"os CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HISTO -"
RICO-CULTURAIS E IMPLfcAÇOES PSICOPEDAGÓ-
GICAS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRÉ ESCOLAR"
/
MARIA BEATRIZ FACCIOLLA PAIVA
"OS CONTOS DE FADAS: SUAS ORIGENS HIST6 -RICO-CULTURAIS E IMPLICAÇOES PSICOPEDAG6-
GICAS PARA CRIANÇAS EM IDADE PRE-ESCOLAR"
Orientadora: Angela Valadares Dutra de
Souza Campos
Dissertação submetida como requi sito parcial para a obtenção do
grau de mestre em Educação.
Rio de Janeiro
Fundação Getúlio Vargas Instituto de Estudos Avançados em Educação
Departamento de Psicologia da Educação
1990
Ao Va.n,,[
AGRADECIMENTOS
- A professora Angela Valadares Dutra de Souza Campos,
me orientou por dois anos e meio, em reconhecimento
seu trabalho junto a nós alunos do IESAE.
que
pelo
- A Daniel Keller, pelo seu apoio e carinho durante os momen
tos difíceis.
- Ao analista junguiano Carlos Alberto Bernardi, que nos deu
um precioso auxílio na formulação deste trabalho, assumin
do o papel de co-orientador.
- A suiça Elisa Hilty, por nos receber em sua casa em Win -
terthur, dando-nos uma entrevista e presenteando-nos com
seu livro, o que me ajudou muito no esclarecimento de al
guns tópicos desta dissertação.
- Estendo meus agradecimentos ã CAPES que, pela concessão de
uma Bolsa de estudos, me possibilitou a realização do Cur
so de Mestrado no IESAE.
IV
INDICE
págs.
INTRODUÇÃO 1
CAPITULO 1
SOBRE AS ORIGENS DOS CONTOS "DE FADAS ............ 7
1.1 A relação existente entre o mito e o conto de
fadas ........................................ 7
1.2 As fontes possíveis que deram origem aos con -
tos de fadas ................................. 14
1.3 Num país distante, no tempo em que os desejos
ainda se realizavam 17
1.4 O legado da cultura celta ................... . 19
1.5 Perrault, os Grimm, Andersen e Cascudo ....... 22
CAPITULO 2
"O SIGNIFICADO PSICOL6GICO DOS CONTOS DE FADAS" .. 31
2.1 O significado do simbólico 31
2.2 Os simbolismos presentes nos contos retratam
d ~. ramas pSlQU1COS .••••..••..••.•••••.••••••••• 38
2.3 Analisando dois contos: desvendando alguns se~
tidos ....................................... . 45
CAPITULO 3
"O CONTO DE FADA PARA CRIANÇAS" .................. 58
3.1 Por que relatar contos de fadas para crianças? 58
3.2 As críticas negativas endereçadas aos contos.. 65
3.3 O mecanismo de projeção e introjeção de MeIa -nie Klein .................................... 76
v
Pags.
CAP!TULO 4
"A VOCAÇÃO PEDAGÓGICA DOS CONTOS DE FADAS PARA A
CRIANÇA EM IDADE PR~-ESCOLAR 80
4.1 Caracterizando a criança em idade pré-esco -lar ........................................ 80
4.2 Quais as funções dos contos de fadas no con-~
texto pre-escolar? ......................... 90
4.3 Considerações Finais ....................... 100
BIBLIOGRAFIA................................... 106
VI
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo principal elu
cidar as implicações de se relatar contos de fadas às crian
ças em idade pré-escolar, destacando-se suas origens histó
rico-culturais e a sua função psicopedagógica.
Com subsidios obtidos em obras de alguns autores
da área de história, literatura, filosofia, psicologia e p~
dagogia, foi feita uma análise considerando-se alguns tópi
cos, dentre os quais a possibilidade de serem os contos mi
tos transformados, cuja evolução ou construção da narrativa
tem uma característica análoga aos ritos iniciáticos das so
ciedades consideradas "primitivas" ou pré-letradas. Neste
sentido, trazem em seu bojo a nossa herança cultural.
Além disso, possuem função psicopedagógica, que po~
sibilita à criança em idade pré-escolar identificar-se com
a imagem arquetípica do herói ou heroina, na medida em que
estes passam por provações, e adotar uma postura positiva
frente às mesmas.
Argumentou-se, ainda, quanto às criticas de que e~
tas narrativas têm sido alvo, como, por exemplo, a sua "cru
eldade", a visão de mundo "deturpada e irreal" que elas pr~
moveriam de acordo com alguns autores que privilegiam o ra
cionalismo, e o papel "degradante e passivo" destinado a aI
gumas personagens femininas de algumas histórias.
Conclui-se o trabalho avaliando-se o papel doscon
tos de fadas no contexto pré-escolar, e de que forma a exp~
riência de relatá-los às crianças pode ser enriquecedora do
VII
ponto de vista pedagógico.
Apoiando-se na abordagem junguiana, trata-se de
um trabalho de pesquisa e análise teórica que visa ampliar,
esclarecer, bem como justificar o papel dos contos de fadas
na educação pré-escolar, levando-se em conta suas funções
psicopedagógicas e o seu caráter socializante, na medida em
que a criança tem acesso a valores sócio-culturais que pre
dominaram e ainda repercutem nas relações sociais contempo
raneas.
VIII
SUMMARY
The main aim of this essay is to clarify the im
plications of telling fairy tales to children at preschool
age, outstanding their historical-cul tural origins and their
psychopedagogical function.
Based on the data obtained in the work of several
authors in the fieIs of history, literature,
psychology and pedagogy, an analysis was made
philosophy,
on some
topics, such as the possibility that the tales are trans
formed myths, the evolution or construction of the narrative
of which have analogous characteristics to the initiation
rites of the societies considered as "primitive" or prele,!
tered. In this sense, they bring in their core our cultural
inheritance.
Furthermore, they acquire a psychopedagogical
function, since they give the children at preschool age
the chance to identify themsel ves wi th the achetypical image
of the hero or heroine, as they undergo their ordeals, and
to adopt a positive attitude to cope with them.
The cri ticisms that these tales have been suffering,
as their "cruelty", the "misrepresented and unreal" vision
of the world that they would promote as per some authors
that favor the rationalism, and the "degrading and submis
sive" role given to some female characters of some stories,
were also discussed.
This essay ends by evaluating the part that fairy
IX
tales play at the preschool context, and how thc experience
of telling them to the children can be enriching, in the
pedagogical point of view.
Based on the jungian approach, it is a research
and a theoretical analysis which aims to improve,elucidate,
as well as justify the role of the fairy tales in preschool
education, considering their psychopedagogical
and their socializing character, once the child
functions
gets in
touch with social-cultural values which prevailed and still
have echo in the contemporary social relationships.
x
ZUSAMMENFASSUNG
Die vorl iegende Dissertation richtet ihren Schwerpunkt
auf die Abhandl ung der Impl ikationen, die beim Marchenerúihlen
an Kindern im Vorschulalter entstehen.Kulturgeschichtliche
Ursprünge und psychopadagogische Funktionen werden be
sonders hervorgehoben.
Mit Zuhilfenahme der Werke einiger Autoren aus
den Bereichen der Geschichte, Literatur, Philosophie, Psycholo
gie und Padagogie wurde eine Analyse erstellt, die ver
schiedene Themen in Betracht zieht, wie z.B. die Moglich
keit, dass Marchen transformierte Mythen seien, deren Ent
wicklung oder Erzahlkonstruktion analoge Merkmale zu Ini
tiationsriten sogenannt "primitiver" ode r "vor-schriftli
cher" Gesellschaften vorweisen. In diesem Sinne überbrin
gen Marchen in ihrem Innern unsere kulturelle Erbschaft.
Im weiteren besitzen Mã"rchen eine psychopadagogische
Funktion, die den Kindern im Vorschulal ter errnoglicht, sich m:i t
dem archetypischen Bild des Helden oder der Heldin zu
identifizieren, Soweit diese durch Prüfungen gehen und
gegenüber Prüfungen eine positive Haltung einnehmen.
Weiter argumentieren wir gegen einige Kritiken,
die auf Marchen abzielen. Einige ,Autoren, di~ eine verstandesma~
sige Haltung bevorzugen, kritisieren, um nur einige Bei
spiele zu nennen, die "Grausamkei t", die Forderung eines
Bildes einer entstellten und unwirklichen Welt, oder die
XI
"würdelose und passive" Rolle, die in einigen Marchen ei
nigen weiblichen Figuren zugeschrieben werden.
Abschliessend bewerten wir die Rolle der Marchen
im vorschulalterlichen Zusammenhang und zeigen auf, in we~
cher Form die Erfahrung des Marchenerzahlens an Kindem vom
padagogischen Standpunkt aus eine Bereicherung sein kann.
Die vorliegende Forschungsarbei t und theoretische
Analyse stützt sich auf Grundsatze der jungianischen Psych~
logie. Sie versucht, die Thematik zu erweitern und
Punkte aufzuklaren, sowie die Rolle des Marchens
einige
in der
Vorschulerziehung zu rechtfertigen, indem sie seine psy
chopadagogischen Funktionen und seinen sozialisierenden
Charakter in Rechnung stell t. Das Kind hat über das Marchen
Zugang zu vorherrschenden gesellschaftskulturellen Werten,
die in den sozialen Beziehungen von heute Wiederhall finden.
XII
INTRODUÇJ\O
A opçao pelo Curso de Mestrado em Psicologia da
hlucaç;lo surgiu li partir dl' algumas experiências pessoais, tan
to na irea da psicologia como na da Educação.
Foi cursando a disciplina Mitos, contos de fadas,
arte, folclore e literatura: sua pesquisa, que vimos despe:
tar um interesse maior a respeito dos contos de fadas. Nes
sas aulas, 1 íamos e di scut íamos a função dos mi tos e dos con
tos do ponto de vista da psicologia analítica (ou junguia -
na), atendo-nos principalmente ao seu caráter terapêutico,
ao recorrermos a uma le i tura dos significados das imagens si!!!.
bólicas que estas histórias proporcionam, já que estas nos
fornecem também recursos interpretativos.
Em outro momento, tivemos oportunidade de traba -
lhar na area de educação pré-escolar, estabelecendo um con
tato quase diário com as crianças na faixa de dois anos e
meio a seis anos. Durante este período, fomos percebendo,
com a prática, que dentre as atividades que as crianças de
senvol viam havia uma em especial que propiciava um clima agr~
dável na sala de aula, de muita troca e envolvimento. Era
o momento em que as crianças ouviam os contos de fadas, que
chamávamos de "histórias de boca", visto que elas só pode -
riam ouvir e usar a imaginação, já que para aquelas histó
rias nao havia ilustrações a serem mostradas.
Durante esta atividade percebíamos que, dependen
do da sua história pessoal, ou mesmo de acordo com a sua n~
cessidade momentânea, algumas crianças realmente identifica
2
vam-se e projetavam-se em algumas figuras centrais ou em aI
guma situação ali presente.
Dentro deste quadro, as meninas identificavam-se
com as personagens femininas e os meninos com as masculinas,
podendo isto ser observado a partir das brincadeiras ou ati
vidades em que as crianças exercitavam a representação, co-
mo as gráficas (pintura, desenho) e os jogos dramáticos.
Houve, por exemplo, o caso de uma criança que se
sensibilizou muito com a história de "Joãozinho e Maria",di
zendo-nos com ar tristonho que "nunca mais queria voltar p~
ra a escola". Pudemos presumir que a idéia de "abandono"su
gerida pela história (quando o pai de Joãozinho e Maria os
abandona na floresta porque não tinha condições econômicas
de sustentá-los, não só havia sido assimilada pela criança,
como também ela identificou-se com os personagens centrais,
já que seus pais eram médicos, trabalhavam o dia todo e dis
punham de pouco tempo para se dedicar aos filhos.
Esta hipótese pôde ser confirmada quando entrevis
-tamos o casal, e apos conversarmos e deliberarmos sobre qual
o encaminhamento mais proveitoso para ambas as partes, pud~
mos cons ta tar, com o passar do tempo, que a criança mostrou-se
muito mais descontraída e alegre no seu dia-a-diana escola.
A partir desta vivência e que se foi instaurando
a vontade de pesquisar mais sobre as implicações de se rela
tar contos de fada às crianças, e de buscar nos vários auto
res, de diversas áreas, subsídios teóricos que vieram nos
respaldar na realização desta dissertação.
3
E importante ressaltar que alguns autores, como
os folcloristas Vladimir Propp e Luís da Câmara Cascudo,uti
lizaram os termos "conto maravilhoso" e "conto de encanta -
mento", respectivamente, para designar o que conhecemos por
"conto de fadas", por acreditarem ser este termo último nao
apropriado, já que não se refere a histórias cujos enredos
giram apenas em torno de fadas. No entanto, continuamos a
adotar a denominação "conto de fadas" por acharmos que esta
é a mais conhecida pelo público em geral (incluindo-se o in
fantil).
Com relação às abordagens que nos subsidiaram no
campo da psicologia, buscamos referências tanto na escola
psicanalítica IBruno Bettelheim, (1988), Melanie Klein (in
Segal, 1975) I, como na junguiana IMarie Louise Von Franz
(1981, 1985~, 1985Q, 1986), Hans Dieckmann (1986), entre o~
trosl, sendo que esta última ocupou um espaço maior e mere-
ceu um destaque mais significativo de nossa parte. Não pr~
tendemos, com isto, desmerecer a psicanálise freudiana,
que esta constitui um marco que impulsionou um maior conhe
cimento da natureza humana, do ponto de vista psíquico. Além
disto, suas formulações teóricas e metodológicas suscitaram
o aparecimento de outras abordagens, incluindo-se aí a jun-
guiana.
Reconhecemos no entanto, que ambas apóiam-se em
visões de mundo diferentes. Baseando-se nestas colocações,
cabe aqui expor em linhas gerais algumas contribuições que
a psicanálise nos propiciou.
A teoria psicanalítica sem dúvida dedicou-se mais
4
à psicologia infantil, haja vista as formulações de Freud e
seus seguidores acerca dos desejos e conflitos edipianos d~
rante a infância, assim como as de Melanie Klein, a respei-
to das relações objetais, para se compreender a atividade
psicológica deflagrada a partir do relacionamento htmlano com
os "objetos" ou pessoas (no caso, a relação mãe-criança)que
atraem a sua atenção e/ou necessidades.
Jung, por sua vez, não se dedicou muito a discor-
rer, em suas obras, sobre a infância; mas, a despeito disso,
compartilhamos em grande parte a forma ou a perspectiva que
ele elaborou a respeito do inconsciente, cujos conteúdos,além
de serem encarados corno potencialmente criativos, também p~
dem extrapolar a experiência pessoal.
.. . Ele considerava as imagens onlrlcas, por exemplo,
corno a melhor expressão de conteúdos inconscientes, e reco
mendava que, num primeiro momento, ouvíssemos o que o incon~
ciente tem a nos dizer; ou seja, para compreender o signifl
cado do sonho, faz-se necessário ater-se primordialmente a
imagem onÍrica. A imagem representaria a situação tal qual
ela é, e não sujeita às deformações atribuídas ao inconsci-
ente. A interpretação seria requerida, nesse caso, de for-
ma a tornar a imagem original mais significativa.
Esta visão, em nosso entender, também proporcionou
urna extensão maior acerca do significado da natureza humana,
pois ao se ampliar o conteúdo simbólico de um sonho leva-se
em conta o contexto pessoal, podendo-se abarcar também o co
letivo, relacionando-o com simbolismos míticos, históricos,
culturais (incluindo-se aí ternas arquetípicos desenvolvidos
5
nos contos de fadas).
Portanto, Jung nao conseguiu referendar por muito
tempo a visão psicanalítica que apregoava uma interpretação
exclusivamente sexual da motivação, daí uma das causas do rom
pimento entre ele e Freud.
Com relação aos contos de fadas, os psicanalistas
freudianos preocupam-se em mostrar que tipo de material re
primido ou inconsciente encontra-se subjacente a essas his
tórias. Os junguianos, por sua vez, acredi tam que nestas Ú.!..
timas são representados os tipos humanos básicos, que espe
lham os trajetos do desenvolvimento psíquico. Expressariam,
portanto, um modelo de comportamento arquetípico em conso -
nância com o ego, como iremos mostrar no desenvolvimento des
te trabalho.
Entendendo que o pensamento junguiano privilegia
uma postura menos dogmática e por vezes polêmica, e que nos
encontramos em relativa sintonia com as idéias e conceitos
desenvolvidos por esta escola, é que optamos por empreender
umô discussão mais ampla a respeito dos contos de fadas de~
tro da perspectiva anteriormente citada, embora esta seja c~
locada em relação com outros pontos de vista ou abordagem.
Neste sentido, examinamos também as colocações de
Piaget (1978!,1978E), Bettelheim (1988), do historiador das
religiões Mircea Eliade (1972), do filósofo Gilbert Durand
(s.d.), da psicóloga e escritora Jacqueline Held (1980), en
tre outros.
Por fim, estamos cientes de que, ao versarmos e d~
senvolvermos esta temática de acordo com as perspectivas por
6
nós apontadas e relevadas, estaremos sem dúvida relegando ou
tras idéias ou visões a respeito do tema em questão. Cabe
esclarecer que estamos pondo em pauta algumas ver soes den -
tre várias, haja vista a tamanha amplitude já alcançada pe
la investigação e pensamento humanos, além daquelas ainda inex
pIoradas.
Entretanto, apesar de termos plena convicção do li
mite do nosso alcance enquanto pesquisadores, esperamos que
este trabalho venha contribuir para ampliar, ainda mais, a
noção que as pessoas possam ter acerca das implicações de se
relatar contos de fadas à criança em idade pré-escolar.
CAPITULO I
SOBRE AS ORIGENS DOS CONTOS DE FADA
1.1 A relação existente entre o mito e o conto de fadas
Durante a fase de pesquisa, analisamos extenso ma
terial acerca das analogias e diferenças existentes entre os
mitos e os contos de fadas.
As divergências ocorrem no sentido de o conto ter-se
transformado num mito dessacralizado, ou seja, o herói ou a
heroína não agem em nome da ira dos deuses e nem situam-se
num mundo governado por estes. A despeito de os heróis ou
heroínas serem punidos ou não pelos seus atos, o conto lan
ça-nos em um mundo de confrontação com algo inusitado, e a
solução ou transposição do mesmo exigirá que os protagonis
tas passem a adotar uma nova atitude, o que implicará uma
transformação de si mesmos, ou uma relação diferente para com
a vida.
Mircea Eliade (1977) levanta algumas questões acer
ca deste assunto, dentre as quais está o contraste entre o
pessimismo dos mitos e o otimismo dos contos, pois neste úl
timo geralmente o desfecho é feliz, ao passo que na narrati
va mítica o herói, na maioria das vezes, tem um fim trágico.
Além disso, outro fator que os diferencia relati
vamente é o fato de nos contos ser mais improvável eviden -
ciar a cul tura na qual se originaram, o que nao ocorre no ca
so dos mitos, sendo possível identificar no mito de ~dipo,por
exemplo, elementos da cultura grega.
8
De certa manej ra, os contos de fadas sao também in
fluenciados pela cjvilização em que surgiram, mas sem dúvi
da torna-se um desafio identificá-los no tempo e no espaço,
já que há poucos registros neste sentido.
~ interessante notar que nos contos de fadas o tem
po e o país não são evidentes, pois geralmente eles começam
com: "Era uma vez, num castelo no meio de uma floresta ... "
"Num certo país ... " ou "Numa época em que os animais ainda fa
lavam ... "
Apesar de não se comprovar o espaço e o tempo da
narrativa, os contos iniciam a sua história num ambiente fa
miliar onde se insere perfeitamente o homem comum. "João e
Maria" desenrola-se em torno de um fato real e corriqueiro
para nós: o pai é pobre e se pergunta como poderá cuidar dos
filhos. "Rapunzel" também começa num ambiente familiar co
mum, onde os pais desejavam ter filhos, e a partir daí de
senvolve-se toda a trama.
~ claro que no decorrer da história os elementos
"mágicos" vão surgindo, mas não se pode compará-los com os
elementos sagrados e sobrenaturais presentes nos mitos, cujos
acontecimentos relatados se dão presumidamente num tempo pr2:.
mordial. Um exemplo desta idéia refere-se aos mitos cosmo
gônicos, em que se percebe a tentativa de buscar explica
ções' sejam simbólicas ou sagradas, da criação ou produção
de algo. ~ a narrativa de uma "criação".
Segundo Mircea Eliade, "o mito ensina ao homem ar
caico as histórias primordiais que o constituíram existen -
cialmente". (Eliade, 1972, p. 16). Histórias estas que são
9
fruto da emoçao e da necessidade do homem de compreender o
que acontecia i sua volta, levando-o a buscar na religiosi-
dade os elementos que lhe proporcionariam um controle maior,
em termos racionais, dos efeitos da natureza sobre si mesmo,
assim como de seus próprios instintos, como o de sentir me-
do.
Do ponto de vista filosófico, pode-se perceber nos
mi tos a famosa indagação: de onde eu vim e para onde vou? Ou,
então, a busca de respostas para as mais diversas manifesta
ções da natureza, como as estações do ano, as inundações, o
aparecimento do boto (na mitologia dos índios da Amazônia),
etc.
E o que seriam, então, as possíveis construções mi
tológicas respaldadas pelo medo?
Paul Diel dá~nos o seu depoimento a este respeito:
"o homem primitivo ( .•• ) nunca sera completamente
seguro dele mesmo (eis aqui a primeira razão de seu temor ( ..• )
Não é mais que um temor ontológico ao qual esta ligado ins~
paravelmente, como se verá, o medo metafísico). Do medo on
tológico nascera a magia e do medo metafísico a religiosid~
de. Pelo fato de que as duas formas de medo (ante o ambien
te e o mistério) são inseparaveis, a magia e a religiosida
de se encontram ligadas entre si ( •.. )" (Diel, 1959, p. 59).
~ o medo do desconhecido, a perplexidade frente às
várias manifestações naturais, sejam elas externas, como já
foi descrito, e até mesmo internas. Como explicar sentime~
tos por vezes arrasadores que nos assolam? O medo, a pai -
xão, o ódio, a inveja, etc. Cabe aqui lembrar que nos tem-
pos antigos não existia a ciência como ela é constituída ho
10
je, e muito menos a psicologia, um corpo de conhecimento que
adquiriu um caráter empírico e se disseminou na sociedade a
partir das obras de Freud.
Os instintos, as intenções e a necessidade de bus
car soluções para a complexidade do mundo eram e ainda sao
(embora em menor grau) proj etados na religião, nos deuses ou,
mais especificamente, no pensamento mágico, fatores estes
característicos do pensamento mítico explorado pela socied~
de quando esta iniciou o seu processo de estruturação e or
ganização.
