Jurian—heróidaslegiõeshumanas...que
pelo caminho tinha se transformado em ummonstro tão terrível quanto aquele
contraosquaislutara.
Rhys estendeu o braço para trás, para pegarminhamão. Tínhamos visto o
bastante.Segureiabordadocaldeirãodenovo,desejandoqueeleobedecesse,que
viesseconosco.Emeprepareiparaoventoeparaaescuridão.
Masnãosurgiram.
MorsegurouasmãosdeCassianedeAzriel...epermaneceuimóvel.
Juriansorriu.
Rhysandfalou,apertandominhamãonadele:
—Novotruque?
Juriandeudeombros.
—Fuienviadoparadistrairvocê,enquantoelefaziaofeitiço.—Osorrisode
Juriansetornoulupino.—Nãodeixaráestecasteloanãoserqueelepermita.Ou
empedaços.
Meu sangue gelou. Cassian e Azriel se agacharam em posição de luta, mas
Rhys inclinoua cabeça.Senti seupoder sombrio se elevarmais emais, como se
fossedestruirJurianbemali.
Masnadaaconteceu.Nemmesmoumroçardeventosalpicadodenoite.
— E tem isso — avisou Jurian. — Não se lembrou? Talvez tenha se
esquecido.Foibomeuestarlá,despertoacadamomento,Rhysand.Elaroubouo
livrodefeitiçosdeleparatomarseuspoderes.
Dentrodemim,comoumachaveclicandoemumafechadura,aquelenúcleo
derretidodepoderapenas...parou.Qualquerquefosseofioatéele,entreminha
menteeminhaalma,tinhasidopartido;não,esmagadocomtantaforçaporaquela
mãoinvisívelquenadaconseguiafluir.
ProcureiamentedeRhys,olaço...
Eme choquei contra uma parede dura.Não adamantina,mas de uma pedra
estranha,insensível.
—Ele se certificou— continuou Jurian, quandome choquei contra aquela
parede interna, tentandoconjurarmeusdons, inutilmente—dequeaquele livro
em especial fosse devolvido. Ela não sabia como usar metade dos feitiços mais
cruéis. Sabe como é não poder dormir, beber ou comer ou respirar ou sentir
durante quinhentos anos? Entende como é estar constantemente acordado, ser
forçadoaobservartudoqueelafazia?
Aquiloodeixaralouco—torturaraaalmadeJurianatéqueficasselouco.Era
issoobrilhoaguçadoemseusolhos.
—Nãodevetersidotãoruim—argumentouRhys,emboraeusoubesseque
eleestavaliberandocadagotadevontadenaquelefeitiçoquenoscontinha,quenos
amarrava—sevocêestáagoratrabalhandoparaomestredela.
Umlampejodedentesbrancosdemais.
—Seusofrimentoserálongoecompleto.
—Parecedelicioso—assegurouRhys, agoranosvirandopara sairda sala.
Umgritosilenciosoparacorrer.
Masalguémsurgiunoaltodasescadas.
Euoconhecia...emmeusossos.Oscabelospretosnaalturadosombros,apele
áspera,asroupasquependiammaisparaoladopráticoqueoelegante.Eleerade
umaalturasurpreendentementemediana,masmusculosocomoumjovem.
Masorosto—oqualparecia,talvez,odeumhomemhumanonafaixados40
anos...imperturbavelmentebonito.Paraesconderosinfinitosolhospretosecheios
deódioquequeimavamali.
—Aarmadilhafoitãofácilqueestousinceramenteumpoucodesapontadopor
vocêsnãoaterempercebido—disseoreideHybern.
Maisrápidoquequalquerumdenóspoderiaver,Juriandisparouumdardode
freixoescondidonopeitodeAzriel.
Morgritou.
Nãotivemosescolhaanãoserseguirorei.
Odardode freixo estava cobertodevenenode sanguequeo reideHybern
alegava fluir onde ele quisesse. Se resistíssemos, se não fôssemos com ele até o
andardecima,ovenenodisparariaparaocoraçãodeAzriel.Ecomnossamagia
travada,semahabilidadedeatravessar...
SeeudealgumaformaconseguissechegaraAzriel,daraeleumpunhadode
meusangue...Maslevariatempodemais,requereriamovimentosdemais.
Cassian eRhysand carregavamAzriel entre eles, o sangue domestre-espião
escorriapelochãoatrásdenósconformesubíamosasescadasespiraladasdocastelo
dorei.
Tentei não ficar no caminho conformeMor e eu os seguíamos, com Jurian
atrás de nós. Mor tremia — tentava muito não tremer, mas tremia conforme
encaravaapontadaquelaseta,visívelnoespaçoentreasasasdeAzriel.
Nenhum de nós ousou acertar o rei de Hybern conforme ele caminhava
adiante, liderando o caminho. O rei levara consigo o Caldeirão, fazendo-o
desaparecercomumestalardededoseumolharsarcásticoparamim.
Sabíamosqueoreinãoestavablefando.Seriaprecisoummovimentodaparte
delesparaqueAzrielmorresse.
Osguardasestavamàvistaagora.Eoscortesãos.Grão-Feéricosecriaturas—
não sabia em que categoria se encaixavam— que sorriam como se fôssemos a
próximarefeição.
Osolhosdascriaturasestavammortos.Vazios.
Nãohavianenhumamobília,nenhumaobradearte.Comoseocastelofosseo
esqueletodealgumacriaturapoderosa.
Osalãodotronoestavacomasportasabertas,eparei.Umsalãodotrono...o
salão do trono que aperfeiçoara a inclinação de Amarantha para demonstrações
públicas de crueldade. Luzes feéricas serpenteavam pelas paredes brancas como
ossos,easjanelasdavamparaomarquequebravabemabaixo.
Oreisubiuemumaltarescavadodeumúnicoblocodeesmeraldaescura—o
trono foramontado de ossos de... Senti o sangue se esvair demeu rosto.Ossos
humanos.Amarronzadoselisospelaidade.
Paramosdiantedotrono,comJurianobservandonossascostas.Asportasdo
salãodotronosefecharam.
Oreidisse,paraninguémemparticular:
—Agoraquecumpricomaminhapartedoacordo,esperoquecumpramcom
adevocês.—Dassombraspertodeumaportalateral,duasfigurasemergiram.
Comecei a sacudir a cabeça como se pudesse não ver o que estava vendo
conformeLucieneTamlincaminharamatéaluz.
Rhysandficouimóvelcomoamorte.Cassiangrunhiu.Entreeles,Azrieltentou,
masfracassou,ergueracabeça.
Mas eu encarava Tamlin — aquele rosto que eu amara e odiara tão
profundamente—quandoparouabons20metrosdenós.
Tamlinusavaoboldrié...comfacasdecaçaillyrianas,percebi.
Oscabelosdouradosestavammaiscurtos,eorosto,maismagrodesdeaúltima
vez que eu o vira. E os olhos verdes... Arregalados conforme me olhavam da
cabeça aos pés. Arregalados quando ele viu meu traje de combate, a espada
illyrianaeasfacas,omodocomoeuestavadepéentremeugrupodeamigos—
minhafamília.
EleestavatrabalhandocomoreideHybern.
—Não—sussurrei.
MasTamlinousoudarmaisumpassoparaperto,meencarandocomo se eu
fosseumfantasma.Lucien,comoolhodemetalagitado,oimpediucomamãono
ombro.
—Não—repeti,dessavezmaisalto.
—Qualfoiocusto—disseRhysand,baixinho,aomeulado.Euarranhavae
rasgavaaparedequeseparavanossasmentes;ofegavaeempurravaaquelepunho
quecontinhaminhamagia.
TamlinignorouRhys,olhando,porfim,paraorei.
—Temminhapalavra.
Oreisorriu.
DeiumpassonadireçãodeTamlin.
—Oquevocêfez?
OreideHyberndisse,dotrono:
—Fizemosumacordo.Euentregovocê,eeleconcordaemdeixarqueminhas
forças entrem em Prythian pelo próprio território. Então, eu o uso como base
enquantoremovemosaquelamuralharidícula.
Sacudiacabeça.Lucienserecusouaencararoolhardesúplicaquemandeiem
suadireção.
—Vocêélouco—sibilouCassian.
Tamlinestendeuamão.
—Feyre.—Umaordem,comseeunãopassassedeumcãoconvocado.
Nãofizqualquermovimento.Precisavamelibertar;precisava libertaraquela
porcariadepoder...
—Você—disseorei,apontandoumdedogrossoparamim—éumafêmea
muitodifícildecapturar.Éclaro,tambémconcordamosquevaitrabalharparamim
depois que for devolvida para casa, para seumarido,mas... É futuromarido ou
marido?Nãomelembro.
Lucienolhavaparatodosnós,empalidecendo.
—Tamlin—murmurouele.
MasTamlinnãoabaixouamãoesticadaemminhadireção.
—Voulevá-laparacasa.
