SOBRE O REINO DE PASRGADA
Pasrgada, adj. 2 gn. Relativo oupertencente a Pasrgadas. S. 2 gn.Natural ou habitante dessa cidade.Pasrgadas, primeira capital daPrsia, que se dizia ter sido funda -da por Ciro, ao N.E. de Perspo -lis; hoje Murghab (Lello UniversalDicionrio Enciclop dico Luso-Bra -sileiro, Lello & Irmo Editores,Porto, 1980, 2: 472).
Manuel Bandeira conta no seulivro Itinerrio de Pasrgada:
Vou-me embora pra Pasrgada! Foio poema de mais longa ges tao emtoda a minha obra. Vi pela primeiravez esse nome Pasr gada quandotinha os meus dezas seis anos e foinum autor grego Esse nome dePasrgada que significa campo dospersas ou tesouro dos persas, sus -citou na minha imaginao uma pai-sagem fabulosa, um pas de delcias,como o de Linvitation au voyagede Baudelaire. Mais de vinte anosdepois, quando eu morava s naminha casa da Rua do Curvelo, nummomento de fundo desni mo, damais aguda sensao de tudo o queeu no tinha feito na minha vida pormotivo da doena, saltou-me desbito do subcons ciente esse gritoestapafrdio: Vou-me embora praPasrgada Senti na redondilha aprimeira clula de um poema, e ten-tei realiz-lo, mas fracassei. J nessetempo eu no forava a mo. Aban -
donei a ideia. Alguns anos depois,em idnticas circuns tncias dedesalento e tdio, me ocorreu omesmo desabafo de evaso davida besta. Desta vez o poemasaiu sem esforo, como se j esti-vesse pronto dentro de mim.Gosto desse poe ma porque vejonele, em es coro, toda a minhavida; e tam bm porque parece quenele soube trans mitir a tantasoutras pessoas a viso e promessada minha adoles cncia, - essaPasrgada onde pode mos viverpelo sonho o que a vida madrastano nos quis dar
A propsito da pronncia de
Pa sr gada:
O conhecimento de que o s inter -voclico sonoro em portu gus,equiparando-se ao som do z, e amaneira como o topnimo estgrafado no Dicionrio Etimolgicode Antenor Nascentes (V,II), e,ainda, a nitidez do prprio ManuelBandeira no disco que gravou, nofim da dcada de 50 no deixamdvidas de que a pronncia como som de z. Creio que a tendnciapopular, hiperurbanista, de pro -nunci-la com s surdo deve sercon ta minao semntica e sonorado verbo passar, uma vez quePasr gada contm o sentido utpi-co de passar alm. (GilbertoMendona Teles, in Vou-meEmbora Pra Pa sr gada (poemasescolhidos), Jos Olympio Editora,Rio de Janeiro, 1986, X).
Oiro de MinasA nova poesia das Gerais
Prisca AgustoniSeleco e prefcio
Colaborao de Carolina de Oliveira Barreto e Andr Luz de Freitas Dias
7DA MINERAO: SEUS MTODOS & ACHADOS
Prisca Agustoni
Para alm de suas dimenses continentais, a sociedade brasi-leira merece ser pensada a partir de suas mltiplas realidades cul-turais, polticas e econmicas. Estas, se por um lado geram confli-tos dramticos, por outro, revelam situaes em que sobressaemlies mpares de colaborao e solidariedade entre as pessoas.Diante dessa complexa perspectiva, entende-se que o pas expos-to nos espaos privilegiados dos mdia nacional e internacionalno responde pela diversidade que, de facto, o sustenta. Dito deoutro modo, um olhar crtico sobre a realidade brasileira demons-tra que o Brasil meditico no seno uma face entre outras (ins-tigantes e desafiadoras) da sociedade nacional. Esse tema leva-nosde volta dcada de 1950 e permite-nos observar que os doisBrasis, detectados naquela poca pelo socilogo francs JacquesLambert, j eram (e continuam sendo) vrios Brasis.
Esse comentrio, brevssimo, de natureza sociolgica, nosparece indispensvel no momento em que se pretende justificaruma antologia de poesia brasileira contempornea. Primeiro, por-que no jogo das relaes literrias, as controvrsias em torno daorganizao de antologias carta por demais conhecida. H sem-pre motivos, com razes maiores ou menores, para que os auto-res seleccionados e os no seleccionados, bem como os crticos eos leitores, ratifiquem ou subestimem o trabalho do responsvelpela colectnea. Segundo, porque tratando-se de uma antologiade poesia brasileira contempornea, no esperamos outro enre-do, pois o que ora apresentamos um recorte deste cenrio po-tico e mais especificamente de uma das regies geogrficas dopas, o estado de Minas Gerais.
Apesar das divergncias manifestadas nas opinies de poetase crticos, na poesia brasileira do sculo XX, possvel conside-rar-se trs linhas de fora, que se mantiveram at ao incio dadcada de 1980: a primeira, derivada da Semana de Arte Moderna,realizada em So Paulo, em 1922, caracterizou-se pelo esforo deactualizao da poesia brasileira em relao aos novos temas, for-mas e prticas em curso na Europa dos movimentos de vanguar-da; a segunda, por um desejo de conteno dos apelos das van-guarda propostos pelos modernistas; e a terceira, pelo experimen-talismo tcnico-formal do Concretismo.
Evidentemente, essas linhas sofreram matizaes que, ao mes -mo tempo em que fixaram procedimentos, possibilitaram a emer-
PREF
CIO
8gncia de traos distintivos de vrios autores. Na primeira linha des-tacaram-se, entre outros, Mrio de Andrade e Oswald de An drade.Deste, a gerao da chamada Poesia Marginal (final dos anos 1970)se apropriou do poema curto ou poema-piada, da linguagem inci-siva capaz de capturar os flashes do cotidiano. Na segunda verten-te, Ceclia Meireles e Pricles Eugnio da Silva Ramos recuperaramo tom elegaco de herana clssica. De modo particular, JooCabral de Melo Neto, includo nesta que foi chamada de Geraode 45, criou depois uma trajectria prpria, marcada por uma po-tica antilrica. A este, entre outros nomes, se referiram os mentoresda Poesia Concreta. Esta terceira linha de fora tem nos irmosHaroldo e Augusto de Campos e em Dcio Pignatari os articulado-res de uma potica em que palavra, som e imagem (potica verbi-vocovisual) combinam-se na construo do poema-objecto.
A ttulo de exemplo, pode-se dizer que as matizes dessaslinhas desdobraram-se em poticas de largo flego individual,como a de Jorge de Lima ou dos mineiros Carlos Drummond deAndrade e Murilo Mendes, a partir do Modernismo de 1922; ou ade Affonso vila, a partir do experimentalismo dos concretistas.Esse processo estimulou a manifestao de poticas que incli-nando-se mais para esta ou para aquela vinculao esttica ou,mesmo, rechaando esta ou aquela , forjaram um mosaico devozes na poesia brasileira do sculo XX. difcil, portanto, dese-nhar uma cartografia dessas vozes, j que de norte a sul do paselas ecoaram com feies prprias, atravs de nomes comoFerreira Gullar, Manoel de Barros, Carlos Nejar, Afonso Romanode SantAnna, Max Martins, Hilda Hilst, Thiago de Melo e tantosoutros. O facto que tcnicas, heranas estticas e ideolgicasmanuseadas mediante expectativas individuais vm marcando apoesia brasileira moderna.
Este painel teve sua traduo no contexto de Minas Gerais,onde poetas de diferentes geraes, para alm de trafegarempelas linhas de fora mencionadas (atravs dos j citadosDrummond, Murilo Mendes e Affonso vila, por exemplo), inter-feriram nelas para tecer sua prpria linguagem potica. Em fun-o disso, nomes como o de Emlio Moura, Abgar Renault, DantasMota, Henriqueta Lisboa, Las Corra de Arajo, Adlia Prado eAdo Ventura inscreveram-se com vigor na cena literria do pas.
Diante do exposto, a tarefa de organizar a presente antologia,numa aluso ao ttulo que a encima, converteu-se num desafiosimilar aos dos mineradores, cujo ofcio se nutre do brilho dometal precioso encontrado ou por encontrar. No caso da antolo-gia, o sonho do eldorado foi substitudo por alguns critrios que,salvo engano, nos permitiram tocar algumas pedras raras e tam-
9bm vislumbrar um veio maior, que o da poesia mineira e bra-sileira contemporneas.
Ao nos debruarmos sobre a produo mineira contempor-nea, tornou-se evidente que a escolha do(s) critrio(s) de selec-o dos autores deveria embasar-se em algum elemento vincula-do mais recente histria da poesia brasileira. Ou seja, era neces-srio procurar, no diversificado e original painel de (novos) poe-tas surgidos dentro e fora de Minas, aqueles cuja obra comeou aganhar destaque a partir da dcada de 1980, aps a proliferaode vozes relacionadas esttica marginal e, sobretudo, aps o cr-tico momento poltico vivenciado pelo pas, que colocou sua cul-tura sob o jugo e a censura do regime militar, entre 1964 e 1985.
Em decorrncia disso, seleccionamos para essa antologia aobra de poetas que reflectiram e tambm transformaram, na sub-til tessitura da linguagem, a riqueza das diversas vertentes estti-cas que os precederam. Procuramos destacar a pluralidade decaminhos trilhados pelos poetas, considerando no apenas a suaactuao como poetas mas, evidenciando, tambm, o modo comoeles estabeleceram a consolidao de um consenso crtico, para-lelamente aos seus processos de criao. Esse recorte nos parecerelevante, j que na actualidade a actuao do poeta e do intelec-tual no seio da sociedade reveste-se no s de aspectos relacio-nados a posicionamentos polticos, mas igualmente produode um discurso terico (muitas vezes estimulado pelas estruturasacadmicas) ou jornalstico, bem como organizao de eventos,espectculos e festivais nos quais reservado poesia e perfor-mance potica um espao privilegiado.