Com relação aos contos de fadas, como já foi dito,
existe a hipótese de serem eles mitos dessacra1izados, pois
segundo alguns autores têm uma tradição oral, o que facili
tou sua migração de uma região a outra. Portanto, estavam
sujeitos a sofrerem mutações, adaptando-se à cultura local
assim como recebendo as influências da ordem judaico-cristã.
Mesmo assim, alguns contos mantiveram suas raízes na cultu
ra popular, preservando elementos inerentes às religiões di
tas pagas.
Contudo, como já apresentamos no início deste ca
pÍtulo, existem ainda fatores que colocam o mito e o conto
em sintonia. Dentre alguns, podemos citar a linguagem e as
imagens que se fazem presentes nas duas narrativas. Ambos
são dotados de uma linguagem simbólica, isto ~, de uma lin
guagem que dá margem a uma ou mais interpretações, vários sen
tidos ou significados.
Do ponto de vista da psicologia junguiana, esta lin
guagem simbólica pode tamb~m referir-se a padrões arquetÍpi
11
cos, conceito este que Jung desenvolveu e reformulou algu -
mas vezes ao longo de sua 0bra.
De acordo com Jolande Jacobi (s.d.), é importante
ressaltar a diferença que há entre a noção de arquétipo e de
imagem arquetípica.
o arquétipo em si é imperceptível, um princípio or
denador cujos elementos provenientes do inconsciente coleti.
vo (compostos de conteúdos universais, transpessoais) estr~
turam e coordenam o funcionamento da psique. E uma espécie
de padrão básico subjacente que se revela :La psique indivi-
dual ou coletiva, com base na experiência de vida daquele i~
divíduo ou daquela coletividade. E importan te ressaltar que
esta capacidade de organização é herdada, enquanto o conte~
do ou as imagens arquetípicas sofreill as influências do meio.
Citando Andrew Samue~s:
"( ... ) é perfeitamente sensato argumentar que, em
bora o conteúdo não seja herdado, forma e padrão o são; o con
ceito de arquétipo satisfaz este critério. o arquétipo é vi~
to corno um concei to puramente formal, um arcabouço então pre
enchido com imagens, idéias, ternas, etc. A forma ou padrão
arquetípico é herdado, mas o conteúdo é variavel, sujeito a
mudanças históricas e ambientais" (Samuels, 1989, p. 43).
Jo1ande Jacobi (s.d.), ajuda-nos a compreender m~
1hor esta afirmativa, dizendo-nos que o arquétipo "materno",
por exemplo, está prenhe de todos os aspectos e variações
que um símbolo pode apresentar, seja a goela de uma baleia,
o seio da igreja, a caverna acolhedora, a fada boa ou a bru
xa (podendo simbolizar aspectos positivos e negativos da mãe
vivenciados através dos contos de fadas), e até mesmo a nos
12
sa mae pessoal.
Ou seja, os modelos arquetípicos básicos ou núcleos
estruturantes são universais, sao comuns a todos os povos,a
todos os indivíduos, e persistem com o passar do tempo. No
entanto, a relação do indivíduo com o arquétipo tende a ser
estabelecida através de imagens, estas sujeitas as varia-
çoes individuais e culturais.
Portanto, existem símbolos nas suas formas arque-
típicas fundamentais que quanto mais profundas ou arcaicos,
mais coletivos e universais serão, ao passo que estando eles
mais próximos da camada consciente, mais específicos e sin-
guIares serão, perdendo o seu caráter universal.
Ao tentarmos explicitar mais claramente a noçao de
arquétipo e sua diferenciação da idéia de imagem arquetípi
ca, buscamos argumentos para demonstrar a identidade que há
entre mito e contos de fadas cujos motivos básicos têm ori
gem nas camadas profundas do inconsciente, comuns à psique
de todos os humanos.
Mircea Eliade (1972) ajuda-nos a entender melhor
esta afirmativa:
"Certamente os mesmos arquetipos, ou seja, as mes
mas figuras ou situações exemplares, reaparecem indiferent~
mente nos mitos, nas sagas e nos contos" (Eliade, 1972, p.I71).
~ importante esclarecer que o conceito de arquéti.
po, para Eliade tem significado diferente daquele definido
por Jung: para ele, arquétipos são modelos ou protótipos de
comportamento. Nesta citação acima, o autor deveria estar
se referindo ao herói como um modelo arquetípico represent~
13
do em ambas as narrativas.
Se, por um lado, contos e mitos lidam com padrões
arquetÍpicos, como o arquétipo do herói que luta, se sacri
fica na busca de algo novo, da salvação ou recuperaçao do que
foi perdido, expressões típicas do arquétipo da transforma
çao que exigem mudanças decisivas e expansão da consciência,
existem autores que defendem a idéia de que os contos de f~
das são muito menos influenciados pela civilização em que
surgiram devido ã sua estrutura mais elementar.
Como já foi exposto, é difícil precisar a cultura
e a tempora1idade dos contos de fadas, pois estes parecem
nos conduzir para uma realidade incomum, para um mundo onde
tudo é possível embora preservem elementos extraídos da rea
1idade trivial aos seres humanos: família, pobreza, abando
no, desejos a princípio difíceis de serem realizados, etc.
Percebe-se nos contos a composição de dois mundos
que se inter-relacionam: o mundo "mágico" e o mundo real que
se assemelha ao cotidiano do homem comum.
As figuras do "mundo m;gieo" são entes que nunca
vimos, mas imaginamos como são: as bruxas, mulheres e homens
sábios, anões, gigantes e animais que falam. Acontecem mi
lagres e transformações, figuras que voltam a viver, a Bela
Adormecida que dorme cem anos e continua boni ta e jovem, etc.
Raramente o conto se inicia no "mundo mágico", mas sim no
cotidiano do mundo de cá, até que surge o elemento mágico que
nos transporta para o outro mundo.
Mas se para Bette1heim (1988) os heróis míticos
oferecem excelentes imagens para o desenvolvimento do supe~
14
ego, já que representam aspectos divinos humanamente impra
ticáveis, para Von Franz (198S~) os mitos, por estarem mais
inseridos na civilização e retratarem de forma mais proemi
nente as influências da religiosidade de uma determinada cu1
tura, dificilmente poderão ser estudados sem se conhecer a
fundo o seu legado cultural.
Neste sentido, o conto de fadas, por ter uma es -
trutura mais elementar, por ter uma linguagem simples e, po~
tanto, ser mais facilmente compreendido (visto que até hoje
faz sucesso junto ao público infantil), pôde migrar melhor
de uma região ã outra, pois reduzido aos seus elementos es-
truturais básicos, faz sentido para qualquer um.
1.2 As fontes possíveis que deram origem aos contos de fadas
Além desta idéia de que os contos de fadas sao re
manescentes modificados dos mitos, existem outras hipóteses
defendidas por folcloristas, mitólogos, psicólogos, que ap~
rentemente se contradizem. Mas se formos analisá-las aten-
tamente, percebe-se que uma nao exclui a outra.
A psicóloga junguiana Marie Louise Von Franz sug~
re que as formas mais originais dos contos de fadas sao as
sagas locais e as histórias parapsicológicas, histórias mi-
raculosas que acontecem devido a invasões do inconsciente
coletivo sob a forma de alucinações em forma de vigília:
"Estas coisas ainda acontecem; os camponeses suí
experenciam-nas constantemente e elas formam a base das cren
ças folclóricas. Quando alguma coisa estranha acontece,ela
ê cochichada e corre, como correm os boatos; então, sob co~
dições favoráveis o fato emerge enriquecido de representa -
15
.".. . - . . çoes arquetlplcas Ja eXlstentes e progresslvamente transfor
ma-se num conto" (Von Franz, 1981, p. 133).
Há outra hipótese levantada pelo folclorista sovi
ético V. Propp, mencionado por Eliade (1972), que se refere
a uma origem ritua1Ística dos contos populares, ou seja,e1e
vê nos contos a reminiscência dos ritos totêmicos de inicia
ção, pois se reduz a um enredo iniciatório (lutas contra o
monstro, obstáculos aparentemente insuperáveis, enigmas a se
rem desvendados, o casamento, etc.).
Eliade faz um comentário sobre isto:
"Embora em quase todos os contos haja o happyeYl.d,
seu conteúdo propriamente dito refere-se a uma realidade ter
rivelmente séria; a iniciação, ou a passagem através de uma
morte ou ressurreição simbólicas, da ignorância e da imatu
ridade para a idade espiritual do adulto" (Eliade,1972,p.173).
Von Franz (1981), como já mencionamos preliminar
mente, nao compartilha desta idéia, pois acredita que a ba-
se nao é o ritual mas uma experiência arquetípica. Segundo
a sua tese, os rituais apareciam nas sociedades primitivas
quando um ou mais integrantes da tribo compartilhavam as suas
VI soes e os seus sonhos com o resto da tribo. Ao serem en-
cenados para todos,estes sonhos surtiam um efeito profundo
naquelas pessoas, chegando mesmo a ter um caráter curativo.
Estas encenações passaram, então, a serem feitas repetidas
vezes, passando a fazer parte do ritual daquela tribo.
Esta é uma explicação plausível, isto é, a de que
o ritual pode ser imanente ao inconsciente coletivo, lembran
do que este termo, definido por Jung, corresponde às cama -
16
das mais profundas do inconsciente, aos fundamentos estrutu
rais da psique comuns a todos os homens.
Estas colocações, do nosso ponto de vista, sao i
gualmente válidas, levando-se em conta os seus mentores. Ob
viamente Mircea Eliade (1972), busca analisar dados dando-lhe
um perfil antropológico, e Marie Louise Von Franz (1981), sem
dúvida, privilegia uma interpretação psicológica, em sinto
nia com a escola da qual faz parte, que pressupoe uma dinâ
mica psíquica regida pelos arquétipos.
~ difícil traçar um limite claro entre o enredo i
niciatório e o conto de fadas, pois este último desvenda-nos
algumas passagens protagonizadas pelos seus heróis ou heroÍ
nas, que sugerem a mesma mensagem implícita nos rituais, ou
seja, as perdas inevitáveis para se chegar ã maturidade, a
capacidade que teremos de possuir representados pelo perso
nagem principal de transpor as "provas" e sofrer as trans -
formações que a vida nos exige.
Mas, se indagarmos o que há de comum entre a exp~
riência arquetÍpica compartilhada e o ritual em si, chegar~
mos ã conclusão que é a representação afetiva que aglutina
os homens, já que tanto o ritual como a experiência arquet!
pica são submetidos ou desencadeados através de um apelo a
fetivo, seja ele consciente ou inconsciente.
Portanto, podemos concluir que o conto de fadas tem
uma natureza psicológica que se assemelha ã estrutura dos n~
to~ de ~n~e~ação, e se diferencia de parte dos mitos ,por ter
uma estrutura mais elementar e um material consciente cultu
ralmente muito menos específico que aquele encontrado nos mi
17
tos. Inúmeras versoes dos contos e motivos semelhantes en-
contrados sobre a mesma temática, nos mais diferentes paÍ -
ses, não nos levam a afirmar qual a sua matriz cu1tura1,mas
sim o seu caráter mais universal do que os mitos.
1.3 Num país distante, no tempo em que os desejos ainda se
realizavam ...
Marie Louise Von Franz (1981) faz um histórico, com
base em pesquisas, dos primeiros contos que foram registra-
dos, e descobriu indícios de que estes surgiram na forma es
crita juntamente com o aparecimento da mesma, ou seja, há
3.000 anos.
Além deste registro, existem outros na Antigüida-
de - por exemplo, o conto "Amo~ e P~ique~ foi escrito por
Apuleius, famos9 escritor e filósofo. Segundo a autora, -e
interessante notar como o tema da mulher que redime o seu
amado da forma animal, que aparece neste conto, constitui um
padrão, ou seja, encontram-se motivos semelhantes em vários
países da Europa, assim como no Brasil, na história "O PrÍn
cipe Lagartão" da coletânea de Luís da Câmara Cascudo.
Pelos escritos de Platão, soube-se que as mulhe -
res mais velhas contavam às crianças histórias simbólicas,
e, desde então, os contos de fadas passaram a estar vincula
dos à educação de crianças.
Entretanto, até os séculos XVII e XVIII, os con-
tos costumavam ser a principal forma de entretenimento para
as populações agrícolas na época de inverno. Contar contos
de fadas, diz Von Franz, "tornou-se uma espécie de ocupação
18
cspiritual cssencia1. Chegou-sl' mesmo a dizer quc elcs rc-
prC'scntavam a filosofia du rollu dc fjar" (Von Franz, 198],
p. 18).
Segundo essa autora, com o advento do Cristianis-
mo, o neo-paganismo começou nu Alemanha corno urna reaçao aos
ensinamentos cristãos, o que levou Von Franz a defender ain
da a idéia de que existem alguns contos que retratam urna co~
pensação do inconsciente frente ã supremacia da consciência
cristã na época.
Sem querer entrar a fundo no mérito desta questão, ~
pois e um assunto bastante amplo e exigiria mais dados de nos
sa parte, nos referiremos apenas a alguns pontos que exempli
ficam a afirmação descrita acima.
Observam-se, em alguns contos, elementos intrínse
cos ao paganismo: gigantes, fadas, bruxas, animais que fa -
Iam, personagens mitológicos em geral (sereias, homem com ca
beça de animal, etc.). Elementos, sem dúvida, simbólicos,
mas também utilizados e explorados pelas religiões que nao
se enquadram na tradição judaico-cristã e, portanto, sujei
tas a perseguição e dizimação, como nos mostra a História,
em destaque na Idade Média, quando se "assavam" as chamadas
"bruxas" nas fogueiras.
Outra questão que nos parece relevante é o fato
de os contos até então propagados oralmente pelo povo antes
do século XVII, passarem a ter na figura dos Irmãos Grimm um
de seus principais compiladores.
Corno nos relata Von Franz:
19
"Os Irmãos Grimm escreveram os contos literalmen'"
te, corno eram contados pelas pessoas das redondezas,mas me~
mo eles não resistiram algumas vezes a misturar um pouco as
versões" (Von Franz, 1981, p. 19).
Vê-se, então, a partir desta última colocação,
que as reproduções dos Irmãos Grimm não eram assim tão lite
rais como deduz a autora.
].4. O legado da cultura celta
Ao fazermos o levantamento bibliográfico sobre o
tema em questão, não poderíamos deixar de considerar as pe~
quisas realizadas no campo da literatura, em especial daqu~
la denominada "literatura infantil", destinada às crianças.
Deparamo-nos com um estudo significativo realizado por Nelly
Novaes Coelho (1987) sobre a etiologia dos contos de fadas,
E interessante notar que Nelly Novaes Coelho faz
uma distinção entre contos de fadas e o conto maravilhoso.
Segundo a autora, os contos de fadas, com ou sem fadas, de
senvolvem seus argumentos dentro de uma magia feérica (reis,
rainhas, príncipes, fadas, bruxas, gigantes, tempo e espaço
fora da realidade conhecida, etc.) e têm como eixo gerador
uma problemática existencial expressada através de provas e
obstáculos que precisam ser vencidos, como um verdadeiro ri
tual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realiza
ção existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro eu,s~
ja pelo encontro com a princesa, que encarna o ideal a ser
alcançado.
Nelly Novaes Coelho nos aponta, ainda, que os con
20
tos de fadas são de origem celta, cujos vestígios mais remo
tos provêm de séculos antes de Cristo e, a partir da Idade
Média, foram assimilados por textos de fontes européias, fi
cando-nos praticamente impossível a tarefa de resgatá-los
na sua forma "pura", talo amálgama de fontes que se fun-
diam nas narrativas recolhidas.
No entanto, ressalta a autora:
"Foi no seio do povo celta que nasceram as fadas.
Os celtas provavelmente vieram da Ásia, e foram impelidos a
emigrar para a Gália, Península Iberica, Ilhas Britânicas,
Alemanha, ate que nos seculos 11 d.C. e I d.C. foram compl~
tamente submetidos pelos romanos ( ... ). Na vida comum eram
simples e leais, e daí a sua contínua fusão com outros po
vos, e enorme pulverização de sua cultura pela Europa ( ... ).
Eles eram espírito-naturalistas, isto e, deificavam todas
as manifestações da natureza. Suas divindades agrárias eram
femininas, por ser a agricultura, entre eles, tarefa das mu
lheres. Renderam culto aos animais, assim como às armas, a
tribuindo-lhes poderes mágicos" (Coelho, 1987, p. 39).
Além de animistas, o seu espírito de religiosida
de difundiu-se entre todos os povos devido a organização da
casta sacerdotal dos druidas. Etimologicamente, diz a auto-
ra, druida provém da palavra céltica d~u, que quer dizer
ea~valho (já que exerciam suas misteriosas funções no bos
que), ou ainda outra significação resultante da decomposi
ção d~u (prefixo indo-europeu que significa eomple~amen~e a
6unda) e vid (que significa eanheee~).
Co~ a crescerte cristianização proveniente de Ro
ma, os rituais considerados pagãos mesclaram-se com a ordem
cristã, e toda a atmosfera mágica celto-bretã (donde deri-
21
vavam as lendas do Rei Arthur) ficou entregue às bnunas e ao
esquecimento, e por que não dizer, de acordo com a termino
logia psicológica apresentada, foi reconduzida ao inconsci
ente de onde emergem os nossos sonhos e imagens arquetípi -
caso
Quanto aos contos de fadas, designados por Nelly
Novaes Coelho, como contos maravilhosos, são compreendidos
como narrativas que com ou sem a presença de fadas, se de
senvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, gênios e d~
endes, etc.), e têm como eixo gerador uma problemática so-
cial (ou ligada ã vida prática concreta), mas que aponta p~
ra vivências simbólicas, como o confronto de tendências opos-
tas ali representadas nas mais variadas figuras: lobos, bru
xas, fadas, pássaros, personagens mitológicos, etc.
Enquanto os contos de fadas foram engendrados pe-
los povos europeus, e posteriormente disseminados pelos Ir-
mãos Grimm, Perrault, como por exemplo, "A Bela e a Fera",
"Rapunzel", "A Bela Adormecida", etc., os contos maravilho-
sos originaram-se nas narrativas orientais, e segundo Nelly
Novaes Coelho, enfatizam a parte material, ética e sensorial
do ser humano, como por exemplo: "As Mil e Uma Noites", "O
Gato de Botas", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa", etc.
Portanto, a autora nos abre uma perspectiva que
vem, em parte, corroborar e até ampliar nossas colocações,
isto -e, de que os contos de fadas tiveram a sua dissemina -
çao nos povos considerados pagãos, profundamente religiosos
e providos de uma cultura enriquecedora, a nível artístico e
espiritual.
22
No ~ntanto, DO considerarmos ~stu possibilidad~
u~stacaua pela autora a respeito da sua herança celto, con~
tatamos que o homem, desde os prim6rdios da sua cultura,pr~
ocupa-s~ em buscar respostas para os enigmas da vida e da
criaç50, e na impossibilidade ou isento de condições para fa
zê-Io objetivamente, projeta-o ou elabora-o na religião e no
mistério; projeções e elaborações que refletem,numa 6tica
psicol6gica, o seu estado de indiferenciação com os fenôme
nos não-explicáveis, ou de total comunhão com conteúdos ar
quetÍpicos expressados na sua forma simb6lica.
1.5 Perrault, os Grimm, Andersen e Cascudo
Até aqui buscamos expor sobre quais as origens dos
contos de fadas, quais as fontes possíveis que geraram os
contos até estes serem coletados e editados pelos compilad~
res bastante conhecidos do público em geral, especialmente,
Perrault e os Grimm.
Os contes de fadas, devido ao seu caráter popular
e por serem disseminados oralmente, detonam nos pesquisado
res, até hoje, questionamentos e suposições acerca da sua
etiologia, mas o que não podemos perder de vista é o seu ca
ráter coletivo. Ao migrarem de uma região a outra, de boca
em boca, sofreram adaptações de acordo com a cultura local
(os contos coletados por Luis da Câmara Cascudo, aqui no Bra
sil, possuem, em sua maioria, elementos da nossa cultura,c~
mo veremos mais adiante).
Faremos agora uma rápida análise do contexto his
t6rico em que viveram alguns destes compiladores:
23
Foi no século XVII que o francês Charles Perrault
adaptou os contos e lendas que coletou junto ao povo, preo
cupando-se em retratar o popular de forma irônica e morali-
zante.
Segundo Ligia Cademastori (1987), Perrault, de ori
gem burguesa, desprezava o povo e as superstições populares, ~
revelando o modelo educativo imposto a ele e a sua epoca, ~
través de narrativas fáceis de serem retidas pelo público
infantil, não deixando de refletir, entretanto, as tensões
e soluções sonhadas pelos camponeses vítimas da repressão do
governo absolutista de Luís XIV.
~ importante lembrar que, antigamente, os contos
de fadas não eram destinados apenas às crianças, mas também
a adultos das classes mais baixas da população como lenhad~
res e camponeses, que entretinham as mulheres que se ocupa-
vam da roda de fiar.
Mas, com relação às posições conservadoras de Char-
les Perrault, Nelly Novaes Coelho faz uma ressalva:
liA natureza dos argumentos dos contos colhidos por
Perrault para a sua coletânea (praticamente todos centrados
em mulheres injustiçadas ou vítimas) confirma sua intenção de
apoio ã causa feminista, da qual uma das líderes era sua so
brinha, Mlle. Heritier" (Coelho, 1987, p. 18).
Um exemplo de narrativa na qual Perrault represe~
tou magnificamente um conflito feminino, ocasionado pelo d~
sejo incestuoso de um pai por sua jovem filha, encontra-se
em "Pele de Asno", onde a heroína, em vez de "pura" e "rec~
tada", se veste de elementos da natureza, dança e seduz.
24
Os contos retratam, além de dramas psíquicos, co-
mo veremos mais adiante, narrativas que por vezes fogem aos
padrões de comportamento propagados pelas instituições reli
giosas e burguesas, detentoras da normatização das regras s~
ciais. Neles era possível o jogo de sedução previsto entre
o lobo e a menina eJ!l "Chapeuzinho Vermelho", o casamento en
tre ricos e pobres em "Rapunzel", o "Alfaiatezinho Valente",
e a possibilidade de aceitação e afeto entre seres humanos
e "criaturas" que aparentemente causam repulsa em "A Bela e
a Fera", entre outras.
, Os contos proporcionam a crianç2 e aos adultos a
vivência de elementos mágicos e mitológicos, que nao corres
pondem a urna realidade objetiva mas sim subjetiva.
Por isso, fica-nos extremamente difícil e delica-
do estabelecer limites entre o real e o imaginário, já que
os contos extraíram das fontes mitológicas e onÍricas a es
sência que delineou seus motivos e temáticas caracterizadas
corno simbólicas.