Recuei um passo... na direção de onde Rhysand ainda segurava Azriel com
Cassian.
—Etemaquelaoutrapartetambém.Aoutracoisaqueeuqueria—continuou
o rei.— Bem, Jurian queria. Dois coelhos com uma cajadada, na verdade. O
Grão-SenhordaCorteNoturnamorto,edescobrirquemeramseusamigos.Levou
Jurian à loucura, sinceramente, você não ter revelado isso durante aqueles
cinquenta anos.Então, agoravocê sabe, Jurian.Eagorapode fazeroquequiser
comeles.
Ao meu redor, meus amigos estavam tensos, rígidos. Até mesmo Azriel
sutilmente levava a mão ensanguentada e coberta de cicatrizes às armas. Seu
sangueseempoçavanabeiradademinhasbotas.
Eudisse,comfirmeza,nitidamente,aTamlin:
—Nãovoualugarnenhumcomvocê.
— Vai dizer outra coisa, minha querida — replicou o rei — quando eu
completarapartefinaldemeuacordo.
Horrorseacumulouemmeuestômago.
Oreiapontoumeubraçoesquerdocomoqueixo.
—Quebraresselaçoentrevocêsdois.
—Porfavor—sussurrei.
—DequeoutraformaTamlinpoderátersuanoiva?Nãopodeterumaesposa
quefogeparaoutromachoumavezpormês.
Rhyspermaneceuemsilêncio,emboratenhaagarradoAzrielcommaisforça.
Observando,considerando,entendendoaquela trava sobre seupoder.A ideiade
aquelesilêncioentrenossasalmasserpermanente...
Minha voz falhou quando eu disse a Tamlin, ainda do lado oposto do
semicírculoirregularqueformávamosdiantedoaltar.
—Não.Não deixe que ele faça isso. Eu disse a você... eu disse a você que
estavabem.Queeuparti...
— Você não estava bem— grunhiu Tamlin.— Ele usou aquele laço para
manipulá-la. Por que acha que eu passava tanto tempo fora?Estava procurando
umaformadelibertarvocê.Evocêpartiu.
—Eupartiporqueestavamorrendonaquelacasa!
OreideHybernemitiuumestalocomalíngua.
—Nãoéoqueesperava,é?
Tamlingrunhiuparaele,mas,denovo,estendeuamãoemminhadireção.
—Venhaparacasacomigo.Agora.
—Não.
—Feyre.—Umcomandoirredutível.
Rhysmalrespirava;malsemovia.
E percebi... percebi que era para evitar que seu cheiro se tornasse aparente.
Nossocheiro.Nossolaçodaparceria.
AespadadeJurianjáestavaempunho...eeleolhavaparaMorcomosefosse
matá-la primeiro. O rosto drenado de sangue de Azriel se contorceu com ódio
quando ele reparou naquele olhar. Cassian, ainda segurando o amigo em pé,
observavatodos,avaliando,sepreparandoparalutar,paradefender.
Parei de esmurrar o punho sobremeu poder. Eu o acariciei suavemente—
comamor.
Soufeéricaenãofeérica,tudoenada,eudisseaofeitiçoquemesegurava.Você
nãome detém. Sou como você: real e não, poucomais que fiapos de poder reunidos.
Vocênãomedetém.
—Vou com você— declarei, baixinho, para Tamlin, para Lucien, que se
mexia,desconfortável.—Sedeixá-losempaz.Liberte-os.
Vocênãomedetém.
OrostodeTamlinsecontraiucomira.
—Elessãomonstros.Elessão...—Tamlinnãoterminouconformecaminhou
pelo salão para me agarrar. Para me levar para fora dali, e então, sem dúvida,
atravessarparalonge.
Vocênãomedetém.
Opunhoqueseguravameupoderrelaxou.Sumiu.
Tamlin disparou até mim pelos poucos metros restantes. Tão rápido... tão
rápido...
Eumetorneinévoaesombra.
Atravessei para longe de seu alcance. O rei soltou uma gargalhada grave
quandoTamlintropeçou.
EsaiucambaleandoparatrásquandoopunhodeRhyslheacertouorosto.
Ofegante,recueiatéosbraçosdeRhysandquandoumdelesenvolveuminha
cintura,quandoo sanguedeAzriel sobreRhysensopouminhas costas.Atrásde
nós,MorsaltouparapreencheroespaçoqueRhystinhadesocupado,passandoo
braçodeAzrielporcimadosombros.
Mas aquela parede de pedra terrível permanecia em minha mente e ainda
bloqueavaopoderdopróprioRhys.
Tamlinficoudepé,limpandoosanguequeagoraescorriadonariz,conforme
recuavaparaondeLucienmantinhaaposiçãocomamãonaespada.
Mas no momento em que Tamlin se aproximou do seu Emissário, ele
cambaleouumpasso.OrostodeTamlinficoubrancodeódio.
EeusoubequeTamlintinhaentendidoummomentoantesdeoreigargalhar.
—Nãoacredito.Suanoivaodeixouapenasparaencontraroparceiro.AMãe
temumsensodehumordeturpado,aoqueparece.Equetalento...diga,menina:
comoselivroudessefeitiço?
Euoignorei.MasoódionosolhosdeTamlinfizerammeusjoelhosfalharem.
—Desculpe—pedi,efuisincera.
OsolhosdeTamlinestavamsobreRhysand,orostoeraquaseselvagem.
—Você—grunhiuTamlin,osomeramaisanimalescoquefeérico.—Oque
fezcomela?
Atrás de nós, as portas se abriram e soldados entraram.Alguns se pareciam
com o Attor. Alguns eram piores. Mais e mais, ocupando o salão, as saídas,
armadurasearmastilintando.
MoreCassian,comAzrielinerte,umpesomortoentreeles,observaramcada
soldado e arma, considerando nossasmelhores chances de escapar. Eu os deixei
fazerissoenquantoRhyseeuencarávamosTamlin.
—Nãovoucomvocê—dispareiparaTamlin.—Emesmoquefosse...Seu
toloburro e covardepornosvender a ele! Sabe o que ele quer fazer com aquele
Caldeirão?
—Ah,voufazermuitas,muitascoisascomele—disseorei.
EoCaldeirãosurgiudenovoentrenós.
—Começandoagora.
Mate-omate-omate-o.
NãosabiadizerseavozeraminhaoudoCaldeirão.Nãomeimportava.Eume
libertei.
Garras e asas e sombras estavam imediatamente aomeu redor, cercadas por
águaefogo...
Então,sumiram,contidasquandoaquelamãoinvisívelagarroumeupoderde
novo,comtantaforçaquearquejei.
—Ah—disseoreiparamim,emitindoumestalocomalíngua—,isso.Olhe
paravocê.Umacriançadetodasassetecortes,igualediferentedetodas.Comoo
Caldeirão ronrona em sua presença. Planejava usá-lo? Destruí-lo? Com aquele
livro,podiafazeroquequisesse.
Eunãodissenada.Oreideudeombros.
—Vaimecontarembreve.
—Nãofizacordoalgumcomvocê.
—Não,masseumestrefez,então,vaiobedecer.
Ódioliquefeitoescorreupormim.SibileiparaTamlin:
—Seme levardaqui, semeafastardemeuparceiro,voudestruirvocê.Vou
destruirsuacorteetudoqueestima.
OslábiosdeTamlinsecontraíram.Maseledisse,simplesmente:
—Nãosabedoqueestáfalando.
Lucienencolheuocorpo.
O rei gesticulou com o queixo para os guardas na porta ao lado, pela qual
TamlineLucientinhamentrado.
— Não, ela não sabe. — As portas se abriram de novo. — Não haverá
destruição—continuouorei,conformepessoas,conformemulherespassarampor
aquelasportas.
Quatromulheres.Quatrohumanas.Asquatrorainhasrestantes.
—Porque—disseorei,quandoosguardasdasrainhasseenfileiraramatrás
delas, arrastando algono centroda formação—vai descobrir,FeyreArcheron,
queédeseuinteressesecomportar.
Asquatrorainhasnosolharamcomdesprezoeódionosolhos.Ódio.
Eseafastaramparadeixarqueseusguardaspessoaispassassem.
Medocomoeujamaishaviasentidoentrouemmeucoraçãoquandooshomens
arrastaramminhasirmãs,amordaçadaseamarradas,diantedoreideHybern.
Aquele era algum novo tipo de inferno. Algum novo nível de pesadelo. Até
chegueiatentarmeacordar.
Masaliestavamelas:decamisola,asedaearendasujas,rasgadas.
Elain chorava baixinho, com uma mordaça ensopada em lágrimas. Nestha
tinhaoscabelosembaraçadoscomosetivesselutadocomoumfelinoselvagem,e
ofegavaconformenosobservava.ObservavaoCaldeirão.