Para nos referirmos ideia da consolidao de um consensocrtico, baseamo-nos em alguns dados objectivos, que atribuemparticular relevo s obras dos autores aqui seleccionados, quaissejam: a incluso de poemas em outras antologias, as tradues epublicaes em outros pases (em revistas ou antologias), os pr-mios literrios, as crticas e as resenhas que apontam a originali-dade e densidade da obra, etc. Com evidncia, nada justifica total-mente a escolha de um autor em lugar de outro, uma vez queestamos lidando com um universo o da experincia potica atravessado, em geral, pela subjectividade. No entanto, comosempre ocorre em casos similares, prevaleceu a necessidade de sefazer um recorte e de se indicar alguns critrios organizadores afim de dar presente antologia uma configurao.
Considerados os pressupostos acima, encontramo-nos diantede um painel assaz rico quanto diversidade de temas e estilos.Os dez autores que aqui representam a nova poesia das MinasGerais revelam o seu rosto plural, um rosto to enigmtico e
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camuflado quanto as minas ocultas nas montanhas da bela paisa-gem brasileira. pluralidade desafiadora desse painel soma-se ariqueza do microcosmo de palavras e smbolos que compem apotica de cada autor.
Contudo, possvel garimpar e encontrar nessa diferenaalguns temas que perpassam, como uma coluna vertebral, a poe-sia mineira contempornea. E isso, talvez, por serem temas queesto presentes, desde a modernidade, na tradio lrica ociden-tal. Em termos gerais, a memria se perfila como um leitmotiv aoqual o sujeito recorre para extrair os elementos de uma histriapessoal construda sob uma perspectiva mtica. Nesse sentido arecuperao da mitologia um procedimento amplamenteempregue pelos poetas aqui apresentados para, ao se referirem auma histria e a um sujeito universais, edificarem a prpria mito-logia pessoal, nica e intransfervel. Uma mitologia porttil, medida humana, passvel de ser guardada num livro, num bolso,num verso.
Se a memria, por um lado, particulariza uma experincia defeio ontolgica, por outro, a representao do espao fsico(muitas vezes, um lugar no nomeado, mas identificado comoalguma regio de Minas Gerais) ou mental se universaliza, graas palavra potica. Isso ocorre na medida em que o aspecto regio-nal (a gente, a fala, a natureza e os factos de Minas) se abre paraa representao de um lugar mtico, universal, recm surgido docaos, mediado e modelado pela palavra criadora, tal como lemosna ltima estrofe do poema Vicentim, reparador de livros, deFernando Fbio Fiorese Furtado: e posso mudar em verbo/ at altima paisagem.
Outro tema recorrente, embora abordado de inmeras manei-ras nos poemas desta antologia, a cidade como lugar de passa-gem, de encontro e desencontro do indivduo. Uma vez mais,esse tema caro modernidade exibe nos versos dos poetas osseus flneurs contemporneos, sujeitos errantes que experimen-tam o estranhamento e o encanto. Essas vrias aproximaes cidade reiteram o facto dela se constituir como um lugar queengole e devolve outros espaos, reais ou mentais, um lugar noqual como recita o ltimo verso do poema Labirinto de RicardoAleixo o sujeito, custa de se perder, se reconhece. A solido,terceiro tema essencial, decorre ento da experincia urbana, masno somente dela. Ecoando o verso drummondiano mundo,vasto mundo, pode-se dizer que dele tambm se desprende umsentimento de solido. Nessa direco, os elementos da natureza(a pedra, a gua, o pssaro) so mensageiros desse infinito quealumbra e esmaga, com a sua potncia e beleza, o ser humano, e
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sugerem, principalmente na potica de Eustquio Gorgone deOliveira, Donizete Galvo e Wilmar Silva, o enigma de um mundoindizvel atravs das palavras.
A leitura atenta do conjunto de textos aqui propostos mostra-nos ainda uma grande abertura para o dilogo com as fontes lite-rrias mais variadas, ou seja, com vertentes culturais diferencia-das, privilegiadas por cada autor, como se ver a seguir.
Uma adaptao contempornea dos traos marcantes doBarroco, assim como a manifestao de um sentir expressionistaemolduram os versos de Eustquio Gorgone de Oliveira, fazendocom que sua poesia no seja classificvel dentro de nenhuma dasvertentes tradicionais que caracterizaram a poesia brasileira dosculo XX. O mesmo pode ser dito sobre a poesia de JlioPolidoro, na qual o tom coloquial e irnico disfara habilmente ofundo filosfico ou existencialista. Outro percurso instigante seobserva atravs da fuso entre o formalismo ps-concretista e aspreocupaes estticas e sociais caras a Ricardo Aleixo, numapoesia que deixa visveis as marcas da vanguarda, ao mesmotempo em que potencializa as ambiguidades e as possibilidadesde significao do seu discurso pessoal. Por sua vez, a dicocontida de Donizete Galvo se prope como um filtro que depu-ra e transforma o desprezo e a decomposio do corpo e domundo com os seus valores mais puros em matria potica.J a poesia de Maria Esther Maciel revela o intenso intercmbiocom outras linguagens artsticas, como o cinema e a pintura, natentativa de captar o paradoxo da vida, sintetizado claramente nopoema A voz e o espelho a partir de uma sugesto de Octavio Paz.O mundo figurado nos poemas de Fernando Fbio Fiorese Fur -tado exprime a densidade da histria individual e colectiva queconfluem para desenhar diferentes metforas do corpo, como seestas fossem uma segunda pele que concentra as linhas de umareflexo existencial e metapotica.
No caso da poesia de Edimilson de Almeida Pereira, poss-vel dizer que o autor reelabora aspectos da oralidade e da estti-ca barroca na qual os objectos, as palavras e os significados estoembutidos uns dentro dos outros, maneira das bonecas russasque esto encaixadas, cada uma contendo em si a outra. o sen-tido atribudo a um mundo engendrado por palavras e abertopara a existncia de outros mundos possveis. A poesia de IacyrAnderson Freitas explicita a procura, por vezes dolorosa, de coi-sas e sentimentos profundos e cotidianos que constituem a raizontolgica do ser humano que, frequentemente, se encontra exi-lado num tempo e num espao em estado de desmoronamento eque se agarra, desesperado, palavra e memria para salvar as
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sobras desse processo de desmantelamento interior. Por seuturno, preocupados no com a descrio dos objectos ou da natu-reza, mas com a apreenso do dilogo entre esses elementos e ocorpo-linguagem do poeta, os textos de Wilmar Silva resultamnuma inquietante leitura das experincias do homem. Quanto potica de Fabrcio Marques, o cotidiano apreendido com iro-nia, ou seja, a noo do dia-a-dia como o espao e tempo dosacontecimentos previsveis sugerida e esvaziada atravs da pala-vra potica. A esse processo superpe-se um cotidiano cerzidocom pequenas iluminaes expressas atravs de uma linguagemcoloquial.
Como salientamos anteriormente, o ofcio da minerao incerto e desafiador, porque nos coloca aqui na condio de lei-tores diante de um campo de experincias poticas em parteconhecido, em parte a ser desvendado. Essa tenso consiste numdos mais fortes apelos para que se possa pensar a poesia minei-ra e brasileira contemporneas como um territrio aberto a novosdilogos e experimentaes. Oiro de Minas , portanto, um con-vite para que os leitores compartilhem uma experincia crtica eenriquecedora, ao longo dessa viagem potica s Gerais.
Juiz de Fora, Minas Gerais, 05 de Novembro de 2007
Eustquio Gorgone de Oliveira
Donizete Galvo
Jlio Polidoro
Ricardo Aleixo
Maria Esther Maciel
Fernando Fbio Fiorese Furtado
Edimilson de Almeida Pereira
Iacyr Anderson Freitas
Wilmar Silva
Fabrcio Marques
Sobre os Autores
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OIRO DE MINAS
ND
ICE
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Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
Com banhos de ouro
Nas cordas vocais as cantoras
Saem de si para a cidade.
Rebecas enterradas na garganta, obos
Alguns cancerosos a primazia
Da matria sobre o tempo. Tempo
De soobrar nos ltimos veios-veios
Do rio chamado ouro, tempo
De tocar nas procisses em harpa e
Comer a rom vermelha da cerimnia.
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Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
a poesia vai sendo assim
escrita, cardo-santo no
estmago. Aos poucos,
outra luz na noite,
azul que costura o corpo
das crianas. Em glebas,
os fonemas se encontram,
os amargos e os mais doces.
A poesia vai sendo assim
escrita. Enquanto
houver tardes, mbulas,
cada palavra ser guardada
em leos santos.
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Fugir de cidade em cidade.
no adianta.
Com ferraduras de talco
deixo marcas.
Todos sabem onde estou:
verde debruado em verde,
branco em coradouro branco.
Ruas vales ravinas,
tabuleiros de abraos,
abrigo pegadio?
Todos sabem onde estou:
azul em covas de azul,
amarelo revezando amarelo.
Atrs de decalques
impossvel ficar.
Em uma janela da sala
muito visvel.
Devo continuar sempre
repintando as telas.
Todos sabem onde estou:
na flor vermelha, de cinza.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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AMOR METLICO
Sei que quando te amo
no h falsos sudrios
e
estrelas maiores do cu
amamentam as pequenas
e
anjos regentes do mundo
desfazem a programada via-sacra
e
os sonhos-assaltantes se capitulam
como dois mosteiros vazios
e
a pia batismal purifica
o desejo vindo do corpo
e
santos refazem os milagres
devorados pelo tempo
e
os cabelos sobem no barco
que desce entre os espermas.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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NOVOS POEMAS
No me aterroriza a tua falta
mas o vazio das palavras.
Da ausncia posso retirar imagens
e pr nos carretis
os abraos.
Das palavras, tudo em vo.
Um pssaro doente, voando,
diz mais do que eu.
Por isso tua ausncia
o eclipse menor.
Ela pouco me fere.
uma cidade inteira
que, imvel, me persegue.
As palavras, sim, inflamam o corte.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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As pedras no indagam.
No silncio, guardam definies.
Sem a pegajosa angstia,
o tempo passa por elas.
Os sinais das chamins
cristalizam nosso inverno.
Cada qual em seu brido,
enredamos a vida com palavras.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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MS DE MARIA
Aquela igreja uma mulher que no sai da praa
E toda vestida de branco e azul
Bate seus brincos chamando os cristos.
Todos respeitam seus tijolinhos e bancos,
E dentro dela a Virgem verga-se do teto
Como uma fruta madura e viosa.
