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Parte 2

GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS NOCONTEXTO DAS POLÍTICAS AMBIENTAIS

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A INSERÇÃO DA GESTÃO DAS ÁGUAS NA GESTÃO AMBIENTAL

Antonio Eduardo Lanna

1. Introdução

É suficientemente claro que a Gestão das Águas1 e a Gestão Ambientalsão atividades inter-relacionadas. Que tipo de inter-relação e como podemser afetados os arranjos institucionais inseridos em uma ou outra prática sãoas perguntas inicialmente respondidas, de forma propositiva. Para tanto cabeuma reflexão sobre a natureza, sem dúvida mais geral, da Gestão Ambiental ede como nela se insere a Gestão das Águas. Esta argumentação é apresentadano texto tendo por referência o trabalho previamente apresentado por LANNA(1995). As analogias entre o uso de dois relevantes instrumentos de gestão, aoutorga e a cobrança pelo uso, tanto no caso das águas quanto nos casos do are do solo, são a seguir analisadas de forma a permitir uma introvisão sobre anatureza e a operacionalidade desses instrumentos. Neste caso, a análise ébaseada em LANNA (1999). Finalmente, com os elementos apresentados nasanálises e discussões prévias, passa-se a analisar as três principais interfacesentre a Gestão das Águas e Ambiental: a) o estabelecimento de metas dequalidade de água a serem atingidas e mantidas nos corpos hídricos ou ochamado enquadramento de corpos de água de acordo com os seus usospreponderantes; b) o estabelecimento de restrições de uso do ambiente visandoà proteção das águas, incluindo a outorga de uso; c) a cobrança pelo uso daágua. Como conclusão, mostra-se e discute-se alternativas para articulaçãodas políticas de águas e ambiental no cenário brasileiro corrente.

2. Definições

A Gestão Ambiental é o processo de articulação das ações dos diferentesagentes sociais que interagem em um dado espaço, com vistas a garantir aadequação dos meios de exploração dos recursos ambientais - naturais, econô-micos e socio culturais - às especificidades do meio ambiente, com base emprincípios e diretrizes previamente acordados/definidos.

1 Será adotado neste texto o termo Gestão das Águas para que seja referida a gestão do elemento natural enão da parcela deste elemento que pode ser considerada recurso (recursos hídricos). Isto visa a nãoestabelecer um conotação utilitária, econômica, que ignore os aspectos de proteção ambiental que podemlevar à decisão de não-uso e preservação da água no estado natural.

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Isto torna a Gestão Ambiental uma atividade voltada à formulação deprincípios e diretrizes, à estruturação de sistemas gerenciais e à tomada dedecisões que têm por objetivo final promover, de forma coordenada, oinventário, uso, controle, proteção e conservação do ambiente visando a atingiro objetivo estratégico do desenvolvimento sustentável.

Fazem parte da Gestão Ambiental:

a) A Política Ambiental, que é o conjunto consistente de princípiosdoutrinários que conformam as aspirações sociais e/ou governamentaisno que concerne à regulamentação ou modificação no uso, controle,proteção e conservação do ambiente.

b) O Planejamento Ambiental, que é o estudo prospectivo que visa aadequação do uso, controle e proteção do ambiente às aspirações sociaise/ou governamentais expressas formal ou informalmente em umaPolítica Ambiental, através da coordenação, compatibilização,articulação e implementação de projetos de intervenções estruturais enão-estruturais.

De forma mais resumida, o Planejamento Ambiental visa a promoçãoda harmonização da oferta e das demandas ambientais no espaço e notempo. Note-se que, propositadamente, usa-se o termo "demandasambientais" e não "usos do ambiente", pois muitas demandas não seconstituem em reivindicação de uso. Nesses casos, estabelece-sedemandas de não-uso para a preservação (no estado natural), conservação(no estado corrente) ou recuperação, vale dizer, demandas de proteçãoambiental.

c) O Gerenciamento Ambiental, que é o conjunto de ações destinado aregular na prática operacional o uso, controle, proteção e conservaçãodo ambiente e a avaliar a conformidade da situação corrente com osprincípios doutrinários estabelecidos pela Política Ambiental.

Conforme será visto adiante, estas ações de caráter prático eoperativo precisam ter coordenação na esfera governamental, devendoporém prever e dar espaço à participação dos usuários do ambiente e dasocie-dade em geral. As ações são orientadas pelas leis, decretos, normase regulamentos vigentes. Como resultado destas ações ficarão estabelecidos:

d) Método de Gerenciamento Ambiental, que estabelece o referencialteórico que orienta os procedimentos, os papéis e as participações dosdiversos agentes sociais envolvidos no Gerenciamento Ambiental.

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Um método que vem sendo amplamente utilizado adota a baciahidrográfica como unidade geográfica de planejamento e intervenção,ao contrário de serem adotadas unidades de caráter político-administrativo como o Estado, Município, etc.

e) Sistema de Gerenciamento Ambiental, conjunto de organismos, agênciase instalações governamentais e privadas, estabelecido com o objetivode executar a Política Ambiental através do Método de GerenciamentoAmbiental adotado e tendo por instrumento o Planejamento Ambiental.

3. Proposta metodológica para a Gestão Ambiental

Uma Gestão Ambiental eficiente deve ser constituída por uma PolíticaAmbiental, que estabelece as diretrizes gerais, por um Método de Gerencia-mento Ambiental, que orienta as ações gerenciais, e por um Sistema de Geren-ciamento Ambiental, que articula instituições e intervenções, de acordo comas normas legais, para o preparo e execução do Planejamento Ambiental.

Alguns componentes do ambiente, como água, solo, flora, fauna, etc,têm caráter multifuncional, vale dizer, prestam-se a atender demandas demúltiplas funções sociais, econômicas e ambientais. Estas funções podem serclassificadas em:

• Função de produção: quando os recursos ambientais são usados comobens de consumo final ou intermediário. Por exemplo, minérios, águapara consumo humano ou irrigação;

• Função de suporte: quando os recursos ambientais criam condiçõespara a vida e as atividades produtivas. Por exemplo, a água, ar e o solocomo hábitat natural, o solo na atividade agrícola e a água como meiode transporte;

• Função de regulação: quando os recursos ambientais limpam,acomodam, filtram, neutralizam ou absorvem resíduos ou ruídos - águapara diluição, afastamento e depuração de resíduos;

• Função de informação: quando os recursos ambientais servem deindicadores sobre "estados ambientais".

Propõe-se que o gerenciamento desses elementos2, ou seja, oGerenciamento Ambiental, seja representado por uma estrutura matricial na

2 Adota-se o termo “elemento” em lugar de “recurso”, devido à conotação utilitária deste último. Destaforma, resguardam-se os valores não-econômicos do ambiente.

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qual uma das dimensões trata do gerenciamento das suas múltiplas demandase a outra do gerenciamento das suas ofertas. A Figura 1 ilustra a inter-relaçãoentre esses Gerenciamentos da Oferta e do Uso Setorial dos RecursosAmbientais. Fica evidenciada a localização do Gerenciamento das Águas oudos Recursos Hídricos na interseção do Gerenciamento da Oferta do AmbienteHídrico com diferentes setores usuários.

O Gerenciamento da Oferta visa a antecipar e dirimir conflitos intra-setoriais (entre demandas do mesmo setor econômico), intersetoriais (entredemandas de diferentes setores econômicos) e supra-setoriais, entre os setoreseconômicos e as demandas de proteção ambiental e entre distintas gerações(demandas da geração presente e das futuras). Os diversos Gerenciamentosde Oferta não podem ser realizados de forma isolada, já que o uso ou a proteçãode um elemento pode comprometer quantitativa ou qualitativamente outroelemento ambiental e/ou alterar a demanda sobre o mesmo. É o caso típicoda vinculação entre o solo e água: o uso do solo pode aumentar a demandapor água e, em paralelo, diminuir sua disponibilidade e vice-versa. Destanecessidade surge o Gerenciamento (Global) da Oferta do Ambiente,

Figura 1 - Matriz do Gerenciamento Ambiental

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envolvendo usos e proteção, que integra todas as linhas da matriz. No cruza-mento de cada linha e coluna localiza-se o gerenciamento de um elementoambiental para uso em dado setor.

Para promover a compatibilização entre as diversas demandas e ofertas deelementos ambientais, a sociedade deve tomar decisões políticas e estabelecersistemas jurídico-administrativos adequados, o que leva a uma terceira dimensão,de caráter institucional, do Gerenciamento Ambiental: o GerenciamentoInterinstitucional.

A complexidade de considerar em um espaço geográfico demasiada-menteamplo estas três dimensões gerenciais determina a busca de uma delimi-taçãogeográfica mais restrita, que contenha a maioria das relações causa-efeito, semse tornar de complexa operacionalidade. Existe a tendência de adotar a baciahidrográfica como a unidade ideal de planejamento e intervenção, devido aopapel integrador das águas, nos aspectos físico, bioquímico e sócio-econômico.Nem sempre, porém, esta será a unidade ideal de planejamento. Da projeção dastrês dimensões anteriores do Gerenciamento Ambiental sobre a unidade geográficade uma bacia hidrográfica (ou qualquer outro espaço) surge o Gerenciamentodas Intervenções na Bacia Hidrográfica (ou no espaço delimitado) ou, como éusualmente denominado, o Gerenciamento de Bacia Hidrográfica. Uma definiçãopara este instrumento é apresentada abaixo:

Gerenciamento de Bacia Hidrográfica é o instrumento orientador das açõesdo poder público e da sociedade, no longo prazo, no controle do uso dos recursosambientais - naturais, econômicos e socioculturais - pelo homem, na área deabrangência de uma bacia hidrográfica, com vistas ao desenvolvimento sustentável.

Uma das variantes do Gerenciamento de Bacia Hidrográfica pode serencontrada nos Programas de Manejo de Microbacia Hidrográfica, cuja origeme prática são apresentados na Caixa 1.

Caixa 1 - Manejo de Microbacia Hidrográfica

Esta prática gerencial na unidade de pequenas bacias hidrográficas teve sua origemem duas iniciativas paralelas e independentes (EDITORIAL. 1991): a reabilitação dos Alpes,a partir do último quarto do século XIX, e o movimento conservacionista dos EEUU, iniciadoem 1930. Na primeira iniciativa o foco se dirigiu ao desenvolvimento e aplicação de técnicasde recuperação de solos e correção de cursos de água torrenciais. Na segunda, a atenção foiorientada para o manejo da vegetação, conservação do solo e das águas. A característicacomum de ambas iniciativas é que elas foram concebidas para bacias com pouca ou nenhumaatividade antrópica. A finalidade era, portanto, alterar os fenômenos físicos e naturais.

Após a Segunda Grande Guerra, países periféricos buscaram os ensinamentosproduzidos por estas duas vertentes para atender as suas necessidades de proteção de grandes

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estruturas hidráulicas e de projetos agrícolas ou de assentamentos humanos. Os resultadosobtidos não foram os esperados devido a não ser levado em consideração as diferençasentre as situações originais, onde foram produzidos os conhecimentos, e as situações nasquais eram aplicados: a degradação nesses casos tinha a origem antrópica. As técnicas demanejo de bacias hidrográficas geradas na Europa e nos EEUU constituíam-se um patrimônioconsiderável, mas deveriam ser adaptadas a situações em que o objetivo era alterar fenômenosfísicos e naturais tanto quanto sociais. A solução buscada era permitir o uso da terra pelapopulação, até porque o modelo economicamente excludente não apresentava outras alterna-tivas, mas aumentando a sua produtividade ao mesmo tempo em que seriam minimizadosos impactos ambientais. Daí surgiu a necessidade de ampla participação comunitária.

O Manejo de Bacia Hidrográfica é geralmente vinculado a bacias rurais. Por exemplo,HERNADEZ-BECERRA (1991) assim o define: "é a forma lógica de harmonizar aconservação e produção agrícola, pecuária e florestal de bacias com o manejo de recursoshídricos, sobretudo quando estes têm elevada transcendência sócio-econômica para osusuários localizados a jusante".

Três fontes de financiamento foram identificadas para amparo dos programas demanejo de microbacias: recursos de organizações e bancos internacionais, recursos públicosnacionais e recursos do setor privado nacional diretamente beneficiado. Os recursosinternacionais têm sido usados no Brasil para financiamento do programa de microbacia dealguns estados. Algumas alternativas são as agências de cooperação de países desenvolvidos,a FAO, a OEA, a Comunidade Econômica Européia, o BID e o BIRD. No entanto, sãoreconhecidamente soluções interinas, já que não têm sido utilizadas de forma permanente.

No caso de recursos públicos nacionais, duas formas têm sido encontradas: atravésdo orçamento do governo (nacional, estadual ou municipal), votado anualmente e, de formapermanente, na forma de imposto especificamente criado ou percentual de impostosexistentes. Por exemplo, na Colômbia, uma lei de 1981 dispôs que 2 por cento do produtoda venda de energia procedente de usinas com capacidade superior a 10 kW e parte doimposto sobre propriedade seriam dedicados a esse tipo de financiamento. A Venezuela,em uma lei de bosques e águas, estabeleceu que, anualmente, as companhias hidroelétricas,consultado o Ministério do Meio Ambiente, devem especificar um montante para esse fim.A Guatemala e a Costa Rica, em 1991, discutiam a aprovação de leis que exigiam que 1 porcento do produto da venda de serviços que tivessem origem na água fosse investido naconservação das bacias que a originava.

A participação privada tem sido também buscada. Na Colômbia, a CorporaciónAutónoma del Valle del Cauca elaborou planos de conservação de bacia que mostraram osbenefícios devido a melhorias na produção agrícola que seriam geradas a jusante, graças àdiminuição de prejuízos de inundações e, nos dois âmbitos, devido a melhorias na qualidadede água. Esses planos foram submetidos a comitês cafeeiros, a centrais açucareiras, aautoridades locais, a indústrias e à comunidade em geral, que abriram, em certas bacias, umfundo de investimentos para consecução dos planos.

No Brasil, os programas estaduais de microbacia, realizados em alguns Estados,dispõem de linhas de crédito para que os agricultores possam realizar os investimentosprevistos em suas propriedades com auxílio das prefeituras municipais.

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Podem ser, portanto, identificadas três dimensões no GerenciamentoAmbiental: a primeira é relacionada ao contexto de consumo de fatores ou aocapital tecnológico e humano e diz respeito ao Gerenciamento do Uso dosRecursos Ambientais. A segunda, relacionada ao contexto do estoque dosfatores ou do capital natural, diz respeito ao Gerenciamento da Oferta doAmbiente. A terceira diz respeito à compatibilização das duas gestõesanteriores e ocorre no contexto político, legal e administrativo, sendo aquireferida como Gerenciamento Interinstitucional, fortemente influenciado pelocapital moral e cultural. A projeção das dimensões anteriores sobre umaunidade adequada de planejamento e de intervenção, geralmente a baciahidrográfica, estabelece o Gerenciamento de Bacia Hidrográfica.

4. O Gerenciamento das Águas

A adaptação da concepção apresentada para o GerenciamentoAmbiental e para o Gerenciamento das Águas é encontrada na Figura 2. Paramelhor se entender a concepção de um sistema gerencial desta natureza érecomendá-vel dissecar as funções que deve cumprir (LANNA, CÁNEPA,GRASSI E DOBROVOSLKI, 1990).

Figura 1 - Matriz do Gerenciamento Ambiental

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4.1 Gerenciamento do Uso Setorial das Águas

Trata das medidas que visam ao atendimento das demandas setoriaisde uso da água. Este gerenciamento é levado a efeito através de planos setoriaise ações de instituições públicas e privadas ligadas a cada uso específico daságuas: abastecimento público e industrial, irrigação, navegação, geração deenergia, recreação, etc. Todos os setores têm em comum o uso do ambiente,especialmente o hídrico, como fossa de despejos, constituindo-se aí um uso:o da capacidade de assimilação do ambiente ou da água. Idealmente, os PlanosSetoriais deveriam ser compatibilizados entre si no âmbito de cada baciahidrográfica e com o planejamento global do uso do ambiente, no âmbitoregional ou nacional. Estas funções de compatibilização, entretanto, são objetode gerenciamentos outros que serão apresentados a seguir. As entidades quecumprem esta função gerencial devem ter natureza executiva e são encontradasnas colunas da matriz institucional de gerenciamento.

4.2 Gerenciamento da Oferta das Águas

O Gerenciamento da Oferta das Águas acha-se dividido, por questõesde apresentação, em duas classes - quantidade e da qualidade. Isto não significaque estes gerenciamentos devem ser separados. Ao contrário, é necessárioenfatizar-se a necessidade de que eles sejam realizados de forma articulada,pois um afeta necessariamente o outro. A derivação de água reduz o seu volumee a capacidade de diluição dos despejos, comprometendo a qualidade. Odespejo de resíduos e a conseqüente degradação da qualidade da água poderãotorná-la inadequada para os usos que nela são supridos. Ambas as situaçõespoderão comprometer o atendimento das demandas hídricas, sob ambos osaspectos: quantitativo e qualitativo.

O Gerenciamento da Oferta das Águas é a função deliberativa eexecutiva de compatibilização das demandas de água, proposta pelas entidadesque executam o Gerenciamento das Intervenções na Bacia Hidrográfica,adiante definidas, aos planos e diretrizes globais de planejamento estabelecidospelo Poder Público. No exercício desta função gerencial é realizado o planejamento,monitoramento, outorga (incluindo licenciamento e fiscalização) e ad-ministraçãodas medidas indutoras do cumprimento das diretrizes estabelecidas pelanegociação social efetivada neste modelo. Os instrumentos para atingi-losseriam baseados em um amplo leque de normas administrativas e legais:estabelecimento de programas e projetos, enquadramento das águas em classesde usos preponderantes, de padrões de emissão, outorga e cobrança pelo uso epoluição das águas, multas por infrações, promoção de ações legais, etc.

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Nas Políticas Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos diversas entidadestêm assumido esta função, caracterizadas como os órgãos estatais que detêm asatribuições de outorga de uso de água e de licenciamento ambiental.

4.3 Gerenciamento das Intervenções na Bacia Hidrográfica

Trata da projeção espacial das duas funções anteriores no âmbito especí-fico de cada bacia hidrográfica, visando a:

• compatibilização dos Planos Setoriais elaborados pelas entidades queexecutam o Gerenciamento dos Usos Setoriais das Águas na bacia àsdiretrizes do Gerenciamento da Outorga das Águas;

• integração das instituições, agentes e representantes da comunidadeintervenientes na bacia ao planejamento das águas e dos demaiselementos ambientais.

Esta função deve ser, portanto, exercida por entidade única para cadabacia hidrográfica, que se responsabilizará pela descentralização dogerenciamento neste âmbito. Alguns tipos de descentralização por sub-baciapoderão ser também preconizados, particularmente naquelas demasiadamentegrandes. Nesses casos seriam criadas entidades de sub-bacia, que sejamvinculadas às anteriores. Nas Políticas Nacional e Estaduais de Recursos Hídri-cos têm sido propostos Comitês de Bacia Hidrográfica para exercer esta função.

O exercício da função gerencial de oferta das águas estabelece umlimite à autonomia das entidades de bacia, levando em consideração queexistem impactos econômicos, ambientais e sociais de intervenções queextrapolam seus limites e, por isso, devem ser objeto de uma coordenaçãocentralizada. Além disto, a função de descentralização assumida pelasentidades de Gerenciamento das Intervenções na Bacia Hidrográfica não deveser confundi-da ou utilizada como uma tentativa de diluição do poder doEstado, mas exatamente o oposto: deve ser adotada como mais um instrumentopara seu exercício de forma legítima, coerente e eficiente.

O gerenciamento da oferta poderá também compatibilizar asdemandas de uso das águas entre si, quando ela não puder ser realizada pelaentidade responsável pelo Gerenciamento das Intervenções na Bacia Hidrográfica,seja por problemas operacionais, seja por sua inexistência. Portanto, a necessidadedo seu exercício resulta do entendimento de que o uso global das águas, hoje emdia, não pode resultar de mera agregação das pretensões, demandas e planos deusuários setoriais. Cabe ao Poder Público zelar pela sua compatibilização deforma que seu uso implique o máximo de benefícios para a sociedade.

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4.4 Gerenciamento Interinstitucional

Tendo como palavra-chave o termo "articulação", é a função que visa a:

• integração das demais funções gerenciais entre si;

• integração dos diversos órgãos e instituições ligados à água, comespecial ênfase à questão desenvolvimento (crescimento econômico,eqüidade social e proteção ambiental);

• integração do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos aoSistema Global de Coordenação e Planejamento do Estado.

A execução desta função gerencial é estabelecida pela legislação quecria e distribui atribuições às entidades que participam do sistema, devendocontudo haver uma entidade que promova, oriente e estimule tais integraçõesinterinstitucionais, servindo de instância superior, à qual são dirigidos osrecursos originados em dúvidas de interpretação. Ela deverá ser tambémresponsável pela discussão, preparo e implementação da Política (nacional,regional ou estadual) dos Recursos Hídricos. Tal entidade, portanto, deveráser o órgão superior do sistema mencionado, como, por exemplo, um Conselhode Recursos Hídricos que, de acordo com as Políticas Nacional e Estaduaisde Recursos Hídricos, têm natureza consultiva, normativa e deliberativa.