—Vocêcometeuumgrandeerro—disseoreiaRhysand,enquantoosbraços
demeuparceiroestavamentrelaçadoscomosmeus—nodiaemquefoiatrásdo
Livro. Eu não precisava dele. Estava contente por deixar que permanecesse
escondido.Masassimquesuasforçascomeçaramaxeretar...Decidi:quemmelhor
paraserminhaconexãocomoreinohumanoquemeuamigorecém-ressuscitado,
Jurian? Ele tinha acabado de passar por todos aquelesmeses se recuperando do
processo,equeriaveroqueaconteceracomoantigolar;então,ficoumaisquefeliz
emvisitarocontinenteporumalongatemporada.
De fato, as rainhas sorrirampara ele; fizeramuma reverência.Os braços de
Rhysseretesaramemumavisosilencioso.
—OvalenteeespertoJurian,quesofreutantonofimdaGuerra,agoraémeu
aliado.Estáaquiparameajudaraconvenceressasrainhasaajudaremcomminha
causa.Porumpreço,éclaro,queéirrelevanteaqui.Eémaisinteligentetrabalhar
comigo,commeushomens,quepermitirquevocês,monstrosdaCorteNoturna
governem e ataquem. Jurian estava certo em avisar a SuasMajestades que você
tentaria pegar o Livro, que alimentaria as rainhas com mentiras sobre amor e
bondade,quandoeleviradoqueoGrão-SenhordaCorteNoturnaeracapaz.O
heróidasforçashumanas,renascido,comoumgestoaomundohumanodeminha
boa-fé.Nãopretendoinvadirocontinente,mastrabalharcomeles.Meuspoderes
protegeramacortedelasdeolhoscuriosos,apenasparamostrarosbenefíciosaelas.
—Um risinho paraAzriel, quemal conseguia erguer a cabeça para grunhir de
volta.— Tentativas tão impressionantes de se infiltrar no lugar sagrado delas,
encantadordesombras,eumaprovairrefutávelparaSuasMajestades,éclaro,de
quesuacortenãoétãobenevolentequantoparece.
—Mentiroso— sibilei, eme virei para as rainhas, ousando dar apenas um
passo para longe de Rhys.— Eles sãomentirosos, e, se não libertarem minhas
irmãs,voumassacrar...
—Estãoouvindoasameaças,a linguagemqueusamnaCorteNoturna?—
disse o rei para as rainhas mortais, os guardas agora nos cercando em um
semicírculo. — Massacrar, ultimatos... Eles querem acabar com a vida. Eu eu
desejodarvida.
Arainhamaisvelhadisseao rei, recusando-sea reconhecerminhapresença,
minhaspalavras:
—Então,mostre,proveessedomquemencionou.
Rhysandmepuxoudevoltacontrasi.Eledisse,emvozbaixa,paraarainha:
—Vocêéumatola.
Oreiinterrompeu.
—Émesmo?Porquesesubmeteràvelhiceeadoençasquandooqueofereço
é muito melhor? Ele gesticulou com a mão em minha direção. — Juventude
eterna.Vocênegaosbenefícios?Umarainhamortalsetornaumarainhaquepode
reinar para sempre.É claro quehá riscos, a transição pode ser... difícil.Mas um
indivíduocomforçadevontadepoderiasobreviver.
A rainha mais jovem, a de cabelos pretos, deu um leve sorriso. Juventude
arrogante...evelhiceamarga.Apenasasduasoutras,aquelasquevestiambrancoe
preto,pareceramhesitar,aproximando-seumadaoutra,edeseusguardasaltos.
Arainhaidosaergueuoqueixo:
— Mostre. Demonstre que pode ser feito, que é seguro. — Ela falou de
juventudeeternanaqueledia,medesprezouporcausadisso.Vadiaduas-caras.
Oreiassentiu.
—Por que achou que pedi queminha boa amiga Ianthe descobrisse quem
FeyreArcherongostariadeterconsigoduranteaeternidade?—Mesmoquando
horror tomoucontademeusouvidos comumsilêncio avassalador,olheiparaas
rainhas;apergunta,semdúvida,estampadaemmeurosto.Oreiexplicou:—Ah,
perguntei a elas primeiro.Elas acharammuito... deselegante trair duasmulheres
jovenseequivocadas.Ianthenãotevetaisproblemas.Considereissomeupresente
decasamentoparavocês—acrescentouoreiaTamlin.
MasorostodeTamlinficoutenso.
—Oquê?
Oreiinclinouacabeça,saboreandocadapalavra.
—AchoqueaGrã-Sacerdotisaestavaesperandoporseuretornoparacontar,
masnãoperguntouporqueelaacreditavaqueeufossecapazdequebraroacordo?
Porqueponderavatantosobreoassunto?HámuitosmilêniosasGrã-Sacerdotisas
sãoobrigadasaseajoelharperanteosGrão-Senhores.Eduranteessesanosemque
Ianthemorou naquela corte estrangeira... quemente aberta ela tem.Depois que
nosconhecemos,depoisquepinteiaIantheumaimagemdePrythiansemGrão-
Senhores, em que as Grã-Sacerdotisas pudessem governar com graciosidade e
sabedoria...Nãofoiprecisomuitoparaconvencê-la.
Euiavomitar.Tamlin,háquesereconhecer,pareciaprestesafazeromesmo.
OrostodeLucientinhaficadoinexpressivo.
—Elaentregou...entregouafamíliadeFeyre.Avocê.
Eu tinha contado a Ianthe tudo sobre minhas irmãs. Ela perguntara.
Perguntaraquemeram,ondemoravam.Eeuforatãoburra,estavatãoquebrada...
Entregueicadadetalhe.
—Entregou?—Oreiriucomescárnio.—Ousalvoudosgrilhõesdamorte
mortal? Ianthe sugeriuqueambaserammulheres com forçadevontade, comoa
irmã.Semdúvidasobreviverão.Eprovarãoparanossasrainhasquepodeserfeito.
Seapessoativerforça.
Meucoraçãodeuumsalto.
—Não...
Oreimeinterrompeu:
—Sugiroquesepreparem.
E,então,oinfernoexplodiunosalão.
Poder,branco,infinito,horrível,sechocoucontranós.
Tudo que vi foi o corpo de Rhysand cobrindo omeu quando fomos todos
atiradosaochão,eouviorompantededorconformeeleabsorveuamaiorpartedo
poderdorei.
Cassiansecontorceu,esuasasasbrilharamconformeeleprotegiaAzriel.
Asasasdele...asasasdele...
OgritodeCassianàmedidaquesuasasaseramdestruídassobgarrasdepura
magia foi o sommais terrível que já ouvi.Mor disparou até ele, mas era tarde
demais.
Rhyssemoveuemuminstante,comosepartisseemdisparadaatéorei,mas
podernosatingiudenovo,edenovo.Rhyscaiudejoelhos.
Minhasirmãsgritavam,apesardasmordaças.MasogritodeElain...umaviso.
Umavisopara...
Àminhadireita,agoraexposta,Tamlincorriaatémim.Parameagarrar,por
fim.
Golpeeicomumafacacontraele...comomáximodeforçapossível.
Tamlinprecisouseabaixarparadesviardela.Erecuoudasegundafacaqueeu
tinhaempunho,meolhandoboquiaberto,olhandoparaRhys, comosepudesse,
realmente,verolaçodaparceriaentrenós.
Maseumevireiquandoossoldadosavançaram,nosinterrompendo.Vireievi
CassianeAzrielnochão,eJurian rindobaixinhoparao sangueque jorravadas
asasdestruídasdeCassian...
Estavamemfrangalhos.
Fuiatéele,desajeitadamente.Meusangue.Talvezfosseobastante,fosse...
Mor,dejoelhosaoladodeCassian,disparoucontraoreicomumgritodepuro
ódio.
ElelançouumgolpedepodercontraMor.Eladesviou,comafacainclinadana
mão,e...
Azrielgritoudedor.
Morcongelou.Paroua30centímetrosdotrono.Afacacaiunochãocomum
clangor.
Oreificoudepé.
—Querainhapoderosavocêé—sussurrouele.
EMorrecuou.Passoapasso.
—Queprêmio—disseorei,comoolharsombriodevorandoMor.
AcabeçadeAzrielseergueudeondeeleestavajogadosobreoprópriosangue,
comosolhoscheiosdeódioedorquandogrunhiuparaorei:
—Nãotoquenela.
MorolhouparaAzriel;ehaviamedorealali.Medo...eoutracoisa.Mornão
paroudesemoveraté,denovo,seajoelharaoladodeleepressionaroferimento
deAzrielcomamão.Elechiou,mascobriuosdedosensanguentadosdeMorcom
ospróprios.
Rhys se colocou entre mim e o rei quando me ajoelhei diante de Cassian.
Arranqueiocouroquecobriameuantebraço...
—Coloqueamaisbonitaprimeiro—disseorei,Morjáesquecida.
Eume virei, apenas para que os guardas do reime agarrassempelas costas.