Podemos também buscar nos seus compiladores fato
res literários e de natureza pessoal, que ajudaram a compor
as suas respectivas obras.
E dando curso a isto, destacam-se as publicações
dos Irmãos Grimm, que no século XIX ampliam a antologia dos
contos de fadas, recolhendo da memória popular as antigas na!.
rativas com o auxílio de duas mulheres, uma camponesa e ou-
tra francesa, que se encarregavam de rechear os seus livros
de histórias.
25
Jacob e Wi1heim tiveram uma formação bem diversi
ficada, pois além de filósofos e grandes fo1c1oristas, fo -
ram estudiosos da mitologia germânica e da história do Di-
reito alemão, o que talvez tenha levado Jacob Grimm a dizer:
"Eles -(os contos) nao foram imaginados, inventa --dos, mas sao os reflexos das mais antigas crenças populares
e a fonte inesgotável dos mais puros mitos" (transcrição de
Laura Sandroni no Boletim ln6o~mativo da FNLIJ, 1987, p.38).
Dentre os contos mais conhecidos dos Irmãos Grimm
aqui no Brasil citamos "Joãozinho e Maria", "Branca de Neve
e os Sete Anões", "A Gata Borralhe i ra", 'IRapunzel' I, 1embran
do que se encontram algumas versões destes contos nas cole
tâneas de Perrau1t, que ora se assemelham ora divergem das
de Grimm.
Com uma simplicidade que lhes é caracterÍstica,os
Irmãos Grimm reproduzem nos contos temáticas que são identi
ficadas nos vários contos que coletaram. Geralmente, um ra
paz ou uma moça nascem numa família pobre, sendo ou muito
amados ou desprezados pelos pais ou pelos substitutos des
tes (a afetividade obedece a pólos extremos). A partir daí,
surge algum conflito ou alguma tarefa que leva o protagoni~
ta a "sair pelo mundo", podendo encontrar a solidão, a an -
gústia e a fome que fatalmente serão compensadas por alguma
intervenção mágica ou algum ajudante com poderes mágicos (voz
interna?) que irá impor-lhe tarefas que, caso sejam venci -
das ou superadas, haverá uma recompensa, ou seja, o casamen
to, mudança de posição social, reconhecimento pelos outros,
enfim, situações que objetivamente significam mudanças na vi:.
2(,
ua uo protagonista, e subjetivamente acarn'tarão urna trans-
formação ue si mesmo, pois o protagonistu sem dúvida muua a
sua atituue perante a vida.
~ claro que estamos simplificando ao máximo, afi-
nal os contos sugerem urna riqueza de significados muito mais
ampla e profunda, e não seguem todos necessariamente este
"roteiro". O que queremos demonstrar é a sua narrativa de
fácil compreensão e que, por sua vez, usam recursos que ap~
sar de não terem similaridade com a realidade objetiva, tran~
portam-nos para o reino dos desejos e das imagens simbóli -
cas com tal graça e virtuosidade, que passaram a ser compa-
rados com uma obra de arte:
-"o conto de fadas nao poderia ter seu impacto psl
colõgico sobre a criança se não fosse primeiro e antes de tu
do uma obra de arte ( ••. ) Como sucede com toda grande arte,
o significado mais profundo dos contos de fadas sera dife -
rente para cada pessoa em vários momentos de sua vida" (Bet
thelheim, 1988, p. 20 e 21).
Mais de um século separa os Grimm de Perrault e os
tempos são outros. Os folcloristas alemães, já na era do
Romantismo, davam um estilo mais suave a suas histórias, a-
menizando a violência e a crueldade expressas com mais vee-
mência nas coletâneas de Perrault. Para exemplificar, Per-
rault publicou contos como "Barba Azul", conhecido por seu
caráter "sanguinário", assemelhando-se em muito a uma histó
ria de terror, além da versão de sua autoria de "Chapeuzi -
nho Vermelho", cujo final termina com o lobo devorando a me
nina e a avó, em contraste com a de Grimm, que traz a figu-
ra do caçador que salva as duas mulheres da barriga do 10 -
27
bo, despejando-o no rio com a barriga cheia de pedras.
Discutiremos a crueldade presente em alguns con -
tos mais adiante, assunto este que até hoje tem gerado pol~
micas.
Outro autor que se consagrou junto ao público in
fantil foi o dinamarquês Hans Christian Andersen, conhecido
também por suas poesias e novelas.
Andersen viveu no ipice da era do Romantismo e,
portanto, seus contos, em especial, estão sujeitos a influ
ências dos preceitos romãnticos, como emotividade exacerba-
da, permeada de amores idealizados e decepções amorosas que
levam os personagens a adoecerem e se entregarem à desilu -
sao frente à vida quase que por completo.
Contrastando com os demais, Andersen, reconhecido
por uma vida pessoal altamente atribulada, o que se refle -
tiu seriamente na sua personalidade, não buscou só nas fon
tes populares inspiração para editar os seus contos, ji que
alguns foram criados por ele mesmo, adquirindo uma atmosfe
ra trigica, e~pelhando em muito a sua problemitica pessoal.
Explicitando os padrões de comportamento exigidos
por uma elite em conformidade com a moral cristã da
Andersen ainda encontrava fôlego para manifestar em
-epoca,
alguns
contos as desigualdades soctais, mostrando não somente as in
justiças dos poderosos, mas a defesa dos direitos iguais p~
ra as classes populares, faixa social à qual ele também pe~
tencia.
Foi através de "Soldadinho de Chumbo", "A Sereia-
28
zinha" c "Patinho Feio" que reconhecemos (J des.ilusão, a re
jejç50 e a necessidade de aceitaç50 pelos que nos rodeiam.
Reconhece-se também a crítica social presente em "Roupa No
va do Imperador", notabilizando-se ar a frase "O Rei est5
n~", ou seja, a falta de autenticidade das pessoas da corte
frente ã "figura detentora de poder" desmascarada apenas p~
la espontaneidade de uma criança que não se encontra na fa
se de total assimilação e conseqüemte cumprimento das nor
mas ditadas por um grupo social, sejam elas lícitas ou nao.
E, finalmente, o nosso compilador brasileiro, o
folclorista Luís da Câmara Cascudo, que também, ainda que
mais recentemente que os outros (década de 30), encontrou nos
contadores de histórias espalhados pelo Brasil (com desta -
que especial ao Nordeste do País) alguns de seus principais
colaboradores. Outras coletâneas suas foram tiradas de vo
lumes impressos.
Segundo o autor, a proporçao entre os elementos in
dígenas, africanos e brancos no folclore brasileiro é de 1:
3:5, ou seja, foram os portugueses, franceses, holandeses e
espanhóis, entre outros, que se encarregaram de divulgar no
Brasil a cultura e a narrativa européias, ainda que sofres
sem adaptações de acordo com o narrador local.
Ao observarmos os contos descritos no seu livro
Con~o~ T~adieionai~ do B~a~il, notaremos que muitas versões
recolhidas por aqui são variações de contos portugueses, e~
panhóis e franceses, incluindo aí aquelas presentes nos li
vros de Perrault (no Brasil a versão de "Bela Adormecida"g~
nhou o nome de "A Princesa do Sono-Sem-Fim") e Grimm (a ver
29
sao de "Joãozinho e Maria" cujo título é idêntico), entre
outros. f importante ressaltar que o autor sempre nos noti
fica da origem popular de alguns contos e a dificuldade de
se estabelecer com precisão a sua fonte originária, tal a
quantidade de publicações de várias nacionalidades, cujos mo
tivos são semelhantes.
No entanto, é possível identificar a presença dos
elementos indígena e africano em "O Marido da Mãe d'Água",
assim como denominações oriundas da cultura brasileira, co-
mo por exemplo, "égua perebenta" no conto "A Princesa Jia",
possivelmente de origem espanhola ou portuguesa.
Cascudo, em algumas narrativas, mantém na íntegra
o discurso do contador da história, não se atendo às normas
gramaticais corretas, mas a reunir elementos do nosso fol-
clore e reproduzi-los fielmente.
Diz o autor:
"A novelística, que se tornou uma das mais apal.x~
nantes atividades de pesquisa cultural do seculo XIX, cons~
grou o conto popular, transmitindo oralmente, mostrando sua
maravilhosa ancianidade e o texto, jamais uno e típico, mas
tecido de elementos vindos de muitas origens, numa fusão que
se torna nacional pelo narrador (presença do ambiente meso
lógico, fauna, flora, armas, vocabulários) e internacional
pelo conteúdo temático. ( ••• ) As pesquisas esclareceram que
os contos populares ( ... ) p~rtem de temas primitivos e obe
decem a uma seriação articulada de elementos, de soluções
psicológicas, uso de objetos, encontro de obstáculos, comuns
e semelhantes" (Cascudo, 1988, p. 247).
Parece-nos que Câmara Cascudo conseguiu integrar
neste parágrafo os principais tópicos que queríamos abordar
30
neste capítulo. Tentamos expor, levando em conta elementos
ora contraditórios, ora complementares, a identidade que há
entre os mitos e os contos de fadas, no que concerne à ado
ção de motivos e elementos similares, assim como na sua lin
guagem simbólica. Elementos estes que, de acordo com a ar
gumentação de algumas escolas psicológicas, expressam-se na
psique coletiva ou individual sob a forma de imagens arque
típicas.
Formulamos ainda as posições de Mircea Eliade a
cerca da origem ritualÍstica dos contos de fadas e a possi
bilidade de terem eles a sua origem através da disseminação
da cultura celta, hipótese defendida por Nelly Novaes Coelho.
E ressaltaríamos mais uma questão: é extremamente
complexo estabelecer os limites entre cultural e o psicoló
gico de um gênero literário ou artístico que praticamente se
alastrou pelo mundo e se difundiu através das mais diferen
tes culturas, que traz na sua linguagem e imagens simbóli
cas o seu principal agenciamento.
Sabemos que o símbolo se confunde com o desenvol
vimento de toda a cultura humana, assim como incita senti
dos que proporcionam uma mediação com tendências inconscien
tes, sejam elas coletivas ou individuais, já que a relação
que cada um estabelece com o símbolo é pessoal.
Considerando que o nosso objetivo é o conto defa
das que tem um caráter transcultural e, portanto, assimila
do nas várias culturas, podemos deduzir o seu caráter uni
versal, trazendo em seu bojo a sua tendência de incitar sen
tidos vários e multÍvocos, dada a sua vocação simbólica.
CAPITULO 2
O SIGNIF1CAJlO PSICOLOC1CO DOS CONTOS DE FADA
2.1 O Sighifitado do simb6lico
Antes de discorrermos especificamente sobre COIl
tos de fadas, precisamos situar-nos a respeito da noçao de
símbolo e contextualizá-lo um pouco dentro de uma perspecti
va cultural e aC3d~mica; e, de uma forma mais ampla, ressal
tar a função simbólica de acordo com algumas correntes psi
cológicas, para percebermos até que ponto estas considera
çoes serao relevantes dentro da nossa temática.
A noção de símbolo tem sido explorada em várias
areas de conhecimento, encontrando-se atualmente páginas e
páginas dedicadas a sua definição e função no campo da filo
sofia, lingüística, pedagogia, psicologia, artes, etc.
O trabalho desses autores nos proporcionou recolo
car a questão do símbolo dentro de uma visão epistemológica
voltada para a ampliação e a sustentação de algumas teorias
que se propoem elucidar questões acerca da exist~ncia huma
na.
Gilbert Durand (s.d.) descreve em seu livro A ima
ginação ~imbõlica que foi atraves do cartesianismo e do po
sitivismo que o simbolismo foi relegado aos patamares do in
verossímil, ou seja, o racionalismo assim como o empirismo
reducionista acabam por influenciar decisivamente o pensa -
mento humano pretendendo-se com isso perpetuá-los como meto
dos universais, ou as únicas vias possíveis de se promover
32
o conhecimento.
Com a formulação de outros métodos, o empirismo
deixou de ser o único instrumental, e a questão das imagens
simbólicas em especial passou a ter reconhecimento frente
às contribuições da psicologia e da etnologia, que demons -
traram a importância das imagens simbólicas na cultura e no
psiquismo.
o "objeto ausente" passou a ser considerado a pa,E.
tir de sua representação ou imagens através de sonhos, mi-
tos, poesia e contos de fadas, re-ve1ados à consciência,
reconduzindo-nos a um universo sensível onde se privilegia
o inconsciente, o sobrenatural, o sagrado e a fantasia.
Para compreendermos melhor esta idéia, citamos G.
Durand, que se baseou nas colocações de Paul Ricoeur:
"( ... ) todo símbolo autêntico possui três dimen -
sões concretas: ele é, ao mesmo tempo, 'cósmico' (ou seja,
retira toda a s~a figuração do mundo sensível que nos ro
deia); 'onírico' (enraíza-se nas lembranças, nos gestos que
emergem em nossos sonhos e constituem, como bem mostrou Freud,
a massa concreta de nossa biografia mais íntima) e, final -
mente, 'poético', ou seja, o símbolo também apela para lin
guagem" (Durand, s.d. p. 16).
]j este símbolo "indizível", mas que se manifesta
através da linguagem que o circunda e é portador de virios
significados, que nos impele a buscar relações, que nos aju
da a construir o universo humano, de forma mais abrangente.
E importante lembrar que signo e símbolo referem-se
a realidades diferentes. Como definiu muito bem Cassirer,
33
os si~nos correspondem a uma parte do mundo físico e. por-
tanto. são "operadores". enquanto os símbolos sao uma parte
do mundo humano dos sentidos e. portanto. são "desiW1adores" .
o autor faz ainda algumas considerações sobre a
linguagem:
liA linguagem foi freqüentemente identificada com a
razão ou a origem desta. Razão ê um termo muito pouco ade
quado para abranger as formas de vida cultural do homem em
toda a sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas -sao
simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um
animal ~ationale, deveriamos defini-lo como um animal ~ymbo
lic.um" (Cassirer, 1977. p. 51).
Cassirer, talvez em resposta aos positivistas, de
fende a idéia de que o conhecimento humano é simbólico.o que
caracteriza ao mesmo tempo a sua força e limitações. E ao
descrever a estrutura da linguagem, do mito, da religião e
da,a:te, ele requisita a necessidade de uma terminologia psi
cológica, pois se penetra num mundo em que o sentimento, a
imaginação artística ou mítica, assim como o pensamento, es-
tão em jogo.
Em se tratando da contribuição da psicologia em re
lação à compreensão dos simbolismos presentes nas mais di-
versas formas de expressão é que destacamos as idéias de
Jung. que redescobriu e ampliou a noção de símbolo carac -
terizando-o também corno mediador entre consciente e incons-
ciente.
Ainda ocorrem confusões a respei to da noçao de sÍID
bolo e arquétipo dentro da teoria junQ'uiana: o "arquétipo em
34
si" é essencialmente a energia psíquica, a matéria-prima
fornecida pelo inconsciente coletivo, que passa a ser re
conhecível através da manifestação de uma imagem arquetípi
ca ou símbolo.
Para exemplificar esta idéia, podemos reconhecer
o arquétipo da "luta do bem contra o mal", ou o conflito
de opostos através da luta ao herói contra aquelas forças
que personificam o mal: fome, frio, tempestades, dragões,
bruxas, etc.
A constatação da existência, ou nao, de um signi
ficado simbólico depende também daquele que o percebe, is
to é, passa por uma avaliação subjetiva, onde, por exemplo,
a figura de um sol pode ser, para alguns, apenas a expre~
são de um signo, e para outros, um símbolo, ou seja, causa
um efeito que detona significados por vezes inexplicáveis.
Existem ainda, segundo Jolande Jacobi (s.d.),sím
bolos que podem se degenerar em signos dependendo do con -
texto ou daqueles que os contemplam. A cruz, num exemplo
dado pela autora citada, pode ser apenas o signo externo do
cristianismo, enquanto para outros pode simbolizar toda a
plenitude da história da Paixão.
E, finalmente, retomando a nossa colocação formu
lada anteriormente, referimo-nos ao caráter mediador do sím
bolo, defendido por Jung como o unificador dos pares de opos
tos, em primeira instância do consciente e inconsciente. Acres
centa Jolande Jacobi:
"o símbolo e, então, uma especie de instância me-
35
diadora entre a incompatibilidade do consciente e do incons
ciente, um autêntico mediador entre o oculto e o revelado".
E c on t in u a c i t a n do paI a v r a s de J u n {!: "E 1 e (o s í m bolo) não e nem abstrato e nem concreto. nem racional nem irracional.
nem real nem irreal: é sempre ambos" (Jacobi. s.d. 90).
Esta qualidade mediadora tem sido associada a uma
ponte. cuja função é de se criar uma passagem de um lado pa
ra outro, dinamizando a psique, unindo pólos antagônicos num
exercício de síntese para separá-lOS em seguida, já que a
psique ohedece a leis dinimicas, da mesma forma que o fluxo
da vida.
E cada vez que procuramos novas referências, para
abranger os vários significados que emergem através do sím
bolo, fica-nos cada vez mais evidente Que ao desvelar as ten
sões contraditórias Que lhe são inerentes. nota-se Que ele
possui um caráter dialético: o símbolo é universal, pois trans
cende o individual, mas pode, ao mesmo tempo, adquirir um
sentido relacionado especificamente com uma pessoa, depen -
dendo da relação que a mesma estabelece com aquela imagem em
especial. Pode ser portador de um sentido assim como ser
rico em numerosos sentidos.
o símbolo pode ser ao mesmo tempo consciente e in
consciente, não é racional nem irracional, mas as duas coi
sas simultaneamente. Ele é, por um lado, acessível à cons
ciência ou à razão, e, por outro, permanece oculto a ambas;
mas é através dele que se traça a possibilidade de inconsci
ente, e o consciente se aproximarem.
Mas de que forma torná-lo real para nós? Signifi
36
cando-o, vivenciando-o ou até mesmo interpretando-o.
Esta é a proposta de Paul Ricoeur:
"A interpretação, diremos, e o trabalho de pensa
mento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido
aparente, em desdobrar os
na significação literal.
4' • n1ve1S
Guardo
de significação implicados
assim a referência inicial
ã exegese, isto - -e, a interpretação dos sentidos ocultos.Sim
bolo e interpretação tornam-se conceitos relativos: há in -
terpretação onde houver sentido múltiplo; e é na interpret~
ç ã o que a p 1 li r a I i d a d e dos se n t i dos t o r na - sem a n i f e s ta" (Ri -
coeur, 1978, p. 15).
No entanto, apesar das palavras de Ricoeur, tende-
mos a o~tar por uma ou outra interpretação; somos remanes -
centes do racionalismo, e se nao nos definirmos por esta ou
aquela posição, corremos o risco de sermos rotulados de am-
bíguos, evasivos, etc.
Somos quase que impelidos a organizar o universo
em "categorias", pois existem publicações a respei to dos sÍID
bolos, tanto na 'área de psicologia (onde se diz que "isto" sis.
nifica "aquilo"), como nos "dicionários de símbolos", que
acabam por restringir o significante aos seus significados.
Esta é uma postura por demais dogmática, reducio
nista, que tem sido muito criticada tanto dentro do próprio
círculo da psicologia corno. por exemplo, pelo psicólo
go .. junguiano James Hillman quanto por filósofos, como
Gilbert Durand (s.d.).
o que devemos considerar, de acordo c~m o psicana
lista Meltzer (in Samuels. 1989) é Que deve ocorrer urna "at
mosfera interpretativa". onde há urna "interação" entre os
37
significados das imagens e nao uma "tradução" da imagem em
significado.
A psicologia vem-nos mostrar que o símbolo é con
cebido como uma síntese equilibradora, oferecendo soluções
-apaziguadoras para uma das tarefas mais complexas, que e o
autoconhecimento, ou a revelação de alguns aspectos da nos
sa personalidade que, sem o instrumental psicológico, seriam
ignorados do ponto de vista da sua apreensão nos vários nÍ-
veis, e nao apenas racionalmente.
Citando uma frase de Jung destacada do livro de J~
lande Jacobi (s.d.), " ... é a capacidade de ter consciência
que torna o homem mais humano". Consciência esta que vai
exigir que, através das diversas interações que formos efe
tuando entre o símbolo e os significados, busquemos rela-
ções que impliquem a adoção de uma linguagem que produza um
efeito esclarecedor. que motive a transposição daquele sig-
nificado antes inintelegÍvel, inconsciente. para uma esfera
real, possível, promovendo. assim. uma ampliação da consciI
ência e a possibilidade de um maior conhecimento de si e do
mundo.
o símbolo. como já foi descrito. tem a capacidade
de detonar inúmeras interações, interpretações. devido à sua
multivocidade.
No entanto, o homem necessi ta de valores para con~_
truir o seu mundo interior. Valores estes que sao produzi-
dos na relação com o próprio símbolo (bom/mau; esperto/bo -
bo; feio/bonito; etc.) presente nas imagens encarnadas pe
los personagens dos con tos. Na construção do nosso numdo in-
38
tcrior, sclccionamos os valores c hicrarqujzamo-los de acor_
do com os nossos jnteresscs particularcs (' cul tl1nd s.
Se quisermos, portanto, vivenciar e compreender a
linguagem simbólica prcsente nos contos de fadas,teremos tam
bém que decodificá-la, pois assim poderemos fazer as intera
ções possíveis entre os vários significados que emanam des
te universo simbólico que compõe estas histórias.
E como em toda linguagem simbólica, um pouoo de
mistério, entretanto, sempre permanecerá, considerando que
esta linguagem também é uma parte inerente ao mundo humano
de significação o qual nunca apreenderemos inteiramente.
2.2 Os simbolismos presentes nos contos retratam dramas psí
quicos
Desde que foi concebida a identidade que há entre
as imagens simbólicas ou arquetípicas presentes nos sonhos,
nos mitos e nos contos de fadas, proporcionada em especial
pela psicologia, estas imagens ou motivos, como definem al
guns, têm sido exploradas e analisadas nas diversas pub1ic~
çoes que encontramos sobre o assunto, entre as quais se de~
tacam as de Bette1heim (1988), Marie Louise Von Franz (1985~,
1985E., 1986), Hans Dieckmann (1986), que se ;aproftmdaram mais
sobre esta temática introduzida por Freud ou Jung.
O principal assunto destas investigações refere-se
à existência de analogias surpreendentes entre as imagens
arquetípicas encontradas nos contos de fadas e aquelas en -
contradas no inconsciente durante a terapia de cunho ana1í-
39
co, ou seja, da escola junguiana, encontrando-se aí a simb~
lização do processo psíquico, relativo -a individuação
(processu de Jesenvolvimellto psíquico com vistas ,à amplia -
çao da consciência cuja tendência é realizar potencialida
des inatas do indivídu~, ã maturidade e ao desenvolvimento.
o psicanalista Bettelheim(l988) nâo diverge muito
desta idéia, acreditando que o conto de fadas tem fins tera
pêuticos, pois contém projeções de fenômenos internos psic~
lógicos do ser humano, sob a forma simbólica, na busca de
respostas às suas indagações e de resolução de conflitos in
ternos.
o que distingue as duas escolas é que para a psi-
canalítica, os contos passaram, através dos tempos, a tran~
mitir significados manifestos e encobertos, assim como a
atividade onírica na concepção freudiana, enquanto para os
adeptos de Jung os contos espe lham a eS'Lrutura bãsicá da psique ...