5. Diferenças e similaridades no gerenciamento de três elementosambientais: água, solo e ar

Os três elementos mencionados suportam a grande maioria dos processosnaturais e antrópicos. Eles serão considerados nesta análise para fins decomparação do que se faz ou é previsto que seja realizado no Gerenciamento dasÁguas. Faz parte das preocupações atuais a implantação de Sistemas deGerenciamento das Águas ou dos Recursos Hídricos, como é mais comumentereferido. No entanto, não se fala em Gerenciamento do Ar. O Gerenciamento doSolo ocorre de forma nitidamente diferente do da água. Existe um ProgramaNacional de Conservação do Solo, mas não conselhos ou comitês de gerenciamento,na forma com que são previstos no caso da água. Quais as razões para isto?

Algumas diferenças básicas podem ser consideradas entre estes recursos,permitindo o entendimento das diferenças comentadas. Elas se relacionam a doisaspectos principais: à escassez e à fluidez ou mobilidade.

O ar é um elemento abundante em quantidade, a não ser nas altitudesmaiores, onde não existem atividades humanas que justifiquem preocupações

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neste sentido. Como o atributo de escassez é conseqüência da demanda superar adisponibilidade, ela não ocorre nos aspectos quantitativos. Já no aspectoqualitativo, o ar pode ser escasso em regiões onde existem lançamentos excessivosde poluentes atmosféricos, associados a dificuldades de dispersão atmosférica,como nas cidades de São Paulo, México ou Paris. Nesta situação, embora nãoexista propriamente a iniciativa de se implantar um "Sistema de Gerenciamentodo Ar", os órgãos ambientais são compelidos a adotar uma série de medidas decontrole, devido ao problema de escassez qualitativa.

O solo, diferente do ar e com maior similaridade com a água, é umrecurso escasso, nos aspectos quantitativo e qualitativo. Sob o ponto de vistaqualitativo, pois nem todo solo disponível é adequado para qualquer atividade.Por exemplo, a agricultura exige solos férteis. O uso urbano exige declividadesapropriadas, o que pode, com algum esforço, ser entendido como um atributoqualitativo. Sob o ponto de vista quantitativo, a escassez de solos, pelo menosem qualidade adequada, é bastante óbvia.

Quanto à mobilidade, o ar e a água são mais similares entre si doque com o solo. Os primeiros são fluidos. Isto estabelece grande mobi-lidade, que é substancialmente maior no caso do ar, que ao sabor dascorrentes atmosféricas pode se movimentar com grande liberdade. Já amobilidade natural da água pode ser restrita pela rede de drenagem oupelos solos impermeáveis e segue o gradiente mais íngreme. O solo é umrecurso fixo ou imóvel, a não ser quando submetido a processo de erosãoou a cataclismas do tipo enchentes, terremotos, etc.

Estas características de escassez e mobilidade ajudarão a entenderalguns aspectos do Gerenciamento das Águas quando confrontados ao controledo uso do ar e do solo.

5.1 A gestão da escassez através do atributo da propriedade

Os problemas de escassez são sempre geridos através daatribuição de direitos de propriedade. O usuário de um recurso, na medida emque ele se torne escasso, procurará geri-lo para seu próprio proveito. Casoseja possível a negociação entre quem tem o recurso e quem não o tem, masdemanda o seu uso, este último buscará adquiri-lo daquele. O detentor dapropriedade, mesmo não tendo necessidade de usar o recurso, deverá geri-lode forma a obter a maior renda com sua venda ou aluguel. Isto ocorre com osolo, urbano ou rural, um carro, ou um animal com utilidade para o homem,entre inúmeros outros exemplos. E, para que isto ocorra, o atributo de

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propriedade privada deve ser aceitável pelas instituições e fisicamente viávelde ser implementado.

A aceitação institucional é uma questão de sistema político e econômico.Nos regimes comunistas não é aceitável a propriedade privada dos fatores deprodução. Nos regimes capitalistas não apenas isto é possível, mas se constituiem uma de suas bases.

A viabilidade física do atributo de propriedade já é uma questão maiscomplexa, sendo estabelecida pela possibilidade de exclusão, ou seja, dapossibilidade de uma parte poder excluir a outra do uso do recurso de suapropriedade. O dono de uma terreno pode realizar isto, caso esteja vigilante esob o amparo da polícia. Alguém que queira usar seu terreno deverá pagar, oupelo aluguel ou pelo título de posse. Se o proprietário optar por usar o terrenoele pode excluir outros de fazê-lo.

O ar, devido à sua característica fluida e de mobilidade, torna quaseque inócua qualquer tentativa de apropriação. Um cidadão que more em umaregião com grande poluição atmosférica não tem como impedir que um vol-ume de ar, hipoteticamente de sua propriedade, seja contaminado. Por isto eletambém não poderá vender o ar, pois ninguém iria se interessar em compraralgo que possa ser usado sem pagamento ou que não possa ser comercializadoposteriormente.

No caso da água, em certas circunstâncias é possível aplicar-se aexclusão. Por exemplo, alguém que construa em suas terras um reservatórioque armazene água e, portanto, comprometa sua mobilidade, poderá venderesta água ou usá-la em seu próprio proveito, caso isto seja institucionalmentepossível. Isto ocorre em alguns estados brasileiros, como no Rio Grande doSul, onde proprietários de reservatórios vendem água para irrigantes3. Já nasituação em que a água esteja escoando em um curso, existe alguma dificuldadeem se garantir o direito de propriedade. Algum usuário que se estabeleça amontante poderá consumir a água que seria teoricamente de propriedade dousuário de jusante, a não ser que uma fiscalização atenta o impeça. Asdificuldades de identificação do poluidor, e portanto em penalizá-lo no sentidode compensar o eventual proprietário da água, possibilitará a poluição docurso de água.

Se não houver possibilidade de exclusão, todos poderão usufruir dorecurso escasso, que por isto terá acelerada a sua tendência de escasseamento4.

3 Como no Brasil a água é constitucionalmente bem do Estado (União ou Unidades Federativas), estavenda ou é ilegal ou deverá ser considerada a venda do serviço de regularização da disponibilidadenatural da água e de distribuição ao usuário.4 Na economia ambiental estes são chamados bens de acesso livre.

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Duas alternativas existirão para impedir isto. Ou os usuários agem de formasolidária e façam a gestão comunitária do uso do recurso ou o Estado assumeo seu controle e faz o mesmo. Em ambos os casos, de fato ou de direito, orecurso passa a ser propriedade, comunitária ou estatal.

A gestão comunitária apresenta dificuldades de ser estabelecida, poissubentende um acordo entre os usuários potenciais, o que pode ser frágil.Condições para que uma gestão comunitária seja eficiente para o usosustentável de um recurso ambiental foram estudadas por vários autores. Viade regra, elas exigem que ocorra certa visibilidade social que faculte oconstrangimento daqueles que infrinjam as regras comunitárias, mais factívelem pequenas comunidades isoladas. A propriedade estatal é mais efetivamenteimplementada em sociedades mais complexas, através do sistema legal. Porexemplo, no Brasil a água é constitucionalmente bem da União ou dasUnidades Federativas, dependendo da sua situação. Este mecanismo servetambém para resolver os problemas de gestão de um recurso escasso quandoo atributo de propriedade privada não pode ser exercido, por questõesinstitucionais, situação dos regimes comunistas.

No caso do ar, a estatização tem ocorrido, para efeitos práticos, quandoele se torna escasso. A legislação ambiental estabelece uma série de condiçõespara emissões de poluentes atmosféricos. As cidades de São Paulo e Méxicoestabeleceram o rodízio de carros para controlar a qualidade do ar. Isto podeser interpretado como o Poder Público assumindo a propriedade do ar aodeterminar quem pode usá-lo, quanto, quando e de que forma.

O solo já apresenta outra situação. O regime de propriedade privadatem contribuído para sua conservação. A razão é que as conseqüências demau uso do solo afetam primordialmente a seu proprietário. A erosão, comoresultado de um manejo agrícola impróprio, por exemplo, compromete a suacapacidade de suporte à agricultura, resultando em prejuízos ao proprietário.Mesmo considerando que os efeitos da erosão possam atingir propriedadesvizinhas e poluir os cursos de água com sedimentos que impedirão a sobrevidade várias espécies de peixe e a navegação, entre outros danos, o seu proprietárioestará interessado em evitar a degradação, pois ele, e especialmente ele, serátambém por ela vitimado. Diante disto, os programas de conservação do solobuscam, através do aconselhamento e da demonstração, atingir o usosustentável deste recurso. A ação do Estado é indutora, de convencimento ouconscientização, eximindo-se de assumir a propriedade como no caso da águae, em certas situações, do ar.

Situação diferente ocorre quando o uso do solo, para ser efetivo, não secoaduna com a propriedade privada. Este é o caso do uso das vias públicas. É

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função do Poder Público mantê-las para deslocamento da população, e istoocorre desde a época da Roma Antiga, que se notabilizou pela construção deestradas, muitas das quais ainda são usadas hoje.

Uma vez assumida a propriedade de um recurso, de fato como no casodas águas ou de alguns tipos de solo, ou para efeitos práticos, como no casodo ar, o Poder Público tem à sua disposição uma série de instrumentos paragerenciá-los. Dois instrumentos fundamentais são a outorga e a cobrança pelouso. A rigor, eles não têm grandes diferenças, na forma e nos resultados, dosinstrumentos que são acionados por um proprietário privado de um recurso,como será visto adiante.

A outorga é um instrumento discricionário que permite ao proprietáriodo recurso estabelecer quem pode usá-lo, como, quando e de que forma.Quando a propriedade é privada, a outorga é equivalente à aquiescência, porparte do proprietário, de que outros usem seu recurso. Para isto, a outra partedeverá se sujeitar ao que for exigido pelo primeiro. Por exemplo, parentesco,cessão de parte do que for produzido ou simples pagamento pecuniário.

Quando a propriedade é pública, a outorga é um instrumento de gestãoque atua através da atribuição de cotas entre os usuários: como o recurso éescasso, sua distribuição é realizada de forma a evitar desperdícios e a atenderdemandas mais prioritárias sob o ponto de vista da sociedade. Caso o recursoescasso seja também exaurível (ao contrário de renovável), as cotas deverãoser distribuídas de forma que o inevitável esgotamento se faça com maioresbenefícios para a sociedade.

A cobrança atua economicamente, através do preço. Quando apropriedade é privada, este preço poderá ser a condição para que terceirosusem ou recebam a transferência de propriedade do recurso. É interessantenotar que a famosa lei da oferta e da procura determinará que o preço dorecurso aumentará quanto mais próximo do esgotamento ele estiver, pois aoferta estará diminuindo gradualmente. Com isto, os usuários serão compelidosa usar com maior racionalidade este recurso, evitando desperdícios e retardandoo seu esgotamento. É desta forma que o sistema de preços contribui para asustentabilidade do uso. Quando o recurso é público e inalienável, como é ocaso da água no Brasil e das vias públicas em toda a parte, a cobrança podeter tanto o objetivo prévio de racionalização econômica, quanto o deviabilização financeira. Este último é atingido pela arrecadação que o PoderPúblico obtém pela cobrança. O montante arrecadado poderá ser utilizadopara financiar o monitoramento do uso e o investimento em obras de controlee proteção do recurso, por exemplo.

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O uso relativamente recente destes instrumentos no Gerenciamentodas Águas tem trazido algumas dúvidas e mal-entendidos sobre suas naturezas.Alega-se, por exemplo, que a água é ofertada pela natureza ou por Deus, eque não faz sentido o Estado impedir o seu uso por parte de quem a recebe emseu terreno, por exemplo. A cobrança é freqüentemente associada a um outrotributo, entre os tantos existentes, promovendo ásperas reações dos potenciaispagantes. No entanto, o uso da outorga e da cobrança na gestão de recursosescassos, como solo, vias públicas e até o ar, é bem antiga e apresentacotidianamente resultados análogos ao pretendido no caso da água. A análisedestas experiências será realizada como forma de lançar luzes sobre estesinstrumentos.

5.2 Outorga do uso

A outorga do uso da água será o primeiro instrumento a ser aplicado aolongo da implantação de sistemas de gerenciamento de recursos escassos. Apenasos usuários que já contam com outorga deverão ser objeto de cobrança que,portanto, virá posteriormente. A função da outorga será ratear a água disponívelentre as demandas existentes ou potenciais de forma a que os melhores resultadossejam gerados para a sociedade. Estes resultados poderão estar atrelados acontribuições ao crescimento econômico (abastecimento de uma fábrica), à eqüidadesocial (abastecimento público) e à sustentabilidade ambiental (manutenção de umavazão mínima em um curso de água, ou seja, de uma "vazão ecológica").

A outorga de um recurso cuja disponibilidade é aleatória, como a água,tem o fato complicador de não se saber quanto estará disponível em determinadoperíodo e em dado local. Isto determina o estabelecimento da gestão conjunta dadisponibilidade e das demandas hídricas. Na gestão da disponibilidade busca-seavaliar as quantidades que serão disponíveis com dadas probabilidades e,eventualmente, aumentá-las através de obras de regularização em reservatóriosou de transposições de vazões entre corpos de água. Modelos de previsão devazões poderão ser usados para antecipar as situações críticas de suprimento.Dependendo da situação hidrológica que é prevista para determinado período,algumas outorgas poderão ser canceladas, no todo ou em parte, para que asdemandas mais prioritárias possam ser atendidas. As águas subterrâneas têmdisponibilidade menos incerta por estarem acumuladas em reservatóriossubterrâneos, embora a quantificação de sua disponibilidade seja por isto mesmomais difícil.

Na gestão da demanda, além das limitações de suprimento comentadas,haverá também a necessidade de estudos para verificar até que limite as

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outorgas poderão ser concedidas. Isto será função da importância das demandase da vulnerabilidade com que os usuários respondem a racionamentos desuprimento. Uma outorga, via de regra, deverá ser concedida estabelecendo-se os montantes que poderão ser utilizados em determinado período e condiçõesgerais de racionamento a que o usuário deverá se submeter na eventualidadede ocorrência de situações de estiagem. Também costuma-se estabelecer aobrigatoriedade de uso da água que é outorgada dentro de determinado prazo,para evitar que sejam solicitados volumes além das reais intenções oucapacidade de uso, meramente para garantir usos futuros ou impedir aconcorrência.

Este instrumento é também utilizado pelo Poder Público na gestão devias públicas. Na medida em que estas se tornam saturadas poderão surgirrestrições de uso, como ao estacionamento. A Estrada do Mar, no litoralgaúcho, restringe durante o verão a passagem de caminhões. No caso doestacionamento em vias públicas existe maior variabilidade de alternativaspara as outorgas empregadas. Pode haver uma restrição de tempo, mediante aqual qualquer um pode estacionar no local desde que não ultrapasse dadoperíodo. Em Porto Alegre é permitido o estacionamento em frente às farmáciaspor quinze minutos, mesmo em ruas onde estacionar é proibido. Outra restriçãoé do tipo de usuário. Em certos prédios públicos os estacionamentos sãoreservados às autoridades ou aos funcionários que ali trabalham ou que alidespacham. Note-se que neste caso realiza-se a gestão da demanda porestacionamento, que é aleatória, já que a disponibilidade é conhecida e fixa.Apesar de fixa ela pode ser aumentada pelo investimento no alargamento dasvias públicas e pela construção de edifícios-garagem, por exemplo. Uma outraalternativa de gestão da demanda é oferecer transporte público de qualidadepara substituir a necessidade do cidadão se deslocar com seu carro ao centrocongestionado.

No caso de escassez do ar, um tipo de outorga de uso tem sidoestabelecido em cidades cujas condições atmosféricas ficam qualitativamentecomprometidas durante determinadas estações. Na cidade de São Paulofoi estabelecido um sistema de rodízio durante o inverno pelo qual, acada dia útil, determinados carros identificados pelos algarismos finaisde suas placas não podem circular. Quando as condições de qualidade dear são críticas, pode-se impedir que mais carros tenham acesso ao centro.Outra alternativa de gestão da demanda é determinar o uso de catalizadoresnos veículos automotores que são uma das principais causas da poluiçãoatmosférica.

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Em qualquer situação são estabelecidos limites ao uso individual derecursos escassos visando ao bem coletivo. Existe também a contribuição aobem-estar individual com o rateio do uso do recurso, evitando prejuízos pelonão atendimento de expectativas de uso. Estes prejuízos tanto ocorrem com ousuário de água que não a recebe devido a um uso excessivo, quanto com omotorista que não consegue estacionamento no centro da cidade. Ambossofrem prejuízos ao se prepararem para exercer um uso que não é viabilizadopor escassez de disponibilidade: água ou vaga de estacionamento. Portanto, aação discriminatória do Poder Público limita as demandas individuais embenefício de seus próprios agentes.

Limitações podem ocorrer inclusive para o uso do solo por seuproprietário. Por exemplo, o proprietário de um espaço urbano não pode usaro solo para criar porcos. Isto é determinado pelos regulamentos municipaispara evitar problemas de mau-cheiro, proliferação de moscas e de doenças.Neste caso, embora a propriedade não seja pública, existe uma limitação aodireito de uso da propriedade privada, estabelecida para benefício dacoletividade.

5.3 Cobrança pelo uso

As Políticas Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos no Brasil têmenfatizado as contribuições da cobrança para a racionalização econômica e aviabilização financeira de investimentos. O objetivo financeiro seráaparentemente aquele que orientará a quantificação dos valores a seremcobrados. Eles serão determinados em função dos planos de bacia hidrográficae dos investimentos neles previstos. Serão uma espécie de rateio de custoentre os usuários de água e dos beneficiários das melhorias a serem geradasna bacia pelas intervenções.

O efeito de racionalização econômica sempre estará presente, já que acobrança, especialmente quando seus valores são suficientemente indutores,determina uma reação dos usuários no sentido de economizar o recurso. Aocontrário dos tributos, a cobrança está sendo estabelecida para se assemelharmais a uma taxa condominial. A Política Nacional de Recursos Hídricosdetermina que ela será estabelecida por bacia, através da deliberação deComitês de Gerenciamento especialmente formados com a participação deusuários de água, entidades públicas, privadas e organizações da sociedade.O fundo formado pela cobrança deverá ser utilizado para financiarpreferentemente as intervenções na própria bacia onde foram originados. Seráadotado um processo descentralizado de planejamento, no qual os integrantes

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dos Comitês deliberam sobre quais as intervenções serão implementadas, tendopor base as suas necessidades e anseios e, também, as suas capacidades depagamento. Portanto, a melhor analogia que existe é a do condomínio de edifí-cio, onde os moradores decidem as obras necessárias e o rateio de seus custos.

Este instrumento tem acarretado alguma polêmica, embora seu uso nagestão de recursos escassos seja muito comum, afetando cotidianamentequalquer cidadão. No caso do uso do solo e, mais especificamente, das vagasde estacionamento nos centros das grandes cidades, é corriqueira a cobrança.Os valores cobrados podem ser fixos, como no caso das chamadas "áreasazuis", onde se deve colocar no pára-brisas do carro um cartão que dá direitoa uma ou duas horas de estacionamento, ou seja, à utilização do espaço. Nessecaso está se conjugando os dois instrumentos: outorga, com a limitaçãode tempo, e a cobrança. Essa, via de regra, devido aos baixos valores quesão praticados, serve apenas para pagar o serviço de monitoramento dosfiscais, tendo portanto um objetivo de viabilização financeira e não deracionalização econômica pelo uso da vaga. Seria, portanto, equivalenteà taxa que é cobrada pelos órgãos públicos de proteção ambiental para aemissão das licenças ambientais.

Em outros casos pode ocorrer uma cobrança progressiva em que cadahora adicional de permanência custa unitariamente mais caro. Esta prática éadotada no Terminal Menezes Cortes, no Centro da cidade do Rio de Janeiro.Diante disto, um usuário que necessite permanecer pouco tempo no Centroda cidade sempre encontrará vaga de estacionamento. Aquele que necessitarmais tempo de permanência deverá considerar o alto custo de estacionamento,que, em certos casos, será superior ao custo de deslocamento de táxi, fazendo-o optar por essa alternativa. Desta forma, racionaliza-se o uso de um recursoescasso induzindo aos grandes usuários, ou seja, aqueles que necessitam demuito tempo de permanência, a adotarem outras alternativas, e liberando asvagas para um maior número de usos com pouca intensidade, temporalmentefalando. Verifica-se que nos exemplos de cobrança progressiva existe umefeito de racionalização econômica que pode ser primordial para adeterminação dos valores a serem cobrados.

Outro tipo de cobrança comum é o pedágio em rodovias, sendo muitosimilar ao tipo de cobrança que está sendo previsto pelo uso da água, poistambém tem um caráter de viabilização financeira. O valor pago no pedágio éestabelecido em função das necessidades de manutenção da rodovia. Quandoé baixo não chega a determinar uma restrição ao uso da rodovia. Em algunspaíses, como na França ou Itália, o custo do pedágio é da ordem de grandezadas despesas com o combustível do veículo. Isto poderá determinar um

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comportamento do usuário no sentido de preferir estradas marginais, cujouso não é cobrado, liberando a rodovia para aqueles que realmente necessitamdela, por questões de tempo.

Alguns estacionamentos, públicos ou privados, adotam uma políticade cobrar mais nos horários ou dias de maior demanda, estimulando os usuáriosa buscarem aqueles horários mais vazios. Esta alternativa poderia ser adotadana cobrança de pedágio, nos períodos diários ou semanais, onde a demandafor maior. Por exemplo, a estrada que liga Porto Alegre a Osório e daí àspraias litorâneas do Rio Grande do Sul tem um tráfego intenso nas tardes enoites das sextas-feiras, no sentido para o litoral, e nas tardes e noites dedomingo, no sentido inverso, durante a temporada de veraneio. Umapossibilidade de se lidar com este problema, desafogando o tráfego nestesperíodo, seria a cobrança, nos horários de pico, de um alto valor de pedágio,que fosse suficientemente indutor, para que o usuário preferisse outros horários.Contra esta idéia poderia ser argumentado que apenas aqueles usuários com altarenda poderiam circular nesses horários, impedindo o "povão" de ir à praia aosfinais de semana. Isto mostra que nem sempre a racionalidade econômicaestabelece situações que possam ser socialmente eqüânimes.

