1º CICLO - A TERCEIRA POTÊNCIA
VOLUME 2
P-6 - 10
2
O Herdeiro do
Universo
O Exército de Mutantes
Volume 6
O Exército de Mutantes
Invasão Espacial
Volume 7
Socorro Para a Terra
Volume 9
Base em Vênus
Volume 8
Batalha no Setor Vega
Volume 10
O Exército de Mutantes
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
O Herdeiro do
Universo
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O Exército de Mutantes
Invasão Espacial
Base em Vênus
Socorro Para a Terra
Batalha no Setor Vega
1º Ciclo – A Terceira Potência
Volume 02
Episódios: 06 - 10 de 49
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Nº 06
De
H. K. Scheer
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
A Terceira Potência, criada pela técnica dos arcônidas e pela energia de Perry
Rhodan, instalou-se na solidão do deserto de Gobi, onde estabeleceu um centro
de atividades capaz de desafiar os ataques concentrados das superpotências
terrenas.
Até mesmo a primeira luta travada contra inteligências extraterrenas ávidas de
conquista, que procuraram aproximar-se da Terra depois de terem recebido
notícia de sua existência através do sinal de socorro, emitido pela nave
destroçada dos arcônidas, pôde ser decidida a favor da Terceira Potência e a
bem da humanidade.
Mas Perry Rhodan sabe perfeitamente que precisará de mais gente para resistir
a novos ataques e levar avante os seus planos. Por isso cria o Exército de
Mutantes.
5
I
— Perry!
A voz de Reginald Bell soou abafada no recinto de teto
baixo e não produziu o menor eco. O homem de cabelo
ruivo, olhos azul-claros e rosto largo comprimiu o botão
de parada e, numa atitude de expectativa, virou-se para a
porta. Perry Rhodan entrou.
— Não grite tanto, Bell! — disse, sem mover um
músculo da face. Seus olhos irradiavam curiosidade. —
Foi você que me chamou? Espero que o assunto seja
importante.
Reginald Bell voltou-se
novamente para o painel do
equipamento de som. Durante três
segundos comprimiu a tecla de
retrocesso.
— Tenho uma mensagem de
Genebra, dirigida a você. Chegou há
poucos minutos.
Perry Rhodan aproximou-se do
painel.
— Há algum resultado positivo?
Esperava que as grandes potências
levassem ao menos um dia para
chegar a um acordo a nosso respeito.
Se houve uma conferência
relâmpago, provavelmente a terão
finalizado sem terem chegado a uma
conclusão. Fale logo, rapaz! O que
houve?
— Ouça! Quero que você mesmo desfrute todas as
fases da sua vitória.
Bell ligou o aparelho e reclinou-se na poltrona.
— Aqui fala a Secretaria da Federação das Potências
Mundiais. Estamos chamando o senhor Rhodan. Temos
instruções para, logo após o término da conferência,
informar-lhe o resultado que segue e que é tornado público
simultaneamente por meio de um comunicado transmitido
por todas as emissoras.
Os representantes dos países da OTAN, do Bloco
Oriental e da Federação Asiática conferenciaram hoje
sobre o status internacional da organização conhecida
como Terceira Potência. As ocorrências dos últimos dias,
em especial os acontecimentos que se desenrolaram fora
da atmosfera terrestre, causaram sérias preocupações em
todo o mundo. A aproximação de uma nave espacial
pertencente a uma inteligência desconhecida, que sem a
menor dúvida foi realizada com intenções hostis, deve ser
encarada como uma ameaça a toda a Terra. Depois de
discutido minuciosamente o assunto, os delegados da
OTAN, do Bloco Oriental e da Federação Asiática
chegaram à conclusão de que a destruição da nave inimiga
na superfície lunar foi devida exclusivamente à atuação da
Terceira Potência. Em face disso, as potências que
participaram da conferência, admitiram certa lealdade da
Terceira Potência perante os interesses comuns da
humanidade e decidiram reconhecer a Terceira Potência,
como um estado soberano, com a extensão territorial que
atualmente ocupa. Pede-se ao senhor Perry Rhodan que
confirme o recebimento deste comunicado e apresente
propostas concretas para o estabelecimento de relações
diplomáticas.
Bell comprimiu a tecla de parada e voltou a reclinar-se
na poltrona.
— Conseguimos — disse Rhodan em tom tranquilo. —
Aos poucos os homens começam a compreender que não
somos nós os seus inimigos, mas o espaço imenso e
misterioso. Mas convém que esses cavalheiros tirem da
cabeça a ideia de extensas relações diplomáticas. Sem
dúvida, gostariam de trocar uns vinte ou trinta
embaixadores conosco. Acontece que sob o aspecto
diplomático somos um caso todo especial. Ao que parece
já estão se habituando a isso. Anote a resposta:
— Não quer falar pessoalmente?
— Tenho motivos para não fazê-
lo.
Reginald Bell deu de ombros.
Parecia não entender. Mas acabou
assentindo com um movimento de
cabeça.
— Transmitirei sua mensagem.
— Diga-lhes que fiquei satisfeito
em receber uma resposta tão positiva.
Considero altamente elogiável a
compreensão com que o assunto foi
tratado em Genebra. No entanto,
prefiro deixar para outra oportunidade
meu pronunciamento sobre o
estabelecimento de relações
diplomáticas, já que a reduzida
extensão territorial de nosso pequeno
reino ainda não justifica a presença de
embaixadores. Apesar disso, sempre
estaremos abertos a quaisquer
contatos.
— Muito obrigado pela orientação. Quebrarei a cabeça
para descobrir como devo redigir o texto...
— A resposta será transmitida imediatamente, meu
caro! Não há tempo para quebrar a cabeça. Com a
velocidade alcançada na conferência de hoje as
superpotências da Terra estabeleceram um novo recorde. E
você vai manter a mesma velocidade.
— Você sempre foi perito em dar ordens...
— E você tem sido perito em executá-las. O futuro
exigirá de você um aumento considerável do grau de
obediência e de iniciativa que já aprendeu.
— Obrigado pela confiança, chefe! Mais algum
desejo?
— Você poderia pedir aos representantes de Pequim na
conferência que começassem a estudar a possibilidade de
nos vender um trecho de terra. Não pretendo instalar o
estado soberano da Terceira Potência em território
alugado.
— Qual deve ser o tamanho de nosso reino? —
indagou Bell.
— A nave esférica ficará no centro. Ao redor dela se
estenderá o território bloqueado da Terceira Potência. O
mínimo de que precisamos é uma extensão de terra com
um raio de cinquenta quilômetros.
Perry Rhodan saiu, sem aguardar que o amigo
confirmasse com um aceno de cabeça. Por mais
importantes que as negociações em perspectiva fossem
para ele e para o mundo, havia assuntos ainda mais
prementes a serem tratados. Eram assuntos que
ultrapassavam em muito o simples estabelecimento de
contatos e os preparativos para uma série de decisões
definitivas.
Saiu da nave. A pequena distância dali, bem no centro
Personagens principais deste episódio:
Perry Rhodan – Chefe da Terceira Potência Reginald Bell – Amigo e principal colaborador de Rhodan Crest e Thora – Únicos sobreviventes da nave arcônida destruída na Lua Allan D. Mercant – Sofre um atentado de uma nova potência alienígena Homer G. Adams – Novo Ministro das
finanças da Terceira Potência
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da cúpula energética, que atingia dez quilômetros de
diâmetro, estava à nave esférica dos arcônidas. Mais ao
longe outro objeto atraía a atenção. Era o gigantesco
autômato positrônico, retirado da nave. Esse aparelho
formava o núcleo definitivo da Terceira Potência; suas
reações microfísicas poderiam conduzir os destinos da
história da humanidade. Era o cérebro.
Rhodan utilizou o traje especial que lhe possibilitava
vencer em poucos segundos um percurso relativamente
extenso. Não se via ninguém. Perry esperava encontrar
também no interior do grande recinto a solidão de que
tanto precisava. Mas não estava mais sozinho; viu-se
diante de Thora.
— Olá, Rhodan! — exclamou ela.
— Thora. Sente-se atraída pelo altar do seu poderio?
— Sinto-me bem em meio à civilização a que pertenço.
Além das ruínas e dos vestígios de uma tecnologia
arcônida, a Terra nada tem de atraente para uma mulher da
minha origem.
Rhodan lançou-lhe um olhar penetrante. Não sabia se
devia vestir a carapuça. Resolveu retribuir o elogio
ambíguo.
— É difícil compreender a indiferença dos arcônidas.
Quando encontram alguma coisa de atraente, o que é
bastante raro, isso só acontece no ambiente a que estão
habituados. Comigo, que sou um ser humano, acontece
exatamente o contrário; o que me atrai é a novidade.
Atrás deles ouviram-se passos. Voltaram-se e viram
Crest, o último descendente da dinastia reinante em seu
mundo natal.
— Olá! — disse este em tom amável e com a maior
naturalidade, como se em toda sua existência nunca tivesse
conhecido outro cumprimento que esta fórmula terrena. —
Está disposto a trabalhar com o cérebro, Rhodan?
— Quero que a máquina responda algumas perguntas
das quais depende o destino da humanidade, da
humanidade no sentido mais amplo.
— Quer dizer que você nos inclui nela?
— Perfeitamente — confirmou Rhodan. — São os
arcônidas humanos. Sem dúvida estamos de acordo em
que tudo aquilo que para nós representa a civilização
galáctica está em perigo. Estamos empenhados numa
causa comum, Crest. Não nos abandone.
— Isso soa como uma solicitação e uma censura.
— Desculpe Crest! Uma censura contra você seria uma
injustiça. Sem o seu auxílio não teríamos conseguido
destruir a nave desconhecida. Mas bem sabe que esse
ataque de surpresa talvez não passe de um primeiro indício
do perigo que paira sobre nós. É possível que possamos
dispor de alguns anos para nos prepararmos. Mas também
é possível que já amanhã nos defrontemos com a tarefa de
salvar a civilização galáctica da destruição total. Conto
com a hipótese menos favorável. Por isso a decisão é tão
premente.
— Veja só! Esse homem se arvora em advogado da
civilização galáctica — disse Thora em tom monótono,
como se não passasse do estágio final de um cérebro
robotizado. — Implora nosso auxílio, através do qual
pretende alcançar o poder, mas, esquece-se de quem
somos.
Rhodan dominou-se.
— Você sabe perfeitamente que essa acusação não tem
o menor fundamento. Não faz muito tempo que você se
declarou disposta a rever seu juízo sobre os habitantes da
Terra. Ainda sente uma inclinação irresistível de tratar-nos
como criaturas semisselvagens e subdesenvolvidas? Por
favor, não responda! Vou responder por você. Como
únicos sobreviventes da expedição dos arcônidas, você e
Crest precisam da ajuda do planeta Terra. Precisam dos
homens porque não existe nenhum caminho de volta, a não
ser com o auxílio deles. E, quer queiram quer não, terão de
partilhar dos perigos, das preocupações e das angústias dos
terrenos, enquanto o perigo vindo do espaço cósmico
representa uma ameaça para todos nós. Sua obstinação,
gerada por uma ridícula presunção de casta, só poderá
atingir você mesma. Será que precisa de outras provas
além dos acontecimentos dos últimos dias?
— A humanidade terrena não passa de um
conglomerado disforme — respondeu a arcônida. — Não
posso negar que o destino nos impôs interesses comuns.
Mas duvido da capacidade de uma humanidade corroída
de rivalidades, que nem conseguiu superar os
antagonismos em seu próprio planeta. Não se ofenda
Rhodan, mas continuo a afirmar que você pertence a uma
raça primitiva.
Crest interrompeu-a.
— E uma raça jovem — disse. — E dotada de grandes
reservas de vitalidade que devem ser mobilizadas. O
destino de uma raça é determinado por seus grandes
gênios. Não é necessário que, de um dia para outro, toda a
humanidade seja conduzida a um estágio mais elevado.
Umas poucas pessoas dotadas de bastante inteligência
serão suficientes. Rhodan sei perfeitamente do que é
capaz, depois de ter concluído o treinamento hipnótico;
conseguimos mobilizar seu cérebro, que se encontrava em
estado de ociosidade numa proporção de mais de quarenta
e cinco por cento.
— Quer dizer — perguntou Thora em tom de dúvida
— que a condição primitiva dos terrenos não resulta de
uma estrutura biológica subdesenvolvida, mas apenas da
renúncia inconsciente ao exercício de certas faculdades?
Crest confirmou com um aceno de cabeça.
— Certas áreas do cérebro humano são afetadas por
uma curvatura, e por isso nunca são ativadas. Nas pessoas
designadas como gênios são utilizados. Os próprios
homens já descobriram que o quociente intelectual do
indivíduo nem sempre depende do volume do cérebro,
muito embora de início essa interpretação fosse a mais
óbvia. Einstein, um dos maiores terrenos de todos os
tempos, constitui prova evidente disso. O volume do seu
cérebro era igual ao de qualquer pessoa medíocre. Sua
grande superioridade espiritual só pode ser explicada por
um grau extraordinário de ativação de todas as áreas de
seu cérebro. Com o treinamento hipnótico de Rhodan
conseguimos um resultado semelhante.
— Então é por isso que devemos reconhecer em Perry
Rhodan o chefe dos terrenos — disse Thora com um traço
de ironia. — Como arcônida, dispenso uma colaboração
nessas circunstâncias. Tal procedimento seria incompatível
com o nível de desenvolvimento de nossa raça.
— Ninguém está falando num chefe dos terrenos —
respondeu Rhodan, elevando ligeiramente o tom da voz.
— Apenas procuro uma conciliação razoável entre os seus
interesses e os nossos. Apelo para a razão, não para os
preconceitos ou os ressentimentos. Você está pondo em
prática aquilo de que acusa nossa raça. Não serei
presunçoso a ponto de renunciar ao seu auxílio nesta hora
difícil. Tenho o maior prazer em exprimir o meu
agradecimento pelo auxílio que já nos foi dispensado. Se
você acha que pode dispensar o auxílio da humanidade,
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isso é problema seu. Não quero impingir minha
colaboração. E agora, com sua licença, eu me retirarei.
Perry Rhodan cumprimentou com um gesto e deu as
costas aos arcônidas. Dirigiu-se ao painel de comando do
grande cérebro robotizado.
Depois de ter concluído as primeiras manipulações,
sentiu a presença de Crest atrás de si.
— Podemos ajudar Rhodan?
— Thora acaba de afirmar que não quer intrometer-se
nos assuntos dos terrenos. Você pensa da mesma forma,
Crest?
— Gostaria de ajudá-lo, Rhodan. Mas só se for
necessário. Não seria correto se os arcônidas se
intrometessem desnecessariamente nos assuntos dos
terrenos.
— Obrigado, Crest — disse Perry, oferecendo a mão
ao seu interlocutor. — Tentarei fazer o trabalho sozinho.
Apesar disso sua presença representaria um conforto para
mim. Jamais um homem teve de solucionar um problema
como o que tenho diante de mim. Isso me deixa um pouco
nervoso, compreende?
— Qual é a indagação que quer ver respondida?
— A indagação sobre o caminho que devemos trilhar
juntos para o futuro.
Perry Rhodan voltou-se para a grande máquina. O
significado das indagações que lhe transmitiria ultrapassa
em alcance toda e qualquer decisão que até então alguém
tivera que tomar. Toda a humanidade estava em jogo.
Um zumbido quase inaudível partiu das células
positrônicas. O cérebro havia sido ativado. Aguardava as
perguntas que teria de responder. O cérebro robotizado não
estava sujeito a qualquer influência psicológica; trabalhava
exclusivamente em conformidade com as leis da lógica.
Era de todo imune ao significado de qualquer pergunta.
Não conhecia os critérios valorativos que o homem adota
inconscientemente. Só se interessava pelo significado e
pelo conteúdo da matéria nele introduzida. Calculava as
probabilidades do resultado de um jogo de futebol ou uma
eleição política com a mesma naturalidade do desfecho de
uma guerra mundial. Se qualquer resposta não
correspondesse aos acontecimentos futuros, isso seria
devido única e exclusivamente a uma formulação incorreta
das perguntas. Tudo dependia, portanto, das perguntas que
Perry Rhodan introduzisse na máquina.
Já nos preparativos, se valeu das potencialidades da
formidável máquina. Introduziu nas células positrônicas
todos os detalhes que lhe pareciam importantes para a
avaliação da pergunta-chave. Levou algumas horas
examinando a formulação definitiva das questões.
A memória da máquina apresentava uma reação
tríplice. Através das células interpretativas do estágio final,
fornecia o resultado em forma de palavra falada, de
palavra escrita e de imagem. Os cristais de armazenamento
de dados conservavam as respostas com todas as
características. A fita escrita corria num carretel onde seu
conteúdo era resumido automaticamente através de
palavras-chave adequadas. A imagem e o som eram
projetados em faixas paralelas da mesma fita e os impulsos
positrônicos garantiam a perfeita sintonia.
O exame preliminar das questões produziu um
resultado quase inacreditável.
A humanidade teria de optar entre 22,3 bilhões de
possibilidades, para encontrar um caminho aceitável para o
futuro. No entanto, não se poderia afirmar que só uma das
soluções fosse correta, enquanto todas as outras eram
erradas. A escala das vantagens e desvantagens deslizou na
tela sob a forma de um espectro de cores. Realizados mais
de cem processos de eliminação, ainda havia mais de mil
soluções recomendáveis do lado positivo da faixa
espectral. Perry Rhodan teve de encontrar novas perguntas
limitativas, para chegar cada vez mais perto do problema
básico.
No início, ainda surgiam ligeiras discussões com Crest
e Thora. Mas, à medida que a experiência prosseguia,
tornava-se cada vez mais calado. Quando o crepúsculo
começou a entrar pela vigia, Thora levantou-se e declarou
que desejava ir ao seu camarote. Precisava de descanso, e
por isso queria desfrutá-lo fora da gravitação natural da
Terra, que, com o tempo, estava se tornando desagradável
para ela. Crest seguiu seu exemplo.
— Se surgir qualquer problema é só avisar, Rhodan.
Estarei à sua disposição a qualquer momento.
Rhodan confirmou com um movimento distraído da
cabeça.
— Está bem, Crest. Levarei algumas horas neste
serviço. Mais tarde avisarei sobre o resultado. Descanse
um pouco.
Nenhum dos dois arcônidas desconfiava de que seu
aluno-modelo recorrera a alguns truques psicológicos bem
eficientes para afastá-los dali. Perry Rhodan preferia estar
só na hora em que tivesse de resolver as questões
decisivas.
A atividade física desenvolvida durante a experiência
era mínima. Apesar disso transpirava bastante e sofria a
tensão formidável daquelas horas.
Mais tarde, ainda naquela noite, ele recebeu a notícia
da ameaça de uma nova invasão. A resposta veio quase
como um subproduto. Rhodan repetiu a experiência cinco
vezes antes de aceitar a solução com todas as suas
implicações: a invasão já começara.
* * *
Chamou Reginald Bell pelo aparelho de ondas
ultracurtas.
— Onde você está neste instante, Bell?
— No mesmo lugar em que você me deixou. Esses
rapazes de Pequim são duros na queda. Fazem a gente
perder horas preciosas com detalhes insignificantes.
— Eu gostaria de saber qual é o assunto que você está
debatendo com eles.
— Você é mesmo um prodígio de memória! Já se
esqueceu de que me pediu para que lhe arranjasse um
terreno?
— Vamos deixar isso para depois. Quero que você
desligue imediatamente e venha a bordo da nave. Manoli e
os nossos três amigos dos serviços secretos devem
apresentar-se o mais rápido possível. Daqui a dez minutos
esta nave deve estar pronta para decolar. E não quero que
ninguém desembarque, mesmo que eu chegue mais tarde.
Dê o alarma a todo o pessoal da base.
— Afinal, o que houve Perry?
— Você já vai saber. Por enquanto, faça o que estou
dizendo!
A tripulação concluiu os preparativos para a decolagem
dentro do prazo previsto de dez minutos, mas Rhodan os
fez esperar até a meia-noite.
Finalmente, ouviu-se a voz do Capitão Klein:
— Aí vem ele!
Todos os olhos se voltaram para a tela de imagem que
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servia para vigiar a entrada da nave esférica. Perry Rhodan
surgiu, em voo baixo, no seu traje de arcônida, e entrou
pela escotilha aberta. Pouco depois, chegou à sala de
comando.
— Você pilotará Bell. Decole imediatamente. Preciso
falar com Kakuta.
Rhodan ligou a tela e chamou Tako Kakuta, que estava
no posto central de comando da base. O rosto do japonês
apareceu no vídeo.
— Decolaremos agora. Preste atenção à subida da nave
e desligue a cúpula protetora por alguns segundos.
— O.K.!
A esfera disparou na vertical e desapareceu diante dos
olhos do japonês como uma estrela que se apagasse.
Reginald Bell voltou à cabeça, enquanto as mãos
executavam inconscientemente as operações de comando
que aprendera.
— Perry, não quer nos contar o que significa tudo isso?
Eric e o resto do pessoal já começaram a duvidar da minha
sanidade mental, porque os detive durante algumas horas...
— Desde hoje de tarde estive conversando com o
computador eletrônico. Formulei algumas perguntas
decisivas. Foi por isso que demorei tanto. Precisaremos de
um verdadeiro fio de Ariadne para encontrarmos nosso
caminho por entre os problemas do futuro.
— E você encontrou esse fio?
— Encontrei — confirmou Rhodan. Por alguns
segundos parecia mergulhado em profunda meditação.
Depois endireitou o corpo. — Temos de vasculhar
imediatamente a atmosfera terrestre, ao menos até a órbita
lunar. Segundo uma das respostas do computador, a
invasão que esperamos já está em andamento.
Manoli foi o primeiro a recuperar a fala.
— Está se referindo àqueles intrusos desconhecidos,
cuja nave nós conseguimos destruir a alguns dias?
— Nunca tivemos a menor dúvida de que aquilo não
passava de uma operação de vanguarda. As informações
de Thora foram corretas. O emissor de raios ultraluz
situado na nave dos arcônidas que foi destruída na
superfície lunar mobilizou os inimigos das nossas
civilizações, o nosso sistema para seres de elevado grau de
inteligência. Uma raça empenhada na destruição, como a
de Fantan, não se contentará com meias medidas ou com
operações isoladas. Relatei a situação ao computador
eletrônico, tanto quanto me permitiam as indicações
fornecidas por Crest. A resposta da máquina foi a seguinte:
“a invasão já começou”. Peço-lhes, portanto, que ocupem
seus lugares. A divisão das tarefas já foi anunciada, e
todos sabem o que deve ser feito.
Todas as operações que ainda não eram rotineiras
teriam de assumir esse caráter. O dispositivo automático
de observação anunciava a espaços regulares: resultado
negativo. Não houve qualquer localização de corpos
estranhos. Enquanto isso Perry Rhodan treinava suas
tarefas com Bell, Eric Manoli, o capitão Klein, Li Shai-
tung e Peter Kosnow.
A uma distância de pouco menos de 400.000
quilômetros do centro da Terra, Perry mandou que a nave
fosse conduzida a uma órbita, mas não permitiu que seu
deslocamento fosse espontâneo, em forma de satélite, pois
com isso sua velocidade seria tão reduzida que a volta em
torno do nosso planeta consumiria quase cinco semanas.
Sem reduzir o desprendimento de energia, a nave
deslocou-se em sentido quase vertical à tangente da órbita
terrestre, a fim de anular a força centrífuga gerada pela alta
velocidade.
— Isso! — murmurou Rhodan satisfeito, quando a
gigantesca foice lunar desapareceu a estibordo.
— Dizem que o computador eletrônico é infalível, não
é? — a pergunta de Manoli foi formulada de sopetão. —
Onde está o inimigo, se a invasão já começou? Pelo que
me consta, não existe qualquer campo de absorção para as
radiações de localização emitidas por esta nave.
— Falível é o homem — confessou Perry Rhodan. —
Se não houver a invasão, as perguntas que formulei a
máquina positrônica não foram corretas. Até chego a
desejar que eu tenha cometido um erro.
— Pois cometeu! — foi à voz de Thora que saiu no
mesmo instante dos alto-falantes. — Fique sossegado e
volte Perry Rhodan. Crest e eu acompanhamos e
verificamos seu trabalho. Não há nenhuma nave estranha
na órbita de Marte. Seria preferível dedicar-se aos
problemas mais prementes que o esperam na Terra.
— Obrigado pela lição. Crest está com você?
— Está no camarote dele. Não se lembra de que pediu
que descansássemos?
— Estou acompanhando a palestra — disse a voz de
Crest, que surgiu no mesmo instante. — Posso confirmar a
informação de Thora, mas nem por isso as perguntas que
você formulou ao cérebro positrônico são necessariamente
incorretas. Se o cérebro responde que a invasão já está em
andamento, não está fornecendo nenhuma indicação exata
do pouso na Terra. É bem possível que o inimigo ainda se
encontre a muitos anos-luz de distância e só chegue à
Terra daqui a alguns dias. A viagem de patrulhamento que
está sendo levada a efeito não me perturbou nem um
pouco. Até acho que se trata de uma boa medida de
precaução. Se me permite um conselho, direi que deve ser
repetida a intervalos regulares.
— Seus conselhos sempre serão bem-vindos.
Obrigado, Crest!
— Devo aterrissar? — perguntou Bell.
— Depois de descrever mais uma órbita polar em torno
da Terra, meu caro. Enquanto isso, conte-me o que
discutiu com Pequim.
— A Federação Asiática é de opinião que o trecho
desértico situado em torno do lago salgado de Goshun, ou
mais precisamente a 102 graus de longitude leste e 38
graus de latitude norte é o terreno mais valioso que pode
existir sobre a Terra.
— Já lhe deram o preço?
— É claro que sim; do contrário não estaria tão
nervoso. Pedem sete bilhões de dólares. Por esse preço
estão dispostos a ceder um terreno com cinquenta
quilômetros de raio em torno da nave.
— Você lhes explicou que não possuímos sete bilhões
de dólares?
— É claro. Afinal, sou um rapaz inteligente.
— Um bilhão seria um bom preço, Bell.
— Esses cavalheiros de Pequim não cedem um
centavo. Seria pura perda de tempo se você gastasse uma
hora nisso. Temos de arranjar o dinheiro.
— Sete bilhões... — refletiu Rhodan. — Precisamos a
metade disso para instalar nossas linhas de montagem na
cúpula energética. E nem sequer essa quantia possuímos.
— O reino mais poderoso da Terra é o menor e o mais
pobre. É um verdadeiro paradoxo, não acha?
— Bell, não se afaste do assunto. É verdade que
Kakuta descobriu alguns fornecedores que dispõem de boa
capacidade de produção. Mas nenhum deles fornece
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dinheiro. E as contas bancárias que mantemos em algumas
grandes cidades chegam a ser ridículas. Precisamos de um
ministro das finanças.
— Até mesmo um ministro das finanças fará questão
de discutir antes de tudo, o seu ordenado. Por mais que
façamos, precisamos antes de tudo de dinheiro. Depois
poderemos comprar. Terras, fábricas e gente. Precisamos
de crédito.
— E será que não dispomos de crédito? — interveio
Eric Manoli. — Será que você não conhece a velha
sabedoria dos banqueiros? Aquele que detém o poder
dispõe do crédito.
— Esse tipo de sabedoria encerra uma sugestão de
abusar do poder — respondeu Rhodan. — Suas palavras
fazem vir à minha mente um assalto.
— Refiro-me às armas psíquicas. Ninguém de nós
concordaria em que os ameaçássemos com a superioridade
das nossas armas destrutivas.
— Para conceber uma arma psíquica precisamos de
uma cabeça. Com isso voltamos ao problema do ministro
das finanças.
— Será que não temos inteligência suficiente? —
indagou Bell em tom de expectativa, como se quisesse
candidatar-se ao posto. Rhodan formulou uma pergunta
direta:
— Você pode garantir que dentro de seis meses
influenciará os preços mundiais de tal forma que teremos
os fornecedores aos nossos pés?
— Sou astro-navegador e engenheiro eletrônico;
também estudei medicina espacial e geologia, submeti-me
de bom grado ao treinamento hipnótico e tenho a
impressão de ser um homem bem acima da média. Mas
não tenho uma boa mão com o dinheiro.
— Quer dizer que desiste do lugar de ministro das
finanças?
— Quanto à minha pessoa, sim. Não me sentiria muito
bem se tivesse que desempenhar o papel de um gênio
universal.
— De qualquer maneira terá que revelar o desempenho
de um gênio universal. Espere até que aterrissemos.
Preciso de Tako Kakuta para entrar no assunto sobre o
qual quero falar com vocês.
A nave esférica desceu quase na vertical em direção ao
deserto de Gobi. A cúpula abriu-se por alguns segundos,
para permitir o pouso. Quando os homens deixaram a
nave, os primeiros raios do sol despontavam no oriente.
* * *
Oito homens estavam reunidos em torno da mesa.
Eram Rhodan, Bell, Manoli, Haggard, Kakuta, Klein,
Li e Kosnow.
— Companheiros; acredito que não será necessário
perder muitas palavras para explicar a situação atual.
Dispomos do poder e obtivemos o reconhecimento
diplomático. Mas, apesar de já termos iniciado a
montagem de uma indústria, somos uns pobretões.
Acontece que de uma hora para outra esperamos a invasão,
cujas dimensões ultrapassam nossa fantasia. Convoquei-os
para explicar que me verei obrigado a exigir tudo de vocês.
Terão de empenhar toda a sua pessoa no objetivo comum.
Nosso trabalho não exigirá apenas uma soma enorme de
energia, mas também boa agilidade e capacidade de
reação. Bell, você e Tako Kakuta irão a Pequim fechar o
acordo para a compra do nosso território. Você já elaborou
um esquema de pagamento na base de quinhentos milhões
de dólares por mês, e assim estará em condições de fechar
a operação. Aos demais, pretendo apresentar alguns
aspectos de um plano que nos permitirá acelerar
imediatamente o ritmo produtivo de nossa indústria. Mas
antes de iniciarmos a discussão dos detalhes peço-lhes que
leiam atentamente este artigo de jornal e me digam se
estão lembrados de algumas minúcias do assunto nele
tratado. Finalmente, apresentem-me sugestões sobre como
poderemos usar este caso em nosso próprio benefício.
II
Um denso nevoeiro impregnava a noite londrina. A
umidade que subia do Tâmisa penetrava nas roupas e fazia
as pessoas tiritarem de frio.
Um homem de aspecto pobre, que a altas horas da
noite atravessara a Vauxhall Bridge e estava caminhando
pela Grosvenor Road, junto à margem esquerda do rio,
levantara a gola do casaco. O chapéu, que cobria as
orelhas, talvez tivesse por finalidade cobrir o rosto.
Atrás do gasômetro o homem dobrou à direita,
atravessou a Praça São Jorge em direção à Rua Lupus e
entrou na Rua Alderney.
Parou diante de uma pesada porta de carvalho e puxou
a sineta.
Depois de uma longa espera uma senhora corpulenta
abriu e perguntou o que desejava.
— Por favor, quero falar com o senhor Barry.
— Sinto muito, cavalheiro, há esta hora não podemos
perturbá-lo mais. O senhor Barry está se preparando para
dormir. E conforme vejo eu...
— A senhora também estava a ponto de ir para a cama.
Mas com o senhor Barry a coisa é diferente. Assim que
puser os olhos em mim, não pensará mais em dormir.
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— Trouxe um cartão, cavalheiro?
— Não é necessário anunciar-me. Conheço o caminho.
Muito obrigado.
— Cavalheiro! — disse ela, quando o homem se enfiou
pela estreita fresta da porta e permitiu que à luz do
corredor lançasse um olhar para sua figura estranha. —
Quem é o senhor? Não posso deixá-lo entrar.
— Madame, não se incomode comigo.
Hiram Barry ainda estava sentado à escrivaninha. Não
fazia menção de ir para a cama. O abajur projetava uma
luz forte sobre o escrito, enquanto o restante do aposento
estava mergulhado na escuridão.
— Você não disse que ia para a cama, Milly? — disse
Barry quando ouviu a porta abrir-se atrás dele.
— Milly vai para a cama — disse o visitante.
Aquela voz grave fez com que Barry se virasse
sobressaltado. Só viu uma sombra parada na escuridão.
Mas aquela voz lhe revelara tudo. Para Hiram Barry era
uma voz inesquecível.
— Adams! — gemeu.
— Homer G. Adams — completou o visitante. —
Espero não ter vindo numa hora imprópria.
— É claro que não Adams. Para você minha casa está
aberta a qualquer hora. Como sabe...
— As coisas que sei já ficaram muito longe. Mas ainda
sei. E é o que importa. Não acha Barry?
— Você sempre teve boa cabeça, Adams. Conseguiu
fazer um bom dinheiro com sua memória, nada mais.
Sempre o admirei. É claro que também o invejo um pouco.
— Não se esqueça do ódio, Barry. Gosto de ser
admirado. E as pessoas que me invejam também devem
viver. Afinal, a vaidade nutre-se da inveja. Mas o ódio
pode ser perigoso. Meu caso é um bom exemplo disso.
Não quero que ninguém me odeie.
— O que deseja Adams? Não fale num ódio que já é
tão velho. Não o odeio.
— É claro que não. Dentro de quatorze anos isso passa.
Não preciso matá-lo mais, pois seu ódio transformou-se
em medo. Por isso não me importa que continue a viver.
Talvez assim lhe retribua alguma coisa.
— Veio só para me dizer isso? Levou quatorze anos
pensando em vingança? Não acredito, pois isso o teria
arruinado. Além disso, eram vinte anos, se não me engano.
— A sentença era de vinte anos. Mas depois de
quatorze anos acharam que o castigo já era suficiente.
Como deve saber, nesses casos costumam falar em bom
comportamento.
— É o que dizem — confirmou Barry, que conseguira
controlar-se um pouco. — Posso oferecer-lhe uma bebida?
— Se soubesse que não está envenenada, aceitaria.
— Deixe de gracejos, Adams. Vamos, beba! Ainda sei
que gosta de uísque. E comece a contar. Gostaria de saber
como estão às coisas entre nós depois desses quatorzes
anos.
— Não há nenhum motivo para discutirmos nossas
relações. E os anos passados na penitenciária não oferecem
nada para contar. Minha visita será breve, desde que
cheguemos logo a um acordo.
— Um acordo sobre o quê?
— Preciso de um terno. Tem de ser um terno bom, bem
na moda.
— E só isso? Tome dez libras.
— O dinheiro será outro assunto, Barry. Quero
primeiro o terno e depois uma mesada. Deve estar
lembrado de certa conta no Midland Bank. Naquele tempo
o saldo era de cerca de dezesseis mil libras. Sei que não é
muito. Parece que estou destinado a nunca ter dinheiro
meu, a não ser uma pequena pensão. Ainda deve haver
juros.
— Sua pergunta me deixa confuso, Adams. Como
posso estar a par da sua conta no Midland Bank?
— Estou me referindo à conta que abrimos em seu
nome. Deve estar lembrado de que a transação com Servey
Limited produziu um lucro que de forma alguma poderia
aparecer nos livros.
— Não sei do que está falando, Adams.
— Sabe, sim. Nunca procurou descobrir por que
escapou sem castigo? Nunca se admirou porque certo
Homer G. Adams não quis prestar uma declaração que não
o teria livrado da pena, mas que poderia ter enviado certo
Hiram Barry a uma viagem tão longa como a dele? Será
que acredita que resolvi protegê-lo para que pudesse gastar
meu dinheiro? Nada disso. Foi para proteger o meu
dinheiro que permiti que continuasse livre. E agora estou
aqui para buscá-lo. Inclusive os juros. Se descontar o valor
do terno, deverão ser pouco menos de vinte e quatro mil
libras. Especulou-se com o dinheiro, talvez já sejam dois
milhões. Mas nem quero saber disso. Para mim bastam
vinte e quatro mil libras. Fique com o resto do que tiver
ganhado. Não quero vangloriar-me, Barry, mas acredito
que dificilmente poderia esperar um tratamento mais
generoso da minha parte.
Barry hesitou antes de responder. Seus dedos
cravaram-se no canto da mesa.
— Adams, você sabe perfeitamente que vinte e quatro
mil libras é muito dinheiro. Especialmente para mim.
Nunca fiz os meus cálculos pelos seus padrões.
— Cada qual deve saber que padrões quer adotar. Você
é um gatuno pequeno; ninguém lhe proibiu de transformar-
se num grande. Além disso, parece que estão confundindo
duas coisas completamente diferentes. Se enganei alguém
em doze milhões de libras, isso foi feito exclusivamente
com o dinheiro de outro. Meus negócios de bilhões nunca
tiveram por objeto a ganância pessoal. Fiz isso... bem,
digamos que fiz por esporte. Faço questão de ser
considerado um amador e um idealista. Quero que o
mundo veja em mim um ser altruísta que só se empenha
pelas grandes causas.
— Ainda continua a pensar assim? — perguntou Barry.
Homer G. Adams confirmou com um movimento lento
da cabeça.
— Ainda continuo a pensar assim. Nem pense que
pretendo retirar-me da cena quando ainda me encontro nos
melhores anos da vida. Voltarei. Tive muito tempo para
refletir, Barry. E ouvi muita coisa. Mas acho que não está
interessado nisso. Dê-me o terno e o dinheiro, e não o
incomodarei mais.
Hiram Barry parecia ter chegado a uma decisão.
— Vamos ao meu quarto, Adams. Dou-lhe meia hora
para inspecionar meu guarda-roupa.
Adams levou menos de meia hora.
— Ficarei com este — disse depois de três minutos. —
Você é pouco maior que eu em estatura; por isso o casaco
deve assentar bem em mim. Quanto à calça, poderemos
encurtar a bainha por alguns centímetros. No escuro
ninguém se incomodará com isso, e amanhã procurarei um
alfaiate. Onde posso mudar de roupa?
— No banheiro. Faça o favor.
— Muito obrigado, Barry. Vejo que nos entendemos
muito bem. Será que neste meio tempo pode preencher o
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cheque?
Dali a dez minutos Adams voltou à biblioteca. No
cheque lia-se a quantia de vinte e quatro mil libras
esterlinas e a assinatura floreada de Barry.
— Precisa de algum dinheiro em espécie? —
perguntou Barry em tom gentil. — Decerto, pretende ir a
um hotel.
— Muito obrigado. Você é muito gentil! Mas toda
pessoa traz algum dinheiro consigo ao sair da
penitenciária. Neste ponto o governo não é nada
mesquinho. Não é necessário que me dê mais que aquilo
que me compete. Homer G. Adams continua a ser o
mesmo pão-duro de antes, mas também tem seu orgulho e
nunca aceita presentes. Passe bem, Barry! Foi um prazer
vê-lo tão disposto depois de todos esses anos e entreter
uma palestra tão agradável.