A orbe se assusta e acalma, serpenteia,
E o povo parece um grande louva-a-deus
Mirando o altar. Sim, a igreja
uma fmea cheia de anjos, caiada,
Estufada de msica, granulada,
E alimentando a solido dos homens
Pela placenta colorida das vidraas.Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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A SOLIDO
A solido ama
coraes completos.
noiva que prope
tachonar a liberdade.
Visita qualquer um,
criana ou adulto.
Brota nos travesseiros
como flor de macela.
E muitas vezes arma
seu camarim num tumor.
a noite terrvel
que se adere ao sonho.Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
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Atravesso a cidade.
Vejo crianas no trio das escolas.
Dentro dos coretos,
redemoinhos de nibus.
Sigo meu corpo, canoa.
Apenas uma vez a solido
usou meus cabelos como remo.
Quase imergi entre o povo.
S a lngua me serviu de leme.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
24
Os dias se aproximam
de maneira intermitente.
Se houver desvo, h morte.
Rosas propositais insurgem
contra as rosas naturais,
e espadas-de-so jorge duelam:
as que ficam nos lates
contra as que seguem o corpo.
Amarelssimos cravos.
Nesta fresta dos dias
eles se apegam a ns
como arames farpados.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
25
Descanso no pequeno aposento
e j no me cobro respostas.
A respirao brota em meu peito
como flor que esteve sem gua.
Ouo rudos que no ouvia
enquanto estava desperto.
No recolhimento me nutro:
despensa onde fica o milho.
Durmo sobre ele, nele me perco.
Tambm sou o cereal perecvel.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
26
presa em flor de tijolos
o quarto tem seu perfume
longe das ruas e praas.
alli os lenis se abrem
para o bule e a loua genital.
no Ribeiro a saudade
fermenta fora
do mapa.
a solido tanta
e abandona os corpos
na fuga.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
27
eles se abraavam na sala
como cobras que se picam
dando filhos de pedra
aos alicerces das casas.
em plena luz do dia
caranguejos rficos
dormiam em seus braos.
quando ela o deixou
tornou-se uma montanha
para a solido escavar.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
28
rosto claro feito a pincel.
em dezembro se apegou luz
como as parasitas do parto.
ps o verde pssego no ventre
e no bere o nome de sua av.
na messe e nos meses de fome
que o amor esteja ao teu lado
e a felicidade no seja tola
de ser apenas palavra.
Eust
quio
Gorg
one
de
Oliv
eira
29
SILNCIO
De pedra ser.
Da pedra ter
o duro desejo de durar.
Passem as legies
com seus ossos expostos.
Chorem os velhos
com casacos de naftalina.
A nave branca chega ao porto
e tinge de vinho o azul do mar.
O macio da rocha,
de costas para a cidade
sete vezes destruda,
celebra o silncio.
A pedra cala
o que nela di.
Doniz
ete
Gal
vo
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ITINERRIO
Revolva com sua lngua
os lenis de areia:
ergue-se a cidade submersa.
Deixe que a palavra morda
a outra palavra e salte,
exibindo guelras e escamas.
Doniz
ete
Gal
vo
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QUEDA
No outono, a carne soobra.
As mas do rosto cedem
e a testa expe seus vincos.
Os lagartos procuram as rochas
e pedem sol para suas couraas.
Vista da janela,
a cidade das cinzas
provoca cansao e nusea.
O mar de pedra soterra
a rvore dos brnquios.
Doniz
ete
Gal
vo
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MENOS
Voc no v o homem, o pssaro, a mulher no gesto de Mir?
Sinta o que ele traa: a tela pulsa, a boca murmura, o sexo arde.
Voc no v graa no zen falado de Joo Arcanjo?
Oua o que ele anuncia: do sopro exato surge a geometria.
No mundo das pedras lisas no cabe a dor.
Doniz
ete
Gal
vo
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INVENO DO BRANCO
all this had to be imaginedas an invisible knowledge
Wallace Stevens
O tanque o avesso da casa.
A rebarba.
A ferrugem tomando conta da boca.
O tanque a parenta decada,
que machuca os olhos das visitas
com suas carnes rachadas.
O tanque onde se lava o coador
e o p de caf de seguidas manhs
desenha uma poa de gua preta.
Uma arraia-mida,
ervas e craca e limo,
flora sem-vergonha,
infiltra-se em suas paredes.
beira do poo,
algum imaginou copos-de-leite.
Bebendo a umidade,
em verde e branco brotaram.
Reiventados pela distncia,
erguem-se vvidos,
mais brancos que o branco,
artifcio de vidro.
Recm-nascidos.
S porque eles existem,
o tanque e seu corpo saloio
foram salvos do esquecimento.
Doniz
ete
Gal
vo
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DA NATUREZA
o berne
plantado
no lombo do boi
estremunha
ao ser cutucado
com leo queimado
o verme
solapa
a polpa da goiaba
estremece
na fruta sem forma
cada no cho
o germe
gira
feito parafuso
que fura a casca
em verde tremula
folha ao vento
o verbo
entranha-se
na carne
ganha corpo
faz dos msculos
seus vocbulos
Doniz
ete
Gal
vo
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RETCULA
Do corpo que teve,
se um dia o teve,
no h mais sinal.
A cada fotograma,
a memria o distorce.
Retorce lembranas.
Superpe figuras.
Entorta os membros,
acentua vincos.
Amplia manchas.
Msculos em magenta.
Ossos em amarelo.
Superposio de formas
em filme fora de registro.
Do primeiro corpo,
no percebeu o sopro
da carne ainda fresca.
Quando se deu conta,
o momento passara.
Restaram: esse esgar,
essas raias de sangue,
esse olhar que se assusta
todas as manhs
com o borro no espelho.
Doniz
ete
Gal
vo
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TAPERA
Deixe que os morcegos
ocupem o forro
e as caixas de marimbondo
tomem conta dos seus cantos.
Deixe que a macega
suba pela escada at o alpendre
e prolifere nas rachaduras do reboco.
Deixe que o musgo
cubra o tampo da cisterna
e que os escorpies
armazenem veneno sob os tijolos.
Nada di mais do que a lembrana da casa,
encravada como um prego
que lateja na memria.
Doniz
ete
Gal
vo
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LIVRO DE CABECEIRA
Ri as unhas,
os cantos dos dedos
e os ns da mo
at que doer
seja uma forma
de esquecimento.
Lanha-se com
caco de vidro
cada pedao da pele
para que se auto-revele
a urdidura de cicatrizes,
incunbulo, xilogravura,
esgar de mscara:
a dor como escritura.
Doniz
ete
Gal
vo
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MAPA
ama o inominadoo perecvelo particulara coleo de cacos de louaos arreios e os antolhos das mulasa caixa de ferramentas do avo cavalo baio com o olho cegoa luz do sol sobre as encostasa dureza das macabas
nomeia as coisas que pedemo nascimento pela palavraescrita que se transformaem outra escrita
geografia de migalhasdicionrio pessoal de falasditas na labuta concretasem reconstituir um mundocuida de um retalho:o fragmento pelo todosenhor de restolhos e rebotalhosinventrio de perdasrol de inutilidadesvasos vazios e quebrados
sem esperana sem consolo,com a pacincia de um boisegue tua trilha de erros:rastro de palavrasmarcas da passagem
serpentear de frases
mapas de dor e descontentamento. Doniz
ete
Gal
vo
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LEMBRANA DE SEVERO SARDUY
Quando se fere
com a tesoura
a haste
da manga,
escorre
o lquido,
visco
oloroso
que prenuncia
nas ventas
o gozo.
Antecipao
do paraso
na tarde calorenta
do suco de manga
gelado
que desliza
pela garganta.
Doniz
ete
Gal
vo
40
OS HOMENS E AS COISAS
sem os objetos
o corpo no tem gravidade
diapaso
prumo
o corpo precisa de contrapesos:
a mesa
a porta
a cama
cavidades onde lana seus parafusos
sem os objetos
o corpo se perde nos buracos
sugados pela mente
dispersa-se em crculos centrfugos
o corpo necessita dos objetos
para que estes confirmem
sua existncia em fuga
Doniz
ete
Gal
vo
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MUNDO MUDO
salta, mundo,
desse caroo
de pedra
em que ests aprisionado
toda a rua termina
em muro
toda palavra representa
uma falha
salta, mundo,
desse caroo
de pedra
vence
as camadas de aluvio
para que aflore
um gro
um broto
um grito
para quem est exausto
de auscultar teu corpo
ferido
Doniz
ete
Gal
vo
42
MARGEM
o rio morto
o rio ftido
o rio podre
o rio lodo
o rio negro
espelho que reflete
prdios e carros
trilhos e latas
o rio e a memria das guas
margem
herldica
esttica
uma gara
ergue
para o cu
a hiprbole
do seu alvo
pescoo
Doniz
ete
Gal
vo
43
h um furo
no bolso do palet
to fundo
que di
espio de longe
o tempo que passa
e no consigo
entender
tudo se gasta:
tecido, sonho, traa
e o vazio
to fundo
que diJ
lio P
olid
oro
44
me, perdi vossos carneiros
no sei por onde
eles se foram
nem percebo
o novelo
que me envolve,
mas vejo a noite, me,
cheio de medo
a noite
varreu dos olhos a pureza
o pastor tornou-se rs
de outro rebanho
perdoai, me,
no so meus
vossos carneiros
Jlio
Polid
oro
45
Sou eu mesmo meu parente
e me vivo a modo vrio, permanente.
Sou eu mesmo meu parente
nas ruelas e cidades.
E comporto muitos corpos
que fundem o nico,
a nica satisfao,
o nico desejo, que permanecer.
Sendo parte desse sangue
sou meu sangue
e, sendo parte de meu sangue,
meu parente seu sangue;
mas eu, como parte de outra parte,
no sou parte,
enquanto meu parente,
como parte do que sou,
me sendo um tanto (j) me pertence.
Jlio
Polid
oro
46
Eu me declaro morte
e a pergunta que no fao
saber se ainda permaneo.
Como pessoa ou despessoa
sou extremo.
E por declarao movo dois plos.
De um lado, sou a morte,
do outro, sou a vida.
Mas, o que significo
como centro de dois nortes?
A razo no me explica
porque aconteo junto a ela
e, gnio ou no, a supero.