,cujas ra1zes se encontram na psique coletiva.
Tanto a psicanálise como a psicologia analíticacon
cordali1 que os contos de fadas têm uma estrutura semelhante
ã dos sonhos. Freud já tinha percebido que os contos nao
são fundamentalmente distintos dos sonhos, e que falam uma
linguagem simbólica idêntica.
Marie Louise VonFranz (198S~1, por sua vez, diz
que os contos de fadas parecem exercer, no âmbito de um po
vo, uma função semelhante ã dos sonhos para o indivíduOI eles
cunfirmam, curam, compensam e criticam a ati tude coletiva pr~
dominante, assim como os sonhos o fazem com relação ã atitu
de de um indivíduo.
40
Ela acredita que apesar de haver nos contos mui -
tos motivos religiosos, eles jamais foram suprimidos ou ab
sorvidos por qualquer ensinamento religioso vigente, pois
atuaram como compensaçao onfrica para o qual podiam ser ve~
tidas aquelas necessidades psicológicas que não fossem sufi
cientemente respeitadas na atitude consciente coletiva.
Todos são unânimes em apontar que os contos ofer~
cem modelos para a vida, modelos estes que encontram na fi
gura do herói ou da heroína um exemplo a ser observado.
Para Bettelheim, o her6i traz em si um apelo posi
tivo proporcionando que a criança se identifique com este
lado. O autor acredita que é importante prover a criança m~
derna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozi
nhos e que, apesar de ignorarem o desfecho desta sua traje
tória, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus ca
minhas com uma profunda confiança interior.
Para Marie Louise Von Franz (1986), os heróis dos
contos de fadas nao são muito humanos, pois suportam todos
os sofrimentos, nao vacilam ante o perigo, até atingirem seus
objetivos.
Neste sentido, os heróis ou heroínas - diz ainda
a autora.-, representam modelos para um funcionamento do ego
em harmonia com a totalidade da psique Ccom inconsciente e
consciente), sendo, além disto, um modelo e padrão arquetí
pico para o tipo "correto" de comportamento.
Não obstante, existem contos em que a figura pri~
cipal, ou herói como já definimos, não passa de um tolo, ou
é colocado nesta condição por outros personagens da histó -
41
ria, fugindo ao senso comum de que o herói tem que ser es -
perto e audaz. Neste caso, o cha,mado "tolo" ,necessi ta de
uma ajuda mágica, ou de algum animal prestativo.
Encontramos outro exemplo na personagem aparente
mente "monstruosa" da história da "Bela e a Fera", ,onde a
fera a princípio pune e amedronta o pai de Bela por este
ter-lhe roubado uma rosa do jardim, mas mostra-se solícito
e amoroso com a Bela, o que proporcionou que esta úJtima pas
sasse a amá-lo também, quebrando o fei tiço que o havia trans
formado em fera.
Vê-se, então, que quando Von Franz refere-se ao
herói como um modelo de comportamento "correto", não signi
fica o correto na concepção convencional da palavra. Signi
fica antes de tudo um tipo de comportamento específico que
naquela história ou contexto "dará certo", ou seja, a figu
ra central atingirá seus objetivos mesmo que a princípio s~
ja considerada tola, ou até usando certos tipos de estrata
gemas de certo modo condenáveis, mas, se participarmos dá
trama com o nosso sentimento, sentlremos ser esse o modo se
creto de enfrentar a vida.
Portanto, esta caracterização de "correto" pode não
se aplicar ao senso comum, a categorias produzidas social -
mente, mas obedece sobretudo a mecanismos instintivos ou afe
tivos que nos levam a ter a sensação de que a ação do herói
é a correta naquela situação específica da história.
Podemos, en tão, di zer que es ta a ti tude do herói ou
da heroína frente a uma determinada si tuação Ce aí pode en
trar a questão ética a qual os contos também sugerem, que dis
42
cutiremos mais adiante) nao se submete apenas aos ~tores ou
normas sociais permitidas ou aceitáveis, mas sobretudo por
aquela atitude que está de acordo com a totalidade da pers~
nalidade psicológica. Totalidade esta que, ao abarcar con
te6dos conscientes e inconscientes, produz inevitavelmente
uma relação dialética constante entre o mundo interior e o
exterior, entre aquilo que é subjetivo e o que se refere -a
realidade objetiva das relações sociais.
Da mesma forma que é necessário tornar-se ciente
da sociedade em que vivemos, inclusive para transforma-la,
existem as exigências internas que, caso não sejam ouvidas,
produzem sofrimentos e ansiedades, podendo-se chegar a si -
tuações extremas, como neuroses, ou, em maior grau, a psic~
ses.
Dentro deste quadro, insere~se também a própria
estrutura dos contos de fadas, já que as figuras centrais
ali colocadas (herói ou heroína) representam modelos para tun
funcionamento do ego numa relação dialética com a estrutura
global da personalidade.
Para darmos curso ao significado psicológico pre
sente nos contos, nos quais alguns já destacamos,deveríamos
concomitantemente pôr em discussão toda a simbologia prese!!.
te nos contos, e para se tirar conclusões acerca dos signi-
ficados nos quais os símbolos evocam, teremos que recorrer
a um instrumental que, como já expomos, tem sido alvo de aI
gumas críticas: a interpretação.
E preciso deixar claro que o significado que cada
43
um extrai de cada conto ou motivo poderá ser diferente de
pessoa para pessoa. No entanto, corno já enfatizamos, os
padrões arquetÍpicos explorados nos contos podem ter um ca
ráter coletivo, pois focalizam questões que transcendem a
esfera individual, corno maturação, o processo de desenvol
vimento psíquico do ser humano, que implica "sair pelo mug
do" e enfrentar perigos, vislumbrando o alcance de algo maior
que, portanto, exigirá mudanças tanto externas corno inter
nas, etc. O conto propõe também a figura do herói ou de um
fator ajudante (animal, magia, velhinha) que lida com si -
tuações imprevisíveis ou tarefas difíceis, que exigirão urna
sintonização seja com o mundo interno, seja com o externo
(num processo dialético) para optar pelo caminho que visa
urna maior realização nos vários níveis.
Além disso, não é redundante recolocar que os con-
tos foram engendrados dentro de uma esfera coletiva, ou se
j a, um número inimaginável de pessoas colaboraram, antes que
tivessem sido fixados pela escrita, na forma conhecida por
nós. Os contos, como j á expomos, utilizam-se de imagens si!!!
bólicas ou arquetÍpicas imanentes da psique coletiva,e têm
como base a experiência de vida da coletividade.
Citando Marie Louise Von Franz:
"Jamais se pode afirmar que um conto de fada re
presenta o processo de individuação pe~ he, pois ele não re
presenta, nem pode representar tal coisa. O processo de in
dividuação, pe~ de6-i..n-i..:t-i..oner,~. é algo que só pode ocorrer num
só ser humano e que sempre tem uma forma única. No entan-
to, a despeito de constituir evento único, num único ser hu
mano, existem certos aspectos típicos coincidentes que se
repetem e se assemelham em todo processo de individuação.
44
Por ISSO, pode-se dizer que tais contos refletem fases típ!
cas do processo de individuação de muita gente, e que tais
fases típicas são ressaltadas de acordo com a atitude da cons
ciência nacional coletiva do povo ao qual elas sao relata
das" (Von Franz, 1985~, p. 273, 274).
Jung tem-nos alertado, em algumas de suas obras,
para nao confundirmos individuação com individualismo. lndi
vidualismo, segundo diz o autor, significa acentuar e dar
ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a
considerações e obrigações coletivas, enquanto individuação
e um processo de diferenciação que tem por meta o desenvol-
vimento da personalidade individual, que não leva ao isola-
mento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e ge-
ralo Portanto, considerar de forma adequada as peculiarid~
des individuais, acarretará um melhor rendimento social.
Para entendermos melhor o simbolismo das imagens
presentes nos contos, teremos que relacioná-las com alguns
significados. Não pretendemos inscrever na função interpr~
tativa uma prática redutora, mas sim esclarecedora, amplia-
dora, ou seja, "que faça algum sentido", por acreditarmos ser
esta uma das funções fundamentais da prática psicológica.
Dizemos "relações possíveis", pois sabemos que e~
ta nossa exposição terá que ter um fim, visto que o caráter
simbólico em si imprime a possibilidade de se extrair signi
ficados inesgotáveis, o que exigiria que lhes dedicássemos
inúmeras páginas.
Portanto, nos limitaremos a selecionar algumas i~
terpretações, esperando que estas façam sentido para os lei
tores que nos acompanham.
45
2.3 Analisando dois contos: desvendando alguns sentidos
Começaremos inicialmente com um resumo do conto
dos Irmãos Grimm, liA Rainha das Abelhas.
~E~a uma vez, doi~ 6ilho~ do ~ei que pa~ti~am pelo mundo em bu~ca de aventu~a~, caZ~am na vida de 6a~~a e nunca mai~ volta~am. O mai~ moço, que e~a chamado de João
Bobo, ~aiu ã p~ocu~a dele~, ma~ quando 6inalmente o~ encon
t~ou, o~ doi~ ~Ô 6ica~am zombando dele, compa~ando-o a um idiota que nunca ia te~ condiçõe~ de ~e da~ bem na vida.
No entanto, o~ t~ê~ p~o~~egui~am caminho junto~ e ~e depa~a~am com um 60~miguei~0. O~ doi~ mui~ velho~ que
~iam e~maga~ o 60~miguei~0 pa~a ~e dive~ti~ vendo a~ 60~mi
ga~ ~e apavo~a~em co~~endo de um lado pa~a out~o, ma~ João Bobo impediu-o~ de 6aze~em i~to pedindo que a~ deixa~~em em paz.
Mai~ adiante, chega~am a um lago cheio de pato~ na
dando, e o~ doi~ mai~ velho~ que~iam pegá-lo~ pa~a aMM. MM
João Bobo não pe~mitiu que ele~ o~ mata~~em dizendo-lhu que
o~ deixa~~em em paz.
Finalmente, chega~am a uma colméia que tinha tan
to mel que até e~co~~ia pelo t~onco da á~vo~e. O~ doi~ i~
mão~ mai~ velho~ que~iam expul~a~ a~ abelha~, tocando 60go
no pé da á~vo~e e, em ~ eguida, ~ouba~ o mel, ma~ uma vez João Bobo não deixou, dizendo-lhe~ que deixa~~em a~ abelha~ em paz.
Mai~ ta~de, o~ i~mão~ chega~am a um ca~telo,e qua!!. do ent~a~am vi~am cavalo~ de ped~a no~ e~tábulo~ ma~ não v~
~am nenhum ~e~ humano. Pa~~a~am po~ vá~ia~ ~ala~, até que 6inalmente chega~am a uma po~ta que tinha t~ê~ t~anca~, e bem no meio, tinha uma janelinha que dava pa~a out~a ~ala.
Ne~~a ~ala, havia um homenzinho cinzento ~entado diante da me~a. Chama~am-no uma vez, dua~, e ele nem ~e mexeu. Quan
do chama~am a te~cei~a, ele ~e levantou, de~t~ancou a po~ta
e veio até ele~. Não di~~e uma palav~a, ma~ levou o~ t~ê~
até uma me~a po~ta com toda na~tu~a e ~iqueza e depoi~ que
46
come~am e bebe~am bem, mo~t~ou a cada um o ~eu qua~to.
Na manhã ~egu~nte, o homenzinho cinzento apa~eceu,
6ez ~ina~ pa~a o mai~ velho, e levou-o até junto de uma lápide onde havia uma in~c~ição na ped~a, com a li~ta de t~ê~
ta~e6a~ que p~eci~avam ~e~ cump~ida~ pa~a que o ca~telo pu
de~~e 6ica~ liv~e do encantamento. A p~imei~a e~a ~ecolhe~ mil pé~ola~ da 6ilha do ~ei, que e~tavam upalhadM pelo meio
do mu~go e do matinho ~a~tei~o do bo~que. Tinham que..6~ t~
da~ ~ecolhida~ ante.~ do cai~ da noite., ~em 6alta~ ne.nhuma.
Se 6alta~~e. uma ~õ, que.m p~ocu~ava ia vi~a~ pe.d~a.
o i~mão mai~ velho ~aiu e. p~ocu~ou o dia inte.i~o.
Ma~ quando chegou no 6im do dia, ~Õ tinha encont~ado uma~
cem e, exatamente. como e~tava e.6c~ito na lápide, 60i t~an.6-
6o~mado em ped~a.
No out~o dia, o .6e.gundo i~mão também óe.z ~ua ten
tativa, ma~ também ~Õ achou uma duzenta~ pé~ola~ e também vi
~ou ped~a.
Finalmente chegou a vez de João Bobo, que começou
a p~ocu~á-la~ no meio do mu~go, ma~ como encont~á-la~ e~a
muito dióZcil, ele ~e ~entou numa ped~a e começou a cho~a~.
AZ apa~eceu com um ~équito de cinco mil óo~miga~, o ~ei da~ 6o~miga~ cujo vida ele tinha ~alvo. Num in~tante o~ animal
zinho~ encont~a~am toda~ a~ pé~ola~ e. 6ize~am um monte com ela~ num ~o luga~.
A ~egunda ta~e6a e~a encont~a~ a chave do qua~to
da óilha do ~ei, caZda no 6undo do ma~, o que ele con~eguiu com a ajuda do~ pato~ que ele tinha ~alvo, que. me.~gulha~am
tanto que acaba~am achando a chave.
A te~cei~a ta~eóa e~a a mai~ di6Zcil de toda~. A~
t~ê~ óilha~ do ~ei, toda~ linda~ e muito pa~ecida~, e~tavam
do~mindo e ele p~eci~ava de~cob~i~ qual e~a a mai~ moça. A única di6e~ença é que, ante~ de do~mi~, ela~ tinham comido
t~ê~ doce~ di6e~ente~. No da mai~ velha tinha açúca~,no da ~egunda, dua~ gota~ de xa~ope e no da mai~ moça, uma colhe~ de mel.
AZ apa~eceu a ~ainha da~ abelha~ que João Bobo ti
47
nha halvo. Vepoih de p~ova~ oh lãbioh dah t~êh moçah, pa~ou
junto ã boca da que tinha comido mel. lhhO mOht~ou ao 6ilho
do ~ei qual e~a a p~inceha ce~ta.
Vehha manei~a, o encantamento he queb~ou e todah
ah pehhoah do cahtelo aco~da~am de heu hono, ao mehmo tempo
que todoh Oh que vi~a~am ped~a voltavam ã 6o~ma humana. João
Bobo cahou com a p~inceha maih moça e maih bonita e dePOih que o pai dela mo~~eu, 6icou hendo ~ei. Oh doih i~mãoh
dele cahaJtam com ah iJtmãh dela" (história extraída do livro
Chapeuzinho VeJtmelho e outJtOh contoh de GJtimm, selecionado e
traduzido por Ana Maria Machado, 1986, p. 95-8).
Como já tivemos a oportunidade de colocar antes,
o conto inicia-se no "mundo de cá" , no mundo real, cotidia-
no, onde três i rmãos saem pelo mundo "em busca de aventuras" ,
isto é, procuram algo novo, se submetem ao destino onde tu
do pode acontecer. Estão entregues ã própria sorte, ao aca
so, onde o tempo, o lugar e o futuro não importam. Isto siR
nifica que o tempo deles chegou para seBuir o caminho e sair
do aconchego (família) ao qual normalmente se está habituado.
Dentre os irmãos temos os dois mais velhos que co~
sideravam-se mais espertos, e o mais moço, o João Bobo, do-
tado de ingenuidade e integridade que o tornam capaz de ou-
vir a natureza. E é com a ajuda desta mesma natureza, re -
presentada pelos animais, que ele cumpre as tarefas que lhe
sao colocadas.
Ele não é um herói no sentido de atuar sozinho 'na
realização das tarefas que lhe são exigidas, pois é ajudado
o tempo todo por animais.
Outro detalhe é que nesta história, dentre as fi-
guras principais, o elemento feminino não está representado.
48
Decorre daí que a açao principal refere-se ao fato de livrar
do encantamento o castelo e as pessoas que estão nele e en
contrar a filha mais nova do rei, da qual depende toda a he
rança do reino.
E, para se chegar a isto, ocorrem situações que atr~
vessam o caminho dos três irmãos, e que se repetem em três
momentos: deixar os animais (a natureza) em paz e não fa
zer-lhes mal.
Consciência ecológica, dirão uns. Respeitar o "cu!.
so natural das coisas", dirão outr0S. Ou o instinto, fre -
qüentemente associado à figura do animal, que não deve ser
eliminado, mas simplesmente observado e ouvido, conservando-lhe
a "vida". Vida ins tinti va, vida mai s s in toni zada com a psique
inconsciente. E foi isto que João Bobo intuitivamente, sem
sabermos o porquê, "soube" levar em consideração.
Os irmãos chegam então no castelo, e nele jaziam
seres adormecidos ou estranhos; não havia indícios de "nor
malidade", mas cavalos petrificados e uma porta de três tran
cas onde se podia avistar, através de uma janelinha, um "ho
mem cinzento", que não fala e só atende quando o chamam pe
la terceira vez.
Mundo estranho este. Geralmente, ao sermos trans
portados para este mundo, acontecem coisas nas quais não p~
demos entender racionalmente mas simplesmente vivenciar, ou
deixar-se levar pelo instinto e pela intuição, sendo que se
res da natureza ou sobrenaturais (o homem cinzento) indicam
caminhos, impõem tarefas que, ao serem vencidas, proporcio
nam a redenção de algo antes enfeitiçado, transportando as
49
figuras centrais da história para uma situação nova de en -
contro com o elemento oposto (feminino e masculino). A par-
tir daí será possível também que as figuras centrais ocupem
a posição de relnar, ao assumir o cargo de rei após a morte
do pai da princesa.
Devemos considerar alguns dos principais simbo1is
mos presentes nesta história:
o n 9 três, que aparece várias vezes nesta histó -
ria, geralmente é relacionado com movimento, dinamismo. De-
pois da unidade (1) e do dualismo (2), surge o três que po
de ser a resolução do conflito colocado pelo dualismo ou dua
1idade, ou seja, a síntese. O "três" aparece em vários mo-
mentos: três irmãos, que encontram três animais, que se de
param com uma porta com três trancas e u~ homenzinho que só
atende ao terceiro chamado e lhes indica três tarefas, sen-
do que na terceira João Bobo tem que descobrir qual dentre
as três irmãs é a mais nova.
Com relação às tarefas propostas na lápide, havia
três, dentre elas, apanhar o maior número de pérolas, sendo
esta associada a uma pedra preciosa que se encontra escondi
da dentro de uma ostra no fundo do mar. A "jóia oculta" -e
difícil de ser encontrada, ainda mais no musgo, como a his
tória descreve.
A pérola também tem sido associada com a "alma hu
mana", e nos textos alquímicos é associada à "pedra filoso-
fal".
A segunda tarefa ou etapa era encontrar a chave.
O intrumento que "abre" portas, que permite observar ou in-
50
gressar em algum espaço antes oculto, secreto. Pois bem,com
a chave, estamos de posse de um instrumento que nos permite
desvendar algo secreto, nuo visto, ou seja, o lado incons -
ciente que abrange todos estes significados que acabamos de
mencionar. Esta "chave" pode ser encontrada quando os pa-
tos mergulharam no fundo do mar. ~
O mar geralmente e asso -
ciado ao oceano interior, é a fonte da vida porque nele ha
bitam vários seres e plantas, corno também pode ser o final
da mesma vida, quando neles somos jogados, não sabendo corno
sobreviver a ele (o que requer forças e saber nadar para não
ser tragado pelas águas, frente aos fenômenos naturais intem
pestivos). Mergulhar no fundo do mar significa entrar nes
te mundo misterioso, oculto pelas águas, o que também se as
socia à inconsciência.
A chave no fundo do mar - ou seja, aquilo que des
venda o segredo -, encontra-se dentro de nós mesmos, no mar
da inconsciência. ~ buscada por um pato, o animal que vive
na terra e na água, um habitante e mediador entre os dois
mundos, consciente e inconsciente.
E, por fim, o filho mais moço acha a filha mais mo
ça, com a aj uda da abelha que identifica o mel na boca da mu
lher.
O mais moço ou a mais moça correspondem, de acor
do com os preceitos psicológicos, a uma fase onde não se re
siste tanto às necessidades básicas instintivas. Quanto mais
moço, mais o ego encontra-se em formação e, portanto, está
menos cristalizado e mais próximo dos instintos.
51
o mel tem significado de uma subst5ncia que tem
efeito curativo (sendo receitado como rem6dio, fortifican -
te) assim como uma riqueza natural, já que 6 resul tado de um
misterioso processo de elaboração das abelhas.
Tudo isso se passa num castelo, cenário onde se
resguardam tesouros, armas, reis, rainhas, ou seja, uma for
taleza onde reside a riqueza e onde as decisões são tomadas
atrav~s do rei que nele habita.
E, finalmente, o casamento, símbolo da união dos
opostos que tem sido associada, de acordo com a teoria jun-
guiana, à individuação, ou seja, a Íntima união e concilia-
ção interna entre o feminino (associado aos sentimentos e in~
tintos) e masculino (ou o espírito e concepção de id~ias).
A partir do casamento ou união, o João Bobo pode exercer a
função de rei, em conseqüência da morte do pai da moça. Ele
~ a figura de transição que irá garantir a sobrevivência do
reino que dele depende, segundo as sociedades antigas.
Von Franz nos diz:
"Em muitas sociedades primitivas, a prosperidade
de todo país depende da sanidade física e psíquica do rei:
se ele se torna impotente ou doente, ele tem que ser morto
e um outro rei tomar o seu lugar, um novo rei cuja saúde e
potência garantam a fertilidade das mulheres e do gado, ta~
to quanto a prosperidade de toda tribo" (Von Franz, 1981,p.63).
A autora refere-se ao rei como a representação do
conteúdo simbólico central e dominante da consciência cole-
tiva, sendo compa!"ado tamb~Jil ao símbolo do ~e..t6, que, de aco,E.
do com a teoria junguiana, significa o centro auto-regula -
52
dor du psique coletiva, do qual depende o bem-estar do indi
vrduo. Recorrendo ã História, saber.ios que o rei era fre
qUentemente associado a representaç50 religiosa de Deus. De
acordo com esta concepção, o rei traz em si o princípio di
vino, dele depende a sorte do reino, e dar ele dominar urna
certa atitude coletiva.