Mal Adams acabara de sair, Hiram Barry discou o
número do Midland Bank e instruiu o porteiro da noite a
transmitir um recado ao gerente, na manhã seguinte, logo
após o inicio do expediente. Depois discou outro número
e, por estranho que parecesse, anunciou-se com um nome
feminino.
— O que é que você quer me perturbando a esta hora
da noite? Passei o dia todo atendendo a compromissos
profissionais e tive de encher-me até a goela. Chame
amanhã, mas só depois do jantar.
— Um momento! Você ficará curado da bebedeira se
escutar um instante.
— Deixe de lorotas. Comigo isso não pega. Até...
— Vá para o inferno! Você não está só cheio de
uísque, mas também anda com a água até o pescoço. Se
desligar, vou arrombar sua porta daqui a meia hora e
arranco você da cama.
— O que aconteceu?
— Tive de preencher um cheque de vinte e quatro mil
libras, e isso sobre minha conta no Midland Bank.
— Espere aí! Será que você ficou louco? Ou será que
uns bandidos armados entraram aí? Tanto faz! O que você
tem de fazer, meu filho, é telefonar imediatamente ao
banco para cancelar o cheque e notificar a polícia.
— O banco já foi avisado, mas de outra forma.
Mandarei suprir a conta. No momento só há um saldo de
quatorze mil libras.
O homem que falava do outro lado da linha despertara
por inteiro.
— Vamos, fale logo! Será que foi o demônio em
pessoa que veio buscar o cheque?
— Quase acertou. Foi Homer G. Adams, que hoje foi
solto da penitenciária.
O outro interlocutor ficou sem fala. Antes de responder
soltou um gemido.
— Adams foi solto? Nesse caso não diga nada à
polícia.
— Era exatamente o que pretendia fazer. Só você vai
ficar sabendo disso. E, caso não se lembre do expediente, é
bom que saiba que o banco abre às nove da manhã.
* * *
A primeira pessoa que se apresentou no guichê do
Midland Bank no dia seguinte foi Homer G. Adams.
Nem parecia perceber o rosto do funcionário, que se
contorcia nervosamente. Como que entediado, olhava para
o teto, onde uma fileira de lustres antigos parecia convidar
à contagem de lâmpadas. Parecia ter muita paciência. Um
observador por mais atento não teria percebido que seus
olhos vigiavam tudo que se passava ao seu redor.
Havia uma indagação que atormentava aquele homem
pequeno, de cabeça grande. Será que a conta apresentava
saldo suficiente? Barry poderia tê-la liquidado, pois afinal
lhe pertencia.
Depois de uma longa espera o funcionário voltou.
— Sinto muito, cavalheiro! O saldo da conta não é
suficiente. Não podemos pagar-lhe o valor integral deste
cheque.
— Qual é a diferença?
— Faltam cem libras.
— Só isso? Por que tanto espalhafato?
— Gostamos de ser corretos nos menores detalhes,
cavalheiro — respondeu o funcionário.
— Se quisessem ser corretos poderiam ter concedido
um crédito de cem libras ao titular da conta.
— Em princípio, o senhor tem razão.
Mas existe uma anotação de que esta conta deve ser
tida como liquidada após o pagamento do cheque.
— Não há problema. Contento-me em receber o saldo,
desde que não me faça esperar mais que cinco minutos.
Adams recebeu o dinheiro e saiu da zona bancária pelo
caminho mais rápido, que era o metrô. Desceu no Picadilly
Circus, fez compras e almoçou no aeroporto, em Croydon.
O garçom que o serviu viu nele um homem nervoso e
desconfiado.
— Será que vai demorar muito? Não posso perder o
jato para Tóquio.
— A partida é às 13,45, cavalheiro. Falta mais de uma
hora e meia. Como nosso serviço é rápido, não haverá
problema.
Homer G. Adams não parecia tranquilizado. Logo após
dirigiu-se em voz alta a um vizinho de mesa.
— Queira perdoar, cavalheiro. O senhor também viaja
para Tóquio? No avião que parte às 13,45?
O homem fitou-o.
— Sinto muito. Meu voo parte as 13,20 e não vou ao
Extremo Oriente.
— Desculpe — cochichou Adams com a voz
resignada.
Almoçou com uma pressa extraordinária, olhando
constantemente para o grande relógio da parede. Pagou
quando foi servido o último prato e saiu da mesa, ainda
mastigando. Dirigiu-se ao guarda-volumes.
— Escute aqui! Será que o senhor pode verificar se as
malas registradas neste ticket já se encontram a bordo?
— Ah, é o voo destinado a Tóquio? — disse o homem
depois de ter lançado um olhar para o talão. — Neste
instante a bagagem está sendo colocada a bordo!
— Tem certeza de que não esqueceram minhas malas?
O homem respirou profundamente. Teve de esforçar-se
para não perder a calma.
— É claro que não! Pois o senhor está com o recibo.
Nosso trabalho é executado com toda cautela. Não há
necessidade de controles adicionais.
— Queira desculpar. Se o senhor diz, deve ser verdade.
Na sua timidez fingida, Adams parecia satisfeito. Mas
outras preocupações pareciam atormentá-lo. Depois que
lhe tinham dito que os passageiros ainda não podiam subir
a bordo, dirigiu-se apressadamente para a saída norte do
aeroporto e chamou um táxi.
— Vamos para Epsom. Depressa!
O motorista fez o que pediu. Ao chegar a Epsom, foi
regiamente recompensado. Outro motorista recebeu a
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incumbência de levar Homer G. Adams a Dorking. Ali,
Adams tomou um terceiro táxi para voltar a Croydon. Já
eram 13,35.
— Será que o senhor consegue chegar a Croydon em
dez minutos?
— É impossível, cavalheiro!
— Faça o possível — disse Adams em tom amável.
— Não é possível, cavalheiro. Conheço cada palmo do
caminho. Se não houver o menor imprevisto, levaremos
treze minutos.
— O.K.! Vá o mais rápido que puder. As 13,45 irão
decola um avião para Tóquio. Se conseguirmos vê-lo, dou-
lhe uma gratificação de dez libras.
— Pretende viajar nele?
— Não. Só quero vê-lo decolar.
O motorista fez o possível e o tráfego ajudou. Ás 13,47
parou junto à entrada norte do aeroporto.
Adams correu para o hall e viu o avião desaparecer no
nevoeiro. Inexplicavelmente, parecia satisfeito, ao
contrário de um senhor que se encontrava perto dele e que
deu vazão à sua ira em altos brados. De tão bem-humorado
que estava Adams teve vontade de dirigir-se ao homem.
— Não leve isso tão a sério, cavalheiro. Aqui está um
companheiro de sofrimento que tem uma saída.
— Quem é você?
— Sou seu colega de infortúnio. Tenho de estar em
Tóquio hoje de noite e espero consegui-lo, apesar de tudo.
— Possui um jato particular? — perguntou o estranho
em tom mais acessível.
— Não. Mas daqui a vinte e cinco minutos deve
decolar um avião com destino a Sydney, que fará escala
em Zanzibar. Ali temos possibilidade de conexão com o
voo Cidade do Cabo a Tóquio.
— Bem, o diabo quando está com fome come mosca.
A que hora o voo da Cidade do Cabo chega a Tóquio?
— Pelas vinte e uma horas, tempo de Greenwich.
Sugiro que adquira outra passagem.
— Muito obrigado. Quer dizer que estaremos em
Tóquio antes do meio-dia.
* * *
A demora em Zanzibar foi de menos de uma hora.
Foram ao restaurante do aeroporto. Adams já descobrira
que o nome de seu companheiro de viagem era John
Marshall, e que tinha vinte e seis anos. Marshall nada
revelara sobre suas atividades profissionais. Aliás, Adams
não estava interessado, pois ainda não desconfiava da
importância daquele homem.
Mas, logo, o jogo de esconder teria um fim. Adams
comprou um jornal que um menino oferecia de mesa em
mesa. A folha mal saíra da rotativa e noticiava
acontecimentos de menos de duas horas atrás.
Na segunda página, Adams descobriu uma notícia que
não o surpreendeu muito, pois constava de suas previsões
com um grau reduzido de probabilidades. Mas significava
muito para ele. E também para John Marshall.
— Está interessado em saber o que aconteceu com o
avião destinado a Tóquio, que perdemos em Londres?
— O que pode ter acontecido?
— Explodiu perto de Kiew.
— Não brinque!
— Leia.
Adams passou o jornal ao companheiro, que leu num
instante a notícia redigida em poucas palavras.
— Santo Deus! Acho que podemos felicitar-nos pela
sorte que nos protegeu.
— Se podemos! A vida é muito mais preciosa que os
nossos pertences. De qualquer maneira espero que na sua
bagagem não haja objetos de valor.
John Marshall esboçou um sorriso significativo.
— Não havia nada de importante, Adams. Tudo que é
importante para mim cabe nesta pequena valise, que nunca
largo das minhas mãos. Não haverá problema em substituir
as roupas perdidas. Quer dizer que meu prejuízo não foi
muito grande. Espero que no seu caso não seja diferente.
Adams sentiu o olhar perscrutador de Marshall, mas
não sabia o que significava. Marshall era jovem, forte e
sadio. Seu rosto era franco, e revelava uma honestidade
incontestável. Sempre conseguia levar a palestra de
cortesia para assuntos sem importância, quando a boa
educação não lhe permitisse ficar calado.
Quando se encontravam sobre o Oceano Índico as
coisas mudaram.
— Você traz muito dinheiro consigo, não é, Adams?
— disse Marshall subitamente, depois de uma pausa
prolongada.
— Por que diz isso?
— Deduzo que seja assim, já que observa regularmente
sua pasta com a mesma atenção com que olho minha
valise. Ninguém torce tantas vezes o pescoço para olhar
para cima, se no bagageiro só traz uns sanduíches ou um
jornal.
— Que interessante! Você estuda psicologia, Marshall?
— Isso mesmo. De um tempo para cá me ocupo muito
com isso. Mas você está se desviando do assunto.
— Se quer permanecer no campo da teoria, cabe
observar que pouco lhe interessa se tenho em meu poder
uma grande soma ou não.
— Estou perguntando no seu interesse, Adams. Se tiver
dinheiro consigo, deve ser muito mais desconfiado. Um
olhar para a pasta não é suficiente!
— Enquanto a pasta estiver ali, o dinheiro também
está. Ou será que, como psicólogo, você pode interpretar a
situação de outra forma?
— Sua pasta é nova, ainda traz a etiqueta de uma loja
da Rua Regent. Aposto que foi comprada hoje de manhã.
— É verdade — disse Adams perplexo. Aonde quer
chegar?
John Marshall inclinou-se ligeiramente para frente e
esforçou-se para falar devagar.
— É bem possível que alguém tenha comprado uma
pasta igual. E se for essa pasta que se encontra no porta-
bagagem, a conclusão que você acaba de formular não será
mais válida.
Adams deu de ombros. Pensou na pistola, que se
encontrava na pasta. Se Marshall quisesse fazer alguma
coisa contra ele, este seria o lugar.
— O.K.! — disse. — Pelo que vejo está interessado em
ver muito dinheiro junto. Farei sua vontade.
Levantou-se, pegou a pasta, sentou e abriu-a. Teve uma
sensação igual à que se apoderara dele tempos atrás,
quando seu grande golpe se revelou um fracasso total.
Fechou os olhos e contou até dez. Era um velho hábito
seu, que lhe permitia conservar o sangue-frio numa
situação crítica. Quando voltou a abri-los, era novamente o
velho jogador de Bolsa que parecia não ter nervos.
— Como sabia que meu dinheiro foi roubado,
Marshall? Exijo que fale sem subterfúgios e que deixe sua
psicologia ambígua de lado.
13
— Acho que pouco lhe deve importar como sei. Seria
preferível que perguntasse quem está com o dinheiro.
— Você sabe?
— Acho que sim. Mas gostaria de falar com calma
sobre isso. Está disposto a acompanhar-me ao salão de
estar? Procuraremos um canto bem isolado.
Saíram. No caminho, Adams disse:
— Antes de tudo, gostaria de notificar o comandante
sobre o roubo. Faça o favor de reservar um lugar
apropriado.
Não demorou em voltar.
— Tudo em ordem, no que diz respeito à notificação.
Espero que possa fornecer mais alguns detalhes. As
investigações policiais só serão iniciadas depois que
pousarmos. É possível que isolem o aeroporto e não
deixem os passageiros saírem.
— Mas isso não me dá muita tranquilidade. Gostaria de
resolver o assunto enquanto estamos em viagem. Em sua
opinião, quem é o autor do crime?
— Não sei. As suspeitas recaem sobre uns seis ou oito
passageiros.
— Os mesmos se encontram a bordo, ou será que a
pasta já foi trocada em Zanzibar, ou antes, que
chegássemos lá? Um momento! Verifiquei no restaurante
do aeroporto, e tudo estava em ordem. Quer dizer que
nosso homem deve estar a bordo. A pasta só pode ter sido
trocada durante o embarque. Tivemos de fazer fila e só
avançamos devagar. É possível que tenha descansado a
pasta no chão algumas vezes.
— A reconstrução dos fatos é correta. É exatamente o
que imagino. Mas realmente não sei dizer quem foi. Só
pode ter sido alguém que durante o embarque se
encontrava próximo a nós. Já dei uma boa olhada em toda
aquela gente, mas não descobri ninguém que andasse com
uma pasta igual à sua.
— É estranho. Você sabe tão pouco! E apesar disso sua
suspeita correspondeu exatamente à realidade.
— Mais uma pergunta — disse Marshall, mudando de
assunto. — A importância desaparecida pode ser muito
elevada para um homem comum. Esse dinheiro também
faz muita falta a você?
— Não entendo — disse Adams em tom hesitante.
Voltou a suspeitar de John Marshall. — Muitas vezes suas
perguntas são bastante estranhas, Marshall. Mas não posso
imaginar que o ladrão adotasse um comportamento tão
estranho como o seu.
A resposta de Marshall morreu por entre um sorriso.
A porta do salão abriu-se de supetão e alguns homens
barulhentos entraram. Dois deles voltaram a fechá-la e a
trancaram, embora outros passageiros procurassem entrar.
Quase todos os passageiros que se encontravam no
salão saltaram das suas cadeiras, o que contribuiu para
aumentar a confusão. No meio da gritaria não se entendia
uma palavra. Subitamente um dos homens pediu silêncio
com a voz trovejante, reforçando seu pedido com a pistola
que trazia em punho.
— Sentem! — ordenou o desconhecido. — Quero
formular algumas perguntas. Qual dos senhores traz uma
arma? Façam o favor de avisar imediatamente. Não
pretendemos tomá-la, mas trata-se de fazer uso dela.
John Marshall foi o primeiro que levantou o braço.
Vários passageiros seguiram seu exemplo, inclusive
Homer G. Adams, depois de ligeira hesitação. Ao todo
eram sete.
Logo começaram a perguntar o que significava tudo
isso.
— Silêncio! — voltou a trovejar a mesma voz. —
Encontramo-nos numa situação crítica. Alguns dos
passageiros dominaram a tripulação e assumiram o
comando do avião. Vários deles entraram na cabina de
passageiros, para desarmar todo mundo. O que importa no
momento é vigiar esta porta, para não deixar ninguém
entrar. E peço que formulem sugestões de como podemos
restabelecer a ordem a bordo.
— O senhor não pode manter essa porta trancada! —
indignou-se uma senhora. — Meu marido e meus filhos
estão na cabina de passageiros.
Outras pessoas formularam objeções semelhantes. Mas
ficaram em minoria e suas palavras não encontraram
receptividade.
— Neste momento não podemos preocupar-nos com
problemas desse tipo. Peço-lhes que mantenham a
disciplina e não se esqueçam do perigo em que nos
encontramos.
— Seria conveniente não exagerar o perigo — disse
alguém que se encontrava num ponto mais afastado. — Se
enfrentarmos esses bandidos, poderemos levar a pior. Essa
gente não deve estar interessada em matar-nos; sem dúvida
só está atrás dos nossos pertences. Proponho que
capitulemos imediatamente, para não arriscarmos a vida.
— Seu covarde! — protestou alguém.
Outro passageiro manifestou uma suspeita:
— Até parece que você é um dos bandidos.
— É bom que só fale um de cada vez — pediu John
Marshall. — Creio estar em condições de explicar os
acontecimentos. O importante é vigiar a entrada da cabina
de passageiros.
Alguns homens armados adiantaram-se e se ofereceram
para cuidar desse ponto.
— Conte! — pediu o passageiro que falara em
primeiro lugar, dirigindo-se a John Marshall.
— De início quero ressaltar que não tenho certeza de
nada — principiou este. — Mas o que sei me leva a
desconfiar de que o perigo não é de ser menosprezado.
Não há dúvida de que os bandidos estão interessados nos
nossos pertences. E trata-se de algo bem definido, no valor
de pouco mais de vinte e três mil libras esterlinas. Já se
apoderaram desse dinheiro.
— Se é assim, por que fazem tanto espalhafato? —
perguntou um dos presentes. — Não querem tirar nada dos
outros, inclusive de mim?
— Provavelmente não. Dificilmente estarão atrás do
seu dinheiro. Quando muito, estarão interessados nas jóias
de sua esposa. Para nós o grande perigo resulta do fato de
que os bandidos devem estar empenhados em matar a
vítima do roubo, pois o dinheiro e algumas outras coisas
que não vêm ao caso só estarão seguras em suas mãos se
matarem esse homem.
— Quem é a vítima?
— Isso não interessa.
Adams não se conformou com a recusa de Marshall.
Levantou-se e cumprimentou os presentes.
— A vítima sou eu. Queiram perdoar se minha
presença lhes trouxe tantos problemas, mas a culpa não é
minha.
Adams sentiu a mão de Marshall pousada em seu
ombro. Voltou a sentar. Era preferível que John Marshall
falasse.
— Senhoras e senhores, dentro de pouco tempo serão
obrigados a agir. Por isso peço-lhes que se abstenham de
14
perguntas supérfluas. O perigo atinge a todos, por menos
interessado que os bandidos estejam na maioria dos
senhores. Estão atrás do senhor Adams. Para eliminá-lo,
não hesitarão em desviar o avião para outro local. Talvez
seja um trecho inóspito do litoral, a selva da índia ou as
montanhas do Tibet. Acho que já compreenderam que
devemos tomar alguma providência para defender-nos.
Enquanto estivermos voando, não corremos nenhum
perigo imediato. Mas isso pode mudar logo.
Até ali nenhum dos bandidos tentara arrombar a porta
que ligava o salão à cabina dos passageiros.
Ainda havia alguns membros da tripulação no trecho
não ocupado do avião. Eram dois cozinheiros, um garçom
e três aeromoças.
Marshall dirigiu-se a eles.
— Deve haver um telefone para comunicação com a
cabina de comando. Será que posso usá-lo?
A cortesia numa situação dessas nunca deixa de
impressionar. Marshall foi conduzido imediatamente ao
aparelho. Um dos garçons comprimiu o botão. Do outro
lado da linha atenderam. Mas desta vez não se percebeu
nada de cortesia.
— Que quer? Pretende fazer propostas de paz? Fale
logo.
— Adivinhou! Se não fosse isso, não teria entrado em
contato com vocês.
— Não haverá paz, a não ser que capitulem
incondicionalmente.
— É isso que queremos evitar. Afinal, as negociações
servem para alcançar uma solução conciliadora.
— Não gaste seu fôlego à toa, rapaz. Ainda precisará
dele.
— Um momento! É claro que temos algo a oferecer.
Sei muito bem que gente do seu tipo não dá nada de
presente.
— O que é que você pode nos arranjar?
— Tenho dinheiro. Isto é, um dos passageiros tem.
— Muito obrigado pela informação. Ainda hoje
apanharemos o resto da grana. Não se preocupem com isso
antes do pouso.
— Acontece que o dinheiro não se encontra a bordo.
Não convém falar tanto no telefone. Muita gente está
escutando. Você me garante livre trânsito para ir à sala de
comando e voltar?
— Se deixar a pistola para trás, pode vir.
Marshall ainda teve de enfrentar problemas com alguns
dos passageiros. Uns achavam que a tentativa de
negociação era inútil, face à situação de inferioridade em
que se encontravam. Outros, sem rebuços, manifestavam a
suspeita de que era um dos inimigos, e que apenas
desejava escapar. Mas acabaram permitindo que fosse.
Na cabina de passageiros, Marshall foi recebido pelos
bandidos, que o conduziram à cabina de comando.
Enquanto andava, procurou calcular seu número. Eram
pelo menos dez, o que o deixou bastante impressionado.
O homem que se encontrava no assento do piloto era
um estranho muito bem trajado. Assumira o comando,
ajudado por dois elementos, e parecia dominá-lo
perfeitamente.
— Johnny, ocupe meu lugar enquanto converso com
este cavalheiro. Bom dia. Foi você que telefonou há
pouco?
Marshall sentou sem esperar convite.
— Gostaria de expor meu ponto de vista sobre a
situação. Vocês concluirão se estou com a razão ou não.
— Fale seu profeta de meia-tigela.
— Vocês estão atrás de Adams. Já se apoderaram do
seu dinheiro. Só precisam acabar com ele, para que não os
possa incomodar mais. Mas não podem matá-lo e aterrissar
em Tóquio conforme a previsão. Por isso pretendem
pousar em algum ponto do sul da Ásia, de onde
desaparecerão sem deixar vestígios. O que me importa é a
sorte dos outros passageiros, nos quais vocês não devem
ter o menor interesse. Consegui fazer-me entendido até
aqui?
— Continue meu filho. Não deve ser só isso que tem a
dizer.
— Por enquanto é só. Minha oferta só faz sentido se a
exposição que acabo de fazer for correta.
— Você disse que nos arranjaria algum dinheiro. Sabe
onde Adams está guardando o resto? O dinheiro que nos
oferece é de Adams, não é?
— É claro! São mais de quarenta mil libras depositadas
no Banco de Montreal. A proposta que faço é a seguinte:
sacrifico Adams e o resto do seu dinheiro, fora algumas
despesas para mim; é claro. Em compensação os senhores
garantem a segurança dos outros passageiros. Concordam?
— Em quanto calcula suas despesas? — perguntou o
chefe.
Depois que Marshall mencionara a soma de quarenta
mil libras, tornara-se muito mais cortês.
— Duas mil libras. Não quero prejudicá-los.
— De acordo. Sua proposta é razoável. Como faremos
para pôr a mão no dinheiro?
— Terá de fazer de conta que está negociando com
Adams. Descobriremos um meio de dissipar suas
suspeitas. Afinal, ele estará pagando seu próprio resgate.
Tenho certeza de que tem um código para transferências
telegráficas. Dessa forma o assunto poderá ser resolvido
sem maior perda de tempo. É verdade que ele só me
conhece desde o meio-dia, quando nos encontramos em
Croydon, mas já consegui captar a confiança dele. Mas
vamos à segunda parte do nosso acordo. Onde pretendem
pousar? — John Marshall manteve todo o autodomínio.
— Dispomos de um lugar muito bom perto de Rangun
— disse o chefe, enquanto no íntimo evocava um ponto
completamente diverso. — Dali será fácil entrar em
contato com Londres. E seus cordeirinhos não demorarão
em encontrar condução para Tóquio.
Poderia dizer como é seu campo de pouso secreto?
Estou interessado nos detalhes, porque não quero correr o
menor risco.
Era evidente que o chefe estava pensando no sul da
índia, numa região situada entre as montanhas de
Cardamon e a cidade de Madura. O que dava na vista era a
transição de uma espessa mata virgem numa área extensa
de estepes.
— Trata-se de um velho aeródromo para naves que
pousam e decolam na vertical. Serve perfeitamente aos
nossos objetivos. Nas proximidades só existe uma aldeia
de nativos. Assim não correrei maiores riscos. Então,
como é? Vai falar com Adams?
— Naturalmente. E é bom que seja logo.
— Muito bem. Vá. Cá entre nós, consideramo-nos em
estado de armistício.
John Marshall voltou.
— Eles nos deixarão em Rangun — declarou aos
passageiros. — Dali existe conexão para o Japão e a
Coréia. A única exigência que fizeram é que após o pouso
permaneçamos a bordo o tempo suficiente para que os
15
bandidos se coloquem a salvo. Não consegui arrancar mais
que isso.
— É muito, se for verdade. Mas é pouco se
considerarmos que não dispomos de nenhuma garantia de
que a promessa será cumprida.
Marshall procurou tranquilizar seu interlocutor.
— Não podemos ser muito exigentes. Se achar que
pode conseguir um acordo mais vantajoso, vá até lá.
A maior parte dos passageiros pôs-se do lado de
Marshall, louvando sua coragem.
Enquanto o tom das conversas foi crescendo e uma das
aeromoças anunciava que no momento estavam
sobrevoando a parte norte do arquipélago das Maldivas,
John Marshall, sem que ninguém o percebesse, retirou-se
em direção ao toalete. Tirou do bolso um minúsculo
transmissor, que pareceria um tanto estranho aos olhos de
qualquer técnico terreno do século XX.
— É Marshall que fala, é Marshall. Estou chamando a
Terceira Potência. Por favor, respondam. Aqui fala John
Marshall. Por favor, Perry Rhodan, responda!
As sereias uivaram e campainhas estridentes tiniram no
território bloqueado do deserto de Gobi.
A voz de Reginald Bell saiu retumbante dos alto-
falantes fixados do lado de fora das barracas:
— Alarma número um! Os combatentes devem
comparecer imediatamente ao comando central.
Perry Rhodan, que estava prestes a voltar para junto do
cérebro robotizado para fazer realizar alguns cálculos
detalhados, fez meia-volta e correu os duzentos metros.
Chegou juntamente com Kakuta, o capitão Klein é o
tenente Kosnow.
— Minha gente; já encontramos um ministro das
finanças — explicou Bell. — Mas ele se encontra nas
mãos de uns bandidos. Dentro de poucos minutos será
largado na ponta sul da índia, onde por certo darão cabo
dele.
Marshall acaba de transmitir o comunicado.
— Todos para a nave espacial! — ordenou Rhodan.
Quando saíram da barraca, cruzou com Thora.
— Mais uma vez a humanidade se encontra em estado
de alarma — constatou esta em tom indiferente.
— Precisamos da nave, Thora. Não acredito que você
ou Crest tenha outros planos com ela.
— Fique à vontade, Perry. Vejo que mais uma vez tem
de resolver um assunto de repercussão mundial.
Rhodan não teve tempo de aborrecer-se com o tom
irônico em que foram proferidas essas palavras. Continuou
a correr, pois a senha “ministro das finanças” bastara para
trazer-lhe à consciência a importância dos acontecimentos
que se desenrolavam naquele instante.
Calculara de cabeça a distância entre o deserto de Gobi
e o décimo grau de latitude e concluíra imediatamente que
mesmo com seu traje de arcônida não chegaria a tempo. A
única possibilidade era a nave espacial, cuja aceleração
seria suficiente para vencer em poucos minutos a distância
de quatro mil quilômetros.
Exatamente oitenta e cinco segundos se passaram do
alarma até a decolagem da nave-gigante. Bell,
profundamente reclinado na poltrona, dispensou todos os
dispositivos de direção automática.
— Peter! — gritou, dirigindo-se a Kosnow. — Gire o
mapa para o sul da índia. A coisa acontecerá a cento e
cinquenta quilômetros a oeste de Madura. Temos de ir ao
encontro do avião um pouco mais ao sul, Perry. Se
conseguirmos avistá-lo, tudo dará certo. Da última vez que
Marshall anunciou sua posição, encontravam-se sobre as
Maldivas.
— Não há problema — disse Perry Rhodan em tom
tranquilizador. — Com este balão mágico conseguiremos.
A nave esférica dos arcônidas voava a cento e trinta
quilômetros de altura. Via-se perfeitamente que o globo
terrestre girava abaixo deles, como se um punho titânico
lhe tivesse desferido um tremendo soco. O planalto do
Tibet, o Himalaia, o Nepal, o Ganges deslizaram abaixo
deles. Por alguns minutos passaram sobre a água do Golfo
de Bengala, entre Dchaipur e Madras. De repente Reginald
Bell avistou o avião. Os homens acotovelaram-se à frente
da tela.
— Deve ser o traço cintilante que se vê ali. Mantém
uma rota bem definida. A altitude é de dez mil metros,
aproximadamente.
— Tomara que não nos vejam! — disse Kosnow.
— É impossível! — Bell sorriu. — Colocamos a capa
que nos torna invisíveis. Mesmo que esses cavalheiros
examinem o céu por cima deles, o mecanismo defletor dos
raios luminosos fará com que não vejam a menor mancha.
Quer que desça mais?
Rhodan fez que sim.
— Aproxime-se a dois mil metros. Devemos aterrissar
logo após o avião. Não quero dar muito tempo aos
bandidos, para que não tomem qualquer medida defensiva.
— Será que podem fazer alguma coisa contra nossos
armamentos?
— Têm muitos reféns a bordo — ponderou Rhodan. —
Nestas condições nossa superioridade técnica não
adiantará muito.
III
— Que história de quarenta mil libras é essa? — disse
Homer G. Adams indignado. — Não tenho esse dinheiro.
Se tivesse, não estaria disposto a...
— Sei que você é um pobretão — tranquilizou-o
Marshall. — Mas não é necessário contar isso aos
bandidos. Basta entreter o chefão por algum tempo, até
que recebamos auxílio. De qualquer maneira terá de fazer
de conta que possui esse dinheiro e que está disposto a dá-
lo em troca da vida.
16
— Até que recebamos auxílio? — disse Adams,
esticando as palavras. — Será que você dispõe de relações
que lhe permitem dar expressão a uma esperança desse
tipo?
John Marshall esboçou um sorriso misterioso.
— Bem, você pode pensar no assunto. Ainda dispõe de
exatamente três minutos até o pouso. Aí provavelmente o
chefão não tardará a chamá-lo.
Adams olhou para o relógio e a pequena tela que se
encontrava sobre a entrada da cozinha de bordo.
— Ainda faltam mais de dois mil quilômetros para
Rangun. Acho que você errou na conta, Marshall.
— Nada disso! Vamos aterrissar perto de Madura.
Não havia tempo para outras perguntas. O chefão já
iniciara as manobras de aterrissagem. O avião desceu
como uma pedra que despenca num abismo. Os
passageiros tiveram de segurar-se. Depois de um baque
pesado, o avião parou.
— Aterrissamos! — disse alguém.
Na tela via-se uma paisagem de estepe coberta de
arbustos e mais ao longe, que nem uma muralha, a beira de
uma densa floresta.
Marshall voltou a usar o interfone. Ao voltar, disse:
— Adams, o pessoal quer que você venha comigo. Os
outros devem esperar até que as negociações estejam
concluídas. Peço aos cavalheiros que mantenham a calma
e a disciplina por mais alguns minutos. Não há motivo
para duvidar do desfecho feliz das negociações.
Marshall e Adams tiveram de usar o elevador para
chegar à proa, já que o jato se encontrava em posição
vertical. Os assentos dos passageiros haviam realizado um
giro de noventa graus nas suas articulações.
— Sinto observar, chefe, que você não cumpriu nosso
acordo — protestou Marshall ao entrarem. — Será que é
tão ignorante de geografia que não sabe distinguir o Norte
e o Sul da índia?
— Decidimos de outra maneira, Marshall. Mas isso
não prejudica nosso acordo. Madura é tão boa quanto
Rangun.
— Acontece que Madura fica a cento e oitenta
quilômetros daqui. Como vai levar os passageiros para lá
num curto espaço de tempo?
— Deixe isso por minha conta. O que me interessa
saber é o que Adams acha da minha proposta.
— Por mais benevolente que se queira ser, sua
proposta não passa de um ato de chantagem — disse
Homer G. Adams em tom contrariado. — De qualquer
maneira, tomei conhecimento da sua exigência e tenho de
admitir que minha vida valha o dinheiro que possuo. Mas
não pensarei em pagar um resgate enquanto minha
segurança pessoal não estiver garantida. Peço-lhe que me
dê suas ideias sobre este ponto.
— É tudo muito simples. Você assina um cheque,
envio um mensageiro a Madura, onde temos possibilidades
de entrar em contato com o Banco de Calicut, e
aguardaremos para saber se o negócio está em ordem.
Assim que a quantia combinada estiver em minhas mãos,
solto você e os outros passageiros.
— O negócio não serve. Em primeiro lugar é muito
demorado, pois com essa história de mensageiro
perderemos ao menos dois dias. Depois, não há nenhuma
reciprocidade de garantias. Como vou saber se me soltará
quando estiver com o dinheiro nas mãos? Queira pensar
numa solução melhor e procure ser objetivo.
— Até parece que você ainda não compreendeu a
situação em que se encontra — respondeu o chefão em
tom mordaz. — Acontece que todas as vantagens estão do
meu lado, e não estou disposto a desistir delas por causa da
sua paixão pela objetividade.
— Hum! — interveio Marshall, cujo rosto apresentou
um estranho traço de otimismo. — Se alguém pode falar
em vantagem somos nós, não você. Seria conveniente que
se interessasse um pouco por aquela tela, que lhe pode
revelar algumas belezas paisagísticas e outras surpresas.
Num movimento reflexivo todos olharam para a tela,
onde se viam figuras estranhas que caíam do céu.
— Esses trajes não são de mergulhador — esclareceu
Marshall em tom satisfeito. — Trata-se de uma pequena
brincadeira técnica realizada por uma civilização superior.
O azar é seu, pois esses homens são meus aliados. Que tal
deixarmos de lado esse jogo de esconder e passarmos às
realidades, chefe? Sugiro que coloquem suas armas sobre a
mesa, levantem as mãos e nos digam onde esconderam os
membros da tripulação, para que este jato possa chegar a
Tóquio sem maior atraso.
A única resposta consistiu num sorriso confuso. No
rosto do chefe dos bandidos espelhavam-se a surpresa, a
incredulidade, o medo e a raiva.
— Marshall, você é um sonhador incorrigível. Deixe
de blefes. Esses dois esquisitões podem passear à vontade
por aí. Devem estar curiosos por termos realizado um
pouso não programado. Dificilmente representarão um
reforço para você. Vamos voltar ao assunto.
— Estamos no assunto, chefe. Para falar com
franqueza, sua leviandade me assusta um pouco. Se fosse
você, já teria procurado liquidar esses visitantes que
vieram sem serem convidados.
— Haja quem compreenda você, Marshall! Às vezes
até parece que está se candidatando para ser um membro
do nosso grupo. Mas está bem, vamos atirar. Jim, você
pode dar conta do recado.
Jim levantou-se com um sorriso de escárnio no rosto e
pegou uma pistola automática. O chefe acionou um
mecanismo que abriu uma pequena escotilha. Jim tomou
posição de tiro. Apertou o gatilho e manteve a mira
centrada sobre os dois vultos estranhos até esvaziar o pente
de balas. Ao abaixar a arma fez uma cara de espanto.
— Ainda estão por aí, chefe. Aposto que acertei pelo
menos um de cada três tiros. Alguém pode me dar mais
um pente de balas?
— Você vai gastar munição à toa — disse subitamente
uma voz masculina com sotaque japonês. Ninguém, a não
ser John Marshall, estava preparado para a aparição. Os
homens viraram-se sobressaltados e encararam o rosto de
Tako Kakuta.
— Quem é este? — gaguejou o chefe. Estava tão
confuso que o japonês não teve a menor dificuldade em
quebrar a última resistência com o psicorradiador que
trazia no bolso.
— Sou amigo de vocês, cavalheiros. Coloquem as
armas aqui e recuem até a parede. Não lhes faremos nada.
Dentro de poucos segundos os bandidos estavam
encostados à parede e deixaram que os algemassem. Dali a
pouco o restante do bando foi dominado e os membros da
tripulação puderam ser libertados.
John Marshall trocou algumas palavras com o
comandante da aeronave, ao qual desejou uma boa viagem
a Tóquio. Face ao desfecho feliz da aventura os homens
rodearam-no, convidaram-no para uma lauta refeição e
formularam inúmeras perguntas.
17
— Sinto decepcioná-los! Acontece que sairei de bordo
em companhia do senhor Adams. Não estou habilitado a
prestar todos os esclarecimentos. Peço-lhes que se
contentem com o fato de terem escapado sãos e salvos e
sem prejuízo no seu patrimônio.
* * *
— Fico-lhe muito grato — disse Homer G. Adams,
dirigindo-se a Marshall, depois que o foguete havia
desaparecido nas nuvens. — Evidentemente, peço que me
forneça às explicações que recusou aos passageiros.
— Será que precisa de esclarecimentos?
— Por que não? Acha que sou algum vidente?
— É o que vamos descobrir. Afinal, você é o maior
especulador de Bolsa e manipulador financeiro que já
existiu sobre a Terra. Uma coisa dessas não acontece por
nada. Em geral os supergênios possuem um sexto sentido.
É claro que você possui dons sobrenaturais ou
supersensoriais, conforme queira exprimir-se.
— Você acredita seriamente nessas lorotas? —
perguntou Adams.
— Não, respondeu Marshall. Não acredito. Não
devemos confundir ciência com religião. Na primeira
sabe-se alguma coisa, na última acredita-se. E a
parapsicologia é uma ciência.
— Gosto muito de aprender — disse Adams com as
sobrancelhas levantadas. — A única coisa de que entendi
até hoje foi o dinheiro.
— E com isso revelou bons conhecimentos de
psicologia das massas. E a distância entre a psicologia e a
parapsicologia só é de um passo, mesmo que esse passo
conduza por cima de uma muralha. Você deve estar
surpreso com a aparição de meu amigo Kakuta. Quando
tiver recebido alguma instrução parapsicológica deixará de
surpreender-se.
— Quer dizer que você é um fenômeno
parapsicológico? — perguntou Adams, dirigindo-se ao
japonês. — Devo confessar que fiquei tão surpreendido
com sua aparição quanto os bandidos. De qualquer
maneira, deve haver uma explicação natural para isso.
— É claro que há — confirmou o japonês com um
gesto amável. — Assim que a teleportação for um
fenômeno natural para você, minha aparição também será.
— Tele... o quê?
— Sou filho de um casal de japoneses que por ocasião
do lançamento da primeira bomba atômica, em 1945, ficou
exposto a intensas radiações. Dali resultou uma mutação
das características hereditárias. Tornei-me um mutante.
Homer G. Adams ficou calado. Seu sorriso já não
apresentava o menor traço de ironia. Depois de algum
tempo disse:
— Você é capaz de, independentemente de quaisquer
recursos técnicos, transformar seu corpo em energia e
fazê-lo ressurgir em outro lugar. É isso?
Tako Kakuta confirmou.
— Em princípio, sim. Acontece que o lugar em que
posso ressurgir fica sujeito a limites bastante restritos. É
possível que através de um treino persistente, eu possa ir
aumentando a distância.
— Isso é formidável, meu caro. Com esse dom você
poderia...
Adams interrompeu-se em meio à frase. Um contato
importante parecia ter-se completado em seu cérebro.