Porque, estando alm de mim,
sou mais do que posso
e me adiantando, permaneo.J
lio P
olid
oro
47
efmero
sou pouco
quero mais longe
o arco do meu soco
perto da travessia
em que pomos
o olhar
efmero
sou parco
algo quer seguir alm de mim
resistir o que no posso
atravessar meu corpo
para que meu corpo o atravesse
no quero ser efmero
no arco do meu soco
Jlio
Polid
oro
48
INDECISO
s vezes meu desejo
no notar que tudo passa
e que envelheo na medida que envelheo
Por vezes meu intento evitar
que a busca de um espao me enlouquea
que todos descubram
que devo dinheiro aos inimigos
qu saibam que nunca tive namorada
s vezes eu me sinto muito bobo
conservando os costumes de famlia
e comprando queijo na mesma padaria
s vezes o provvel do poema
no fosse essa carncia
que sinto ao dizer que sinto s vezes
Jlio
Polid
oro
49
MOSAICO
Dissociadas as palavras
e seu desencanto.
Ningum responder
pela cor do dia.
Todos vo ficar embaraados:
(a memria
na curva
de ns mesmos).
No se erga essa mo,
o grito infirma.
No ptio de outra manh
daremos melhor desculpa.J
lio P
olid
oro
50
persigo, da fala, a plena expresso
da sala nunca aberta, o corredor
que nos conduza ao Verbo sem autor
e que traduza as coisas do poro.
mas como seduzir a seduo
e como, sendo ovelha, ser pastor,
se a fala, como falso condutor,
tem muitas e nenhuma direo?
Jlio
Polid
oro
51
eu sei, mas por saber, sei que sou parco,
tudo que no tenho o que perco:
a morte se aproxima e fecha o cerco,
descreve uma espiral, desenha um arco.
sou para o oceano menos que um barco,
me sinto sobre a terra qual esterco;
fecundo esse fogo de que me acerco
com o ar que se sufoca sob o charco.
eu sei e por saber sei que sou pouco,
perdido, navegando como louco,
procuro por um cais que no conheo.
eu sei, pois por saber sei que pressinto:
no gesto de perder, que no consinto,
me enleia alguma teia que no teo.
Jlio
Polid
oro
52
a alma vem nomear as coisas:
noite, lobos, uivos para a lua
tempo
essa arena sem touro
orion segura o nada
trs marias
sobre a terra
o corpo a curva
longe, o verbo nascituro
rompendo a distncia
e a boca
abastada de espuma
e rano
Jlio
Polid
oro
53
MINARETES DE ISTAMBUL
Muezim arranha
o cu da mesquita,
xeques do jardim de Rumi.
Mul brande
o rosrio da sapincia
em nosso susto.
A luz
arrosta a indiferena.
Minaretes de Istambul.
Sonhar acordado:
por dentro,
o lado de fora
azul.
Jlio
Polid
oro
54
PERTENA
o que falta
identifica
o abandono
afasta
o contingente
estrangeiro
segue, pois, a no escolha
tua nau suspensa
no bordejo
o que falta
expressa
no sentena
veleiro
a deslocar o vento
Jlio
Polid
oro
55
RELGIO
o tempo
passa e sobrevive
o ip s idia
do que foi
daquele lado
um outeiro sobrepe-se
a outro
e outros
o monculo
mais gasto que as horas
v mover-se a engrenagem
dispensa
o arbtrio do olhar
sem escolha
o silncio
gira seu ponteiro
Jlio
Polid
oro
56
GEOGRAFIA DO ABRIGO
a geografia do abrigo
outro ngulo da ris
os bondes no mais
aponto o corpo que passa
e no vemos
de mos dadas
o cone nos leva ao labirinto
o abrigo isto:
mechas
na esquina do quarto
insetos colidindo
com a poeira
nesta geografia
o olhar conspira
nova perspectiva
Jlio
Polid
oro
57
LAVA
Meianoite que no passa. Nervos
saltando e estes sinais de inferno:
o disco emperrado da melancolia,
a curva
ascendente da tua ausncia
e o grito que no sai
lngua morta ,
que se desmancha dentro,
lava.
Meianoite e um quarto.
Ric
ardo A
leix
o
58
POTICA
Aprendi com Valry
um pouco disto que fao:
Eu mordo o que posso
(palavra, carne ou osso)
Me acho
me acabo de vez
me disfaro
Ric
ardo A
leix
o
59
O ANJO
V i , e n f i m ,
o a n j o , c a r a a
c a r a , m e u i g u a l
( n o s e u
c o m e o , s e u f i m ) ,
m e u o u t r o ,
o d e a s a s l i m -
p a s , o q u e q u a n t o
m a i s r o t o
m a i s i n -
t e i r o d e n t r o
d e m i m .
Ric
ardo A
leix
o
60
OUTROS, O MESMO
O c o r p o ,
e s s e t r a p o .
O r a , P a s c a l ,
p o r q u e n o
e s s e t e x t o ?
P e n s e b e m :
p o d e r s e r
o u t r o s , o
m e s m o s o b
r e o u t r o s
- u m
p a l i m p s e s t o .
Ric
ardo A
leix
o
61
TRVIO
v a z i o a t o
f u n d o
c r i s p a d o n a
t r e v a
m a i s u m
d i a d e s
l i z a p a r a
d e n t r o
d e u m
d o s t r s
c a m i n h o s
s e m v o l t a
Ric
ardo A
leix
o
62
JOO
n o i m p o r t a
o s a m b a .
t e m s e m p r e
u m s a m p l e
d o l t i m o
i n s t a n t e a n t e s
d o m u n d o
c o m e a r d o n a d a .
n e m i m p o r t a
o m u n d o .
s e m p r e
o m e s m o s a m b a
e - e m g l i s s a n d i ,
d a g a r g a n ta
a o s d e d o s -
a q u e l e s i l n c i o ,
a q u e l e n a d a
s a m p l e a d o .
n o i m p o r t a
o
Ric
ardo A
leix
o
63
BISPO DO ROSRIO
quem fez e refez
cem vezes o
caminho do mundo
at antes
cem vezes na
cabea o longo
trecho entre o
mar e o
cu
quem re fez o
caminho da perda
com seu manto
de
ver deusfilho
Ric
ardo A
leix
o
64
DOIS
dois irmos no comeo. o que sabe o
caminho e o outro: dois. e no h
retorno. dois irmos desde nunca. um,
o que v e conta. outro, o que ouve.
dois. no se separam. por onde passam,
o mundo: o corao de um pssaro,
desvios, carcaas de antlopes, cidades
riscadas do mapa, o dorso tigrino de um
pressgio, o tempo mais velho, um deus
trocando a pele. dois irmos ainda agora.Ric
ardo A
leix
o
65
CINE-OLHO
Ummeninono.Eramaisumfelino,umExuafelinadochispandoentreoscarros-umpontoriscadoalasernanoitederuacheia-aliparaosladosdo Mercado. Ric
ardo A
leix
o
66
ELA AQUELA
ela
aquela
noite
no
falava
(ouvi-la
era
ouvir
asas
- as
de
uma
serpente
que
as
tivesse),
voava
Ric
ardo A
leix
o
67
CONFIDNCIA
Prefiro a paciente
proeza das traas,
meu rapaz,
aos versinhos
bem traados
dos quais
te mostras capaz
(asspticos e srios
como os de
ningum mais).
Ah! Ler-te
penetrar na paz
dos cemitrios.
Ainda respiras, mas
j se entrel,
junto aos ttulos
dos teus livros,
os dois precisos
vocbulos
(Aqui jaz)
com que, um dia,
te saudaro os vivos.
Ric
ardo A
leix
o
68
MQUINA ZERO
Quarto dia: entendo que o que preciso, se q
uero mesmo continuar a perambular com alguma chance de xito p
or uma cidade ( duas ) como Berlim, de sapatos de largo flego. Caminho ( penso e
nquanto caminho ), permevel a tudo: ao frio ao sol cortante, s crianas t
urcas com seu comrcio informal de brinquedos usados, b
eleza sem rumo da adolescente que ( longas pernas abertas sobre um p
rosaico selim de bicicleta ) cavalga o c
omeo da tarde, aos grafites que dariam belas fotos, Topografia d
o Terror, s runas, ao rasta que me sada ( R
asta ! ) na Wilhelmstrasse, s lascas do Muro na vitrine da pequena l
oja, ao amarelo-zoom do metr a
pontando na curva antes do teatro,
Histria, Ric
ardo A
leix
o
69
LABIRINTO
Conheo a cidadecomo a sola do meu p.
Esprito e corpo prontospara evitar
outros humanos polciascarros nibus buracos
e dejetos na caladaincorporo hoje o Sombra amanh
o Homem Invisvel sexta noite
o perigoso Ningume sigo.
Como os cegosconheo o labirinto
por pis-lopor t-lo
de cor na ponta dos ps maneira tambm do que
fazem uns poucoscom a bola
num futebol descaloqualquer. Conheo a
cidade toda (a mnima dobra retas cada borda
curvas) e nela custa de me
perder mereconheo. Ric
ardo A
leix
o
70
A UMA (OUTRA) PASSANTE
est feito :
ao meu
olhar ( o
olhar no
dobra esquinas )
agora s
resta
dobrar
a esquina
ou entoRic
ardo A
leix
o
71
AULA DE DESENHO
Estou l onde me invento e me fao:
De giz meu trao. De ao, o papel.
Esboo uma face a rgua e compasso:
falsa. Desfao o que fiz.
Retrao o retrato. Evoco o abstrato
Fao da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lpis ou giz
onde estou no sempre
e o que sou por um triz.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
72
PAISAGEM COM FRUTAS
Duas peras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia verde
e o vento tem cores provisrias.
Sobre o muro
um pssaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra
Ele sabe
que ningum sabe
em que azul
ocultas
teu absurdo.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
73
NOTURNO
a T. S. Eliot
O dia noite no poema:
Sombras, pedras, luas secas
encobrem a estao das flores.
Sobre o deserto
memory and desire
ainda restam:
ecos entre as cinzas
deste verso.
Will it bloom this year?
Na terra triste do poema
enterro o fim e o infinito:
me fao silncio, eclipse.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
74
OFCIO
Escrever
a gua
da palavra mar
o vo
da palavra ave
o rio
da palavra margem
o olho
da palavra imagem
o oco
da palavra nada.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
75
MANUSEIO
Tpidas
essas mos
que divagam
devagar
por meus relevos
bvios
e demoram
fundo
no obscuro
ponto
onde o corpo
se abisma
e silencia,
absurdo.
devagar
por meus relevos
bvios
Mar
ia E
sther
Mac
iel
76
SOBRE UM FILME DE WONG KAR-WAY
O corpo e seus possveis.