A alternativa de valores diferenciados de cobrança é, de certa forma,adotada no sistema de cobrança pelo uso da água na França. Os montantes aserem cobrados anualmente são baseados no volume de utilização na estaçãode estiagem, tanto no que se refere à derivação de água, quanto no lançamentode despejos. Isto determina que usuários que possam restringir o uso de águanestes períodos críticos o façam, induzidos pelas economias que receberão.

É interessante comentar a cobrança por vagas de estacionamento emestabelecimentos privados. Com a crescente escassez de vagas nos centrosdas grandes cidades o valor econômico da vaga aumentou, como ensina amicroeconomia: aumento da procura determina aumento de preços. Isto levoualguns proprietários de terrenos centrais a usá-los como estacionamento,"alugando" o uso do solo. Existem também transações comerciais de vagas,em que uma parte a transfere a outra mediante um pagamento, criando ummercado de vagas de estacionamento. Isto também é adotado no caso da águaem algum locais como no Oeste dos Estados Unidos, no Chile e no México.Mas as vagas de estacionamento são fixas e conhecidas e podem serincrementadas em função das indicações do mercado. Um agente que resolvacomprar todas as vagas para monopolizar o mercado e aumentar o seu preçopoderá se deparar com a reação do mercado imobiliário, que ante o aumentodos preços resolva aumentar a oferta de vagas, pela modificação do uso dosolo. No caso da água, que é móvel, ocorre em quantidades aleatórias e tem

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maiores dificuldades de incremento, esta possibilidade de monopolização éreal, exigindo salvaguardas estabelecidas pelo Poder Público como, porexemplo, ser necessária uma autorização para realização da transação, comonos mercados de água do Oeste americano e no México. No Chile, onde nãoexistiu esta preocupação, ocorreu uma grande aquisição de direitos de uso emcertas bacias, por parte de empresas privadas de geração de energia elétrica, quenão os usam, dificultando o desenvolvimento de atividades usuárias de água.

O ar não tem sido objeto de cobrança. Comenta-se, porém, que nocentro excessivamente poluído de uma determinada cidade encontram-secabinas onde um cidadão pode entrar após pagar determinada quantia,recebendo ali alguns minutos de ar puro e com isto, mitigando os efeitosnefastos da poluição sob seu sistema respiratório. Nesta situação, o usuárioestaria pagando para consumir ar puro e o faria nas situações de alta poluiçãoatmosférica e, conseqüentemente, de escassez relativa desse recurso. Emboranão seja exatamente esta a situação, uma das justificativas para se cobrarmais pela gasolina do que pelo álcool anidro, ambos usados como combustível,poderia ser que o primeiro é mais poluente. Desta forma, se estaria cobrandopelo uso do ar de quem mais o polui: os proprietários de veículos a gasolina.

Na França a cobrança pelo lançamento de poluentes no meio hídrico éestabelecida por bacia, sendo considerados o tipo e o local de lançamento.Isto determina que locais excessivamente poluídos com determinado poluenteonerem relativamente mais aos usuários que o lançam.

Nos países industrializados existe uma política que tem sidogradualmente aplicada chamada de Reforma Tributária Verde ou daEcotributação. A idéia é deslocar os tributos das atividades produtivas, fazendocom que passem a onerar aquelas que promovam a degradação ambiental. Aidéia subjacente não é promover um aumento de arrecadação, mas estimulara produção e a criação de empregos, em conjunto com a proteção ambiental.Em alguns casos é estabelecido um remanejamento de impostos dentro domesmo setor. Por exemplo, seriam aplicados tributos relativamente maiores aindústrias que não atinjam determinado nível de controle de efluentes, sendoque os recursos arrecadados seriam destinados a atribuir prêmios pecuniáriosàquelas que os superem, ajudando-as a amortizar os investimentos de controleambiental e introduzindo um estímulo às práticas conservacionistas. Estapolítica segue a imagem do porrete e da cenoura, ao complementar os agravoscom estímulos a um comportamento ambientalmente adequado.

Isto poderia ser também adotado na cobrança pelo uso dos recursoshídricos, na forma de lançamentos de efluentes. Na situação não haveria ainterferência do Poder Público no financiamento de obras de controle da

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poluição. As partes privadas seriam estimuladas a realizar seus própriosinvestimentos de acordo com o controle que já alcançaram e dos valores quelhes seriam cobrados ou concedidos como prêmio.

5.4 Uso da outorga e da cobrança no Gerenciamento das Águas:aspectos de controle da poluição

Suponha que um órgão público, responsável pelo controle da poluiçãodas águas, tenha um objetivo de qualidade a ser atingido. Duas alternativaspoderão ser adotadas para implementá-lo. Na primeira, a autoridade licenciariaos despejos individuais, ou seja, estabeleceria seus níveis de abatimento epassaria a fiscalizar seu cumprimento. Esta é a alternativa chamada "mandato-e-controle" (command-and-control), com a adoção de instrumentosnormativos.

Na outra alternativa, o órgão público utilizaria um mecanismo de in-centivação econômica para a consecução do objetivo de abatimento ótimo -a aplicação do Princípio Poluidor-Pagador (PPP) através da cobrança peloslançamentos. O processo inicia quando os agentes poluidores, aproveitandoo livre acesso ao rio, lançam todo efluente sem tratamento, nada pagandopelo lançamento. Nesse momento, a sociedade, percebendo que o rio tornou-se "escasso" sob a ótica qualitativa e que, portanto, o livre acesso não é maisfuncional, modifica os direitos de propriedade (passagem dos direitos comunsà propriedade estatal) e delega a órgão público o direito de cobrar pelo uso dobem ambiental, cuja escassez é agora plenamente reconhecida. Com basenesta delegação, a autoridade ambiental impõe uma cobrança por unidade deefluente. Diante desta nova condição de contorno, os agentes poluidores têm,pelo menos, as seguintes alternativas de ação:

a) continuam vertendo todo o efluente no rio, mas agora pagando ovalor cobrado por unidade;

b) abatem toda a poluição gerada, tentando evitar a tarifa;

c) os agentes abatem a poluição enquanto for mais barato fazê-lo quepagar pelos lançamentos. Como os custos de tratamento sãocrescentes e o preço unitário cobrado pelos lançamentos é fixo,haverá um ponto ótimo em que parte da carga é abatida e parte élançada.

As conseqüências econômicas de cada decisão em termos de controleda poluição acham-se detalhadas em CÁNEPA, PEREIRA e LANNA (1999).É evidente que a alternativa c) é a mais racional para o conjunto dos agentes

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poluidores. Dependendo do valor a ser cobrado, o órgão público terá êxitoem induzir a modificação no comportamento dos agentes poluidores, atingindoseus objetivos de qualidade. Além disto, através da cobrança, poderá arrecadarrecursos para as despesas de monitoramento e para investir complementarmentena melhoria de qualidade das águas ou em outro tipo qualquer de intervenção.

Existe uma segunda abordagem para o PPP, muito apropriada para ocaso em que os fundos arrecadados pela cobrança retornam ao sistema para ofinanciamento das intervenções na própria bacia. Nesta seqüência - que pareceser o caso da gestão dos recursos hídricos no modelo francês de comitês eagências de bacia - tem-se o seguinte esquema:

a) parte-se de uma meta de qualidade de água a ser atingida emdeterminado corpo hídrico;

b) tendo essa meta como referência, o comitê de bacia ou outro qualquerórgão deliberativo que represente a sociedade, com base em estudostécnico-econômicos (que no caso francês são feitos pela respectivaAgência de Água), decide as metas de abatimento a serem cumpridase as intervenções a serem realizadas num horizonte de vários anos(5, 6 ou mesmo 7).

No plano que subsidiará as deliberações, evidentemente, haverá o co-tejo entre as tarifas necessárias para induzir determinados níveis de abati-mento com os recursos financeiros da comunidade, seu nível de desenvol-vimento e preocupação ambiental, sua correlação de forças políticas, etc.

Calculada a tarifa necessária e suficiente para atingir as metas de aba-timento acordadas, o total arrecadado dos agentes que pagam vai para umfundo destinado a financiar os investimentos daqueles que são induzidos aoabatimento5. Estes recursos são repassados sob várias modalidades, que vãodesde financiamentos a fundo perdido (subsídio) até empréstimos à taxa dejuros de mercado, tudo dependendo do que foi deliberado no órgão derepresentação da sociedade (Comitê de Bacia), a partir das alternativasapresentadas pelo órgão técnico (Agência de Água). É de se observar, tam-bém, que, no caso de haver empréstimos, o total arrecadado num determina-do ano não provém somente da tarifa sobre os pagadores desse ano, mastambém do retorno dos empréstimos (capital e juros) feitos nos anos anterio-res. Ainda assim, o total arrecadado num determinado ano pode não coincidircom o total dos investimentos relativos às intervenções induzidas naqueleano pelo nível da tarifa. Assim sendo, evidentemente, os agentes deverão 5 No sistema francês, aparentemente, os valores de cobrança não são suficientemente incitativos para queos agentes busquem alternativas para redução da poluição para, com isto, terem menores custos. Ocorrementretanto acordos políticos, negociados entre as partes, que determinam a implementação dos tratamentosdos efluentes, estimulada pela concessão de empréstimos subsidiados (BARRAQUÉ, 1999).

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complementar os recursos com captação própria. O importante a reter,entretanto, é que se a tarifa for adequadamente calculada, aqueles que deci-dem tratar seus efluentes, por ser mais barato do que pagar pelos lançamen-tos, serão induzidos também à busca desses recursos complementares.

Finalmente, cabe ao Estado, gestor das águas em nome da sociedade,monitorar as fontes poluidoras e os níveis de qualidade dos mananciais, tudono sentido de verificar se a aproximação aos objetivos de longo prazo estásendo efetivada, ano após ano, e se a sua velocidade é a adequada.

6. Os aspectos ambientais do Gerenciamento das Águas

As duas políticas nacionais que tratam especificamente do gerenciamentoambiental e do de recursos hídricos são a Política Nacional de Meio Ambiente(lei 6.938/81) e a Política Nacional de Recursos Hídricos (lei 9.433/97),respectivamente. A defasagem temporal entre suas instituições, que chega a16 anos, justifica as grandes diferenças conceituais que adotam.Gerencialmente, a primeira se caracteriza por uma abordagem mandato-e-controle, com uso de instrumentos normativos, enquanto a segunda elencainstrumentos econômicos de gerenciamento, como a cobrança pelo uso deágua. Devido às superposições existentes nas duas políticas é de se esperarque pelo menos alguma forma de articulação exista, quando não for possíveluma completa integração por questões organizacionais.

Para analisar estas necessidades de articulações e as dificuldadesapresentadas pelo quadro institucional brasileiro corrente, deverão seranalisados os três instrumentos gerenciais que destacam com maior ênfase asvinculações entre o Gerenciamento das Águas e o Gerenciamento Ambiental:

a) estabelecimento de metas de qualidade de água a serem atingidas emantidas nos corpos hídricos ou o chamado enquadramento de corposde água de acordo com os seus usos preponderantes;

b) estabelecimento de restrições de uso do ambiente visando à proteçãodas águas, incluindo a outorga de uso;

c) cobrança pelo uso da água.

6.1 Enquadramento de corpos de água

O enquadramento de corpos de água em classes de usos preponderantesdeve ser resultado de um processo de planejamento que estabeleça asprioridades de uso das águas. Estes usos demandarão qualidades mínimas

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para a água que usam e cabe ao enquadramento estabelecê-las. Em decorrênciado enquadramento deverão ser realizadas as outorgas de lançamentos deefluentes nos corpos de água e o licenciamento de atividades que possamalterar o regime qualitativo das águas. Serão igualmente indicadas as metasde despoluição, quando suas qualidades não atenderem às demandas dos usos.

No Brasil, a Resolução CONAMA 20/86 estabeleceu para o territóriobrasileiro nove classes de uso preponderante para as águas doces (salinidade< 0,05% com 5 classes: Especial, 1 a 4), salobras (salinidade entre 0,05 e 3%com 2 classes: 5 e 6) e salinas (salinidade > 3% também com 2 classes: 7 e 8). ATabela 1 identifica os usos preponderantes de cada classe, cujos limites ou condi-ções qualitativas acham-se detalhados na Resolução. Um extrato desses limitespara parâmetros que caracterizam poluição orgânica é apresentado na Tabela 2.

No artigo 16 informa-se que "não há impedimento no aproveitamentode águas de melhor qualidade em usos menos exigentes, desde que tais usosnão prejudiquem a qualidade estabelecida para essas água". Sendo assim,águas enquadradas na classe 1 poderão ser usadas para suprir demandas parairrigação de hortaliças e plantas frutíferas, uso que requer classe 2. No entanto,este uso não pode degradar as águas de forma a que não atendam aos padrõesda classe 1 em que foram enquadradas. Por isto, as águas enquadradas naclasse especial somente poderão ser utilizadas para qualquer finalidade,incluindo o abastecimento doméstico, seu uso preponderante, caso os efluentesgerados sejam lançados em outras águas, mesmo após tratamento, e nenhumimpacto determine a degradação do corpo hídrico.

O artigo 18 trata do lançamento de despejos. Eles são toleradosnas classes 1 a 8, desde que, além de atenderem aos limites de concentraçãodo lançamentos, estabelecidos adiante (art. 21), "não venham a fazer que oslimites estabelecidos para as respectivas classes sejam ultrapassados". Isto eliminaa possibilidade de lançamentos de despejos em águas na classe especial. Emartigo anterior são proibidos os lançamentos nos "mananciais sub-superficiais" (art. 17).

O processo de enquadramento é uma diretriz estratégica para oplanejamento, pois estabelece o nível de qualidade (ou classe) a ser alcançadoe mantido em um segmento de corpo de água ao longo do tempo. Em funçãodisto devem ser estabelecidos os limites de lançamento. Estes limites podemser absolutos, como no caso da classe especial (E), em que "não são toleradoslançamentos de águas residuárias, domésticas e industriais, lixo e outros resí-duos sólidos, substâncias potencialmente tóxicas, defensivos agrícolas, fertili-zantes químicos e outros poluentes, mesmo tratados" (art. 18). Nos outros casossão tolerados lançamentos desde que, além de atenderem uma série de restriçõesno que tange à qualidade do efluente (art. 21), "não venham a fazer com que oslimites estabelecidos para as respectivas classes sejam ultrapassados" (art. 19).

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Tabela 1 - Classes de uso prepoderante das águas territoriais brasileiras - Resolução CONAMA 20/86

Tabela 2 - Limites para alguns parâmetros, resolução CONAMA 20/86

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A sistemática preconizada é que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente- IBAMA, nos rios sob o domínio federal, ou o órgão estadual de meio ambiente,nos rios sob domínio estadual, enquadrem as águas, ouvidas entidades públicas eprivadas interessadas. Em função disto serão estabelecidos programas permanentesde acompanhamento de sua condição, bem como programas de controle dapoluição para que os cursos de água atinjam as classes respectivas.

Devido às conseqüências econômicas, sociais e ambientais doenquadramento, há necessidade de que ele seja resultado de um processo deplanejamento da bacia hidrográfica que compatibilize a oferta com asdemandas de água e dos demais elementos ambientais cujo uso afete aqualidade das águas, no que diz respeito à quantidade e qualidade. Os custose benefícios, definidos de forma ampla, ou seja, não unicamente sob o pontode vista econômico, devem ser estimados e comparados para justificar oenquadramento em uma ou outra classe. A compatibilidade de enquadramentode trechos sucessivos de um rio deve ser avaliada para evitar impossibilidadesfísicas ou tecnológicas, ou custos excessivos quando, por exemplo, o trechode montante for enquadrado em classe menos exigente que o de jusante.

Estas demandas não podem ser atendidas por processos de enquadramentoque estejam dissociados de um Plano de Bacia Hidrográfica, nos moldespreconizados pela Política Nacional de Recursos Hídricos. A própria sugestãoda Resolução 20/86 de serem ouvidas entidades públicas e privadas comosubsídio ao enquadramento oportuniza a participação de Comitês de Bacianesse processo.

Outra necessidade de aperfeiçoamento é estabelecida previamente àprática operacional do enquadramento: trata-se do aperfeiçoamento da própriaResolução 20/86. Esta norma foi preparada consultando as normas similaresde países que já as tinham aprovado, geralmente situados em climastemperados. Alguns equívocos têm sido notados, como, por exemplo, o excessode rigor no estabelecimento dos teores limites de fósforo total, em 0,025 mg/l nas classes 1 a 3. Conforme observou VON SPERLING (1996), este limiteé estabelecido para evitar a eutrofização das águas. O limite seria efetivamentenecessário em águas de climas temperados, enquanto tem sido observado queem climas tropicais podem ser admitidos limites menos restritivos.

Outra incongruência, notada por VON SPERLING (1998), existe emrelação à Portaria 36/90 do Ministério da Saúde, que estabeleceu os padrõesde potabilidade para a água. A Tabela 3 ilustra os limites de concentração dealguns parâmetros. Com a ressalva da cor, turbidez e das substâncias tenso-ativas, as demais estipulam padrões de concentração limite iguais ou superioresaos limites de concentração para águas na classe 2 da Resolução CONAMA

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20/86. Isto é, obviamente, um contra-senso, indicando ou exigênciasdemasiadamente severas para a classe 2 ou muito permissivas para os padrõesde potabilidade.

Os padrões de qualidade das águas a serem supridas a usuários dediferentes naturezas pode ser uma questão de saúde humana ou animal, deprodutividade agrícola, de equilíbrio ambiental, etc. A qualidade a ser exigidanos corpos de água que suprem essas demandas será, no máximo, aquelaexigida pelo uso. Quando houver tratamento da água bruta ela poderá terqualidade ainda inferior à demandada pelo uso, dependendo da eficiência dotratamento na remoção das substâncias nocivas. Portanto, os limites deconcentração a serem adotados em uma norma de enquadramento devem serestabelecidos por especialistas em saúde pública ou animal, fitologia, ecologia,em conjunto com especialistas em tratamento de águas e sempre reportando-se ao entorno, nos seus aspectos climáticos, fisiográficos e culturais.

6.2 Estabelecimento de restrições de uso do ambiente visando àproteção das águas, incluindo a outorga de uso

Sob esta classe ocorrem três instrumentos gerenciais: a criação de áreasde proteção, o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmentepoluidoras, que inclui o terceiro, a outorga de lançamento de efluentes noscorpos hídricos.

Tabela 3 - Padrões de potabilidade de água, Portaria 36/90 do Ministério da Saúde

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A criação de áreas de proteção pode se referir a mananciais, no caso daágua se destinar ao abastecimento, ou à proteção ambiental, quando a águadestina-se ao suporte de espécies de interesse ambiental. Como forma deestímulo e compensação a municípios que criem tais áreas de proteção, algunsestados têm aprovado leis sobre o que se denomina royalties ecológicos. Elassão fundamentadas no que dispõe o artigo 158 da Constituição Federal, quedetermina que 25% do produto do Imposto sobre Circulação de Mercadoriase Serviços (ICMS) de transporte interestadual e intermunicipal e decomunicação seja destinado aos municípios. Desses, 75%, no mínimo, deverãoser creditados na proporção do valor deste imposto arrecadado em seusterritórios. Os demais 25% poderão ser destinados de acordo com lei estadual.Isto levou alguns estados a legislar sobre a destinação de parte desta parcelaa municípios com mananciais de abastecimento e unidades de conservaçãoambiental. Trata-se, portanto, de situação em que demandas de qualidade deágua podem afetar o ordenamento do uso do solo, atribuição municipal, comos seus conseqüentes impactos ambientais (positivos), cuja regulação é daatribuição concorrente dos âmbitos federal, estadual e municipal, conforme aCarta Magna.

O licenciamento apresenta uma versão menos restritiva do dispositivoprévio através da busca de um compromisso entre as atividades econômicas eas demandas de proteção ambiental. Ao contrário de haver pura e simplesmenteum impedimento de uso, são adotadas restrições parciais. Existe, neste caso,a regulação de atividades que causem impactos no ambiente, devido a efeitosdiretos e conhecidos, ou riscos diversos causados por eventos aleatórios ousimples desconhecimento da dinâmica ambiental.

Este instrumento de gestão é regulado pela Resolução 237/97 do Con-selho Nacional de Meio Ambiente. Os tipos de licença ambiental são apre-sentados na Tabela 4. Essas visam a evitar que empreendimentos incompatí-veis com as exigências ambientais sejam implantados. Por isto, deve-se agirdesde a fase de planejamento, para que possa haver uma triagem de empreen-dimento compatíveis e incompatíveis com o meio. Na fase de instalação, osempreendimentos que se mostraram aptos são avaliados de forma a que sejampropostas alternativas tecnológicas e locacionais para suas implantações emedidas mitigadoras de impactos ambientais. Na fase de operação deve serverificado se as propostas foram implementadas e são avaliados os sistemasde monitoramento e de controle ambiental.

A Licença Prévia (LP) não autoriza o início de qualquer obra ou serviço- ela meramente estabelece condições que o empreendedor deve atender paraprosseguir com a elaboração do projeto. A Licença de Instalação (LI) é

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concedida após análise e aprovação do projeto executivo e de outros estudosque especificam os dispositivos de controle ambiental, e tem prazodeterminado. A Licença de Operação (LO) é concedida após a vistoria e aconfirmação do funcionamento dos sistemas de controle ambientalespecificados e acordados nas fases da LP e LI. Ela autoriza o início dofuncionamento do empreendi-mento, tendo também prazo de validade econdicionantes tais como a apre-sentação dos resultados do monitoramentoambiental.