Rhys apareceu ali instantaneamente, mas Azriel gritou, arqueando as costas,
conformeovenenodoreiavançava.
—Porfavor,evite—disseorei—terideiasburras,Rhysand.—Elesorriu
paramim.—Sealgumdevocêsinterferir,oencantadordesombrasmorre.Uma
penaquantoàsasasdooutro troglodita.—Orei fezumareverênciadebochada
paraminhasirmãs.—Senhoras,aeternidadeespera.ProvemparaSuasMajestades
queoCaldeirãoéseguropara...indivíduoscomforçadevontade.
Sacudiacabeça,incapazderespirar,depensaremumaformadesairdaquilo...
Elain tremia, chorava, conformeeraempurradaparaa frente.Nadireçãodo
Caldeirão.
Nesthacomeçouasedebatercontraoshomensqueaseguravam.
—Pare—disseTamlin.
Oreinãoofez.
Lucien,aoladodeTamlin,levoudenovoamãoàespada.
—Parecomisso.
Nesthaurravaparaosguardas,paraorei,conformeElaincedia,passoapasso,
nadireçãodaqueleCaldeirão.Quandooreigesticuloucomamão,líquidoencheu
oCaldeirãoatéaborda.Não,não...
As rainhas apenas observavam, com expressões petrificadas. ERhys eMor,
separadosdemimporaquelesguardas,nãoousaramsequermoverummúsculo.
—Issonãoépartedoacordo.Parecomissoagora—disparouTamlin.
—Nãomeimporto—disseorei,simplesmente.
Tamlinseatiroucontraotrono,comosefossedespedaçarorei.
Aquelamagiabrancaincandescentesechocoucontraele,empurrandoTamlin
paraochão.Laçando-o.
Tamlinlutoucontraacoleiradeluznopescoço,emvoltadospulsos.Opoder
dourado de Tamlin irradiou; inutilmente. Eu me debati contra o punho que
seguravameupoder,rasgando-o,denovoedenovo...
LuciendeuumpassocambaleanteparaafrentequandoElainfoiagarradapor
doisguardaseerguida.Elacomeçouaespernearentão,chorandoenquantoospés
sechocavamcontraaslateraisdoCaldeirão,comosefossedarimpulsonele,como
sefossederrubaroartefato...
—Basta.—LuciendisparouatéElain,atéoCaldeirão.
Eopoderdoreiolaçoutambém.Nochão,aoladodeTamlin,comoúnico
olhoarregalado,LucienteveobomsensodeparecerhorrorizadoaoolhardeElain
paraoGrão-Senhor.
—Porfavor—imploreiaorei,quegesticulouparaqueElainfosseatiradana
água.—Porfavor,façoqualquercoisa.Dareiqualquercoisaavocê.—Eufiquei
depé,meafastandodeondeCassianestavaprostrado,eolheiparaasrainhas.—
Por favor,vocêsnãoprecisamdeprova,eu souprovadeque funciona. Juriané
provadequeéseguro.
Arainhaidosafalou:
—Vocêéumaladraeumamentirosa.Conspiroucomnossairmã.Suapunição
deveriaseramesma.Considereissoumpresente.
OpédeElain atingiu a água, e ela gritou—gritou comum terror queme
atingiutãoprofundamentequecomeceiachorar.
—Porfavor—implorei,aninguémemparticular.
Nesthaaindaestavalutando,aindarugiaporbaixodamordaça.
Elain,porquemNesthateriamatado,seprostituído,roubado.Elain,quefora
gentil e doce. Elain, que deveria se casar com o filho de um senhor que odiava
feéricos...
OsguardasenfiaramminhairmãnoCaldeirãocomumúnicomovimento.
MeugritonãotinhaterminadoderessoarquandoacabeçadeElainafundou.
Elanãoemergiu.
OsgritosdeNesthaeramoúnicoruído.Cassianavançouàscegasatéeles—
atéela,gemendodedor.
OreideHybernsecurvoulevementeparaasrainhas.
—Vejam.
Rhys,aindaseparadodemimporumaparededeguardas,fechouosdedosem
punhos.Masnãosemoveu,eMortampoucoousousemover,nãocomavidade
Azrielporumfionasmãosdorei.
E,comosetivessesidoviradopormãosinvisíveis,oCaldeirãoentornou.
Mais água do que parecia possível foi despejada em cascata. Água negra,
cobertadefumaça.
EElain,comosetivessesidoatiradaporumaonda,foijogadacomorostopara
baixonopisodepedra.
Aspernasestavamtãopálidas,tãodelicadas.Eunãoconseguiamelembrarda
últimavezqueaviranua.
Asrainhasseaproximaram.Viva,elatinhadeestarviva,precisavaterquerido
sobreviver...
Elain inspirou, ergueuas costasdeossosesguios, a camisolamolhadaestava
praticamentetransparente.
Equandoelaselevantoudochão,apoiadanoscotovelos,comamordaçano
lugar,quandosevirouparameolhar...
Nesthacomeçouarugirdenovo.
Pele pálida começou a brilhar.O rosto de Elain tinha, de alguma forma, se
tornadomaislindo—infinitamentelindo,easorelhas...AsorelhasdeElainagora
erampontiagudassoboscabelosencharcados.
Asrainhasarquejaram.E,porummomento,tudoemquepudepensarfoimeu
pai.Oquefaria,oquediria,quandoafilhapreferidaolhasseparaelecomumrosto
feérico.
—Então,podemossobreviver—sussurrouamaisjovem,decabelospretos,
comosolhosbrilhando.
Caíde joelhos, eosguardasnão sederamo trabalhomepegar enquanto eu
chorava.Oqueeletinhafeito,oquetinhafeito...
—Agora,afelinaselvagem,porfavor—disseoreideHybern.
Virei a cabeça para Nestha quando ela ficou em silêncio. O Caldeirão se
levantou.
Cassian se moveu, curvando-se no chão, mas a mão dele estremeceu. Na
direçãodeNestha.
Elain ainda estava tremendo nas pedras molhadas, a camisola puxada até a
alturadascoxas,ospequenosseioscompletamentevisíveissobotecidoensopado.
Osguardasriam.
Luciengrunhiuparaoreiapesardamagiaqueferiaseupescoço:
—Nãoadeixenomalditochão...
Umclarãodeluzsurgiu,eumarranhãosoou,e,então,Lucienestavaandando
na direção de Elain, livre das amarras.Tamlin permaneceu atado ao chão, uma
mordaçademagiabranca iridescentenabocaagora.Masosolhosestavamsobre
Lucienquando...
QuandoLucientirouocasacoeseajoelhoudiantedeElain.Elaseencolheu
paralongedocasaco,dele...
OsguardaspuxaramNesthaparaoCaldeirão.
Haviatiposdiferentesdetortura,percebi.
Haviaatorturaqueeusofrera,queRhysandsofrera.
Ehaviaaquilo.
A tortura que Rhys trabalhara tanto durante aqueles cinquenta anos para
evitar; os pesadelos que o assombravam. Ser incapaz de se mover, de lutar...
enquantonossosentesqueridossãodestruídos.Meusolhosencontraramosdemeu
parceiro. Dor ondulou naqueles olhos violeta — ódio e culpa e pura dor. O
espelhodemeusolhos.
Nesthalutouacadapasso.
Nãofacilitouparaeles.Elaarranhouechutouesedebateu.
Enãofoiosuficiente.
Enósnãofomososuficienteparasalvá-la.
ObserveiquandoNesthafoierguida.Elainpermaneceuestremecendonochão,
comocasacodeLuciensobreocorpo.ElanãoolhouparaoCaldeirãoatrásdesi,
nãoenquantoospésagitadosdeNesthasechocaramcontraaágua.
Cassianseagitoudenovo,asasasdestruídasestremecendoejorrandosangue
conformeosmúsculosseencolhiam.DiantedosgritosdeNestha,doódiodela,os
olhosdeCassiansearregalaram,vítreosecegos,umarespostaaalgumchamado
em seu sangue, uma promessa que fizera aminha irmã.Mas dor o derrubou de
novo.
Nesthafoienfiadanaáguaatéaalturadosombros.Elasedebateuatémesmo
quandoaáguasubiu.Nesthaarranhavaegritavadeódio,desafiadora.
—Afunde-a—sibilouorei.
Osguardas, comdificuldade, empurraramosombrosmagrosdeNestha.Os
cabeloscastanho-dourados.
E,quandoempurraramacabeçademinhairmã,elasedebateuumaúltimavez,
libertandoolongoepálidobraço.
Comosdentesexpostos,NesthaapontouumdedoparaoreideHybern.
Umdedo,umamaldiçãoecondenação.
Umapromessa.
E,quandoacabeçadeNesthafoiforçadaparadebaixod’água,quandoaquela
mãofoiviolentamenteempurradaparabaixo,oreideHybernteveobomsensode
parecerabalado.
Águanegrasubiuporummomento.Asuperfícieficouimóvel.