O dentro que, na pele,
vira flor.
Os cheiros, a memria
do que, de to breve,
no fica
seno como sombra
lquida
quase ctrica
desse amor.M
aria
Est
her
Mac
iel
77
ECLIPSE
A lua desliza
sob as sombras
do sol
que no h:
luz de escuros
vu para o olhar
que no v
seno
a cor lils
da noite
que reluz
num verso
de luard.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
78
DO CORAO DO PAI
O corao do pai fala
O corao do pai falha
O corao do pai cala
O corao do pai pra
O corao do pai passa
a limpo o corao
da filha que fala
por um fio.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
79
BLACKHEATH
A poesia me chama entre as rvores
de folhas incompletas.
O vento frio, apesar de terno.
Corvos mancham o azul sem peso
desta tarde que no comea.
O trem tambm me chama.
E no vou.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
80
AMOR
Na vspera de ti
eu era pouca
e sem
sintaxe
eu era um quase
uma parte
sem outra
um hiato
de mim.
No agora de ti
aconteo
tecida em ponto
cheio
um texto
com entrelinhas
e recheio:
um preciso corpo
um bastante sim.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
81
CLANDESTINIDADE
Permanece em mim
como um segredo
e que ningum escute
teu silncio na minha boca
nem a linguagem de teus olhos
que em mim se inscreve
como poema
Torna-te clandestino
em meu pas sem nome
e desenha em mim
o teu enigma
teu reverso
e teu verso sem traduo
Te exila em minha teia
me define com tua senha
perenizando em meu corpo
o teu mistrio
entre cortinas,
no refgio exato dos lenis.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
82
DESTERRO
Desabitado o corpo
resta a sombra
do anjo sem nome
O reino do longe
aqui: na terra
insone, onde a pedra
consome a falsa raiz.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
83
A VOZ E O ESPELHO
(sobre um paradoxo de Octavio Paz)
Tu presencia me deshabita:
saio a esmo
sem medida do mesmo
no ermo de mim:
fao-me diversa
convexo-me em ti
no reverso
onde me perco
revejo-me, reescrita
e recomeo, inversa
embora a mesma
mas ao medir-me
no mais te vejo
e no instante
do espelho finito
reflito:
tu ausencia me habita.
Mar
ia E
sther
Mac
iel
84
CONTRATO
Sombras que conheo:
Confio a vs
o meu excesso
o nome avesso
que me empresto
a imagem vria
que me dei.
Viajo ao longe
do que sou, alm
do meu espanto
Levo a face
deixo o espelho
e seu reflexo
Em vosso rosto
deposito
o meu assombro
Mar
ia E
sther
Mac
iel
85
O CORPO E AS CIDADES
De quantas cidades estive
(e no digo as que, de passagem,
guardei apenas uma rubrica
e o rumor do jornal dormido, das cidades
nem aquelas em livro escritas em geral
ou contrabando dos amigos
em cartes-postais e souvenirs),
poucas vestiram este corpo,
camisa feita de encomenda,
sem rugas, pences, rebordos.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
86
Embora me sirvam de abrigo,
dos cenrios s personagens,
forneam o de que preciso das cidades
para um plgio de Pasrgada sob medida
ou minha taca de bolso,
das cidades entre parnteses
(neste poema ou na memria),
nenhuma desconhece a rgua,
o trao do corpo que as escreve,
escreve como quem se entrega.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
87
De quantas cidades estive,
Diamantina tem o tamanho
do corpo com que se ama e vive, de Diamantina
com folgas e bolsos largos
para acolher-nos no regao.
Tem os olhos na altura do homem,
e ruas que arregaam as mangas,
e ptios de pssaros destros,
e capelas que erguem as saias
para deixar fugir o cu.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
88
AV DEPOIS DE MORTA
A av ainda rega o canteiro
onde mirraram os brinquedos.
Mesmo morta ainda
ralha com a tempestade
que escondeu os meninos
em outra idade.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
89
VICENTIM, REPARADOR DE LIVROS
Fui muitos antes.
Desta pequena queda,
um corpo oblquo espera
mapa ou sentena.
Da histria me desfao,
rascunhando uma rosa
nos obiturios.
Erratas tambm recolho
com mos que desconheo:
a linhagem do homem
ningum sabe.
A limpo e a luto passo
livros, desertos, cidades
os hspedes
em frases demudados.
E posso mudar em verbo
at a ltima paisagem.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
90
CAPRICHOS BIBLIOGRFICOS
Livro s existe no plural.
De modo que no h como abrir
um nico, sem com isso outro,
e assim acionar a espiral
que, par em par, outros abrir;
o mesmo que a mo dentro do bolso
surpreendesse outro e, nesse um, outros
bolsos em seqncias infinitas,
semelhana de uma dzima;
e em cada qual houvesse chaves
de cofres h muito saqueados,
de gavetas que nenhuma abre,
da cidade depois dos brbaros,
porque chegamos sempre tarde.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
91
Como dissera versos antes,
para o livro chegamos tarde,
cedo demais para o no-livro;
na estante um espelho inimigo,
esse olhar s possvel quando
o silncio entre amantes queda,
e o mnimo rumor tanto
que, no corpo, o corpo analfabeta.
Livro como, em outros, a morte
se abre para ensaio ou trgua;
livro mapa, mesmo conforme,
onde o territrio desconcerta;
quando no h enigma algum
nem termo, incio ou promessa.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
92
CADERNETA DE CAMPO
1.
a lio onde terminao professor como um mortoa ss com suas floreso professor de semiticaque olha a prpria sombraenfim atravessar a porta
como um livro no labirinto
2.
(saber demais desconfia)de menos saber se fazo que ensina a esquecero nome o nmero o texto
uma rvore sem razes
3.
abrir um livro ampliar a noiteem que um professor de literaturapersegue pequenas verdades policiaisseqestra-se ao espelho ao sentidomesmo porque ele o assassino
mas no o autor dos falsos indcios Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
93
DEAD LETTER
percorr-la nunca por inteiro
de forma que permanea
um cadver sobre a mesa
centro mvel espreita
do stimo selo de indcios
do que era tua letra
a fuga a febre o gasto
andar o crculo
s e desarmado
excesso de olhos e unhas
como um gato vigiando
a sombra do pssaro
escrever-me tua vingana:
palavras so diques ainda
quando dizes todo o oceano
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
94
Mesmo os tios alfaiates desconhecem
a fazenda e o fio com que tecemos
ou nos tece essa camisa adulta
de esquecimento, os bolsos vazios,
a no ser por uma pgina
da tabuada de menos.
Intil postular o priplo
da bicicleta alem:
os pedais riem deste corpo
sem rodas e sem rumo,
pedalando para o caos.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
95
A CASA
na rua da Casa no passe.
o futuro ser pstumo
a fachada da Casa no olhe.
os olhos sero outros
no calada da Casa no pise.
a terra ser queda
os frutos da Casa no coma.
dentro as paixes disparam
aos viventes da Casa no fale.
qualquer palavra rendio
os cmodos da Casa no visite.
os gatos enlouquecem de tanta beleza
na Casa eu vivo.
os ausentes so minha famlia
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
96
DANAO
Bom mesmo
era morar num lugar
de nome bonito
Nossa Senhora dos Remdios,
So Tom das Letras,
Dores do Turvo
cultivar violetas e samambaias
e fazer do itinerrio dos peixes
minha mstica.
E no
ficar polindo os ossos do mito.Fe
rnan
do F
bio
Fio
rese
Furtad
o
97
COMO DESFAZER BAGAGENS
Como quem de viagem
demora a acomodar-se
ao clima, ao horrio,
s vogais de outra sintaxe,
tambm escrever estranha
quando muda de paisagem.
Como quem de viagem,
o que carrega apouca
a dicionrios, passagens
e alguma muda de roupa,
tambm escrever exige
aprender a descartar-se.
Como quem de viagem
pouco ou nada decifra
do manuscrito-cidade
(mal soletra as esquinas),
tambm escrever ensina,
menos importa encontrar-se.
Como quem de viagem
evita, quando sabe,
os apelos do fssil,
do que fausto adrede,
tambm escrever prefere
o que se d sem salvas.
Fern
ando F
bio
Fio
rese
Furtad
o
98
Como quem de viagem
sabe o prazer de andar
sem endereo ou idade,
com a roupa amassada,
tambm escrever comparte
esse corpo sem abas.
Como quem de viagem,
para rever a janela onde
lhe sorriu uma criana,
o embarque adiaria,
tambm escrever alcana
os vestgios desse dia.
Como quem de viagem,
das malas faz relicrio
de rostos, rudos e mares,
de balas, livros e cidos,
escrever tambm seria
como desfazer bagagens.Fe
rnan
do F
bio
Fio
rese
Furtad
o
99
NA CASA DA PALAVRA
os homens que falam poeira cad sua misria
comentam o motivo de falarem poeira cad
sua misria.
Poeira cad sua misria no s poeira cad
sua misria: mas o ovo de outras coisas.
Os homens que falam poeira cad sua misria
se vestem de poeira cad sua misria. Eles se
conhecem desde-o--do-mundo pela msica
que poeira cad sua misria faz neles.
O modo de falar poeira cad sua misria deixa
a lngua no sal.
Os homens que falam poeira cad sua misria
treinam de us-la. E nunca repetem o que dis-
seram no camaleo poeira cad sua misria.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
100
O JOGO DO CLICE
Um homem s morto v o besouro da palavra,
mas o vivo no seu terno domingo que pode
negociar. Quantos chegaram das oraes e,
lagarto, a compreenso sua do cu punha cabe-
los brancos na manh.
O vivo e o morto devem conhecer a misria do
vento, cada um a seu tempo. Assim irmos vo
desejar o abrao das palavras.
O que esperar do esqueleto que pretende ser
um texto? E no vivo algo espera? O corpo da
mulher teve graas porque sonhou na gua. E
c, no h o morto nem o vivo mais certos da
palavra.