Diante do exposto, fica claro que se trata de um instrumento de plane-jamento, por excelência, que avalia os potenciais conflitos e determina asme-didas mitigadoras necessárias para compatibilizar as demandas de uso ede proteção ambiental. Portanto, acha-se inserido na atividade deGerenciamento da Oferta do Ambiente vinculando o Gerenciamento da Ofertada Água.

As licenças ambientais são espécies de outorga. Do ponto de vistaconceitual elas incluem a outorga de lançamentos de efluentes nos corposhídricos.

Nesse caso, busca-se a ordenação do uso do meio hídrico para destinaçãofinal dos resíduos de atividades antrópicas, onde eles serão diluídos, afastadose depurados. Esse uso deverá ser realizado tendo em vista a classe deenquadramento qualitativo do corpo de água, para evitar que a qualidade daágua seja comprometida em relação aos usos aos quais ela se destina.

Tabela 4 - Licenças ambientais

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Uma das falhas de aplicação desse instrumento decorre exatamente denão haver com freqüência uma concepção sistêmica de planejamento que osubsidie e o respalde. Isto faz com que os processos de licenciamento sejamanalisados e concedidos caso a caso. A capacidade de assimilação de resíduosdo ambiente é usualmente ignorada, determinando licenças orientadas pelaqualidade do efluente e não pela resultante no corpo receptor. Isto acarreta oestabelecimento das mesmas medidas mitigadoras, ou seja, tratamento dosefluentes, geralmente pela "melhor tecnologia disponível que não imponhacustos excessivos", indiferentemente se o meio esteja com a capacidade deassimilação pouca ou excessivamente utilizada. A razão é que sem concepçãode planejamento, vale dizer, sem metas de qualidade ambiental negociadascom a sociedade e usuários do meio, às quais sejam atreladas as políticas decontrole ambiental, o órgão ambiental fica fragilizado ante as pressões dosagentes interessados no uso do ambiente, tornando a sua ação inefetiva.

O correto seria que fosse gerenciada a capacidade de assimilação deresíduos do meio, evitando-se outorgas de lançamentos que possam ultrapassá-la. Problema mais crítico, e mais comum, ocorre quando a capacidade deassimilação já foi superada. Neste caso, o corpo de água estará com a qualidadeinadequada aos usos aos quais se destina e programas de despoluição deverãoser implementados. Esta situação, a rigor, determina que nenhuma outorga delançamento deveria ser concedida. No entanto, os aspectos políticos eeconômicos mencionados acabam por determinar que, na melhor das hipóteses,o programa de despoluição acomode às intenções de lançamentos, de modoque se possa gradualmente levar o corpo de água à qualidade requerida semas constranger de forma absoluta e, com isto, refrear as possibilidades decrescimento econômico e contribuições sociais.

Uma alternativa que têm sido concebida na regulamentação da legislaçãobrasileira sobre outorgas de lançamento é associá-la a um uso de água para diluiçãodos poluentes. Suponha que na classe em que o corpo de água se acha enquadradoo limite de concentração de dado poluente é Cm. Como concentração de umasubstância é dada pelo quociente entre a quantidade lançada (K) e o volume dediluição (V), para que uma concentração Cm seja atingida no meio hídrico acarga K deverá ser diluída por um volume de água igual a V = µ.K/Cm, sendo µuma constante de transformação de unidades. Esta é a água que se supõe seráusada pelo usuário para diluir sua carga.

Se, como é mais comum, o usuário lança um efluente com uma vazãoQe (em, por ex., l/s) com uma concentração Ce (em, por ex., mg/l) de dadasubstância ele estará usando uma vazão de diluição e não um volume. Neste caso,o cálculo vazão da substância lançada, em toneladas/mês, por exemplo, será:

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Qk = Ce . Qe (1)

A vazão total necessária para a diluição até a concentração limite será:

Q = Qk/Cm (2)

Esta vazão é obtida pela soma da vazão do efluente (Qe) com a vazãoapropriada do corpo hídrico para diluição (Qd). Esta última será, portanto:

Qd = Ce.Qe/Cm - Qe (3)

Quando Qe for muito pequeno em relação a Qd a subtração nãomodificará os resultados de forma substancial.

No procedimento de outorga de lançamentos a vazão Qd seria aquelaque estaria sendo outorgada para uso na diluição. Com isto, o usuário teriaque solicitar duas outorgas: uma de lançamento e a outra de derivação, ambasem unidades de vazão. Este procedimento poderá criar alguma superposiçãocom o licenciamento ambiental, que inclui os lançamentos, especialmentequando o órgão de outorga da vazão de diluição não for o mesmo comatribuição de emitir a licença.

6.3 Cobrança pelo uso da água

A cobrança pelo uso da água, de acordo com a Política Nacional deRecursos Hídricos, considerará tanto os usos consuntivos quanto os nãoconsuntivos, como, por exemplo, para a navegação e geração de energia elétricae, finalmente, o uso dos corpos hídricos para lançamento, afastamento edepuração de efluentes. Este último uso, que terá sua origem na outorga deágua para diluição, determinará estímulos para que o usuário trate parcialmenteseus efluentes, como foi mostrado por CÁNEPA, PEREIRA e LANNA (1999),por um lado. Por outro lado, haverá arrecadação que permitirá o financiamentode investimentos em intervenções que venham a mitigar os impactos doslançamentos. Existe, portanto, através desse instrumento, uma possibilidadede serem agregados estímulos econômicos e condições de viabilizaçãofinanceira das intervenções, visando ao alcance das metas de qualidade deágua estabelecidas no enquadramento.

A Política Nacional de Meio Ambiente, ao contrário da de RecursosHídricos, não considera este instrumento como alternativa gerencial. Sendoassim, ele deverá ser aplicado no âmbito do Gerenciamento das Águas, nãoobstante as repercussões ambientais positivas que deverão resultar.

Abordando, porém, este instrumento gerencial de forma mais ampla,não o limitando unicamente à cobrança pelo uso da água, poder-se-á promover

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as mesmas alterações que alguns países europeus têm realizado no âmbito daReforma Tributária Verde. Nesse caso, seria cobrado o uso do ambiente (enão somente da água) como fossa de resíduos, gerando incentivos a um controleambiental básico, recursos para o estabelecimento de subsídios a agentes quepromovam níveis adicionais de controle e para investimentos e operação dosórgãos públicos envolvidos. Devido aos efeitos econômicos de tal política,incluindo o estímulo ou desestímulo à criação de empregos, a geração derenda e à estabilidade econômica, haverá necessidade de uma visão sistêmicae integrada para sua implementação. Isto leva, mais uma vez, ao entendimentode que a articulação do Gerenciamento das Águas com o Ambiental é funda-mental para a consecução dos objetivos de planejamento e à proposta de queo Sistema Nacional de Meio Ambiente passe por um aperfeiçoamento quepermita a inclusão destes instrumentos econômicos como alternativa gerencial,afastando-se da visão unilateral de emprego tão somente de instrumentosregulatórios do tipo mandato e controle.

7. Conclusões

As análises realizadas mostraram a necessidade de uma série deaperfeiçoamentos, tanto no Gerenciamento Ambiental, quanto no Gerenciamentodas Águas. Para o primeiro, propõe-se um aperfeiçoamento que permita a maiorparticipação da sociedade, dentro de uma ótica de planejamento estratégico esistêmico do Gerenciamento da Oferta do Ambiente. Isto é demandado não apenaspara estabelecer uma maior efetividade e eficiência nas políticas ambientais, comotambém para facilitar as interlocuções que levem à necessária articulação com aspolíticas de águas. Para o Gerenciamento das Águas propõe-se o estabelecimentode uma maior articulação gerencial com o Gerenciamento Ambiental. Sob a óticamais específica das atividades gerenciais, são propostas as medidas descritas aseguir.

No que tange ao enquadramento de corpos de água de acordo com seususos preponderantes, deve-se entendê-lo como o estabelecimento de metasqualitativas a serem atingidas e mantidas nos corpos de água. Portanto, aatribuição deliberativa, que atualmente pertence aos órgãos ambientais, deveráser negociada com os órgãos com atribuições no planejamento das águas,Comitê de Bacia, órgão responsável pela outorga de uso de água, etc. Hátambém necessidade de aperfeiçoamentos nos limites de concentração quesão estabelecidos em cada classe, conforme a Resolução CONAMA 20/86.

No que se refere à outorga de lançamentos de resíduos nos corposhídricos, deve ser superada a dicotomia que ocorre atualmente no âmbito

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federal e no da maioria dos estados brasileiros: o licenciamento ambiental,mais geral, o qual se encarrega o órgão ambiental, e a outorga de lançamentode efluentes nos corpos de água, na qual é prevista a atuação do órgão derecursos hídricos com tal atribuição. Como a primeira é mais ampla que asegunda, pois abrange todos os impactos ambientais, o racional sob a óticaconceitual é que o órgão de recursos hídricos se manifestasse previamentepara, então, ocorrer a deliberação final do órgão ambiental. O primeiro avaliariaas conseqüências dos lançamentos sobre a qualidade dos corpos hídricosafetados, em relação aos objetivos de qualidade a serem atingidos,especificados pelo enquadramento. O órgão ambiental, caso o órgão derecursos hídricos aprove a outorga sob a ótica de suas próprias atribuições,avaliaria as demais conseqüências, vale dizer, impactos diretos e indiretossobre os demais elementos ambientais. Esta relação fica mais simples se o mesmoórgão possuir ambas as atribuições outorgantes. Quando isto não ocorrer haveránecessidade de que estabeleçam articulações dos seus procedimentos.

O uso de instrumentos econômicos de gerenciamento ambiental e daságuas, conjugado com instrumentos normativos, deve ser uma das vias para oaprimoramento de ambas as atividades gerenciais. Atenção maior deve serdirigida à Reforma Tributária Verde, em desenvolvimento em alguns paíseseuropeus, como alternativa válida para conjugar um ambiente protegido comobjetivos sociais e econômicos. Os instrumentos econômicos devem seragregados pela legislação ambiental ao elenco de alternativas deGerenciamento Ambiental.

As vinculações existentes entre o Gerenciamento das Águas e oAmbiental enfatizam as dificuldades que um seja realizado sem levar o outroem consideração. No longo prazo, com o amadurecimento e conseqüenteaperfeiçoamento institucional, é provável que eles sejam realizados de formaintegrada, com a coordenação de uma única entidade. Neste momento, pareceextemporâneo estabelecer-se tal integração, no âmbito federal e no âmbitodos estados onde existem entidades de meio ambiente e de recursos hídricos.Isto porque, por um lado, a Política Nacional de Recursos Hídricos acha-seem fase de implementação. Por outro lado, a Política Nacional de MeioAmbiente carece, mais do que a de recursos hídricos, de uma série demodernizações conceituais e instrumentais que possam ser implementadasem um novo modelo de Gestão Ambiental. Essa defasagem dificulta, nomomento, uma integração completa de ambas as políticas. Não obstante, devemser necessariamente encontradas alternativas de articulação entre ambosgerenciamentos, das Águas e Ambiental, em face às grandes superposiçõesque foram evidenciadas previamente.

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Perfil curricular do autor

Antonio Eduardo Lanna – [email protected] - é engenheiro civil,formado pela UFRJ, mestre em Hidrologia Aplicada pela UFRGS edoutor pela Colorado State University. Acha-se vinculado ao Institutode Pesquisas Hidráulicas da UFRGS desde 1973, ocupando atualmenteo cargo de Professor Titular. Atua nas áreas de Hidrologia, Planejamentoe Gestão de Recursos Hídricos, através do ensino de graduação e depós-graduação, da pesquisa e da consultoria. Tem participado de váriosestudos no Brasil e no exterior na área de planejamento e gestão derecursos hídricos, com ênfase em planos diretores, instrumentos de gestãoe nos aspectos institucionais.

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GERENCIAMENTO DOS RECURSOS HÍDRICOS- UM TEMA EM DISCUSSÃO -

Milton Cedraz

1. Considerações iniciais

O gerenciamento dos recursos hídricos no Brasil começou a tomar corpoa partir do final do século dezenove, com o surgimento e consolidação dademanda de energia elétrica. Até então, os recursos hídricos mantinham-se,mansa e pacificamente, escoando e tendo sua beleza contemplada em algumasparagens ou lamentada a sua escassez em outras. Assim, desde as lagunas doRio Grande do Sul, as grandes cascatas do Paraná e Santa Catarina, passandopelos grandes rios paulistas, pelo Pantanal Matogrossense, pelo Rio São Fran-cisco e pelos rios intermitentes na região semi-árida do Nordeste atédesembocar na vastidão amazônica, o território brasileiro oferece um mosaicohídrico diferenciado, amplo e complexo. Acrescente-se a isso a extensa costabrasileira, com suas baías , suas áreas cobertas por manguezais, pontilhada deambientes estuarinos e ilhas, além, evidentemente, das províncias hidro-geológicas e das suas águas subterrâneas.

Com esse panorama ainda pouco conhecido àquela época foi quecomeçou a surgir a conscientização da necessidade de domar e proteger esteimenso potencial.

A necessidade de iluminar melhor as nascentes metrópoles, substituiros animais como força motriz dos transportes urbanos, bem como substituiros motores a vapor pelos elétricos nas incipientes indústrias, levaram ostécnicos, cientistas e políticos da época a refletir sobre como disciplinar, deforma racional e adequada, os usos desse imenso potencial hídrico. Foi diantedesse panorama que o eminente jurista da época Alfredo Valadão, à frente deuma equipe de estudiosos, elaborou o anteprojeto da Legislação do Códigodas Águas. Iniciado o trabalho em 1906, somente em 1908 conclui-se aprimeira versão. Essa versão chegou a ser aprovada em segunda votação pelaCâmara de Deputados e, a partir daí, por circunstâncias diversas, o tema ficoucongelado até 1934. Com o advento do Estado Novo o assunto voltou àdiscussão, tendo sido então promulgado, através de decreto com força lei, oCódigo de Águas, que perdura até hoje.

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Nascia assim a legislação que pretendia regular o setor e que, emborade 1934, já incorporava quase todos os dispositivos hoje contidos nas leismais modernas. Não foi por falta de legislação que deixaram-se de gerenciaradequadamente os recursos hídricos, durante todo esse tempo. Em realidade,faltou mesmo foi conscientização e vontade política, pois o Código de Águas,embora privilegiasse o setor de geração de energia e a navegação, agasalhavaquase todos os princípios e instrumentos considerados modernamentenecessários ao adequado gerenciamento do setor. Lá estão as figuras daoutorga e a maioria dos condicionantes para a sua emissão, bem comoindicação para a cobrança pelo uso do domínio público hidráulico, comoinstrumento de gestão.

Na realidade, o gerenciamento dos Recursos Hídricos só se tornaráconsistente quando encarado como componente de um Sistema deGerenciamento Integrado dos Recursos Naturais. Assim, o arranjo institucionalpara o Gerenciamento dos Recursos Hídricos deverá partir da visão sistêmicado gerenciamento dos Recursos Naturais. O modelo institucional mais próximodessa visão é o modelo federal, onde as funções básicas para o gerenciamentodo setor já estão reunidas em um mesmo órgão. Mesmo assim, outros recursosnaturais, principalmente os minerais, e o setor de saneamento, um dosprincipais usuários dos recursos hídricos, não estão sob controle do mesmoórgão. Para que o gerenciamento dos recursos hídricos se processe com eficáciaé necessário e imprescindível que as principais funções, diretamente a elerelacionadas, estejam sob o mesmo comando.

Todos os Estados, inclusive aqueles que se anteciparam na institu-cionalização do setor, estão encontrando dificuldades, por não teremcongregado a maioria das funções pertinentes ao gerenciamento dos recursosnaturais a um mesmo órgão. Assim, as instituições de gerenciamento domeio ambiente, saneamento, mineração e recursos florestais estão dispersasno sistema da administração, principalmente estadual, distantes entre si,disputando atribuições, o que não aconteceria se estivessem sob o mesmocomando, gerenciadas com visão sistêmica. Tanto o gerenciamento dosrecursos hídricos quanto os dos demais componentes do sistema dos recursosnaturais têm sido exercidos sem que estejam adequadamente conceituados,estabelecidos e incorporados os princípios, as diretrizes e os parâmetrostécnicos, que incorporem a visão sistêmica das áreas temáticas de todo oconjunto de atividades que lhes é inerente. Por outro lado, o gerenciamentodos recursos naturais, particularmente dos recursos hídricos e florestais, nãopoderá ser desenvolvido sem um sólido aparato institucional, descentralizadoe terceirizado. As unidades regionais de gerenciamento deverão serinstitucionalmente fortalecidas, consolidadas e controladas, naturalmente, por

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uma unidade central, localizada na sede do órgão gestor. As unidadesdescentralizadas deverão ter um firme comando para operar o sistema comoum todo, desde o monitoramento e operação das redes hidrométricas ehidrometeorológicas à operação, manutenção e preservação de barramentos,bem como o exercício do mecanismo de outorga, o controle do uso dos recursoshídricos, além do processamento da cobrança e a operacionalização do poderde polícia. Os contratos de concessão deverão ser, dessa forma, gerenciadospor essas unidades.

Para que o gerenciamento regionalizado dos recursos hídricos possaser exercido em toda a sua plenitude, é necessário e imprescindível que sedimensionem e se cadastrem todas as atividades e ações pertinentes aodomínio regional.

É necessário, pois, conhecer-se esse universo de atividades e ações.Assim, todas as atividades registradas nos Planos Diretores de BaciasHidrográficas, cingindo-se aos limites regionais, deverão servir de base parao conhecimento da realidade e demandas da região. Os Planos Nacional eEstaduais deverão ser direcionados para estabelecer, com maior precisão, todasas atividades e ações a serem conduzidas pela regional. Dessa forma, deverãoincorporar todas as informações necessárias ao gerenciamento regionalizado,em meio magnético, tais como: o cadastro de mananciais que contenhainformes também sobre a saúde, a qualidade e os indicadores de tendênciasda qualidade das suas águas; o cadastro de usuários presumidos, efetivos eoutorgados; o cadastro das redes hidrométricas e hidrometeorológicas; ocadastro de intervenções, particularmente os barramentos, as aguadas e outrostipos de reservatórios; o cadastro de comunidades e da população rural difusae sua situação de abastecimento, além do cadastro de animais a dessedentar.Esses planos deverão, a partir do cadastramento do universo regional e seuconseqüente diagnóstico, estabelecer um programa de intervenções para ofuturo, delineando o cenário que se apresentará ao final da concretizaçãodessas intervenções.

2. A institucionalização para o gerenciamento

A institucionalização do gerenciamento dos recursos hídricos foi e temsido sempre concebida e materializada de forma dissociada da visão sistêmicado gerenciamento dos recursos naturais e do saneamento. Em que pese o fatodo setor de saneamento constituir um dos usos múltiplos dos recursos hídricos,a referência ao mesmo, isoladamente em relação aos demais, não chega aconfigurar tratamento assimétrico e privilegiado, posto que o próprio Código

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de Águas lhe confere preponderância sobre os demais usos da água. A lei9.433/97 visa confirmar essa preponderância, ao mesmo tempo em que agregaa dessedentação de animais como uso prioritário em situações de escassez.Por isso mesmo, tem sido extremamente complexo e burocratizado ogerenciamento para a proteção do meio ambiente, recursos hídricos e de todosos demais setores intimamente inter-relacionados, tais como recursos minerais,saneamento e recursos florestais.

Assim, parece fundamental que a estruturação do setor incorpore essasfunções básicas. Dessa forma, visualiza-se como mais adequada umainstituição que tenha sob seu comando o gerenciamento dos recursos naturaise a proteção do meio ambiente. Ter-se-á, portanto, um órgão integrado pelasfunções de gerenciamento da preservação do meio ambiente, dos recursoshídricos, dos recursos florestais, dos recursos minerais e as ações desaneamento. Os conceitos, diretrizes e princípios deverão ser unificados,permanecendo os instrumentos gerenciais básicos dos mesmos. Dessa forma,os canais de entendimento se encontrariam dentro do mesmo órgão, reduzindo-se, portanto, o número de entidades e de dispositivos burocráticos acionadosno processo do gerenciamento, eliminando costumeiros conflitosadministrativos que por vezes pontificam no exercício dessas funções.

3. Conceitos básicos, princípios, diretrizes e instrumentos para ogerenciamento

A institucionalização do gerenciamento dos recursos hídricos, conformese propõe, de forma sistêmica, isto é, como integrante do gerenciamento dosrecursos naturais, meio ambiente e saneamento, não seria suficiente para asua adequada estruturação e gerenciamento sem o consistente estabelecimentode conceito básicos, princípios e diretrizes. Assim, a estruturação racional dosetor teria que levar em conta a continentalidade do país e as profundasdiferenças dos balanços hídricos regionais, para o estabelecimento demecanismos e instrumentos gerenciais de caráter nacional e regional. Paramelhor entendimento, confronta-se a grande oferta de água da Amazônia comdemanda próxima de zero e o desequilíbrio na região semi-árida, onde hojese discute, acaloradamente, a transposição das águas do São Francisco,denunciando uma forte demanda e uma pequena oferta de água, como sefosse possível equilibrar-se o balanço hídrico do semi-árido brasileiro a partirdessa solução. Adicionalmente, observa-se o que ocorre com o Pantanal, ondetambém o desequilíbrio hídrico pende para o lado da oferta. Na zona costeirado país, percorrendo-a a partir do Nordeste até o Sul, os conflitos e

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desequilíbrios são reconhecidamente preocupantes e, às vezes, graves. NoSudeste, em geral, as atividades econômicas e as fortes demandas para geraçãode energia, navegação, consumo humano, industrial e controle de enchentesforçaram a institucionalização mais detalhada, para prevenir conflitos eacelerar a solução de problemas agudos já existentes. Mas a questão dosconflitos se repete.