Vomiteinochão.
Osguardas,porfim,deixaramqueRhysandseajoelhasseaomeuladonapoça
crescente do sangue de Cassian— deixaram que ele me abraçasse enquanto o
Caldeirão,denovo,seinclinava.
Águasederramou,LucienergueuElainnosbraçoseparaforadocaminho.As
amarrasdeTamlinsumiram,assimcomoamordaça.Ele ficou imediatamentede
pé, grunhindo para o rei. Até mesmo o punho em minha mente se afrouxou,
virandoumameracarícia.Comoseelesoubessequetinhavencido.
Eunãomeimportava.NãoquandoNesthaestavajogadanaspedras.
Eusabiaqueelaestavadiferente.
DecomoquerqueElaintivessesidoFeita...Nesthaestavadiferente.
Mesmoantesdedaroprimeirosuspiro,eusenti.
Como se o Caldeirão, ao fazê-la... tivesse sido forçado a dar mais do que
queria. Como se Nestha tivesse lutado até mesmo depois de afundar, e tivesse
decididoque,seeraparaserarrastadaparaoinferno,levariaoCaldeirãoconsigo.
Comoseaquelededoquetinhaapontadofosseagoraumapromessademorte
paraoreideHybern.
Nestha respirou. E quando olhei paraminha irmã, com a beleza de alguma
formaintensificada,asorelhas...QuandoNesthaolhouparamim...
Ódio.Poder.Inteligência.
Então,essessentimentossumiram,ehorrorechoquelhecontorceramorosto,
masNesthanãoparou,nãosedeteve.Elaestavalivre...estavasolta.
Nestha ficou de pé, tropeçou nas pernas um poucomais longas, mais finas,
arrancouamordaça...
NesthasechocoucontraLucien,arrancandoElaindeseusbraços,egritoupara
Lucienquandoelecaiuparatrás:
—Solte-a!
OspésdeElainescorregaramnochão,masNesthaalevantou,passouasmãos
pelorostodeElain,pelosombros,peloscabelos...
—Elain,Elain,Elain—soluçavaNestha.
Cassiansemoveudenovo...tentandoselevantar,responderàvozdeNestha
enquantoelaseguravaminhairmãegritavaseunome,denovoedenovo.
MasElainolhavaporcimadoombrodeNestha.
ParaLuciencujorostoelafinalmentevira.
Olhoscastanho-escurosencararamumolhovermelhoeoutrometálico.
Nesthaaindachorava,aindairradiavaódio,aindainspecionavaElain...
AsmãosdeLucienseabaixaram,inertes,aoladodocorpo.
AvozdelefalhouquandoLuciensussurrouparaElain:
—Vocêéminhaparceira.
NãopermitiqueadeclaraçãodeLucienfosseabsorvida.
Nestha,noentanto,sevirouparaele.
—Elanãoétalcoisa—disseminhairmã,eoempurroudenovo.
Lucien não se moveu um centímetro. O rosto estava pálido como a morte
enquantoencaravaElain.Minhairmãnãodissenada,oaneldeferroreluzia,fosco,
emseudedo.
OreideHybernmurmurou:
—Interessante.Muitointeressante.—Elesevirouparaasrainhas.—Estão
vendo?Mostreinãouma,masduasvezesqueéseguro.QuemgostariadeserFeita
primeiro?Talvezconsigaumsenhorfeéricobonitãocomoparceirotambém.
Arainhamaisnovadeuumpassoadiante,osolhoschegaramapercorreros
homensfeéricosreunidos.Comosepudesseescolherentreeles.
Oreigargalhou.
—Muitobem,então.
Ódio percorreu meu corpo, tão violento que não o controlei, e não havia
nenhumacançãoemmeucoraçãoalémdogritodeguerradoódio.Euosmataria.
Eumatariatodoseles...
—Seestádispostoaoferecerbarganhas—disseRhyssubitamente,ficandode
péemepuxandoconsigo—,talvezeufaçauma.
—Ahn?
Rhysdeudeombros.
Não. Bastava de acordos; bastava de sacrifícios. Bastava de ele se entregar,
poucoapouco.
Bastava.
Eseoreiserecusasse,senãohouvessenadaafazeranãoserobservarmeus
amigosmorrerem...
Eunãopodiaaceitaraquilo.Nãopodiasuportar...nãoaquilo.
E por Rhys, pela família que eu tinha encontrado... Eles nunca haviam
precisadodemim;nãodeverdade.ApenasparaanularoCaldeirão.
Eutinhafracassadocomeles.Assimcomofracassaracomminhasirmãscujas
vidaseuagoradestruíra...
Penseinaqueleanelmeesperandoemcasa.PenseinoanelnodedodeElain,de
um homem que agora provavelmente a caçaria e mataria. Se Lucien sequer a
deixassepartir.
Penseiemtodasascoisasquequeriapintar...equejamaispintaria.
Masporeles...porminhafamília,tantoadesanguequantoaqueescolhi,por
meuparceiro...Aideiaquemeatingiunãopareceutãoassustadora.
Então,nãotivemedo.
Caí de joelho com um espasmo, segurando a cabeça enquanto trincava os
dentesesoluçava,soluçavaeofegava,puxandooscabelos...
Opunhodaquelefeitiçonãotevetempodemepegardenovoquandoexplodi
alémdele.
Rhysestendeuobraçoparamim,mas libereimeupoder,umclarãodaquele
branco, luz pura, tudo que conseguiu escapar da represa do feitiço do rei. Um
clarãodeluzqueeraapenasparaRhys,apenasporcausadeRhys.Euesperavaque
eleentendesse.
Opoderirrompeupelosalão,eaforçareunidasibilouerecuou.
AtémesmoRhyscongelou—oreieasrainhasficaramboquiabertos.Minhas
irmãseLucientinhamseviradotambém.
Mas ali, bem no fundo da luz daCorteDiurna... eu vi.Um poder nítido e
purificador.QuebradoradaMaldição—quebradoradefeitiço.Aluzaçoitoucada
amarra física, me mostrou os emaranhados de feitiços e encantamentos, me
mostrouocaminho...Eumeacendimaisforte,procurando,procurando...
Enterrados dentro das paredes do castelo, os feitiços de proteção estavam
fortementeentrelaçados.
Lancei aquela luz ofuscante emdisparadamais uma vez—uma distração e
umacartanamangaconformeeupartiaosencantamentosporsuasantigasartérias
principais.
Agora,sóprecisavafazermeupapel.
Aluzsedissipou,eeuestavaaninhadanochão,acabeçanasmãos.
Silêncio.Silêncioenquantotodosmeolhavam,boquiabertos.
AtémesmoJuriantinhaperdidoaarrogâncianolocalemqueestavaapoiado
contraaparede.
Mas meus olhos estavam apenas em Tamlin quando abaixei as mãos,
inspirando,episquei.Olheiparaoanfitrião,paraosangueeparaaCorteNoturna,
e,então,porfim,devoltaparaTamlinquandosussurrei:
—Tamlin?
Ele não se moveu um centímetro. Além de Tamlin, o rei me olhava,
boquiaberto.Sesabiaqueeuhaviadestruídosuasproteções,sesabiaquetinhasido
intencional,nãoeraminhapreocupação;aindanão.
Pisqueidenovo,comoseminhamentesedesanuviasse.
—Tamlin?—Olheiparaasmãos,paraosangue,e,quandoolheiparaRhys,
quando vi meus amigos com expressões sombrias e minhas irmãs imortais
ensopadas...
NãohavianadaalémdechoqueeconfusãonorostodeRhysquandorecueide
pertodele.
Paralongedeles.NadireçãodeTamlin.
—Tamlin.— Eu consegui dizer de novo. O olho de Lucien se arregalou
quandoele se colocouentremimeElain.Então,vireiparao rei deHybern.—
Onde...—VireiparaRhysanddenovo.—Oquevocêfezcomigo—sussurrei,
umsomgrave,gutural.RecuandoparaTamlin.—Oquevocêfez?
Tire-asdaqui.Tireminhasirmãsdaqui.
Entre...porfavor,entrenaencenação.Porfavor...
Não havia som, nenhum escudo, nenhum lampejo de sentimento em nosso
laço.O poder do rei o tinha bloqueado completamente.Não havia nada que eu
pudessefazercontraaquilo,QuebradoradaMaldiçãoounão.
MasRhyscolocouasmãosnosbolsosquandoronronou:
—Comoselibertou?
—Oquê?—Jurianpareciafervilhar,afastando-sedaparedeedisparandoaté
nós.
MaseumevireiparaTamline ignoreias feiçõeseocheiroeas roupas,que
eramtodoserrados.Elemeobservou,desconfiado:
—Nãodeixequeelemelevedenovo,nãodeixequeele...não...—Nãopude
conterochoro,quemefaziaestremecer,nãoquandoaforçatotaldoqueeuestava
fazendomeatingiu.