A diferena no que fazem: um v o besouro
da palavra, o outro negocia.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
101
O CORPO
Ainda est l, apesar dos anos. De um lado a outro,
desvia-se das pedras, toca as margens cada vez mais hu-
mano. A roupa se desfez, os sapatos, o que havia nos
bolsos. Nada restou, mas o corpo flutua alheio chuva,
ao vento, vingana. H muito nos povoa, suas rugas no
pertencem ao tempo de seu sacrifcio. So de agora, nos
interrogam. Que fazer desse corpo que no sabemos de
onde veio e se instalou em ns?
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
102
SLABA
Outra lngua alicia o palato, no se quer instrumen-
to de suicdio. No pode ser engolida para selar o desejo.
para uso desobediente, sendo mais livre quanto mais
nos pertence. A essa lngua no se veda o devaneio, uma
vez afiada a vida tudo o que se queira. No est na boca
e nela se arvora. Testa o sentido, duvida de si mesma. Vai
ao baile, est nua ao meio-dia. No lngua do suplcio
nem do vexame, desenrola os signos e se pronuncia.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
103
EXERCCIOS
do sangue
Antes da circulao, o desprendimento, como se a
histria fendesse em queda livre. Depois, apalpar a
rugosidade do labirinto.
do luto
O brao remove um chinelo dentre a herana. A
tarde golpeia. No pela falta do par, mas pela curvatura
que torna o calado estranho aos ps.
da cegueira
A lama uma rgua de outra preciso. Pelo tanto
que a roda afunda, d a saber o peso dos bois e se esto
firmes, quando a derrapagem o piso.
da alegria
O dente o ponto agudo do assobio. Sua sibila-
o submerge na caverna. Mas, aberta a boca, o dente
expe a pedra de amolar.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
104
ARCA
Para conter a sete chaves d-se a arca.
Senhora de si, contra cupins e traas,
contra a ameaa dos anfbios. Maior a do
esquecimento. Passando de casa em casa,
de um parente a outro atinge a inrcia de
jamais ancorar. Embora seja esse o plural
da vida, alguma raiz reclama seus gumes.
Arcas so abraos de vegetal e homem,
contrato de gravidez. Uma vez no rebojo
se multiplicam em alarmes. Em pugnas
e morte, em lenis enxovais, em minas.
Para exibir a sete chaves o invisvel s
mesmo a arca e a famlia que nos habita.Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
105
A GRO SECO
O mundo ainda no comeou. Chifres, aranhas,
miolos so vrgulas de um corpo que no se mostrou. E
no sabemos quando arrear as garras. O que tem sido
mel e cinza em nossa lngua no ser nada.
Tambm somos rascunhos. Vai-se o dia em que
aliciamos as delcias. Os dias durariam se durssemos.
Passou por mim o cordo. Uma duas sanhas. A prenda
no precipcio. Quero dizer o nome.
O nome inscrito na cisterna. O nome que os
martelos trepidaram. Passou o cordo de sangue. Ficou
depois de minha sede. Vejo sua miragem. A famlia o
elege, ele se curva mas se foi desde que chegara.
O rio sumiu a ponte, cinzas tomam a cidade. A
noiva deserta. O verbo que foi esterco dispersa. Passou
por mim, me entardeceu. Talvez a fome, talvez a peste.
Se me exilam, mais deslindo os reveses.
Me querem os que me rendem. Passa o terceiro
carro. O quarto para lavar os cabelos. Estamos saindo,
apesar do medo. Ao meio da praa, o grande carro. Pas-
sou por ns, encardimos por ele.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
106
BA INGLS
Casado, minha viagem comea.Deixo a esposa e algum benefciopara o recm-nascido: pensareinele enquanto o navio sulcao canal da mancha. Entenda, para bem da famlia a mudana.No amo Birminghan mais que Fado,porm o dinheiro se planta na outraesquina do canal da mancha.Montarei um hotel distinto e a cadaano retorno para saber dos filhos.(E a esposa? mais do que a casano pede outro merecimento?) Entenda, a vida tem suas costuras.Providenciei um ba fornido onde cabem as nsias de quem se habituou montanha e slides da manh. (A esposa, mais queavental, no querer outro lao?O fogo que no se aparta e entreum carinho e outro no se resumaao parto?). Entenda, Birminghanno distante, e esse ba inglsrecebe os saldos que as castanhasde Fado no garantem. (A esposano come, se descabela e as unhasferem o vento). Entenda, um hotelno se abandona assim: o cadastrode clientes impede outra mudana.O amor que me ame entre Fadoe o canal da mancha. (A noite alicioua esposa? ela se deu, que importa).Rendas sobram no banco, clientes no hall. O idioma alheio fala, se me calo.Estufa a mesa de tanto fruto. Maso ba , por que se esvazia no lucro? Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
107
SENHORITA DESESPERO
Chamem o amador de bluesvou bater nele como boxeur.
Na casa onde mora, luas mexem os olhos at ferver.
Chamem o amador de bluesvou mat-lo arrumar emprego.
Tenho de magoar sua ris. Vejo sua pele sob a blusa
movendo rios incndios. Vou mat-lo se me faz feliz.
Chamem o amador de bluesque persegui dias e noites.
E soube miservel sem irm. Chamem vou mat-lo
depois ganhar dinheiro. Quero ser das que danam
at fechar o clube e ferir no trax meu companheiro.
Chamem o amador de bluesno confio nele mais no.
desses que entram a alma e fazem a gente arder.
Chamem o amador de blues. Vou bater nele como boxeur. Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
108
PRECEITO
Se algum quer matar-me
tire os cadaros do amor.
No somos a primeira sede
mas sua cara famlia.
A que almoa o domingo
e vira a misria pelo avesso.
O incndio nos assedia
e no come em nossa mesa.
A menos que sua nsia
seja outro mantimento.
Se algum quer matar-me
de amor, dance a aspereza.
Nada aqui se faz sem ritmo.Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
109
AULA
Fala de vendedor ambulante
signo em rotao. A gente
lana no ar o que temde ser
dito e colhe nem sempre
o fruto de algo vendido.
Repetimos as falas aceitas
para garantir a venda, mas
o risco do improviso o que
h. Trs por dois, duas por
uma essa sintaxe apraz.
A gente lana no ar. Se der
ritmo ganhamos a feira, se
no, fazemos finta de baile.Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
110
HISTRIA ANTI-NATURAL
HOMEM BALA
Um emprego no bastapara sanar as dvidas.Quanto mais ajustotanto preciso ajuntar.Quando paro, tudoem mim trabalha.E j uma outra dvida,crescendo no sujoda antiga, se anuncia.Mal deso na praaum brao me cobra,outros me olham.Tudo em mim se rala.O que sobra geraoutra promissria.
HOMEM GOL
Falhar um direito, em meu caso, um caos.Se me ausento do lance como se acabasse o gs para o almoo.Cada boca tem a fomedo juzo final at que ojuiz apite: acabou.O jogo agora se disputamesmo sem partida.No h dono do time,bola tambm no h.A ttica minha e sua atacar na defensiva.
HOMEM MOSCA
Para lies de levezanada mais que o corpo.Se possvel um anncioem que a sorte nos Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
111
convide sua fazenda.Para se manter no ar preciso msculose alguma tolerncia.Nossa natureza pedra, se muito, espuma.Mas no ser absurdoflutuar na palavrauma vez e outras.
HOMEM R
O incio do mergulhoest na ausncia da gua.Quando tudo esgotocomo achar o que se busca:um brao e um dejetoso uma s carcaa.Recuperamos as coisasem partes e com issoa luta se reapresenta.Num brao o corpo,num chassi a mquinaque o precipitou no rio.Mergulhar dar incioa um quebra-cabeas.
HOMEM NU
A mo que me devassano colhe senofiascos de um tecido.H muito me imprimoem formas anuladas.As que tm medoe, sendo muitas, vosozinhas ao labirinto.Onde no h marcasvigem meus dedos.O nome que ostento um cl de annimosassociados & filhos. Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
112
ESCARIAES
Paredes em branco, portas
janelas azuis. Fila de casas
com orgulhos enfileirados.
Uma ordem dentro da outra.
Quartos, metade quartos.
Searas, enfim, para a cisma
do criador. Nada insinua
ruptura. A chuva no frisou
o branco, o mar se conteve.
Receios arrastaram os que
esperavam, a moblia no.
O suor de antes no legou
a mensagem do sacrifcio.
Esse, aninhado no corpo,
tambm se dilui, s a astcia
abre sulcos sob o retrato.
Edim
ilson d
e A
lmei
da
Per
eira
113
NO LTIMO DIA
Chegado o tempoem que tudo se fundesobre meu corpo.
O beijo me acusa s milciase eu sei desde muitoque todo beijo traio.
Conto os que me condenarame no compreendoo assdio das mortes em mim,o avano de todas as digresses contra meu nome,esse azul que no se curvadiante de nenhum sacrifcio.
Contemplo apenas o que me coube.
Ao sul e ao largodemovo os fogos da transfigurao.
Chegada a hora maiorem que o ar se ajoelha,em que os numerais se fundem,em que a trindaderasura o zero dos milnios, em quea eternidade inteira se escoana proa de um segundo,em que sombra de meu nomeos abutres oram e comem.
A hora em que Deus coloca-se prova
e comigo partilha o fardo de ser homem. Iacy
r Ander
son F
reita
s
114
EM MIL
tracejaram no espaoa horizontal de um nome
at sangrar seu sumo(enquanto o mar se assenta
calmamentenas patas traseiras)
exclamaes gretadas como riosescorrem para a morte
no sabemos o que fazerpor isso no fazemos nada
o esquecimento sulcanosso ombroe nos diz no se esqueampor favor no se esqueam
na margem esquerda e na margem direitadesolao
das pegadas pulam escorpiesdo calcanhar uma nusea suntuosa
estamos livrese oramos
nossa f divide em mila escurido Iacy
r Ander
son F
reita
s
115
FUI EU
Teu rosto me acusa.
Teu rosto
todo um passado
me transcendendo.
De frente, olhos fixos,
esse passado me sonda,
me assalta e
de minuto a minuto
me principia.
Volto enfim a nascer,
mais desolado e s
a cada dia.
Mas no seria esse o meu rosto?
Olho em torno, interrogo-me
: meio-dia que busca o sol-posto.
Iacy
r Ander
son F
reita
s
116
ESSE ESTRANHO NOME
Ainda buscava
um qualquer afago
com a palavra.