João Bobo, portanto, representa a nova atitude con~
ciente, que é capaz de entrar em contato com o feminino e
renovar a vida consciente, libertando-o da petrificação ou
da paralisação, o que é representado pela libertação das pe~
soas do castelo que haviam virado pedra. Para realizar es
ta façanha ele necessitou do auxílio da parte instintivaani
mal, ou seja, é como se ele tivesse que se guiar pelos pró
prios instintos, o que possibilitou que vivenciasse urna ex
periência Íntima bastante profunda.
O segundo conto que vamos relatar resumidamente
chama-se "Almofadinha de Ouro", coletado por Luís da Câmara
Cascudo, no Rio Grande do Norte.
~ importante ressaltar que se encontram neste con
to os mesmos motivos de "Pele de Asno", de Perrault, e de
"Maria Borralheira", da versão de Grimm e Perraul t.
Os motivos referem-se ao episódio do baile, do anel
escondido no bolo, aos três vestidos, etc., o que confirma
a tese de que a maioria dos contos de encantamento ou de fa
das recolhidos aqui no Brasil é proveniente da Europa, embo
ra eles tenham sofrido algumas adaptações.
Vamos então ao conto:
S3
"fita uma ve.z uma ói.tha bonita e. gltac.io.6a, óilha ú.n.<..
c.a e. que. te.ve. a inóe..tic.idade. de. óic.alt oltóã de. mãe.. Se.u pai
c.a.6Ou de. novo c.om uma viú.va que. tinha uma ói.tha óe.ia e. oltg~
.tho.6a, e. c.ome.çou a obltigalt a e.nte.ada a óazelt tltaba.tho.6 pe..6~
do.6, c.omo .timpalt a c.a.6a quando o maltido e..6tava óolta viajan
do.
A moc.inha e.ntão vivia amaltgultada pOIt .60óltelt todo
o tipo de. pltivaçõe..6 e. in.6u.tto.6, e de.c.idiu então Óugilt daqu!
.te pultgatóltio.
Ante.6 de .6ailt de c.a.6a, c.ontou c.om a ajuda de uma
ve.thinha que lhe óalou do c.aminho do Itio e lhe plte.6ente.ou c.om
uma almoóadinha de OUItO que elta enc.antada.
Ve.ixando a c.a.6a, a moça andou muito.6 dia.6 c.om óo
me e .6ede e. enc.ontltou uma oc.upação num palâc.io vi.6to.6o, Ite.6idênc.ia de. um pltlnc.ipe. vi.6to.6o.
A moça, palta não de.6pelttalt .6u.6peita.6, .6ujou OitO!
to e. andava ~ão imunda que .6Ó lhe deitam o .6eltviço de tltatalt
da.6 galinha.6 e do.6 poltC.O.6, doltmindo no óundo do quintal, num
qualttinho e..6C.Ulto e i.6olado do palâc.io.
Foltam anunc.iado.6 então tltê.6 dia.6 de óe..6ta.6, o que
oc.a.6ionou que a.6 moça.6 da c.idade .6e. pltepalta.6.6em óazendo Itou
pa.6 nova.6, de..6 ej ando que o pltlnc.ipe .6 e engltaça.6.6 e c.om uma de la.6 e. c.a.6a.6.6e. pOIt oc.a.6ião da.6 óe.6ta.6.
Chegando o pltimeilto dia, todo.6 0.6 empltegado.6 do p~
lâc.io óoltam ve.1t o baile, e óic.ando a moça .6ozinha, tomou um
banho, penteou-.6e e. pediu ã almoóadinha de. OUItO que lhe de! .6e. um ve.6tido C.OIt do c.ampo c.om .6ua.6 ólolte.6 e. uma c.altltuagem
c.om c.oc.heilto.6.
Apalte.c.eu o pe.dido e a moça ve.6tiu-.6e. e c.ompalte.c.eu -a óe..6ta c.au.6ando a.6.6omblto pela .6ua 6oltmo.6ulta e. lindeza do
tltaje. O pltlnc.ipe .6Ó dançou c.om ela e, c.omo lembltança do e!!. c.ontlto, deu-lhe um anel. Peltto da meia-noite. a moça de.6ap~
Itec.eu, óugindo palta c.a.6a onde tltOc.ou de Itoupa, o ve.6tido e o c.altlto .6umiltam.
No dia .6eguinte, c.om um ve..6tido C.OIt de malt c.om to
do.6 0.6 peixinho.6, ac.ontec.eu a me.6ma c.oi.6a, e o pltlnc.ipe, en
S4
cantado com ela, deu-lhe un~ b~inco~, e ante~da meia-noite
a moça de~apa~eceu do baile e vóltou pa~a ca~a, 6icando ~u
ja e 6eia como habitualmente apa~ecia ao~ olho~ de todo~.
No te~cei~o dia, o me~mo ~ucedido. Ve~ta vez o ve~tido e~a da co~ do ceu com todo~ o~ ~ eu~ a~t~o~, e o p!Ú.n
cipe p~e~enteou-lhe com um cola~ e 6icou t~i~te quando ela
de~apa~eceu ante~ da meia-noite.
Pa~~ado~ o~ t~ê~ dia~, ~Õ ~e 6alava na cidade da
moça de~conhecida, com o~ t~ê~ ve~tido~ mai~ bonito~ do mun do. O p~lncipe p~ocu~ou-a como um cego p~ocu~a a luz e não
a encont~ou em pa~te alguma. E~tava tão apaixonado que ado! ceu na cama, não que~endo ~e alimenta~.
Um dia a moça di~~e ã p~ince~a-velha, mae do p~l~
cipe, que que~ia 6aze~ um bolo pa~a o p~lncipe doente. A p~~ ce~a achou g~aça, ma~ tanto a moça pediu e ~ogou que obteve
-o con~entimento. P~epa~ou-~e, 60i a cozinha e 6ez um bolo dou~ado, colocando dent~o da ma~~a o anel que o p~lncipe lhe
de~a de p~e~ente na noite do baile.
O p~lncipe acabou cedendo ao~ pedido~ da mãe pa~a
come~, levou um pedaço de bolo ã boca e ~epa~ou num objeto que apa~ecia na pa~te ~e~tante do p~ato. Puxou com o bico
da 6aca e ~econheceu o anel. Comeu todo o bolo e, melho~a~ do, pediu out~o bolo 6eito pela me~ma moça. A moça 6ez out~o bolo e ne~te mandou o b~inco, que o p~lncipe achou e 6~
cou Qe~to de que a moça e~tava po~ pe~to. Pediu out~o bolo e ne~te veio o cola~. Então, ~em te~ mai~ dúvida~, di~~e ã ~ua mãe que manda~~e ao ~eu qua~to quem 6ize~a o~ t~ê~ bo -lo~. A p~inQe~a. ob~igou a moça a muda~ de ~oupa, P~6MmM-~e pa~a ti~a~ o mau-chei~o do galinhei~o, e di~~e que ~e ap~e~enta~~e ao ~eu 6ilho.
A moça ~ubiu a e~cada com a almo6adinha de o~o na -mao, e a~~im que bateu na po~ta, pediu que lhe apa~eQe~~e
no co~po o ve~tido do te~cei~o dia. Quando a po~ta ~e ablÚU, o p~lnQipe a ~eQonheceu, e levantou-~e da cama bonzinho de ~aúde, e chamando a mãe, mo~t~ou-lhe a moça, que utava mai~ bonita do que na~ noite~ pa~~ada~. Ca~a~am-~e imediatamen-
55
te e 6o~am 6elize6ati a mo~te".
Esta história se assemelha muito, como já disse -
mos, a "Pele de Asno" e "Gata Borralheira".
Iniciamos a história com a figura da madastra,que
segundo Von Franz representa a mae temível, que bloqueia o
desenvolvimento mais elevado do personagem principal.
Como se sabe, a criança, no início de se desenvol
vimento, estabelece uma unidade físico-psicológica com a mae.
No decorrer de seu desenvolvimento, inicia-se o processo de
separaçao para a formação de uma personalidade autônoma,que
pode ser bem ou malsucedida para a criança. Portanto, du -
rante esta fase de desenvolvimento, a imagem que a criança
constrói acerca de sua mae será para ela, conforme a situa
ção, positiva ou negativa. Neste último caso, o conto mos
tra ã criança como lidar com estes sentimentos negativos,o~
de, por exemplo, de acordo com o conto relatado, vemos a mo
ça buscar na figura da velhinha o lado acolhedor da mae,que
a ajuda e a aconselha a sair pelo mundo na posse de uma al
mofadinha de ouro.
Por que um pai tão ausente? Podemos supor que a
ligação com a mae durante a primeira infância é sempre mais
estreita: a mãe alimenta, cuida, enfim ela assume mais o la
do provedor, aspecto este r~forçado até hoje pela sociedade.
A velhinha e a sua almofadinha de ouro são, por -
tanto, um ponto de apoio do qual a criança pode se assegu -
rar para adquirir confiança de que algo novo e interessante
poderá acontecer. Ou seja, seguir o caminho do rio - bus -
car meios para sair desta situação ruim, de carência, de in
S6
veja, de cobiça, etc.
A moça que é a figura central, aceita o desafio,e
ao aceitar trabalhar no castelo, vivendo e lidando com a su
jeira (galinheiro), se sujando inclusive, almeja passar des
percebida pelas pessoas que vivem no castelo.
Torna-se "feia" e viver quase completamente na s~
jeira e no esquecimento - o que pode representar o lado ob~
curo e oculto - pode proporcionar vivenciar o seu oposto,i~
to é, ser bonita e notada por todos, inclusive pelo lado mas
culino.
o banho é o ponto de transição. ~ a possibilida
de de sair do mundo obscuro e entrar no luminoso através de
uma transformação. O "banho", nos tempos antigos, sugeria
a possibilidade de cura pelos velhos feiticeiros da era paga.
Os vestidos aparecem como elementos da natureza em
três versões: vestido cor do campo com suas flores (terra),
vestido cor do mar com todos os seus peixes (água), vestido
cor do céu com todos os seus astros (ar), e, por fim, o bo
lo dourado que a moça oferece ao príncipe (fogo). Percebe-se
claramente que os quatro elementos encontrados na natureza
encontram-se representados na roupagem da moça e no bolo.
Ao atrair o príncipe, ela ganha um anel. Von Franz
( 1981 ) fala-nos que se um homem dá um anel a uma mulh~r,
ele expressa, saiba ou nao, o desejo de ligar-se a ela,e de
tê-la ao seu lado. O anel, portanto, significa um elo, re
presenta estar unido a alguém.
Em seguida, o príncipe presenteou-a com um brinco
57
e, por fim, deu-lhe um colar cuja significação nos remete à
idéia de estabelecer um vínculo, já que ornamentam e perma
necem junto ao corpo da moça.
o bolo neste caso, logicamente, é o alimento que
nutre nao só o corpo mas também o espírito, sobretudo por
que se encontra no seu interior o símbolo daquilo que une
dois personagens: o anel, o brinco e o colar.
Finalmente, desvendando-se o mistério que rondava
a moça que encantou o príncipe, ambos se casam, o que signi
fica a união dos princípios feminino e masculino e o final
da história, ou o fim do caminho.
. ~. Portanto, o prlnclplo feminino ou receptivo e o
masculino ou criativo se unem de forma harmSnica. Isto acon-
teceu por ter a figura central optado por seguir o caminho
ajudada pelas forças mágicas (almofadinha de ouro), cujos
"acontecimentos nao são compreendidos racionalmente, pois f~
gem à lógica. ~ o mundo interior, subjetivo, onde se con -
frontam extremos possíveis, onde um pólo pode se transfor -
mar no seu contrário: rico/pobre, fei9/bonito,sujo/lfupo,etc.
o conto de fadas usa este processo de transforma
çao de um pólo a outro, transportando-nos para o mundo da
p~~eo(alma) logu~(sabedoria), onde é possível experimentar
toda uma riqueza de simboli~mos, que provocam uma modifica
ção interior representada pelas figuras principais da hist~
ria. Melhor dizendo, no final do primeiro conto, João Bobo
não é o mesmo João do princípio da história, algo sem dúvi-
da mudou. O mesmo ocorre com a moça da "Almofadinha de Ou-
ro" ...
CAPITULO 3
o CONTO DE FADAS PARA CRIANÇAS
3.1. Por que relatar contos de fadas para crianças
Dentro deste tópico, temos as posições de vários
autores, que argumentam da seguinte forma:
Segundo Bettelheim, os contos de fadas oferecem
exemplos tanto de soluções temporárias, quanto permanentes
para dificuldades prementes:
"Esta e exatamente a mensagem que os contos de
fadas transmitem ã criança de forma múltipla: que uma luta
contra dificuldades na vida e inevitavel, e a parte intrín
seca da existência humana -mas que se a pessoa nao se in-
timida mas se defronta de modo firme com as opress~es ine~
peradas e muitas vezes injustas, ela dominara todos os obs
taculos e, ao fim, emergira vitoriosa" (Bettelheim, 1988, p. 14).
O autor declara ainda que em contraste com as his
tórias "fora de perigo", onde não se mencionam nem a morte
nem o envelhecimento, ou seja, os limites da nossa existên
cia, os contos de fadas confrontam a criança com os predi
camentos humanos básicos. Além disso, oferecem também no
vas dimensões à imaginação da criança que ela não poderia
descobrir por si só.
Outro ponto colocado por Bettelheim é o de que
os conto~ também nos falam a linguagem de símbolos, como já
discorremos no capítulo anterior, representando conteúdos
inconscientes que apelam à nossa mente consciente e incons
ciente.
S9
Bettelheim afirma ainda que os contos proporcio
nam ã criança colocar alguma ordem no caos interno de sua
mente de modo a poder entender-se melhor. Este "sentido or
denador" ao qual ele se refere condiz com o período duran
te a infância, onde desde o nascimento a criança participa
da vida psíquica de seus pais, ou seja, ocorrem-lhe fanta
sias de estar fundida com sua mãe, corno se ambas formassem
urna unidade. Sendo assim, não existe urna nítida diferen -
ciação consciente entre sujeito (criança) e objeto (mãe).
Na medida em que a criança, no curso de seu desenvolvimen
to, vai fortalecendo o ego (ou o "eu"), dá-se início então
o processo de diferenciação, onde ela passa a integrar gra
dativamente, no ego consciente, aspectos antes indiferen -
ciados·ou inconscientes, traçando um "percurso simbólico"
que se assemelha em muito ã "trajetória do herói" nos con
tos.
o que ocorre realmente é que o conto tende a ofe
recer ã criança, na forma de imagens simbólicas, possibili
dades típicas e projetos para sair vitoriosa desta luta.
Estas imagens simbólicas presentes nos contos são
condizentes com as estruturas perceptivas e cognitivas da
criança em idade pré-escolar.(como veremos no próximo caPi·
tulo) , já que nesta fase ela ainda não desenvolveu plena
mente as estruturas mentais operatórias formais.
Nesta fase, a criança ainda não tem formulados
os conceitos objetivos de "bom" e "mau", mas os percebe de
acordo com sua própria experiência, avaliando-os com o sen
timento.
60
Comp]clllenLmdo ('0111 urna citnção do l:ivro de Elisa
Hilty:
,,~ por iS80 que o conto de fada ê importante na
pducaçio infantil. Ela nio entende as coisas explicadas
56 no verbal ( •.. ) as explicaç~es racionais n;o ajudam.
Com o conto de fada pode-se dar a imagem das dificuldades
da vida sem sobrecarregi-Ia e sem tirar a vontade de viver,
porque o conto de fada e sempre otimista e ajuda o mais
fraco" (Hi1ty, 1988, p. 23).
~ O que ohservamos nos personagens principais
dos dois contos de fadas relatados: um deles estava ameaç~
do por um complexo de inferioridade (João Bobo) e o outro,
pela inveja e perseguição def1agrada por sentimentos nega
tivos da madrasta (a moça da "Almofadinha de Ouro"). Ambos
sarram pelo mundo e viveram urna s~rie de experi~ncias e t~
refas que conseguiram ser suplantadas ou transfOl1TIadas atra
v~s do auxrlio de ajudantes, sejam eles animais (como na
"Rainha das Abelhas") ou mágicos (a "Almofadinha de Ouro").
A figura deste ajudante ~ importante para a cri
ança pequena porque ela ~ sempre dependente de nós e de nos
sa ajúda, necessitando que a confortemos e a ajudemos a en
contrar sardas. Da mesma forma que nós adultos, ao nos en
contrarmos numa situação de extrema fragilidade, necessita
mos de ajudantes, sejam externos ou internos. Ouvir a nos-
sa voz interna, aquela que provém da nossa experiência,dos
nossos instintos e sentimentos, dependendo da situação, ou
sermos ajudados por outras pessoas, pode-nos ser útil para
encontrarmos um caminho ou uma sarda para urna situação di-
fícil.
61
Citamos a opini50 de Bettelheim (1988) sobre o
significado dos contos de fadas para crianças e concorda
mos com elas. Marie Louise Von Franz t3mb~m corrobora o
que já relatamos anteriormente:
"Quando se conta história de fadas para as crian
ças, elas se identifjcam ingênua e imediatamente e captam
toda a atmosfera e sentimento que a história contem. Se a
história do pobre patinho e contada, todas as crianças que
têm complexo de inferioridade esperam que no fim elas tam
bem se tornem uma princesa. Isso funciona exatamente como
deveria ser: o conto oferece um modelo para a vida, um mo
delo vivificador e encorajador que permanece no inconscie~
te contendo, todas as possibilidades positivas davida" (Von
Franz, 1981, p. 74).
A criança pequena compreende, nao predominante-
mente de forma racional, mas intuitiva, e embora estas his
tórias não sejam reais, trazem em seu bojo alguma verdade.
Os fatos são envolvidos por uma atmosfera mágica e podem
se referir a uma experiência interna e de desenvolvimento
pessoal, pois os contos de fada exprimem, atrav~s de uma
forma imaginária e simbólica, etapas significativas que en
volvem o crescimento e a aquisição de uma existência inde-
pendente.
Neste sentido, com base naquela id~ia desenvolvi,
da anteriormente, o conto segue uma estrutura semelhante a
um ri tual iniciático, onde .~s provas devem ser vencidas ein
função de galgar uma outra etapa ou uma nova fase de exis
tência marcada pelo ingresso ao mundo adulto.
Sendo assim, podemos afirmar que os contos retra
tam, atrav;s de seus personagens e acontecjmentos, os nos-
62
50S próprios teJJlores e :incapacidades contra os quais tere-
mos de lutar, assim como os animais, as velhinhas ou os ob
jetos mágicos reprl'~cntam as nossas capaddadcs e possibi-
lidades internas, conhccidas ou não, que poderemos obter
para superar nossas difjcu]dades.
o psicólogo junguiano IIans Dieckmann exemp1ifica
brilhantemente esta idfia que acabamos de mencionar:
"Toda pessoa experimenta, após uma etapa de de
pend~ncia materna, a primeira autonomia e desligamento na
fase da teimosia; toda pessoa tambem experimenta na puber
dade o despertar da sexualidade e a necessidade de relacio
namento com o outro sexo. Cada um tem a experiência da pr~
bJemática da meia-idade, quando a vida declina e deveria
ir mais em profundidade do que que em superflcie.E cada um
vivencia a morte, com o problema da transiçao para outro
mundo ou outra forma de exist~ncia, do qual nada sabemos~
Quando enfrentamos tais situações novas e muitas vezes an
gustiantes, tentamos, em primeiro lugar, formar uma imagem
das eventuais possibiljdades como poderiam ser, como do
miná-las, quais os problemas a resolver e quais os perigos
a enfrentar ( ... ) assim a compreensão de um conto de fada
pode ter várias facetas, o psicológico e somente parte dos
possíveis c?nteúdos, e em cada fase da vida um símbolo po
de ser preenchido por outro conteúdo concreto, adicional.
Ganha-se, dessa forma, novo e" mais aprofundado sentido e
alargamento da compreensão" (Dieckmann, 1986, p. 16). /
Algumas pessoas podem argumentar que a idéia de
um "final feliz", assim como a promessa de que a figu:ra I
principal tornar-se-á a dona absoluta de um reino, concebi
da na maioria dos contos de fadas, produzirão na criança
uma concepçao ilusória e otimista de vida. Portanto,estas
fantasias poderiam ser facilmente extinguidas, já que se
63
constata que a mesma ~ pontuada por fr3cassos e ~xitos que
nem sempre levam a um "final feliz".
Entretanto, o conto se passa num universo também
mágico, onde só podemos visitar com o nosso pensamento, e
o mundo que se mostra através dele é o mundo dos nossos so
nhos, fantasias, medos, e limitações que podem ser vividos
ou confrontados de acordo com a situação, quando aceitamos
os riscos que eles contêm. Não os enfrentaremos sozinhos
mas com ajuda de alguém ou de uma força que advém de ...
nos
mesmos, mesmo que para isto devamos satisfazer as . -eXlgen-
cias impostas por estas forças ou ajudantes. Sendo assim,
existe uma esperança real que se apresenta ã criança de que
o reino será dela, e que será r.ecessário que o aconchego
do lar seja deixado para que ela efetue esta conquista ou
esta busca de seu próprio reino, no qual ela reinará.
Esta ansiedade, possivelmente provocada pelo aban
dono do lar, da segurança inerentemente proporcionada pelo
afeto da família, é compensada ou substituída pela união
do príncipe com a princesa, do elemento masculino e do fe-
minino, ou seja, por uma relação onde o parceiro ou a par-
ceira ideais foram encontrados e, conseqüentemente, aquela
ansiedade inicial pôde ser transcendida.
-Portanto, "o final feliz" sugere a criança que
todas estas tentativas para superar o medo, vencer os desa
fios, enfrentar forças que personificam conteúdos negati
vos ou sombrios podem ser coroadas de êxito,dando-Ihe o es
tímulo necessário para que ela encontre saídas frente a es
tes obstáculos.
64
Ao Jmaglnanllos, nas dU;JS 11jstóyjas que relatamos,
o castelo no qual J050 Robo e seus irm50s se encontravam,
onde havia animais petyjficados, um homenzinho estr3J1ho que
-nao falava, e pessoas aJoJ"mecidas, pode-se intuir ou sen-
tir que li o tempo parou, como se o curso natural da vida
houvesse parado ou sido interrompido, sinal de que algo não
ia bem.
o mesmo podemos sentir na história da "Almofadi-
nha de Ouro", onde a moça renegada e maltratada pela ma-
drasta sai de casa e vai trabalhar num castelo, onde assu-
me uma aparência suj a e mal chei rosa. f corno se através des
ta imagem pudéssemos perceber que o abandono e o complexo
de rejeição a que o personagem foi submetido adquirissem
forma, passando a fazer parte de seu cotidiano. Aqui, a
transformação e a viv~ncia do lado limpo e luminoso eram
necessirias para que ela passasse a ser o que realmente era:
um ser desejivel.