—Feyre—falouTamlin,baixinho.Eeusoubequetinhavencido.
Choreimaisintensamente.
Tire minhas irmãs daqui, implorei a Rhys, pelo laço silencioso. Destruí as
defesasparavocê...paratodosvocês.Tire-asdaqui.
—Nãodeixequeelemeleve—chorei,denovo.—Nãoquerovoltar.
E quando olhei para Mor, para as lágrimas que escorriam por seu rosto
enquantoajudavaCassianaselevantar,eusoubequeelapercebeuoqueeuqueria
dizer. Mas as lágrimas sumiram e se tornaram tristeza por Cassian, quando ela
virouorostocheiodeódio,horrorizado,paraRhysandedisparou:
—Oquevocêfezcomessagarota?
Rhysinclinouacabeça.
—Comoconseguiu,Feyre?—Havia tanto sanguenele.Umúltimo jogo...
aqueleeraumúltimojogoquetodosjogaríamosjuntos.
Sacudi a cabeça.As rainhas tinham recuadometadedo caminho, osguardas
formavamumaparedeentrenós.
Tamlinmeobservavacomcautela.Lucientambém.
Então,mevireiparaorei.Elesorria.Comosesoubesse.
Masfalei:
—Quebreolaço.
Rhysandficouimóvelcomoamorte.
Dispareiparaorei,meusjoelhosdoeramquandomejogueiaochãodiantedo
trono.
—Quebreolaço.Oacordo,o...laçodaparceria.Ele...elemeobrigou,eleme
fezjurar...
—Não—falouRhysand.
Euoignorei,mesmoquandomeucoraçãosepartiu,mesmoquandoeusoube
queelenãoteveaintençãodefalar...
—Faça-o— implorei ao rei,mesmo enquanto rezava silenciosamente para
que ele não reparasse nas proteções destruídas, na porta que eu tinha deixado
escancarada.—Seiquepode.Apenas...meliberte.Melibertedisso.
—Não—falouRhysand.
MasTamlinolhavademimparaRhys.Eolheiparaele,oGrão-Senhorqueum
diaamei,esussurrei:
—Basta.Bastademortes,bastadeassassinatos.—Euchoravaentredentes.
Obriguei-meaolharparaminhasirmãs.—Basta.Me leveparacasaeliberte-as.
Digaaelequeépartedoacordoeliberte-as.Masbasta,porfavor.
Cassian,devagar,sentindodoracadamomento,sevirouobastanteparaolhar
paramimporcimadeumadasasasdestroçadas.Enosolhoscheiosdedordele,eu
vi:acompreensão.
A Corte dos Sonhos. Eu tinha pertencido a uma corte de sonhos. E de
sonhadores.
E pelos sonhos deles... pelo que tinham trabalhado, sacrificado... Eu podia
fazeraquilo.
Tireminhas irmãsdaqui, eudisseaRhys,umaúltimavez, lançandoa súplica
poraquelaparededepedraentrenós.
OlheiparaTamlin.
— Basta. — Aqueles olhos verdes encontraram os meus, e a tristeza e o
carinhonelesforamacoisamaisterrívelqueeujávira.—Meleveparacasa.
Tamlindisse,inexpressivo,paraorei:
—Solte-as,quebreo laçodeFeyreevamosacabarcom isso.As irmãsvêm
conosco.Vocêjáultrapassoulimitesdemais.
Juriancomeçouaprotestar,masoreidisse:
—Muitobem.
—Não!—FoitudooqueRhysdisse,denovo.
Tamlingrunhiuparaele:
—Nãodouamínimaseelaésuaparceira.Nãodouamínimaseachaquetem
direitoaela.Elaéminha,e,umdia,vourevidarcadapingodedorqueelasentiu,
cadagotadesofrimentoedesespero.Umdia,talvez,quandoeladecidirquequer
acabarcomvocê,ficareifelizemobedecer.
Váembora...apenasvá.Leveminhasirmãsjunto.
Rhysmeolhava.
—Não.
Maseurecuei...atéchegaraopeitodeTamlin,atéqueasmãosdele,quentese
pesadas,repousaramsobremeusombros.
—Faça-o—disseTamlinaorei.
—Não—repetiuRhys,avozfalhando.
Masoreiapontouparamim.Egritei.
Tamlin seguroumeusbraços quandogritei e gritei devido àdor que rasgou
meupeito,meubraçoesquerdo.
Rhysand estava no chão, rugindo, e achei que ele tivesse dito meu nome,
tivesseurrado enquanto eumedebatia e chorava.Eu estava sendodespedaçada,
estavamorrendo,euestavamorrendo...
Não.Não,eunãoqueriaaquilo,nãoqueria...
Umestalosoouemmeusouvidos.
Eomundosepartiuaomeioquandoolaçoserompeu.
Desmaiei.
Quandoabriosolhos,apenassegundostinhamsepassado.Morestavaagora
puxandoRhysparalonge,eeleofegavanochão,osolhosselvagens,osdedosse
fechandoeabrindo...
Tamlinarrancoualuvademinhamãoesquerda.
Pelelímpida,nua,orecebeu.Nenhumatatuagem.
Eu estava chorando e chorando, os braçosdeTamlinme envolveram.Cada
centímetrodelespareceuerrado.Quasevomiteiaolhesentirocheiro.
Mor soltou o colarinho do casaco deRhysand, e ele rastejou— rastejou de
voltaparaAzrieleCassian,osanguedosamigossujouamãodeRhys,opescoço,
conformeelesearrastava.AsrespiraçõespesadasdeRhysmepartiram,partiram
minhaalma...
Oreiapenasgesticulouparaele.
—Vocêestálivre,Rhysand.Ovenenodeseuamigosefoi.Asasasdooutro,
creioqueestejamumpoucodestruídas.
Nãoresista, não diga nada, implorei, quandoRhys alcançou os irmãos.Leve
minhasirmãs.Asproteçõescaíram.
Silêncio.
Então,olhei—apenasumavezparaRhysand—eCassianeMoreAzriel.
Elesjámeencaravam.Rostosensanguentadosefriosetranstornados.Maspor
baixo...eusabiaqueeraamoroquehaviaporbaixo.Elesentendiamas lágrimas
querolavampormeurostoconformeeusilenciosamentemedespedia.
Então,Mor,ágilcomoumavíbora,atravessouatéLucien.Atéminhasirmãs.
ParamostraraRhys,percebi,oqueeutinhafeito,oburacoqueeuabriraparaque
escapassem...
Mor empurrouLucien para longe coma palmadamãonopeito, e o rugido
delesacudiuoscorredoresquandoelasegurouminhasirmãspelobraçoesumiu.
O rugido de Lucien ainda soava quando Rhys disparou, segurou Azriel e
Cassianenemmesmosevirouparamimquandoelesatravessaramparafora.
Oreificoudepé,disparandoairaparaosguardas,paraJurian,pornãoterem
segurado minhas irmãs. Exigindo saber o que acontecera com as proteções do
castelo...
Eu mal ouvi. Havia apenas silêncio em minha cabeça. Tanto silêncio onde
anteshaviarisadasombriaediversãomaliciosa.Umdesertoaçoitadopelovento.
Luciensacudiaacabeça,semfôlego,esevirouparanós.
—Tragaeladevolta—grunhiueleparaTamlinporcimadaspalavrasdorei.
Umparceiro...umparceirojáenlouquecendoparadefenderoqueeradele.
Tamlin o ignorou. Então, eu também ignorei. Mal conseguia suportar, mas
encareioreiquandoelesesentounotrono,segurandoosbraçosdoassentocom
tantaforçaqueosnósdosdedosembranqueceram.
—Obrigada—sussurrei,comamãonopeito,apeletãopálida,tãobranca.
—Obrigada.
Oreiapenasdisse,paraasrainhasreunidas,agoraaumaboadistância:
—Comecem.
As rainhas se entreolharam e, então, viraram para os guardas de olhos
arregalados, caminharam em fila até o Caldeirão, os sorrisos crescendo. Lobos
circundandoapresa.Umadelasbrigoucomoutraportersidoempurrada,eorei
murmuroualgoparatodasquenãomedeiotrabalhodeouvir.
JuriancaminhouatéLucienemmeioàbrigaqueseiniciava,rindobaixo.
— Sabe o que bastardos illyrianos fazem com fêmeas bonitinhas? Não vai
sobrarumaparceira,pelomenosnãoumaquesejaútilavocê.
OgrunhidoderespostadeLucienfoiselvagem.
CuspiaospésdeJurian.
—Váparaoinferno,seuporcoimundo.
AsmãosdeTamlinsegurarammeusombroscommaisforça.Luciensevirou
em minha direção, e aquele olho de metal girou e semicerrou. Séculos de
racionalidadecultivadaseencaixaramnolugar.
Eunãoentraraempânicoporqueminhasirmãstinhamsidolevadas.
Falei,baixinho:
—Vamostrazê-ladevolta.