— Continue — pediu Marshall. — Kakuta é um
homem que sabe apreciar os bons conselhos.
— Um instante — pediu Homer G. Adams. — Como
foi essa história da rajada de tiros disparada por Jim? Onde
foram parar os dois homens naqueles trajes estranhos? Por
que Jim não conseguiu matá-los?
— Você está formulando muitas perguntas de uma só
vez. Jim não conseguiu nada porque os projéteis que
disparou foram absorvidos por um envoltório energético.
Os dois homens não sofreram nada. Retiraram-se para
trazer nossa nave até aqui. Afinal, queremos dar o fora
daqui o quanto antes. Poderei pedir ao nosso comandante
que o leve a Tóquio.
— O que vou fazer em Tóquio, Marshall? Dali teria
que seguir viagem e fazer outra baldeação em Pequim.
Aqui estou muito mais perto do meu destino.
— Nesta estepe junto às montanhas de Cardamon?
— Vamos deixar de fingimento, Marshall? Desde
Londres você está atrás de mim, não é verdade?
— É verdade. Quando descobriu?
— Meu cérebro deve ter sofrido bastante nos último
quatorze anos. Só agora começo a enxergar as coisas.
Nossos objetivos eram os mesmos, mas nenhum de nós
sabia do outro.
— É um engano seu. Eu sabia.
— Conhecia as minhas intenções? Desde quando?
— Desde que saiu da penitenciária. Estávamos muito
interessados na sua pessoa. Você compreenderá quando
Perry Rhodan lhe expuser com todos os detalhes o estado
lastimável das nossas finanças.
— Por que se lembrou de justamente de mim?
— De quem iríamos nos lembrar? Não há dúvida de
que você é um gênio financeiro. Ainda bem que, depois
daquele processo sensacional, ao menos permitiram que
continuasse a viver. Encontramos num arquivo diversas
notícias de jornal que despertaram nossa atenção.
Estudamos o seu passado. Rhodan decidiu conseguir um
indulto para você e acompanhar seus passos, para que logo
se encontrasse conosco.
— Espere aí! Afinal, minha pena foi comutada por
bom comportamento...
— Isso não deixa de ser verdade. De qualquer maneira
nossos agentes utilizaram certos recursos dos arcônidas
para apressar a decisão da Justiça. Temos um aparelho
psíquico, que estimula a capacidade decisória do indivíduo
através de certas radiações de alta frequência. Você já teve
oportunidade de assistir ao seu funcionamento. Foi quando
Kakuta desarmou os bandidos.
— Está certo — objetou Adams. — Você me
apresentou Kakuta, que é um verdadeiro teleportador.
Além disso, fez, num espaço de poucos minutos, uma
demonstração das conquistas mais formidáveis da
tecnologia. Mas ainda resta sua afirmativa de que já
conhecia minhas intenções quando deixei à penitenciária.
É verdade que nas últimas semanas acompanhei com o
maior interesse todo o noticiário jornalístico sobre Perry
Rhodan. Também é verdade que aos poucos foi surgindo
em mim o desejo de ser útil a ele, se tivesse possibilidade
para isso. Mas não falei com quem quer que seja sobre
estes meus planos.
— Mas pensou neles. Para mim isso basta.
Mais uma vez, Adams não soube o que responder. O
japonês veio em seu auxílio, esboçando um sorriso.
— É que John Marshall é nosso segundo exemplar
parapsicológico. Isso explica tudo, Adams. É um telepata.
Basta que você pense intensamente numa coisa para que
18
ele possa tirar suas conclusões.
— Isso me deixa tonto, meus caros. Afinal, não sou tão
jovem assim. Deviam ter um pouco de consideração por
minha pessoa.
— Se quiser trabalhar para Perry Rhodan, deve
acostumar-se a muita coisa aparentemente inacreditável.
Mas pela nossa experiência no assunto podemos asseverar
que o homem se acostuma muito depressa a essas coisas.
Ah, aí vêm nossos amigos. Me entregue sua pasta, Adams.
— Nem pense nisso. Não sou tão velho que precise de
um carregador por causa de alguns quilos de papel moeda.
Aliás, falta explicar uma coisa, se bem que a esta altura eu
talvez devesse adivinhar tudo. O chefão dos bandidos disse
que seu destino seria a cidade de Rangun. Apesar disso,
você sabia que ele pousaria aqui. Também descobriu isso
por via telepática?
— Só poderia ter sido. Minha aparente disposição para
negociar não passou de um blefe. Só tive necessidade de
um ligeiro contato com o homem para descobrir seus
planos. Assim que soube que pretendia pousar a oeste de
Madura, informei nossos amigos no deserto de Gobi. O
resto ficou por conta deles.
A gigantesca nave esférica dos arcônidas pousou diante
de Marshall, Adams e Kakuta e abriu uma das escotilhas.
Quando se encontravam a cerca de duzentos metros de
distância Perry Rhodan surgiu na escotilha e saltou para o
chão. Foi andando devagar ao encontro deles. Dali a pouco
o dirigente da Terceira Potência viu-se pela primeira vez
diante de seu “ministro das finanças”.
— Seja bem-vindo, Adams. Fico satisfeito em saber
que encontrou o caminho para junto de nós.
— Foi um caminho muito difícil, Rhodan, mas tive um
prazer imenso em percorrê-lo. É que não sei ficar sem
fazer nada. Foi o que mais senti nos últimos quatorzes
anos. Você tem problemas financeiros, não tem?
IV
Nova Iorque.
Quem caminha da esquina da Broadway com a Quinta
Avenida na direção norte encontra do lado esquerdo um
edifício de vinte e dois andares, construído no fim da
década de trinta. Mal se vê a fachada, já que mais de trinta
firmas penduraram nela propagandas luminosas. Há anos
ninguém se preocupa com a beleza ou a feiúra desse tipo
de enfeite, pois o aspecto desse edifício em nada se
distingue dos demais de Manhattam. Só os funcionários de
alguns escritórios situados nas proximidades notaram que
numa segunda-feira ensolarada alguns trabalhadores se
puseram a executar obras na área situada entre o sétimo e o
nono andar. Dentro de poucas horas foi retirada a
propaganda de certa marca de pasta de dentes, de um
xampu e um pneu antiderrapante. De noite, as letras GCC
reluziam em tonalidades amarelo-azuladas. A única coisa
notável foi à velocidade do trabalho, que permitiria a um
observador atento tirar certas conclusões sobre a
mentalidade do patrão.
No entanto, só no dia seguinte descobriu-se o que
significavam as letras GCC. Um anúncio de página inteira
do New York Times deu notícia de que a General Cosmic
Company abrira seu escritório naquele local. A
propaganda apontava a empresa como agência de
consultoria e oferecia a qualquer interessado, fosse qual
fosse seu ramo de atividade, assessoria e também
maquinismos adequados a preços extremamente favoráveis
que, em comparação com as vantagens oferecidas, podiam
ser considerados sensacionais.
O gerente, Homer G. Adams, seguindo instruções do
proprietário, Benjamim Wilder, contratara três
funcionárias. A única coisa que trouxera foi muito papel
em branco. Não havia documentos escritos. Na conversa
dirigida às três funcionárias limitara-se a dizer o seguinte:
— O proprietário da firma confiou-me a direção do
negócio. Somos um empreendimento novo, que não tem
tradição nem antecessores. Faço votos de que com o
auxílio das senhoritas dentro de pouco tempo as letras
GCC adquiram fama mundial. Exijo o máximo de
dedicação e uma correção absoluta. Trazem consigo a
vantagem de serem tão novas profissionalmente como é a
firma. Crescerão com ela e conquistarão boas posições,
desde que nos entendamos bem. Para os serviços de
registro, escrita e contabilidade dispõem de máquinas. Para
certos trabalhos intelectuais, como os de cálculo e
estatística, temos este aparelhozinho eletrônico, cujo
funcionamento eu lhes explicarei daqui a pouco. Quanto
ao mais, exijo dedicação ao trabalho e correção, conforme
já salientei, e ainda cortesia para com toda e qualquer
pessoa que entrar neste recinto. Obrigado.
O expediente começava às oito e meia. Das nove horas
em diante eram recebidos os clientes e vendedores. As
nove em ponto, a senhorita Lawrence anunciou o primeiro
visitante. Era um mensageiro de uma casa de flores, que
trazia um buquê de duas dúzias de gladíolos. O cartão que
acompanhava as flores trazia a assinatura do proprietário
da firma, senhor Benjamim Wilder. Homer G. Adams
guardou o cartão com um sorriso condescendente e
despendeu uma palavra de elogio para com o chefe
ausente. O mensageiro foi dispensado com uma gorjeta de
um dólar.
No momento em que o mensageiro saía um cavalheiro
que se chamava Abraão Weiss, e cuja largura correspondia
à metade da altura, chegava.
— Bom dia, senhor Adams! Li seu anúncio no New
York Times...
— Queira sentar, senhor Weiss.
Weiss deixou-se cair numa poltrona. Parecia bem
disposto.
— Bem, senhor Adams, como ia dizendo, li seu
19
anúncio e resolvi dar uma chegada até aqui para saber um
pouco mais. Pensando bem, o que o senhor promete não é
pouco.
— Depende dos padrões que se queiram usar. O que
posso fazer pelo senhor, senhor Weiss?
— Bem... como direi? De início, minha visita tem um
caráter puramente informativo. Sou bom nos negócios.
Mas tenho muita curiosidade para conhecer todo e
qualquer tipo de progresso. Talvez estivesse perdendo
alguma coisa se não o procurasse, não é?
— É bem possível. Diria que toda pessoa que não
procura a GCC perde alguma coisa.
— Muito bem! Isso é um ótimo slogan.
— Afinal, o que está precisando? — disse Adams em
tom tranquilo. Embora não apreciasse os modos do
visitante, isso não o impressionou.
— Sim, do que estou precisando? — refletiu Weiss. —
Estou interessado num projeto no Colorado. Talvez seja
interessante para o senhor. Entende alguma coisa de usinas
de eletricidade?
— Trata-se de usinas atômicas?
— Não, de usinas hidráulicas. É um projeto totalmente
convencional. Trata-se de produzir eletricidade com água
represada. Não me diga que o projeto é conservador
demais.
— Nem penso nisso. Quer dizer que está construindo
uma hidrelétrica?
— Isso mesmo. No trecho superior de Arkansas, perto
de Cripple Creek. Ou melhor, ainda não estou construindo.
Mas minha firma gostaria de receber o contrato.
— Quer dizer que precisa de uma base de cálculo
favorável, para poder concorrer com os outros
pretendentes?
— Não é bem isso, senhor Adams. Nossa proposta já
foi formulada e acredito que temos as melhores chances.
Afinal, somos a empresa mais importante no setor. Mas, a
título meramente informativo, gostaria de saber se tem
alguma coisa no seu arsenal que poderia ser de utilidade
para nós. Quero conhecê-lo melhor, sabe? Gostaria de
saber quem é a GCC e o que faz. Talvez em outra
oportunidade possamos concluir um negócio. Tenho
certeza de que também aprecia um contato deste tipo, pois
uma firma nova precisa tornar-se conhecida e estabelecer
relações. Neste ponto nossa companhia é muito valiosa
para o senhor.
Homer G. Adams não precisava desse tipo de
ensinamento. Apesar disso não deixou perceber seu
desagrado. A experiência lhe ensinara que os fanfarrões
como Abraão Weiss são as pessoas que mais precisam de
auxílio.
— É exatamente o que penso — disse, em tom amável,
estendendo a caixa de charutos ao seu interlocutor. —
Aceite, por favor!
Ele esperou que seu visitante acendesse o charuto e,
depois, continuou:
— Não quero negar que somos uma firma nova, que
ainda tem de criar seu campo de relações. Por isso mesmo,
fico tão satisfeito em cumprimentá-lo a esta hora da manhã
como meu primeiro visitante. Queira prosseguir. Seu caso
é muito interessante. A construção de uma hidrelétrica é
um procedimento um tanto antiquado, mas estou
convencido de que o ramo ainda tem futuro. A energia
atômica representa uma concorrência mais barata, mas, no
fim, tudo se resume a um problema de custos. É nesse
ponto que posso formular sugestões e propostas bem
convidativas.
Durante a longa fala, Adams não tirara os olhos de
cima do visitante. Notara um movimento suspeito em seu
rosto carnudo. Aos poucos Abraão Weiss deixaria de lado
suas maneiras reservadas, pois era evidente que desejava
muito mais que uma simples visita a título informativo.
— Queira desculpar, senhor Adams. Pelo que diz é
especializado nesse terreno...
— Somos especializados em quase todos os terrenos. É
precisamente nisso que reside nossa força. Quem promete
muito nos seus anúncios há de cumprir muito. De outra
forma nem deveria criar uma firma como esta. Mas
voltemos ao seu projeto. Pelo que sei o senhor tem que
temer ao menos os concorrentes que formularam propostas
baseadas na energia atômica. Hoje em dia a construção de
uma hidrelétrica — especialmente numa zona montanhosa
— é tão dispendiosa que suas chances devem ser muito
reduzidas. Em compensação, a manutenção de uma
hidrelétrica é mais econômica. Quer dizer, o senhor
ganhará o jogo no instante em que puder realizar a
construção aproximadamente ao mesmo preço que o de
uma usina nuclear.
Por um instante Abraão Weiss arregalou os olhos de
espanto. Mas logo se controlou.
— É verdade. Vejo que está bem informado. Por favor,
prossiga a sua exposição. Compreendeu o problema. Qual
é a solução que sugere?
Homer G. Adams deu um sorriso gentil.
— A resposta a essa pergunta já representa um
assessoramento pelo qual devia cobrar honorários. Mas,
para mim, hoje é feriado. O senhor é meu primeiro cliente,
ou melhor, visitante e interessado, e por isso concedo-lhe
uma entrevista gratuita. De qualquer maneira, meu
conselho não lhe bastará se o projeto for levado avante.
Precisará das nossas máquinas. Queira dar uma estimativa
do custo de uma hidrelétrica a ser construída em Cripple
Creek. Peço-lhe que informe também a proporção desse
custo que corresponde aos trabalhos de terraplenagem.
Depois disso ouvirá minha proposta.
O gorducho sugou o seu charuto, como se tivesse de
refletir antes de revelar cifras. Finalmente tomou uma
decisão.
— A relação entre as cifras será a correta. Na realidade
não conferem, já que não estou autorizado a revelar
qualquer coisa sobre nossa proposta. O senhor
compreende, não é?
— É claro que compreendo! Só se trata de um exemplo
— disse Adams com um sorriso significativo.
— Bem, admitamos que o custo total do projeto
importe em 1,3 bilhão de dólares.
Nesse caso o custo dos serviços de terraplenagem,
inclusive dos alicerces, atingiria quinhentos e cinquenta
milhões.
— Bem, essas cifras já servem para alguma coisa.
Faço-lhe uma proposta. O senhor poderia adquirir minha
máquina, que reduz o custo dos serviços de terraplenagem
em cerca de 90%. Isso significaria uma economia de perto
de quinhentos milhões de dólares e eliminaria qualquer
concorrência.
Abraão Weiss ficou tão nervoso que fez um
movimento desajeitado com a mão e espalhou a cinza do
charuto sobre a calça. Depois respirou profundamente e
exibiu um sorriso forçado.
— Vejo que tem senso de humor, senhor Adams. Pinta
utopias que não podem deixar de representar um atrativo
20
para uma pessoa que tenha um interesse real. Seria
conveniente que não levasse a hipótese para o terreno das
abstrações; devia partir do pressuposto de que o problema
que acabo de formular pode transformar-se num problema
real para um dos seus clientes.
— Se acredita que estou brincando comete um engano,
senhor Weiss. Estou convencido de que o exemplo que
acaba de expor representa boa parte das suas
preocupações. Disponho das máquinas de que acabo de
falar. Minha firma está à sua disposição para uma
demonstração prática. Basta telefonar para combinarmos
dia e hora, desde que tenhamos chegado a um acordo sobre
o preço. Se não tiver um interesse real no assunto, a GCC
não poderá dar-se ao luxo de realizar uma demonstração
tão dispendiosa.
Weiss levantou-se. Estava muito impressionado.
Adams percebeu que aquele negociante ágil se encontrava
numa encruzilhada da sua carreira e refletia intensamente
sobre o que devia fazer. Depois de algum tempo
perguntou:
— Quer dizer que quer proporcionar-me uma
economia de quinhentos milhões. De outro lado, porém,
teria de computar o custo das máquinas. Como se
apresentaria o cálculo após isso?
— Não há necessidade de preocupar-se com o custo
das máquinas na construção da hidrelétrica do Arkansas.
Essas máquinas representariam um investimento
permanente, que lhe permitiria executar mais vinte ou
trinta projetos desse tipo.
— Compreendo. Mas essas máquinas devem ter um
preço.
— O preço é fictício. Se tivesse de ser pago,
ultrapassaria o valor de cinquenta hidrelétricas. Por favor,
deixe-me concluir. O que quero dizer é que as máquinas
não estão à venda. Entro na sociedade com elas, e ambas
as partes terão feito um bom negócio.
Abraão Weiss teve de esforçar-se cada vez mais para
manter a compostura.
— Quer dizer que está atrás de uma participação no
negócio?
— Não estou atrás de uma participação, mas tenho
receptividade para ela. Com isso o negócio se tornará mais
sério. Sugira à diretoria de sua empresa que convoque uma
reunião especial do conselho fiscal e proponha a esses
cavalheiros um aumento de capital da ordem de 51%.
Esses 51% são o meu preço.
Weiss esboçou seu décimo segundo ou décimo terceiro
sorriso daquela manhã. Mas esse último sorriso malogrou-
se por completo. Com um gesto nervoso pegou o chapéu e,
andando de costas, dirigiu-se à porta.
— Espero que ainda possamos conversar sobre isso,
senhor Adams. Nas condições que acaba de propor, minha
firma nunca fechará um negócio com o senhor.
— Nesse caso só me cabe lamentar que tivesse
desperdiçado seu tempo precioso. A GCC não tem o
menor interesse em realizar negociações em torno dos seus
preços. Nossos cálculos sempre são corretos, e por isso
não podemos ceder um centavo. São 51%, senhor Weiss.
Pense no caso.
O representante da construtora de hidrelétricas
convencionais limitou-se a uma mesura desajeitada e
desapareceu na antessala.
O nome do próximo cliente em perspectiva era André
Clèment. Os cabelos escuros e sua figura pequena e
esguia, bem como o nome, revelavam a ascendência latina.
Segundo as informações da senhorita Lawrence, o senhor
Clèment esperara por mais de quarenta minutos. Homer G.
Adams concluiu que se tratava de outro homem com água
até o pescoço.
— Bom dia, senhor Adams — cumprimentou Clèment
com uma ligeira inclinação do corpo.
— Bom dia, senhor Clèment. Queira sentar. Aceita um
cigarro?
— Muito obrigado. É muita gentileza da sua parte, mas
não fumo.
— O senhor que é feliz — disse Adams. Clèment deu
uma risada forçada.
— Não sou tão feliz como acredita. Se fosse não
estaria aqui.
— Precisa de auxílio? De que se trata? De algum
aperfeiçoamento tecnológico? Ou de alguma forma de
assessoramento?
— Preciso das três coisas. E preciso logo. Talvez
minha exposição lhe pareça muito estranha, mas seu
anúncio foi concebido em termos tão gerais que se pode
imaginar qualquer coisa. Procurarei ser breve, senhor
Adams. Assim que perceber que não é o homem que
procuro, queira avisar-me. Na pior das hipóteses perderei o
meu tempo.
— Conte tudo. Prometo ser franco com o senhor.
— Represento a Minneapolis Mining Company. Além
da mineração, a empresa também se dedica à construção
de túneis. Como deve saber, no momento está sendo
construída uma estrada de ferro de Salt Lake City para São
Francisco. Na Serra Nevada será aberto um túnel de cerca
de setenta quilômetros de extensão, que deverá sair perto
de Sacramento. Desses setenta quilômetros, dez
quilômetros já foram concluídos. Isto é, foram perfurados.
Nossa empresa avança a partir do leste, enquanto a
concorrente trabalha no oeste. E esta já executou o dobro
do nosso trecho. O trabalho transformou-se numa corrida e
não há dúvida de que nós a perderemos.
— Por que acha que isso representa uma tragédia? É
verdade que a introdução de um ingrediente esportivo em
toda e qualquer competição constitui uma característica
tipicamente americana, mas o senhor deve ter seus
contratos com o governo e basta cumpri-los. Não vejo
como a concorrência pode incomodá-lo.
— Se estiver interessado, explicarei. Sua firma dispõe
de experiência no setor de escavações subterrâneas?
— Pois é bom que saiba que se trata de um dos ramos
em que nos especializamos. Se quiser fazer um relato
minucioso o senhor não estará perdendo seu tempo, senhor
Clèment.
— Muito bem. O contrato com o governo não abrange
a totalidade do projeto. As ordens de trabalho são emitidas
por trechos. Cada trecho é contratado com a firma mais
capacitada. Se avançarmos no ritmo atual, o governo nos
concederá a execução de cerca de um quarto do projeto.
Acontece que nossos cálculos foram realizados no
pressuposto de que executaríamos exatamente a metade do
projeto. É claro que, num empreendimento desse vulto,
têm de ser tomadas providências de longo alcance, a fim
de que a indústria possa fornecer no prazo o material de
que se precisa. Por isso fizemos pedidos há um ano e
mesmo mais, pedidos esses que são muito superiores às
nossas necessidades, se mantivermos o ritmo atual dos
trabalhos. Dessa forma, financiamos antecipadamente
certos materiais e serviços de que nunca nos utilizaremos.
O que pagamos equivale ao que pretendíamos ganhar. Se
21
computarmos a manutenção de sete mil trabalhadores, o
resultado será trágico. O prejuízo é de tal vulto que dentro
de poucos meses a Minneapolis Mining Company estará
falida. Senhor Adams, peço-lhe que considere minha
exposição estritamente confidencial. Aliás, em seu anúncio
o senhor garante a máxima discrição.
— Não perca seu tempo falando em coisas óbvias,
senhor Clèment. Estou me interessando tanto pelo seu
problema que já vejo nele um problema meu. Seu
problema consiste em abrir um grande furo na montanha,
por onde os trens vão transitar mais tarde. Tenho um
dispositivo pronto para ser patenteado, que pretendo
recomendar-lhe. De que tamanho será o furo?
— Terá seis metros de altura e dezoito de largura.
— Um momento, por favor!
Homer G. Adams pegou um papel e escreveu algumas
cifras. Dali a alguns minutos disse:
— Com minha máquina especial o senhor avançará
dois quilômetros por dia. Para isso é necessário que todos
os trabalhadores e objetos de valor sejam retirados do túnel
enquanto a máquina estiver funcionando.
André Clèment deu um sorriso amarelo. Não protestou
como Abraão Weiss, mas sentiu-se muito abatido.
— Não brinque senhor Adams! Sei apreciar uma piada,
mas aqui se trata da existência de minha firma. Não pode
apresentar uma solução realística?
— Estou pronto a fazer uma demonstração com a
máquina, senhor Clèment. Não sou nenhum fanfarrão.
Nossa máquina transforma a matéria em energia. É claro
que não se trata de um processo espontâneo como a reação
em cadeia que se processa numa bomba nuclear. A energia
liberada é armazenada em recipientes especiais e pode ser
vendida com um bom lucro. Compreendo seu ceticismo.
Mas não se esqueça de que está falando com um
representante da GCC, que tem por objetivo a mais ampla
racionalização e modernização tecnológica. Permita que
lhe dê um conselho, senhor Clèment. Assista a uma
demonstração de nossa máquina. Uma prova realizada
com um metro cúbico de material será suficiente. Quando
estiver convencido, decida.
— Está bem — disse o homem. — Vamos admitir que
o senhor conseguisse convencer-nos. Com uma técnica tão
revolucionária de escavações subterrâneas deixaremos o
mundo de pernas para o ar. Os resultados financeiros serão
inconcebíveis. Qual seria o custo da utilização de sua
máquina?
— Uma participação de 51% na sua empresa.
Pela primeira vez revelou-se um traço comum entre
André Clèment e Abraão Weiss. Tal qual este, Clèment
saltou da sua poltrona e encarou Homer G. Adams, como
se este tivesse perdido o juízo.
— Isso é ridículo! Será que o senhor não sabe o que
representa a Minneapolis Mining Company? É uma
empresa de âmbito mundial, que o senhor quer enfiar no
bolso de uma hora para outra.
— Ora, meu caro! O que lhe ofereço vale muito mais
que 51% da sua firma de âmbito mundial. E o senhor
acaba de pintar em todas as cores o que será da
Minneapolis Mining Company daqui a seis meses se não
aceitar minha proposta. Nessas condições um homem que
se propõe a, num verdadeiro golpe de mágica, transformar
sua firma num empreendimento da maior projeção em
todo mundo, e se contenta com uma participação de 51%,
só pode ser considerado um verdadeiro altruísta.
André Clèment não pôde ocultar o tremor das mãos.
— Prefiro retirar-me, senhor Adams.
— Fique à vontade! Foi um prazer conhecê-lo, senhor
Clèment. Quando tiver outros problemas, não deixe de me
dar à honra de sua visita.
A secretária anunciou mais sete pessoas que haviam
acorrido ao anúncio. Mas nenhuma delas chegou a
impressionar Adams. Livrou-se delas em cinco minutos.
Finalmente pôde dedicar-se a um telefonema.
— Alô, Klein. Como foi sua entrevista?
— Já me livrei dela. Há duas horas um repórter do New
York Post cruzou meu caminho. Senti-me à vontade para
tomar um drinque com ele. Minha máscara escorregou
para o lado, conforme havia sido programado. O rapaz
logo me reconheceu. Você devia ter visto como arregalou
os olhos. Logo se pôs de sobreaviso e disse de sopetão que
sou o tal do capitão Klein, um desertor das forças armadas
americanas, que tem todo o FBI no seu encalço. Respondi
que, sendo um rapaz inteligente, devia saber para quem
estou trabalhando. Ele retrucou, com toda ingenuidade que
todo mundo sabia disso. Fiz-lhe uma proposta de acordo.
Se ele não revelasse minha identidade e, assim, desistisse
de um furo espetacular, eu lhe daria a compensação
adequada. Contei-lhe tudo que há de interessante sobre
invasores desconhecidos, especialmente que, de uma hora
para outra, devemos contar com uma invasão de grandes
proporções dirigida contra a Terra. Ele confiou plenamente
nas minhas fontes de informação. Se conseguir convencer
o redator-chefe, a notícia deverá ser publicada na edição de
meio-dia.
— Muito bem. São onze e trinta e oito. Vá até a Bolsa.
Mantenha-se em contato comigo pelas ondas ultracurtas.
Se tiver qualquer dúvida, pergunte. O Dr. Haggard e o Dr.
Manoli já se encontram no saguão. Tenha cuidado para
não deixar perceber que os conhece. Aos olhos do público
vocês devem ser adversários.
— O.K., Adams. Quando a situação se tornar crítica,
estarei a postos...
* * *
Na manhã daquele dia, a Bolsa de Nova Iorque abrira
com um desânimo completo. Às dez horas as ofertas
oscilavam em torno de dez pontos abaixo dos níveis do dia
anterior. Assim mesmo os compradores eram muito
escassos. No entanto, os vendedores também se
mantinham retraídos, motivo por que a maior parte dos
corretores foi ao restaurante para tomar uma xícara de
café. As cotações mantinham-se inalteradas.
Quem estivesse lembrado da evolução dos negócios
nas últimas semanas chegaria à conclusão de que a
calmaria constituía um fenômeno altamente favorável.
Após o surgimento da Terceira Potência no deserto de
Gobi todas as ações caíram rapidamente. Em alguns casos
a queda chegava a 75%. Quando a terceira guerra mundial
estava prestes a irromper as circunstâncias indicavam não
apenas uma crise econômica, mas um colapso total. Após
isso surgiram provas do poder dos arcônidas. Os blocos
políticos do Ocidente e do Oriente aproximaram-se e
promoveram a constituição de uma união de todos os
países da Terra. A invasão de uma nave espacial
desconhecida fora rechaçada por Perry Rhodan. Os
negócios voltaram a animar-se. A fé e a esperança dos
homens cresceram. E os melhores barômetros desses
crescimentos foram às cotações da Bolsa.
Nesse meio tempo, as coisas já se haviam ajustado. O
22
mercado entrara em franca recuperação. A humanidade,
farta de sensações, já se acostumara à existência desse
Estado um tanto misterioso situado na Ásia Central, que
costumava ser designado como a Terceira Potência, muito
embora o homem da rua ainda não tivesse compreendido a
situação real. As cotações da Bolsa tornaram-se mais
estáveis. O estado de marasmo daquele dia era a melhor
prova disso.
Essa situação perdurou até o meio-dia.
As doze em ponto; surgiu a sensação. Poucos minutos
antes o Dr. Haggard oferecera algumas ações de
companhias petrolíferas trinta pontos abaixo da cotação e
as vendera imediatamente. Os presentes deram de ombros,
mas contentaram-se com a explicação de que mesmo no
mercado de capitais vez por outra surge um otário. Quando
saiu a edição do meio-dia do New York Post, Haggard foi
tido como um clarividente, pois era o único homem que
conseguira pôr seu dinheiro a salvo.
O susto, que sacudiu os homens da Bolsa até a medula
dos ossos assim que leram a notícia da invasão, não se
ligava ao seu bem-estar pessoal, mas única e
exclusivamente ao seu dinheiro. Por alguns minutos não se
entendia uma palavra em todo o saguão. Finalmente o
senhor Oliver conseguiu fazer-se ouvir através dos alto-
falantes.
— Senhoras e senhores; seria um absurdo se nos
deixássemos influenciar até esse ponto por uma simples
notícia de jornal. Não existem informações oficiais. A
direção da Bolsa procurará averiguar imediatamente a
veracidade do artigo.
No mesmo instante, um cavalheiro entrou
precipitadamente e declarou em altos brados que a
emissora de Pequim acabara de transmitir a mesma
informação.
— 970 pela General Electric — gritou uma voz.
Por alguns segundos reinou um silêncio total. Logo a
seguir começou um murmúrio que foi crescendo, até
transformar-se num verdadeiro furacão. As cotações da
General Electric naquele dia haviam sido abertas a 995.
Enquanto o senhor Oliver, com o auxílio de alguns
policiais, restabelecia a ordem no saguão, nos corredores
começaram a serem fechadas operações paralelas. Os
otimistas farejaram uma boa oportunidade, os pessimistas
procuraram livrar-se do que podiam. Só pelas doze e trinta
conseguiu-se exercer algum controle sobre a oferta e a
procura. Depois das perdas vultosas, a disposição dos
compradores diminuiu rapidamente. Correram boatos de
que a Bolsa seria fechada, mas muita gente protestou.
Os encarregados da GCC ainda se mantinham
retraídos. Pelas instruções recebidas, a hora de comprar
ainda não chegara, embora as cotações fossem
extremamente favoráveis. Mas quando os negócios
entraram em estagnação, o Dr. Haggard fez uma jogada
tímida. Fez com que as cotações da Standard Oil
baixassem trinta e cinco pontos. Com isso os ânimos
voltaram a exaltar-se. Os preços tornaram a cair. Caíram
rapidamente. Durante dez minutos, Haggard retirou-se do
cenário. Deixou que os outros trabalhassem. Depois de
algum tempo a disposição de comprar excedeu a oferta. Às
12:55 h, a Opiat Limited começou a reagir. Homer G.
Adams no seu escritório soltou um palavrão inofensivo e
transmitiu suas instruções pelo microfone.
— Manoli, você acaba de comprar Opiat. Realize com
o capitão Klein uma operação paralela que dê na vista de
todos. Desça quarenta pontos. Não poderemos sofrer
nenhum prejuízo, pois tudo ficará em família.
Às 12h57min, a Opiat Limited havia perdido 75% do
valor com que abrira naquele dia. Os outros papéis
apresentavam um comportamento semelhante. Nos últimos
minutos antes da hora do fechamento da Bolsa
dificilmente se encontraria um corretor disposto a
negociar. Apesar dos prejuízos enormes, tudo indicava que
o dia terminaria tranquilamente. Mas no último instante
explodiu a maior bomba de Homer G. Adams.
Os rádios portáteis transmitiram uma notícia
extraordinária vinda de Sydney. Uma nave espacial
desconhecida levantara uma frota pesqueira que se
encontrava no Mar de Timor a uma altura de vários
quilômetros e a deixara cair. O locutor nova-iorquino
concluiu o comunicado com as seguintes palavras:
“A hipótese de nos
encontrarmos diante de uma
ação da chamada Terceira
Potência deve ser excluída. Face
aos últimos contatos
diplomáticos, não há mais
dúvida sobre a lealdade absoluta
da mesma. Depois da queda da
frota pesqueira no Mar de
Timor, na qual pereceram umas
quatrocentas pessoas, a nave
desconhecida voltou a descer e
abriu numerosas escotilhas, ou
melhor, comportas de ar.
Milhares de seres grotescos
saltaram sobre o mar, como se
fossem pára-quedistas e, depois
de nadarem por alguns minutos,
deixaram-se afundar. Só pode
tratar-se de seres não humanos
para cujo organismo a água é
um habitat adequado. Resta
aguardar os acontecimentos
para ver se a operação
representa um ato preparatório
da invasão dos continentes. O
quartel-general das Nações
Unidas emitiu um comunicado,
segundo o qual já foram tomadas
as primeiras providências para
repelir os invasores.”
Ninguém mais pensou em fechar a Bolsa. As ações
pareciam arder nas mãos dos seus possuidores. Os
corretores mais empedernidos perderam a calma e
passaram a vender a qualquer preço. Grandes trustes e
conglomerados mudaram de dono no espaço de quinze
minutos. Eram apregoados como se fossem frutas podres.
Ninguém parecia preocupar-se com o fato de que ainda
havia gente que sacrificava suas pequenas economias por
um cesto de frutas podres.
No fechamento da Bolsa não havia cotações definidas.
O clima era idêntico ao do grande desastre financeiro dos
anos trinta.
A economia mundial parecia encontrar-se num estado
de paralisia total.
Alguns capitães de indústria arruinados gastaram seus
últimos centavos para comunicar-se com os colegas de
sofrimento em todas as partes do mundo, enquanto em
23
certas empresas o silêncio da economia moribunda já
parecia ter tomado conta de tudo. Era o que acontecia, por
exemplo, com a GCC.
Homer G. Adams interrompera todas as comunicações
telefônicas e radiofônicas com seus representantes. Não
queria correr o risco de ser espionado por alguém. Sentia-
se bem em meio àquele silêncio.
Sentado atrás da mesa, refletia e esperava.
Pelas dezesseis horas o telefone tocou. Era Abraão
Weiss.
— Alô, senhor Weiss.
— Que tal lhe parece à situação, senhor Adams?
— É uma boa piada, senhor Weiss. Amanhã tudo
estará esquecido.
— Até parece que o senhor é o último otimista do
nosso planeta.
— Orgulho-me de ser otimista. Espero encontrar
algumas pessoas que pensam como eu. Por que está
telefonando, senhor Weiss? Refletiu sobre minha
proposta?
— Ainda está interessado?
— Claro que sim. Para mim a vida continua.
— Está bem. Poderíamos marcar um encontro para
amanhã? Arranjarei um avião para o senhor.
— Não é necessário. Iremos no meu. Não é mais lento
que o aparelho mais veloz que o senhor poderia conseguir.
— O.K., senhor Adams. Muito obrigado. Então está
combinado para amanhã, às...
— Um momento! Está lembrado das minhas
condições?
— Cinquenta e um por cento para o senhor.
Naturalmente.
Marcaram encontro para o dia seguinte, às seis da
manhã.
Homer G. Adams reclinou-se novamente na poltrona.
Seus pensamentos voltaram a ocupar-se do jogo de cifras
que havia sido interrompido, jogo este que tinha um fundo
bastante real. A palestra com Weiss acrescentara mais um
fator que podia ser retirado da lista dos duvidosos.
A próxima interrupção só surpreendeu Adams porque
este supusera que Clèment também entraria em contato
com ele por telefone. Acontece que o baixinho moreno
apareceu pessoalmente.
— Boa tarde, senhor Adams. Pensamos na sua oferta.
A Minneapolis Mining Company concorda com sua
proposta. Pedimos que faça a demonstração com suas
máquinas amanhã de manhã.
— Amanhã de tarde, senhor Clèment. De manhã tenho
um compromisso no Meio-Oeste. Depois do almoço terei
tempo para dar uma chegada a Sacramento. Serve para o
senhor?
— Serve muito bem. Assim teremos tempo para
evacuar a galeria, afim de que o senhor possa realizar a
demonstração sem qualquer risco.
— Muito bem! O senhor já conhece minhas condições.
Já que está aqui, quero apresentar-lhe a minuta do
contrato. Peço-lhe que a examine. Assim poderemos
assiná-lo amanhã. Hoje mandarei passá-lo a limpo.
Clèment leu atentamente. Terminada a leitura, disse:
— Estamos de acordo com as linhas gerais. Apenas
gostaríamos de formular uma contraproposta quanto à
participação. Os diretores da empresa acham que a
participação majoritária do senhor os colocaria em
situação desvantajosa. Pedem que se contente com
quarenta e cinco por cento das ações.
Adams exibiu um sorriso paternal.
— O senhor ainda mantém a tática de negociação dos
tempos antigos, senhor Clèment. Meus respeitos! Ainda
têm tanto interesse em manter a maior parte do capital?
Não ficaram desanimados com o colapso da Bolsa?
— Nem um pouco. Como devem saber, nossas ações
baixaram mais de cinquenta por cento. Apesar disso estou
convencido de que se mantém um alto conceito sobre a
Minneapolis Mining, ainda mais que outras ações tiveram
uma baixa muito maior. Nas condições atuais, o negócio
que o senhor vai concluir com nossa firma ainda é o
melhor possível, mesmo sem a participação majoritária.
— Há uma hora alguém disse que sou o último
otimista. Fico satisfeito em ver que existem outros.
O homenzinho moreno fez uma mesura elegante.
— Vejo que nos entendemos muito bem, senhor
Adams. Se a Minneapolis Mining conseguir fazer
escavações mais rápidas, daqui a três dias liderará a
construção de abrigos antiaéreos. Depois da catástrofe do
Mar de Timor pouca gente estará disposta a gastar dinheiro
em outra coisa. Como vê, conhecemos nossa importância e
as chances de que dispomos. E o senhor aproveitará essas
chances tanto quanto nós. É claro que pode haver algum
motivo para esse sentimento de fim de mundo que anda
por aí. Mas nesse caso nosso prejuízo será inevitável de
uma forma ou de outra. Estamos nos preparando para o
caso de que a vida continue de alguma forma. Quanto a
mim, posso estar errado, mas desde que a humanidade
existe, ela sempre tem encontrado uma saída.