Neste sentido, o conto de fadas lida com as pol~
ridades no transcorrer da história, ou seja: o bobo vira
esperto, o feio se torna bonito, etc. Estas nolaridades in
clicam que aquela atitude consciente inicial p6de ser trans
formada no seu extremo oposto, possib~litando a vivência
de experiências novas, enriquecedoras.
I
O mesmo se apliça ao nosso dia-a-dia, onde tam-
bém lidamos com situaç5es extremas: um dia estamos bem, no
outro estamos mal, e somos quase que impelidos a conviver
com estas situaç5es q~e nos levam a refletir e rever posi-
çoes.
65
Os contos de fadas, ao retratarem estas polari
dades, t~m recebido ainda muitas crítjcas que dizem respei
to ã sua crueldade (ao relatar temas como a morte, person~
gens excessivamente maldosos, etc.).
Com relação ã crueldade presente nos contos, des
tacamos a opinião de Jesualdo sobre este assunto:
"Em livros como os do argentino Germãn Berdiales
e do mexicano Antoniorrobles, ambos autores de
infantil' ( ..• ) li duras críticas ã literatura
'literatura
tida por
'clássica'. 'Raia pelo inconcebível', dizem, que se dêem ã
criança contos como 'Pele de Asno', história de um rei que
enviúva e pretende casar-se com a própria filha; ( .•. ) ou
a de Chapeuzinho Vermelho, conto espantoso de um lobo que
devora a velhinha e a sua neta ( ••. ) (Jesualdo, s~d. p. 41,
43) •
O autor ainda nos aponta que estes críticos se
aterrorizam com tais coisas, mas no entanto, será que sen-
tem o mesmo horror ante as centenas de crimes bárbaros que
aparecem nos jornais?
Será que é necessário suprimir ou falsear os con
tos de fadas, para oferecer ã criança histórias repletas
apenas de boas intenções, onde todos os personagens são rum veis e bons,? Será que esta atitude não será falsear a rea
lidade, retratando-a de forma pueril? "
A psicóloga junguiana Vera Kast, no seu depoime~
to a uma rádio suíça sobre contos de fadas, relata-nos que
nos anos 70 houve uma época em que censuraram o lado bru
tal dos contos, até que as crianças reagiram. Ela acredita
66
que as crianças precisam ter contato com esta crueldade,
lbdas as devidas proporções (no caso, o conto "Barba Azul"
seria uma cxccç50, j5 que o clima de terror exposto na his
t6ria 6 excessivo). Diz a psic610ga que censuraram tempo-
rarialllente os contos, mas os notici5rios e os filmes vio-
lentos continuaram a ser transmitidos.
Portanto, não é banindo o "mal" ou o "lado mons-
truoso" dos contos de fadas que se impedirá que a criança
tome contato com o lado negativo ou sombrio da vida. Mesmo
porque a cri.mça também carrega dentro de si o seu "mons
tro", ou suas fantasias negativas, e caso não seja estimu
lada a [alar sobre elas, não poderá conhecê-las e nem en
tendê-las, o que acarretaria um sentimento de impotência
face ~s suas piores ansiedades.
Ao escondermos a "face cruel" existente nos con-
tos da criança, estaremos transmitindo-lhe uma visão unila
teral e limitada da vida, ou seja,não lhe daremos oportuni
dade de prestar atenção aos seus desejos e fantasias mais
fntimos, aqueles oriundas do nosso lado obscuro, inconsci-
ente. Ao lhe oferecermos hist6rias com uma visão de mundo
objetiva, racionalista, equivocada e inadequada, não a es
taremos alimentando, também, com imagens e hist6rias que
dão algum sentido ~s suas emoçoes.
Segundo Hans Dieckmann,
"Com base num catalogo tão macabro, não é de ad
m1rar que sempre houve esforços para banir o conto de fada
do quarto das crianças, ou ao menos, quando fosse posstvel,
purifica-lo da crueldade para oferecê-lo às crianças em ver
67
são mais amena. O que e de estranhar e que tais esforços
nunca foram coroados de êxito. Sempre fracassaram, pelo f~
to de que as próprias crianças não estavam muito interessa
das nessas formas purificadas, e ansiosamente liam o texto
arcaico e cruel quando conseguiam apoderar-se dele" (Diec~
mann, 1986, p. 116).
E importante lembrar que esta crueldade nao acon
tece só com os personagens "malvados", e nem só para os i~
gênuos e desprevenidos, mas também como provação imposta
ou causada pelo próprio herói ou heroína das histórias.
Nas histórias que relatamos, percebemos que a moça de "Al
mofadinha de Ouro" também esteve sujeita a situações desa
gradáveis e até cruéis, como o tratamento que recebeu de
sua madrasta.
Resta-nos ainda a dúvida se esta "crueldade" real
mente leva a criança ã perplexidade, ou se não passa de um
temor manifestado pelos adultos perante o prazer manifest~
do pelas crianças frente ã "violência" dessas histórias.
O que os adultos nao se dão conta é que, da mes-
ma forma que as crianças observam "atos cruéis" nos contos,
elas também contemplam os "atos humanitários", como salvar
a vida de alguém, não matar os animais, etc.
E importante frisar que o ser humano, como ser
natural, não contém só o lado bom e protetor, mas também o
seu lado cruel, temível.
Tomando como exemplo a nossa realidade, a cruel
dade tem sido presenciada por nós brasileiros quase dia ria
mente. Basta sair pelas ruas ou ler e ouvir as notícias
dos jornais. Parece mesmo que ela já faz parte do nosso
cotidi;lno, e ~s vezes chegamos mesmo a nao nos
m~ds CUJTl el~.
68
espantar
A diferença que h5, acreditem ou n30, é que nos
contos de fadas, e no universo imagin3rio dessas hist6rias,
hi resist~ncia contra essa crueldade, e ~s vezes ela ~ su
plantada ou banida, coisa que dificilJnente tem acontecido
na vida real enfrentada diariamente por n6s, brasileiros.
Portanto, este aspecto cruel proclamado por al
guns ~utoles ou pessoas revela, queiramos ou nao, uma das
facetas do llundo cm que vivemos, e é através da vivência e
do confronto dos personagens dos contos com estes aspectos
"degradantes" que se P(lSSl biJ j ta que a criança aprenda a
lidar com os mesmos.
Os contos têm recebjdo também outras criticas a
respei to do seu cariter inora] _i zante, onde o bem quase sem
pre prevalece sobre o mal; ou seja, na luta entre o "persa
nagem bonzinho e ingênuo" e o outro "malvado e inescrupul~
50", este último na maioria das vezes sai perdendo.
Neste sentido, o conto nos propoe uma discu~são
sobre os princípios étjcos, já que levam a uma apreciação
de padrões de conduta suscetiveis de uma qualificação mani
queista.
Os personagens dessas hist6rias seguem um prinçf
pio de polarização: ou são boas, ou más; nao seguem um
meio-termo, ou nao sao ambivalentes, como somos todos na
realidade.
Para Bettelheim, a apresentação das polarizações
69
rl e c a r ií t e r p L' r nd te ã c r i : 1 11 ç a c o III p r e ('11 d e r f a c i 1 me n t c a d i f e
rença entre ;JS (luas figllr:ls,a mií c a boa, ficando-lhe difí
c i I d j s t i n g ld - 1 a s c a s o c s t :J S f o s sem r e p r e S e n t a das c o m to -
(~as as r:olllplexirléldes liue caractcr:ÍZam as pessoas reais.
A16m disso- diz o autor - as escolhas das crian
ças não são hascadas no certo veJr.6lL.6 errado, mas sobre quem
lhe despertél sjmpatia ou :lntipatia. A criança se identifi
ca com o her6i ou a figura central, nao por causa de sua
bondade, mas porque a condição do her6i lhe traz um profu~
do apelo positivo.
Marie Louise Von Franz (198Sb), por sua vez, co
loca que existem duas coisas que ditam o comportamento hu
mano: o c6digo ético coletivo, que também se pode chamar
de 'superego freudiano, e a reação moral de cada indivfduo.
Além deste c6digo ético coletivo que somos obrigados a con
siderar, para não nos vermos em apuros, cada indivfduo po~
sui o seu pr6prio nível ético e forma de reagir.
Algumas pessoas já devem ter-se deparado com ou
tras que insistem em acreditar que estão agindo da forma
certa, quando sabemos que podem estar prejudicando tercei-
ros. Cada um sempre tem um bom motivo para justificar aqui
lo que para outros seda um equívoco.
Poderíamos fazer ~m ligeiro percurso através da
hist6ria das religiões e das mitologias, que sempre tenta
ram, i sua maneira, explicar a presença do mal. Foi atra
vés dos mitos que o homem antigo personificou as forças no
civas da natureza, assim corno o medo ou o temor frente a
estas forças ainda incxpl icáveis do ponto de vista racional.
70
Neste sentido, atrav6s da comoçio espiritual, o homem da-y
que]a 6poca projetava na natureza, atrav6s dos entes que a
representavam (gnomos, fadas, duendes), tudo o que lhe pa
recia corno benc~rcio ou hostil, do ponto de vista subjeti-
vo.
Dentre as virias mitologias estudadas pelo te51~
go John A. Sanford, o "mal" era excmplifjcado seja de fo~
ma dualista ~ corno nas mitologias dualistas dos escandina-
vos, egípcios, e outros - seja na forma sintetizada as di-
vindades gregas são capazes de promover tanto o bem como o
mal.
Segundo esse autor:
"C ... ) em todos esses mitos podemos notar duas
m~nsagens. Primeir~, existe um poder maligno aut~nomo que
está acima do controle do homem; segundo, na vida existe
um equilíbrio de opostos: a luz é sempre antagonizada pela
treva~ Qua~to ma1S a luz (aspecto positivo) é enfatizada e
personificada pela figura de uma divindade benéfica, tanto
mais inevitável torna-se a encarnação do lado escuro num
deus (ou deusa) que é tio ruim e malevolente quanto a di
vindade da luz é Doa e benevolente" (Sanford, 1988, p. 35).
Foi com o advento da tradição judaico-crist1ã que
as divindades ditas boas e más foram definitivamente disso
ciadas, sendo o mal ou o diabo, ou Sa tanãs, corno a Bíblia
apregoa - condenado e relegado a viver nos infernos, ou
nas trevas, o que exigiu que os adeptos dessa filosofia re
primissem e bloqueassem determinados padr8es de comporta-
mento ou mesmo pensamentos, pois caso contrário, ; seriam
considerados "pecadores", ou indígnos da providencia divi-
na, ou seja, "do reino dos céus".
71
John Sanford lembra-nos que o diabo, por exemplo,
é representado na forma de cabra porque as divindades pa
gãs das florestas apareciam sob esta forma. O casco cliva
do pode ser visto como o casco de Pã, e seus chifres sao
como os de Dioniso. Entretanto, diz-se também que os chi
fres do diabo têm sua origem num deus cornÍfero, adorado
numa religião da natureza da antiga Inglaterra, conhecido
como Wicca.
Havia outras divindades cultuadas na Inglaterra
que foram combatidas com a chegada do cristianismo, como
por exemplo, uma divindade feminina, a benéfica deusa da
cura e da fertilidade, e um masculino e benéfico deus cor
nÍfero. Com a deflagração de um movimento para reprimir a
velha religião "Wicca" passou para o submundo e foi en
tão que as bruxas com seus caldeirões e vassouras (instru
mentos estes ligados às tarefas domésticas exercidas essen
cialmente por mulheres), tornaram-se figuras do folclore.
Com isto conclui-se que as divindades cultuadas nas anti
gas religiões passaram a ter as suas funções absorvidas p~
10 cristianismo, de acordo com seu aspecto moral: Zeus,foi
sincretizado com o Deus judaico-cristão. Mas Dioniso, por
exemplo, deus do êxtase e do ~razer ilimitado, não teve e~
paço após a instituição da igreja, da mesma forma que Afro
dite, considerada deusa de ~ros e da união sexual.
Esses deuses e deusas negligenciados e rejeita
dos, e as funções psicológicas que eles personificam foram
tornando-se objeto da repressão cristã e reapareceram no
folclore e na literatura.
72
Do ponto de vista da psicologia junguiana, o mal,
ou a personificação deste, tem sido associado a aspectos
sombrios, negativos da personalidade.
Dizemos "negativos" porque a sombra, de maneira
geral, é tudo aquilo que faz parte de uma pessoa mas que
ela desconhece. Como enfatiza Jung, "a sombra é simples
mente todo o inconsciente". E o inconsciente, como define
a escola junguiana, é dotado de aspectos criativos (quali
dades do indivíduo que podem se desenvolver de acordo com
as condições externas e internas) e aspectos imaturos ou
inferiores (fraquezas, complexos reprimidos,
negativos, etc.).
sentimentos
:E importante notificar que a sombra refere-se nao
só a aspectos pessoais, mas também coletivos. Percebemos
quando um grupo ou uma nação está sendo dominada pela sua
sombra quando ocorrem manifestações racistas,ou surgem pr~
conceitos coletivos que levam aquele povo a criar um bode
expiatório.
Neste caso. a "sombra destrutiva" é projetada num
ser ou num grupo social, que representariam os "geradores
de todos os males".
Neste sentido, os contos explicam o "mal" de for
ma clara, assim como o desenvolvimento de forças boas, que
podem referir-se a aspectos individuais e coletivos. Como
ressalta ~1arie Louise Von Franz, não se percebe nos contos
de fadas uma maneira de lidar com o mal. Lida-se com ele
de uma forma ou outra, dependendo das circunstâncias: ora
73
opondo-se a ele de forma resoluta, ora devendo-se aproxi-
mar dele indiretamente, ou mesmo fugir dele, o que leva o
personagem central a vivenciar situações novas que o levam,
no final, a uma renovaçao.
-De qualquer maneira, nota-se que se ve represe~
tados nos contos aspectos contraditórios, que nos levam de
um extremo a outro. E é justamente com esta contradição
que convivemos diariamente, quando se trata de tomar posi
çoes frente a determinadas situações.
Neste sentido, assim como nos contos de fadas,
vivemos constantemente num conflito ético: uma coisa é boa
ou má, dependendo da posição privilegiada pelo indivíduo.
Há momentos em que pode ser interessante realizar aquilo
que "o coração manda" - privilegiou-se o sentimento. Em ou
tros momentos é preciso "ser realista, objetivo", priori-
zando-se a posição racional, ou a função pensamento. Ou en
tão, o que é bom para alguém pode ser mau para outro.
Portanto, o conflito ético, ou aquilo que é cer
to ou errado para um indivíduo ou para a coletividade, ten
de a ser relativizado de acordo com o momento.
E claro que se uma pessoa ou um grupo tem cons-
ciência da sua natureza ou potencialidade, assim como o co
nnecimento objetivo dos pros e contras de uma determinada
situação, a possibilidade de tomar uma atitude que lhe se
ja benéfica é maior.
Recapitulando, então, a partir da santa inquisi
ção, aguçou-se o conflito ético. onde se julgava necessário não
74
entrar num conflito s~rio com a sombra, mas neg5-la ou re-
primi-la. Portanto, as noções de "mal" e "bem" não se con
figuram por si mesmas; mas são relativas a um ponto de vis
ta seja cultural, individual ou religioso.
Com relação aos contos, fica-nos difícil carac-
terizar qual é o seu enfoque ético: às vezes os persona-
gens são levados a mentir para se "safar" de algo perigo-
50; outros adotam uma posição de confronto e, por fim, al
guns podem se aliar às forças consideradas "negativas" e
transformá-las em positivas.
Segundo Von Franz:
"E por essa razão que os contos de fadas são tao
importantes. Neles encontramos regras de comportamento, de
lidar com essas coisas. Muito freqüentemente não se trata
de um assunto etico muito claro, mas de como se encontrar
um caminho de sabedoria natural" (Von Franz, 1985, p. 203).
Portanto, esta visão de que nos contos de fadas
é passada a mensagem de que se tem que ser bonzinho para
conseguir as coisas, é uma análise parcial. Primeiramente,
não existe um único comportamento válido para todos os cog
tos. Cada história se desenrolará de urna forma e o person~
gem principal agirá de acordo com as circunstâncias: -sera
esperto, corajoso, ou esperará o momento adequado, ou agi
rá de maneira intuitiva ou de acordo com seus sentimentos,
enfim nao existe um comportamento padronizado em todos os
contos.
o conto de fadas diz à criança que o "mal" exis
te e que se deve ora confrontá-lo, ora simplesmente sucum-
7S
bit frente a sua presença, para que esta força negativa
torne-se positiva, nem que para is'l6'sej am necessárias aI
gumas perdas e provações a fim de que seja possível viven
ciar um processo de emancipação.
Outra crítica que se faz aos contos refere-se ao
papel passivo e degradante reservado à mulher, como na
história que contamos ou mesmo na "Gata Borralheira", on-
de as mulheres sujeitam-se a trabalhos,~rçados como se ':'~ ,
impõe a uma criada. ... ,~:-
E claro que um adulto ou uma criança com o míni
mo de sensibilidade não ficarão impassíveis frente ao tra
tamento recebido ou imposto ao personagem, e certamente o
recriminarão podendo dizer, ou perguntar: "por que o obri
gam a fazer isto?"
Mas, a despeito dos contos serem extraídos de
representações culturais delineadas há no mínimo três sé
culos, será que em nossos dias a mulher já se encontra
isenta de assumir o papel de faxineira e provedora do lar?
Não só sabemos, mas vivenciamos em uma socieda-
de ainda patriarcal, que a mulher de hoje ou assume os vá
rios papéis (mãe, tarefas domésticas, esposa, trabalhado-
ra remunerada, etc.), ou contrata alguém para fazê-lo,
salvo raras exceçoes.
E bom explicitar que nao compactuamos com este
tipo de postura ou atitude "machista", mas o que queremos
ressaltar é que não é o conto o principal veiculador de
uma moral, mas ele simplesmente traduz uma experiência vi
76
vida pelas sociedades desde os tempos antigos. E claro que
ocorreram mudanças em alguns setores da sociedade ap6s os
movimentos feministas de libertação da mulher, mas esta
ainda vem sendo subjugada ao homem tanto do ponto de vis-
ta legal (conforme a legislação de alguns países), como
cultural, ao ser relegada também às tarefas domésticas.
Neste sentido, além de já termos explicitado
que a criança certamente também julgará determinadas si-
tuações e comportamentos considerados "aviltantes" por a.!
gumas pessoas, cabe ao educador, aos pais ou à pessoa que
veicula contos de fadas mediar se necessário, questões que
possam vir a surgir por parte das crianças acerca destes
t6picos apontados.
3.3. O mecanismo de projeção e introjeção de Melanie Klein
Dentro desta questão acerca da polarização do
bem e do mal percebida nos contos de fadas, descobrimos,
através da teoria de Melanie Klein (in Segal, 1975) acer-
ca dos mecanismos de defesa, subsídios para compreender
como a criança lida com sentimentos negativos e positi-
vos. As considerações abaixo são baseadas no livro de
Hanna Segal (1975).
De acordo com a: autora, j á no nascimen-to existe
ego suficiente para experimentar a ansiedade. lnicialmen-
-te o ego e amplamente desorganizado, embora, de acordo
com toda a fundamentação acerca do crescimento físico e
psico16gico, ele já possuia desde o começo uma tendência
77
ã integração. Desde cedo, o ego tem uma relação com o o~
jeto primário, o seio, sendo este estágio dividido em duas
partes: o seio ideal e o persecutório. A fantasia do obje
to ideal funde-se com as experiências gratificantes de
amor e alimentação recebidos da mãe externa real, e é con
firmada por essas experiências, ao passo que a fantasia
de perseguição mescla-se, de forma semelhante, com expe
riências reais de privação e sofrimento, as quais são atri
buidas pelo bebê aos objetos perseguidores.
A privação, portanto, se constituiria numa amea
ça de aniquilação do objeto ideal e do ego resultando na
ansiedade. Neste sentido, o ego desenvolve uma série de
mecanismos de defesa, sendo provavelmente o primeiro um
uso defensivo de introjeção e de projeção. Como medida de
defesa, o ego esforça-se para introjetar o bom e para pro
jetar o mau, ou o bom é projetado para mantê-lo a salvo
do que é sent~do como uma maldade interna. Portanto, em
situações de ansiedade a divisão é ampliada e a projeção
e introjeção são usadas a fim de manter os objetos perse
guidores e ideais afastados o máximo possível um dos ou-,
tros, mantendo-os também sob controle.
Portanto, esta ordenação de experiência que ocor
re com o processo de divisão em um objeto bom e mau rege
o universo das impressões,:emocionais e sensoriais da cri
ança, e constitui uma precondição da condição posterior.
Trata-se, segundo a autora citada, da base do que mais
tarde se torna a faculdade de discriminação, cuja origem
é a diferenciação primitiva entre bem e mal.
78
Percebe-se que estas fundamentações de Melanje
Klein estão de acordo com Bettelheim, corno já descrevemos,
quando ele diz que a polarização em figuras más e boas ]lOS
contos de fadas permite à criança compreender mais facil
mente a diferença entre as duas, o que seria mais diffcil
se estas qualidades fossem mescladas num mesmo personagem,
corno acontece na vida real.
Neste sentido, atrav€s de mecanismos de proje
çao e introjeção destes aspectos bons e maus encarnados
pelos personagens dos contos de fadas, a criança tem a
possibilidade de ver espelhado ou refletido o que se pas
sa em seu psiquismo, identificando-se ora com processos
destrutivos de um determinado personagem, ora com os cons
trutivos, corno requeiram suas necessidades momentâneas.
Conseqüentemente, a partir de todas estas colo
caçoes, dentro da perspectiva apregoada pela psicologia
ou por estudiosos da mesma f que ,apesar das crfticas ca
bfveis à prática de se relatar contos às crianças, perce
be-se que algumas já "caducaram" frente às evidências e
às contra-argumentações de alguns autores. Outras não pr~
cisam buscar nos contos as "rafzes dos males sociais" ou
"exemplos excessivamente moralizantes" que proporcionam à
educação das crianças. Mas estas representações extrafdas
de realidades subjetivas e objetivas nada mais são do q~e
os reflexos das próprias contradições a que somos expos
tos enquanto seres sociais. E o conflito €tico no qual s~
mos levados a considerar e avaliar constantemente de acor
do com a situação, visto que ignoramos o que seja o "bem"
79
e o "m3]" em si mesmos.
r também com este cunflito étjco que a criança
se dcp:na quando em cont 3to com os contos de fadas, o que
impljca que a postura do "contador de histórias" é funda-
li:cntaJ para criar uma atmosfera propfcia, onde não ...
sera
dado ;:nfase nem reforço ao compor1amento dos personagens
"]1onzjnhos" em detrimento daqueles considerados "maus". O
jdeal é que o narrador seja um mediador, sem qualificar
personagens e situações de fOllna maniqueísta, o que propi
c:i aria que as imagens dos contos e seus personagens "fa-
lassem por Sl mesmos".