Com esse panorama tão heterogêneo, não se poderia institucionalizaro setor de gerenciamento dos recursos hídricos sem levar em consideraçãotais características. Assim, o ideal seria uma entidade que englobasse asfunções já citadas, porém organizada por região, em que as estruturas parageren-ciamento descentralizado levassem em consideração as característicaspeculiares de cada uma delas. É evidente que o conceito de região refere-senão somente à divisão político-administrativa, mas também às característicasdas bacias hidrográficas que as constituem. Veja-se que a Bacia Hidrográficaé considerada a unidade territorial básica para o planejamento e gerenciamentodo uso dos recursos hídricos.

Sem uma institucionalização que possua visão sistêmica, estruturaçãoregional adequadamente descentralizada e instrumentos que lhes dêemsustentabilidade jamais se gerenciará qualquer coisa de forma eficaz,particularmente recursos naturais e preservação do meio ambiente. Adescentralização do gerenciamento dos recursos hídricos deverá estar previstaem lei e ser exercida mediante estruturação institucional e por instrumentoscapazes de nortear e propiciar um gerenciamento eficaz e seguro. Isso, aliás,já ocorre de certa forma, nos textos de leis federal e estaduais. Assim, a açãoregional deverá ser estruturada a partir do levantamento de toda realidadecontida na área da região administrativa pertinente. Dessa forma, é necessárioque os Planos Diretores ou os Planos Nacional e Estaduais incorporem estafilosofia, isto é, que a unidade regional seja dotada de todas as informaçõesnecessárias e imprescindíveis ao seu gerenciamento. Para materializar estaestratégia gerencial, torna-se necessário efetuarem-se os cadastros demananciais, de usuários, de outorgas e de estruturas a operar, manter epreservar, notadamente, os reservatórios e as redes hidrométricas ehidrometeorológicas. Também é imprescindível que esse gerenciamentodescentralizado se materialize mediante o emprego de manuais. Assim, éessencial instrumentar-se o gerenciamento com manuais, sendo o primeiro delesum manual padrão para operação, manutenção e preservação das águas e dasestruturas dos reservatórios, seguido de acessórios específicos, imprescindíveispara a operação individualizada em cada caso. O mesmo se aplica à operação,manutenção e preservação das redes hidrométricas e hidrometeorológicas.

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No que tange à operacionalização das outorgas e fiscalização dos usos,também é imprescindível a manualização. No caso específico da fiscalização,o manual pertinente é indispensável. Esse manual não só facilitará o exercícioda fiscalização, como também propiciará ao usuário defender-se do abuso dopoder e da coação, servindo inclusive para prevenir eventuais tentativas decorrupção. Dispondo-se de cópia do manual para os usuários, estes usufruirãode uma ferramenta fundamental, inclusive para sua autogestão. É evidenteque o manual deverá conter um roteiro de procedimentos para a fiscalização,de acordo com a lei, inclusive para operacionalizar o poder de polícia e atribuirpenalidades, principalmente sobre situações e valores, com formuláriosapropriados para aplicação em cada caso. Agindo dessa forma e tornandodisponível ao usuário, no ato da outorga, cópia da cartilha de fiscalização,componente do manual, está-se municiando o usuário dos mecanismosnecessários ao exercício de defesa de seus direitos e, ao mesmo tempo,conscientizando-os quanto aos seus deveres.

Para o setor administrativo-financeiro da gestão regionalizada,deverão ser definidos princípios e normas quanto à ação administrativa efinanceira da regional, particularmente quanto aos procedimentos paraoperacionalizar a cobrança pelo uso do domínio público hidráulico, pelacobrança de tarifas, principalmente de água bruta, e gerenciamentofinanceiro das estruturas e ações terceirizadas.

O gerenciamento sistêmico dos recursos hídricos pressupõe a unificaçãodos instrumentos básicos de gestão, a partir da uniformização de critérios, dainstrumentalização com um sistema geo-referenciado de informações, de umbanco de dados conectado com os mais diversos bancos de dados disponíveise de uma rede geral geradora de informações e dos procedimentos a seremadotados, sistemicamente. Assim, os sistemas de outorga e de licença defuncionamento, para qualquer atividade componente dos recursos naturais emeio ambiente, seriam regulados e fiscalizados pelas instituições especificas,porém sob um comando único, salvo setores especiais como a geração deenergia, a navegação, a prospeção e extração de petróleo, embora a legislaçãobásica deva regular a outorga e fiscalizar essas atividades no geral. Adistribuição de energia, no entanto, em determinadas circunstâncias, deverásubmeter-se à licença, pois poderá agravar situações de conflitos por venturaexistentes em determinados mananciais, já que a sua implantação ocasionará,seguramente, a elevação da demanda de água pelas facilidades que propiciará.

Assim, a legislação básica para gerenciamento dos recursos naturais,proteção do meio ambiente, recursos hídricos, recursos florestais, recursosminerais e ações de saneamento deverá ser integrada, contemplando todo o

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conjunto constituído por essas atividades e suas relações. Entre as instituiçõesmais importantes estão os conselhos, seja nacional ou estaduais, com prerrogativasunificadas para apreciar, normatizar e decidir sobre as funções comuns a todo osetor e sobre as funções que reflitam as interfaces das diferentes vertentes. Issonão significa afirmar que não devam existir os conselhos específicos, muito aocontrário. Porém é necessário que o Conselho Nacional de Recursos Naturais eMeio Ambiente tenha a faculdade, a partir de visão sistêmica, de normatizar tudoo que for comum às diversas vertentes do setor, buscando, através destes, unificarprocedimentos, ficando para os conselhos específicos as funções de normatizaçãoe acompanhamento, dirimindo, em última instância administrativa, os conflitos,além, evidentemente, de aprovar os planos de aplicação dos recursos financeirosdo próprio setor.

Por outro lado, o sistema precisa ser financeiramente auto-sustentado,sob pena de não se beneficiar da necessária continuidade, como soi acontecerhoje, quando fica dando voltas, sem se libertar para o caminho da susten-tabilidade. Por ser um setor que hoje não gera recursos financeiros, antesapenas os consumindo, o seu redirecionamento para a geração desses recursosvirá, em primeiro lugar, aliviar o orçamento público de boa parte dos dispêndiosque já se vinham efetuando. Assim, a geração de recursos ocasiona-rá oingresso de dinheiro novo a ser aplicado de forma não contingenciável nopróprio setor. Se as áreas hoje existentes na administração pública gerassem,pelo menos, parte dos recursos que consomem, o orçamento alcançariasuperávit com relativa facilidade. Veja-se que um dado setor que não gerarecurso novo, mas possui dispositivo legal que compromete parcela doorçamento de forma incontingenciável, este sim poderá vir a afetar o controledo déficit público, ainda que seja uma função vital dentro do sistema. Aquelasatividades que, porventura no passado, foram geradoras de dinheiro novo e tiveramesses recursos reinvestidos em seu próprio campo de atuação colheram frutosdo crescimento economicamente sustentado, enquanto a situação perdurou.

No momento que os recursos gerados pelas próprias atividades foramtransferidos para o caixa único do Governo, tanto essas atividades retro-cederam, como o próprio desenvolvimento regional ficou paralisado ouregrediu. Está aí hoje, por exemplo, a situação do setor cacaueiro e da regiãocacaueira como um todo, em completa deterioração econômica e social, oque ocasionou, segundo os especialistas da área, o desemprego de mais de250 mil pessoas. Com isso, a própria arrecadação gerada pelo setor despencouabsurdamente, invertendo a situação anterior, quando havia produçãosubstancial, com a conseqüente geração de recursos e de empregos, emcontraste com a situação de hoje, quando demandam elevadas somas doorçamento e recursos adicionais para atendimento social maior, decorrente

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do desemprego generalizado na região, além da recuperação fitossanitáriados cacaueiros atacados impiedosamente pela “vassoura de bruxa” comodecorrência da desestabilização da CEPLAC.

Portanto, a geração de dinheiro novo pelo gerenciamento moderno eadequado dos recursos naturais como um todo e em particular pelos recursoshídricos é perfeitamente factível, devendo o produto dessa arrecadação sertotalmente aplicado no próprio setor. Isso se justifica, em primeiro lugar,pela importância capital que o gerenciamento dos recursos hídricos significapara o desenvolvimento econômico e bem-estar social. Segundo, porque aprópria legislação recomenda que os recursos arrecadados nas baciashidrográficas deverão ser aplicados, preferencialmente, nelas próprias. Dessaforma, não parece existir qualquer argumento que justifique que a geração derecursos financeiros, pelo gerenciamento dos recursos hídricos, deva ingressarno caixa único do setor público, para voltar sob a forma de verbas a seremaplicadas pela sistemática da rotina do exercício orçamentário. Os recursoscobrados em bacias hidrográficas, por exemplo, pelo uso do domínio públicohidráulico, desta forma operacionalizados, muito dificilmente retornarão, pelomenos nas mesmas proporções, às bacias hidrográficas.

Por outro lado, os usuários pagadores não terão como exercer o direitode acompanhar ou mesmo saber se os recursos arrecadados na bacia estãopreferencialmente sendo nela aplicados, como manda a lei. Isto pode levá-losaté a reagir contra o ato de pagar. Só existe uma forma racional e efetiva decontrolar e aplicar os recursos acrescidos pelo setor em geral e pelas baciashidrográficas em particular. Tal forma consiste na criação de um fundo derecursos hídricos, nacional ou estadual, para onde deverão convergir todos osrecursos arrecadados. Assim, o Fundo seria estruturado em uma conta geral eem diversas subcontas específicas, por bacia hidrográfica ou, no caso derecursos gerados pela cobrança por despejos em regiões marinhas, tambémpor subcontas específicas para essas áreas. Para a conta geral fluiriam osrecursos derivados da compensação, pagos pela geração de energia, prospecçãode minerais e outros oriundos do orçamento e, quando for o caso, recursos definanciamentos genéricos e 15% (quinze por cento) dos recursos gerados dacobrança pelo uso do domínio público hidráulico de cada bacia hidrográficae de outras contas do Fundo.

A conta geral servirá, portanto, para financiar a elaboração, manutenção,operação, revisão e investimentos decorrentes dos planos nacional ouestaduais. As subcontas específicas das bacias servirão para financiar aelaboração, manutenção, operação, revisão e investimentos dos planosdiretores dessas bacias. Dessa forma, será possível até propiciar uma adequada

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transparência aos valores arrecadados e disponibilizados pelas bacias e pelosetor. É fundamental que na lei de criação do fundo fique explicitamentedeterminado que os recursos, contidos no mesmo, sejam INCONTINGENCIÁVEIS.Também deverão ser definidas, pela lei, todas formas e modalidades deaplicação dos recursos financeiros do fundo, inclusive para financiamentospúblicos e privados, ligados ao setor, condicionados à aprovação pelosConselhos de Recursos Hídricos.

O órgão gestor dos recursos hídricos, assim como a estrutura do Fundo,deverão ter características empresariais, com competências exclusivasclaramente estabelecidas pela lei, que deverá também autorizar acorrespondente remuneração pelo gerenciamento do Fundo e pela operação,manutenção e preservação das estruturas do setor. O poder público deverámanter 51% do capital votante da sociedade, ficando os demais 49% paraserem integralizados pelos usuários da água. As ações preferenciais poderão,de acordo com a Lei das Sociedades Anônimas e os estatutos sociais daempresa, ser integralizadas por pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ouestrangeiras. Deverá ficar, também, explicitado na lei que até 10% dosrecolhimentos efetuados pelos usuários por conta do pagamento pelo uso dodomínio público hidráulico, e não de tarifas, taxas e assemelhados, poderãoser opcionalmente destinados à integralização do capital social da sociedade,na forma de ações preferenciais.

Os Conselhos, inclusive o nacional, deveriam ser compostos, na suamaioria, pelos usuários da água, consolidando uma filosofia de autogestãocom redução da participação governamental, ficando a maior participaçãonas Câmaras Técnicas dos setores governamentais envolvidos, toda vez queum assunto específico de interesse público assim o exigisse. As organizaçõesde usuários dos recursos hídricos deveriam ser de exclusiva iniciativa destes,porém estimulados pelo poder público, particularmente pelo órgão gestor. Osusuários somente poderão reivindicar direitos ou legitimar-se a partir dacomprovação da sua competente OUTORGA. Portanto, a outorga seria comose fosse o C.P.F. do usuário, e sem ela este não teria legitimidade. Quanto aosComitês de Bacia serem instituídos por decreto e com a ingerência do setorpúblico, parece ser uma forma de patrulhamento desnecessária ao usuário eao setor, e costuma consolidar atitudes paternalistas, com indesejáveisconseqüências até para o orçamento público.

A outorga é um dos principais e dos mais importantes instrumentos que sedispõe para o gerenciamento dos recursos hídricos. Para a sua efetiva aplica-çãotorna-se necessário cadastrar, em qualquer bacia, independentemente da suacategoria, os usuários efetivos e os usuários potenciais, outorgados ou não.

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É de máxima importância o registro estatístico e, conseqüentemente, ocadastro dos pequenos irrigantes localizados nas nascentes e margens dosmananciais, porque às vazões utilizadas, embora reduzidas, somam-se oproblema do desmatamento e da desrecomendável tecnologia de irrigaçãoempregada, que se constituem em riscos consideráveis de degradação do meioambiente e de comprometimento da saúde do manancial. Por outro lado, porestarem ausentes das estatísticas e desconsideradas da futura cobrança pelouso da água, esses pequenos usuários perpetuam a sua ação predatória semincorporar tecnologias mais eficientes na relação água/solo/produtividade ereceber incentivos oficiais: financeiros, de infra-estrutura de energia, transportee outros. É provável que ao se cadastrar a totalidade desses irrigantes venhama se a duplicar os números dos registros estatísticos das áreas irrigadas emgrande parte dos estados brasileiros. Portanto, o registro das atividades dessesusuários, ainda que não se venha a cobrar pelo uso dos recursos hídricos, éindispensável. Talvez, até, tenha-se que rever a legislação que as dispensoudo processo de outorga e também o conceito que pressupõe a cobrança comoconseqüência da concessão de outorga, nestes casos.

Os usuários potenciais, ou presumidos, são aqueles que estiveremlocalizados nas proximidades do manancial e que, a qualquer momento,possam reivindicar outorga. Os efetivos são os usuários que já estejam seutilizando do domínio público hidráulico. Porém, antes mesmo que se elaboreo Cadastro de Usuários, dever-se elaborar o Cadastro de Mananciais, de cujaficha deve constar as informações sobre o estado de preservação do mesmo ea classificação de suas águas.

Nenhum Plano Diretor de Bacia poderá assim chamar-se, se não contivertais informações. Todas essas informações deverão estar disponíveis em meiomagnético, sendo que o Cadastro de Mananciais deve ser elaborado sobre umsistema geo-referenciado. A outorga, por outro lado, é o principal instrumentopara a correta cobrança pelo uso do domínio público hidráulico. Um fatorelevante é que o uso das águas dos reservatórios, que para sua construçãorequer naturalmente uma outorga, não mais poderá ser outorgado. Não sepode fazer uma outorga de uma intervenção já devidamente outorgada. Nestecaso, a licença para o uso das águas de um reservatório se fará medianteautorização de uso, o que é outra figura, pois ao se efetuar a cobrança nãomais se fará por preço público, mas sim por tarifa. Porém, mesmo por tarifa,qualquer uso das águas do reservatório terá que ser cadastrado, para que sepossa efetuar controle dos usuários, ainda que seja para colocar pedalinhos.

No caso dos reservatórios públicos, os recursos arrecadados pelaoperação devem ser depositados na conta geral do fundo, descontada a taxa

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pelo gerenciamento. No caso de terceirização da operação, manutenção epreservação dos reservatórios seria desejável que uma parcela de tudo o quefosse pago pelo concessionário fosse depositado no Fundo. No caso do órgãogestor vir a operar a barragem diretamente, seria remunerado por esta operação.Em caso de terceirização, receberia uma taxa de administração. O contrato deterceirização deverá estabelecer o direito de cobrança pelo fornecimento deágua bruta, pelos despejos, para piscicultura intensiva ou extensiva, pelanavegação e até pela instalação de balneários, marinas e atracadouros. Todasas construções, retiradas de materiais (areias, argilas, madeiras, minerais dequalquer natureza), bem como a disposição final dos resíduos sólidos urbanos,deverão estar sujeitos à outorga e, conseqüentemente, à cobrança.

Os contratos de concessão, por sua vez, deverão estipular todos osdeveres do concessionário. Um dos principais deveres deste será o pagamentopelo uso dos recursos hídricos acumulados na bacia de inundação dobarramento e, neste caso, deverão constar do contrato as diferentesmodalidades de pagamento, de acordo com o uso ou pelo atraso pela nãoimplementação de qualquer dos usos previstos. Assim, por exemplo, poderáser concedido um prazo para a exploração da piscicultura extensiva e intensiva.Caso ao término do prazo não se tenha iniciado o uso para este fim, oconcessionário pagará o estipulado como se o estivesse efetivamenteutilizando. Portanto, a exata determinação da vazão regularizável doreservatório é preponderante para a terceirização.

Para definição do volume regularizável pelo reservatório, devem-selevar em conta as demandas dos usuários presumidos, de montante até adistância considerada como de influência direta da barragem. A vazão derestituição deverá ser descontada da vazão regularizável, disponível paraderivações das águas das barragens. O cálculo de vazão de restituição deveráser efetuado a partir de demanda obtida pela soma das demandas dos usuáriospotenciais do entorno e de jusante, situados na área de influência da barragem,até onde haja outro manancial alternativo. Acrescentam-se, adicionalmente,as perdas de transiente. Poderá acontecer, nesses casos, que toda a vazãoregularizável disponível, descontadas as demandas de população e paradessedentação de animais, seja quase inteiramente restituída ao rio, como é ocaso, por exemplo, do Rio Vaza Barris. Nesses casos, não se deve criar umademanda artificial, isto é, um perímetro de irrigação em detrimento da demandados usuários presumidos do entorno e de jusante, na área de influência dabarragem. A preservação das estruturas da barragem e de suas águas deveráfazer parte da operação e manutenção da mesma e, portanto, integrar ocontrato de concessão.

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O estudo de impacto ambiental, normalmente realizado na fase deelaboração do projeto, é importante. Porém, não é mais importante que amanualização da operação, manutenção e preservação das estruturas equalidade das águas contidas nas bacias de inundação dos barramentos e suaconseqüente aplicação. Não basta elaborar os relatórios de impacto ambiental,mas, sobretudo, exercer-se a permanente fiscalização para que os usos nãodegradem a qualidade das águas dos reservatórios. Além da outorga e dacobrança pelo uso das águas de superfície, é necessário muita atenção para aregulamentação da outorga e cobrança das águas subterrâneas e pelo uso derecursos hídricos de marinha, para despejos. As águas subterrâneasdeverão ser objeto de estudos que poderão ou deverão integrar os estudosdas bacias hidrográficas.

4. A visão nacional, regional e estadual para a estruturação do setor

A conscientização da necessidade de institucionalizar-se o geren-ciamento dos recursos hídricos no Brasil antecede mesmo à Constituição Fed-eral de 1888. Na realidade, os registros dos primeiros passos no sentido dodisciplinamento do uso das águas no Brasil deram-se, primeiramente, paraáguas subterrâneas, com a chegada da corte portuguesa. Dessa forma, “aperfuração de poços passou a ser autorizada nas províncias de São Paulo eRio Grande do Sul, para prospecção de carvão, petróleo, produção de águapara fabricação de cerveja, etc.

Nas províncias do Nordeste, afetadas pelas secas, a autorização foidada para abastecimento das populações” (Rebouças, Águas Subterrâneas,1999). Porém, os dispositivos fundamentais para o gerenciamento dos recursoshídricos somente foram estabelecidos pelo Código de Águas de 1934. A partirda sua promulgação, foram sendo criados diversos órgãos para o gerenciamentopontual, de acordo com a importância dos usos dos recursos hídricos. Osinstrumentos que vieram a ser criados para o gerenciamento sempredenotavam, como até hoje, a carência de visão sistêmica. A lei 9.433, de 8 dejaneiro de 1997, incorpora alguns princípios e diretrizes que favorecem esseentendimento, porém não é completamente conclusiva quando estabelece osinstrumentos de gestão. Entretanto, o Governo Federal, ao criar o Ministériodo Meio Ambiente, deu um precioso passo nesse sentido. Como não poderiadeixar de ser, a evolução da demanda e os prenúncios dos conflitos, que sãoinerentes ao crescimento dessa demanda, fizeram com que o Estado de SãoPaulo também ensaiasse os seus primeiros passos para criar os dispositivoslegais necessários ao efetivo Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Dentre

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essas providências destaca-se, como marco, a celebração do acordo doMinistério das Minas e Energia e o Governo de São Paulo, em 1976. Com aorganização da ABRH - Associação Brasileira de Recursos Hídricos, osestudos e debates sobre a institucionalização do Gerenciamento dos RecursosHídricos se aceleraram. Assim, na Carta de Salvador, emanada das discussõesno VII Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos e Hidrologia, apontava-se anecessidade de institucionalização do Sistema Nacional de Gestão de RecursosHídricos, com a participação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dosMunicípios (Barth, Flávio. Aspectos Institucionais do Gerenciamento dosRecursos Hídricos - 1999).