Homer G. Adams sentiu-se emocionado por tamanha
confiança na humanidade.
— Mandarei passar o contrato a limpo e levarei para o
senhor amanhã. A GCC contenta-se com 45%. Acho que
combinaremos muito bem.
* * *
Dois dias depois.
A demonstração do trabalho das máquinas da GCC
fora um êxito total. Os contratos tinham sido assinados.
Homer G. Adams tomou um avião e foi ao território da
Terceira Potência, no Extremo Oriente, para apresentar seu
relatório. Até mesmo Thora e Crest, que geralmente
preferiam manterem-se alheios aos assuntos intraterrenos,
haviam aparecido para presenciar o relato.
— Como está o ambiente lá fora? — perguntou Perry
Rhodan. — Espero que não tenhamos colocado um peso
muito grande na nossa consciência.
Por um instante Homer G. Adams baixou a cabeça.
Depois encarou seus interlocutores.
— Para mim, aquilo que passei nos últimos três dias
apenas parece à repetição de alguma coisa que já
aconteceu. Anos atrás me mandaram para a penitenciária
por isso. Hoje sei que minha atuação conta com a
aprovação dos demais. Faço questão de ressaltar que não
me sinto responsável pelos suicídios cometidos por aí. Um
homem que não consegue superar a perda de valores
materiais carrega um problema que só ele pode resolver.
Além disso, acredito que a causa principal dos suicídios
seja o medo da invasão.
Todos os olhares dirigiram-se a Perry Rhodan.
— De qualquer maneira semeamos o desassossego
entre os homens. Mas sabemos perfeitamente que esse
desassossego era necessário. A invasão representa um
perigo real, que nos ameaça a cada dia e a cada hora. A
24
cena do Mar de Timor, que Bell apresentou ao mundo por
meio dos projetores arcônidas como um simples filme
tridimensional, poderá ser um episódio real de amanhã.
Temos o dever de proteger a humanidade contra esse tipo
de perigo, pois ninguém mais está em condições de
cumprir essa missão. Por isso mesmo cabe-nos aumentar
nosso potencial industrial numa proporção adequada, e
para isso temos que exercer uma influência considerável
sobre a economia mundial. Os resultados dos nossos
esforços costumavam ser medíocres em comparação com
as necessidades. Uma entidade que se propõe a proteger e
unir um planeta precisa dispor da força necessária. No
início da semana, quando você foi à Nova Iorque, éramos
uns pobretões em matéria de divisas. Como estão às coisas
hoje, Adams?
— O fator decisivo foi o espetáculo proporcionado por
Bell com a invasão fictícia do Mar de Timor. As
providências detalhadas que antecederam a operação
também foram bem executadas. Em poucos dias
conseguimos pôr a Bolsa de Nova Iorque fora dos eixos.
Uma atuação semelhante foi desenvolvida por Kakuta, em
Tóquio, por Marshall, na Cidade do Cabo, por Li, em
Londres e por Kosnow, em Berlim. Com um pecúlio de
alguns milhões de dólares conseguimos adquirir as
maiores indústrias e obtivemos a maioria em quatro
conglomerados. É claro que uma manobra destas não pode
ser executada todos os dias, pois o mundo não vai cair pela
segunda vez no mesmo truque.
— Podemos inventar outros truques — disse Reginald
Bell com a voz indiferente e ligeiramente professoral.
Provavelmente quis dar mostras da sua fantasia.
— Por melhor que disfarcemos o blefe, ele será
descoberto. É que sua origem será a mesma. E isso bastará
aos espertos corretores da Bolsa. Além disso, esse
procedimento constituiria uma irresponsabilidade da nossa
parte. Ninguém pode estar interessado em lançar a
economia mundial num caos completo. Uma economia
livre está sujeita a leis rígidas. Depois de um grande
colapso da Bolsa costuma haver uma época de calmaria,
seguida pela recuperação. A manobra que encenamos
ontem só pode ser repetida no mínimo de trinta em trinta
anos, pois um colapso total da economia não traria
vantagens a ninguém. Também nós seriamos sepultados
sob os escombros. Posso assegurar-lhes que disponho de
ampla experiência no setor. Aquilo que alcançamos
anteontem foi o máximo que se poderia esperar. Será que
algum dos cavalheiros não concorda com a minha opinião?
Homer G. Adams passou os olhos pelos seus
interlocutores. A pergunta fora dirigida a todos, mas não
havia ninguém que não soubesse que no fundo só se
destinava a Perry Rhodan.
— Os resultados corresponderam inteiramente às suas
previsões, Adams — respondeu Rhodan. — Sabe muito
bem que no princípio tinha minhas dúvidas e também me
teria contentado com menos. Na situação em que nos
encontramos hoje só lhe posso manifestar meus elogios e
minha gratidão. Além do mais, conseguiu fechar alguns
negócios excelentes com as máquinas dos arcônidas. Mas
nesse terreno devemos agir com muita cautela.
— Naturalmente. Neste ponto o direito de veto de
Crest continuará a ser reconhecido. Além disso, é você,
Rhodan, que decidirá quais dos nossos segredos podem ser
colocados ao alcance do público. O aparelho pendular
matéria-energia, que foi colocado à disposição só da
Minneapolis Mining e do senhor Weiss, da Steel &
Concrete, deve ser considerado obsoleto sob os padrões
arcônidas. Apesar disso foi muito valioso para nós. Essas
empresas, na quais o senhor detém o controle acionário,
sob o nome suposto de Benjamim Wilder, da GCC, já
ocupam uma posição de monopólio na sua especialidade e
exercerão uma liderança absoluta na época da recuperação
econômica. Ao que parece, já não temos maiores
problemas econômicos. Já dispomos dos sete bilhões
exigidos pelo governo de Pequim. Não será mais
necessário adquirir o território submetido à nossa
soberania em prestações, conforme estava previsto. Pelos
meus cálculos, poderemos contar com outros quatro
bilhões nos próximos quarenta e cinco dias. Não é muito
em comparação às nossas necessidades para a montagem
de uma linha industrial. Mas teremos de arranjar-nos.
— As indústrias controladas por nós não valem muito
mais que isso? — perguntou Bell.
— O valor das empresas medido pelas cotações de
Bolsa sofreu uma queda acentuada. Mas voltará a subir.
De qualquer maneira, se pensar que podemos utilizar
prontamente o capital de uma empresa de, digamos,
duzentos bilhões de dólares para levar avante os nossos
objetivos, estará fazendo uma conta de quitandeiro. As
indústrias que possuímos espalhadas pela Terra têm de
continuar em nossas mãos. Precisamos conservá-las. Por
isso só uma fração dos recursos disponíveis pode ser
desviada para nosso empreendimento no deserto de Gobi.
Compreendeu?
— Compreendi — respondeu Bell com um sorriso.
— Temos muito trabalho diante de nós — prosseguiu
Rhodan. — Nos últimos dias conseguimos muita coisa.
Criamos uma base financeira para nosso empreendimento.
Adams terá de esforçar-se para conseguir o que ainda nos
falta. Conforme acaba de dizer, tão depressa não
voltaremos a ter dias tão grandiosos como os do grande
colapso da Bolsa. Por isso torna-se necessária uma série
cansativa de pequenos trabalhos, como por exemplo, os da
Steel & Concrete e da Minneapolis Mining. Mas não é isto
que me preocupa. Levaremos meses, talvez anos, para
montar um sistema econômico eficiente em nosso reino.
Por outro lado, os problemas não poderiam ser mais
prementes. A qualquer momento poderemos defrontar-nos
com a invasão do povo de Fantan. O show que Bell
ofereceu num passe de mágica poderá transformar-se em
realidade de um dia para outro. Só que aí nossos inimigos
não desaparecerão na água. Outro problema que me
preocupa é a falta de material humano. Precisamos de
colaboradores feitos de carne e osso, que defendam nossos
interesses em todos os continentes. Para esse fim ainda
hoje fornecerei instruções a alguns dos senhores. Há um
detalhe que todos nós devemos ter em mente: sempre que
alguém nos traga uma pessoa, deve estar plenamente
convencido de seu valor e eficiência. Face ao reduzido
número de pessoas que podemos abrigar em nosso
minúsculo país e às exigências que cada um terá de
cumprir, só a elite humana poderá aspirar à cidadania da
Terceira Potência. Precisamos de gente dotada de
capacidades extraordinárias.
— Em poucas palavras, precisamos de mutantes. De
mutantes positivos.
Perry Rhodan confirmou com um gesto. Não revelou a
visão estranha que as palavras proferidas por Bell
desencadearam em sua mente. Formulou uma pergunta
estranha.
— Adams, qual é o cubo de 2.369,7?
25
O homenzinho lançou um olhar de espanto para
Rhodan. Pegou a calculadora.
— Não, não quero assim — disse Perry Rhodan. —
Calcule de cabeça.
— Vai demorar um pouco...
— Pode deixar. É 13.306.998.429,873. Aliás, há uma
coisa que ainda não compreendi. Você acaba de referir-se
à nossa participação majoritária na Steel & Concrete e na
Minneapolis Mining. Antes, porém, você havia declarado
que só Weiss concordara com a participação acionária de
51%, enquanto Clèment conseguiu a redução para 45%.
— É simples. Antes disso já havíamos adquirido na
Bolsa sete por cento das ações da Minneapolis Mining. É
claro que Clèment não sabia disso.
Perry Rhodan esperou que cessassem as risadas.
— Muito bem. Acho que podemos dar-nos por
satisfeitos. Vamos discutir os detalhes das próximas ações
que programamos.
V
O aparelho desceu sobre o gelo da Groenlândia,
preparando-se para o pouso.
O coronel Kaats enviara a Allan D. Mercant notícias
inquietadoras vindas de Nova Iorque. Mercant, que não
tinha mãos a medir para dar conta do seu trabalho, hesitara
antes de viajar para lá. Sua fúria irrompeu sem rebuços
quando Kaats se limitou a informar que a mutante Anne
Sloane, que fora enviada ao Extremo Oriente em virtude
de suas faculdades telecinéticas, havia desaparecido sem
deixar o menor vestígio.
— Ora, Kaats. Por isso você não precisava fazer-me
percorrer quatro mil quilômetros.
— Preciso falar com você, Mercant. Será que isso não
basta? Será que um agente das forças armadas não é muito
importante, ainda mais quando se trata de um espécime
insubstituível como um mutante?
— Você devia dizer que se trata da defesa interna e da
polícia federal — corrigiu Mercant sem conter sua
indignação. — Vou dizer-lhe uma coisa, Kaats. Leve pelo
menos um mês sem se preocupar com Anne Sloane. Para
descobrir alguma coisa, ela precisará de tempo. É uma
personalidade parapsicológica, mas ainda não
compreendeu a seriedade da vida. Considero-a uma
simples diletante e por isso recomendei-lhe pessoalmente
que agisse antes com cautela excessiva que com muita
precipitação. Espero que não se oponha a que me retire
imediatamente. É que lá em casa estou afogando nos
papéis.
— Fique ao menos para tomar um uísque — disse o
coronel Kaats em tom conciliador. — Não permitirei que
saia daqui nessa disposição.
Depois de esvaziar o copo, Mercant disse:
— Quer saber de uma coisa, Kaats? Se minha vinda
aos Estados Unidos serviu para alguma coisa, foi por causa
deste uísque. Não me leve a mal, mas não me venha outra
vez com um alarma falso, senão ficarei furioso.
Allan D. Mercant ainda estava furioso quando desceu
na enseada do fiorde de Umanaque e preparou-se para
pousar. O que mais o aborreceu nessa viagem absurda aos
Estados Unidos foi sua opinião sobre o caso Anne Sloane,
que nunca poderia ter manifestado diante de Kaats. Anne
era uma moça delicada, que não servia para trabalhar como
agente. É verdade que ele mesmo insistira junto a ela para
que aceitasse a incumbência. Mas agora sua opinião era
outra.
Dois esquimós aproximaram-se num carro para recebê-
lo. Mercant agradeceu.
— Andarei até lá para respirar um pouco de ar puro.
Pouco depois entrou no barracão onde se lia em
grandes letras o nome de uma firma, a Umanak Fur
Company. Ainda se lia que essa firma se dedicava ao
comércio de peles. Tratava-se, evidentemente, de uma
mentira. Seria uma imprudência permitir que centenas de
mercadores ficassem andando nas proximidades da sede
do Serviço Secreto.
Mercant tomou o elevador e foi ao décimo quinto
pavimento, contado de cima para baixo. Lá teve de fazer
baldeação, já que por questões de segurança nenhum dos
quinze elevadores ia diretamente ao último pavimento. Era
ali, a três mil metros de profundidade, que ficavam os
compartimentos ocupados por Mercant. Os guardas
postados nos corredores a nas portas cumprimentaram-no.
Entre as quinhentas e tantas pessoas que estavam de
serviço ali, nem dez conheciam todos os segredos das
instalações. Só estes podiam deslocar-se livremente, sem
apresentar seus documentos.
Para chegar ao escritório de Mercant passava-se por
três antessalas.
Uma vez lá, atirou-se na poltrona e reclinou-se
confortavelmente.
Tocou a campainha para chamar o ordenança. O
26
sargento O’Healey não demorou a entrar.
— Não houve nada de extraordinário na sua ausência,
coronel.
— Obrigado, sargento. Que horas são?
— Onze e dezessete, coronel. Mercant ficou satisfeito,
pois verificara que eram onze e dezesseis.
— Da manhã ou da noite? — prosseguiu.
— Da manhã, coronel.
Isso significava que era da noite. Com as indicações
errôneas o sargento se identificara satisfatoriamente.
— Muito bem. Diga ao capitão Zimmermann que
desejo falar com ele.
— No momento, o capitão não se encontra na base,
coronel. Esta realizando um voo rotineiro de
patrulhamento.
— Será que ele ainda acredita que o inimigo virá
rastejando pelo gelo, embora os agentes dos serviços
secretos de outros países já estejam oferecendo a porta de
entrada desta base uns aos outros?
— Coronel, não sei o que o capitão acredita.
— Perguntarei a ele pessoalmente. Quero que se
apresente aqui dentro de dez minutos. Avise-o pelo
telégrafo.
— Perfeitamente, coronel. O’Healey fez continência e
saiu, mas voltou dali a pouco.
— A ordem foi cumprida, coronel. O capitão
Zimmermann diz que talvez demore mais um pouco.
Acaba de descobrir uma coisa estranha e quer averiguar de
que se trata.
— Que descoberta é essa? — perguntou Mercant mal-
humorado.
— Não me disse. Ao que parece ele mesmo não sabia.
O’Healey obteve licença para retirar-se. Assim que
Mercant se viu só, abriu uma gaveta da mesa e ligou o
radiotransmissor. Sempre que recebia alguma informação
incompleta como a que O’Healey acabara de transmitir-
lhe, preferia estabelecer contato direto.
— Alô, Zimmermann. Responda. Aqui fala o coronel
Mercant.
Nenhuma voz se fez ouvir na frequência sintonizada.
— Capitão Zimmermann! Responda imediatamente! O
que houve com você? E que conversa fiada foi essa?
Mercant aguardou a resposta, que demorou mais de dez
segundos. Zimmermann parecia falar com dificuldade. Sua
mensagem teve início com um gemido.
— Alô coronel. Devo ter ficado inconsciente por um
instante. Minha cabeça está zunindo e vejo faixas coloridas
diante dos olhos.
— Que diabo! O que houve?
— Não sei, coronel. Voltarei imediatamente.
— Indique sua posição. Mandarei alguém ao seu
encontro.
— Isso não é necessário, coronel.
— Será que conseguirá sozinho?
— Com o piloto automático não haverá problemas. O
pior já passou. Dê ordens para que me forneçam um vetor
de radar. Com isso conseguirei.
— Como queira. Falarei com o pessoal do controle de
voo e logo voltarei a ligar para a recepção. Entre em
contato comigo se houver alguma dificuldade.
— Naturalmente. Obrigado pelo auxílio, coronel!
Mercant desligou e falou pelo interfone com o controle
de voo.
— Tenente, forneça um vetor de radar para a
aterrissagem do capitão Zimmermann. E verifique sua
posição atual. Você conhece a rota dele.
— Providenciaremos imediatamente, coronel.
Dali a pouco veio à informação de que Zimmermann
sobrevoava o litoral norte perto de Proven e seguia a rota
sul sudoeste. Parecia ter o avião sob controle.
O capitão Zimmermann realizou o pouso sem maiores
problemas. Dirigiu-se imediatamente ao último pavimento,
onde foi recebido por Allan D. Mercant.
— Capitão Zimmermann reportando, coronel. Peço
desculpar o atraso. Devo ter entrado numa zona de baixa
pressão. De qualquer maneira o avião sofreu uma
repentina aceleração, o que fez com que minha cabeça
caísse para trás. Devo ter ficado inconsciente por algum
tempo.
— Deixe ver.
Mercant examinou a ferida.
— Isso está feio, capitão. Vá imediatamente à
enfermaria para que cuidem da ferida. Pelo que vejo ainda
se encontra no pleno gozo das suas faculdades. Portanto,
antes de se retirar diga-me que descoberta foi essa sobre a
qual falou com O’Healey em termos tão vagos?
Enquanto proferia estas palavras, Mercant foi
surpreendido por um choque violento. Ao examinar o
ferimento, ele se colocara atrás de Zimmermann e, com a
ajuda de sua pouco desenvolvida capacidade telepática,
captou a impressão de um pensamento. Um pensamento
que o assustou profundamente. Por sorte, Mercant era
dotado de uma fantástica presença de espírito. Um homem
que num espaço de poucos anos conseguiu galgar o lugar
de dirigente do Conselho Internacional de Defesa deve ser
dotado de uma capacidade de reação extremamente rápida.
Ao captar a ideia mortífera de Zimmermann, iniciara a
frase com que aconselhara o capitão a que se submetesse a
tratamento. Conseguiu prosseguir sem qualquer
interrupção perceptível.
— Que descoberta, coronel? Ah, sim, isso foi um
gracejo.
— Quer dizer que se permitiu um gracejo comigo? —
perguntou Mercant, que ainda se encontrava atrás do
capitão, que continuava sentado. Na situação em que se
achava não estava disposto a desistir dessa posição
vantajosa.
— O gracejo foi dirigido ao sargento, coronel. Não
podia imaginar que ele o transmitisse ao senhor.
— Zimmermann, que concepção estranha o senhor tem
da organização dos nossos serviços. Enquanto realiza um
voo de patrulhamento para proteger a base, permite-se
gracejos de mau gosto. Vamos lá, diga logo: o que viu?
— Nada, coronel.
— Fique sentado, capitão! — ordenou Mercant em tom
enérgico, quando Zimmermann fez menção de levantar-se.
Mercant procurou concentrar-se ao máximo. Há algum
tempo, lera sobre um funcionário de banco australiano que
graças às suas faculdades telepáticas conseguira evitar um
assalto. Há muito descobrira capacidades semelhantes em
sua própria pessoa e começara a compreender o que
significava poder “enxergar o coração” do próximo nos
momentos críticos. Há esta hora, estaria disposto a
sacrificar dez anos de sua vida se pudesse transformar-se
num telepata de verdade. Mas nesse terreno não passava
de um principiante. Não sabia como reconhecer com
clareza o pensamento integral de uma pessoa. Não sabia
reconstituir a frase que o outro pensara; apenas percebia o
essencial.
Não poderia haver algum mal-entendido? Por que
27
Zimmermann teria a ideia de matá-lo? Não havia dúvida
de que o capitão pensava em matar. E o desejo de matar
tinha por alvo a pessoa de Allan D. Mercant, chefe do
Conselho Internacional de Defesa. Ainda haveria alguma
dúvida?
Mercant olhou por cima do ombro de seu interlocutor e
viu a arma no coldre. Logo abandonou a ideia de apoderar-
se dela num gesto rápido. Zimmermann, que pensava em
matar, devia ter suas atenções concentradas sobre a arma e
se anteciparia a Mercant, que lhe era inferior em força
física. Mercant precisava de sua arma, que ficava na
gaveta inferior da direita da mesa, junto ao aparelho de
rádio.
Num confronto com armas iguais Mercant levaria
vantagem, já que o capitão não poderia imaginar que seu
adversário estava prevenido. Mas antes de colocar-se nesta
situação, teria que se arriscar durante cinco ou seis
segundos, ao abandonar o lugar atrás de Zimmermann. Ao
fazê-lo, proferiu palavras que aguçassem a curiosidade do
outro e levaram-no a hesitar, conforme esperava.
— Vou dizer-lhe uma coisa, capitão. Acompanhei sua
palestra com O’Healey e gravei-a em fita. Ouvi mais uma
coisa e gostaria que o senhor me desse explicações a
respeito. Acontece que tenho a impressão de que seu
comunicado não foi nenhum gracejo. Como explica isto?
— O quê?
A marcha arriscada em torno da mesa começou.
Zimmermann foi-se virando na poltrona para ficar de
frente para seu interlocutor. Dali a pouco os dois estavam
sentados um diante do outro. Entre eles ficava a enorme
mesa. Zimmermann fora vencido pela curiosidade. Não
atirou; esperou.
Mercant ligou o aparelho e no mesmo instante pegou a
pistola. Sentiu-se seguro e desligou o aparelho.
Zimmermann ergueu-se sobressaltado.
— Por que desligou? Quer bancar o misterioso,
coronel?
— Calma capitão! Quero fazer-lhe mais uma pergunta.
O que espera ganhar matando-me?
Essa pergunta pôs fim ao diálogo. Deixou o capitão
Zimmermann tão perplexo que ele não conseguiu controlar
mais os movimentos de seu corpo. Sentiu-se traído e
procurou levar avante seu projeto através de uma reação
precipitada.
Num gesto rápido arrancou a pistola do coldre. Mas
antes que pudesse colocá-la em posição de atirar, já era
tarde. Seu adversário — para falar em termos estratégicos
— encontrava-se na linha interior. Enquanto Zimmermann
teve de executar um movimento complexo antes de poder
atirar, Mercant apenas precisava pressionar o gatilho.
O corpo do capitão Zimmermann caiu molemente ao
chão. Antes que pudesse executar seu plano, estava morto.
* * *
O que se seguiu nunca acontecera em todos os anos
decorridos desde a criação do CID. O sargento O’Healey
entrou correndo sem que tivesse sido chamado e também
sacou uma pistola. Ao ver o chefe são e salvo, conteve-se.
O morto que se encontrava no chão representava um
mistério para ele.
— O que aconteceu, coronel?
— Acabo de matar o capitão Zimmermann. Dê o
alarma! Eu mesmo tomarei as providências para o
bloqueio.
O’Healey fez continência e saiu. Dali a alguns
segundos as sereias uivaram em todos os pavimentes.
Mercant voltou à mesa e tirou o microfone da gaveta
em que se encontrava o aparelho de rádio.
— Aqui fala Mercant. A partir deste instante toda a
base se encontra em estado de exceção. Ordem dirigida à
Companhia de Vigilância do tenente Houseman:
bloqueiem todas as saídas. Exerçam uma vigilância
rigorosa sobre os poços dos elevadores. Todas as pessoas
que se encontram na base devem dirigir-se imediatamente
aos seus locais de trabalho ou de moradia. Os membros
das delegações de países amigos são solicitados a reunir-se
no hotel do pavimento superior. Posteriormente fornecerei
outros detalhes. Peço que o coronel Cretcher e o Dr. Curtis
compareçam ao meu gabinete. Obrigado.
Pouco depois o coronel e o médico entraram juntos. O
Dr. Curtis aproximou-se de Zimmermann.
— Doutor, queira examiná-lo para verificar se está
morto.
— Será que ainda precisa de uma confirmação?
Mercant fez que sim.
— Preciso. Quero que tudo seja feito segundo as
normas.
— Acho que aqui não se pode falar em cumprimento
de normas — disse Cretcher. — Foi você que matou o
capitão?
— Não quis que ele me matasse.
— Quer dizer que você afirma ter sido atacado pelo
capitão Zimmermann. Queira desculpar minhas palavras,
coronel. Existem testemunhas que possam confirmar que
você agiu em legítima defesa?
— Queira desculpar de sua parte se lhe falo sem
rebuços, Cretcher. Neste momento você não está
desempenhando as funções de acusador. Eu o chamei para
ajudar-me a esclarecer os detalhes. O que sei sobre a cena
que se desenrolou entre mim e Zimmermann é muito
pouco. Ele tentou atirar contra mim e eu me antecipei. Os
fatos são estes. Preciso conhecer os motivos que levaram
um dos elementos de maior confiança de que dispúnhamos
a tentar um ataque desses. O comportamento de
Zimmermann é tão absurdo que logo faz surgir a suspeita
de uma conspiração. Foi por isso que decretei o estado de
emergência. Teremos de adotar medidas prontas e radicais
se apurarmos que neste quartel-general existem, além de
Zimmermann, outras pessoas que querem me eliminar e
destruir nossa organização.
Mercant dirigiu-se ao médico.
— Você acaba de constatar a morte de Zimmermann,
doutor Curtis. Acho que não pode haver a menor dúvida
sobre a causa da morte. Todavia, quero pedir-lhe que
examine a cabeça do morto. Vi uma ferida estranha, sobre
cuja origem o capitão forneceu uma explicação nada
convincente.
Curtis examinou a ferida e disse:
— Alguém deve ter desferido um golpe muito forte
contra a cabeça de Zimmermann. Foi um golpe vindo de
cima, na vertical. Que diabo, coronel, você não o matou a
tiro?
— O que quer dizer?
— Você o matou a tiro, não a pancada e...
— Há quanto tempo foi produzida a ferida, doutor?
Queira verificar.
— Há meia hora mais ou menos.
— Há meia hora o capitão ainda se encontrava fora
desta base, pilotando seu avião. Há muitas testemunhas
28
que podem confirmar isso.
— Não compreendo. Não percebeu nenhum sinal de
fraqueza em Zimmermann? Se os conhecimentos que
adquiri não me enganam, o golpe no crânio já deve ter sido
mortal.
— Nesse ponto o senhor está enganado. Zimmermann
estava bem vivo ao entrar aqui. De qualquer maneira seu
diagnóstico é muito interessante. Estou interessado em
saber como e onde o capitão foi morto da primeira vez e
como conseguiu manter-se vivo com uma ferida dessas.
Vamos dar uma olhada no seu avião. Queiram
acompanhar-me.
O aparelho usado por Zimmermann era um avião para
quatro passageiros. Mercant Curtis e Cretcher puderam
acomodar-se confortavelmente nele.
— Este é o assento do piloto — disse o chefe. — O
capitão afirmou ter entrado numa área de baixa pressão.
Com isso o avião sofreu uma aceleração repentina e fez
com que sua cabeça fosse atirada para trás. Acontece que
não vejo nenhum lugar em que possa ter batido.
A resposta era evidente. Zimmermann mentira. Atrás
dele havia o assento número três e, para bater com a
cabeça no teto da cabina, o capitão teria de levantar-se.
— Além disso, haveria manchas de sangue — disse
Cretcher.
Mercant mandou chamar a sentinela do campo de
pouso.
— Qual foi o avião que o capitão Zimmermann usou
hoje?
— Foi este coronel.
— Obrigado. É só isso. Acomodem-se, cavalheiros.
Voltaremos a percorrer o trecho.
Mercant decolou e tomou o rumo norte, seguindo o
litoral oeste.
— O comportamento do capitão durante o voo foi
muito estranho — disse Mercant. — Quando mandei pedir
que voltasse, falou numa estranha descoberta. Pretendia
verificar melhor. Depois disso levou algum tempo sem
responder. Quando voltou a estabelecer contato disse ter
estado inconsciente. Isso deve ter-se passado ao norte de
Proven.
Depois de ter sobrevoado Proven, Mercant desceu para
oitocentos metros. Pediu a seus acompanhantes que
participassem intensamente da observação ótica.
O ar estava límpido e não havia vento. Se houvesse
qualquer vestígio, este ainda devia estar bem visível, pois
ainda não se passara uma hora. Pouco depois Cretcher
anunciou uma descoberta.
— Olhe Mercant! Ali há um rastro de aterrissagem. E
há uma mancha redonda logo ao lado. O que será aquilo?
Mercant fez uma curva e voltou. Desceu para cem
metros. A mancha redonda era um objeto semiesférico.
Parecia-se com os iglus dos esquimós. Só que era
totalmente preto. Via-se nitidamente o rastro de
aterrissagem. Não havia dúvida de que fora produzida pelo
avião de Zimmermann.
Aterrissaram perto do iglu preto. Mercant chegou lá
antes dos outros e pôs a mão no objeto.
— É de metal. Que coisa estranha! Quem iria construir
um cogumelo destes em pleno Ártico? E olhe que não há
janela, entrada, nem emenda de solda. Que lhe parece,
Cretcher?
— É uma coisa estranha.
Mercant bateu no material desconhecido, que designara
vagamente como metal. Ouviu-se um som surdo.
Mercant voltou a bater.
— Deem alguns passos para trás. Isso não tem porta.
Apesar disso vamos entrar. Quero saber as quantas, ando.
Cretcher seguiu seu exemplo. Abriram fogo contra o
cogumelo. Mas o material não cedeu.
— Assim não adianta. Vou pegar uma carga de
explosivo no avião.
A carga de explosivo resolveu.
A semiesfera preta foi erguida de um lado com a
pressão e tombou. Embaixo dela encontraram um buraco
na neve... e um corpo esfacelado. O corpo estava nu.
Curtis pegou um membro, que poderia ter sido um braço.
Mas não se parecia com aquilo que em nosso planeta se
entende por braço.
— Tem seis articulações — murmurou o Dr. Curtis,
que parecia fascinado. — Este ser vem de outro mundo.
Está morto e dificilmente poderemos reconstituí-lo. Mas
não há dúvida de que se encontrou com Zimmermann. O
que vamos fazer coronel?
— Levem tudo que puderem reunir. Receio que
Rhodan não saiba de nada sobre este monstro. Tanto mais
interessado deve ficar. Acho que este é o começo da
invasão que há semanas enche o mundo de pesadelos.
VI
Nagasaki, Japão.
No Estádio de Kashiri estavam reunidas quarenta mil
pessoas que desejavam assistir ao jogo final do
campeonato japonês. Sobre as tribunas pesava um calor
sufocante e a expectativa quanto ao resultado do
campeonato.
No bloco F instalaram-se dois homens que traziam
aparelhos bem complicados no bolso. Estavam sentados a
29
mais de cinquenta metros um do outro, mas assim mesmo
mantinham-se em contato ininterrupto. Os instrumentos de
captação de ondas cerebrais trabalhavam quase sem ruído.
O leve zumbido que emitiam era abafado pelo vozerio das
quarenta mil pessoas.
Dada a partida para o jogo, no gramado passaram a
desenrolarem-se acontecimentos que não interessavam a
Tako Kakuta nem a Reginald Bell.
Apesar de tudo, os localizadores de mutantes de
Rhodan haviam combinado não despertar a atenção dos
presentes. Fingiam certa atenção e executaram um
acompanhamento puramente ótico da bola, embora não
houvesse a menor participação interior.
Subitamente Bell recebeu uma notícia de Kakuta. Os
minirrádios que portavam eram verdadeiras obras-primas
da mecânica de precisão. À primeira vista os emissores
pareciam resumir-se em duas chapas de plástico
sobrepostas, entre as quais, comprimidos ao máximo,
estavam todos os elementos técnicos. Ambos traziam os
emissores na parte interna da gola da camisa, onde eram
capazes de transmitir uma fala quase cochichada, por meio
dos ultrassensíveis microfones de laringe. Os receptores
localizavam-se no interior do ouvido, onde ocupavam o
lugar equivalente a um chumaço de algodão.
— Um exemplar extraordinário de cérebro — soou o
comunicado de Tako. — A 33.000 angstroms verifica-se
uma estranha superposição. O que acha?
— Isso tem um valor extraordinário, Tako. Ainda que
se queira considerar a excitação anormal dos espectadores,
uma frequência desse tipo afasta-se completamente dos
padrões. Pegou a coordenada do lugar em que se encontra?
— Já anotei.
— Muito bem. Espera até que eu também tenha
completado a operação.
Reginald Bell trabalhou com uma das mãos no bolso.
A antena localizadora do seu eletromagnetoscópio, que
não era maior que um dedal, fez deslizar seus raios sobre
as pessoas reunidas no bloco F. Como Bell já conhecia a
anomalia, o serviço tornou-se mais fácil. Seu receptor foi
regulado para 33.000 angstroms e reagiu automaticamente
quando o raio atingiu o corpo que irradiava essa
frequência.
— Minha coordenada já foi estabelecida, Tako. Pela
disposição dos assentos é de 135 graus, sete minutos e
trinta segundos.
— Obrigado. Minha coordenada é de 46 graus e doze
minutos exatamente. Faça o favor de calcular a posição.
Tako e Bell realizaram seus cálculos
independentemente um do outro e conferiram os
resultados. Em ambos os casos indicavam o lugar no 844
do bloco F.
— O.K. — disse Bell. — Irei até a entrada principal.
Ainda faltam vinte e cinco minutos até o fim do primeiro
tempo do jogo.
— Muito bem — respondeu Tako Kakuta. — Cuide do
comando robotizado.
O programa de ação fora estabelecido antecipadamente
em todos os detalhes. Através das numerosas conquistas
técnicas dos arcônidas já se conseguira localizar o
presumível mutante. Durante o intervalo, Kakuta passaria
pela fileira onde ficava o lugar no 844. Para evitar qualquer
engano, o japonês preferia olhar seu patrício de perto.
Tratava-se de um jovem simpático de cerca de vinte e
cinco anos.
De passagem, Tako ainda bateu uma fotografia do
homem. Depois se dirigiu à entrada, passando pela outra
extremidade da fileira. Do lado de fora se encontrou com
Reginald Bell.
— Tudo O.K. Aqui está a fotografia do homem. Os
robôs estão preparados?
Bell fez que sim. Guardou a fotografia.
Quando o jogo terminou, o homem do lugar no 844
saiu pela direita, onde Bell o aguardava. Estava
acompanhado de dois amigos. Por isso os mutantes
precisariam ter paciência. Lá fora se encontrava, em meio
a milhares de veículos, o carro-robô, cujos instrumentos de
localização haviam sido regulados para o mutante. Os
homens visados entraram num carro que se encontrava a
grande distância. Com o tráfego intenso não era possível
segui-lo de perto. Teriam que depender do localizador de
ondas cerebrais.
Bell e Tako comunicaram-se pelo rádio. Kakuta
procurou aproximar-se de Reginald Bell em meio à
multidão que se comprimia.
— É aquele carro vermelho. Está vendo?
— Tão depressa não chegaremos lá. Os robôs estão
muito para trás. Pegue seu carro, Bell. É o mais certo.
— Antes que eu consiga sair dali aqueles rapazes
estarão longe.
— Um momento. Eles estão indo para a direita, em
direção à rodovia norte. Procure avançar depressa.
Ultrapasse sempre que puder e procure grudar-se no
vermelho. Será fácil reconhecê-lo. Eu pego um táxi.
— Que tolice! Isso é muito demorado. Tako limitou-se
a fazer um gesto.
— Recuperarei o tempo. Não se preocupe. Mantenha
contato comigo. Conversaremos enquanto seguimos nosso
homem.
Separaram-se. Reginald Bell ocupava um lugar mais
favorável em meio à fila de automóveis que se estendia
por vários quilômetros.
O carro-robô seguia-o a uma distância de várias
centenas de metros. O veículo não chamava a atenção dos
transeuntes porque seus vidros polarizados não permitiam
enxergar o interior.
Tako, no seu táxi, ocupava a posição mais
desfavorável. Pediu ao motorista que se apressasse. Mas
nas condições em que se desenvolvia o tráfego não se
podia fazer muita coisa.
Depois de uma perseguição de quinze minutos chegou
o momento em que o japonês teve de intervir.
— Pararam — anunciou Bell. — Prossegui no meu
carro. Ao que parece estão entrando num restaurante que
fica numa esquina à direita do primeiro cruzamento.
— Conheço o local — respondeu Tako. — Volte.
Vamos nos encontrar ali mesmo. Instruções ao comando
robotizado: continuar de olho no carro vermelho e
estacionar perto dele.
Tako Kakuta sabia que seu táxi levaria pelo menos
quinze minutos para chegar ao local indicado por Bell.
Preferiu não mais insistir com o motorista para que se
apressasse. Sem dizer uma palavra, colocou no assento
traseiro uma recompensa generosa de cinquenta ienes e
concentrou-se a fim de realizar uma teleportação para a
toalete do restaurante, lugar que conhecia perfeitamente.
O motorista de táxi ficaria dando tratos à bola pelo
resto da vida para descobrir como seu freguês
desaparecera de repente. O que lhe importava era que não
saíra prejudicado.
30
O corpo de Kakuta passou ao estado energético e
voltou a materializar-se no lugar em que se concentraram
seus pensamentos. No momento em que entrou no
restaurante também chegou o homem do lugar no 844 com
seus amigos. Não foi difícil encontrar uma mesa próxima à
sua. Quando Bell entrou, o maior problema já estava
resolvido.
— Vamos tomar um drinque para celebrar.
Conseguimos chegar perto do nosso homem.
Beberam. A espera não foi desagradável. O resto do
trabalho seria executado pelos robôs.
Dali a três horas os três amigos se separaram. O
mutante morava bem próximo dali. O nome escrito na
porta de sua casa era Tama Yokida.
Quando já havia escurecido alguém tocou a campainha.
Sem desconfiar de nada, abriu a porta. Não havia ninguém.
Sobressaltou-se com um ligeiro chiado. Mas quando
desconfiou do perigo, já era tarde. Respirou o narcótico e
perdeu os sentidos. Algumas figuras de metal e de plástico
carregaram-no para um automóvel e saíram em disparada.
Enquanto o comando robotizado executava o sequestro
do mutante Tama Yokida, agindo silenciosa e
impessoalmente, Kakuta e Bell prosseguiam na busca de
outras pessoas apropriadas aos seus objetivos. Para
encerrar sua atuação no Japão adquiriram dois lugares
dispendiosos nos camarotes do Teatro Metrópole.
Envergando trajes a rigor, compareceram ao espetáculo de
gala.
Quando chegou a hora do primeiro intervalo, já haviam
descoberto três pessoas com um perfil extraordinário de
ondas cerebrais. Acontece que, por questões de segurança,
só podiam cuidar de uma pessoa de cada vez. Por isso
escolheram a pessoa que apresentava o desvio mais
acentuado da frequência normal das ondas de pensamentos
humanos.
A primeira suspeita de ser mutante era uma jovem
chamada Ishi Matsu. Um cavalheiro a acompanhou até a
casa. Ali, o comando robotizado fez com que chegasse à
porta. Foi sequestrada pouco depois da meia-noite.
Enquanto isso acontecia, Reginald Bell e Tako Kakuta
estavam no seu quarto de hotel, fumando e tomando
conhaque. Fizeram um balanço de suas atuações.