-' !
A VOCAÇÃO PEnA~nGJCA DOS CONTOS DE FADAS PARA
A CRIANÇA EM IDADE PR~-ESCOLAR
Após discorrermos sobre as supostas orIgens dos con
tos de fadas, sua herança cultural, sua linguagem simbólica
que proporciona algumas leituras, dentre elas a de espelhar
aspectos do psiquismo, buscamos ao longo deste trabalho elu
cidar a importância e as implicações de se relatar contos de
-fadas as crianças.
-Faltou abordar o seu papel dentro do contexto pre-
escolar e, neste sentido, temos que recorrer às considerações
até então formuladas por Piaget (1978~ e E.)acerca dos aspectos do
desenvolvimento infantil, do ponto de vista cognitivo-afeti-
vo, para situarmos melhor esta criança, que encontraria den-
tro do espaço educativo a possibilidade de desenvolver mais
eficazmente as suas potencialidades.
Destacamos a pré-escola e a criança em idade pre -
escolar por acreditarmos ser mais proeminente na primeira in
fância uma identidade maior entre afetividade e cognição; ou
melhor, são aspectos complementares, como sugere Piaget, que !
acompanham a criança no decorrer de seu desenvolvimento, mas
que encontram na fase pré-conceitual ou pré-operatória uma
incid~ncia maior. ~as é durante esta fase que se configura
em maior grau uma não-diferenciaç~o entre o mundo ffsico e
o mundo psfquico, que, segundo Piaget,
81
"~ de se esperar que considere como VlVOS e cons-
cientes um grande numero de corpos que para nós -sao inertes.
~ este fenômeno que designaremos de anúnLómo" (Piaget, ]978~,p.139).
E durante esta fase pré-lógica que a criança dis-
poe de uma abertura maior para o "faz-de-conta", o "mágico"
j á que se encontra mais próxima da inconsc i ênc i a, visto que
o ego, nos primórdios de sua diferenciação, não está plena-
mente capacitado para estabelecer relações lógicas, racio-
nais e objetivas entre o mundo interior e o exterior.
Neste sentido, as crianças desta fase acabam por
se envolver mais inteiramente com as histórias de encanta -
mento e magia, identificando-se em maior grau com a sua lin
guagem simbólica imaginativa, já que a mesma não a sobrecar
rega intelectualmente.
A partir do momento em que a criança atinge a fa
se operatória, por volta dos sete anos de idade, as estrutu
ras lógicas atingem uma maior maturação, e a partir daía es
cola, a sociedade e a própria criança passam a requerer mais
o exercício das suas capacidades lógico-racionais. Isto não
impediria que o conto de fadas pudesse ser um estímulo a e~
tas crianças, assim como aos adultos, de entrar em contato
com as suas imagens ricas, que refletem os aspectos do dq
senvol vimento ps íquico as s im corno a possibilidade de se extrair
delas uma fonte de autoconh~cimento.
Portanto, apesar de nos dirigirmos mais especifi
camente i criança em idade pré-escolar, algumas considera -
ções podem ser pertinentes também nas fases subseqtientes ,a~
sim como aos adultos que precisam "alimentar-se" destas his
82
tórias no sentido de mobilizar a sua capacidade imaginativa,
ou mesmo de estabelecer um vínculo significativo com os sim
bolismos presentes nestas histórias que se conjuminam com
sua história pessoal e/ou cultural.
~, sem dúvida, um desafio buscar uma referência
nos estudos de Piaget acerca do desenvolvimento dos aspectos
cognitivos durante a infância, mas não menos significativo,
pois, sem dúvida, o autor se voltou para as pesquisas acer
ca da função do pensamento ou cognitiva, e a emoção não oc~
pou um espaço maior nos seus estudos, apesar dele pontuar a
sua relevância. A despeito de o autor sustentar que o afe
to e a inteligência são dois aspectos essenciais e insepar~
veis, Piaget procurou "acomodar" a afetividade em estrutu -
ras semelhantes aos seus "esquemas cognitivos", dizendo:
"Creio que no campo afetivo tambem se encontraria
o equivalente da lógica no campo cognitivo, seriam estrutu
rações de conceitos sociais em forma de escalas de valores
morais ( •.. )" (Piaget, in Williams & Varma, 1980, p. 69).
Na verdade, a "epistemologia genética" é uma epi~
temologia "carente de afetos", sendo que o seu mentor chega
a confessar que se limitará àquilo no qual tem experiência,
ou seja, as estruturas lógicas, almejando que chegue o dia
em que a sua epistemologia venha a se fundir com a psicaná-
lise numa teoria geral.
Limi tar-nos-emos, então, a buscar, a. partir de suas
pesquisas e formulações a respeito do desenvolvimento das
estruturas cognitivas da criança, assim como a relação que
esta estabelece com o seu meio, material que venha a nos
83
subsidiar a fim de elucidarmos como se processam as represe~
tações que a criança formula.
Piaget (1978~, 1978~) tem sustentado, ao longo de
seus estudos, que o egocentrismo (quando a criança pensa e
age de acordo com pontos de vista próprios, ignorando mais ou
menos os dos outros) é caracterizado por uma "ausência de ló
gica ou de socialização do pensamento".
Na medida em que o pensamento egocêntrico se en
contra em fase de indiferenciação, ou seja, tanto de absor -
çao inconsciente do grupo no eu, quanto de ignorância dos po~
tos de vista alheios,a criança ainda não é dotada,inteiramen
te de logicidade, assim como da formulação de conceitos (es
truturas compostas de identidades e suj ei tas a generalização),
que são em geral comunicáveis. Nesta fase, a criança elabo
ra pré-conceitos (que estão presentes geralmente na idade de
dois a quatro anos mais ou menos), que são sustentados por
imagens que, por sua vez, desempenham o papel de significan
te, sendo também um dos produtos da função semiótica.
Neste sentido, esta fase do pensamento que Piaget
(1978~) caracterizou de "pensamento transdutivo" estaria su
jeita a "superar o campo perceptivo, por meio da representa
ção", sendo possível ã criança "deformar essa realidade re
presentada ao sabor de seus desejos e subordiná-la ao fim a
que visa". Piaget mostrava-se mais interessado em demorts
trar a atividade mental nas suas funções ]ógico-cognitivas,
daí por vezes apresentar o período transdutivo da fase .A
pre-
operacional" como um período de transição para o pensamento
lógico, sendo então aquele caraterizado por "meras experiên-
84
cias mentais que prolongam as coordenaç6es pr5ticas no pla-
no representativo", e que não são sujeitas a "grupamentos"
gerais que estabilizam e generalizam as primeiras conexoes
que se processam através de intuiç6es articuladas.
o que talvez escapasse a Piaget é que as emoçoes
que acompanham as funções cognitivas não estão sujeitas es
sencialmente a um desenvolvimento contínuo e subseqüente,a~
sim como o pensamento lógico. Este está em permanente con~
trução quando estimulado para tal fim, enquanto as emoçoes
sofrem constantemente o mecanismo que Jung denominou "re-
gressão" e "progressão".
Do ponto de vista energético, estes mecanismos obe
decem a um processo dinâmico, donde a regressão inclui uma
adaptação da psique às condiç6es próprias do mundo interior,
ou seja, os elementos pSJquicos (inconscientes ou parcial -
mente conscientes) que são forçados a ultrapassar o limiar
da consciência. Trata-se de conteúdos de cunho infantil e
sexual em parte irracionais, geralmente carregados de afeto.
A progressão, no caso, obedece a um processo contínuo às con-
dições do mundo ambiente, e pode surgir de forma comp1emen-
tar à regressão ou mesmo compensá-la, ou no sentido de re -
primir as tendências e exigências internas.
Estes mecanismos energéticos podem ocorrer duran-I
te qualquer fase ou etapa ~~ desenvolvimento do ser humano,
já que correspondem a um acontecimento psfquico que, de ma-
neira geral, possui uma "lógica" própria. Com base nas for
mu1aç6es de Jung, podemos afirmar que quando se trata de co!!.
teúdos inconscientes temos de avaliá-los também de forma re-
8S
lativa, pois obedecem a um sistema subjetivo de valores, di
fÍceis de serem mensurados numa escala absoluta e fixada de
maneira geral.
Mas, apesar disso, afetividade e inteligência, ao
serem observadas como funções complementares, têm caracte
rísticas funcionais semelhantes, embora também divergentes,
de acordo com o ponto de vista no qual Piaget privilegia.
Tanto o pensamento pré-conceitual transdutivo tem
o suporte de imagens, como a atividade psíquica (seja ela onf
rica ou em vigília) adquire um significado através de suas
imagens. No entanto, para Piaget, a imagem é um esboço de
uma representação baseada em fatores externos, ou seja, a
imagem mental, isto é, o símbolo é encarado como um esboço
interior do objeto, podendo ser um produto de interioriza -
çao da própria imitação. Com esta afirmativa, podemos infe
rir que Piaget restringe a noção de símbolo ou imagem a um
significante que envolve apenas o ego, em contrapartida a
Jung, que define a imagem como uma expressão condensada da
situação psíquica como um todo, ou seja, expressa conteúdos
inconscientes que se encontram constelados momentaneamente
no consciente, e que estão sempre em relação com a total ida
de psíquica (consciente e inconsciente), ji que são sempre
apreensÍveis pelo indivíduo.
Apesar desta divergência entre a definição de im~
gem para ambos, supõe-se que eles tomaram pontos de partida
diferentes: Piaget busca formular o desenvolvimento cogniti
vo especialmente na criança, partindo essencialmente de um
método clínico-empírico e Jung, no caso, baseou-se também em
86
fatos empfricos, embora procurasse condicion5-los a uma abor
dagem sint6tica e herrnen~utica.
Voltando ã questão das imagens, resta-nos enten -
der de que forma a criança entra em relaç~o com elas,j5 que
se encontra num estado de indiferenciaç~o entre o objetivo
e o subjetivo. ~ importante lembrar que embora a criança
dominada pelo egocentrismo coloque as suas necessidades pe!
soais em primeiro plano, j5 inclui algumas adaptaç6es men-
tais, um pouco de orientação para a realidade objetiva, se
constituindo numa fase preparat6ria para o pensamento con -
ceitual.
Mas, na medida em que nesta fase egoc~ntrica pr~-
16gica o conceito ~ uma abstraç~o, parece que a criança, ao
querer conjecturar sobre as coisas de maneira geral, proje-
ta na realidade externa sonhos e experi~ncias subjetivas,c~
mo, por exemplo, quando atribui aos outros as suas pr6prias
intenç6es e vontades, tornando o seu ponto de vista absolu
to, ignorando que este ~ subjetivo.
Piaget nos dá o exemplo da criança que acredita
que o sol a segue assim como as nuvens, como se ela pudesse
ter o poder de atraf-Ios, e n~o que eles tenham esta inten-
çao.
Este estágio de indiferenciaç~o entre o sujeito;e
o objeto tem um significado'análogo ao que Levy-Brfihl dcno-
minou "participaç~o mfstica", ~egllndo o ':tual dentro da vi -
são antropo16gica, o sujeito das socjed:1dcs ditas "pdmiti-
vas" ou pré-letradas estaria nlJma relaç~c de jndistin{~30 com
o objeto, estando (;1es intimamente ligados. Jung tomou em-
87
prestado o mesmo termo para se referir a relações entre pes-
soas em que o sujeito, ou parte dele, controla o objeto ex -
terno, ou atribui-lhe significados de acordo com pontos de
vista de seu mundo interno.
Piaget também acredita que a fase onde a criança
formula pré-conceitos (onde partes de um conjunto não são en
quadrados num todo) também se constitui numa fase de "parti-
cipação" no sentido de Levy-Brühl. Embora essas duas concei
tualizações se refiram a situações distintas, são constata -
ções que se assemelham, ji que as formas de causalidade na
criança são provocadas por uma confusão entre a realidade e
o pensamento.
Esta conceituação, por sua vez, também tem um sig
nificado mais ou menos anilogo, aquele outro elaborado pela
escola psicanalítica, a "identificação projetiva" em que pa!.
te da personalidade é projetada no objeto, e este último -e
experimentado como se fosse o conteúdo projetado.
Estes sentimentos de participação, ou certos con -
teúdos internos que sao projetados nos objetos, sao conse-
quencia de uma falta de consci~ncia de sua subjetividade, ou
seja, o real esti impregnado de aderências do eu. A criança
nao pensa senao a partir de si, ignorando mais ou menos ós
pontos de vista dos outros, acreditando que todos pensam co-
,TIO ela. Segundo Piaget (1978~), "ela não descobriu a multI. -
plicidade de perspectivas e permanece fechada na sua como se
fosse a única possível: a criança afirma sem provar, e nao
tem a necessidade de convencer".
Portanto, durante esta fase onde predomina o -pre-
88
conceito que se ap6ia atrav6s de imagens, nota-se que o pe~
S<1l1lcnto da criança 6 mui to mai s imaginativo e sobretudo mais
motriz que conceitual.
Esta etapa seria superada, segundo Piaget, quando
a cri ança, através da experiência com seu meio, aprender que
seus sentimentos são subjetivos por uma série de decepções
c pela existência das resistências dos outros.
Por volta dos sete a oito anos mais ou menos, até
os doze, a criança passaria a desenvolver um pensamento que
se enquadraria em sistemas e objetivos intelectuais mais am
p]os,onde passaria a operar em maior grau o pensamento 16-
gico. A imaginação criadora não se debilita com o avanço
da idade, mas passaria de um estágio essencialmente lúdico
e espontineo para outro em que se integra gradualmente na
inteligência, ampliando-a.
Sendo assim, é durante a primeira infincia (dos
dois aos sete anos mais ou menos), ou seja, na idade pré -e~
colar que a criança, ainda em fase de indiferenciação entre
o subjetivo e o objetivo, experiência e reconhece determina
dos fatores ou representações tanto do mundo interno como no
externo, através de um pensamento intuitivo, baseada na prª
pria percepção e representaç~o por 5magens. Não podemos de
forma alguma afirmar que durante esta etapa o seu pensamen
to é totalmente egocêntrico-intuitivo, sendo a criança inc~
paz de perceber o ponto de vista alheio, ou que ela tem urna
vi são de mundo "deformante". O que ocorre é que a cr j ança
vaI gradualmente adquirindo, através da relaç~o com o meio,
11ma percepção gradual da sua subjetividade e maior consciên
89
cia de si, e conseqüentemente urna percepçao mais "realista"
do que ocorre à sua volta.
o que é necessário pontuar aqui é que nesta fase,
quando a criança começa a dimensionar o real através da re
presentação e da construção de imagens, é essencial a cons-
tituição do espaço representativo, corno por exemplo a lin -
guagem corporal, plástica e verbal que pode referir-se tan-
to a imagens ou significantes individuais corno a significa~
tes arbitrários, porque adquiridos socialmente.
~ justamente "imaginando" a realidade que teremos
também condições de agir sobre ela, assim como de buscar si&.
nificações para os conteúdos provenientes do nosso mundo in
terior.
Até mesmo Piaget, que nao se sentia à vontade pa
ra tratar de questões relativas à afetividade, assim corno
daquelas imagens que se formam no consciente a partir de ema
nações do inconsciente, tende a atribuir às imagens urna im-
portância significativa quando se trata de lidar com conteQ
dos afetivos. Neste sentido, Pi~Gct não nega a incompetên
cia da lógica ao expressar aquilo que é pessoal:
"( ... ) a linguagem corrente, principalmente adap
tada as operações lógicas, permanece inadequada a descrição
do objeto individual, infralógico; não há necessidade, por
outro lado, de relembrar sua pobreza essencial quando se tra
ta de exprimir o vivido e a experiência pessoal" (Piaget,
1978~, p. 345).
Portanto, ao notarmos que a criança em idade pré-e~
colar percebe o mundo exterior e o interior essencialmente
90
através de imagens, e nao de conceitos, e que esta etapa .. e
fundamental para a construção de um "espaço representativo"
que venha a contribuir para a formação de representações,s~
jam elas coletivas ou individuais, por que não favorecer ne~
ta fase para que a criança tenha contato com as histórias
"ricas em imagens", que retratam, como já descrevemos, si -
tuações que exprimem dramas psíquicos os quais ela segura -
mente irá enfrentar?
Estas questões apresentadas nao sao apenas vincu-
ladas e delineadas por exigências tanto internas (amadurecl
mento, autonomia, conflito entre sentimentos contraditórios,
etc.) como externas, já que são situações engendradas pela
sociedade, acessíveis a todo ser humano, que produzem uma
comunicação subliminar do indivíduo com o seu meio social,
visto que um convívio ou participação social mostra-se mais
frutífero na medida em que nos tornamos cientes da socieda-
de em que vivemos.
4.2 Quais as funções dos contos de fadas no contexto pré-es-
colar?
Todos nós fomos crianças, vivemos e sabemos do fas
cínio que os brinquedos e as histórias de encantamento exer
ciam sobre nós. A psicologia e a pedagogia, através de to
do o seu instrumental, comprovaram a importância do lúdico
e da imaginação como um meio fundamental onde se estabele
ce um elo de ligação entre a criança e o mundo, de acordo
com o que já relatamos.
A criança, no curso de seu desenvolvimento, passa
9]
por fases em que a representação (imitação, jogos e brinca-
deiras) tende a ser urna das atividades que e]e exerce signi
ficativamente. Através da representação, a criança lida com
aspectos internos (quando ela os projeta) e externos (na me
dida em que extrai elementos da realidade), no sentido de
buscar significados tanto do ponto de vista afetivo como cOR
nitivo.
Portanto, real e imaginário sao duas noçoes que se
inscrevem num exercício dialético, já que ambas estão sem-
pre presentes no processo de conhecimento de si e do mundo.
tão:
verso.
Jacqueline Held dá o seu depoimento sobre esta que~
"Cada um de nós retira do real o seu próprio un1-
E Gaston Berger, quando fazia pesquisas sobre cara~
tereologia, perguntava: um comerciante de madeira e um pin
tor ao contemplar uma floresta ao crepúsculo, vêem a mesma
coisa? De certa maneira, e em resumo, produzo o meu próprio
real. Por isso mesmo, o meu real e fantástico, assim como
o meu fantástico e real" (Held, 1980, p. 26).
Isto nos leva a refletir que o real e o imaginá -
rIo definem-se dialeticamente (um se define pelo outro). C~
da um de nós retira do real o seu próprio universo, ou me-
lhor, eu produzo meu próprio real. .. .. - .. Se o ImagInarIo fosse p~
ramente subjetivo, oposto ao real, então corno poderia ele
ser comunicável?
Do ponto de vista da autora ci tada, nao existe fan
tástico (no sentido daquilo que é criado pela imaginação)ou
irreal puro, pois caso contrário, este fantástico nos apre-
sentaria apenas o desconhecido, pois urna vez que não teria
92
nenhum ponto de contato conosco, nos permaneceria estranho.
Portanto, existe na criação uma dosagem sutil de conhecido
e desconhecido. Ainda segundo essa autora, qualquer hist6-
ria, para ser compreensível, comunicável, supõe um mínimo,
pois, de referências ao humano, ao natural, ao ordinário.
Dentro destas referências que podemos reconhecer
nos contos de fadas fundem-se vários elementos. Alguns fr~
tos da imaginação, construídos a partir de elementos consi
derados "irreais" (bruxas, anões, monstros, etc.). Outros
referem-se a uma realidade mais ou menos presente, se inse
rem no dia-a-dia, no cotidiano do homem comum (camponês, l~
nhador, família, mulher e filhos, etc.). E, por fim, liga
do aos precedentes, um domínio reservado, que segundo J .Held,
é "um lugar bem seu, onde ninguém jamais entrará, um espaço
maravilhoso onde habitam seres muito amados".
Neste sentido, na paisagem, nos enredos e nos pe~
sonagens presentes nos contos encontram-se elementos tanto
vinculados à realidade objetiva corno aqueles nos quais nos
identificamos tão intimamente, que chegam até a mobilizar
sensações e afetos que carregamos também dentro de nos; se
ria aquele "domínio reservado", corno diz a autora, mas nao
inteiramente inacessível.
Da mesma forma que para a criança pequena,como já
demonstrou Piaget, o mundo objetivo e o subjetivo tendem a
mesclar-se, esta mesma configuração é observada nos contos
de fadas, ou seja, é um espaço narrativo onde o real e o irna
ginário interpenetram-se, favorecendo que a criança veja ali
espelhado o que se passa no seu Íntimo. Neste caso,as fron
93
teiras entre real e imagin5rio permanecem t6nues e fluidas
por um certo tempo. ~ na infância que se inicia o processo
de construção da personalidade, onde aos poucos a criança
vai tornando consciência de si, através das relações com o
meio que pode favorecer ou nao o seu desenvolvimento, levan
do em conta as suas pptencialidades inatas.
~ um processo longo, lento e, por vezes, doloro -
so, pois na procura de si mesma, e até sofrendo com sua "in
ferioridade" ou submissão aos adultos, a criança muitas ve-
zes deseja ser independente, daí projetar-se com prazer nas
figuras centrais dos contos de fadas que "enfrentam o mundo
e os outros". Mas não seria perturbador para nós adultos,
ou educadores, vê-la imersa numa história que poderia refo~
çarsua fantasia, iludindo-a na medida em que ela é incapaz
de enfrentar o mundo por si só?
Algumas correntes pedagógicas chegaram a condenar
a prática de se contar histórias às crianças. Para exempli..
ficar, reproduziremos as palavras de Paula Lombroso, que e~
creveu um livro sobre a "Pedagogia Montessori", registradas
no livro de Jesualdo:
"( ... ) contando-lhe histórias, julgamos transpor
tá-la a um mundo fantástico, inverossímil no qual a criança
vê apenas uma ficção poetica e imaginária ( ... ) não se deve
enganar a criança porque mais cedo ou mais tarde o desenga
no chega a sua alma, apodera-se dela e deixa para sempre um
amargo sentimento de dor ou de indignação contra a socieda
de, segundo cada indivíduo ( .•• ) sua imaginação (a da crian
ça) ê pobre e cultivá-la ã base de absurdos é um erro ético,
nao menos condenável por ser tradicional" (Lombroso, in Je-
sU31do, s.d., p. 24 e 25).