Seguiram-se as discussões no VII Simpósio Nacional, quando se editoua Carta de Foz de Iguaçu, a Declaração de Dublin, sobre Recursos Hídricose Desenvolvimento Sustentável, e a Conferência do Rio de Janeiro, sobreMeio Ambiente e Desenvolvimento. Como conseqüência, o Governo Federalelaborou e enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei, que tomou o nº2.249/91, que propunha o estabelecimento das diretrizes, dos princípios e dapolítica além dos instrumentos para o gerenciamento dos recursos hídricos.Nesse projeto, é proposta a criação do Colegiado Nacional do Sistema e deColegiados Regionais, a instituição do Plano Nacional de Utilização dosRecursos Hídricos, os comitês de bacias e de sub-bacias. Atribuía, o mesmoprojeto, à Secretaria Executiva do Sistema a Coordenação Geral de RecursosHídricos, do Departamento Nacional de Águas e Energia - DNAEE.

O sistema então proposto apoiava-se no binômio Comitê de Bacias -Agência de Bacias. Propunha a criação do Conselho Nacional e de Conselhosde Bacias, além dos Comitês e Agências de Bacias. Entretanto, as propostasque se seguiram mantinham e aprofundavam a ingerência do setor públiconas iniciativas dos usuários. Finalmente, a lei 9.433 foi promulgada em 8 dejaneiro de 1997. Ressente-se ela da falta de definição clara do que seja odomínio público hidráulico e a forma de como usá-lo, e da instituição doFundo Nacional de Recursos Hídricos, instrumento preponderante para oadequado gerenciamento auto-sustentado dos recursos hídricos, além de servircomo instrumento que transmitiria aos usuários confiança no sistema. Portanto,para que um Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos possa ter êxitoé necessário que seja auto-sustentado e, acima de tudo, transmita confiançaaos usuários, consolidada pela certeza de que os recursos arrecadados pelacobrança da água seriam aplicados efetivamente no setor. (Como confiar em umsistema cuja geração de dinheiro novo vá parar no caixa único do governo parapretensamente retornar via orçamento público? Poderá acontecer que o usuáriovenha a se recusar a pagar, com amparo na lei, por não confiar no sistema).

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Quem fraciona a aplicação dos recursos orçamentários são os setoresque, de forma justa ou não, recebem percentagens fixas do orçamento semgerar recursos novos, como é o caso do setor educacional, por exemplo. Nocaso do Fundo dos Recursos Hídricos isto não ocorrerá, porque os recursosnele depositados, inicialmente, seriam aqueles já previstos no orçamento eque, no futuro, seriam reduzidos pela capacidade de geração de novos recursospelo próprio setor. Um Fundo dessa forma estruturado, onde os recursos daconta geral, além de financiar os investimentos previstos no Plano Geral,financiarão o gerenciamento geral dos recursos hídricos, além de poderfinanciar atividades públicas e privadas ligadas ao setor, certamente irápropiciar desenvolvimento econômico e social, particularmente nas baciashidrográficas, cujos recursos financeiros, contidos nas contas específicas,financiarão os investimentos e o gerenciamento previstos pelos PlanosDiretores de Recursos Hídricos.

A nova geração do arranjo institucional, para gerenciamento dosrecursos hídricos no Brasil, deveria ter visão sistêmica, onde estariam contidasas funções básicas, com fortes interfaces. Assim, as funções relativas a recursosnaturais, meio ambiente, recursos hídricos e ações de saneamento deveriamser aglutinadas sob um único comando. Dessa forma, seria possível evitar oque vem acontecendo em quase todos os Estados. No Governo Federal, asdivergências e a falta de convergência administrativa são menores por jáestarem quase todas, sob o mesmo comando, isto é, sob o comando doMinistério do Meio Ambiente.

Assim sendo, sugere-se, de forma simplificada, o seguinte arranjoinstitucional dos recursos hídricos. No caso estadual, a criação de umaSecretaria onde estejam englobadas as funções de Recursos Naturais, MeioAmbiente, Recursos Hídricos e Saneamento. Sob um comando único, ficamais fácil e menos burocrático o gerenciamento destas funções e, em particu-lar, do gerenciamento sistêmico dos recursos hídricos.

Compondo o sistema de gerenciamento dos recursos hídricos, já que aSecretaria seria o órgão Coordenador e o Conselho, o órgão normatizador,seria constituída uma Empresa com a finalidade básica para gerenciar o Fundode Recursos Hídricos. O capital social dessa empresa deveria ser constituídocom 51% do capital votante pertencente ao Governo e os 49/o restantespertencentes, preferencialmente, aos usuários da água.

Os objetivos principais dessa empresa seriam: gerenciamento do Fundo,pelo qual seria remunerada; gerir diretamente, ou de forma terceirizada, asestruturas hídricas, principalmente barragens, redes hidrométricas ehidrometeorológicas; organização, monitoramento e supervisão de centrais

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de autogerenciamento de pequenos barramentos públicos e sistemas deabastecimento de água dessas comunidades; o processamento de outorgas; oexercício administrativo do poder de polícia; o gerenciamento do setor comoum todo, principalmente a elaboração, manutenção, operação e atualizaçãodos Planos Estaduais e Diretores de Bacias; cobrança pelo uso da águaoutorgada e da água derivada ou utilizada, a partir dos reservatórios. A Empresadeverá ser estruturada de forma enxuta e com forte descentralização. A formamais adequada para a descentralização é a implantação de gerências regionais.Essa unidade territorial regionalizada, isto é, a Região Administrativa da Água,deverá ser o esteio principal do Gerenciamento. Para ela deverá convergir ogerenciamento regionalizado, apoiado em uma estrutura capaz de permitirgerenciar diretamente, ou de forma terceirizada, todas as funções, tais como:a) operação, manutenção e preservação de reservatórios, preferencialmenteterceirizados; b) operação, manutenção, preservação e modernização dasredes hidrométricas e hidrometeorológicas, também de forma terceirizada;c) processamento de outorga, gerenciamento dos contratos de terceirizaçãoe o cumprimento pelos usuários das condições das outorgas, cobrançaderivada das outorgas ou pelo gerenciamento direto ou terceirizado dosreservatórios, etc.

Para que tudo isto possa ser devidamente executado éimprescindível que, paralelamente à implantação da sede da regional, seprocesse o levantamento detalhado, principalmente de campo, de todas asinformações para o adequado gerenciamento dentro do universo territorial daregional. Embora todos os dados devam convergir para o banco de dados,estes deverão estar disponíveis para a área de cada regional. Assim serápossível ter-se uma visão global de todo o universo a ser gerenciado, de formaregionalizada. Não se pode gerenciar adequadamente essas regionais semque se possuam os requisitos fundamentais bem dimensionados, tais como:informações básicas consistentes e bem estruturadas, espaço físico adequadoe bem dimensionado, equipes técnicas em nível compatível e especificamentetreinadas, além de um bom sistema de informações conectado em rede, com acentral e outros sistemas acessórios. Ademais, é necessário que o órgão gestortenha sua importância reconhecida: primeiro, pelo próprio sistemaadministrativo em que estiver inserido e, segundo, pelo contexto dos órgãos eentidades parceiras, sejam elas financiadoras, colaboradoras ou executoras,de forma tal que nenhuma atividade inerente ao Gerenciamento de RecursosHídricos, em nenhum momento escape ao seu controle. Por fim, entende-seque as questões focalizadas neste tema devem embasar o processo derestauração das estruturas e balizar o gerenciamento dos recursos hídricos,fundamentais à vida e ao desenvolvimento.

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Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997

Perfil curricular do autor

Milton Cedraz - [email protected] – é engenheiroagrônomo (UFBa) e Técnico em Desenvolvimento Econômico (CEPAL/ONU/ BNDES). Tem cursos de Gerência Administrativa Financeira(FGV) e Treinamento Executivos (BNH). Autor de diversas publicaçõestécnicas. Participou, dentre outras atividades profissionais, do Estudode Viabilidade do Sistema Adutor Sobradinho/Terra Nova; elaboraçãodo projeto de lei e regulamentação dos Recursos Hídricos da Bahia;elaboração do projeto de lei que instituiu a Política Nacional RecursosHídricos. Trinta anos de atuação profissional no planejamento egerenciamento de recursos hídricos do Estado da Bahia, onde atualmenteé Diretor-Geral da Superintendência de Recursos Hídricos.

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VISÃO INTERSETORIAL DE RECURSOS HÍDRICOS,SANEAMENTO, MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO

URBANO: A EXPERIÊNCIA PAULISTA

Sandra Inês Baraglio Granja

1. Introdução

Este artigo pretende apresentar, de forma preliminar, a experiênciapaulista no que se refere ao arcabouço político-institucional da gestãointersetorial de recursos hídricos e suas interfaces com saneamento, meioambiente e uso e ocupação do solo. Os quatro sistemas setoriais paulistasserão apresentados, com as dificuldades inerentes de realizar uma gestão commulti-objetivos e multisetorial, o que implica em maximizar e potencializar asinergia existente na gestão compartilhada entre os sistemas, como oplanejamento integrado, visando a não dispersão de recursos na viabilizaçãode projetos comuns.

Para uma gestão intersetorial efetiva, considera-se que a atual molduralegal do arcabouço jurídico-institucional dos sistemas setoriais do Estado nãoabrange, sozinha, em seu escopo, a totalidade de ações necessárias à gestãode qualquer bacia.

Busca-se, então, neste artigo uma arquitetura institucional que trabalhenuma perspectiva intersetorial na implementação de ações de gerenciamentode recursos hídricos que têm interfaces com os outros sistemas setoriais1.Esta arquitetura institucional, também denominada matriz integrativa,realizaria uma abordagem não setorial de qualquer gerenciamento de bacia,apostando que as soluções dos problemas merecem abordagem multidisplinare negociada em cada uma das visões dos atores intervenientes na gestão,gerando insumos para o processo decisório indicado pelos atores da mesma.A matriz institucional integrativa é essencial para o planejamento, pois aabordagem intersetorial supõe e trabalha com a existência de conflitos deinteresses múltiplos, pois o planejamento deve ser entendido como um processode negociação que precisa considerar as relações entre os atores.

1 Sabe-se que todos os sistemas setoriais asseguram a participação paritária dos municípios com relaçãoao Estado e à sociedade civil. Considera-se ainda que o sucesso e a eficácia da gestão intersetorial dependem,intrinsecamente, de um pacto entre os diversos segmentos – públicos ou privados – mediante a compa-tibilização de seus múltiplos interesses.

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Além do arcabouço institucional paulista, também explicitaremos, deforma preliminar, as relações entre o Sistema de Gerenciamento de RecursosHídricos do Estado de São Paulo com o Sistema Nacional de RecursosHídricos, bem como suas potencialidades, interfaces e conflitos, isto é, comose daria essa gestão intersetorial, a integração e articulação dos sistemas.

2. O arcabouço institucional do Estado de São Paulo

2.1 O Sistema Estadual de Recursos Hídricos

A Constituição Federal de 1988 tratou a questão de recursos hídricosde maneira sucinta, prevendo, em seu artigo 21, inciso XIX, a instituição deum sistema nacional de gerenciamento, o que proporcionou no setor umamobilização de técnicos e da sociedade civil quanto às Constituições Estaduais,resultando em proposições inovadoras, pioneiramente no Estado de São Paulo.A lei 7.763, de 30 de dezembro de 1991, veio nessa linha, estabelecendoorientações e normas à Política Estadual e ao Sistema Integrado de Geren-ciamento de Recursos Hídricos, à cobrança pela utilização da água e à criaçãoda figura de agência de bacia hidrográfica.

Esta lei também dispõe sobre o objetivo e os elementos constitutivosbásicos do SIGRH, que visa a execução da Política Estadual de RecursosHídricos, a formulação, atualização e aplicação do Plano Estadual de RecursosHídricos. Os elementos que o compõem são órgãos estaduais, municípios e asociedade civil - de forma paritária -, conforme artigo 205 da Constituição doEstado de São Paulo. O SIGRH é composto por:

• Conselho Estadual de Recursos Hídricos - CRH, órgão colegiado cen-tral do Sistema que congrega representantes - de forma paritária - doEstado, dos municípios e da sociedade civil;

• 20 Comitês de Bacia Hidrográfica - CBH, já funcionando, que sãoinstâncias também colegiadas de caráter regional, isto é, de circunscriçãobaseada nas 22 bacias hidrográficas do Estado onde se constituem fórunsde negociação dos eventuais conflitos existentes. Igualmente ao CRHestá assegurada a paridade entre Estado, municípios partícipes e asociedade civil.

• Agências de bacia hidrográfica, que poderão ser criadas se problemasrelacionados aos recursos hídricos assim o justificarem. Sua principalcaracterística é se tornar o braço executivo do(s) respectivo(s) comitê(s),viabilizando a cobrança pela utilização da água.

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Esse processo de implementação do gerenciamento de recursos hídricosno Estado de São Paulo ainda não está completo e ainda está sob constantesaperfeiçoamentos institucionais. Ainda faltam questões a serem encaminhadas,como a implantação do princípio usuário-pagador, as interfaces entre ossistemas de recursos hídricos, saneamento ambiental, desenvolvimento urbanoe meio ambiente, além da questão da integração da gestão entre a qualidade ea quantidade da água, de forma mais efetiva.

Hoje é consenso que a água é um recurso finito, com valor econômicoe que, portanto, deve ser cobrado, visando o seu uso mais racional para garantiro atendimento amplo de todas as demandas e das gerações futuras. O altograu de poluição e degradação da água, resultante principalmente do nãotratamento dos esgotos domésticos e industriais, pode ser verificado atravésdas estimativas de investimentos necessários ao setor: O comprometimentodo abastecimento para consumo humano é o principal problema a ser enfrentado.

A discussão da cobrança pelo uso da água já tem mais de uma década.Entretanto, começou a se cristalizar com o processo de implementação doSistema de Gerenciamento dos Recursos Hídricos através da lei estadual 7.663/91. Antes mesmo dessa lei, em 1987 foi criado do Conselho Estadual deRecursos Hídricos - CRH, que resultou na formulação da Política Estadual deRecursos Hídricos, na estruturação do Sistema Integrado de Gerenciamentode Recursos Hídricos e na formulação do Plano Estadual de Recursos Hídricos,aprovados através da lei 7.663/91 e vem sendo aprimorado com a atua-lização dos Planos Estaduais de Recursos Hídricos (1994/1995 - lei 9.034/94e 1996/1999 - PL 05/96 em tramitação na Assembléia Legislativa) ecom a regula-mentação dos instrumentos e mecanismos de gestão previstosna lei. Um desses mecanismos foi a aprovação da lei de Agência deBacia Hidrográfica.

Como já foi referido, a cobrança é um dos instrumentos de planejamentodo SIGRH e o projeto de lei 20/98 encaminhado à Assembléia Legislativa emdezembro de 1998, procura regulamentá-la. A discussão atual é se vale apena implantar as Agências de Bacia antes da cobrança. Isso porque, conformea lei 7.663/91, as Agências de Bacias somente serão criadas a partir do inícioda cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Como já dispomos da lei de criaçãodas Agências de Bacia (n° 10.020/98) e atualmente temos um PL sobre acobrança, será preciso coordenar isso com:

• plano de bacia hidrográfica submetendo-o ao Comitê de Bacia eencaminhando-o posteriormente ao CORHI, como proposta paraintegrar o Plano Estadual de Recursos Hídricos;

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• os relatórios anuais sobre a "Situação dos Recursos Hídricos da BaciaHidrográfica", submetendo-os ao Comitê de Bacia, encaminhando-osposteriormente, como proposta, ao CORHI;

• o gerenciamento dos recursos financeiros do FEHIDRO pertinentes àbacia hidrográfica, gerados pela cobrança pelo uso da água.

A experiência tem demonstrado que novos impostos, taxas e tarifas,via de regra, não garantem a reversão de benefícios ou do objetivo ori-ginalmente previsto. Assim, o problema permanece e os recursos financeirosacabam se perdendo nos meandros da burocracia. Para a questão da cobrança,precisaremos estar atentos a isso e discutir exaustivamente essa questão. Seantes as dificuldades na implantação da cobrança pela utilização da água sereferiam sobretudo ao convencimento dos usuários e futuros pagadores, hoje,passados quatro anos, a pré-disposição ao pagamento pela utilização do recursohídricos está mais favorável. Entretanto, alguns segmentos ainda estão resistentes.

Os valores a serem cobrados ainda não estão regulamentados, emborapelas simulações realizadas pelo Consórcio contratado, já se tem alguns valoresde referência simulados, como por exemplo: se a cobrança fosse implementadanos 20 comitês de bacia, seria possível estimar um valor anual de R$ 440milhões para ser reinvestido nas mesmas. Algumas bacias têm comoperspectiva de arrecadação anual (em reais): Alto Tietê (175 milhões);Piracicaba (61 milhões); Baixada Santista (27 milhões) e Paraíba do Sul (27milhões). O CRH definirá apenas uma faixa máxima e mínima de valores aserem cobrados pelas categorias acima descritas. A fixação do apreçamentoda água possui uma série de variáveis que compõem o seu preço final, quaissejam: natureza do corpo d´ água, seu enquadramento, a disponibilidade hídricalocal, o volume captado, o consumo conforme seu uso, a sazonalidade, alocalização do usuário, entre outras.

Duas posições conflitantes aparecem no cenário paulista quanto àcompetência decisória sobre o emprego do produto da arrecadação da cobrança:se fica totalmente com a bacia de onde foi arrecadado ou se é dividido com oEstado para planos, programas e projetos de interesse estadual. Na falta de umcritério objetivo de rateio, um dos proponentes da divisão com o Estado defendeo percentual de 50%. Além desta proposta, existem outras que se encontram nasemendas ou nos substitutivos apresentados pelos deputados estaduais.

A outra questão de suma importância foi o veto na lei 10.020, de 3 dejulho de 1998, onde o Governo do Estado de São Paulo não aceitou comocomponente da receita das Fundações Agências de Bacias Hidrográficasos recursos provenientes da cobrança pela utilização dos recursos hídricos

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das respectivas Bacias. Na mesma lei fica delegado às Agênciasadministrar, efetuar a cobrança e gerenciar os recursos financeiros dasubconta do Fundo Estadual de Recursos Hídricos - FEHIDROcorrespondente aos recursos da Bacia.

Por outro lado, o artigo 7º dessa lei estabelece que o fluxo financeirodo produto dessa cobrança, aprovado pelo Comitê de Bacia, será estabelecidode comum acordo entre a Fazenda do Estado, a Agência e o FEHIDRO, deforma a garantir que o total dos recursos, assim que arrecadados na Bacia,estejam à disposição da Agência, em conta bancária por ela movimentada.

Note-se que o princípio da lei fixa a gestão autônoma, descentralizadae participativa. Obviamente, o veto acima referido e a atual pressão para queo PL 20/98 sobre a cobrança estipule que o DAEE seja o gerenciador dosrecursos arrecadados da cobrança pela bacia, ferem esse princípio.

O PL 20/98 entrou na Assembléia em fevereiro de 1998 já em caráterde urgência. Atualmente já conta com 102 emendas e dois substitutivos. Asquestões mais polêmicas das emendas ou dos substitutivos são quem deveadministrar os recursos do uso da água, se centralizada ou descentraliza-damente, e quem serão os usuários pagantes. Um movimento está sendoconduzido pelos comitês de bacia juntamente com várias entidades dasociedade civil, que defendem que os futuros recursos arrecadados dacobrança pela utilização dos recursos hídricos sejam realizados pela Agênciade Bacia Hidrográfica respectiva, sendo que 90% dos mesmos recursosdevem permanecer na bacia de origem. Conforme a lei 7.663/91 a Agência deBacia exercerá, entre outras funções, a de gerenciar os recursos financeirosdo FEHIDRO pertinentes à bacia hidrográfica, gerados pela cobrança pelouso da água.

Mesmo que a lei seja aprovada, ainda será preciso iniciar a cobrança,de forma gradual e em caráter piloto, pois é uma forma ainda inédita eprovavelmente sofrerá adequações. Dois princípios sobre a cobrança devemser diferenciados: o princípio poluidor-pagador e o princípio usuário-pagador.O primeiro é mais difundido nos países europeus, onde existe um acordocomum de gestão e controle dos recursos ambientais e estabelece que opoluidor deve arcar com os custos necessários à prevenção e ao combate àpoluição, para manter um meio ambiente saudável.

O princípio do poluidor-pagador foi introduzido no Brasil e tem umbom nível de aceitação porque há boa conscientização da sociedade e dosórgãos públicos sobre a necessidade de controle de poluição e há uma sériede regulamentações que já tratam do tema. O princípio usuário-pagador é de

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formulação mais recente e estabelece que os usuários de recursos naturaisdevem estar sujeitos à aplicação de instrumentos econômicos para que o usoe o aproveitamento desses recursos se processem em benefício da coletividade.Isso significa que esse princípio abrange a possibilidade de cobrança em todassuas formas de uso e aproveitamento da água, sem questionar se essa cobrançaé necessária ou desejável.

As principais dificuldades encontradas nos poucos países onde acobrança pelo uso dos recursos hídricos está implantada se refere ao aumentodo valor cobrado ao longo do tempo e à dificuldade em se cobrar de algunsusuários setoriais. Então, a implementação da cobrança pelo uso dos recursoshídricos estaduais deverá ocorrer segundo um plano de curto, médio e longoprazos, para os quais são estabelecidas as diretrizes e ações básicas necessáriasao sucesso do programa.