— Conseguimos doze mutantes. Rhodan pode dar-se
por satisfeito. Só pediu dez. Voltemos a verificar a lista.
Temos André Noir, filho de um casal de franceses
residente no Japão e Ralf Marten, filho de pai alemão e
mãe japonesa. Os outros são japoneses de verdade: Ishi
Matsu, Wuriu Sengu, Son Okura, Tanaka Seiko, Doitsu
Ataka, Kitai Ishibashi, Nomo Uatushin, Tama Yokida...
— São apenas dez.
— É verdade. Mas ainda temos Fellmer Lloyd, que
prova a tese de que as mutações não têm sua origem
exclusivamente na bomba atômica. E ainda Ras Tshubai,
que fomos buscar na África. Com isso completamos uma
dúzia.
— Você é supersticioso? — perguntou Tako de
supetão.
— Por quê?
— Porque penso no décimo terceiro homem. Ainda
temos dois dias.
Colocou um recorte de jornal sobre a mesa.
— Ah, é a história daquele alemão de Munique. Para
mim isso não passa de lorota — disse Reginald Bell.
— Não acha que devemos suspender nosso julgamento
até examinar o caso? É claro que alguém pode chamar a
atenção sobre sua pessoa formulando prognósticos sobre o
futuro e fazendo com que os jornais os publiquem. Mas, ao
que parece Ellert fez tudo para evitar que suas previsões
chegassem ao conhecimento do público. A publicidade
corre por conta de um amigo dele. A teletemporação nos
abriria um campo de possibilidades inteiramente novas.
Sinto-me interessado pelas qualidades desse homem, isto
é, pelas suas qualidades inteiramente hipotéticas. Além
disso, no caso, não precisaremos recorrer ao sequestro. Ao
que parece Ellert manifestou o desejo de visitar-nos no
deserto de Gobi.
— Está bem — confirmou Bell. — Podemos atender
ao desejo desse sujeito.
VII
Quando os primeiros raios do sol nascente
mergulharam no lago salgado de Goshum, ninguém
desconfiaria de que o novo dia iria trazer uma série
enorme de grandes acontecimentos. Perry Rhodan
programara uma inspeção nos trabalhos que estavam sendo
realizados nos pavilhões de montagem. As primeiras peças
já tinham chegado de Petersburg, e as colunas de robôs
haviam instalado os primeiros pavilhões.
Ao sair dos seus aposentos, que ficavam fora da nave,
Rhodan sentiu sua atenção atraída por um estranho
tumulto. Um grupo de quatro pessoas que gesticulavam
animadamente aproximou-se dele. Parou. Percebeu que em
meio aos homens havia uma mulher, que parecia um tanto
acanhada.
— Bom dia, minha senhora. O que me dá a honra?
Anne Sloane estava próxima a um estado de prostração
total.
31
— Bom dia, senhor Rhodan. Gostaria de falar com o
senhor. Eu queria...
— Por favor, fale! Não se constranja. Já me conhece?
— Quem não conhece o senhor?
Num gesto desajeitado Anne Sloane tirou do bolso uma
fotografia que mostrava a tripulação da Stardust.
— Onde arranjou isso?
— Foi meu marido que me deu. Nunca regressou. Foi o
único que não voltou. Gostaria de falar-lhe por um
instante. O senhor foi amigo de Clark...
— Amigo de Clark? A senhora é a senhora Fletcher?
Anne Sloane possuía o dom da telecinese, mas faltava-
lhe a vontade poderosa necessária a um agente secreto.
Reunindo suas últimas forças, confirmou com um
movimento de cabeça.
— Ela está mentindo! — disse John Marshall em tom
ríspido.
Anne lançou um olhar apavorado para o telepata.
Desistiu de representar seu papel ambíguo. Seus olhos
encheram-se de lágrimas.
— Como pode dizer o que estou mentindo?
— Porque seu nome é Anne Sloane e nunca foi casada.
Porque foi gente como Mercant e Kaats que a mandou
para cá a fim de praticar a espionagem. Porque, se fosse
um ser humano como qualquer outro, nunca teria
conseguido atravessar nosso anteparo energético. Você
possui capacidades telecinéticas, não é verdade?
Era uma dose excessiva de verdades ministrada de uma
só vez. Anne Sloane chorou sem o menor
constrangimento.
— Cuide dela! — ordenou Rhodan. — Leve-a ao meu
gabinete.
Anne Sloane não ouviu outras perguntas antes que se
recuperasse. Depois disso até conseguiu sorrir. A xícara de
café que Rhodan mandara servir-lhe fortaleceu o
inexplicável sentimento de segurança que tomou conta
dela.
Marshall cochichou alguma coisa ao ouvido de
Rhodan. Este confirmou com um movimento de cabeça e
voltou a dedicar-se à moça.
— Então Mercant teve conhecimento de seus dotes e
procurou colocá-la contra nós?
— Será que você ainda não sabe disso? Se me lembro
do que esse cavalheiro acaba de contar de improviso,
percebo que nem mesmo o agente mais esperto terá
qualquer chance contra vocês. Não compreendo como
pode existir uma coisa dessas. O senhor Kaats vivia me
dizendo que vocês dispõem de algumas vantagens
técnicas, mas de resto não passavam de um pobre grupinho
de gente abandonada.
— Somos um grupinho, mas não um grupinho pobre.
O cavalheiro que tanto a impressionou é John Marshall. É
um ótimo telepata. Aliás, Marshall acaba de me dizer que
seu desejo de praticar a espionagem nunca foi muito
intenso. No íntimo você nutre o desejo de unir-se a nós.
— Será que isso não é uma desculpa esfarrapada? —
perguntou Anne com a voz insegura.
— Poderia parecer. Mas sabemos que esse desejo é tão
real como as instruções que lhe foram ministradas por
Mercant. Afinal, conhecemos seus pensamentos.
Anne fechou os olhos. O sentimento de segurança
abandonou-a. Embora não fosse nenhum telepata, Rhodan
sabia o que se passava no seu interior.
— Conheço a sensação que se apossa da pessoa que
sabe estar à mercê de um telepata. Um homem desses
penetra nos recantos mais íntimos de sua vida privada e
isso a torna infeliz. Não é verdade?
Anne confirmou com um movimento assustado.
— Esperava encontrar por aqui algo de livre e
grandioso. Mas isso não é liberdade.
Perry esboçou um sorriso conciliador.
— Posso restituir-lhe a liberdade, Anne. Eu já a
conquistei.
— A liberdade? Pode libertar-me de um homem desse
tipo?
Lançou um olhar de repreensão sobre John Marshall.
— Posso dar-lhe uma barreira mental. Eu lhe ensino.
Trata-se de um misto de tecnologia e de estudos psíquicos.
Levará apenas algumas semanas para aprender.
— Quer que fique tanto tempo?
— Quero que fique para sempre. Se tiver vontade.
Anne limitou-se a sorrir.
Rhodan dera ordens para que Marshall não se
aproximasse com demasiada frequência de Anne Sloane, a
fim de não deixá-la mais chocada. O Dr. Haggard foi
incumbido de providenciar um alojamento adequado para
a moça.
Perry Rhodan, o chefe da Terceira Potência, foi
caminhando sozinho em direção às linhas de montagem.
Mas ainda assim seus pensamentos não se concentraram
exclusivamente na inspeção que pretendia levar a efeito.
Um novo problema apresentara-se ao seu espírito. Teria de
avaliar todas as possibilidades que este problema lhe
oferecia.
Fora enviada por Allan D. Mercant, chefe do Conselho
Internacional de Defesa. Esse tipo de capacidade humana
poderia transformar-se em certa forma de decepção na vida
de Rhodan. Já o considerara uma figura de primeira ordem
em seu grande jogo. Visitara-o no seu abrigo situado sob
os gelos da Groenlândia, recebera-o ali mesmo, no deserto
de Gobi, como embaixador do Ocidente, e sentira certo
tipo de simpatia mútua. Mas subitamente Allan D.
Mercant manda alguém superdotado para praticar a
espionagem no Gobi...
Seus pensamentos foram interrompidos por um sinal de
alarma emitido pelo rádio de Crest.
— Que diabo! — resmungou Rhodan e acionou o relê
de seu traje altamente versátil, que imediatamente
eliminou a gravidade e o fez vencer os trezentos metros de
volta. Pousou numa comporta de ar e correu para a sala de
comando em que Crest se encontrava.
— Localizou alguma coisa, Crest? Será que já é a
invasão? Já? Seria a hora mais imprópria que poderíamos
imaginar.
— Ainda não há nada de definitivo. Apenas localizei
alguma coisa na órbita lunar. Acontece que desde a
primeira tentativa frustrada sabemos perfeitamente que um
belo dia os habitantes de Fantan trarão reforços.
Rhodan decidiu prontamente.
— Vamos verificar e atacar, desde que a situação o
permita. Não podemos permitir que a Terra corresse
qualquer risco. Não podemos expor os homens nem os
arcônidas. Permite que utilizemos sua nave?
Crest sentia-se dominado pela personalidade de
Rhodan, motivo por que interpretou a solicitação como
uma ordem. Confirmou com um simples movimento de
cabeça, como quem se abstém de exercer qualquer parcela
de autoridade.
As sereias de alarma mobilizaram a pequena tripulação
da Terceira Potência. Rhodan transmitiu ordens que eram
32
ouvidas em toda a parte.
— Klein e Li, queiram comparecer a bordo. Kosnow,
você se encarregará de manter o contato pelo rádio. De
resto os trabalhos serão executados de acordo com a
programação normal. A posição dos robôs também
permanecerá inalterada. Tudo pronto para a decolagem. Li
e Klein apressem-se!
A nave esférica decolou na vertical, depois que o
anteparo energético foi retirado por alguns segundos.
Depois de ter deixado a superfície da Terra, o antígravo
sincronizado imprimiu-lhe uma aceleração de 50 g.
Levaram pouco mais de uma hora para atingir a órbita
lunar. Só Rhodan e Crest, graças ao seu treinamento
hipnótico, estavam em condições de assimilar as posições
que o radar robotizado transmitia numa sequência
vertiginosa. A capacidade de reação de um ser humano
normal seria excedida de cerca de quinhentas vezes. Não
foi por menos que Klein pediu desesperadamente que
reduzissem a velocidade.
Rhodan fez-lhe a vontade, pois descobrira que a nave
inimiga se deslocava com uma velocidade muito menor.
Mais uma vez recorreu-se ao antígravo, pois se tornava
necessário neutralizar a desaceleração de mais de 100 g. O
inimigo não tardou a surgir nítido na tela.
— Isso não é uma nave-fuso e a tripulação não é
composta de habitantes de Fantan — disse Li. — O que
acha Crest?
— Só posso dizer que se trata de uma nave oval motivo
por que não pode pertencer aos arcônidas. Nos últimos
séculos nossa raça sempre teve poucos amigos e muitos
inimigos. Todas as probabilidades indicam que nos
encontramos diante de um inimigo.
Perry Rhodan colocou a nave dos arcônidas em posição
de ataque e acionou os raios de rastreamento.
— Essa gente tem uma cúpula energética. Precisamos
descobrir a potência dela.
Tratava-se de uma indagação puramente retórica.
Rhodan já estava interpretando o raio medidor. Depois de
algum tempo disse:
— Se transformarmos essa nave em energia,
colocaremos um novo sol em miniatura no céu da Terra.
Não estou em condições de formular uma previsão exata
sobre as consequências meteorológicas para nosso planeta,
mas sem dúvida existe a possibilidade da ocorrência de
enormes catástrofes climáticas.
— A nave oval reforçou sua cúpula energética porque
nos aproximamos dela — explicou Crest. — Essa gente
sabe perfeitamente que assim se tornam inexpugnáveis.
— Nossa única chance reside no uso de armas
convencionais — disse Rhodan, falando quase de si para
si. — Se conseguíssemos desencadear uma explosão
interna. Acredito que uma carga de dez toneladas de TNT
seria suficiente para eliminar o problema.
— Seu desejo é compreensível, mas irrealizável. A não
ser que se lembre de algum truque.
— Já conheço o truque — disse Rhodan em tom
áspero. — Só que para levá-lo a efeito devemos realizar
alguns ataques fictícios, para que esse pessoal pense que
só conhecemos o ataque frontal.
A nave dos arcônidas deu um salto e dentro de poucos
segundos aproximou-se a quinze mil quilômetros do
inimigo. Rhodan disparou raios energéticos, cujo impacto
na cúpula protetora produziu um belo fogo de artifício,
mas não causou nenhum efeito. Acontece que o ataque
fictício trouxe um resultado com que ninguém contava. A
nave oval desapareceu subitamente da tela. Não que se
transferisse para o paraespaço ou criasse um campo
invisível por meio de uma curvatura artificial do espaço.
Acelerou simplesmente para mil metros por segundo e
desapareceu no vazio, sob a forma de um ponto que sumiu
na amplitude do espaço.
O resultado foi um espanto geral. Nem mesmo Crest
conseguiu escapar a essa impressão.
— Já viu tamanho desempenho de um mecanismo
propulsor?
Crest sacudiu a cabeça.
— Afinal, nada sabemos sobre as novidades que o
progresso faz surgir diariamente no centro da galáxia
durante nossa ausência. Existem várias raças que seriam
capazes de um desenvolvimento tecnológico dessa ordem.
E há outros detalhes que devem corresponder às
características da nave oval. Convém indagar ao cérebro.
***
Perry Rhodan dirigiu a nave para a Terra. A ideia de ao
menos ter espantado o inimigo deu-lhe esperança de ter
ganhado um tempo precioso.
Pousaram e dirigiram-se imediatamente ao
compartimento em que se achava instalado o cérebro
positrônico robotizado.
Mas o dia parecia ser de bruxaria. Kosnow dirigiu-se
ao grupo e disse que tinha um assunto importante a tratar
com Perry Rhodan.
— O que houve desta vez?
— Há alguém do outro lado da cúpula energética que
insiste em falar com o senhor. Chegou há meia hora com
um avião que regressou imediatamente. Avisou que não
precisa mais dele, pois pretende ser seu hóspede por muito
tempo.
— O homem disse seu nome?
— Não, mas afirma ser amigo do senhor.
— Mande-o entrar e traga-o ao meu gabinete. Deve ser
vigiado rigorosamente.
Rhodan avisou que dali a meia hora se encontraria com
os outros junto ao cérebro robotizado. Após isso entrou em
seu gabinete, onde aguardou o visitante desconhecido.
Kosnow retirou a cúpula energética por alguns
segundos e mandou um carro robotizado até a fronteira.
Quando se deparou com o visitante misterioso, perdeu a
fala por alguns segundos.
— Mercant! De onde vem?
— Diretamente da Groenlândia. Bom dia, Kosnow.
Como vai você?
O tom coloquial da fala de seu interlocutor fez com que
o russo se retraísse subitamente.
— Bem, obrigado, coronel. Queira vir comigo. Rhodan
está esperando.
— O que é isso? Será que encontrou uma mosca na sua
comida? Ou não suporta este tempo maravilhoso?
Kosnow manteve-se num silêncio obstinado. Conduziu
Mercant ao gabinete de Rhodan, onde mais uma vez se
desenrolou uma cena que era um misto de cordialidade e
reserva. Apenas desta vez o próprio Mercant assumiu um
ar sério em meio à frase.
— ...perfeitamente, Rhodan. É claro que não vim a
passeio. Uma viagem para o Gobi custa um bom dinheiro e
as normas burocráticas exigem que apresente um bom
motivo para obter o reembolso da despesa. Por ocasião de
nosso último encontro você se mostrou muito mais franco
e cordial. Não posso negar que compreendo a mudança.
33
Digo-lhe isto para que saiba que não jogo com as cartas
escondidas. Está zangado comigo por causa da história da
senhora Fletcher, ou melhor, Anne Sloane, não é?
— É verdade — disse Rhodan laconicamente.
Mercant prosseguiu:
— Sabia perfeitamente que jamais poderia confiar
muito em Anne Sloane. Pelo menos não poderia confiar
nela para a missão que Kaats quis confiar-lhe, mas se, com
tudo isso, dei essa incumbência à moça, não lhe deve ser
difícil adivinhar para onde se inclinam minhas simpatias.
— Não me venha dizer que elas se inclinam para o
meu lado, Mercant. Hoje não estou com muita
receptividade para bajulações.
— Não leve tudo para o lado pessoal. Vim para cá
somente porque simpatizo com a Terceira Potência. E não
vim por nenhum motivo pessoal. Estou interessado tão-
somente no bem-estar da humanidade. Vim por estar
convicto de que só você está em condições de repelir a
invasão vinda do espaço.
— E veio para ficar por algum tempo, não é?
— Isso depende de você.
Já fazia tempo que Perry Rhodan não ouvia palavras
tão francas. Sentiu-se bem.
— Bem, veremos. Por enquanto quero levá-lo ao seu
alojamento. Depois conversaremos mais demoradamente.
Agora peço que me dê licença, pois tenho um encontro
importante.
— Há pouco vi quando pousou com a nave dos
arcônidas. Não duvido que seu trabalho seja muito
importante. Apesar disso peço que me ouça mais um
instante. Não foi por capricho que vim justamente há esta
hora.
Ao dizer estas palavras, Allan D. Mercant colocou sua
mala sobre a mesa e abriu-a. Rhodan não teve tempo para
formular qualquer objeção. Viu os membros estranhos que
seu visitante trouxera dos gelos da Groenlândia e percebeu
imediatamente a importância daqueles fragmentos.
— O que é isso, Mercant?
— Bem que gostaria que você me dissesse. Ou Crest.
Encontramos bem ao norte do fiorde de Umanaque uma
formação estranha, parecida com um iglu. Abrimo-la com
uma carga explosiva e encontramos os restos deste ser
estranho. Não é do nosso planeta.
Perry Rhodan dirigiu-se ao rádio e pediu que Crest,
Marshall, Haggard e Thora comparecessem ao seu
gabinete. Pouco depois surgiram os três homens. Thora
não apareceu.
Depois de uma breve apresentação Allan D. Mercant
forneceu um relato minucioso das recentes ocorrências na
Groenlândia. O destino do capitão Zimmermann e os
despojos guardados na mala provocaram um enorme
impacto. Ninguém duvidou de que o planeta Terra havia
chegado a uma encruzilhada do seu destino. Os olhares
indagadores concentraram-se em Crest.
— Não há mais necessidade de formular indagações ao
cérebro robotizado, pois já sabemos de tudo. O capitão
Zimmermann não foi nenhum desertor ou traidor. Foi uma
simples vítima desses seres.
— Não são habitantes de Fantan, são?
— Não. São seres muito mais perigosos e traiçoeiros.
O sinal de emergência desencadeado automaticamente
pela destruição de nossa nave deve ter concentrado as
atenções de numerosas inteligências sobre este setor do
espaço. Devemos nos conformar com o fato de que a
posição da Terra tornou-se bastante conhecida entre os
habitantes da galáxia. Algumas raças, tangidas pela
curiosidade, pela ganância ou pelo vandalismo, tentarão
invadir o sistema solar. Depois dos habitantes de Fantan
chegaram os DI. Os DI são criaturas de rebanho. Quando
se avista um, deve-se contar com muitos.
— O que significa DI?
— Procurarei explicar com o exemplo do capitão
Zimmermann. O nome desses seres não pode ser expresso
na linguagem dos arcônidas, já que nos faltam vocábulos
adequados. DI significa Deformadores Individuais. Posso
adiantar que esses seres se contam entre os inimigos mais
temíveis do nosso Império. Dispõem de uma qualidade
inata que lhes permite abandonar seu corpo em espírito e
transferir-se a outro organismo. Seu ego pode manter-se
por muito tempo num outro ser e isso de tal forma que o eu
é trocado por esse tempo. O capitão Zimmermann deve
ter-se encontrado com um ser desse tipo nos gelos da
Groenlândia. Quando compareceu ao seu gabinete,
Mercant estava possuído pela vontade do DI. O corpo
deste encontrava-se sob a cúpula protetora que lhe pareceu
tão misteriosa e serviu como prisão martirizante ao espírito
de Zimmermann.
— Que coisa horrível! — interveio o Dr. Haggard. —
Será que esse poder inconcebível dos DI está ligado a
certas capacidades metabólicas?
Crest sacudiu a cabeça.
— Você está pensando numa substituição orgânica,
não é? Acredita que haja uma trasladação total, inclusive
do protoplasma? Não é nada disso. Não há nenhuma
deformação metabólica. A investidura de um espírito
estranho em nosso corpo já é um fenômeno demoníaco.
Não houve quem não concordasse com a opinião de
Crest. Mas Haggard continuou a desenvolver suas ideias.
Subitamente, afastou-se de Mercant. Ainda num
movimento súbito segurou a pistola e apontou-a para o
visitante.
— Estamos conversando sobre os DI, mas esquecemos
de que Mercant esteve com Zimmermann pouco antes de
sua morte.
Crest compreendeu o raciocínio de Haggard. Fez um
gesto tranquilizador.
— Guarde sua arma, doutor. Os DI têm de partir do
corpo deles para penetrar num corpo estranho. Para
realizar uma deformação têm de abrigar-se no seu próprio
organismo. Portanto, não há possibilidade de o DI ter
passado do corpo de Zimmermann para o de Mercant.
— E o que é feito do DI? Será que ele se conformou
com a morte de Zimmermann?
— Morreu tal qual o capitão. O retorno ao próprio
corpo requer certo preparo espiritual. Quase diria que se
trata de uma concentração de forças. É este um dos poucos
pontos em que podemos encontrar uma compensação para
nossa fraqueza.
— Quer dizer que ambos estão mortos? O DI e
Zimmermann?
Crest confirmou com um movimento de cabeça.
Dali a pouco o debate chegou ao fim. Mercant ainda
ponderou que era bem possível que a deformação de
Zimmermann não fosse um caso isolado. Crest confirmou
a possibilidade.
— É bem possível que a situação seja muito mais séria
do que pensamos. O exemplo de Zimmermann prova que
os DI estão realizando ataques isolados pelo menos há uns
dois ou três dias. Devemos pensar em um alarma geral
dirigido a toda a humanidade. Cada homem deve vigiar
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seu vizinho e reportar prontamente qualquer tipo de
comportamento estranho ou hostil.
— Sabe o que significa isso? — perguntou Rhodan.
Crest fez que sim.
— Significa o pânico geral disseminado entre os
homens. Se encontrar um caminho adequado, recomendo-
lhe que o use.
— Mais uma pergunta, Crest. Os DI precisam realizar
uma aproximação física para dar seus saltos espirituais, ou
estão em condições de vencer distâncias maiores?
— Operam de perto e de longe. Quando se torna difícil
atingir determinado indivíduo que se encontra em meio a
outros, chegam bem perto. Mas se a vítima se encontra
num local isolado, conseguem atingi-lo a partir de uma
nave espacial que se encontra a milhares de quilômetros de
distância.
* * * Uma hora depois.
— Tako acaba de anunciar sua chegada — disse
Rhodan, dirigindo-se a Mercant e ao Dr. Haggard, que
ainda se encontravam em seu gabinete. — Trazem treze
mutantes.
— Mutantes? — perguntou Mercant, esticando a
palavra. Pelo modo de olhar percebia-se que não entendera
nada.
— São mutantes destinados à Terceira Potência. A
tripulação de nossa base, ou melhor, a população de nosso
Estado, deverá manter-se reduzida por muito tempo. Por
isso devemos substituir a quantidade pela qualidade. Só as
pessoas mais capazes podem ser recrutadas para o serviço
da Terceira Potência. Fundarei um exército secreto de
mutantes. Trata-se de uma tropa menor e menos vistosa
que qualquer outra. Por outro lado, porém, é mais rápida,
forte e digna de confiança.
— O exército secreto dos mutantes — repetiu Mercant,
como se fosse o eco de seu anfitrião. Procurou pôr as
ideias em ordem. Apesar do impacto das impressões que
recebera nas últimas horas, conseguiu formar uma linha
coerente de raciocínio, que em última análise se fundava
no seu desejo.
— Rhodan, eu o admiro! Suas palavras poupam-me o
trabalho de tomar uma decisão séria. Sinto que confia em
mim. Considere-me um dos seus.
— Obrigado, Mercant. Há muito desejo isso.
Depois de um aperto de mão, que haviam omitido ao se
cumprimentarem, voltaram a falar em Tako Kakuta.
Quando começaram a tirar as primeiras baforadas de um
cigarro, ouviram a informação de que o avião de transporte
se preparava para pousar.
Por alguns segundos a cúpula energética do território
da Terceira Potência deixou de existir. O avião pousou.
Tako foi o primeiro a descer.
— Suas ordens foram cumpridas, Rhodan! Temos doze
mutantes a bordo. A disposição que prevalece entre eles
não lhe é muito favorável. A maioria pretende citá-lo
perante a Corte Internacional assim que se ofereça a
oportunidade.
— Obrigado, Tako — disse Rhodan com um sorriso
significativo. Peça aos cavalheiros que desçam. Mas não
procure esconder nenhum deles. No seu primeiro
comunicado você não falou numa dúzia, mas em treze.
— O décimo terceiro vem da Alemanha. Bell o trará
num avião fretado. Sua chegada está prevista para hoje de
tarde.
— Muito bem! Gostaria de ver os doze que já
chegaram.
O primeiro encontro de Rhodan com seus mutantes foi
muito menos dramático do que estes haviam previsto.
Tomados de indignação, apressaram-se em sair do avião e
falavam em altas vozes. Mas a demonstração de
indisciplina logo cessou. À medida que os mutantes se
aproximavam de Perry Rhodan, silenciavam.
— Senhoras e senhores, eu tenho muito prazer em
cumprimentá-los como hóspedes da Terceira Potência —
principiou Rhodan. — Peço-lhes que desculpem a forma
estranha, pela qual lhes foi transmitido o convite.
Asseguro-lhes, porém, que nenhum dos senhores está
sujeito à menor restrição em sua liberdade pessoal.
Poderão morar por oito dias nos alojamentos mais
confortáveis de que dispomos, sem que isso lhes acarrete
qualquer despesa. Nesses oito dias terão oportunidade de
participar de um interessantíssimo treinamento hipnótico,
que terá por fim revelar suas verdadeiras capacidades
espirituais. Posso assegurar-lhes que poucos sabem sobre
suas potencialidades. Considerem o processo como uma
forma de jogo espiritual de que participarão. Daqui a oito
dias estarei à disposição dos senhores e terei prazer em
responder a quaisquer perguntas que desejem formular. E
então este avião estará preparado para levá-los para casa,
se assim desejarem.
Perry Rhodan ainda dirigiu um cumprimento aos
mutantes. Após isso, os entregou à equipe formada pelo
Dr. Haggard, Dr. Manoli e Marshall.
Rhodan aguardou seu amigo Reginald Bell. Mas esse
dia repleto de acontecimentos ainda não havia chegado ao
fim. Na hora do almoço receberam um novo alarma
expedido por Crest.
— A nave espacial dos DI voltou a aproximar-se.
Encontra-se na mesma órbita de hoje de manhã. Rhodan,
você não disse que dispunha de um truque?
Perry largou o talher e pôs-se de pé.
— Isso mesmo, disponho de um truque. E ai da
humanidade se ele não for bom. Alô, Tako! Compareça
imediatamente à nave. Decolaremos dentro de um minuto.
Perry Rhodan sempre fora um homem extraordinário.
Depois do treinamento hipnótico recebido dos arcônidas
talvez tivesse atingido um grau de genialidade
inalcançável pelo comum dos seres humanos. Mas naquele
instante nem imaginou que serviço estava prestando a si
mesmo e à Terceira Potência.
A cúpula energética deixou de funcionar. A nave
esférica subiu na vertical. O anteparo voltou a fechar-se.
Aceleração: 50 m/seg. O velho jogo, o sonho
imorredouro da humanidade: vencer a distância que separa
a Terra da Lua em pouco mais de uma hora.
Ingressaram na órbita do satélite apesar da formidável
força centrífuga. Só depois de realizada essa manobra foi
acionada a energia de frenagem. As ordens e os
movimentos de Perry Rhodan eram breves e objetivos.
Não desperdiçavam um suspiro.
Uma decisão estava presente ao espírito de todos: eles
ou nós!
Tako Kakuta, que recebera instruções minuciosas,
entrou na pequena nave de serviço, que não tinha mais de
cinco metros de comprimento, e manobrou em direção à
comporta pneumática. Foi quando chegou uma mensagem
de rádio vinda do Gobi. Tratava-se de uma notícia
desalentadora expedida por Kosnow.
— Alô, Rhodan. Acabo de receber um pedido de
35
socorro de Bell. Está se aproximando num pequeno avião.
Queixa-se de fortes dores de cabeça e pede que o
ajudemos. Diz que não consegue manter o avião sob
controle. O que devemos fazer?
— São os DI! — exclamou Crest.
— Transmita a mensagem de Bell pelos
amplificadores, a fim de que eu mesmo possa falar com
ele.
— Alô, Bell. Está me ouvindo?
— Perry! Ajude-me. Não consigo pensar mais. Não sei
o que houve comigo...
Ordem de Rhodan dirigida a Tako Kakuta:
— Salte e tente a teleportação dentro de dez segundos.
Resposta de Rhodan dirigida a Reginald Bell:
— Defenda-se, Bell! Defenda-se. Não é nenhuma dor
de cabeça. É uma agressão espiritual dos invasores.
Encontramo-nos na órbita lunar e atacaremos num
instante. Você me ouve, Bell? Responda!
— Perry! Não aguento mais! A dor é insuportável.
Minha cabeça está explodindo. Vou...
— Controle-se! Você é mais forte que eles. Lembre-se
do treinamento hipnótico dos arcônidas. Você tem uma
vontade poderosa. Não ceda! Se o fizer, estará perdido.
Esses seres querem devorar seu eu. Controle-se, Bell. Mais
um minuto. Meio minuto. Daqui a pouco tudo passará...
Perry Rhodan não sabia se poderia cumprir a promessa.
Tudo dependia do êxito do seu truque, do golpe tático com
o qual pretendia derrotar os DI.
O ataque desfechado na manhã daquele dia provara que
nada se conseguiria com o uso da energia física aplicada
do lado de fora. A cúpula protetora dos DI era muito
potente. Mas também o seria quando não se sentissem
atacados? Tudo dependia disso.
Depois de ter desprendido sua minúscula nave da
gigantesca esfera dos arcônidas, Tako Kakuta aproximou-
se velozmente da nave dos DI. A nave esférica realizou um
ataque simulado e empreendeu uma retirada aparente em
direção a Terra.
A primeira etapa do plano de Rhodan foi coroada de
êxito.
Os DI não viram naquele ligeiro bombardeio
energético nenhum motivo para desaparecer
precipitadamente. Havia um motivo evidente para essa
conduta. Realizavam uma agressão espiritual contra
Reginald Bell, que se encontrava a pequena altitude sobre
o deserto de Gobi, e por isso tinham de manter-se em sua
posição atual.
Com isso abriu-se a possibilidade para a teleportação
de Tako.
Assim que a nave dos arcônidas se havia afastado um
pouco dos DI, a vigilância destes diminuiu. A nave de
Tako era tão pequena que não poderia ser localizada à
primeira tentativa.
O japonês gastou a quarta parte de um segundo para
igualar a velocidade de sua nave à do inimigo. Distância
para a nave dos DI: sete mil quilômetros.
Foi então que saltou...
...e foi parar na sala de comando da nave inimiga.
O segundo durante o qual os cinco Deformadores
Individuais que se encontravam presentes foram
dominados pelo susto bastou para acender a bomba. Tako
voltou a teleportar-se para sua nave e no mesmo instante
presenciou a explosão da nave oval.
Muitos outros a presenciaram: a tripulação da nave
esférica, a base terrestre do deserto de Gobi e Reginald
Bell, que subitamente se sentiu livre dos incômodos que o
atormentavam.
Aterrissou são e salvo com o visitante que trazia da
Alemanha.
* * *
Oito dias depois.
A notícia da nova vitória de Perry Rhodan sobre uma
nave espacial inimiga ocupou as manchetes em toda a
Terra. A simpatia pela Terceira Potência, que até então
vinha sendo encarada com certa dúvida, cresceu
vertiginosamente.
Enquanto isso, no deserto de Gobi, foi concluído um
dos cursos mais estranhos da história da humanidade. Na
sala de conferências montada pelos robôs estavam
reunidas todas as pessoas que se encontravam no território
da Terceira Potência. No rosto dos sequestrados não se
percebia o menor sinal da indignação que os dominava
uma semana atrás.
— ...e assim vou concluir, meus caros — terminou
Perry Rhodan. — Todos depositaram em mim uma
confiança irrestrita, que nunca ousaria esperar. Garanti que
poderiam voltar para casa quando o desejassem. É claro
que, se resolveram ingressar no serviço da Terceira
Potência, terão direito a férias regulares. O bloqueio
hipnótico não os deixará cair na tentação de revelar
quaisquer segredos aos que se encontram do lado de fora.
Peço-lhes que se levantem. Com a presente cerimônia
ficam engajados pelo resto da vida no exército secreto de
mutantes da Terceira Potência, exército que hoje, no dia de
sua fundação, é formado de dezoito pessoas. Durante a
palestra que acabamos de travar, os senhores deram
mostras de estarem cônscios da importância histórica da
instituição no contexto cósmico. Conhecem as limitações
da humanidade, que ampliamos ligeiramente com a
primeira viagem da Stardust. Também conhecem a enorme
expectativa de que a humanidade se sente possuída no
limiar da era espacial. Sabem que dentro de pouco tempo
penetraremos em mistérios de que há poucos anos nenhum
habitante de nosso planeta teria suspeitado. Esse salto para
a amplidão do espaço cósmico até mesmo no terreno
puramente psicológico representa um martírio para o
espírito de nossa raça que ainda se move em limites muito
estreitos. Dependerá dos senhores o bom êxito da tarefa de
livrar a humanidade de terríveis pesadelos e de vencer o
desafio do cosmo. Muito obrigado!
Os participantes da reunião foram se afastando. Perry
Rhodan ficou aborrecido ao notar que Thora fora a
primeira a retirar-se.
— O que há com ela? — perguntou, dirigindo-se a
Crest. — Pensava ter me aproximado mais de sua pessoa.
De qualquer maneira nestes últimos tempos já se podia
conversar com ela; chegou mesmo a demonstrar alguns
sentimentos. Mas há uma semana não fala uma palavra
comigo e me evita sempre que pode.
— Há uma semana? — disse Crest com um sorriso
benevolente. — Não está lembrado do que aconteceu há
uma semana?
— Tivemos um dia muito quente. A invasão dos DI, a
visita de Mercant, o problema que houve com Bell...
— Até parece estar esquecido do começo desse dia.
Qual foi a primeira surpresa?
— Ah! Sim. Foi à senhorita Sloane. Não vá me dizer
que Thora está com ciúmes.
— Pois é isso — disse Crest.
36
— Nesse caso perdoo tudo. Ver Thora com ciúmes era
a única coisa que faltava para completar minha felicidade.
Crest também saiu. Rhodan pensou que estivesse só.
Mas subitamente sentiu a presença de uma pessoa. Virou-
se. Homer G. Adams estava de pé bem nos fundos da sala.
Uma figura de pigmeu com a cabeça enorme que parecia
pender para frente. O ministro das finanças da Terceira
Potência fez um sinal. Parecia tímido.
— Então, Adams. A viagem o deixou cansado?
O homenzinho aproximou-se e sacudiu a cabeça.
— Nessas suas máquinas uma viagem de Nova Iorque
ao deserto de Gobi não é nada, Rhodan. Mas há uma coisa
que me preocupa. Não vou brincar de esconder. Acontece
que um bom financista não chega a ser um mutante. Assim
mesmo incorporou-me ao seu exército. Não terá sido um
engano?
Perry sorriu. Parecia absorto nos seus pensamentos.
— Diga-me uma coisa, Adams. Qual é o cubo de
2.369,7?...
— 13.305.998.429,873.
— Calculou neste instante?
— É claro que não. Acontece que há poucos dias o
senhor formulou a mesma pergunta.
— E você guardou o resultado?
— Guardei — disse Adams, como se fosse à coisa
mais natural deste mundo.
— Pois bem — disse Perry Rhodan, colocando a mão
sobre o ombro de seu interlocutor. — Nenhum homem
normal seria capaz de lembrar-se de um resultado desses,
enunciado casualmente em meio a um debate acalorado.
Nenhum homem que possua apenas os cinco sentidos seria
capaz disso. Você possui uma memória fotográfica.
Perry Rhodan ampliou o círculo de seus colaboradores. Agora são dezoito pessoas.
São dezoito pessoas dotadas de capacidades extraordinárias, que valem mais que um
exército.
Essas pessoas chegaram bem na hora, pois logo haverá nova invasão do espaço.Isto
acontece na próxima edição intitulada:
INVASÃO ESPACIAL
37
Nº 07
De
Clark Darlton
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
A energia humana e a tecnologia superior dos arcônidas uniram-se
num superpoder conhecido como a Terceira Potência.
E não foi sem razão que lhe deram esse nome. Pois essa Terceira
Potência, chefiada por Perry Rhodan, já conseguiu evitar as piores
catástrofes para a Terra.
Mas agora os velhos inimigos dos arcônidas, os Deformadores
Individuais, penetram no sistema solar. A Terceira Potência vê-se diante
duma ameaça contra a qual nem mesmo os cientistas do planeta Árcon
conhecem qualquer defesa... começa a Invasão Espacial...
38
I Subitamente os olhos daquele homem se arregalaram
numa expressão de horror, como se tivessem enxergado
uma coisa inconcebível. Mas, fitava o vazio, o azul infinito
do céu que se espelhava na superfície do pequeno lago
escondido no mato. Logo se tornaram rígidos e apáticos.
A mão que segurava a vara de pescar não tremia.
Parecia petrificada. Não reagiu quando a boia foi arrastada
abruptamente para o fundo. Só a vara envergou sob a
tração pela qual Sammy Derring esperara em vão a manhã
inteira. E agora nem reagiu.
Quem pudesse contemplar seus
olhos naquele instante recuaria
horrorizado. O pavor infinito
misturou-se com o espanto. Isso
durante cinco segundos.
Nesses cinco segundos ninguém
reconheceria naquele homem o
estatístico; Sammy Derring,
funcionário, já a alguns anos, do
Ministério da Defesa do Bloco
Ocidental. Era solteiro. Nos fins de
semana ia invariavelmente ao
pequeno lago situado no meio da
floresta, para pescar trutas que
entregava à dona da casa em que
ocupava um quarto. Não gostava de
peixe, mas era de opinião que o
esporte da pesca acalmava os nervos
e fazia bem à saúde. Mais adiante, à
margem duma estradinha, achava-se
estacionado seu carro, que era o
segundo hobby de Sammy. Não
conhecia outras paixões
Por cinco segundos Sammy
Derring estava praticamente morto.