MasLucienmeobservava,cauteloso.Atédemais.
VireiparaTamlin:
—Meleveparacasa.
—Ondeestá—interrompeuoreiporcimadabrigadasrainhas.
Eupreferiaavozentretidaearroganteaotominexpressivoecruelquecortou
osalão.
— Você... você deveria usar o Livro dos Sopros — disse o rei. — Eu
conseguiasenti-loaqui,com...
O castelo inteiro estremeceu quando ele percebeu que eu não estava com o
Livronocasaco.
Apenasrespondi:
—Estáerrado.
Asnarinasdoreisedilataram.Atéomarabaixopareceurecuardeterrordiante
da iraqueempalideceuorostoáspero.Masoreipiscouea ira sumiu.Eledisse,
contido,paraTamlin:
—QuandooLivroforrecuperado,esperosuapresençaaqui.
Poder, comcheirode lilás e cedroe asprimeiras folhasverdes, espiralouao
meuredor.Elenospreparavaparaatravessar...atravésdasproteçõesqueelesnão
faziamideiadequeeutinhadestruído.
Então,faleiparaorei,eparaJurian,eparaasrainhasreunidas,jánabordado
Caldeirão,brigandoparadecidirquemiriaprimeiro:
— Vou acender pessoalmente suas piras funerárias pelo que fizeram com
minhasirmãs.
Efomosembora.
Eumechoqueicontraochãodosolar,eAmrenestavaimediatamenteali,asmãos
nas asas de Cassian, xingando devido às feridas. Depois, xingou por causa do
buraconopeitodeAzriel.
Nemmesmoseupoderdecurapoderiaconsertarosdois.Não,precisaríamos
de um curandeiro de verdade para cada um, e rápido, pois, seCassian perdesse
aquelasasas...Eusabiaqueeleprefeririaamorte.Qualquerillyrianopreferiria.
—Ondeelaestá?—indagouAmren.
Ondeelaestáondeelaestáondeelaestá
—TireoLivrodaqui—exigi,jogandoaspartesnochão.Odiavatocá-las,a
loucuraeodesesperoeaalegria.Amrenignorouaordem.
Mornãotinhasurgido...estavalargandoouescondendoNesthaeElainonde
achassemaisseguro.
—Ondeelaestá?—repetiuAmren,pressionandoamãoàscostasarrasadas
deCassian.EusabiaqueelanãofalavadeMor.
Como se meus pensamentos a tivessem convocado, minha prima surgiu:
ofegante,selvagem.ElaabaixouaoladodeAzrielnochão,asmãosensopadasde
sanguetremiamconformelhearrancavaaflechadopeito,comsanguecobrindoo
tapete.Morapertouoferimentocomosdedos,luzirradiandoconformeseupoder
costuravaossoecarneeveias.
—Ondeelaestá?—disparouAmren,maisumavez.
Eunãoconseguiadizeraspalavras.
Então,Mor as disse pormim ao se ajoelhar sobreAzriel;meus dois irmãos
estavammisericordiosamenteinconscientes.
—Tamlinofereceupassagempelas terrasdeleenossascabeçasembandejas
parao rei em trocade aprisionarFeyre, partiro laçodela e fazer comque fosse
devolvidaàCortePrimaveril.MasIanthetraiuTamlin,disseaoreiondeencontrar
asirmãsdeFeyre.Então,oreifezcomqueasirmãsdeFeyrefossemlevadascom
asrainhas,paraprovarquepoderiatorná-lasimortais.EleascolocounoCaldeirão.
Nãopudemosfazernadaenquantoelasforamtransformadas.Elenosneutralizou.
Aquelesolhosdemercúriodispararamparamim.
—Rhysand.
Conseguifalar:
—Não tínhamosopções,eFeyresabia.Então, fingiuse libertardocontrole
queTamlinachavaqueeutinhasobresuamente.Fingiuque...nosodiava.Edisse
a ele que iria para casa, mas apenas se a matança acabasse. Se nós fôssemos
libertados.
—Eolaço—sussurrouAmren,comosanguedeCassianbrilhandonasmãos
conformereduziaosangramento.
—Elapediuaoreiquequebrasseolaço.Eleobedeceu—disseMor.
Achei que eu estavamorrendo... achei quemeupeito poderia, de fato, estar
partidoaomeio.
—Isso é impossível—retrucouAmren.—Esse tipode laçonãopode ser
quebrado.
—Oreidissequepodiaquebrá-lo.
—O rei é um tolo— disparou Amren.— Esse tipo de laço não pode ser
quebrado.
—Não,nãopode—concordei.
Asduasmeolharam.
Limpei a mente, o coração estilhaçado — partido devido ao que minha
parceiratinhafeito,sacrificadopormimeminhafamília.Pelasirmãs.Porquenão
achava...elanãoachavaqueeraessencial.Mesmodepoisdetudoquefizera.
—Oreidesfezoacordoentrenós.Foidifícil,maselenãosedeucontadeque
nãoeraolaçodaparceria.
Morseespantou.
—Ela...Feyresabe...
— Sim — sussurrei. — E agora minha parceira está nas mãos de nosso
inimigo.
—Váatrásdela—sibilouAmren.—Agoramesmo.
—Não—falei,eodieiapalavra.
Elasmeolharam,boquiabertas,etivevontadederugiraoverosanguequeas
cobria, ao ver meus irmãos inconscientes e sofrendo no tapete diante deMor e
Amren.
Masconseguidizerparaminhaprima:
—NãoouviuoqueFeyredisseaele?Elaprometeudestruí-lo,dedentropara
fora.
OrostodeMorempalideceu,amagiaincandescentenopeitodeAzriel.
—Vaientrarnaquelacasaparadestruí-lo.Paradestruirtodos.
Assenti.
—Agora, éumaespiã, com ligaçãodireta atémim.Oqueo reideHybern
fizer,aondeelefor,quaisforemosplanos,elasaberá.Enosrelatarátudo.
Porque entre nós, fraco e suave, escondido, para que ninguém pudesse
encontrar...entrenóshaviaumsussurrodecor,edealegria,deluzedesombra,
umsussurrodela.Nossolaço.
—Elaésuaparceira—disparouAmrenparamim.—Nãosuaespiã.Váatrás
dela.
—Elaéminhaparceira.Eminhaespiã—argumentei,baixodemais.—Eéa
Grã-SenhoradaCorteNoturna.
—Oquê?—sussurrouMor.
Comumdedomental, acariciei aquele laço, agora oculto, bemno fundo de
nós,efalei:
—Setivessemretiradosuaoutraluva,teriamvistoumasegundatatuagemno
braçodireito.Idênticaàoutra.Pintadananoitepassada,quandosaímosdefininho,
encontramosumasacerdotisae fizemoso juramentodequeela seriaminhaGrã-
Senhora.
—Não...nãoconsorte—disparouAmren,piscando.Eunãoavia surpresa
havia...séculos.
—Não consorte, não esposa. Feyre é Grã-Senhora da Corte Noturna.—
Minhaigualdetodasasformas;elausariaminhacoroa,sesentariaemumtronoao
lado do meu. Jamais nos bastidores, jamais incumbida de procriação e festas e
cuidadoscomascrianças.Minharainha.
Comoqueemresposta,umlampejodeamorestremeceuolaço.Eumesegurei
diantedoalívioqueameaçouacabarcomqualquercalmaqueeufingiasentir.
—Estámedizendo—sussurrouMor—queminhaGrã-Senhoraestáagora
cercada de inimigos?—Um tipo letal de calma tomou seu rostomanchado de
lágrimas.
— Estou dizendo — esclareci, observando o sangue coagular nas asas de
Cassianpelos cuidadosdeAmren. Sob asmãosdeMor, a hemorragia deAzriel
tinhadiminuído...osuficienteparamantê-losvivosatéqueocurandeirochegasse.
—Estoudizendo—repeti,meupoder se acumulando e roçando contra a pele,
contrameusossos,desesperadoparaserliberadosobreomundo—quesuaGrã-
Senhorafezumsacrifícioporsuacorte,eagiremosquandochegarahora.
TalvezofatodeLucienserparceirodeElainajudasse...dealgumaforma.Eu
encontrariaumaforma.
Então, ajudaria minha parceira a despedaçar a Corte Primaveril, Ianthe,
aquelasrainhasmortaiseoreideHybern.Devagar.
—Eatélá?—indagouAmren.—EquantoaoCaldeirão...eoLivro?
—Até então— respondi, encarando a porta como se pudesse vê-la entrar,
rindo,alegre,linda—,guerreamos.
Tamlinaterrissouconosconocascalhonaentradadapropriedade.
Tinhameesquecidodecomoerasilenciosoali.
Comoerapequeno.Vazio.
Aprimaveraflorescia;oarerasuave,comcheiroderosas.
Ainda era lindo.Mas ali estavam as portas atrás das quais ele me selara. A
janelaqueesmurrei,tentandosair.Umalindaprisãocobertaderosas.