Provavelmente, a cobrança iniciará com um sistema simplificado econsistente, de fácil compreensão e aceitação pelos agentes envolvidos, bemcomo de fácil aplicação e controle, obedecendo a um processo de aprimo-ramento gradual e constante. Também atenderá à estratégia de implantaçãogradual, devendo ser aplicada, em caráter experimental, em bacias prioritárias.Os recursos hídricos serão cobrados segundo a orientação dos Planos deRecursos Hídricos das Bacias Hidrográficas, que são planos de longo prazo.Como os planos são discutidos em conselhos, como os comitês de bacia, trêsgrandes desafios vão se somar na questão da cobrança pelo uso da água:

a) a participação da sociedade - através de comitês regionais - nasdecisões que vierem a ser tomadas quanto à destinação dos recursosarrecadados;

b) a vinculação ou não de sua aplicação na região que originou taisrecursos; e

c) a racionalização do uso da água.

2.2 O Sistema Estadual de Meio Ambiente

O Sistema Estadual de Meio Ambiente permeia todos os demaissistemas e tem responsabilidades referentes à prevenção e controle dasatividades efetiva ou potencialmente poluidoras ou degradadoras do meioambiente. Além da licença ambiental, incumbe hoje à Secretaria do MeioAmbiente a expedição das licenças e aprovações previstas tanto nas leis deproteção aos mananciais da Região Metropolitana (leis 898/75 e 1.172/76),como na lei de zoneamento industrial metropolitano (lei 1.817/78).

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Note-se, entretanto, que o órgão colegiado desse sistema, o ConselhoEstadual de Meio Ambiente - CONSEMA, é centralizado, não estando previstasua descentralização através do funcionamento de outros órgãos colegiados aele vinculados, em bacias hidrográficas ou em unidades administrativas do Estado.

As atribuições do CONSEMA são mais voltadas para atividadesrelativas à elaboração de normas, discussões sobre matéria relativa aoestabelecimento e implantação da política ambiental do Estado, discussão eaprovação de estudos de impacto ambiental e outras, mas não para atividadesde "gestão", como aquelas atribuídas pela legislação aos colegiados queintegram os sistemas de unidades regionais e de recursos hídricos.

Atividades que causam significativo impacto ambiental são licenciadaspela Secretaria Estadual de Meio Ambiente após aprovação do EIA/RIMA edeliberação do CONSEMA. Tem-se buscado sistematicamente que as secretariasenvolvidas direta ou indiretamente na gestão das águas estabeleçam mecanismosintegradores efetivos dos sistemas de recursos hídricos, saneamento, meioambiente e uso e ocupação do solo. De forma geral, esta integração acaba sedando pela coordenação conjunta de programas e projetos e principalmente noplanejamento das ações intervenientes nas bacia. Com efeito, a efetividade dasações e funções públicas depende de um relacionamento interinstitucional eintra-institucional sistêmico que garanta a integraçãodas ações, muitas vezespulverizadas dentre os diversos locus institucionais.

Mesmo que aparatos sistêmicos institucionais coexistam no Estadode São Paulo, será necessário repensar como se dará o planejamentointegrado de todas as ações intervenientes em qualquer bacia. Um dospontos que deverão ainda ser resolvidos dentro do Sistema de MeioAmbiente e do SIGRH refere-se ao formato que será dado à integraçãoentre o gerenciamento dos recursos hídricos, o meio ambiente e o controledo desenvolvimento urbano e do uso e ocupação do solo, em especial nasregiões metropolitanas e conurbadas, em geral.

A gestão compartilhada em qualquer bacia pressupõe planejamentointegrado e partilha de responsabilidade entre os atores envolvidos. A gestãoregional para as bacia deverá contemplar esta complexa questão, uma vezque a interface entre todos esses sistemas é de extrema relevância para seusucesso. De outra forma, haverá grandes dificuldades de coordenação e,portanto, riscos para efetividade no futuro gerenciamento. Uma das maneirasencontradas para essa integração está na elaboração do Plano Estadual deRecursos Hídricos, onde se criou dentro do SIGRH, especificamente nasecretaria executiva do CRH, uma sistemática onde sentam as três secretariasresponsáveis diretamente pela gestão, elaborando assim, o PLANERH.

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2.3 O Sistema Estadual de Saneamento

A lei 7.750, de 31 de março de 1992, define orientações à PolíticaEstadual de Saneamento Ambiental, criando um Conselho Estadual deSaneamento - CONESAN. A lei institui mecanismos compulsórios deinformação, como os Planos Quadrienais Regionais de Saneamento Ambientale o relatório anual sobre a Situação de Salubridade Ambiental da Região(deve ser publicado até dia 30 de abril de cada ano, conforme artigo 9º da lei).São informações decorrentes de trabalho de planejamento, regulamentação econtrole a serem exercidos em nível estratégico, através da parceria entre astrês esferas de governo e a sociedade. Tanto a lei de saneamento como a derecursos hídricos têm entre si interfaces importantes e intrínsecas, quando setrabalha com conceitos de saneamento ambiental aliados à gestão regional.Existe igualmente um Conselho de Saneamento - CONESAN, de âmbitoestadual, e nas bacias hidrográficas estavam previstas (revogadas por portariado CONESAN) as CRESANs - Comissões Regionais de Saneamento, queseriam comissões paritárias entre o Estado, os municípios daquela unidadegeográfica e representantes da sociedade civil organizada, atuantes emsaneamento ambiental.

Os vinte fóruns já existentes, comitês de bacia hidrográfica - CBH(pertencentes ao Sistema Estadual de Recursos Hídricos) vão acomodar adiscussão também de saneamento ambiental. Isto é, vários CBHs já criaramsuas Câmara Técnicas de Saneamento para integrar as discussões de recursoshídricos e saneamento, principalmente para a elaboração dos Planos de Bacia,cuja maior parte se refere ao tratamento de esgoto. Assim, o Sistema Estadualde Saneamento ficou enxuto. O desenho abaixo reproduz a arquitetura doCONESAN2, com suas Comissões Especiais, e a Secretaria Executiva doCONESAN (prevista no artigo 21 da lei 7.750/92 e suas Câmaras Técnicas).As primeiras são de Gestão de Recursos Financeiros e Comissão de AssuntosJurídicos e Institucionais, e as três Câmaras Técnicas são:

• Câmara Técnica de Planejamento - deve elaborar relatórios técnicossobre a Situação de Salubridade Ambiental do Estado de São Paulo,bem como a evolução de indicadores sanitários de saúde e ambientais,a caracterização qualitativa e quantitativa da prestação dos serviçospúblicos de saneamento e as tendências projetadas da oferta e demanda.Deve propor diretrizes para a formulação de programas anuais deaplicação de recursos;

2 O CONESAN é composto de forma paritária (com 12 votos cada um) por representantes do governoestadual, sendo 9 secretários de Estado e de entidades da administração indireta; de representantes dosmunicípios e da sociedade civil.

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• Câmara Técnica de Resíduos Sólidos - deve realizar diagnóstico geralno Estado de forma a regionalizar a análise desta problemática,propondo alternativas institucionais para o manejo de resíduos sólidos;

• Câmara Técnica de Acompanhamento da Regulação do Setor deSaneamento - deve promover o debate e contribuir com proposições naelaboração dos estudos relacionados ao estabelecimento do marcoregulatório da prestação de serviços de saneamento;

• Comissão de Assuntos Jurídicos Institucionais - deve analisar, propore acompanhar a formulação de legislação federal e estadual relativa asaneamento, buscando integrar e compatibilizar o SESAN - SistemaEstadual de Saneamento, o SIGRH e o Sistema Estadual de MeioAmbiente e ainda analisar e acompanhar a formulação, estabelecimentoe aplicação da legislação relativa a concessões e permissões de serviçopúblico do setor.

Como o saneamento é um dos usos consuntivos da água, vale a penaressaltar que a unidade federada mais populosa da federação tem mais de 625municípios, sendo que a Sabesp presta serviços a mais de 360. Na outra metadedos municípios, os serviços são prestados de forma autônoma, seja atravésde um departamento ou serviço vinculado diretamente à prefeitura, seja atravésde autarquia municipal ou mesmo de companhia municipal ou ainda umaconcessão à iniciativa privada.

Quadro 1 - Sistema Estadual de Saneamento

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Alguns anos atrás, a Sabesp num processo de reorganização internaoptou pela parceria, seja com municípios ou a iniciativa privada, e adescentralização da empresa. A reorganização da Sabesp implicou na mudançade sua estratégia de inserção no Estado de São Paulo, na tentativa de um novopadrão de relacionamento com o poder concedente e buscou também novasmodalidades de financiamentos, seja através de concessões, terceirização,parcerias ou de subconcessões.

Essa descentralização se constituiu em formação de dezesseis unidadesde negócio, tomando por base a divisão interna por superintendências regionaisque a Sabesp atuava, e hoje corresponderiam a uma regionalização por baciashidrográficas.

Maior companhia de saneamento básico do país, a Sabesp passou essesdois últimos anos se defendendo da privatização e discutindo a viabilizaçãode um parceiro estratégico para a empresa, o que não aconteceu ainda, poruma série de razões, entre as quais: a pressão dos sindicatos e funcionários, ocalendário eleitoral do ano passado, a não aprovação do PL 266/96, que deuuma certa insegurança aos possíveis investidores, queda do valor das açõesda Sabesp nas Bolsas de Valores e, paradoxalmente, o bom desempenho daempresa, tanto financeiramente como na captação de novos clientes (osmunicípios). Permanece o interesse do governo estadual na venda das açõesda Sabesp, pois a Secretaria da Fazenda pretende reduzir a dívida pública doEstado de São Paulo.

Na esteira da privatização ou não da Sabesp, igualmente, nos doisúltimos anos, a Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras teveuma preocupação crescente em constituir um marco regulatório para o Estadode São Paulo. Foi criada, assim, como referido, uma Câmara Técnica deAcompanhamento da Regulação do Setor de Saneamento pertencente aoConselho Estadual de Saneamento - CONESAN, fazendo várias contribuiçõesao anteprojeto de lei que institui a Agência Reguladora de Serviços deSaneamento Básico do Estado de São Paulo - ARSAN.

A questão da jurisdição da titularidade nos três níveis de governo paraa realização de concessões de saneamento e a definição mais clara da estruturade competências de Região Metropolitana versus autonomia municipal foramtambém objeto de preocupação dos segmentos envolvidos no setor. Após muitapolêmica, o Estado de São Paulo tem sua primeira versão de poder reguladorde saneamento básico, que já foi aprovada no CONESAN e será enviado aAssembléia Legislativa. A ARSAN irá regular o serviço de saneamento básico(portanto de forma setorial, diferentemente de alguns estados que optaram

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pela regulação de serviços públicos), atuando em nome do poder concedente,que passará à ARSAN essa competência através de convênio.

No anteprojeto paulista, a ARSAN atuaria em nome do poderconcedente. Repare que o poder concedente não está definido explicitamentecomo sendo o município seu absoluto titular. Pois, quando se tratar de regiõesmetropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, cujos serviços desaneamento forem identificados como de função pública de interesse comum,o poder concedente pode variar.

A ARSAN terá três conselheiros, que tomarão as decisões e serãoindicados pelo CONESAN, um de cada segmento: do Estado, dos municípiose da sociedade civil, nomeados pelo governador, após a aprovação naAssembléia Legislativa.

Em relação à ARSAN, o anteprojeto a ser negociado deverá ser enviadoà Assembléia Legislativa. Sem a harmonização dos poderes concedentesmunicipais, e portanto, potenciais poderes reguladores, com o futuro poderestadual as disputas permanecerão. Disputas entre esferas isonômicas degoverno não ajudarão na construção de um arcabouço institucional para osetor. A conjuntura é de negociação e cooperação. Existem inúmeros casosem que o enfoque somente do ponto de vista municipal não resolve, comofunções compartilhadas, no caso dos mananciais, macro-adução, resíduoslançados à jusante, etc. que precisam de soluções negociadas. Caso ocorra aprivatização da Sabesp3, o poder regulador estadual deverá ser robusto ereforçado, evitando possíveis distorções na prestação do serviço, discutindo-se o locus de "monitoramento" em relação às regras das concessões.

Mesmo que vários modelos institucionais de prestação de serviços desaneamento coexistam no Estado de São Paulo, isto é, prestadores públicosmunicipais, prestadores privados, consórcios municipais, prestador publicoestadual e futuramente, talvez, regional, isso implica necessariamente naimplementação de um arcabouço institucional mais ordenado e um poderregulador de âmbito estadual, orientando a partilha de responsabilidade tantodos prestadores de serviços públicos ou privados e do Estado. Da mesmaforma, os 280 municípios autônomos, que também como poderes concedentespoderiam estar criando seus respectivos poderes reguladores ou realizandoum convênio4 com o futuro poder regulador estadual.3 Se ocorrer a privatização da Sabesp, a questão da titularidade assumirá maior relevância, pois teríamosvárias alternativas possíveis de disputa pelo mercado: i) concessionárias públicas regionais; ii)concessionárias públicas com participação privada; iii) concessionárias regionais públicas e privadas.4 Na concepção do marco regulatório de São Paulo, a proposta que permaneceu foi a celebração deconvênio entre municípios autônomos que queiram delegar ao poder regulador estadual as funçõesregulatórias pertinentes aos poderes concedentes.

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2.4 A reorganização regional do Estado de São Paulo

A Constituição Federal, em seu artigo 25, estabelece como competênciada esfera estadual a instituição, mediante lei complementar, de regiõesmetropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões com o propósitode integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicasde interesse comum.

A Constituição do Estado de São Paulo, desenvolvendo o espaço criadopela Constituição Federal, reservou o capítulo II à Organização Regional, noqual são definidos seus objetivos, tais como os conceitos de regiãometropolitana, aglomeração urbana e microrregião.

A forma de organização a ser adotada em cada unidade regional, sejaela qual for, deve ter conselhos de caráter normativo e deliberativo quegarantam a participação popular no processo de planejamento, de tomada dedecisões e de fiscalização em nível regional.

Fundamentada nas determinações constitucionais, a Secretaria dePlanejamento e Gestão do Estado de São Paulo coordenou vários estudosvoltados à definição de uma nova divisão regional do Estado. Entre outros,foi desenvolvido pela EMPLASA estudo que resultou na definição de trêsregiões metropolitanas ( São Paulo, Campinas e Santos), quatro aglomeraçõesurbanas (São José dos Campos, Sorocaba, Ribeirão Preto e Jundiaí) e setemicrorregiões.

Não tendo havido consenso sobre as diferentes propostas apresentadas,não foi possível chegar a acordo que viabilizasse encaminhamento de propostaà Assembléia Legislativa para a institucionalização da nova regionalizaçãodo Estado e respectiva constituição dos conselhos regionais.

Contornando essas dificuldades, foi encaminhado projeto de lei queveio a ser aprovado em data de 01/08/94, sob o número 760, em que sãodetalhados os critérios para a criação de novas regiões no Estado. Essa leiestabelece os campos funcionais que poderão ser considerados de interessecomum das entidades regionais, quais sejam: i) planejamento e uso do solo;ii) transporte e sistema viário regionais; iii) habitação; iv) saneamento básico;v) meio ambiente; vi) desenvolvimento econômico; vii atendimento social.

Assim, para a eficácia das disposições da lei complementar 760/94 sefaz necessária a adoção de uma série de providências legais e administrativas.O desenvolvimento urbano5, cujo controle, hoje, é de competência da esfera5 A política urbana em nível nacional vem sendo debatida há muitos anos sem que tenha sido possívelconsolidar um corpo legal que respalde a ação municipal no exercício de sua competência no controle dodesenvolvimento urbano e que estabeleça normas capazes de orientar o desenvolvimento dos conflitosentre a autonomia municipal e interesses regionais ou supramunicipais.

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municipal, exige nestes casos instâncias de decisão regionais para a discussãodos problemas de caráter comum. O controle do desenvolvimento urbano,por outro lado, exige a implementação de instrumentos mais eficientes quedependem ainda de regulamentação federal para que seja viabilizada a suaaplicação.

3. Considerações sobre o arcabouço institucional do Estado de SãoPaulo e suas interfaces de recursos hídricos com meio ambiente,saneamento e sua organização regional

Como foi visto de forma sucinta, o governo do Estado aprovoulegislação tanto para saneamento ambiental (lei 7.750/92) quanto de recursoshídricos com arcabouço institucional estadual aprovado e regulamentado (lei7.663/91), composto de Sistema Integrado de Gerenciamento de RecursosHídricos, com um conselho estadual (Conselho Estadual de Recursos Hídricos- CRH), e vinte comitês de bacia já em funcionamento.

No arcabouço jurídico-institucional do Estado deve-se agregar o SistemaEstadual de Meio Ambiente e a lei complementar 760/94 (ainda não regu-lamentada), que instituiu a organização regional do estado de São Paulo edeverá complexificar ainda mais a questão da gestão regional.

Como se pôde observar, são quatro sistemas intrinsecamente vinculados,que propõem normas, parâmetros, critérios etc. Isso sem considerar outrosaspectos do saneamento ambiental que envolvem as áreas de saúde pública,disposição de resíduos sólidos e nenhuma estratégia institucional estadualmais organizadora que coordene políticas e diretrizes regionais e estaduais.

Para complexificar ainda mais essa questão, há um anteprojeto do PoderExecutivo criando um poder regulador de saneamento ambiental que deverárealizar a conexão entre essas diversas interfaces setoriais. O poder reguladorestadual paulista será somente para saneamento ambiental, mesmo que issoenvolva os outros três sistemas.

Se de forma geral já existia uma regulamentação anterior do Estado,que se concentrava no processo administrativo, como viu-se nos quatrosistemas, e agora pretende-se regular resultados dos prestadores de serviço, aexistência de poderes reguladores setoriais para São Paulo num determinadoempreendimento que envolve os quatro sistemas, como regular pedaços domesmo? Exemplo: captação de água, empreendimento que pressupõe aspectosregionais (como o desenvolvimento regional), discussão da titularidadenos municípios, uma vez que o recurso hídrico passará em diversas

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municipalidades. Implicará também na distribuição desse bem, que pode serrealizada por um concessionário estadual, municipal ou privado. E, por fim, aoutorga (quantidade da água a ser captada) e a qualidade do recurso (análisefeitas pela CETESB).

Os sistemas acima ou seus subconjuntos podem prenunciar grandesdificuldades de coordenação e, portanto, riscos potenciais de conflito. Cadaum dos sistemas - de recursos hídricos, saneamento e meio ambiente - tematividades e produtos afins, por exemplo, no Plano Estadual de RecursosHídricos, grande parte das ações previstas para a Região Metropolitana deSão Paulo é tratamento de esgoto; no caso de meio ambiente, a preservaçãode mananciais é fundamental para garantir o abastecimento de água. Assim,essa compatibilização precisa de uma arquitetura institucional integradoraque defina funções programáticas, reguladoras e produtivas.

Algumas das funções reguladoras estão até previstas quando da criaçãodas instâncias colegiadas de cada um dos sistemas, mas, sem que haja umapolítica claramente indicativa e integradora para o setor de saneamento baseadanum plano diretor que obrigue os três níveis de governo, intra einterarticuladamente, a promover a convergência de ações.

4. A matriz integrativa de experiências relevantes das bacias doGuarapiranga, do Paraíba do Sul e do Piracicaba

Geralmente as demandas em espaços institucionais geram processosde trabalho que cortam vários setores e fronteiras organizacionais, o que tornadifícil atuar em rede, com desenvoltura e eficácia uma organização ou a umespaço institucional que não tenham sido projetados adequadamente.

Nem sempre é possível reformular instrumentos legais e competênciasjá instaladas no curto e médio prazos para garantir o livre fluxo destes processosde trabalho e a transparência de sua operação aos consumidores-usuários.

O Estado de São Paulo tem acumulado algumas experiências muitorelevantes em bacias hidrográficas, do ponto de vista da gestão intersetorial einstitucional das mesmas. Foram escolhidas três experiências: duas dosprimeiros comitês de bacia implantados, do Piracicaba e do Alto Tietê, pelasua criticidade, amadurecimento de seus atores envolvidos no processo e pelasua importância. A terceira experiência é da Bacia do Paraíba do Sul. Suarelevância se dá pelo fato de ser uma bacia interestadual, sendo preciso elaborarum modelo de gestão que contemplasse a participação, além da circunscriçãoSão Paulo, dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

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Outro fator em comum nestas três bacias é que elas obtiveram, de fontesvariadas, recursos financeiros que alavancaram o amadurecimento de suasdiscussões sobre gestão e colocaram perspectivas institucionais bastantefocalizadas. Poderíamos relacionar outras características comuns entre essastrês experiências:

a) a definição de uma base territorial ou definição de um perímetrohídrico de gestão, que em geral é a bacia hidrográfica;

b) a existência de um nível de organização comunitária visando a am-plitude de participação;

c) a existência de instrumentos de disciplinamento e de sanção, isto é,instrumentos regulatórios;

d) mecanismos de instrumentação técnica dos sistemas;e) a cobrança pela utilização do recurso hídrico;f) definição institucional da unidade regional, dos gerenciadores e dos

usuários como co-responsáveis pela gestão;g) a gestão da água se estabelecendo nos níveis nacional, regional e

local.

Guarapiranga

A Bacia do Guarapiranga, pertencente a Bacia do Alto Tietê, obteverecursos advindos do Banco Mundial para a viabilização de um sistema degestão que contemplasse os inúmeros problemas que interferiam na questãohídrica do manancial. A proposta que está sendo implementada foi iniciadacom a identificação de que nenhum dos sistemas setoriais do Estado, seja deRecursos Hídricos, Saneamento Ambiental, Meio Ambiente ou de OrganizaçãoRegional abrangiam, em seu escopo, a totalidade das competências necessáriasà gestão da Bacia do Guarapiranga.