Seu espírito, sua inteligência, ou
sua alma, conforme o termo que se prefira usar abandonara
o corpo. Mas não o abandonara voluntariamente. Fora
forçado. Alguma coisa mais forte que ele, alguma coisa
inconcebível apossara-se de seu cérebro, penetrara nele e
expelira o que antes se encontrava em seu interior.
Durante esses segundos inconcebíveis Sammy Derring
via a si mesmo sentado à margem do lago. Invisível,
flutuou a alguns metros de altura e olhou para seu corpo.
Não compreendeu, mas viu. E também viu que estava
morto, mas continuava sentado no mesmo lugar. Ele, ou
melhor, seu corpo, deveria ter caído. Mas continuou
sentado e nem se interessou pelo peixe que mordera a isca.
No espírito de Sammy surgiu o desejo de levantar o
caniço, mas o corpo que se encontrava ali embaixo já não
obedecia ao seu comando. Além disso, não havia mais
tempo. Os cinco segundos tinham chegado ao fim. O
quadro bucólico do lago desvaneceu-se diante dos olhos de
Sammy — será que ele ainda tinha olhos? — e
desapareceu.
Uma força invisível arrastou-o. As cores tremeluziram.
Por um instante julgou ver uma esfera imensa abaixo de si.
Logo após sentiu-se envolvido pela escuridão. Percebeu
que estava sendo arrastado para dentro de alguma coisa.
Subitamente os reflexos físicos retornaram. Sentiu os
membros. Pôde movê-los.
Apesar da escuridão conseguiu enxergar. Notou que a
escuridão não era completa; uma luminosidade fraca
enchia o espaço no qual se encontrava. A pergunta de
como tinha chegado até ali surgiu vagamente em seu
espírito, mas logo se desinteressou pela resposta. Sofrera
um esgotamento total e encontrava-se num hospital. Não
havia outra explicação.
Estava doente. O cansaço envolveu-o e apoderou-se de
todo o seu ser. Por que ninguém cuidava dele? Desconfiou
de que devia haver alguém por perto. Esforçou-se para
erguer o corpo, mas não conseguiu. Será que o tinham
encontrado junto ao lago e o trazido até ali? Não se vira a
si mesmo, sentado junto à margem
do lago? Seus olhos já se haviam
acostumado à semiescuridão; voltara
a enxergar. Mas o cansaço tornava-se
cada vez mais forte. Sentiu que iria
adormecer. Mas alguma coisa remoia
no seu cérebro e não lhe dava
sossego. Constatara algo. Mas
preciosos segundos se passaram até
que a percepção atingisse sua
consciência e se transformasse em
realidade. Os dedos... as pernas.
Reunindo as últimas energias, abriu
os olhos uma última vez e,
apavorado, fitou as extremidades dos
quatro braços presos ao seu corpo.
Viu garras bem afiadas, com
ventosas.
Depois olhou para o corpo. Era
um corpo de marimbondo, coberto
duma fina penugem, que se estreitava
no centro. O monstro terrível em que
se transformara subitamente era tão
irreal que Sammy deu um suspiro de
alívio, fechou os olhos negros e
esticou as pernas.
Era claro que tudo não passava de
um sonho. Como não pensara nisso
antes?
Quando se deu conta do fato de que jamais o homem,
enquanto sonha, percebe que se encontra nesse estado, já
era tarde.
Seu espírito, aprisionado num organismo extraterreno,
mergulhou num sono profundo.
* * *
Decorridos os cinco segundos, Sammy Derring
recolheu a vara de pescar. Contemplou sem maior
interesse a truta de quase um quilo e, depois de ligeira
hesitação, tirou-a do anzol e voltou a atirá-la à água.
Colocou a vara distraidamente no gramado e, em passos
um tanto inseguros, como se tivesse estado de cama por
algumas semanas, dirigiu-se ao carro. Mais uma vez
hesitou ligeiramente. Mas logo o centro de memória do
intelecto que antes habitara aquele corpo forneceu-lhe as
informações desejadas.
Sammy Derring, que já não era o verdadeiro Sammy
Derring, deu partida no motor do carro e, guiando
cautelosamente pelo caminho esburacado, conduziu-o em
direção à rodovia. Lançou um olhar ligeiro sobre as placas
indicativas. Logo disparou em direção à cidade.
A senhora Sarah Wabble admirou-se de ver seu
inquilino de volta antes da hora de costume. Sua
admiração cresceu bastante quando Sammy se limitou a
Personagens principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potência. Reginald Bell — Engenheiro eletrônico da Stardust e melhor amigo de Perry.
Crest e Thora — Únicos sobreviventes da
expedição dos arcônidas. Tako Kakuta — Membro
do exército dos mutantes. Possui o dom da
teleportação.
Homer G. Adams — “Ministro das Finanças” da
Terceira Potência. Seu campo de trabalho é o
mundo, e as somas por ele manipuladas atingem a
casa dos bilhões.
Ernst Ellert — Um homem cujo espírito sabe
deslocar-se no tempo. Perry diz que é um
teletemporador.
Allan D. Mercant — Chefe do Conselho
Internacional de Defesa e simpatizante de Rhodan.
39
cumprimentá-la com um ligeiro movimento de cabeça e se
trancou no quarto. Nenhuma palavra nada de trutas.
O ser que já fora Sammy Derring sentiu-se aliviado ao
perceber que a porta trancada o separava dos homens. Sua
experiência no comando de organizações estranhas ainda
deixava a desejar. Além disso, os habitantes deste planeta
dispunham de uma boa dose de inteligência que não era
fácil excluir nem conservar. Teria sido fácil eliminar
aquele homem, mas as ordens do comandante tinham de
ser cumpridas.
Esse comandante não se encontrava na Terra. Bem
longe, no espaço cósmico, um objeto oval que emitia um
brilho metálico percorria, em queda livre, sua órbita era
torno da Terra sem que ninguém pudesse perceber seus
movimentos. Essa nave não fora concebida pelo cérebro de
qualquer homem, nem construída por mãos humanas.
Garras de inseto e patas de ventosa que não eram humanas,
mas nem por isso menos hábeis, que as mãos dos homens,
haviam executado o serviço. A inteligência que
comandava os movimentos dos membros de seis
articulações daqueles insetos de quase dois metros de
comprimento, cujo aspecto lembrava ligeiramente o das
vespas, não ficava a dever nada à dos homens.
Uma faculdade permitia aos espíritos desses seres
extraterrenos abandonarem seu próprio corpo e apossar-se
de um organismo estranho. Com isso realizava-se uma
verdadeira troca. Felizmente ainda desta vez a natureza
cuidara para que houvesse um ponto fraco. O espírito que
habitava o corpo no qual pretendiam penetrar só poderia
ser banido e aprisionado enquanto ficasse encerrado no
corpo da própria vespa. Só assim os DI adquiriam
liberdade de ação e conseguiam realizar qualquer
movimento com o corpo que passavam a habitar. Se o
hospedeiro falecesse antes que abandonassem seu corpo, a
vespa teria que falecer com ele. E a destruição do corpo do
inseto que encerrasse o espírito humano também se
tornaria fatal.
Aqueles que conheciam os insetos chamavam-nos de
Deformadores Individuais, ou simplesmente DI, isso por
causa de suas qualidades terrificantes.
Os DI haviam encontrado a Terra. Esse planeta
totalmente desconhecido, situado nos confins da Via
Láctea, transformara-se de uma hora para outra no centro
duma série de acontecimentos cujas consequências ainda
eram imprevisíveis. Os DI foram atraídos pelos sinais de
socorro de um cruzador espacial dos arcônidas, que
dominavam um imenso império espacial e eram os
inimigos natos das “vespas”. Não havia a menor
possibilidade de vitória na luta contra elas, a não ser que
conseguissem localizar e destruir suas naves. Uma dessas
naves exploradoras devia ter realizado um pouso de
emergência no sistema solar. No entanto, uma surpresa
estava reservada aos DI. A Terra era habitada por uma raça
inteligente, que já chegara mesmo a ultrapassar
os
primeiros estágios da navegação espacial.
Estava na hora de cuidar dos terrenos antes que os
arcônidas o fizessem.
Fora só por esse motivo que o comandante dos DI
ordenara a infiltração no planeta Terra. Tinha certeza
absoluta de conquistar em pouco tempo as posições-chaves
da ciência e da política terrena.
Decidira levar a efeito a invasão.
Os homens não desconfiavam de nada. Sabiam que nas
proximidades da órbita lunar surgira uma nave espacial
desconhecida, que fora destruída, mas não sabiam que os
DI possuíam mais de uma nave, e mais do que isso, com
exceção de umas poucas pessoas, não sabiam quem eram
os DI e quais eram suas intenções.
* * *
Quando Sammy Derring entrou no escritório na
segunda-feira de manhã e cumprimentou seus colegas,
ninguém percebeu a transformação que havia
experimentado. Remexeu os papéis e subitamente chamou
a secretária.
A jovem entrou e segurou o bloco de ditado. Sammy
sacudiu a cabeça e disse em tom sério:
— Traga-me todos os documentos relativos à defesa
terrestre. Além disso, desejo examinar os relatórios sobre
os progressos alcançados nos setores da pesquisa espacial
e da tecnologia dos foguetes. Estou interessado
principalmente na eficiência da nossa defesa. Por que me
olha desse jeito? Vamos logo, mexa-se!
A secretária engoliu em seco e ficou com o rosto
vermelho.
— Mas, senhor Derring...
— Não entendeu o que eu disse?
A secretária quis dizer mais alguma coisa, mas logo viu
a expressão nos olhos de Sammy. Essa expressão era tão
estranha, tão distante, que a fez estremecer. Ficou sem
saber o que dizer. Com um aceno de cabeça saiu da sala.
Deixou para trás um Sammy Derring muito satisfeito. Ou
melhor, o aspecto externo de Sammy Derring.
A secretária fechou a porta e ficou parada por um
instante. Depois sacudiu a cabeça e tomou uma decisão:
dirigiu-se ao seu chefe de seção, certo John Mantell.
Mantell ouviu em silêncio o que aquela linda jovem
tinha a dizer. Em sua testa surgiram algumas rugas.
Parecia refletir intensamente. Depois de algum tempo
sacudiu a cabeça.
— Tem certeza absoluta de que Sammy não estava
gracejando?
— Absoluta. Estava falando sério. Além disso, aquela
expressão nos seus olhos. Nunca vi uma expressão dessas
no rosto de ninguém.
Mantell contemplou-a com olhos perscrutadores.
— Isso é muito estranho! Quer os dados relativos à
defesa nacional. Deve saber perfeitamente que só o
ministro da defesa tem acesso a eles. Não irá entregá-los a
qualquer funcionariozinho. Será que ficou
megalomaníaco?
Pela primeira vez a secretária sorriu.
— Lembro-me de que certa vez, em brincadeira, o
senhor Derring disse que seu nome era parecido com o do
ministro da defesa. Disse que um dia poderia ser
confundido com ele.
— O ministro Samuel Daring não teria gostado disso
nem um pouco — conjeturou Mantell. — A semelhança de
nomes não justifica esse tipo de brincadeira. Falarei com
Derring. Diga-lhe que se apresente no meu escritório às
onze horas.
A secretária hesitou.
— O que devo dizer-lhe agora?
— Diga o que quiser. E agora me deixe em paz; tenho
muito que fazer.
A secretária foi saindo devagar, mas não voltou à sua
mesa. Ficou indecisa por alguns instantes; depois pediu
que a anunciassem ao encarregado dos serviços de defesa.
O senhor Smith ficou surpreso ao saber do incidente.
40
Levou o caso muito mais a sério que John Mantell, que
provavelmente já o havia esquecido. Pediu à secretária que
aguardasse na antessala. Mal a porta fechou-se atrás dela,
começou a desenvolver uma atividade intensa. Retirou um
telefone trancado num cofre, discou um número e esperou
impaciente. Teve de repetir o número duas vezes.
Finalmente a pessoa com que desejava falar respondeu ao
chamado.
— Aqui fala Smith, do Ministério da Defesa.
Aconteceu uma coisa estranha, senhor. É totalmente
incompreensível, a não ser que se trate de uma brincadeira.
Acontece que há poucos dias recebi instruções do senhor
no sentido de observar qualquer pessoa que revele um
comportamento anormal e...
A voz interrompeu-o. Formulou uma pergunta precisa.
Smith encolheu-se e assumiu um porte mais rígido na
poltrona. Seu interlocutor devia incutir-lhe um respeito
fora do comum.
— Perfeitamente, senhor. O funcionário Sammy
Derring exige que lhe entreguem os planos secretos da
defesa nacional. Além disso, quer ser informado sobre os
detalhes do nosso programa espacial. Manifestou esse
desejo com toda a seriedade. Sua secretária afirma que
nunca viu tamanha determinação em sua pessoa. Além
disso, ela declara ter notado uma expressão muito estranha
nos olhos dele.
Houve outra pergunta lacônica, mas desta vez em voz
bastante alta:
— Qual é o nome do funcionário?
— Sammy Derring, senhor.
— E como é o nome do ministro da defesa?
— Senhor?!
— Quero saber como se chama o ministro da defesa.
— Samuel Daring, senhor. Mas o senhor já sabia
disso...
— Obrigado, Smith. Anote minhas instruções. Não
deixe que ninguém desconfie de nada. A secretária
entregará os documentos a Derring. É claro que lhe
entregará documentos já superados. Derring não deve
suspeitar de nada. Entendido?
— Perfeitamente, senhor. Mais alguma coisa?
— Não fale sobre isso com ninguém, ouviu? Dentro de
duas horas estarei aí.
— O senhor pretende vir pessoalmente? A voz de
Smith falhou. Era uma coisa nunca vista. Allan D.
Mercant, o chefe todo-poderoso dos serviços de defesa do
Ocidente, se daria ao incômodo dessa viagem. E ainda por
cima tratava-se duma bagatela. Por certo acabariam por
descobrir que o tal do Sammy Derring se permitira um
gracejo, já que seu nome era semelhante ao do ministro da
defesa.
— Sim, irei pessoalmente. E não se esqueça: o sigilo
deve ser absoluto! Avise a secretária.
Smith voltou a colocar o telefone no cofre. Quando
chamou a jovem, parecia pensativo. Pediu-lhe que
sentasse. Depois falou em tom indiferente:
— Não fale com ninguém sobre o incidente. Ao que
parece, Sammy está... Bem, está doente. Provavelmente se
trata de um tipo de alucinação. Daqui a dez minutos lhe
mandarei um monte de documentos, que você entregará ao
seu chefe. Compreendeu?
— Compreendi, mas...
— Não há nenhum, mas! Diga a Sammy que já
solicitou os documentos ao arquivo. E não fale com
ninguém sobre o assunto.
A secretária lembrou-se do chefe de seção. Já contara
alguma coisa a ele. Mas Mantell parecia não se interessar
por isso. Talvez até acabasse esquecendo. Acenou com a
cabeça.
— Muito bem, senhor Smith. Avisarei o senhor
Derring. Tomara que não volte a olhar-me de forma tão
estranha. Tenho medo dele.
— Que tolice...
— Thompson. Clara Thompson.
— Não há nada a recear, Clara. Acredito que Derring
esteja sofrendo de uma perturbação psíquica passageira.
Ontem fez muito calor; quem sabe se não passou muito
tempo no sol.
Para Clara Thompson isso não justificaria o fato de que
subitamente alguém se julgasse o ministro da defesa em
pessoa. No entanto, achou preferível não responder.
Despediu-se com um aceno de cabeça e voltou à sua mesa.
Não se lembrou mais de Mantell.
Quando bateu na porta, Sammy levantou os olhos.
— Ah, está trazendo os documentos?
— Ainda não, senhor. Devem chegar dentro de dez
minutos.
— Obrigado. Quando chegarem, não me faça perder
mais tempo.
— Perfeitamente, senhor.
Clara sentiu-se feliz quando pôde fechar a porta atrás
de si. Sammy Derring tinha uma aparência normal. O
brilho estranho dos olhos desaparecera. Mas aquela ordem
estúpida sobre os documentos secretos continuava de pé.
Dali a dez minutos os documentos foram trazidos.
Estavam guardados numa pasta vermelha, na qual se liam
as palavras Estritamente confidencial.
Clara fitou a pasta. Sentia-se muito importante ao
carregá-la nas mãos, embora soubesse quão pouco
importante devia ser seu conteúdo. Por que Smith estaria
entrando nessa brincadeira infantil? Haveria algo mais que
um simples capricho atrás de tudo isso?
Pegou a pasta vermelha, bateu à porta da sala de
Derring e entrou ao ouvir a voz dele. Sem dizer uma
palavra, colocou os documentos sobre a mesa e fitou-o.
Notou que em seus olhos surgiu um brilho de triunfo. E
viu mais alguma coisa, que não conseguiu interpretar.
Havia algo de distante, de infinito. Teve a impressão de
olhar num abismo tão profundo que através dele poderia
precipitar-se para a eternidade. Saiu perturbada e voltou à
sua mesa.
Sammy Derring esperou que a porta se fechasse antes
de abrir a pasta e examinar os documentos. Logo percebeu
que sua missão fora bem sucedida. Ali estavam os maiores
segredos deste mundo, ou ao menos os segredos de uma
das superpotências. Outros DI seriam bem sucedidos em
várias partes do mundo. No dia seguinte o comandante
saberia quais os meios de defesa dos homens e em que
lugar a invasão poderia ser lançada com maiores
possibilidades de êxito. Não bastava apossar-se do corpo
desses bípedes desajeitados. Deviam conservar sua
independência, mesmo que estivessem submetidos às
ordens de outro chefe.
Enquanto examinava os documentos e constatava que
haviam superestimado os recursos dos terráqueos, o tempo
passava inexoravelmente. Os ponteiros do relógio
aproximavam-se da marca das onze horas.
Algumas salas adiante John Mantell lembrou-se duma
palestra que tivera com Clara Thompson. Por um instante
a ideia de deixar as coisas como estavam e não perder
41
tempo com uma brincadeira parecia impor-se à sua mente,
mas o sentimento do dever acabou vencendo. Era bem
possível que uma brincadeira dessas acabasse em
complicações bastante desagradáveis. Comprimiu um
botão do interfone. Dentro de poucos segundos ouviu-se
uma voz feminina.
— Clara? Como está Derring? Já lhe disse que desejo
falar com ele?
Clara, que quase chegara a esquecer-se de Mantell
balbuciou:
— Acho que seria preferível que o senhor não se
incomodasse mais com este incidente, senhor Mantell.
Deve ter sido uma brincadeira do senhor Derring. É
melhor não ligar e...
— Nesse caso não deveria ter falado comigo. Quer
fazer o favor de avisar Sammy de que desejo falar com ele.
— Eu, eu...
Com uma expressão de espanto no rosto, Mantell
desligou. Ergueu-se de chofre e saiu. Dez segundos depois
se encontrou com Clara na porta da antessala. A secretária
assustou-se.
— O que houve? Aonde o senhor vai? — sentia-se
cada vez mais confusa. — Eu queria falar com o senhor.
Gostaria de pedir-lhe que agora não perturbasse o senhor
Derring. Ele está ocupado num trabalho muito
importante...
Mantell, surpreso, ergueu as sobrancelhas.
— Ah, é? Tem trabalho importante para fazer? Bem,
vejamos.
Passou junto a Clara e abriu a porta da sala de Sammy
sem bater. Viu que seu subordinado estava debruçado
sobre um montão de documentos. Levantou os olhos
bastante contrariados e fitou o recém-vindo com uma
expressão de perplexidade. Levou perto de cinco segundos
antes de reconhecer seu interlocutor.
— Ora, senhor Mantell. Posso ser-lhe útil em alguma
coisa?
Mantell apoiou os punhos sobre a mesa.
— Diga-me uma coisa, Sammy. Será que você
enlouqueceu? Desde quando se permite brincadeiras desse
tipo com nosso pessoal? Anda solicitando os documentos
mais secretos como quem pede papel higiênico! Faz de
conta que é o ministro da defesa. E nem ele tem o direito
de, sem mais esta nem aquela... O que houve com você?
Sammy passara por uma transformação apavorante. De
início seus olhos perplexos fitavam o chefe de seção
enfurecido, depois se tornaram vazios e apáticos. Quando
o brilho retornou, ele se desenhava sobre um fundo
implacável. A voz áspera de Sammy perguntou:
— Como é o nome do ministro da defesa?
Mantell respirava com dificuldade. Não compreendia
mais nada.
— Sammy! Você está maluco! Não me vá dizer que
esqueceu o nome de nosso chefe!
— Esqueci, sim. Como é o nome dele?
— Daring. Samuel Daring. Você devia saber Sammy,
pois a semelhança com seu nome já deu causa a alguns
enganos bem desagradáveis. Mas nem por isso...
Calou-se. Sammy saltou sobre os pés. Apontou para o
monte de documentos que havia em sua mesa.
— Se não sou o ministro da defesa, por que me deram
os documentos que pedi?
Mantell lançou os olhos sobre os documentos. Não
sabia. Antes que fizesse alguma observação menos
acertada, a porta abriu-se atrás dele. Smith entrou, seguido
por Clara Thompson. Logo compreendeu a situação. Em
seu rosto via-se uma expressão de contrariedade. Mantell
assustou-se. Sabia que Smith com seu aspecto
despretensioso possuía uma soma muito maior de poderes
que ele. Teria cometido algum erro?
— O que está acontecendo por aqui? — perguntou
Smith, embora imaginasse o que estava havendo. Dirigiu-
se a John Mantell. — Clara não o avisou de que devia
abster-se de qualquer providência?
— Ele não quis dar-me atenção — interveio Clara.
— Ela veio me dizer que Sammy se havia permitido
um gracejo — defendeu-se Mantell. — Ia pedir a ele que
no futuro se abstivesse desse tipo de brincadeira. A
semelhança de seu nome com o do ministro da defesa não
deve levá-lo a...
Ninguém estava prestando atenção a Sammy Derring,
que voltara a sentar-se. Subitamente toda vida desapareceu
de seus olhos. Estava sentado atrás da escrivaninha,
mantendo a cabeça numa posição rígida. Os olhos
inexpressivos fitavam o vazio, tal qual no dia anterior
haviam contemplado o céu, onde não havia nada para ver.
Tudo isso não demorou mais que cinco segundos. Depois
disso a vida retornou àquele par de olhos.
Nesses cinco segundos repetiram-se exatamente os
mesmos acontecimentos do dia anterior, apenas em sentido
inverso. Depois de reconhecer seu engano, o DI saíra
precipitadamente do corpo em que se hospedara. Agiu
num estado de pânico; se tivesse usado alguma habilidade,
poderia ter corrigido seu erro. Mas preferiu retornar ao seu
corpo adormecido e libertar o intelecto que se achava
preso no mesmo. O espírito de Sammy voltou ao corpo
que lhe pertencia. Perdera toda a lembrança do que havia
acontecido, a não serem alguns detalhes sem importância
que lhe pareciam um sonho.
Ainda há pouco estivera sentado junto ao lago,
segurando a vara de pescar, e agora estava acomodado
atrás de sua mesa. Via diante de si Mantell, o chefe de
seção, Smith, e mais atrás Clara Thompson, que o
encarava um tanto perplexa.
O que havia acontecido nesse meio tempo?
— O que desejam cavalheiros? — perguntou em tom
indiferente.
Seus olhos caíram sobre os documentos que se abriam
diante dele. Examinou a pasta vermelha. Estupefato,
contemplou seus interlocutores.
— Como isso veio parar aqui?
Smith interveio antes que Mantell pudesse dar
expressão à sua fúria plenamente justificada. Seu
raciocínio cristalino fez com que reagisse
instantaneamente. Não conhecia todos os detalhes da
situação, mas lembrou-se de que seu chefe Allan D.
Mercant estava a caminho. E também isso não acontecia
sem um motivo muito poderoso. Havia muito mais coisa
atrás daquele incidente aparentemente inofensivo do que
qualquer um dos presentes poderia suspeitar.
— Trata-se de alguns relatórios antigos, já superados.
Gostaria que você os examinasse, Sammy. O ministro
pediu-nos que confiássemos esse serviço a um funcionário
de toda confiança.
Sammy ainda parecia perplexo, mas confirmou com
um movimento de cabeça.
— Agradeço ao senhor e ao ministro a confiança com
que me distinguiram. Até quando devo terminar o serviço?
— Não se apresse Sammy. Venha, John. Você
também, Clara. Não vamos perturbar Sammy.
42
Arrastou Mantell, que não compreendia mais nada, e
fechou a porta atrás de Clara. Depois suspirou aliviado.
— Ainda tivemos sorte. Mantell. Você quase faz uma
tremenda tolice. Não sei o que há atrás disso, mas o senhor
Mercant está a caminho daqui.
— O chefe dos serviços de defesa do Ocidente? —
disse Mantell com a voz espantada. — Não é possível!
— Acontece que é verdade. Você vai voltar ao seu
escritório e não se preocupará mais com Sammy Derring.
É uma ordem. O ministro da defesa não deve ser
informado sobre o incidente. Você, Clara, também vai
ficar com a boca calada. Hoje vamos jantar juntos, e então
explicarei tudo.
— Mas...
— As oito, no dancing do Pedro. Combinado?
— Bem...
— Ótimo! E agora você vai sentar bonitinha atrás da
sua mesa e fazer de conta que não houve nada. E, de fato,
não aconteceu nada, não é mesmo?
Enquanto o avião-foguete que decolara da Groenlândia
aproximava-se em velocidade supersônica da sede do
Ministério da Defesa, e enquanto o cérebro de Mercant
examinava e rejeitava as hipóteses mais fantásticas,
Sammy Derring estava debruçado sobre documentos
inválidos e não sabia o que fazer com tanta tolice.
Pelo que se lembrava, há poucos instantes se
encontrara junto ao lago, aproveitando o fim de semana.
Não sabia explicar como viera parar subitamente no
escritório. Lembrou-se de que acontecera uma coisa muito
esquisita. Tinha a impressão de que sonhara acordado.
Essa caverna enorme e estranha com... Sim, com quê? Ah,
sim! Com um monstro que parecia uma enorme vespa. E
ele mesmo fora o monstro.
Teria perdido o juízo? Mas nesse caso não estaria ali, e
não mereceria a confiança de seus chefes.
Suspirou e resolveu não pensar mais naquele mistério.
Qualquer pergunta seria inútil e só despertaria suspeitas. O
ministério não teria lugar para um colaborador que se
encontrasse à beira da loucura. De qualquer maneira devia
ter dormido, pois não se lembrava de que alguém lhe
tivesse trazido àqueles documentos.
* * *
Uma coroa de cabelos castanho-dourados e ralos
rodeava a calva de brilho fosco daquele homem
incrivelmente jovem, cujo rosto tranquilo poderia
pertencer a um jardineiro. Não era nada disso. Tratava-se
de um dos homens mais temíveis do Bloco Ocidental, cujo
nome até poucas semanas atrás fazia tremer todos os
agentes do Bloco Oriental e da Federação Asiática.
Allan D. Mercant, chefe do Conselho Internacional de
Defesa, preparava-se para uma entrevista com o homem
cujo corpo fora ocupado por um DI. Não seria seu
primeiro contato com uma pessoa dessas. Há poucos dias
um DI, encarnado num dos seus colaboradores mais
chegados, tentara pô-lo fora de combate. Só se salvara
graças à sua reação instantânea e a um princípio de
capacidade telepática de que era dotado.
Afinal, já começara a invasão de que poucos homens
desconfiavam. Começara inesperadamente, mas não de
surpresa. A contradição aparente podia ser explicada: há
pouco tempo uma nave espacial dos DI fora avistada e
destruída nas proximidades da órbita lunar; segundo se
acreditava, era a única nave invasora que havia penetrado
no sistema solar. Assim os homens se preparavam para
novos ataques, mas não contavam com eles.
Mercant sabia perfeitamente que, se não fosse a
Terceira Potência, a Terra estaria perdida. A primeira nave
lunar tripulada, chefiada pelo major Perry Rhodan,
encontrara no satélite da Terra uma expedição malograda
de uma raça extraterrena muito inteligente, que se
encontrava em franca decadência. O chefe científico da
expedição, de nome Crest, fora acometido de leucemia.
Recorrendo a um especialista, o Dr. Haggard, Rhodan
conseguira curá-lo. Os arcônidas, era este o nome dos
seres extraterrenos, vinham de um sistema planetário
situado a trinta e quatro mil anos-luz da Terra, e estavam à
procura do planeta legendário da vida eterna. Aliaram-se a
Rhodan e criaram no deserto de Gobi uma potência que
em poucos meses conseguira unir os três blocos
antagônicos da Terra. Seguiu-se o primeiro ataque vindo
do espaço. Os DI haviam captado os sinais emitidos pelo
cruzador dos arcônidas, que fora destruído na superfície
lunar, e acorreram às pressas para desferir o golpe final em
seu inimigo. Mas encontraram a resistência denodada dos
terráqueos, e foram destruídos. Era esta a situação.
Mercant sabia perfeitamente que Perry Rhodan era o único
homem que poderia salvar a Terra. Embora os três blocos
de superpotências ainda nutrissem certa desconfiança por
ele, o medo dos DI e das armas dos arcônidas controladas
por Rhodan era mais forte e havia outro detalhe, conhecido
de pouquíssimas pessoas além de Mercant. Perry Rhodan
conseguira reunir alguns dos mutantes produzidos pelas
explosões nucleares levadas a efeito na Terra. Esses
mutantes, cujas qualidades extraordinárias ainda foram
aperfeiçoadas, formavam o núcleo de um exército
dedicado à proteção de Perry Rhodan. O próprio Mercant,
dotado de capacidade telepática, também pertencia a esse
exército. Só ele mesmo e Rhodan tinham conhecimento
desse fato, além dos outros membros do exército secreto
dos mutantes.
O aparelho pousou. Um carro veloz levou Mercant à
sede do Ministério da Defesa. Foi conduzido
imediatamente à presença de Smith, que já o aguardava.
— Então, Smith, o que houve? Onde está o homem?
— Ele não sabe de nada. Quer que o leve à presença
dele?
— Quero, sim.
Smith ficou muito espantado ao ver que Mercant
engatilhou sua pistola e a enfiou no bolso da túnica. Ia
avisá-lo de que não havia ninguém que fosse mais
inofensivo que Sammy Derring, mas preferiu calar-se.
Calado, foi andando a frente do outro. Mercant seguiu-o,
também sem dizer uma palavra.
Derring ergueu os olhos quando a porta se abriu
subitamente, sem qualquer aviso. Havia uma expressão de
espanto em seu rosto. Conhecia Smith, mas não sabia
quem era aquele homem de rosto pacato. Mas logo
percebeu que ele não devia ser tão pacato assim. Aqueles
olhos pareciam espreitá-lo.
— O senhor é Sammy Derring? — perguntou o
desconhecido. — Fique sentado bem quieto e responda às
minhas perguntas. E responda sem demora. Ao menor
sinal de um movimento suspeito eu lhe dou um tiro. Meu
nome é Mercant.
Sammy ficou estupefato; seu rosto assumiu uma
expressão idiota. Deixou cair o queixo e, sem compreender
o que se passava, encarou a pistola que Mercant lhe
apontava. Com grande esforço gaguejou:
43
— O que, o que deseja de mim?
— Por que pediu aqueles documentos aos quais só o
ministro da defesa tem acesso?
— Os documentos? Santo Deus! O senhor Smith e o
senhor Mantell acabam de trazê-los. Querem que os
examine. Eu os pedi? É impossível.
— Quer dizer que os trouxeram? Você nega tê-los
pedido?
— Não sei de mais nada. Tudo isso é muito estranho.
Até parece que estou sonhando.
— Explique-se — ordenou Mercant, inclinando-se para
frente.
Parecia muito interessado no que seu interlocutor iria
dizer. Não tirou os olhos dele. Smith continuava a seu
lado.
Sammy hesitou. Tudo aquilo lhe pareceu muito
estranho.
— Eu estava pescando — principiou. Ao ver a
expressão de espanto no rosto de Mercant, apressou-se em
acrescentar: — Estava pescando no lago onde costumo ir
aos fins de semana. Deve ter sido ontem. Subitamente tive
uma sensação estranha. Parecia que seria capaz de
abandonar meu corpo. E foi o que fiz. Algum segundo
depois me encontrava numa enorme caverna. Por um
instante acreditei ver a Terra bem abaixo de mim. Foi um
sonho maluco. Ao despertar vi-me sentado neste escritório.
O senhor Smith acabara de trazer estes documentos. Posso
afirmar que é a pura verdade, embora não compreenda.
Não sei o que houve de ontem para hoje.
Mercant confirmou com um movimento de cabeça.
— São coisas que acontecem — confirmou em tom
cortês. — Mas no seu caso seria conveniente se
descobríssemos.
— A dona da casa em que moro... poderíamos
perguntar a ela.
— Faremos isso.
Mercant deu algumas instruções a Smith. Este foi à
antessala e falou com Clara, que neste meio tempo havia
voltado à sua mesa. Dali a cinco minutos voltou.
— Sammy passou a noite em casa. Voltou do seu
passeio ao lago ontem de tarde, antes da hora de costume,
mas não trouxe nenhum peixe, coisa que nunca acontecera.
A senhora Wabble fez questão de ressaltar este ponto.
Parecia mudado; foi para a cama imediatamente. Hoje de
manhã não notou nada de estranho nele.
Mercant olhou para Sammy Derring.
— Você seria capaz de jurar que é você mesmo?
Sammy fitou-o sem compreender.
— Jurar o quê?
— Quero saber se já se encontra em condições
normais. É evidente que há uma lacuna em sua memória.
De ontem de tarde até duas horas atrás você andou dizendo
e fazendo coisas de que não sabe mais nada. Alguém se
apossou de seu corpo e fez de conta que era você.
— Não é...
— É possível, sim. É verdade que nenhum ser humano
seria capaz disso. Mas você já deve ter ouvido falar que no
universo existem outros seres além dos homens.
— Ouvi, sim. São os arcônidas.
— Estou me referindo aos DI, uma raça assemelhada
aos insetos, que sabe transplantar seu espírito para outro
corpo. No seu caso, o DI cometeu um erro fundamental.
Achou que você era o ministro da defesa, cujo nome é
semelhante ao seu. Não conhecemos os meios de
comunicação deles, mas ao que tudo indica são acústicos.
E na língua inglesa o nome Derring é pronunciado da
mesma forma que Daring. O ser extraterreno enfiou-se no
corpo do homem errado. É só isso. Sammy. Você prestou
um serviço inestimável à humanidade. Por causa de seu
nome.
Mercant já voltara a guardar a arma. Percebera que o
DI já abandonara o corpo em que se havia instalado.
Sammy Derring tinha um aspecto sadio e normal. Isso
significava que a ideia de que ninguém conseguia
sobreviver a esse processo de troca não era verdadeira.
Logo se deu conta de que o próximo ataque seria dirigido
contra o ministro da defesa, cujo nome era Daring. O
mesmo devia ser submetido imediatamente a uma rigorosa
vigilância. Além disso, Perry Rhodan devia ser avisado,
antes que ocorressem novos ataques.
Deu algumas instruções a Smith. O agente retirou-se
para tomar as providências necessárias. Não compreendia
o que havia atrás daquilo, mas estava acostumado a
executar prontamente as ordens que lhe eram dadas,
mesmo que não as compreendesse.
* * *
Smith dirigiu-se imediatamente a Miller, secretário
particular de Daring. Miller estava muito ocupado.
Transmitia ordens pelos aparelhos de intercomunicações,
mensageiros traziam envelopes lacrados, pastas com
documentos eram retiradas dos cofres. Miller mostrou-se
contrariado quando Smith se atreveu a interrompê-lo:
— Deixe-me em paz. Volte mais tarde. O chefe não
tem tempo.
— Não me conhece mais?
— Claro que o conheço, mas no momento isto não
importa. Será que quer prender o senhor Daring?
— Quem sabe? — respondeu Smith e sorriu ao ver que
Miller quase engasgou de raiva. — Não fique nervoso.
Apenas gostaria de formular algumas perguntas.
— Vamos depressa!
— Que azáfama é essa? Por que estão carregando
todos esses documentos?
— São ordens do chefe. Pediu toda a documentação
sobre os serviços de defesa e a pesquisa espacial. Afinal, o
homem não pode carregar tudo isso na cabeça.
— Será? — observou Smith e desapareceu antes que
Miller compreendesse o que havia acontecido.
Nesse meio tempo Mercant obtivera uma ligação com
seu quartel-general situado na Groenlândia. De lá o
ligaram com a base de operações de Perry Rhodan, situada
no deserto de Gobi. Era ali que ficava o centro da Terceira
Potência, formado num espaço de poucos meses. Estava
abrigado sob uma cúpula energética invisível.
Mercant ficou sabendo que não seria possível falar com
Perry Rhodan. É que este se encontrava em Vênus.
No momento em que Smith entrou, Mercant desligou.
Levantou os olhos. Depois disse em tom grave:
— Aconteça o que acontecer, Smith, teremos de
resolver tudo sozinhos. Pode comunicar logo que Samuel
Daring, ou melhor, aquilo em que Samuel Daring acaba de
transformar-se, solicitou todos os documentos secretos.
Não foi o que descobriu?
Perplexo, Smith confirmou com um movimento de
cabeça.
44
II
O enorme bloco de pedra jazia em meio à planície
desértica. Os raios de sol o fustigavam. O ar quente
tremeluzia, mas não soprava a menor brisa que o
espalhasse.
Subitamente aconteceu uma coisa inacreditável.
O bloco de pedra moveu-se, como se uma mão
invisível o tivesse levantado. Subiu ao ar com uma
lentidão incrível.
Se alguém pudesse assistir ao espetáculo, seus cabelos
se teriam arrepiado. O bloco pesava pelo menos duas
toneladas, mas comportava-se como se a lei da gravidade
não se aplicasse a ele. Subiu que nem um balão de gás
deslocou-se ligeiramente na lateral e subitamente
despencou para a terra com um ruído tremendo. Até
parecia que a mão invisível o soltara. Aos poucos a poeira
foi-se assentando.
O bloco de pedra jazia imóvel, como se nunca tivesse
saído do lugar. Os raios de sol voltaram a atingi-lo,
aquecendo a face que antes ficara na sombra.
Mas a calma não durou muito. O bloco de pedra não
teve sossego. Voltou a mover-se, desta vez com maior
rapidez e segurança. Subiu a dez metros de altura
deslocou-se para o lado. Aproximava-se inexoravelmente
das margens de um lago salgado, cuja superfície lisa não
era perturbada pela menor brisa. Só quando o bloco de
pedra despencou no lago e desapareceu sob a água
formaram-se algumas ondas que se deslocaram em círculo
e foram morrer nas margens.