Em tudo
via esmorecer o rito,
o cho, a fala, depois
o cu apenas, mais nada.
Que incndio
abate o encanto
desta casa? Onde
a promessa dos dias,
os retratos provinciais,
as cartas
jamais escritas,
porquanto lidas
no estrume e na febre,
o amor? Onde o amor,
esse estranho nome?
Procuramos deveras
e queda
o tesouro
no tocado.
Aos poucos,
surge a sede
de escavar a terra
com a terra. Iacy
r Ander
son F
reita
s
117
De escrev-la
margem,
como algo vivo
ou quase:
entre as herdades
no podemos v-la
(nunca a soubemos
ao certo).
Depois, escultura tmida,
erigir seus moldes
no caderno
(traio, traio
sua msica extrema).
Buscamos o abismo
no o dano, as letras, o
contorno que
de leve
se estiola:
o que escrevemos
como lembrana
nos escreve.
Iacy
r Ander
son F
reita
s
118
PRESENA
Todas as noites nesta espera.Tudo excessivo, sufocante.O cu, at mesmo o cuem demasia.
Sbitoestamos ssdiante da casa.Os viventes perderam-se: insdia,asco? Um ramo de floresfustiga o instante.
Ah, a velha falta de ar, os retratosirrefutveis, o ruirde datas no sentidase a vaga lembrana de um pomar.
Na sala,a presena terrvel. Os tumbeiros.Um mar de ocasosnos devora (eis que devemosenfrent-la, essa presena).
Ainda que pudssemos implorarnova permuta as reses imaginrias, alqueiresde sombra ou limo nossa herdade no se afastaria:
passado o priplo, resistiramos,com o troncoj tombando das coxias. Iacy
r Ander
son F
reita
s
119
MURILIAMES/ 3
levaram-me pelas mos
sobre o feno
fizeram-me reconhecer
os oceanos que me modelaram
para o ocaso
agora entendo
o espasmo que rebenta
dos alheios frutos
a ferrugem e o claustro
sob toda a magnitude que amo
com os olhos em fogo
fizeram-me reconhecer
os ventos que me anteciparam
a surpresa
com seus sulcos
e a treva
sobre toda a extenso
que amo
Iacy
r Ander
son F
reita
s
120
POSSESSO
sei que esta tarde e este mar
so meus
porque aqui sonhou-os o amor um dia
e tambm o que declaro
s milcias tuas
e a grandeza sem mcula
desta hora
os tubrculos
as vertentes de sais
incendiados por teu rosto
tudo foi aqui sonhado um dia
em cada linha em cada letra em cada
prefixo ou pronome
desse amor
que entre corpos
se consome
Iacy
r Ander
son F
reita
s
121
DILVIO
lento
por entre os autos
o amor elabora seu queixume
as guas vieram
perfurar a ordenao dos meses
arquitetura que se entrega
escarpa amarelecida
por seus tomos
o amor sedimentou meu corpo
no corpo de outros viventes
ouo ainda
o trabalho dessas fuses
e seu leve fascnio
pelo extermnio
Iacy
r Ander
son F
reita
s
122
ESTNCIA
os viventes arrastaram
as oficinas do dia
sem palavra ou canto
um oceano amanheceu-me
suas guas percorrem agora
a antiga estncia
vo lavar tudo
vo deixar as memrias
em bando
me alucinandoIa
cyr
Ander
son F
reita
s
123
j no se divisa o menino
sob um cu de ossos, vozes.
morto h muito
e povoado agora com
a voz absurda dos mortos,
a lngua infantil,
o hlito em fogo dos mortos,
caminha
como se longe, noutra
fbula, um vento
por sua ausncia flusse
(como se dentro
soasse ainda
seu tambor).
Iacy
r Ander
son F
reita
s
124
neste cho sem memria
os pianos nos espreitam
para o possvel susto
perdida a mensagem dos povos
algum falar em nosso nome
no saberemos quando
onde a fatura
das famlias lucinda
cada no poo?
sua lembrana
nos inquirindo
onde? onde?
ningum responde
Iacy
r Ander
son F
reita
s
125
canso-me sempre
do embate das cousas
as muitas lutas
que tingem
at o acar
das frutas
ou algo que lembre
repetidos enredos
entre meus dedos
Iacy
r Ander
son F
reita
s
126
APENAS ELE
tudo muito quieto
no fosse o menino
brincando
na memria
eis nossa infncia
entre os mveis
como o retrato
de ceclia
algum toca o piano
apenas ele
destoa
da moblia
Iacy
r Ander
son F
reita
s
127
VOYEUR
sim as abelhas picam teu corpo
e eu nada fao seno mir-lo
entre plens aucarados de inverno
so fmeas que abatem tua pele
e fecundam todo o enxame
e o mel e a cera
entre a colmia eu me escondo
no seio de tua flora
antes que me revelem festa
Wilm
ar S
ilva
128
VNUS
sigo pela flora
teu cu e azul
ateadas tochas
miostis no ser
setas de bronze
crispadas a urze
o vu de vnus
fincado em mim
tua fruta floral
de arabesca raiz
teu corpo desnudo
o bosque de heras
onde frestas de sol
cortaram teu pbis
sim houve eclipse
no ardor da gua
lpido e lascivo
sorvi tua ausncia
eu hirto e dctil
um potro de fogo Wilm
ar S
ilva
129
TTIS
tua fronte coroada de gua
crivou meus olhos de viajor
seguindo a rota das mars
alcancei as algas marinhas
celestial anjo dos sargaos
emergiu do verdor das rochas
tecido de mida constelao
sorvi teu suor e teu aroma
ttis outonal do meu sonho
a exalar lume em tua tez
ttis guarnecida de falenas
acalenta meu pranto noturno
Wilm
ar S
ilva
130
XODO
comemos a fruta
que o tempo madurou
no ventre da terra
devoramos sua casca
seu miolo e suas fibras
e as sementes midas
de saliva e sal
no vingam na aridez
sulcamos seu imo
e retemos o sumo
viemos de algum lugar
perdido na memria:
forasteiros campestres
estradeiros da morte
galgamos o infinito
miramos os pssaros
e ouvimos gorjeios
desfeitas as rdeas
os potros sumiram
caminheiros sem rumo
iremos a algum lugar
matinais ou vespertinos
marginais e viperinos
fiamos nossos destinos
sob o sol e sob a lua Wilm
ar S
ilva
131
CETICISMO
no sei onde pr minhas dvidas
chorei em vesperal
e derreti meu olhar
visto os pulsos e exangue
guardo relquias em antiqurios
os relgios de meu orfanato
sem vislumbr-los
tiveram os ponteiros quebrados
empobreci de tdio vivo
o que deter ante o brilho
remanescente da lua
um bicho de fogo renasce
de dentro de mim
uma montanha com espectro solar
e prisma de esfinge
msica vinda das trevas
fere o meu corao
Wilm
ar S
ilva
132
CLERA
sem dvida essa fadiga me entardece
mais forte do que o vento
o vento que no da famlia dos chacais
e me procura com uma lente invisvel
o vento que racha as paredes
e atravessa a pintura
o vento que atravessa a pintura
e diz que os decibis
das flores que lhe oferto
esto em anomaliaW
ilmar
Silv
a
133
A COMPOSIO DA PALAVRA
a derradeira nascente
acende a ilha cercada de guas
derradeira vertente
os lobos
que varam atrs de alimento
e a primpara seta eu que lano
e vo
Wilm
ar S
ilva
134
e agora nesse escuro de assustar coruja
nessa madrugada de amolar machado com a lngua
feito vara verde treme o corpo da alma
quando voc fala olhando a janela
o quadrpede cor de terra do lado de dentro
perto da porta meio de banda
fera armada atrs do metlico
aquela tarde em casa
quando o norte fez presena
crina rabo de cavalo
eu joo eu tenho que ensinar esse cachorro a ser cachorro
Wilm
ar S
ilva
135
e depois de bater a laje vem esse temporal
e depois desse temporal vem os ps sobre a laje
sobre a laje os olhos a verter guas de arco-ris
e cristalino sobre a laje
as ris as membranas as retinas as imagens
os olhos de lince para o lince olhar a laje
os estragos da chuva na laje
e depois a laje pisada e vista
a laje meio a meio e virgem a laje
a laje para o cume
o cume da laje para o meu pssaro rouxinol
sim a casa para a chuva a constelao de sis e luas e estrelas
a colheita de canrios
e o plantio das palmas e plantasW
ilmar
Silv
a
136
antes de rodar a roda dgua vem essa chuva
vem de longe o rumor o barulho de orvalho na rom
essa boca e essa lngua que mina em linfa
essa furna e por um instante essa boca fechada
em seguida o estrondo a cabea em pnico
esse assombro de mula em busca do mulo
vem de longe o vexame esse medo
essa clera de irisar em si o rumor nesse pomar
de repente ferido pela boca
Wilm
ar S
ilva
137
ARRANJO DE
SANHAO
E GERNIOS,
DIA 16
eu/ dia-a-dia-dia no exerccio de liberdade
e vo, rasante - o meu beijo de sanhao
preparo entre canteiros guarnecidos
de gernios, rseo, cultivo o possvel
gosto de encontro aos lbios de ceres
mas, agora - em pleno meio do cerrado
anseio, impvido, penacho eu pavo
ramagem de estios, geada ao corpo, eu -
antes, salto do galho e lasco: sol aceso
lume, lpido, tempo de outono, sisW
ilmar
Silv
a
138
ARRANJO DE
GAIVOTAS
E PAMPULHA,
DIA 31
eu-menino-do-campo, te fao conviva
e digo que a palavra que escrevo
origem, invento gaivotas no serto
ilha meu corpo de encontro ao teu
aqui, longe, aps o inverno da tempestade
verto o amlgama da pampulha veleiro
arco-ris que choram de solido, eu
agora impvido e celeste, anjo de fogo
eu-espelho dgua, narciso e orfeu
flautas e flores, eu-pssaro cais e flora -W
ilmar
Silv
a
139
1
eu quebrado por voc sou estilhaos no lago de prpura/
l entre ns e calos, sou esta enxurrada que invade
eu/ aquele que vem com faunos de flautas e flechas
sou o mesmo wilmar silva de mil diamantes nos olhos
e mesmo que haja asas de arribao na mira da boca:
o que fao com esta lngua na mina de sangue/
vem agora um ourio com vestigio de godiva,
eu/sou este cavalo com escamas nas crinas
e cascalho para cavalgar num corpo distante/
mais que esta noite com centelhas de semens
que nascem entre meus dedos de sonhos/ eu
Wilm
ar S
ilva
140
2
/ eu que venho com um ramalhete de espinhos na carne
derramo lminas e facas nos olhos dos ps,
ainda sim/ serro um pssaro/ de asas nos braos
coiote eu/ eu hiena nascer de um rio sem margem,
piscoso envenenado de tanto mergulhar na terra
eu perdido no escuro da madrugada atrs de voc
um ermo eu: uma ave ferida no ermo eu:
apenas um caador alcana a lontra no dorso
sou eu este que vem armado de flechas e dardos/
para uma flecha presa no umbigo a minha lngua
para um dardo derretido na virilha a boca de beijos
Wilm
ar S
ilva
141
SINTA MEU PULSO
Eis que projeto um poema
sobre o abismo branco
da pgina em alarme.