A nova proposta de arquitetura institucional teve o que se chamou deexcepcionalização com relação aos sistemas existentes. O braço regional daAgência do Ato Tietê, vinculado ao Subcomitê da Bacia do Guarapiranga,exercerá algumas das funções previstas em cada um deles, ou seja, nalegislação que disciplina as Unidades Regionais do Estado e que seriamdesenvolvidas por órgãos integrantes do Sistema Metropolitano (leicomplementar 760/94) e naquelas atinentes ao Sistema Integrado de Gestãodos Recursos Hídricos do Estado de São Paulo (lei 7.663/91), sem mencionaro sistema ambiental que permeia todos os demais.

Essa opção pela inserção da Agência de Bacia pressupõe o desafio dacompatibilização entre os mesmos, sem relacionar as interfaces com outras

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áreas, como saúde, habitação, saneamento, uso do solo e manejo de mananciais.Atualmente, a Secretaria de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras e a UGP- Unidade de Gerenciamento do Programa Guarapiranga, conjuntamente comos atores atuantes na Bacia, entendem que, para a concretização e cristalizaçãoda gestão, é importante a criação da Agência de Bacia do Alto Tietê, bemcomo seu braço regional do Guarapiranga para o fortalecimento das açõesnecessárias, chegando a um novo patamar de gerenciamento da Bacia para aexecução e fiscalização dos estudos técnicos relativos à implementação daspolíticas e iniciativas preconizadas no PDPA - Plano de Desenvolvimento eProteção Ambiental da Bacia do Guarapiranga, bem como dos instrumentostécnicos de gestão e monitoramento a serem utilizados futuramente pela Agência.

De forma inédita, o Programa da Bacia do Guarapiranga criouinstrumentos, entre outros, que depois foram aproveitados para outras bacias,quais sejam:

• o próprio Plano de Desenvolvimento e Proteção Ambiental da Baciado Guarapiranga - PDPA, envolvendo estudos de caráter interdis-ciplinar, focalizando as várias vertentes da gestão da bacia doGuarapiranga - técnica, administrativa, legal, político-institucional,econômico-financeira e operacional - resultando na formulação emanutenção de um arcabouço técnico, jurídico e institucional capaz deassegurar e de perenizar as intervenções de proteção e desenvolvimentoambiental; do correspondente equacionamento econômico-financeiroe de instrumentos técnico-gerenciais de apoio às decisões dos diferentesórgãos atuam na bacia.

• o Modelo de Correlação Uso do solo x Qualidade das Águas, consistenteem um modelo matemático, que analisa as relações de causa e efeito entreas cargas poluidoras na origem e a poluição dos rios e do reservatório,orientando a escolha do cenário desejável de ocupação da bacia e o processode monitoramento desse cenário, subsidiando ainda a tomada de decisãoquanto à implantação de empreendimentos.

• um Sistema de Informações Gerenciais (SIG), constituído por umbanco de dados digitalizado, apoiado em um sistema de informaçõesgeográficas contendo os dados ambientais da bacia, as informaçõesnecessárias para a gestão e aquelas de apoio informativo a todos osagentes públicos e privados que atuem na bacia.

• um Programa de Monitoramento da Qualidade da Água.

O desenho da gestão do Guarapiranga significou, há uns quatro anosatrás, um desenho ousado, que mantinha sua base no SIGRH, mas contava

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com uma boa dose de excepcionalização. Foi o primeiro programa de recursoshídricos que considerou, de forma legal e de fato, a incorporação de outroselementos setoriais, principalmente do uso e ocupação do solo para uma gestãomais efetiva para a bacia.

Paraíba do Sul

No caso da bacia do rio Paraíba do Sul, sua caracterização institucionalse baseia, primeiramente na Constituição Federal de 1988: "à União pertencemos lagos, rios e quaisquer correntes de água que banhem mais de um Estado".Assim, o rio Paraíba do Sul é de domínio da União, isto é, o gerenciamentodas águas de suas bacias hidrográficas deve ser feito em articulação entre aUnião e os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Isso significaigualmente que a gestão da bacia do rio Paraíba do Sul, pelas disposições dalei federal 9.433, de 8/1/97 sobre a Política e o Sistema Nacional de Gerencia-mento de Recursos Hídricos, deve ser aplicada em harmonia com a lei 7.663,de 30/12/91, do Estado de São Paulo e a lei 11.504, de 20/6/94, do Estado deMinas Gerais, e em lei análoga que eventualmente for aprovada no Estado doRio de Janeiro.

Como o rio Paraíba do Sul é o principal manancial de abastecimentoda Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com captação situada a jusantedo trecho paulista, bastante industrializado, o gerenciamento de recursoshídricos da bacia passa a ter componentes políticos muito fortes. A tônicado desenho concebido para a Bacia do Paraíba do Sul, em seu PQA, doponto de vista institucional é baseada nas negociações entre a União e ostrês Estados.

Aproveitou-se, obviamente o comitê federal criado pela solução deconsenso, objeto do decreto federal 1.842, de 22 de março de 1996, queestabeleceu a criação de Comitê para Integração da Bacia Hidrográfica doRio Paraíba do Sul - CEIVAP, composto por 3 representantes federais (MeioAmbiente e Recursos Hídricos, Minas e Energia e Planejamento e Orçamento)e 12 representantes de cada Estado (de São Paulo, Minas Gerais e Rio deJaneiro) além de representantes dos Estados indicados pelos respectivosGovernadores, por Prefeitos Municipais, entidades da sociedade civil eusuários de recursos hídricos, garantindo-se a estes, no mínimo, 50 por cento darepresentação estadual.

A alternativa institucional escolhida pelo Comitê de Bacia do Paraíbado Sul paulista foi a estruturação (em vias de) de uma Agência de Bacia no

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trecho São Paulo, que com isso preservaria os modelos de gerenciamento derecursos hídricos implementados nos trechos de SP, MG e RJ, oferecendomaior efetividade do sistema operacional de gestão da Bacia, comofiscalização, monitoramento, operação de sistemas de saneamento básico,uso e ocupação do solo, entre outros. Além de respeitar as etapas, fases edificuldades do processo de gestão e de maturidade institucional de cada umdos estados e da própria União. Essa opção, o CBH Paraíba do Sul oferecemaior aderência e legitimidade social nos colegiados/comitês estaduais e nafutura implementação da cobrança pelo uso da água, aumentando a sinergiagerencial do gerenciamento de recursos hídricos com os outros setores(ambiental, saneamento, resíduos sólidos, uso e ocupação do solo).

O que se pode apreender dessa experiência é que é possível convivercom diversos sistemas de gestão que podem conversar entre si, desde quehaja disposição para negociar, articular e priorizar uma visão compartilhadaintersetorial, integrada, participativa e descentralizada da gestão de recursoshídricos, estabelecendo sinergia entre a capacidade local, regional e estaduale a alocação de recursos financeiros federais e internacionais.

O mais importante neste modelo é que se respeita o federalismo cooperativopreconizado pela Constituição e pelo arcabouço jurídico institucional de recursoshídricos, buscando a compatibilização, sinergia e cooperação entre as açõesa cargo das esferas federal, estaduais e municipais, visando harmonizar interessesinterestaduais, supramunicipais ou regionais com interesse de caráter local.

Questões como uso e ocupação do solo, de saneamento, energia,transporte, que permeiam os sistemas de meio ambiente e recursos hídricos,exigem que visões locais e regionais sejam conciliadas e negociadas.

Piracicaba

No caso da Bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí, como primeiroComitê de Bacia implantado, a discussão já está bem mais amadurecida e suapreocupação se remete já à efetiva implantação da Agência PCJ, bem comoà estruturação de seu fluxo financeiro, como parte integrante e complementardo processo de consolidação da Política e do Sistema de Gerenciamento deRecursos Hídricos do Estado de São Paulo.

Essa consolidação perpassa pelo aprofundamento das discussões arespeito do modelo gerencial da Fundação Agência de Bacia PCJ, para permitirque, à época da implantação do sistema de cobrança pelo uso da água, essesdois elementos funcionem de forma integrada.

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A preocupação do CBH-PCJ em estruturar o fluxo financeiro dacobrança pela utilização do recurso hídrico era saber qual o recurso financeirodisponível - seja da cobrança ou do FEHIDRO - para a execução dos planos eprogramas aprovados pelo CBH-PCJ. Como já foi referido o anteprojeto delei encaminhado à Assembléia, que dispões sobre a cobrança pela utilizaçãodo recursos hídricos do domínio do Estado de São Paulo, a discussão atual ése vale a pena implantar as Agências de Bacia antes da cobrança. Isso porque,conforme a lei 7.663/91, as Agências de Bacias somente serão criadas a partirdo início da cobrança pelo uso dos recursos hídricos. Como já dispomos dalei de criação das Agências de Bacia (10.020/98), resta a compatibilizaçãodesta lei com o anteprojeto que está na Assembléia.

O CBH-PCJ está discutindo duas posições conflitantes quanto àcompetência decisória sobre o emprego do produto da arrecadação dacobrança, se fica totalmente com a bacia de onde foi arrecadado ou se é divididocom o Estado para planos, programas e projetos de interesse estadual. Nafalta de um critério objetivo de rateio, um dos proponentes da divisão com oEstado defende o percentual de 50%. A posição do CBH-PCJ é a permanênciana Bacia do valor total dos recursos arrecadados pela cobrança.

Com os relatos sucintos dessas três experiências, procurou-se demonstrarque em algumas bacias paulistas a discussão está bastante amadurecida e variada.A questão da implantação da cobrança e da agência de bacia, de forma quecontemple a execução de projetos de forma multi-objetivo e inter-setorial, já fazparte da pauta de nosso arcabouço. Obviamente, que os setores fazem de tudopara manter seus locus de poder e obstaculizam muitas vezes a integração dossistemas. Mas os atores envolvidos têm percebido que programas e projetossetoriais levam ao desperdício de recursos públicos e de tempo, enfraquecendo agestão e o compartilhamento de responsabilidades.

5. Perspectivas

A Constituição Federal de 1988 dispõe que é competência da Uniãolegislar privativamente sobre águas6 e que é de competência comum da União,dos Estados e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluiçãoem qualquer de suas formas. Além disso, estabelece que compete à União,aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre defesa dosolo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição,responsabilidade por dano ao meio ambiente e proteção e defesa da saúde.6 O Código de Águas, decreto federal 24.643, de 10/7/34 e as modificações nele introduzidas pela lei9.433/97, sobre o gerenciamento de recursos hídricos.

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Na reestruturação da Administração Federal, ocorrida em janeiro de1995, foi criado o Ministério do Meio Ambiente7 , dos Recursos Hídricos eda Amazônia Legal - MMA e, neste, a Secretaria de Recursos Hídricos,cabendo ao Ministério, dentre outras, as seguintes atribuições:

• planejamento, coordenação, supervisão e controle das ações relativasao meio ambiente e aos recursos hídricos;

• formulação e execução da política nacional do meio ambiente e dosrecursos hídricos.

A sanção da lei 9.433/97 instituiu a Política Nacional de RecursosHídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos(SINGREH), encerrando um longo período de debate parlamentar sobre otema e inaugurando uma fase de intenso trabalho e esforço para o setor derecursos hídricos do País, com vistas à:

a) regulamentação do arcabouço legal definido;

b) à estruturação do SINGREH.

O Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos -SINGREH, tem sua estrutura integrada por um Conselho Nacional de RecursosHídricos; Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos; Comitês de BaciasHidrográficas; Agências de Água; e órgãos dos governos federal, estaduais emunicipais de gestão de recursos hídricos. O Conselho Nacional de RecursosHídricos será o órgão máximo normativo e deliberativo com atribuições de:

a) promover a articulação do planejamento de recursos hídricos comoutros planejamentos8 ;

b) acompanhar a execução do Plano Nacional de Recursos Hídricos;

c) estabelecer critérios gerais para a outorga de direitos de uso dosrecursos hídricos e para cobrança pelo seu uso.

Os Comitês de Bacias Hidrográficas terão competências de arbitrarconflitos, aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia, estabelecer os meca-nismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a seremcobrados. As Agências de Água (agora no novo projeto, denominadas agênciasde bacia) serão responsáveis pela cobrança pelo uso de recursos hídricos eexercerão a função de secretaria executiva do Comitê de Bacia Hidrográfica.7 A Política Nacional do Meio Ambiente foi fixada pela lei 6.938, de 31/8/81 e, com relação às águas aresolução CONAMA 20, de 18/6/86,dispõe sobre o enquadramento dos corpos de águas em classes deuso preponderante.8Pode-se entender que os usos da água, sejam energéticos, de saneamento, hidrovia, etc, terão quecompatibilizar seus planejamentos segundo as diretrizes e a competência jurídico-institucional jáestabelecida no MMA.

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Observe-se que recentemente foi enviado projeto de lei que dispõe sobrea gestão administrativa e a organização institucional do Sistema Nacional deGerenciamento de Recursos Hídricos de que trata o inciso XIX do art. 21 daConstituição, criado pela lei n.º 9.433, de 8 de janeiro de 1997, e estabelece,por recomendação desta lei, as normas gerais a serem observadas na criaçãode Agência de Bacia. O referido projeto de lei define conceitos e procedimentosde outorga de direito de uso de recursos hídricos, a competência para cobrançapelo uso da água, procedimentos e fatos que podem implicar a suspensão daoutorga ou o racionamento dos usos e dispõe sobre o relacionamento a adotarquando uma bacia hidrográfica contiver corpos hídricos da União e dos estados.Estabelece, igualmente, procedimentos a serem adotados nos casos de usodas águas para aproveitamento do potencial hidráulico.

O projeto a ser encaminhado ao Congresso Nacional ainda trata dasAgências de Bacia, que poderão ser entidades, preferencialmente com naturezajurídica de fundação, ou seja, de direito privado, sem fins lucrativos, instituídaspor comitês de bacia hidrográfica para atuar como suas secretarias executivas.As Agências de Bacia, assim constituídas, estarão credenciadas para exerceras principais funções de gerenciamento de recursos hídricos na circunscriçãoda bacia hidrográfica, podendo inclusive firmar contratos de gestão com órgãose entidades estaduais que detenham poder de outorga dos recursos hídricos.

Há também outro projeto de lei que dispõe sobre a criação da AgênciaNacional de Águas - ANA, entidade que terá a função de promover odesenvolvimento do Sistema Nacional de Gerenciamento de RecursosHídricos, previsto no inciso XIX do art. 21 da Constituição e criado pela lei9.433, de 8 de janeiro de 1997. A proposta prevê que a ANA será uma autarquiasob regime especial, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com autonomiaadministrativa e financeira, mandato fixo e estabilidade de seus diretores.

Observe-se que o âmbito federal tem uma dificuldade ainda maior detrabalhar de forma intersetorial e integrada. Setores de meio ambiente,saneamento e saúde navegam em vias próprias. Está-se criando uma agênciade regulação para o setor hídrico. No setor de saneamento de âmbito federalnão foi diferente. Embora o projeto não criasse uma agência setorial desaneamento federal, foi apresentado um anteprojeto de lei sobre as Diretrizespara a Concessão e Permissão dos Serviços Públicos de Saneamento, daRegulação e Controle de sua Prestação, n° 266/96, do Senador José Serra9 .

9 Dentro do arcabouço institucional a ser implementado, o governo federal entende que a regulação –como um de seus componentes - é uma obrigação do poder público, independente se os prestadores dosserviços forem públicos ou privados. Como saneamento é um monopólio, o poder regulador deve asseguraroperadores público e privado eficientes, evitando o abuso econômico e os desequilíbrios contratuais.

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O referido projeto causou muita controvérsia entre os segmentos envolvidosno setor de saneamento ambiental, pois uma das leituras realizadas era que oprojeto "cassava" a competência de poder concedente dos municípios, quando setratava de prestação de serviços de saneamento em regiões metropoli-tanas,aglomerações urbanas e microrregiões. É preciso ressaltar que a autono-miamunicipal entre municípios pertencentes a uma Região Metropolitana - RM deveser diferentemente entendida, pois a RM pressupõe um sistema de articulação ecoordenação de funções públicas de direito comum, que poderia ser decompetência do Estado, com o adicional de que os municípios também decidemsobre as questões pertinentes à RM, mas sob a ótica da realidade de RegiãoMetropolitana. No caso específico da Região Metropolitana de São Paulo issoestá intrinsecamente vinculado a gestão por bacia hidrográfica.

Assim, o artigo 25 da Constituição Federal, que prevê a organização deregiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões será o alvo dediscussão do novo projeto, caso volte a ser discutido no Congresso. Dúvidas,portanto, que merecem ser exaustivamente discutidas com todos os envolvidosem recursos hídricos e saneamento ambiental para o atual projeto emtramitação no Congresso Nacional que define a concessão, a regulação e ocontrole da prestação de serviços de saneamento.

Da mesma forma, na esteira de competências comuns, há a necessidadede articular os esforços institucionais, administrativos, técnicos, operacionaise financeiros das unidades federadas e dos respectivos municípios envolvidos,em conjunto com a União, com o fim de correlacionar as ações de regulação,organização, planejamento, programação orçamentária e atividades operacionaisde intervenção sobre a bacia hidrográfica em rios denominados federais.

Atribuições normativas em bacias com rios federais, por exemplo,exigem exercício articulado e integrado de múltiplas competências das váriase diferentes agências governamentais de todos os níveis de governo de nossafederação, pois o sistema nacional de recursos hídricos compreende não só osrios federais, mas algo mais abrangente quando se trata do gerenciamento desuas águas, envolvendo todo o território do entorno dos cursos d'água, o queimplica necessariamente a atuação de todos os níveis federais de governo, deforma articulada e integrada.

A experiência do PQA do Paraíba do Sul, uma bacia interestadual,deu-nos a noção de que interesses nacionais não se referem apenas a umaEntende-se como marco regulatório o conjunto de normas, decretos, leis e parâmetros de qualidade paraa prestação de serviços de saneamento básico e de alguns aspectos de saneamento ambiental. No caso dosetor de saneamento ambiental, o que será necessário regular são os serviços prestados, sejam eles públicosou privados. Se deverá, portanto, regular os serviços de abastecimento de água, esgotamento e resíduossólidos, a qualidade dos serviços prestados, bem como sua qualidade, as tarifas cobradas pertinentes aestes serviços e a proteção ambiental.

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ordem governamental parcial federal, estadual, distrital ou municipal, massim de todo país, implicando interesses cujas responsabilidades distribuem-se em todas unidades federadas, sem distinção. O nível federal não é o global,é uma das partes do global, do nacional, incluindo a participação de todos osdemais entes federativos. Não havendo superioridade hierárquica entre os entespolíticos federados, autônomos na forma da Constituição, a compatibilizaçãodos interesses nacionais, estaduais, regionais e locais será feita mediante amplaarticulação entre as autoridades desses entes político-administrativos,especialmente quando suas intervenções estejam comprometidas de modorecíproco, demandando respostas conjuntas e integradas.

É pouco adequado que a União exija, de repente, que os sistemasestaduais se alinhem ao novo Sistema Nacional de Recursos Hídricos. É precisoque as etapas institucionais dos estados sejam respeitadas e aqueles sistemas,como o do Estado de São Paulo, bastante amadurecido, possa alcançar demodo articulado e eficaz os objetivos do desenvolvimento sustentável. Estáclaro que esse processo só é possível de realizar-se com a participação dacomunidade, através da sociedade civil organizada e dos usuários dos serviçospúblicos da bacia hidrográfica. Portanto, as políticas nacionais devem serestabelecidas e implementadas sempre com a participação de todos os entespúblicos federados. A estes caberão, em última instância, a incumbência deimplementar, no exercício de suas competências, as diretrizes, normas e açõespertinentes da política nacional dos recursos hídricos. Nesse sentido, énecessário o consenso gradual, obtido através da negociação dos diferentesplanos, programas e projetos nacionais,

Nesse sentido, não se pode conceber que a participação das unidadesfederadas ou dos municípios no gerenciamento da bacia de rio federal sejamera contingência política ou permissão da União. É impossível ogerenciamento de bacia interestadual ou federal sem a participação das unidadesfederadas. Sobre o território da bacia hidrográfica imperam também as leisestaduais e municipais, o que demanda a mobilização das forças políticas,institucionais, administrativas, técnicas e financeiras desses entes federativos.

Da mesma forma, o comitê ou agência de bacia eventualmente criadaem nível nacional deve considerar já a existência de órgãos normativos, entesadministrativos ou unidades operacionais de natureza complementar e nãosimilar, de caráter estadual e municipal. A escala operativa deve semprepermanecer nos âmbitos locais ou regionais. A escala de coordenação podeser realizada conjuntamente com entidades de nível nacional, o que requergrande esforço de negociação política entre os Estados e a União.

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É o caso das atividades das Agências de Bacia, nacionais e estaduais,que devem ser antes de caráter complementar e não de superposiçãooperacional e normativa. É preciso flexibilizar o modelo institucional federal,de modo a contemplar formas diversas de resposta a problemas diferentes,conforme a situação singular de cada caso, de cada bacia hidrográfica.

O papel principal da União é o de definir uma instância de articulaçãoe coordenação, da qual todos participem paritariamente, e prevenir conflitosem rios que passam em mais de uma unidade federada. Trata-se, portanto, deconstruir uma integração institucionalizada entre os diversos planejamentossetoriais que terão que dialogar entre si, para a definição e priorização dosusos consuntivos da água.

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