A dois quilômetros dali alguns homens estavam
reunidos e olhavam em direção ao lago. O mais idoso
deles, um gigante de cabelos claros, quase brancos, e
crânio alongado, demonstrou sua satisfação com um aceno
de cabeça. Perto dele estava uma jovem, que também fez
um gesto de aprovação. O japonesinho a quem eram
dirigidos os louvores limitou-se a dar de ombros. Parecia
embaraçado.
— Sou um fracasso — confessou, sem dar-se conta de
que estava fazendo pouco de suas extraordinárias
capacidades. — Não consigo Anne.
A jovem Anne Sloane dirigiu-se ao homem de cabelos
brancos.
— Não podemos fazer nada, Crest. Tama Yokida é
muito modesto. O detector de frequência mental apontou-o
como um mutante, e não há dúvida de que realmente o é.
Conseguiu levantar uma pedra de algumas toneladas a dois
quilômetros de distância, e isso exclusivamente com a
força mental. Possui o dom da telecinese, muito embora o
mesmo ainda se encontre no estágio inicial. Afinal, levei
muitos anos para atingir a perfeição nesse terreno. Tama,
se você for um aluno persistente, também conseguirá.
O cientista dos arcônidas, que participara da expedição
malograda que ficara presa na Lua e atualmente era
colaborador de Rhodan e dominava as instalações técnicas,
voltou a confirmar com um movimento de cabeça.
— Não desanime Tama. Só lhe falta treino. Não se
perturbe pelo fato de Anne ter alcançado uma perfeição
muito maior que você. Afinal, ela vem treinando há anos,
enquanto você só há pouco tempo teve conhecimento de
seu dom. Ficará admirado com o que daqui a alguns anos
fará com a maior naturalidade. Tenha paciência!
Como sempre, Tama Yokida respondeu com um
sorriso de modéstia.
— Concordo com você, Crest. Devo agradecer à
natureza pelo dom com que me presenteou. Quer
prosseguir logo no treinamento?
Crest lançou um olhar pensativo sobre a superfície do
lago salgado, que voltara à calma. Confirmou com um
movimento lento de cabeça. Ao falar, olhou para Anne
Sloane.
— Anne, você fez a rocha cair na água. Suas forças
telecinéticas são espantosas. Será que Tama conseguirá
exercer uma influência telecinética sobre a rocha a partir
daqui?
Anne olhou para o japonês.
— Não sei. Sei que eu conseguiria fazer o bloco de
pedra subir ao ar a qualquer momento. Será que Tama
conseguiria alcançá-lo no lugar em que se encontra agora?
O lago não é muito fundo.
— Qual é a profundidade? — perguntou Tama. —
Preciso saber desse detalhe.
Crest ligou um aparelho que trazia preso ao braço.
— Dr. Haggard? Será que você pode nos mandar Ishi
Matsu? Sim, é para o treinamento.
Anne Sloane compreendeu.
— Não é aquela japonesinha que sabe olhar através de
objetos opacos?
Crest sorriu.
— Anne, você está exagerando. Ishi Matsu não sabe
olhar através da matéria opaca. É uma telecineta, nada
mais. É diferente de você porque sabe realizar um
rastreamento telecinético mesmo com os olhos fechados,
tal qual um cego faria com a bengala. Infelizmente essa
sensibilidade tática diminuirá na medida em que Ishi
dominar a telecinese propriamente dita.
Tama sorriu.
— Minha coleguinha e eu completamo-nos muito bem.
Quando nosso trabalho tiver sido coordenado, não haverá
poder no mundo que nos possa resistir.
— Hoje já é assim — disse Crest.
Olhou para o complexo de edifícios baixos que
rodeavam a nave espacial Stardust, pousada há alguns
meses. Acima de tudo estendia-se, num raio de dez
quilômetros, uma cúpula energética invisível, alimentada
pelos reatores inesgotáveis dos arcônidas.
Uma figura franzina veio em direção ao grupo.
— O caso é que nosso exército terá de enfrentar não
apenas as forças humanas — prosseguiu Crest. — Antes
de tudo, deverá estar em condições de fazer em face de
inimigos extraterrenos. Os sinais de emergência emitidos
por nosso cruzador, destruído na lua terrestre, atrairão
outras raças de astronautas. Receio que o isolamento do
planeta Terra tenha chegado ao fim. Ali vem Ishi.
A bela japonezinha usava jeans e blusa branca, que
realçava sua figura delicada e bem formada. Tama Yokida
lançou um olhar de admiração para a colega. Até um cego
notaria que algo estava se preparando entre os dois.
— Mandou chamar-me, Crest? — perguntou com a
voz gentil e aveludada.
— Mandei, embora por hoje seu treinamento já esteja
concluído. Tama fez uma proposta muito interessante
sobre a coordenação das capacidades dos mutantes. Está
vendo o lago salgado? Pois no lugar em que está aquele
arbusto seco, a uns duzentos metros da margem, há uma
pedra de cerca de duas toneladas no fundo da água. Peço-
lhe que procure determinar a profundidade do lago naquele
lugar. Seu amigo Tama precisa desse dado para solucionar
seu problema. Compreendeu?
45
A moça fez que sim. Deu um sorriso animador ao
patrício e colocou-se numa posição tal que seu rosto
apontava para o lugar indicado. Fechou os olhos. A
concentração de seu espírito projetou rugas profundas
sobre a testa normalmente lisa. Tama Yokida estava
parado bem junto a ela. Quase chegou a tocá-la. Mas a
proximidade dele parecia não distrair Ishi; pelo contrário.
Ela deu um passo para o lado e segurou seu braço. Cravou
os dedos nele como se procurasse apoiar-se. Subitamente...
— Sinto a pedra! — exclamou Tama. Arregalou os
olhos e fitou o lago. — Sinto-a. Está em meio a outras
pedras. A profundidade é de vinte metros, no máximo.
Crest fez um gesto de aprovação.
— Muito bem, Ishi! Vejo que os mutantes podem
completar-se uns aos outros. Tama, vamos ao trabalho.
Tire a pedra da água e volte a colocá-la em terra, em
qualquer lugar. Já conhece a posição dela.
Tama compreendeu o que Crest desejava. O
treinamento dos mutantes cabia aos arcônidas. Perry
Rhodan confiara seu exército especial a Crest, porque este
reunia todas as qualidades para ensinar alguma coisa à
gente como os mutantes.
O grupo ficou imóvel. Passaram-se cinco minutos. Dez
minutos.
Quinze minutos.
Subitamente um esguicho subiu no lugar em que a
pedra havia desaparecido. As ondas foram-se afastando em
círculo para morrer na margem do lado. Algumas se
perderam na imensidão de sua superfície. Alguns segundos
depois a pedra subiu acima da água, flutuou por algum
tempo, voltou a firmar-se, depois de oscilar ligeiramente, e
deslocou-se lentamente em direção à margem. Ali
despencou para o solo.
— Excelente! — exclamou Crest. — Melhorou
bastante. Meus parabéns, Tama.
— Não fale nisso, Crest — disse Tama Yokida em tom
modesto.
Crest estava a ponto de prosseguir, quando foi
interrompido por um ligeiro zumbido. Vinha do aparelho
em seu braço.
— Alô! É Crest.
Era o Dr. Frank M. Haggard, médico australiano que
havia descoberto o soro antileucêmico que curara Crest.
Falava da Stardust.
— Crest, temos notícias desagradáveis de Mercant. Os
DI voltaram a agir.
— Já previa isso. Onde foi?
— Nos Estados Unidos houve um caso. Apossaram-se
do ministro da defesa. No último instante Mercant
conseguiu evitar o pior, mas nada pode fazer nos casos que
ainda não chegaram ao seu conhecimento. Ele quer saber
se pode ajudar em alguma coisa.
Crest franziu a testa.
— É claro que vamos ajudar. Mas é uma pena que
Perry ainda não esteja de volta. Tem tido contato com ele?
— Desde a última mensagem radiofônica não tive
mais. Já devem ter iniciado a viagem de volta.
— Tente estabelecer contato com a nave Good Hope.
Se conseguir, avise Rhodan. Talvez consiga localizar e
destruir a nave oval dos DI. Tako Kakuta está com ele.
Tako Kakuta era um teleportador. Certa vez já
conseguira transferir-se com uma bomba para o interior de
uma nave oval do inimigo e destruí-la. Tal qual acontecera
com os outros mutantes, também no seu caso as radiações
intensas provocadas pelas explosões nucleares de
Hiroshima e Nagasaki, durante a Segunda Guerra Mundial,
haviam provocado uma modificação da estrutura cerebral e
despertado potencialidades até então não reveladas.
— Manterei o receptor ligado, e ao mesmo tempo
emitirei o sinal de chamada. Mas devemos fazer alguma
coisa enquanto não conseguirmos estabelecer contato.
Crest lançou um olhar para Anne Sloane.
— Devemos, sim. Afinal, para que serve o exército de
mutantes? Acho que chegou a hora dele dar prova da sua
eficiência.
* * *
Os pântanos fumegantes de Vênus foram-se
desvanecendo; o planeta transformou-se na foice prateada
cujo brilho excedia o do Sol. Evidentemente tratava-se de
uma ilusão ótica, pois na realidade o Sol emitia uma
luminosidade mais intensa. Mas a espessa camada de
nuvens refletia a luz solar com tamanha intensidade que se
tornava quase impossível contemplar Vênus com o olho
desguarnecido.
O vulto esguio mantinha-se imóvel diante das telas.
Seus olhos sonhadores contemplavam o planeta que ia
recuando, e que acabara de ser incluído nos seus planos.
Perry Rhodan compreendera que a Terra se tornara
pequena para ele, e que precisava dum mundo
exclusivamente seu para construir seu império.
Eric Manoli, que já de si era um homem calado, estava
sentado numa poltrona perto de Perry. Sua figura mirrada
quase desaparecia atrás do encosto. Também dedicava
toda a atenção ao planeta que ia mergulhando no infinito, e
que tanto se parecia com aquilo que a Terra devia ter sido
há cem milhões de anos.
O terceiro homem que se encontrava na sala de
comando da nave Good Hope parecia menos
impressionado. Todo encolhido, Reginald Bell, engenheiro
de bordo da nave Stardust, jazia no leito dobrável. Seus
olhos cor de gelo deslizavam rápidos sobre as linhas do
livro que estava lendo. Notava-se perfeitamente que seus
cabelos se arrepiavam como se estivesse lendo uma
história de fantasmas. Às vezes um sorriso irônico passava
pelo rosto largo. Não parecia interessar-se pelo planeta que
ia recuando na tela.
Foi ele que rompeu o silêncio compenetrado que
reinava naquele recinto. Sacudiu a cabeça, fechou o livro e
deitou sobre a volumosa barriga. A capa do livro ficou à
vista. Nela se via a paisagem selvática de um pantanal.
Num dos pântanos via-se uma nave esguia, que afundara
até a metade. Um homem parado numa das comportas de
ar defendia sua vida com um fuzil de radiações contra
alguns monstros horrendos que pareciam dinossauros.
— Este sujeito devia ser preso — declarou com um
profundo suspiro. — A meu ver isso é uma fantasia
doentia.
Perry Rhodan não tirou os olhos da tela. Sem virar a
cabeça, perguntou:
— Quem devia ser preso?
— O sujeito que cometeu o crime de escrever este
romance.
— Que romance?
Reginald Bell voltou a suspirar.
— Este aqui: “Base em Vênus”. É um romance
utópico. Imagine que foi escrito há dez anos. Naquela
época ninguém teria pensado em fazer uma viagem a
Vênus. E esse camarada vai escrevendo sem mais aquela,
faz alguém construir uma nave e instala-se
confortavelmente em Vênus, depois de ter atolado com sua
46
nave. Trava lutas heroicas contra o calor e os dinossauros,
até que seu amigo aparece com outra nave e o liberta. É
inacreditável!
Perry Rhodan girou a poltrona e fitou o rosto de Bell.
Sempre se admirava com o aspecto ingênuo do mesmo.
Todavia, não havia ninguém que tivesse um QI tão
elevado como ele e Bell. Deviam isso ao treinamento
hipnótico dos arcônidas, através do qual lhes foi
ministrado em poucos dias um volume de saber superior
ao de toda a humanidade. As conquistas de uma cultura e
de uma civilização milenar estavam armazenadas nos
cérebros daqueles homens. A aparência de Bell não
revelava nada disso. Muitas vezes Perry sentia-se tentado a
subestimá-lo, quando olhava aquele rosto inocente. Mas
sabia perfeitamente o que havia atrás de seus olhos cor de
gelo.
— Não vejo nada de inacreditável nisso. O escritor não
tem razão? Em Vênus não existem pântanos e
dinossauros? E por acaso não faz calor?
Reginald Bell parecia decidido a exprimir suas
emoções através de suspiros.
— Pois é justamente isso! O que aquele sujeito escreve
é verdade. Até dá para desconfiar que já estivesse aqui
antes de nós. — Ergueu o corpo e apoiou-se no cotovelo
direito. — Isso é uma baixeza!
Um sorriso condescendente esboçou-se no rosto de
Perry.
— Você está com inveja; o problema é este. Você não
se conforma em saber que há dez anos o autor desse livro
já tenha experimentado em sua fantasia a vivência de
coisas que só hoje realizamos. Andou a frente do tempo, e
isso deixa você furioso.
— Mas esse fuzil de radiações é uma verdadeira tolice.
Há dez anos não se conhecia sequer os fundamentos
teóricos de uma arma desse tipo, isso sem falar nos raios
laser e maser.
— De qualquer maneira, ontem essa arma nos serviu
para espantar aquele bicho teimoso que pensou que a Good
Hope fosse uma maça e pretendia devorá-la.
Bell parecia desolado.
— Santo Deus! Não fomos nós que inventamos essa
arma de radiações!
— Que importa? Dispomos dela, embora a tenhamos
recebido dos arcônidas. Se não a tivéssemos não
estaríamos aqui, pois nesse caso a Good Hope não existiria
mais.
Bell desistiu.
— Está bem, não vamos brigar por isso. Aquele
escrevinhador foi um gênio, andou a frente do seu tempo,
criou obras imortais e esteve mais adiantado que nós. Ao
menos poderia ter cometido um engano, pintando Vênus
como um planeta coberto de pó. Mas não! Sua descrição é
exata nos menores detalhes. Onde já se viu? Isso me deixa
nervoso! Não teremos nada para contar aos homens.
— Se isso o aborrece tanto, por que lê essa história?
Bell não soube o que responder. Nem teria tido tempo.
Subitamente o ar tremeluziu por uma fração de segundo
entre ele e Perry, e um homem surgiu no lugar em que
antes não havia nada. Mais uma vez o mutante japonês
Tako Kakuta resolvera materializar-se sem se fazer
anunciar, isso porque era tão preguiçoso que não queria
percorrer como um homem normal os poucos metros que
separavam a sala de comando do posto de radiotelefonia.
Mas não seria correto chamar o local de trabalho de
Tako um simples posto de radiotelefonia. A Good Hope
era uma nave auxiliar do gigantesco cruzador espacial dos
arcônidas, que fora destruído na Lua pela união das
superpotências da Terra. Thora, comandante do cruzador e
única mulher arcônida da expedição, conseguira salvar a
nave auxiliar e fugira para a Terra onde encontrara
proteção junto a Rhodan. Essa nave auxiliar era muito
grande, se aplicássemos os padrões terrenos. Seu diâmetro
era de sessenta metros, tinha forma esférica e desenvolvia
velocidade superior à da luz. Os neutralizadores
gravitacionais eliminavam os efeitos da inércia, motivo
por que a nave podia ser acelerada à vontade. O
armamento excedia tudo que o espírito humano poderia
imaginar. No entanto, o raio de ação, segundo asseverara
Crest, atingia apenas quinhentos anos-luz, ficando abaixo
do mínimo vital dos arcônidas. Com essa nave não
poderiam atingir seu planeta natal, ou qualquer base do
império arconídico.
O “posto de radiofonia” da nave era uma gigantesca
central de comunicações. Tako só compreendia o
funcionamento de pequena parte dela. Contentou-se em
lidar com o pequeno aparelho de rádio, que captava e
transmitia ondas das faixas normais. Com ele, conseguia
manter contato com a Terra. Levaria meses para aprender
o significado dos outros aparelhos e instrumentos.
A comunicação com a base de Gobi estivera
interrompida por algum tempo. Mas agora os sinais
emitidos pelo Dr. Haggard tornaram-se tão fortes que não
poderiam deixar de ser ouvidos.
Foi por isso que o japonês se teleportou para a sala de
comando.
Como sempre, Bell levou um tremendo susto. Não
havia nenhum motivo para isso, mas não era qualquer um
que conseguia ficar impassível ao ver um homem surgir do
nada.
— Com mil diabos! Será que nunca poderemos evitar
que esse gafanhoto apareça constantemente sem ser
anunciado?
Tako deu um sorriso amável.
— Da próxima vez anunciarei minha chegada por
carta. Combinado?
Perry interrompeu a discussão.
— Estabeleceu contato com o Gobi?
— Foi por isso que vim — confirmou o japonês. O
sorriso desaparecera; parecia muito sério. — Há horas
Haggard está tentando entrar em contato conosco. Temos
más notícias, Rhodan. A invasão dos DI já começou.
Mercant relatou vários casos em que os DI se apossaram
dos corpos de personagens importantes. Mas, segundo
informa Haggard, essa descoberta não serve de nada. Os
DI retiraram-se e procuram outra vítima.
Reginald Bell afastou o livro ao qual há poucos
segundos dedicara tanta atenção. Assumiu uma posição
ereta. Em seus olhos surgiu um brilho metálico.
— A invasão? Pois destruímos a nave dos atacantes.
— Nesse caso deviam ter duas naves. — Perry dirigiu-
se a Manoli. — Deixemos Venus de lado, Eric. Faça a
Terra surgir nas telas. Aceleração máxima.
A imagem das telas modificou-se. Uma estrela verde-
azulada surgiu e ao seu lado um minúsculo ponto
luminoso, a Lua. Enquanto olhavam, os dois objetos iam
aumentando quase imperceptivelmente.
Perry voltou a dirigir-se a Tako.
— Mais alguma coisa?
— Crest pede que retornemos imediatamente ao Gobi.
Quer recorrer ao exército dos mutantes; não vê outra
47
possibilidade de enfrentar a invasão. Deseja falar com
você.
— Vamos — confirmou Perry e foi saindo.
Tako lançou um olhar ligeiro para Bell. Um sorriso
esboçou-se em seu rosto e logo desapareceu. Quando Perry
entrou na sala de radiofonia, o japonês já estava esperando
junto aos aparelhos.
— Aqui fala Rhodan.
— Aqui é Haggard. Um instante. Crest quer falar com
você.
Perry esperou.
— É Crest. Ouça Rhodan. A situação é muito séria.
Mercant está desesperado. Pediu socorro. Achei preferível
não fazer nada sem você. Dentro de quanto tempo poderá
estar aqui?
— Dentro de duas ou três horas. Espero que a nave
aguente.
— Quanto a isso não se preocupe, Rhodan. Se avistar a
nave dos DI destrua-a. Peça a Tako que se teleporte para o
interior dela com uma carga de explosivo.
— Desta vez serão mais cautelosos. Crest. Estão
prevenidos. Tomara que não tenham trazido reforços.
— É impossível. Os princípios dos DI não lhes
permitem estabelecer entendimentos com outras raças.
Acham que os poderes de que são dotados lhes permitem
liquidar qualquer inimigo. Quase chego a achar impossível
que possamos conquistar uma vitória total sobre eles.
— Crest, mais uma vez você nos subestima. Aliás,
encontrei um local adequado em Vênus. É lá que
instalaremos nossa base; vamos intensificar o treinamento
dos mutantes.
— Isso tem tempo. Em primeiro lugar temos de repelir
a invasão. Os homens nem desconfiam do que os espera.
Receio que os DI disponham de uma base fixa na Terra, e
que estejam operando a partir dela. Seria muito
complicado se tivessem de usar uma base móvel montada
numa nave.
— Não há nenhum indício quanto a isso?
— Nenhum. Fale com Mercant; talvez ele lhe possa dar
alguma informação. Afinal, manteve contato com homens
que foram possuídos pelos DI e voltaram a ser liberados.
Perry ficou estupefato.
— Sempre pensei que um homem que fosse possuído
pelos DI tivesse de morrer. Houve alguma modificação?
— Estávamos enganados. As pessoas atingidas não dão
mostras de qualquer consequência prejudicial.
— Excelente! É um ponto favorável. Mais uma coisa,
Crest. Acho que não preciso encarecer a necessidade de
jamais sacrificarmos nossa situação proeminente face às
potências mundiais. A união dos países da Terra foi devida
à nossa existência. Se um dia deixar de existir a “ameaça”
representada pela Terceira Potência, o mundo voltará a
mergulhar no caos dos conflitos que mal acabam de ser
superados. Por isso acho que a vitória imediata sobre o
invasor constitui uma necessidade vital. Se não a
conseguirmos, nosso prestígio terá chegado ao fim.
Quase se chegava a ver o sorriso de Crest, quando
respondeu:
— Não será só nosso prestígio que terá chegado ao
fim, mas toda a humanidade. E nós também O cérebro
positrônico diz que nos encontramos numa situação crítica.
— E o que diz sobre as nossas chances?
— São de cinquenta por cento. Já é alguma coisa.
Perry refletiu por um instante. Depois disse:
— O raio de ação da Good Hope é de quinhentos anos-
luz. Será que não poderíamos atacar os DI em seu próprio
terreno?
Crest suspirou.
— Rhodan, você está revelando um grau de atividade
assustador. Mais tarde talvez pudéssemos cogitar dessa
alternativa, mas acredito que nas condições atuais ela não
teria a menor chance. Os DI evitam o confronto aberto,
porque não têm necessidade de recorrer a ele, mas
costumam manter suas instalações de defesa em boas
condições. Você não conseguirá nada enquanto dispuser
apenas da Good Hope.
— Bem, veremos. — Perry ainda não havia desistido
da ideia. — Por enquanto procure entrar em contato com
Mercant. Quero encontrar-me com ele, ou com um
representante seu, assim que tornar à nossa base. Mais
alguma coisa?
— No momento não. Thora se comporta como uma
pessoa sensata.
Perry deu de ombros.
— Ainda bem. Até logo mais.
Voltou à sala de comando depois de ter ordenado a
Tako que mantivesse o receptor ligado. Parecia pensativo.
Parou por um instante na porta da sala. Thora! Era uma
mulher extraordinária, embora estivesse impregnada dos
preconceitos doentios de uma raça superior. No entender
dela, os homens não passavam de uns semisselvagens. Só
consentira em colaborar com Rhodan por ter sido forçada a
isso. Sabia perfeitamente que encalhara num sistema solar
estranho, e que sem o auxílio dos homens nunca
conseguiria voltar à sua terra. Sua própria raça, que era
altamente civilizada, mas decadente, não mexeria um dedo
para procurá-la, muito menos para salvá-la. Era bem
possível que a perda do cruzador de pesquisa científica
nem fosse notada.
Thora era de uma beleza envolvente. Perry quase
chegava a acreditar que poderia amá-la, se não a odiasse
tanto. Mas seria verdade que ele a odiava, ou procurava
apenas convencer-se a si mesmo de que era assim? Ainda
bem que Crest se encontrava a seu lado, e tantas vezes lhe
explicava a motivação psicológica das atitudes
incompreensíveis de Thora.
Perry Rhodan deu de ombros e entrou na sala de
comando.
Na tela já se viam os continentes do planeta Terra. Dali
a pouco aterrizariam.
* * *
Mercant não viera pessoalmente. A responsabilidade
pela segurança do Bloco Ocidental representava um
encargo tão pesado que preferisse não abandonar mais a
fortaleza situada sob os gelos da Groenlândia. Era a partir
dali que dirigia a atuação dos órgãos que se achavam
submetidos ao seu comando e engajava seus homens.
Um desses homens era o capitão Klein, um dos
funcionários mais competentes do serviço de defesa, e
também um aliado de Rhodan. Mercant designara-o como
elemento de ligação com este último.
A cúpula energética abriu-se para deixar o capitão
Klein passar. Dentro de poucos minutos viu-se diante de
Perry Rhodan.
Crest e Thora mantinham-se em silêncio, sentados num
sofá nos fundos da sala. Bell e Manoli também se
encontravam ali, e ainda o Dr. Haggard, e o telepata John
Marshall, que era membro do exército dos mutantes.
Perry fez um sinal ao capitão Klein.
48
— Relate o que houve. Suponho que Mercant lhe tenha
conferido plenos poderes, e que esteja informado sobre a
situação. É muito grave?
— É bastante grave, embora ainda não possamos
prever as consequências da invasão que está sendo levada
a efeito às escondidas. Os DI vão aprendendo cada vez
mais. No início agiram com pouca habilidade, o que
facilitou sua descoberta. Se bem que isso não adiantou
muito, pois nesse caso logo abandonavam o respectivo
corpo e lhe restituíam seu pensamento próprio. A pessoa
atingida ficava sem a menor recordação do que tinha
acontecido no meio tempo. Enquanto isso os DI
procuravam outra vítima. Hoje podemos afirmar sem
receio de erro que agem com tamanha habilidade que a
descoberta se tornou quase impossíveis. E quando essa
descoberta ocorre... Bem, nesse caso temos de matar
imediatamente o homem de que o DI se apossou, pois só
assim podemos eliminar este. Não vemos outra saída.
— Existe outra saída — disse Perry em tom sério. —
Os DI têm uma base na Terra, onde seus corpos
descansam. Nesses corpos são aprisionados os espíritos
dos homens. É neles que ficam encerrados os intelectos
que foram substituídos pelos dos DI. Se conseguirmos
descobrir essa base e destruirmos os corpos, os espíritos
dos DI não nos poderão causar mais nenhum prejuízo; É
que precisam manter contato com seu corpo para poderem
subsistir. É uma história complexa, mas temos provas
irrefutáveis de que realmente é assim.
Perry calou-se por um instante. Atrás dele Thora
cochichava insistentemente ao ouvido de Crest. Seus
olhos, vermelho-dourados emitiam um brilho suspeito.
Estaria disposta mais uma vez a instigar Crest contra os
homens? Perry sentiu-se tomado pela raiva, mas conseguiu
controlar-se. Um dia ainda mostraria a essa mulher quanto
ela precisava dos homens.
— Prossiga Klein. Qual é a sugestão de Mercant?
— Uma vigilância constante sobre todos os
personagens importantes, para que desse lado não possa
haver qualquer infiltração. É a única sugestão que
formulou.
— Não é muito — reconheceu Perry. Crest levantou-se
atrás dele. — Quer dizer alguma coisa, Crest?
Todos os olhares se dirigiram para o cientista, em cujos
olhos surgiu um brilho estranho, que nunca antes se
observara. Falou com a voz débil:
— Thora conseguiu convencer-me que qualquer luta
contra os DI será inútil. Já fizemos experiências com eles.
Até hoje conquistaram qualquer sistema solar que
conseguiram encontrar. Se nosso Império Galáctico não
estivesse cercado de um complexo de instalações
defensivas que destroem qualquer nave oval que dele se
aproxime, o mesmo já teria deixado de existir. Nenhum
poder do universo consegue deter os DI.
Perry franziu a testa.
— E daí? Por que resolveu contar-nos isso, Crest? Foi
por sugestão de Thora?
Crest lançou um olhar desajeitado para trás. Thora veio
em seu auxílio. Levantou-se de um salto. Parecia uma
deusa da vingança, com os olhos, dourados-chamejantes.
Seu cabelo claro mal se destacava da pele, que só aos
poucos adquiria um tom amorenado sob os efeitos do sol
terrestre. Era bela, duma beleza extraterrena.
— Sim, foi por minha sugestão Perry Rhodan. Você
sabe perfeitamente que a longa enfermidade de que
padeceu enfraqueceu-o bastante. Se continuarmos na Terra
para travar uma luta sem chances contra os DI,
desperdiçaremos nossas últimas energias. Sugeri a Crest
que deixemos este sistema para procurar outro que ainda
não foi descoberto pelos DI. Crest concordou com minha
proposta. Está decidido.
Perry lançou um olhar de advertência para Bell. O
engenheiro e técnico eletrônico às vezes tornavam-se
muito impulsivo. Estava prestes a mover-se em direção a
Thora.
— Quer dizer que pretende abandonar a Terra —
constatou Perry em tom indiferente. — A mesma Terra
que se dispôs a ajudá-la.
— Quem ajudou quem? — fungou a comandante num
acesso de raiva.
— Houve reciprocidade em tudo. Se não fôssemos nós,
Crest já estaria morto.
— E se não fossem vocês, a tripulação do cruzador,
que foi sacrificada no ataque traiçoeiro à Lua, ainda estaria
viva. Estamos quites.
— Ainda não, Thora. Vou formular uma pergunta, e
gostaria que você respondesse com toda sinceridade. Esses
DI estão classificados numa categoria mais elevada que a
dos arcônidas? Costumam ser avaliados em nível mais
alto?
O rosto de Thora ficou rubro de raiva.
— Como se atreve a formular uma pergunta dessas? É
claro que os DI, que não passam duns insetos, pertencem a
uma raça primitiva, que não merece habitar o universo.
— Apesar disso pretende fugir deles? — interrompeu
Perry em tom irônico. — É espantoso! Isso não ofende seu
orgulho, Thora?
Um sorriso perpassou pelo rosto de Crest. Era evidente
que a situação era muito penosa para ele, e que se sentia
satisfeito com o golpe que acabara de ser desferido contra
Thora.
— A necessidade obriga-nos a isso. Aqui não
dispomos das armas necessárias para vencer os DI.
— Nesse caso temos de vencê-los sem as armas
necessárias. Criaremos armas adequadas. De qualquer
maneira nós, os habitantes do planeta Terra, não estamos
dispostos a encarar a invasão dos DI como um fato
inevitável. Vamos defender-nos e acabaremos expulsando
esses seres. E você vai nos ajudar, Thora.
— Você não pode obrigar-me.
— Posso, sim — disse Perry em tom tranquilo. — Sem
a nave Good Hope você não pode fazer nada. E a partir
deste instante nem você nem qualquer dos seus robôs
entrará na Good Hope. E não abandonará seus alojamentos
situados no interior desta base.
— Quer prender-me? — disse Thora em tom furioso.
Seus olhos chispavam de raiva. — Você não se atreverá.
— Não quero prendê-la. Apenas pretendo repelir a
invasão dos DI, e adoto as medidas que julgo necessárias.
Certa vez Crest disse que em certo ponto os terráqueos se
parecem com os arcônidas da antiguidade. Tem razão.
Sabemos ser duros e implacáveis quando temos um
objetivo diante dos olhos. E meu objetivo consiste em
livrar-me dos DI de uma vez por todas, e em encontrar
uma arma que possa ser usada contra eles, e que um dia
também possa ser útil aos arcônidas. E não será você que
vai me impedir. E também não vai desertar com a Good
Hope. Compreendeu? Ou será que terei de explicar
melhor?
Thora lançou-lhe um olhar odiento. Mas não era só
ódio que havia nesse olhar. Perry sentiu um calafrio ao
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reconhecer o sentimento que se desenvolvia no
subconsciente dessa mulher, e que seus olhos acabavam de
revelar. Tratava-se de admiração, e de um pouquinho de
dedicação ou amor.
Perry sentiu-se perturbado, mas não deixou que
ninguém o percebesse. Mais tarde teria tempo de analisar
esse paradoxo. Por enquanto havia coisa mais importante a
fazer. Não suspeitava de que nesse mesmo instante
também Crest tomara uma decisão. De uma hora para
outra o chefe científico da expedição dos arcônidas, que
conhecia muitas raças do universo e com elas mantinha
ligações, deu-se conta de uma realidade patente: um belo
dia os homens se tornariam herdeiros do Império
Galáctico. E não sentiu o menor pesar quando essa
realidade se impôs ao seu espírito.
O capitão Klein aproveitou a pausa para dizer:
— O tenente Li Shai-tung, que é nosso aliado da
Federação Asiática, está desaparecido. Mercant supõe que
se encontre em poder dos DI.
Isso foi um choque inesperado mesmo para Perry
Rhodan.
O tenente Li era um dos principais agentes da
Federação Asiática. Quando recorreram a ele para
combater Perry Rhodan, foi um dos primeiros homens da
Terra a reconhecer que só a união de todos proporcionaria
uma chance de enfrentar com sucesso o poder dos
arcônidas. Quando essa união se estabeleceu, passou a
compreender os objetivos de Rhodan e a sentir estima pelo
antigo piloto espacial do Ocidente. Juntamente com seu
colega Kosnow, do Bloco Oriental, e Klein, do Bloco
Ocidental, passou-se para a Terceira Potência. Da mesma
forma que Klein era o elemento de ligação entre Rhodan e
Mercant, Li desempenhava as funções de elo de ligação
entre Rhodan e o Serviço Secreto da Federação Asiática.
E agora os DI se haviam apoderado desse homem.
Com isso Perry Rhodan sofria o primeiro ataque direto,
afora alguns episódios de menor importância ocorridos
durante o primeiro ataque.
— Desaparecido? Ora essa! Li não pode ter
desaparecido sem mais aquela.
— O fato é que Li desapareceu da Groenlândia, e
voltou à China sem que tivesse ordem para isso. Mercant
acredita que os DI pretendem arruinar as grandes potências
uma por uma.
— Será que para isso precisam justamente dos
elementos de ligação?
Perry lançou um olhar desconfiado para Klein. O
capitão percebeu o que se passava na cabeça de seu
interlocutor.
— Se acredita que os DI me agarraram, sinto
decepcioná-lo, de forma agradável, espero — disse
sacudindo a cabeça. — Você não tem nenhuma
possibilidade de constatar a presença de um DI?
— O que está imaginando?
— Não estou imaginando coisas alguma, mas pensei
que talvez com os recursos técnicos de que dispõe...
— O detector de frequência — interveio Bell em tom
indiferente.
Perry confirmou com um movimento de cabeça.
Procurou não demonstrar a contrariedade que sentia por
não ter se lembrado disso. Era claro que havia essa
possibilidade. Esse aparelho ultrassensível captava e
registrava a frequência das vibrações do cérebro humano.
Distinguia perfeitamente entre um cérebro normal e o de
um mutante, embora nesse caso a diferença fosse
insignificante. A diferença entre a frequência do cérebro
de um homem e de um DI devia ser muito maior.
— Isso mesmo, Bell. Isso nos dá a possibilidade de
identificar qualquer indivíduo de que os DI se tenham
apossado. Resta saber o que devemos fazer quando isso
tiver acontecido. Não podemos matar esse indivíduo, se
houver uma possibilidade de salvar sua vida. E pouco nos
adiantará tanger os DI de um corpo humano para outro.
Crest voltou a mexer-se nos fundos da sala. Sem dar a
menor atenção a Thora, que prosseguia no seu mutismo
obstinado, disse:
— O corpo do DI deve ser destruído. Com isso o
intelecto humano voltará ao corpo a que pertence,
enquanto o intelecto do DI morre com o respectivo corpo.
É o único ponto fraco que podemos aproveitar.
— Como faremos para seguir as pegadas do seu
intelecto?
Crest esboçou um sorriso significativo.
— A experiência ensinará. Afinal, para que temos os
mutantes? Quem sabe se não conseguem construir uma
ponte entre o corpo e o espírito dos DI?
— Talvez — confirmou Perry em tom pouco confiante.
Acreditava ser impossível seguir uma substância imaterial
num caminho percorrido à velocidade da luz. O espírito
era energia, e por isso sem dúvida constituía uma forma de
matéria. Podia-se identificá-la, mas não segui-la. Ou será...
Klein esperou até que se fizesse uma pausa na palestra.
Depois disse:
— Rhodan, Mercant lhe pede que se ponha no encalço
de Li. Sozinho ele não consegue. Li pode provocar um
verdadeiro desastre. Na opinião de Mercant os DI farão
tudo para que a discórdia volte a reinar sobre a Terra, para
facilitar o jogo deles. É uma coisa que não pode acontecer.
— Li está na China?
— Foi lá que o localizamos pela última vez. Supomos
que se encontre em Pequim.
Perry olhou para Bell.
— Bell, traga Ernst Ellert. Depressa!
O engenheiro retirou-se sem dizer uma palavra. Só
Crest ergueu as sobrancelhas brancas.
— O que deseja de Ellert? — perguntou em tom
admirado.
Perry sorriu ligeiramente. Como Klein nunca tivesse
ouvido falar de Ellert dispôs-se a dar uma explicação.
— Ernst Ellert é um mutante. Suas faculdades excedem
tudo que o cérebro humano já concebeu. É um
teletemporário. Sabe transportar-se em espírito para o
futuro e contemplar o passado que corresponde ao nosso
presente. Talvez consiga localizar o esconderijo dos DI
— Um teletemporário? — resmungou Klein sem que
tivesse compreendido. Deu de ombros e não disse mais
nada. Perry Rhodan devia saber o que estava fazendo.
Quem visse Ellert entrar não conseguiria disfarçar certa
decepção. Aquele alemão tinha um aspecto absolutamente
normal; nada indicava a presença de um dom
extraordinário. Apenas em seus olhos notava-se um brilho
tranquilo e constante. Eram olhos que tinham contemplado
um trecho da eternidade, assim pensava Perry toda vez que
os contemplava.
— Estamos em conselho de guerra — disse Perry a
título de cumprimento. — Os DI iniciaram a invasão.
Apossaram-se do tenente Li, agente dos serviços de defesa
da Federação Asiática. Tako Kakuta lhe fornecerá
informações pormenorizadas, e também o acompanhará.
Faço votos que sua missão seja tenha êxito. Antes de
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partir, receberá dois detectores de frequência, e obterá
instruções mais precisas. — Perry hesitou um instante.
Depois deu um impulso à sua mente. — Sempre relutei em
recorrer aos seus dons, Ernst. Mas peço-lhe que me
responda uma pergunta reservada: em espírito você já
esteve no futuro mais de uma vez. Aliás, o fato de você ser
capaz de abandonar o corpo à vontade e voltar a ele,
coloca-o no mesmo nível dos DI, ou mesmo em nível
superior, já que seu espírito não está preso ao presente.
Compreende por que resolvi lançar mão de você na luta
contra os DI? Se existe um homem que pode representar
um perigo real para eles, este homem é você. Mas
voltemos à pergunta que pretendo formular: você já esteve
no futuro por mais de uma vez, Ernst. Encontrou algum
indício de que a Terceira Potência existe nesse futuro?
Seremos bem sucedidos na luta contra os invasores?
Uma sombra passou pelo rosto de Ernst Ellert.
— Sinto decepcioná-lo. Não é o que você pensa.
Acontece que o futuro não é uma coisa concreta. Existem
muitos caminhos que conduzem para o futuro. Ou melhor,
não existe um único futuro. O presente é real, é uma
resultante do passado perfeitamente determinado. Mas o
futuro é irreal e incerto. O acontecimento mais
insignificante do presente pode modificá-lo por completo.