94
Este tipo de visão estaria de acordo com uma filo
sofia pedagógica apregoada até há pouco tempo (talvez ainda
existam defensores da mesma) que encara a criança como sub
desenvolvida, sendo necessário instruí-la (ensiná-la a ler,
contar, escrever) o mais rápido possível, onde não se perde
tempo em "agradá-la" com contos, pois não seria "sério" e
"rentável". Esta visão deformada do próprio sentido do que
é ser pedagógico acaba por privilegiar uma literatura sim-
plista e realista (tipo manual "O que é?" e "Para que ser
ve?"), já que a criança nao passa de um "ser vazio" que de-
ve ser preenchido por informações que tenham uma utilidade,
que assegurem a formação de um indivíduo "sério".
De acordo com estas colocações, seria, então, pe
rigoso investir nos contos de fada que favorecem o exercí -
cio da imaginação? Não seria perturbador ver a criança ima
ginar gratuitamente?
Como diz Jacqueline Held, a imaginação, como a in
teligência ou a sensibilidade, ou é cultivada, ou se atro-
fia. Diz a autora:
"Pensamos que a imaginação de uma criança deve ser
alimentada, que existe - com a condição de que não se esta
beleçam receitas - uma pedagogia do imaginário que tal ped~
gogia precisaria se desenvolver" ( HeId, 1980, p. 46).
Quanto aos efeitos traumatizantes que algumas his
tórias poderiam provocar, Jacqueline Held cita Marc Soriano:
"Qualquer imagem e traumatizante na medida em que
mistura as angústias de uma criança já perturbada C .. ); tor
na-se ocasião de pesadelo numa criança angustiada"(Held,1980,p.93).
95
Se por um lado identificar-se com o herói dos con
tos de fadas que possui profundo apelo posi tivo constitui um
fator que incita a criança a enfrentar "os obstáculos" que
a vida impõe, seria preocupante vê-la não se distanciar da
quele, prolongando-se nesta identificação, o que acarreta -
ria um infantilismo, retardando a formação de uma personali
dade autônoma.
Neste sentido, nao deveríamos encarar o conto de
fadas como o "culpado" por ter sido a causa deste tipo de com
portamento. Podemos, sim, encará-lo, no plano psicológico,
como um instrumento diagnosticador, que propiciaria, a par
tir destas identificações, trabalhar as questões e conteú -
dos conflitantes que envolvem este tipo de atitude por par
te da criança.
O que faz ela optar por desligar-se da realidade
e projetar-se indefinidamente num personagem?
Os motivos podem ser vários, mas provavelmente não
deve estar sendó fácil para ela assumir uma identidade pró
pria e encarar a realidade.
De fato, os contos de fadas, através de sua lin -
guagem simbólica, precisam ser vistos como uma unidade já
que engendram em si o real e o imaginário, ou o simbólico.
Adquirem um caráter estimulador, positivo e criativo quando
proporcionam uma integração a nível pessoal, mas caso esta
unidade sej a rompida e a criança passe a ter uma postura uni
lateral, de desdobramento da personalidade, o caráter simb~
lico atrofia-se, havendo o risco de não apreendê-lo na sua
totalidade já que não está ocorrendo aquele jogo dialético
96
(real/imaginário) inerente ã atividade simbólica.
~ justamente o caráter exploratório, mediador,un!
ficador, socializante e de ressonância que queremos resga -
tar ao privilegiarmos a função simbólica presente nestas his
tórias.
São estas características que Alain Gheerbrannt e
Jean Chevalier ressaltam quando explicitam, no seu Vieionã
~io de ~lmbofo~, a função e o dinamismo dos símbolos.
Segundo esses autores, o símbolo que surge do in
consciente criador do homem e de seu meio preenche uma fun
ção favorável ã vida pessoal e social. Teria uma função ex
ploratória, pois os jogos de imagens e as relações imagina
das, são um convite a pesquisar o desconhecido.
Sabemos que o símbolo tem uma faceta desconheci -
da, ou mesmo inconsciente, que nos incita a uma busca de sua
compreensao, através de relações aproximadas, já que este
não é definível e nem apreendido por completo, permanecendo
em torno dele uma atmosfera ainda misteriosa.
Ainda ligada ã função exploratória, seria a fun -
çao de substituto, na medida em que ele exprime o mundo pe~
ce bido e vivido pe lo suj e i to em função de todo o seu psiquis
mo.
A outra função, como já descrevemos anteriormente,
é a de mediador, pois propicia uma aproximação entre incons
ciente e consciente, entre o real e o sonho, entre a cultu
ra e a natureza.
Por ter uma função mediadora, o símbolo tem também
97
urna função pedagógica e terapêutica. O símbolo responderia
nao de forma empírica mas sobretudo intuitiva, hermenêutica,
as múltiplas necessidades de conhecimento, e de segurança.
De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrannt:
"( ••. ) os símbolos tomam parte decisiva na forma
çio da criança e do adulto, nio somente como expressio es -
pontânea e comunicaçio adaptada, mas também como um meio de
desenvolver a imaginaçio criadora e o sentido do invisível"
(Chevalier & Gheerbrannt, 1990, p. XXIX).
Além destas funções, ele ainda teria um fator so
cializante, já que cada época, cada grupo têm seus símbolos,
o que produziria uma comunicação profunda com o meio social,
facilitada por sua linguagem universal. Este tipo de rela
çao nao se restringe à área de conhecimento racional, mas t~
bém a uma compreensão interpessoal e mesmo grupal, de acor-
do com o seu apelo afetivo.
O símbolo vivo teria uma função de ressonância,ou
seja, ao ser evocado, pressentido, produz um efeito que ca
talisa conteúdos, sejam individuais, sejam coletivos de um
indivíduo ou grupo social, tanto a partir da sua interpret~
çao ou mesmo de seu conteúdo imaginativo de per si.
Considerando o seu caráter de ressonância, teria
um papel transformador, já que pode integrar conteúdos in -
conscientes à consciência, transformando e reacomodando as
energias psíquicas ali envolvidas.
Mostra-se bastante relevante retomarmos a questão
do símbolo, ampliando a sua noção de forma a ressaltá-lo no
seu aspecto funcional, pois procuramos até então, ao longo
98
deste trabalho, refletir sobre as implicações de se narrar
contos de fadas is crianças, sobretudo no contexto pr~-esc~
lar.
Como os contos sao histórias que se apóiam em ima
gens simbólicas, tamb~m tendem absorver estas funções atri
buídas ao símbolo, ou seja, de possibilitar a exploração de
significados, de substituir e representar conteúdos psíqui
cos, de possuir um caráter mediador e unificador, aproximan
do o homem do seu meio social assim como mediando e/ou int~
grando conteúdos inconscientes ã consciência, possibilitan
do que esta última se amplie já que tem uma função de ress~
nincia e, conseqüentemente, transformadora, aumentando os ní
veis de consciência.
Não poderíamos esquecer que os contos tamb~m tem
uma função socializante, pois transmitem uma herança cultu
ral atrav~s dos tempos, reconectarido a criança de nosso te!
po a uma realidade cultural longínqua mas que também perdu
ra at~ hoje, quando se trata, por exemplo, de traçar e ques
tionar o papel da mulher na sociedade como já discutimos an
teriormente.
Ao que parece, uma função engloba ou desencadeia
a outra, e na medida em que as vivenciamos na sua toalidade,
a atividade simbólica, tamb~m presente na narrativa dos con
tos de fadas, assume o papel de incitador de sentidos e me
canismos de compreensão.
Poderia ser aquilo que G. Durand denomina "equili
brio psicossocial". Na verdade, o autor atribui este senti
do ã imaginação simbólica. Mas como ele mesmo define, esta
99
nao se distingue da atividade simbólica, pois para ele "a im~
ginação simbólica constitui a própria atividade dialética do
espÍri to", entendendo dialética como uma tensão presente das
contraditórias.
Os símbolos, assim como as metáforas poéticas, ao
animarem o espírito dos homens, seriam o "hormônio" da ene,!.
gia espiritual, utilizando o termo empregado por Bachelard
e Durand, ou seja, do pensamento em geral.
James Hillman (1981) vai um pouco mais além, di
zendo que conhecer histórias é psicologicamente terap~uti -
co, se constituindo num benefício para a alma.
Citando o autor:
"Uma pessoa que na infância absorveu histórias e
as estruturou dentro de si, usualmente consegue estabelecer
um relacionamento melhor com o material patologizado das im~
gens obscenas, grotescas ou cruéis que aparecem espontanea
mente em sonhos e fantasias. ( ... ) A prática me fez ver que
quanto mais experimentado e afinado for o lado imaginativo
da personalidade, menos ameaçador será o irracional ( .•. )
Nas histórias essas imagens encontram seu legítimo lugar.F~
zem parte dos mitos, lendas e contos de fadas, em que surge
toda sorte de figuras bizarras e comportamentos distorcidos
exatamente como nos sonhos" (Hillman, 1981, p. 15, 16).
O aspecto psicológico está sendo ressaltado mais
uma vez, através das palavras de Hillman. O social, de acor
do com o que vimos relatando, estaria caracterizado, na me-
dida em que os contos refletem alguns elementos da nossa he
rança cultural.
Segundo o folclorista Vladimir Propp, "o conto
100
guarda em seu seio traços do paganismo mais antigo, dos cos
tumes e ritos da antigüidade" (Propp, 1984, p. 81).
4.3 Considerações finais
~ por estas e outras razoes já apontadas que pro
pomos que a pré-escola, no uso de suas atribuições como: a
de propiciar o desenvolvimento da criança nos seus aspectos
cognitivo, afetivo, social dando-lhe condições para a form~
ção de uma personalidade cada vez mais autônoma, encarando
estes aspectos de forma global, e nao compartimentalizada,
passe encarar os contos de fadas como um instrumento impor-
tante para atingir as metas apontadas anteriormente.
Como já relatamos, os contos de fadas trazem em
seu bojo elementos que são um espelhamento poético (porque
utilizam-se de imagens) dos trajetos do desenvolvimento psi
quico, possuem um caráter socializante onde se vislumbram
questões e elementos provenientes da nossa herança cultural.
Neste sentido~ os contos de fadas cont~m fatores que contr!
buem-para a formação da personalidade nos seus aspectos af~
tivo, social e mesmo racional, já que a imaginação mostra-se
uma atividade precursora da ci~ncia e da técnica.
Neste sentido, não estariam os contos de fadas con
templando todos estes obj et'i vos delineados pela pré-escola,
cumprindo o papel de "alimentar" a criança nos seus aspec -
tos cognitivos, afetivo e social?
Desse modo, os contos de fadas representariam um
excelente meio de "iniciação". Algumas tribos se utilizam
e.aLIOT ••• ~GE11)UOV~
101
de rituais, a nossa sociedade poderia utilizar os contos de
fadas para preparar a criança para um futuro o qual ele de~
conhece. Esta "iniciação" seria mais adequada entre os dois
e seis anos mais ou menos, pois é a fase em que ela pensa e
sente através de imagens, e não de conceitos. Em torno dos
seis anos, a criança entra numa fase realista, rerdendo um
pouco o interesse pelos contos de fadas, pois estes já nao
lhe fornecem mais subsfdios que venham auxiliá-la nas suas
"operações lógicas". Dizemos também "iniciação", pois re
lendo as observações de Gianni Rodari(1982) sobre a narrati
va dos contos de fadas, o autor ressalta as colocações de
Vladimir Propp, que deduz que o conto de fadas passou a exis
tir como tal quando o rito antigo desapareceu, permanecendo
então em forma de narrativa.
Forma de narrativa esta que vem sendo imitada e adaE.
tada nos dias de hoje através dos desenhos animados da TV,
com a diferença de que o espectador, no caso a criança, re
cebe estas imagens passivamente, nao as cria. Adquire tam
bém uma dimensão nova através do cinema desde as adaptações
simplistas de Walt Disney, como aquelas que procuram retra
tá-las de forma mais poética e imaginativa como "Histórais
sem Fim", "Cristal Encantado" entre outras, sem esquecer
dos recursos audiovisuais que decoram algumas produções de
Steven Spielberg como "E. T .': o Extra-Terrestre", o "O Enigma
da Pirâmide", etc.
Percebe-se que os vefculos de comunicação sao di
ferentes. Mas sem querer invalidar ou qualificar um ou ou
tro, a narrativa ocupava o espaço de promover uma maior ri-
102
queza em termos de a criança ser o "produtor" destas ima-
gens que os contos produzem. Ela teria uma liberdade maior
de criá-las ou projetá-las de acordo com seus interesses e
necessidades mais íntimas. Além disso, propiciaria um con-
tato direto e vivo com o narrador, que poderia ser a miE, o
pai, o professor, enfim pessoas que estariam por perto e te
riam maiores chances de perceber e acompanhar todos os efei
tos que estas narrativas produziriam, tanto do ponto de vi~
ta emocional, como do cognitivo-social, além de proporcio -
nar um momento onde o apoio, a segurança e a troca poderiam
acontecer.
Quanto ao narrador, selecionando também aquelas
histórias as quais ele também tivesse prazer em relatar, s~
ria imprescindível que ele também estivesse envolvido, dan
do voz ã imagem ali presente, evitando dar ã sua interpret~
çâo excessiva modulaçio de voz, tom dramático ou gestos ca!
regados que poderiam vir também a influenciar os sentimen -
tos e reações das crianças.
o importante é contar as histórias de forma tran-
qüila, objetiva, impessoal, para que seja proporcionado -a
criança um clima de segurança, que lhe propicia mergulhar mais
no assunto. Além disso, quando' se usa uma voz diferente, . a
criança pode ficar com medo e estranhar o adulto que está
contando, já que aquela voz impostada é diferente da sua voz
natural.
Na iminência de finalizar este trabalho, gostaría
mos ainda de "amarrar" alguns pontos que foram relatados até
então.
103
A nossa proposta, através deste estudo, é conhe -
cer um pouco mais a origem dos contos, a sua relação com a
cultura pagã, que mesmo após as influências e deformações
do catolicismo na Idade Média, sobreviveu e continuou retra
tando simbolicamente elementos religiosos e culturais de ép~
cas remotas, como os rituais iniciáticos (presentes nas eta
pas ou tarefas que o herói teria que cumprir e superar) e urna .
relação ainda de comunhão e respeito aos seres da natureza
(cultuados como deuses nas religiões ditas pagãs).
A tradição oral, além de constituir um elemento
aglutinador dos grupos sociais (através das pessoas que se
reuniram em torno do contador de historias), adquiriu forma
através dos vários compiladores como Perrault, os Grimm,An
dersen e Cascudo no Brasil, que, entre outros, ajudaram a
difundir e instituir a literatura infantil, onde os contos
de fadas têm o seu legado na cultura popular .
. As açoes narradas referem-se a uma situação que é
concebida tanto no plano imaginário como no real, pois nos
aproxima da problemática profunda que se faz presente,da re
lação por vezes conflituosa entre desejo e realidade, ins -
tinto e cultura, razão e emoçao.
Neste sentido, a situação imaginária no brinquedo
tem continuidade também nos contos de fadas, e é através da
experimentação da linguagem simbólica que também possibiii
ta ã criança exercitar os limites entre real e imaginário.
Os contos de fadas favorecem a representação e a
identificação, também por via do herói, das tendências afe
tivas ali sintonizadas. Concomitantemente a isto, oferecem
104
soluções ou caminhos para que estas mesmas situações confli
tantes possam ter um desfecho feliz, dando ã criança também
uma noção de que situações expostas ao perigo podem vir a
ser coroadas de êxito. Esta última alternativa torna-se tam
bém interessante do ponto de vista psicológico, já que cria
ria um clima de segurança, pois a história finaliza-se de
forma tal, que não estariam presentes o fracasso e o maIo -
gro, fatores estes que poderiam gerar uma certa ansiedade e
desestímulo frepte a situações conflitantes, caracterizadas
por um nível de exigência maior.
E, por fim, fica evidenciada também a sua vocaçao
pedagógica, pois além de se adaptarem perfeitamente ã fase
pré-conceitual, em que basicamente se encontra a criança em
idade pré-escolar, alimentam a construção do "espaço repre-
sentativo" fundamental nesta fase ainda marcada pelo pensa
mentoegocêntrico (essencialmente sustentada por imagens),
onde a linguagem simbólica, ao suplantar a lógica, expressa
mais eficazmente a experiência pessoal e as representações
que a criança faz acerca do mundo ã sua volta.
-Proporcionar a criança o acesso aos contos de fa-
das, se escolhidos com discernimento, é pB-Ia a serviço da
longa e árdua tarefa que é a maturação. E preenchendo-a com
imagens simbólicas que lhe daremos a oportunidade de reorg!
nizar, tanto no plano subjetivo como no objetivo, as sUas
vivências, assim como lhe ofereceremos instrumentos valiosos
na produção de idéias criativas e na construção de histórias.
Por todos estes motivos e considerações, procura
mos demonstrar a importância de se investir no contato das
105
crianças em idade pr~-esc61ar com os contos de fadas, lem -
brando que ressaltamos alguns pontos e privilegiamos algu
mas visões e abordagens.
Certamente nao abarcamos todas as visões acerca da
questão, tarefa esta que deixaremos para outros que se apr~
fundarem sobre o mesmo tema. No entanto, ficam aqui regis
tradas algumas id~ias e "verdades" (utilizando uma palavra
mais filosófica) que não se propõem serem únicas nem incon
testáveis, mas apenas mais algumas dentre várias, tal a pl~
ralidade e riqueza de id~ias que caracterizam o nosso pens~
mento, assim como a realidade em que vivemos.
BIBLIOGRAFIA
BETTELHEIM, Bruno. A p~ieanãli~e do~ eonto~ de nada~. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
CADEMARTORI, Lígia. O que e lite~atu~a innantil? são Pau lo, Brasiliense, 1987.
CASCUDO, Luís da Câmara. Conto~ t~adieionai~ do B~a~il.
Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Editora da Univer sidade de são Paulo, 1986.
------o Vieionã~io do nolelo~e b~a~ilei~o. Belo Horizonte: Itatiaia. são Paulo: Editora da Universidade de São Pau 10, 1988.
CASSIRER, Ernest. Ant~opologia nilo~õniea. São Paulo, Mes tre Jou, 1977.
------o Linguagem e mito. São Paulo, Perspectiva, 1985.
CHEVALIER, Jean & CHEERBRANNT, Alain. Vieionã~io de 52mbo lo~. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1990.
CIRLOT, Jean-Eduardo. Vieionã~io de 52mbolo~, São Paulo, Moraes, 1984.
COELHO, Nelly Novaes. O eonto de nada~. São Paulo, Ática, 1987.
------o Pano~ama hi~tõ~ieo da lite~atu~a innantil juvenil. São Paulo, Quiron,1985.
DIECKMANN, Hans. Conto~ de nada~ vivido~. São Paulo, Paulinas, 1986.
DIEL, Paul. P~ieanãli~e de la divindade México, Fondo de Cultura Econ6mica, 1959~
DURAND, Gi 1 bert. A imaginaç.ã.o ~imbõliea. são Paulo, Cultrix e Universidade de São Paulo, s.d.
ELIADE, Mircea. Mito e ~ealidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.
FURTH, Hans G. Piaget na ~ala de aula. São Paulo, Summus, 1980.
107
GRIMM, Jacob. Chapeú.zinho VeltmeR.ho e outltO.6 c.ontO.6 de GJtimm,
Seleção e tradução de Ana Maria Machado, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
------o 0.6 c.onto.6 de Gltimm, são Paulo, Pau1inas, 1989.
HELD, J acque 1 ine. O imaginãltio no podelt. São Paulo, Summus,
1980.
HILLMAN, James. E.6tudo.6 de p.6ic.oR.ogia altquetZpic.a. Rio de Janeiro, Achiamé, 1981.
HILTY, Elisa. Wege zum Ma.ltc.hen, Eina.ugR.ein, Zwe.LattgR.ein, VlteiaugR.ein. Bern, Zytg10gge Ver1ag, 1988.
JACOBI, Jo1ande. CompR.exo, altquétipo, .6ZmboR.o na p.6ic.oR.o-gia de C. G. Jung. São Paulo, Cu1trix, s.d.
JESUALDO, A R.iteltatulta in6antiR.. São Paulo, Cu1trix, s.d.
JUNG, C.G. A eneltgia p.6Zquic.a. Petrópolis, Vozes, 1983.
------o Aion, e.6tudo.6 .6oblte o .6imboR.i.6mo do Si-Me.6mo. Pe-trópo1is, Vozes, 1982.
------o (Concepção e organização) e colaboradores. O homem e .6eu.6 .6ZmboR.o.6. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s.d.
PIAGET, Jean. A 6oltmaç.ão do .6ZmboR.o na c.ltia.nç.a.. Rio de Janei
ro, Zahar, 1978~.
------o A lteplte.6enta.ção do mundo na c.ltianç.a. Rio de Janei ro, Record, 1978Q.
------o PltobR.ema..6 de p.óic.oR.ogia. genétic.a. Rio de Janeiro, Forense, 1973.
PROPP, V.I. Molt6oR.ogia. do c.onto ma.lta.viR.ho.6o. Rio de Janei ro, Forense Universitária, 1984.
RICOEUR, Paul. Va. inteltpJte·tação-en.6a.io .6obJte FJteud. Rio de Janeiro, Imago, 1977.
ROCHA, Ruth. Conto.6 de PeJtJtauR.t. Rio de Janeiro,José Oly~ pio, 1988.
RODARI, Gianni. GJta.mãtic.a da 6a.nta.6ia. São Paulo, Summus, 1982.
108
SAMUELS, Andrew. Jung e o~ põ~-junguiano~. Rio de Janeiro,
Imago, 1989.
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred.Vicionã~io c~ltico de anãli~e junguiana. Rio de Janeiro, Imago, 1988.
SANFORD, John A. Mal, o lado ~omb~io da ~ealidade. São Paulo, Pau1inas, 1988.
SEGAL, Hanna. Int~odução ã ob~a de Melanie Klein. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
SILVEIRA, Nise da. Jung, vida e ob~a. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 1975.
VARMA, Ved P. & WILLIAMS, Phillip. Piaget, p~icologia e educação. são Paulo, Cultrix, 1980.
VON FRANZ, Marie Louise. A inte~p~etação do~ conto~ de 6~
da~. Rio de Janeiro, Achiamé, 1981.
------o A individuação do~ conto~ de 6ada~. São Pau10,Pa~ linas, 1985a.
------o A ~omb~a e o mal no~ conto~ de 6ada~. São Paulo, Pau1inas, 1985~.
------o O ~igni6icado p~icolõgico do~ motivo~ de ~edenção no~ conto~ de 6ada~. são Paulo, Cu1trix, 1986.
PUBLICAÇOES:
Boletim Informativo da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil: "200 ano~ do~ I~mão~ G~imm", Rio de Janeiro, 1987.
Dissertação apresentada aos Srs.:
Nome dos
Componentes da ar1a uC1a o 1ra o 1 va
banca examinadora
~~ Visto e permitida a impressão
Rio de Janeiro 07 / 12 / 1990
~ tMz~ ~~ coo~nadora Geral de ~-----