Massorri,comacabeçalatejando,edisse,entreaslágrimas:
—Acheiquejamaisaveriadenovo.
Tamlinapenasmeencarava,comosenãoacreditassemuito.
—Tambémacheiquevocênãoveria.
Evocênosentregou...entregoucadavidainocentenestaterraporisso.Sóparaque
pudessemeterdevolta.
Amor;amoreraumbálsamo,tantoquantoumveneno.
Mas era amor que queimava em meu peito. Ao lado do laço que o rei de
Hybernsequertocara,porquenãosabiaquãoprofundamenteprecisariacavarpara
parti-lo.ParasepararRhysandeeu.
Doera, doera intensamentequandoo acordo entrenós acabou, eRhys tinha
feitoseu trabalhoperfeitamente,ohorrorera impecável.Sempre fomos tãobons
embrincarjuntos.
Nãoduvideidele,nãodissenadaalémdeSimquandoRhysmelevouparao
templonanoiteanteriorefizmeusvotos.Aele,aVelaris,àCorteNoturna.
E agora... uma carícia suave, carinhosa por aquele laço, oculto sob aquele
desertoemqueestiveraoacordo.Lanceiumlampejodesentimentodevoltapela
linha,desejandopodertocá-lo,segurá-lo,rircomRhys.
Mas mantive esses pensamentos longe da expressão do rosto. Tudo exceto
alíviosilencioso,conformemeinclineinadireçãodeTamlin,suspirando.
—Parece... parece que parte foi um sonho, ou umpesadelo.Mas...Mas eu
lembravadevocê.Equandooviláhoje,comeceiaarranhar,alutarcontraaquilo,
porquesabiaquepodiaserminhaúnicachancee...
—Como se libertou do controle dele?— perguntou Lucien, inexpressivo,
atrásdenós.
TamlindeuumgrunhidodeavisoaLucien.
Eutinhameesquecidodequeeleestavaali.Oparceirodeminhairmã.AMãe,
decidi,tinhamesmosensodehumor.
—Euqueria,nãoseicomo.Sóqueriamelibertar;então,consegui.
Nósnosencaramos,masTamlinacaricioumeuombrocomopolegar.
—Você...vocêestáferida?
Tentei não fervilhar de ódio. Sabia o que ele queria dizer. E a ideia de que
Rhysandfariaalgoassimcomalguém...
—Eu...eunãosei—gaguejei.—Eunão...nãolembrodessascoisas.
OolhodemetaldeLuciensesemicerrou,comoseelepudessesentiramentira.
MaserguiorostoparaTamlineroceisuabocacomamão.Minhapeleexposta,
limpa.
—Vocêéreal—declarei.—Vocêmelibertou.
Foi difícil não transformar as mãos em garras e lhe arrancar os olhos.
Traidor...mentiroso.Assassino.
—Você se libertou— sussurrouTamlin. Ele indicou a casa.—Descanse,
depois conversaremos. Eu... preciso encontrar Ianthe. E deixar algumas coisas
muito,muitoclaras.
—Eu...euqueroparticipardessavez—falei,parandoquandoTamlintentou
me guiar de voltar para aquela linda prisão. — Chega... chega de me afastar.
Chegadeguardas.Porfavor.Tenhotantoacontarsobreeles...fragmentos,mas...
Possoajudar.Possorecuperarminhasirmãs.Medeixeajudar.
Ajudar a colocar você na direção errada. Ajudar a colocar você e sua corte de
joelhos,eacabarcomJurianeaquelasrainhasardilosasetraidoras.E,então,dilacerar
Ianthe em pedacinhos minúsculos e enterrá-los em um poço para que ninguém os
encontre.
Tamlinobservoumeurostoe,porfim,assentiu.
—Vamos recomeçar. Fazer as coisas de outro jeito. Enquanto você estava
fora,percebi...Queestavaerrado.Tãoerrado,Feyre.Epeçodesculpas.
Tarde demais. Tarde demais. Mas apoiei a cabeça no braço de Tamlin
conformeeleenvolveumeucorpoemelevouparaacasa.
—Nãoimporta.Estouemcasaagora.
—Parasempre—prometeuTamlin.
—Parasempre—repeti,olhandoparatrás,paraondeLucienestavaparado
naentradadecascalho.
Seuolharrecaíasobremim.Aexpressão,rigorosa.Comosetivesseenxergado
atravésdecadamentira.
Como se soubesse sobre a segunda tatuagem sob minha luva, e sobre o
encantamentoqueeuagoramantinhasobreela.
Comosesoubessequetinhamdeixadoumaraposaentrarnogalinheiro,enão
pudessefazernadaarespeitodisso.
Anãoserquenuncamaisquisesseversuaparceira—Elain—denovo.
DeiaLucienumsorrisodócilepreguiçoso.Então,nossojogotinhacomeçado.
Chegamosaosdegrausdemármorequedavamparaasportasdeentradada
mansão.
ETamlin,semsaber,levavaaGrã-SenhoradaCorteNoturnaparaocoração
dopróprioterritório.
Agradeçoàsseguintespessoas,quetornamminhavidaumabençãoimensurável:
Ameumarido,Josh:vocêmeajudouasuperaresteano.(Emuitosanosantes
deste,masesteemespecial.)Nãotenhopalavrasparadescreverquantoamovocê,
equantosougrataportudoquefaz.Pelasinúmerasrefeiçõesquecozinhou,para
queeunãoprecisasseparardeescrever;pelascentenasdelouçasquelavoudepois,
para que eu pudesse voltar correndo para o escritório e continuar trabalhando;
pelashoraspasseandocomocachorro,principalmentedemanhãcedo,sóparaque
eupudessedormir...Estelivroagoraéumlivrodeverdadeporsuacausa.Obrigada
por me carregar quando eu estava cansada demais, por limpar minhas lágrimas
quandomeu coração estava pesado e por sair comigo em tantas aventuras pelo
mundo.
ParaAnnie,quenãopodeleristo,masquemerececréditomesmoassim:cada
segundocomvocêéumadádiva.Obrigadaportornarumtrabalhorelativamente
solitárionemumpoucosolitário—epelasrisadas,pelaalegriaepeloamorque
trouxeparaminhavida.Amovocê,cachorrinho.
ParaSusanDennard,minhaThreadsistereanamcara: tenhoquasecertezade
quepareçoumavitrolaquebradaaestaaltura,masobrigadaporserumaamigapor
quemvaleapenaesperar,epeladiversão,pelosmomentosrealmenteépicosque
tivemos juntas. Para Alex Bracken, Erin Bowman, Lauren Billings, Christina
Hobbs, Victoria Aveyard, Jennifer L. Armentrout, Gena Showalter e Claire
Legrand:tenhomuitasorteporchamarvocêsdeamigos.Adorotodosvocês.
Para minha agente, Tamar Rydzinski: o que eu faria sem você? Tem sido
minharocha,minhaestrela-guia,eminhafadamadrinhadesdeoinício.Setelivros
depois, ainda não tenho palavras para expressar minha gratidão. Para minha
editora, Cat Onder: trabalhar com você nestes livros tem sido o ponto alto de
minhacarreira.Obrigadaporsuasabedoria,seucarinhoesuagenialidadeeditorial.
Para minhas equipes fenomenais da Bloomsbury pelo mundo inteiro e da
CAA:CindyLoh,CristinaGilbert, JonCassir,KathleenFarrar,NigelNewton,
RebeccaMcNally,NatalieHamilton,SoniaPalmisano,EmmaHopkin,IanLamb,
EmmaBradshaw, LizzyMason,CourtneyGriffin, Erica Barmash, Emily Ritter,
GraceWhooley,EshaniAgrawal,NickThomas,AliceGrigg,EliseBurns,Jenny
Collins, Linette Kim, Beth Eller, Diane Aronson, Emily Klopfer, Melissa
Kavonick,DonnaMark,JohnCandell,NicholasChurch,AdibaOemar,Hermione
Lawton, Kelly deGroot, e toda a equipe de direitos estrangeiros: é uma honra
conhecer e trabalhar comvocês.Obrigadapor tornaremmeus sonhos realidade.
ParaCassieHomer:obrigadaportudo.Vocêéabsolutamentedivertida.
Paraminhafamília(principalmentemeuspais):amovocêsatéaLuaedevolta.
Para Louisse Ang, Nicola Wilksinson, Elena Yip, Sasha Aslberg, Vilma
Gonzalez, Damaris Cardinali, Alexa Santiago, Rachel Domingo, Jamie Miller,
AliceFanchiangeosMaasThirtheen:suagenerosidade,suaamizadeeseuapoio
significamomundoparamim.
E,porfim,parameusleitores:vocêssãoosmelhores.Osmelhoresdeverdade.
Nadadissoseriapossívelsemvocês.Obrigada,dofundodocoração,portudoque
fazempormimepormeuslivros.
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