Ao primeiro descuido
e minha revelia,
jaz e volta, germe
que adquire vida prpria.
Com poderes de reger-me,
manda que eu v
pela selva selvagem
dos textos e dos sentidos.
E, antes de ir-me,
com amor me
olha, e diz, como diria
meu pai: fique firme.
Fabrci
o M
arques
142
O MAR
diante das gals
e j com sono
o velho olha o mar
com rugas de marfim
com as lembranas
removidas pelos garis
outras levadas pelas mars
indo de paris ao par
o velho amarfanha
o que lembra
e o mar se marfa
nesta noite gris
Fabrci
o M
arques
143
NERUDA ENCONTRA LORCA
De mim fugiam pssaros
s quatro horas da tarde.
Pssaros tranquilos,
pssaros lentos
de mim fugiam,
deixando em meu peito,
no entanto, suas asas.
s quatro horas da tarde sem vento.
Fabrci
o M
arques
144
FICANDO TARDE
Estou ficando tarde. E o tempo
vai carpindo antes do tempo
rugas de cansao e lucidez.
Com ar de melancolia
(estou ficando tarde)
percorre o rosto um sorriso.
As horas se gastam, amarelam
como quando a vida arde
- albor na pele, sem aviso.
Fabrci
o M
arques
145
TALHER
foi s brandir o talher
em meio s chvenas
para o silncio agitar
saudades de ser barulho
Fabrci
o M
arques
146
TAMBOR
tudo
principia
com um som
um estampido
que arromba
um domingo
de chumbo
no mundo
eco de trombeta
fundo sem
assombro
vislumbre
de sombra
na penumbra
por si j
abumbrosa
tudo comea
tudo sucumbe
com um som
de tambor
ou texto
truncado Fabrci
o M
arques
147
O TEXTO QUE VAI
o textoque vaiaquiescritono meu
nenhumalinhajogadaao infinito
palavraalgumame pertence
desconfiede tudopode serque seja
disfarcedisfaradode desastre
ou
plgioque se despededa sombrae vaina direocontrria Fa
brci
o M
arques
148
MANH
manh
to
magnfica
que
a
moa
de
olhos
de
amndoa
ignoraria
se
surgisse
o
apocalipse
entre
as
magnlias
Fabrci
o M
arques
149
ENCANTAMENTO PELO SAMBA
a poesia est com tudoe no est prosa
a poesiano tem pressano tem prazono tem glosa
a poesiaest em ramosest em rosa
rima petrosatexto veludoescrita porosa
quempor acasomantmacesaa brasa
e vibrandoa brisada histria
prima por servazadadeproezae glria
a poesiaest em tudoe no prosa Fa
brci
o M
arques
150
EDUCAO DOS SENTIDOS
l vem voc
entre estrondo
e gemido
chamando
fala
mos que tocam
o que poderia ter sido
e olhos que dizem
sou todo ouvidos.
Fabrci
o M
arques
151
CRUZEIRO 2X1 ATLTICO
pensava
em minha filha
na doce luz
da manh
no que
a bola
bateu
na trave
perdi
a chance
do empate
j nos descontos
a torcida
no entende
tanta coisa
que acontece
no lance
do relance
de um timo
de segundo
Fabrci
o M
arques
152
NOTURNO
pensando que a vida um mergulho
atravesso a chuva e vou andando
andando quase de brincadeira
pensando que a vida um mergulho
na chuva e vou, como quem se molha
e deixa na calada a alma umedecida
vou de alto a baixo, pelo centro, pela beira
no cu s vezes lua nova, s vezes cheia
atravesso a chuva e vou andando
s vezes duchamp, s vezes padre vieira
atravesso a chuva, a alma umedecida
passa pelos olhos a vida inteira
enquanto do oitavo andar de um tdio
um homem se joga num pulo suicida
e cai diante de mim, osso puro
no cho todo vermelho
e diz, olho no olho, antes do suspiro:
vai e escreve o que digo, filho;
quando voc cair (de qualquer maneira)
- isto no falha faa muito barulho Fabrci
o M
arques
153
AUTO-RETRATO EMBAADO
Vinte anos tenho
e as feridas
expostas em desenho
Em carne viva
a vida me chama:
quando escuto, venho
Entre objetos que me acolhem
E tudo aquilo que no dia
escapa aos olhos
em sonho retenho
Neste engenho
a minha fora
empenho,
como o moribundo que se recusa a partir
Fabrci
o M
arques
154
ADMIRVEL PLPEBRA DO DIA
Admirvel plpebra do dia
estranha ao poeta que,
insone, esgueira-se sob
a fina chuva de melancolia
a perseguir palavras
como se prolas
incrustadas na pele,
no mrmore, na pupila
e nem percebe a estaturia
disposta na praa
de cuja proa partem
imagens vazias
de modernidades tardias
Fabrci
o M
arques
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Eustquio Gorgone de Oliveira nasceu em Caxambu, a 22 de Abrilde 1949. licenciado em Letras e Pedagogia. Entre os livros publica-dos, destacam-se: Delirium-tremens (1974), Minas (1983), Fuzis lepo-rinos (1984), Exerccios (1986), Comarca do Rio das Mortes (1990),Tear de Imagens (1990), Girassol Fixo (1995), Passagem naOrfandade (1999); Rubra Casca (2002), Manuscritos de Pouso Alto(2004), Ossos Naves (2004), A Janela do Verbo Assistir (2006).Actualmente reside em Caxambu. Foi finalista do Prmio MuriloMendes, de Juiz de Fora, em 2003, e vencedor do mesmo prmio em2004. Obteve em 2005, o prmio de Incentivo criao literria daFundao Clvis Salgado, de Belo Horizonte, e ganhou, em 2006, oPrmio Cidade Belo Horizonte. Donizete Galvo nasceu em Bordada Mata, a 24 de Agosto de 1955. formado em Administao de Em -pre sas e Jornalismo. Reside em So Paulo. Publicou: Azul Navalha(1988), As Faces do Rio (1991), Do Silncio da Pedra (1996), A Carnee o Tempo (1997), Ruminaes (1999), Pelo Corpo (em parceria comRonald Polito, 2002), Mundo Mudo (2003). Jlio Polidoro nasceu emJuiz de Fora, a 29 de Julho de 1959. Trabalha actualmente na reaadministrativa da Universidade Federal de Juiz de Fora. Reside nessamesma cidade. Publicou: Treze Poemas Essenciais (1979), PequenosAssaltos (1990), Orla dos Signos (2001), Outro Sol (poesia reunida,2004). Ricardo Aleixo nasceu em Belo Horizonte, a 14 de Setembrode 1960. Actua em diferentes reas das artes contemporneas comoperformer, msico e crtico. Coordenador do Festival de Arte Negrade Belo Horizonte (FAN, 1995-2006), idealizador e redactor-chefe darevista RODA, tambm organizador da Bienal Internacional dePoesia da mesma cidade, onde reside. Publicou: Festim (1992), ARoda do Mundo (em co-autoria com Edimilson de Almeida Pereira,1996); Quem Faz o Qu? (infanto-juvenil,1999) Trvio (2001),Mquina Zero (2003). Maria Esther Maciel nasceu em Patos deMinas, a 01 de Fevereiro de 1963. Vive em Belo Horizonte desde1981. professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal deMinas Gerais. Poeta e crtica literria, publicou: Dos Haveres do Corpo(poesia, 1985), As Vertigens da Lucidez: Poesia e Crtica em OctavioPaz (ensaio, 1995), A Lio do Fogo (ensaio, 1998); Triz (poesia,1998); Vo Transverso (ensaio, 1999), A Memria das Coisas (ensaio,2004), O Livro de Zenbia (prosa potica, 2004). Fernando FbioFiorese Furtado nasceu em Pirapetinga, a 21 de Maro de 1963.Desde 1972 reside em Juiz de Fora, onde professor da Faculdadede Letras da Universidade Federal. Publicou, entre outros, os livros depoesia e ensaio: Leia, no cartomante (poesia, 1982), Exerccio deVertigem & Outros Poemas (1985), Ossrio do Mito (poesia, 1990),Trem e Cinema: Buster Keaton on the railroad (ensaio, 1998), CorpoPorttil (poesia reunida, 2002), Dicionrio Mnimo (poemas em prosa,
SOBRE
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2003), Murilo nas cidades: os horizontes portteis da moderni da de(ensaio, 2003). Edimilson de Almeida Pereira nasceu em Juiz deFora, a 18 de Julho de 1963. Professor de Literaturas Brasileira ePortuguesa na Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor de inme-ros livros de poesia, ensaio e literatura infanto-juvenil. Na rea decincias sociais publicou em co-autoria com Nbia M. Gomes NegrasRazes Mineiras: os Arturos (1988) e Flor do No Esquecimento: cul-tura popular e processos de transformao (2002). Em poesia editouDormundo (1985), Livro de Falas (1987); sua obra potica encontra-se nos volumes Zeosrio Blues (2002), Lugares Ares (2003), Casa daPalavra (2003), As Coisas Arcas (2003). Em literatura infanto-juvenileditou Histrias trazidas por um cavalo marinho (2005), Loas aSurundunga (2006), entre outros. Ganhou inmeros prmios nacio-nais na rea das cincias sociais, assim como na rea da literat