Por isso nunca penetrei num futuro imutável. Compreende
o que quero dizer? — Quando notou que Perry confirmava
com um leve movimento de cabeça, prosseguiu. —
Existem milhares de futuros. Futuros com e sem Perry
Rhodan. Mas só uma dessas alternativas se transformará
em realidade. Sei que deve estar decepcionado, mas o fato
é que minha capacidade de transportar-me para o futuro
não tem o menor valor. Posso inserir-me num fluxo
temporal incorreto e, em consequência, transmitir-lhe
informações falsas.
— Como ficou sabendo disso? E por que nunca me
falou a respeito antes? — disse Perry com um ligeiro tom
de censura.
— Não sabia — confessou Ellert ligeiramente
embaraçado. — Nos últimos dias realizei várias
experiências e verifiquei que vários mundos coexistem
simultaneamente no mesmo segmento da linha do tempo.
Só um deles se transformará em realidade. Não tenho
elementos para saber qual será este mundo.
— Quer dizer que como profeta você não vale nada —
disse Perry Rhodan em tom grave.
Ellert confirmou com um gesto desolado. Mas o brilho
do saber continuou aceso em seus olhos. Estaria mentindo?
Perry lançou um olhar de indagação ao telepata Marshall.
Este sacudiu a cabeça: Ellert não estava mentindo. Dizia a
verdade. Por que seria tão vidente?
— Como profeta pode não valer nada, mas como
inimigo dos invasores vale muito — prosseguiu Perry. —
Pode abandonar seu corpo e sair em perseguição dos DI.
— Juntamente com Tako procurarei solucionar o
problema — confirmou Ellert. Hesitou ligeiramente.
Depois acrescentou:
— Segundo uma das alternativas que se abrem para o
futuro, dentro de poucas semanas estará morto. Mas, como
acabo de dizer, isso é apenas uma das alternativas. Pode
ser verdadeira, tanto quanto a outra, segundo a qual num
futuro muito distante ajudarei você a consolidar o grande
império galáctico.
Sem dizer uma palavra, Perry seguiu-o com os olhos
quando ele deixou a sala de conferências juntamente com
Tako, o teleportador japonês.
* * * Outra sala de conferências.
Mais de três mil metros abaixo da superfície da calota
de gelo que cobre a Groenlândia os presidentes dos três
grandes blocos da Terra encontravam-se reunidos. Desta
vez não se tratava de elaborar planos para uma ação
conjunta contra Rhodan, mas de encontrar um meio de
repelir a invasão. Mercant estava presente. Perry Rhodan
participou da conferência através da tela plana do
dispositivo ótico, instalado em uma das paredes do
pequeno recinto, onde a cobria totalmente. Perry aparecia
em tamanho natural. Os participantes da conferência viam-
no e ouviam-no, da mesma forma que ele os via e ouvia.
Nem parecia que se encontravam separados por milhares
de quilômetros.
Depois de uma breve introdução, Mercant pediu a
Perry Rhodan que expusesse a situação estratégica.
— Cavalheiros — principiou Perry sem rodeios — se
não agirmos imediatamente, estaremos perdidos.
Felizmente conseguimos a união definitiva dos povos, de
maneira que a Terra se transformou num só planeta.
Praticamente todas as fronteiras foram eliminadas. Os
senhores, que são os presidentes dos três grandes blocos,
governam o mundo, se abstrairmos de mim e do poder dos
arcônidas. Também no terreno econômico uma
coordenação mais estreita está em vias de ser formada.
Devo pedir-lhes que permitam aos meus subordinados que
se desloquem livremente nos seus países. O que quero
dizer é que os mesmos devem ter livre acesso aos órgãos
governamentais e às repartições dos serviços de defesa.
Incumbi meu pessoal de exercerem uma vigilância
ininterrupta sobre as pessoas importantes da Terra, para
que qualquer apossamento por parte dos DI possa ser
detectado imediatamente. Para isso precisamos de plenos
poderes. Peço-lhes que nos concedam.
Seguiu-se um silêncio embaraçoso. Ninguém se
atreveu a repelir frontalmente a exigência de Perry
Rhodan. Mercant interveio:
— É evidente que os senhores presidentes não deixarão
de reconhecer a necessidade premente desse procedimento
extraordinário e transmitirão as instruções
correspondentes. Não era o que pretendiam dizer?
O presidente do Bloco Ocidental confirmou com um
aceno de cabeça. Depois duma ligeira hesitação o
presidente da Federação Asiática e o do Bloco Oriental
seguiram seu exemplo. Não viram outra saída. Perry
respirou muito aliviado. O primeiro round estava ganho.
— Obrigado, cavalheiros. Com isso não precisarão
preocupar-se mais com a defesa contra a invasão. Creio
que com os meus homens darei conta do recado. Assim
que localizarmos a nave espacial dos invasores, ela será
destruída. Passemos ao segundo ponto. Conforme sabem,
criei uma potência econômica conhecida pelo nome
General Cosmic Company. O diretor comercial do truste é
Homer G. Adams, o conhecido gênio financeiro. Nossas
usinas estão sendo montadas em todos os pontos da Terra.
Atualmente o capital da empresa é de trinta e cinco bilhões
de dólares. Se estiverem dispostos a prestar-nos sua
colaboração oficial também neste terreno, estarei pronto a
adiantar a soma de trinta bilhões de dólares para o projeto
que temos em perspectiva.
O presidente da Federação Asiática inclinou-se para
frente.
— A que projeto está se referindo? — perguntou numa
atitude de espreita.
51
Perry Rhodan sorriu.
— Trata-se de uma frota espacial. A Terra precisa de
uma frota espacial.
— Para quê?
— Existem muitos motivos para isso, senhor
presidente. Um deles é de natureza puramente econômica.
Já não é segredo que as guerras e as atividades
armamentistas são responsáveis por boa parte do bem-estar
material dos povos. Isto pode parecer cínico, mas não
passa duma constatação objetiva. Por isso devemos
continuar a guiar nossa atuação por esse princípio
consagrado, com a única diferença de que nossos esforços
não mais serão dirigidos aos preparativos para a guerra,
mas a um objetivo inteiramente diferente: a frota espacial.
A economia mundial pode beneficiar-se com um
empreendimento desse tipo. Novas indústrias surgirão,
todos os homens encontrarão trabalho. Será necessário
criar fábricas e usinas, e teremos de encontrar meios de
produzir matérias-primas e peças até então desconhecidas.
É aí que residem as vantagens de natureza puramente
econômica. Acontece que ainda existe um motivo
estratégico para construir uma frota espacial. Os senhores
destruíram o cruzador dos arcônidas, que se encontrava
estacionado na Lua. Um dispositivo automático provocou
a emissão do sinal de socorro, que vem sendo transmitido
para todas as partes do cosmos a uma velocidade superior
à da luz. Os sinais vêm sendo captados por inúmeras raças.
A invasão que está sendo levada a efeito é uma das
consequências desse fato. Os sinais podem despertar a
curiosidade de outras raças, que talvez se desloquem para
cá. O planeta Terra deverá estar em condições de repelir
outras invasões. Para isso precisamos de uma frota
espacial. Espero que a lógica irrefutável destes
fundamentos não deixe de convencê-los.
Os participantes da conferência convenceram-se da
validade dos fundamentos expostos por Rhodan. A
proposta foi aprovada por unanimidade. Mas Rhodan
ainda não havia chegado ao término da exposição. Passou
a enfatizar a necessidade de que os três presidentes que ali
se encontravam pensassem seriamente na maneira de
formar um governo comum, que administrasse o planeta
Terra. Concluiu com uma sugestão concreta:
— Temos de obter uma garantia definitiva de que
nunca mais surgirá uma dissensão entre as nações. A
formação da frota espacial incrementará a ideia da união
mundial. Mas o espírito de união também deve ser
estimulado por atos externos. O governo mundial, que
ainda é considerado um sonho de utopistas ridicularizados,
deve ser transformado em realidade. Nunca a situação se
apresentou tão favorável a esse intento como hoje. O
perigo comum e os esforços conjuntos para a construção
da frota espacial constituirão fatores positivos. Peço-lhes
que iniciem quanto antes negociações dirigidas a esse fim,
e é isso, meus senhores. Acho que poderão prosseguir na
conferência sem a minha presença. Não tenho nada a ver
com as questões internas. Mercant me informará sobre os
pontos essenciais que forem debatidos. Agradeço-lhes pela
confiança que vêm depositando em mim. Não os
decepcionarei.
A tela apagou-se.
Mercant rompeu o silêncio:
— Senhores presidentes, os objetivos estão definidos.
Para alcançá-los dependemos dos senhores. Achei
conveniente convocar o homem que poderá assessorar-nos
nas questões econômico-financeiras, a fim de que ainda
hoje possamos alcançar um resultado palpável. Apresento-
lhes o senhor Homer G. Adams, diretor comercial da
General Cosmic Company.
III
Num quarto de hotel de Pequim, Ernst Ellert e Tako
Kakuta realizaram seu conselho de guerra.
— Você é capaz, sim — disse Ellert em tom insistente.
— Lembre-se de que destruiu a nave oval dos DI.
Teleportou-se com a bomba para junto do inimigo. Se
você conseguiu transportar uma bomba, também deve
estar em condições de carregar um homem. Sabe
perfeitamente que pode teleportar a matéria com que entra
em contato.
— É possível que você tenha razão — disse o japonês
com um sorriso de cortesia.
— Tenho de experimentar. Para falar com franqueza,
ainda não pensei nessa possibilidade.
— Pois vamos experimentar. De qualquer maneira o
exército de mutantes só se consolidará através da
experiência.
— Que tal se me levasse com você numa viagem para
o futuro? — perguntou o japonês em tom sério. — Assim
cada um de nós estaria retribuindo a gentileza do outro.
O rosto de Ellert alargou-se num sorriso.
— Então é nisso que consiste a coordenação de nossas
forças? — ironizou. — Se Crest soubesse disso...
Subitamente o rosto de Tako assumiu uma expressão
séria. Parecia lembrar-se da missão que lhes fora confiada.
— Encontramos Li — declarou. — O que faremos com
ele? Como poderemos saber se anda fazendo alguma
tolice? Não podemos prevenir os homens da Federação
Asiática, pois não sabemos quem entre eles já pertence aos
DI.
Nesse instante seus aparelhos de comunicação
emitiram um zumbido. Comprimiram o botão de recepção.
52
A voz de Ras Tshubai, outro teleportador pertencente, ao
grupo, fez-se ouvir:
— Ouçam, temos trabalho. Li acaba de ir ao aeroporto
onde adquiriu passagem para o Stratoliner com destino a
Batang. Parte amanhã, as seis e trinta e cinco.
— Tão cedo! — gemeu Ellert, que gostava de dormir
até tarde. — O que será que esse sujeito resolveu fazer
justamente em Batang?
— Não faço a menor ideia. Não falou sobre a
finalidade da viagem ao funcionário que lhe vendeu a
passagem.
— Nem poderia ser de outra forma. Acho que você
virá até aqui. Até amanhã de manhã Li não nos escapará.
A que hora chegará a Batang?
— O tempo de voo é de duas horas. Quer dizer que
deverá chegar pelas oito e meia.
— Nós o receberemos em Batang — disse Ellert. —
Não se preocupe mais com Li, mas dê um pulo...
Dentro de um segundo o africano corpulento se
materializou naquele quarto de hotel. Quando viu que
Tako e Ellert estremeceram, deu um largo sorriso.
Ninguém, nem mesmo um teleportador, jamais se
acostumaria a ver um homem surgir do nada.
— Você faz alguma ideia do que nosso amigo pretende
fazer justamente no Tibet? — perguntou o japonês. — Se
não me engano, Batang fica ali pelo Tibet.
— Você não se engana — confirmou Ras. — São mais
de dois mil quilômetros. Isso representa um belo salto.
Como poderemos executá-lo?
— Pegamos Ellert pelos braços, e lá vamos nós. Acho
que conseguiremos.
Ras revirou os olhos.
— Pegá-lo pelos braços? Não me vá dizer que
poderemos levá-lo conosco.
— Por que não? — disse o japonês. — Afinal, ele é
mais leve que uma bomba de tamanho médio...
* * * O aparelho pousou na hora prevista. Li desceu e
dirigiu-se ao edifício do aeroporto, sem olhar para os
lados. Parecia sentir-se muito seguro. Tako incumbira-se
da vigilância direta, já que naquelas plagas um japonês não
daria na vista. O minúsculo radiotransmissor que trazia no
pulso mantinha-o em contato permanente com seus
companheiros.
Li não trazia bagagem. Em compensação tinha consigo
uma soma considerável em dinheiro. Ninguém,
provavelmente nem mesmo o próprio Li, saberia dizer
como conseguira pôr a mão nele. Alugou um quarto no
hotel mais caro da cidade, pagou três diárias adiantadas e
não apareceu mais na manhã daquele dia. Tako estava
sentado num bar que servia vinho de arroz, situado do lado
oposto da rua, e procurava matar o tédio. Se não o
revezassem logo poderia acontecer que deslizasse para
baixo da mesa e mergulhasse num sono feliz.
Pelo meio-dia Ras ocupou seu lugar. Tomou um gole
de vinho tinto e asseverou que teria muito prazer em ficar
ali até o anoitecer. No íntimo o japonês tinha suas dúvidas.
Saiu do bar e dirigiu-se ao hotel, onde Ellert já o esperava.
— O que será que Li veio fazer neste lugar horrível?
Ellert estava deitado, lendo um livro. Quando Tako
entrou, interrompeu a leitura e formulou a pergunta que
mantivera sua mente ocupada por toda a manhã. Na
verdade, não esperava nenhuma resposta. E não a recebeu.
— Não faço a menor ideia — gemeu Tako e
mergulhou na poltrona mais próxima. — Não ficaria bem
perguntarmos a ele. Você não poderia dar uma espiada no
futuro para descobrir as intenções de Li?
— Como saberei se me encontro apenas num plano de
probabilidades do futuro, ou na realidade? Felizmente não
estou preso ao corpo. Posso transformar-me em intelecto
desmaterializado e deslocar-me livremente, até mesmo em
sentido diagonal ao fluxo do tempo. Mas nunca sei se
realmente acontecerá aquilo que vejo.
— Pois tente! — sugeriu Tako, que não tinha uma
ideia exata do problema. — Enquanto você dorme, cuido
do seu corpo.
Ellert fez um gesto de assentimento e ficou deitado.
— Isso não pode fazer mal — reconheceu. — Mas não
sei quanto tempo demorará. Não deixe ninguém entrar no
quarto. Entendido?
Tako levantou-se e trancou a porta. Quando voltou,
Ellert já estava imóvel na cama. O japonês inclinou-se
sobre ele. Subitamente sobressaltou-se. Ellert deixara de
respirar. Ou será que tudo não passava de uma ilusão? O
pulso era muito fraco. Tako deu um beliscão nas
bochechas do teleportador, que não reagiu.
O japonês também se deitou e logo adormeceu. Não
houve nada que perturbasse o sossego daquele fim de
tarde.
Enquanto isso, Li estava sentado num quarto de hotel,
a poucas quadras de distância.
O ser imaterial que se apossara de seu corpo mantinha
contato telepático com a neve de comando estacionada no
espaço. As mensagens eram precisas e impessoais.
— Temos que desistir do plano de defender nossa base
situada na Terra. O homem chamado de Li tornou-se
suspeito. Apesar disso não convém procurar outro corpo,
pois com isso teríamos de recomeçar todo o trabalho.
Além disso, os terráqueos suspeitam de Li, mas não têm
certeza. Li permanecerá em Batang por mais dois dias,
depois pegará o Clíper com destino aos Estados Unidos.
Oportunamente forneceremos novas instruções.
Dali em diante Li passou a mover-se sem destino.
Tomava suas refeições, dava passeios pela cidade sem
preocupar-se cora os homens que o seguiam e agia como
um funcionário aposentado. Depois de três dias comprou
uma passagem para Hong Kong, e dali para Carson City,
em Nevada, nos Estados Unidos.
Conforme era de esperar, a tentativa de Ellert não
produziu o menor resultado. Abandonara o presente e
penetrara no futuro. Seu espírito pairara sobre Li, enquanto
esse viajava de Hong Kong para Carson City. Um
deslocamento lateral no fluxo do tempo revelou outra
possibilidade. Viu o mesmo avião, sem Li. Qual seria a
realidade?
Ellert desconfiou de que seu dom valia muito pouco. O
presente representava a encruzilhada, a partir da qual se
podia penetrar no futuro por inúmeros caminhos. Só o
presente podia determinar a configuração do futuro. Dessa
forma a visão do futuro representava a percepção de
milhões de alternativas, e ninguém sabia qual dessas
alternativas se transformaria em realidade.
Face disso, não havia como modificar os
acontecimentos do passado.
Em compensação teve uma ideia de cujo alcance só
começava a suspeitar. Teria de falar com Perry Rhodan. Se
sua teoria fosse exata, os dias dos DI sobre a Terra
estariam contados.
53
* * *
Perry Rhodan cumprimentou Ernst Ellert com um
movimento da cabeça. Os dois homens estavam a sós na
velha sala de comando da Stardust. Por uma espécie de
sentimentalismo, Perry gostava de recolher-se a esse
recinto sempre que desejava ficar a sós. Ali se sentia
tranquilo e foi ali que sua carreira fantástica teve início.
Depois de um ligeiro preparo mental, Ellert começou a
falar.
— Deixamos que Li viajasse sozinho aos Estados
Unidos, pois conhecemos seu destino. A esta altura John
Marshall já deve estar cuidando dele. Pelo que sei Anne
Sloane também se encontra em Carson City. Isso parece
confirmar sua suposição de que o próximo objetivo dos DI
será a base de Nevada Fields.
— Acredito que sim — confirmou Perry em tom
tranquilo.
— Enquanto abandonei meu corpo para vigiar Li,
constatei um fato bastante estranho. Os DI se comunicam
por via telepática. Até consegui acompanhar parte das
mensagens que trocaram entre si. Sem o entrave do corpo
nosso intelecto realiza um trabalho muito mais perfeito e
amadurecido. Acho que, se necessário, poderia manter
contato direto com os DI, mas a meu ver isso não é
recomendável. É preferível que nunca saibam dessa
possibilidade. Mas há outra coisa. Estou convencido de
que será possível seguir um DI que abandonou seu corpo.
E qualquer teleportador poderá fazer isso. Ao movimentar-
se, um teleportador transfere seu corpo para outra
dimensão e faz com que o mesmo se materialize em outro
ponto do espaço. Transforma-se em espírito, e com isso
assemelha-se bastante aos DI. Acredito que nessas
condições Tako ou Ras, ou mesmo eu, estaremos em
condições de seguir um DI no momento em que ele
abandonar o corpo de um ser humano para retornar ao seu
próprio corpo.
Perry Rhodan escutara com muita atenção. Seu cérebro
genial examinou as possibilidades, pesou as oportunidades
e registrou todos os dados como se fosse um robô
eletrônico. Valeu-se do saber imenso que lhe fora
transmitido pelos arcônidas. Os centros de memória
forneceram informações.
Depois de algum tempo acenou com a cabeça.
— Ernst você tem razão. Tem toda razão. Não
deixaremos de fazer uma tentativa. Li deve ter ido a
Nevada com uma incumbência especial. Anne Sloane me
deixará informado sobre cada passo que ele der. Mas há
outro assunto sobre o qual gostaria de falar com você.
Sabe perfeitamente que nunca me vali de seus dons de
teletemporador. De início me senti impedido por motivos
de ordem ética. Além disso, chegamos à conclusão de que
as múltiplas áreas de probabilidades não lhe permitem uma
visão nítida do futuro. Todavia, devo pedir-lhe que faça
uma exceção. Tivemos um acontecimento muito
estranho...
Ernst Ellert parecia bastante interessado. Inclinou-se
para a frente e segurou o jornal que Perry lhe estendeu. O
título parecia saltar nos seus olhos. Começou a ler com
muita atenção.
O artigo era o seguinte:
MENINA DE SEIS ANOS MATA O PAI COM UM
TIRO DE PISTOLA
ASSASSINATO MISTERIOSO PRATICADO POR CRIANÇA
Mesilla, Novo México, 17-2-72.
Notícia especial.
Um dos crimes de morte mais
estranhos do século ocorreu ontem
em Mesilla, N.M. A pequena Betty
Toufry tirou a pistola do pai, que a
segurava no colo, e o matou. A
criança nunca tivera nas mãos uma
arma desse tipo, e não sabia como
manejá-la.
No citado artigo ainda se salientava que Allan G.
Toufry era um cientista dedicado à pesquisa nuclear.
Tivera participação decisiva nos últimos aperfeiçoamentos
das armas nucleares e era um dos responsáveis pelas
experiências realizadas no deserto. O redator da notícia
ainda acrescentava em tom de ceticismo que a criada
afirmava peremptoriamente ter visto que poucos instantes
antes da tragédia a criança correra alegremente ao encontro
do pai, mas de repente estacara. Logo após a pistola
parecia voar às mãos da pequena. Naturalmente era o
relato de uma pessoa que se encontrava à beira de um
ataque de histeria não podia ser levado a sério, tinha
ressalvado o repórter. De qualquer maneira, o ato de uma
criança de seis anos que mata o pai é tão estranho que
requer um minucioso exame psicológico.
Ellert levantou a cabeça e fitou os olhos indagadores de
Perry.
— Então? Que acha?
Ellert deu de ombros.
— Não compreendo! O relato da empregada dá o que
pensar. Não acredito que esteja mentindo.
— Também não acredito — confirmou Perry. —
Tenho minhas desconfianças. Mas gostaria de ter certeza.
Peço-lhe que se ocupe com a criança. Preciso saber o que
será feito dela. Será que você poderia verificar?
— Até certo ponto, sim. Seja qual for o caminho do
futuro, isso não altera a personalidade. Pouco importará a
área de probabilidades em que me deslocarei, desde que a
menina continue viva.
— Era o que eu imaginava Ellert. Você terá que viajar
ao Novo México, ou será possível fazê-lo a partir daqui?
— Seria conveniente ir até lá. Além disso, estarei perto
de Carson City.
Perry Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Está bem. Pegue o avião imediatamente. E
transmita-me suas informações assim que chegar lá. Estou
muito interessado na menina.
* * * Um telepata estava em condições de identificar
imediatamente os estranhos padrões ideológicos dos DI. O
cerco em torno desses seres estava sendo apertado cada
vez mais, mas não seria possível completá-lo sem perigo.
O porto espacial de Nevada era o campo de pouso das
astronaves do Ocidente.
O cordão de isolamento que cercava a área impedia a
penetração de qualquer pessoa estranha. Infelizmente tais
medidas não tinham qualquer eficácia contra os DI, que a
qualquer momento poderiam cruzar a faixa de segurança,
sob o disfarce de um corpo humano.
Por isso era indispensável que os homens de Rhodan
mantivessem uma vigilância ininterrupta no interior da
zona bloqueada.
54
O capitão Burners, do serviço de segurança, não
gostava disso, mas não lhe restava alternativas senão
cumprir à risca as ordens de seu chefe supremo, Allan D.
Mercant. Muitas dessas ordens tornavam-se
incompreensíveis a esse homem acostumado a pautar seu
procedimento por uma série de normas bastante simples.
Quem não tivesse nada que fazer na base espacial lá não
entraria. Era muito simples. Mas agora qualquer sujeito
estranho podia intrometer-se em assuntos com os quais
nada tinha que ver.
Era, por exemplo, o caso do tal do Marshall. Esse
sujeito andava com um sorriso impertinente na cara
sempre que falava com os outros. Fazia de conta que sabia
de tudo. Mas não sabia de coisa alguma. Ao menos era o
que Burners pensava. Pois bem. Afinal, era um dos
homens de Rhodan, e este metia o nariz em tudo.
John Marshall, o homem que graças às suas
capacidades telepáticas conseguira frustrar um assalto de
banco na Austrália e por isso se unira a Rhodan, podia
movimentar-se livremente no porto espacial de Nevada.
Era perfeitamente compreensível que aproveitava a
oportunidade para conhecer as vastas instalações da base.
Conhecia o general Pounder, chefe da Força Espacial dos
Estados Unidos, bem como seu ajudante, o major Maurice.
Mantinha relações amistosas com o Dr. Fleet, médico-
chefe da Força Espacial dos Estados Unidos, bem como
com o Dr. Lehmann, dirigente do projeto científico e
diretor da Academia de Tecnologia Espacial da Califórnia.
Era claro que também conhecia o capitão Burners.
Por enquanto não localizara nenhum DI. Parecia
estranho, mas era verdade. John ficou matutando sobre se
o fato era intencional ou não passava de puro acaso, mas
não encontrou nenhuma resposta. Ficava de olho nas
pessoas mais importantes, falava com elas diariamente e
examinava seus pensamentos. Não descobriu nada de
extraordinário.
Hoje o Dr. Lehmann convidara-o para um jogo de
xadrez.
Tratava-se de um cavalheiro de idade um tanto
avançada, que era um adepto apaixonado do xadrez e
sentia-se satisfeito por ter encontrado um parceiro digno
de medir-se com ele. Evidentemente não sabia que John lia
seus pensamentos e assim conhecia antecipadamente seus
lances.
— Xeque-mate! — disse em tom de triunfo e recolheu
a dama a uma posição que lhe parecia decisiva. Todo
satisfeito remexeu o cachimbo, espalhando um cheiro
pouco aromático.
— Será mesmo? — perguntou o australiano. — Pensa
que não estou vendo o cavalo? Está enganado. Pronto! E
agora?
Lehmann, perplexo, fitou o tabuleiro. Realmente
pensara que seu parceiro tivesse esquecido o cavalo, já que
estava há dez minutos no mesmo lugar, totalmente cercado
e sem ser notado, mas infelizmente também numa posição
inatingível.
John acendeu um cigarro, para fugir à fedentina do
cachimbo de Lehmann, que acabara de segurar uma dama,
erguendo-a num gesto pensativo. Estacou em meio ao
movimento.
John, que sorria de si para si ao perceber que seu
adversário pretendia deslocar a dama para uma posição
que representava certo perigo para seu cavalo, subitamente
sentiu-se chocado, pois o fluxo dos pensamentos de
Lehmann sofreu uma interrupção abrupta.
O professor apresentava o aspecto de uma figura
estarrecida. Os olhos vidrados fitavam o vazio. A mão que
segurava a figura de xadrez ficou suspensa sobre o
tabuleiro, imóvel e sem o menor tremor. Nem mesmo as
pestanas se moviam.
John sentiu que algo de estranho se introduzia no
espaço que ainda há pouco era ocupado pelos pensamentos
do professor. Retirou-se apressadamente, limitando-se a
manter um contato ligeiro, a fim de não impedir a
penetração do DI.
Esforçou-se para não despertar a menor suspeita, pois
sabia perfeitamente que dentro de poucos segundos um
dos invasores o contemplaria através dos olhos de
Lehmann. Dentro de cinco segundos aproximadamente,
segundo afirmara Mercant.
Realmente. Uma vez decorrido esse lapso, o Dr.
Lehmann voltou a mover-se. Num gesto automático
colocou a dama numa posição em que não serviria para
coisa alguma. A vida retornou àqueles olhos estarrecidos,
que contemplaram John num gesto indagador.
— Então?
John procurou concentrar-se. Nunca se vira numa
situação tão difícil. Quem dera que pudesse penetrar nos
pensamentos do DI. Mas isso não era tão simples. Os
invasores também dispunham de algumas capacidades
telepáticas. Perceberiam logo. E isso não podia acontecer
em hipótese alguma.
— O lance não foi bom, professor. Se quiser, posso
colocá-lo em xeque-mate. Mas acredito que estivesse
distraído. Por isso quero dar-lhe mais uma chance.
Pegou seu cavalo e colocou-o numa situação muito
perigosa. Lehmann poderia eliminá-lo imediatamente. Mas
não o fez. Provavelmente o DI precisava de algum tempo,
para absorver as informações armazenadas na memória de
sua vítima. O lance que executou não preenchia qualquer
finalidade e infringia as regras do jogo.
John fez de conta que não percebia nada. Executou um
lance apressado e procurou aproximar-se do espírito
desconhecido. Mas esbarrou numa barreira mental que não
pôde ser vencida. Absteve-se de recorrer a um processo
mais violento, pois não quis despertar a atenção do
inimigo. Mas já sabia que os DI podem envolver seus
pensamentos com uma capa protetora. Era impossível
adivinhar as intenções deles. Talvez a capa se tornasse
porosa se permanecessem em contato por algum tempo.
Teria de verificar.
O jogo assumiu uma feição arrepiante, embora o DI
aprendesse depressa. John deixou-o ganhar e despediu-se
com algumas palavras indiferentes. Ao concluir, disse:
— Espero que sua promessa continue de pé, doutor.
— Que promessa?
— A experiência. Será que já se esqueceu disso? O
senhor disse que eu poderia assistir ao teste da câmara de
combustão, que será realizado dentro de poucos dias.
— Ah, sim. É claro que poderá estar presente.
— Boa noite, doutor.
— Boa noite.
Assim que chegou ao seu quarto, John abriu a mala e
tirou um transmissor pequeno, mas muito potente. Dali a
poucos minutos estava falando com Rhodan, que não ficou
nada satisfeito ao ter que afastar-se da companhia de Crest
e dos outros mutantes logo de manhã. Quando, porém,
ouviu a voz de John, a contrariedade cessou por completo.
Esperou até que John terminasse. Depois disse:
— Fique de olho em Lehmann. Recebi notícias de
55
Anne Sloane. Li está a caminho de Nevada Port.
Oficialmente viaja a mando de Mercant. Deverá encontrar-
se com Lehmann. É possível que os dois pretendam
executar algum plano que vise à paralisação da pesquisa
espacial. Toda vigilância é pouca. Entre em contato com
Anne assim que ela chegar aí. Assim que Ernst terminar a
missão atual, ele lhe será enviado como reforço. Acho que
o porto espacial de Nevada será o ponto crítico da invasão.
Rhodan nem desconfiava de que sua suposição seria
totalmente confirmada pelos fatos.
* * * Ernst Ellert não teve a menor dificuldade em seguir o
caminho da pequena Betty Toufry através do fluxo do
tempo. Numa faixa de cinco anos, situada no futuro,
descobriu as melhores possibilidades de pesquisar sua
personalidade. Houve uma estranha coincidência entre os
mundos paralelos que se abriam diante dele.
Quando pairou invisível sobre a menina e procurou
penetrar seus pensamentos, teve uma surpresa chocante.
Betty Toufry era telepata.
Voltou ligeiramente à cabeça, como se estivesse
escutando. Logo um sorriso de autoconfiança passou pelo
seu rosto. Estava sentada na varanda da casa em que vivia
com o pai há cinco anos, quando acontecera aquele fato
inexplicável.
— Quem é você? — perguntou sem emitir qualquer
som. Ellert compreendia perfeitamente. Decidiu abandonar
todo e qualquer disfarce. Não adiantaria fingir diante dela,
pois logo percebeu que as capacidades telepáticas da
menina eram mais fortes que as suas.
— Meu nome é Ernst Ellert. Sou um dos colaboradores
de Perry Rhodan.
— E daí? — disse a menina em tom de espanto. —
Vem a mando dele?
Essa reação deixou Ellert estupefato.
— O que quer dizer com isso?
A menina parecia refletir. Subitamente um sorriso
iluminou seu rosto.
— Ah, sim, Ernst. Quase me esqueço. Há cinco anos
você me falou sobre sua excursão ao meu futuro. Foi
graças ao encontro que ora estamos tendo que há cinco
anos Perry Rhodan me admitiu no seu serviço. Desde
então trabalho no exército dos mutantes. Nosso encontro
de hoje só está ocorrendo para que nossa reunião se torne
possível. Compreendeu?
— Só em parte — respondeu Ellert perplexo. — Quer
dizer que você trabalha para Rhodan?
— Preste atenção, Ernst. Sou uma mutante nata.
Minhas especialidades principais são a telecinese e a
telepatia. Aos seis anos meu quociente intelectual já
atingia o dobro do de um adulto normal. Em todas as
partes do mundo estão nascendo mutantes. O novo homem
está surgindo imperceptivelmente. Um dia ele tomará o
lugar do homo sapiens.
— Isso é uma perspectiva terrível.
— Por quê? Só porque uma época está chegando ao
fim? Não vejo nada de mal em tudo isso. O herdeiro do
império galáctico não será o homo sapiens, mas o homo
superior.
Ellert sentia-se cada vez mais confuso. Aquela menina,
cujo quociente intelectual era muito superior ao seu, falava
sobre coisas que na base só eram mencionadas em
cochichos. No entanto, quase se esquecia de que se
encontrava num futuro situado dali a cinco anos. E tudo
indicava que se movia na dimensão da realidade.
— Você poderia responder a uma pergunta, Betty?
— Com todo prazer.
— Por que matou seu pai daquela vez?
Seus pensamentos hesitaram um pouco, mas logo
surgiram com toda nitidez:
— No fundo tudo não passou de um ato instantâneo.
Desde que sei pensar, li os pensamentos dele. Minha mãe
morreu durante o parto, por isso dediquei-lhe todo o amor.
Quando chegou a casa naquele dia, meus pensamentos
correram ao seu encontro, mas esbarraram numa capa, que
só pude penetrar com um esforço enorme. Quando
consegui, deparei-me com o invasor. Foi uma experiência
tão apavorante, que fiquei imóvel. Meu pai, aliás, o ser que
naquele dia chegou a casa, já não era meu pai. Tomou-me
no braço e me cumprimentou. Depois sentou. Captei seus
pensamentos, e esses pensamentos ocupavam-se com a
destruição do mundo. Pretendia fazer detonar no dia
seguinte os depósitos subterrâneos de armas nucleares, a
fim de destruir nosso continente. Naquela época ninguém
teria acreditado numa criança. Meu ato foi quase
automático. A arma que sempre trazia consigo veio ter às
minhas mãos, impelida pela energia telecinética de que sou
dotada. Depois... bem, depois aconteceu.
Ellert não respondeu logo. Seu pesar encontrou
expressão em pensamentos de compaixão, que fluíam
suavemente em torno da menina. Esta ergueu a cabeça e
lançou os olhos para o céu azul, onde devia encontrar-se o
espírito invisível de Ellert.
— Ernst, agora volte para junto de Rhodan e conte-lhe
o que acaba de saber. Posso dizer-lhe uma coisa: a invasão
dos Deformadores Individuais fracassará. A Terra os
vencerá. Quanto a você...
Seus pensamentos extinguiram-se.
— Quanto a mim? O que haverá comigo, Betty?
— Não posso contar. Esqueça-se disso.
— Por que não pode contar?
— Não devo. Não me martirize. Você representa o
ponto de transição da história da humanidade. Seu destino
está ligado estreitamente ao império galáctico do futuro.
Se desconfiasse do que vai acontecer, poderia tentar
escapar ao seu destino. E isso não deve acontecer. Siga o
caminho que foi traçado para você, para que Perry Rhodan
possa atingir seu objetivo. Nós dois nunca mais nos
veremos, Ernst...
— E dentro de cinco anos, agora? O que será? Onde
estarei?
— Dentro de cinco anos? Meu caro Ernst, daqui a
cinco anos você verá a aurora de uma nova era da história
da humanidade. E você a verá de um posto cuja posição
ultrapassa tudo que nossa imaginação pode conceber.
Agora me deixe só, por favor.
Ellert sentiu que Betty Toufry se afastava dele. Não
conseguiu penetrar mais no seu ser. Permaneceu indeciso
por alguns segundos. Depois a abandonou, retornando ao
presente.
Sabia perfeitamente o que devia fazer...
IV
— Então você tem certeza de que a base terrena dos
invasores se encontra em algum ponto localizado no
Tibet?
56
Perry confirmou com um aceno de cabeça. Crest estava
sentado perto dele. Segurava os últimos relatórios da
General Cosmic Company, segundo os quais Homer G.
Adams fazia erguer novas fábricas em todas as partes do
mundo. A construção de uma frota espacial terrena havia
sido iniciada. Ao menos nesse ponto as barreiras nacionais
haviam sido demolidas.
— Tenho certeza, Bell. Os DI querem fazer com que Li
se dirija a essa base. Infelizmente não sabemos o que
deverá fazer lá. Os DI só modificaram seus planos quando
sentiram o contato mental de Ellert, que agiu com certa
falta de cautela. De qualquer maneira não desistiram da
pessoa de Li. Ele viajou para o porto espacial de Nevada,
onde se encontrou com o professor Lehmann. Estou
convencido de que os dois receberam ordens de desferir
um golpe grave contra a pesquisa espacial.
— Não sei como poderíamos impedir isso — interveio
Crest. Parecia continuar a duvidar de que alguém pudesse
estar em condições de resistir aos Deformadores
Individuais. Sua raça decadente tornara-se tão indolente
que não poderia lançar-se num combate contra os DI. —
Esses seres subjugaram grandes impérios cósmicos, sem
que ninguém conseguisse impedi-los.
— Pois nós os impediremos — retrucou Rhodan em
tom áspero e enérgico. — E dispomos de meios para isso.
Aquelas desastrosas bombas atômicas também tiveram seu
lado bom. As radiações emitidas por elas produziram uma
aceleração enorme da evolução natural. O homem já
realizou algumas das transformações que normalmente só
alcançaria dentro de algumas dezenas de milênios. Os
membros do exército dos mutantes são os precursores do
homem normal que surgirá dentro de uns dez mil anos. E
isso aconteceu na hora exata. Se não pudéssemos contar
com os mutantes, estaríamos à mercê dos DI.
Crest encarou Rhodan. Nos olhos avermelhados que se
viam por baixo da testa alta, ardia um fogo igual ao que
Perry já vira em outra oportunidade, quando falara com o
arcônida sobre o futuro da Terra e do império galáctico.
Lia-se nele uma expressão de admiração, alegria e
confiança, misturada com certa preocupação. Por trás dele
lia-se o saber imenso de uma raça antiguíssima, que
assistira à formação e à morte de vários sistemas solares.
— Nas últimas semanas fiquei pensando muito sobre
se o universo é governado pelo acaso ou pelo destino —
disse em tom tranquilo. — Quase chego a dar a primazia
ao destino. Como não deve ser imenso e inconcebível o ser
que move os fios...
Bell mudou o assunto, falando naquilo que mais o
comovia:
— O que está acontecendo em Nevada?
Perry Rhodan esboçou um sorriso de superioridade.
— Estamos colocando uma armadilha e esperamos que
os DI caiam nela. Se isso acontecer, e tudo indica que será
assim, saberemos dentro em breve se estaremos em
condições de repelir a invasão, ou se a batalha está
perdida. Tudo depende da exatidão da teoria de Ernst
Ellert.
— Acha que nossos teleportadores podem perseguir os
DI desmaterializados, desde que eles abandonem sua
vítima num estado de pânico?
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça em
direção a Crest.
— É isso mesmo. Só assim poderemos localizar a base
deles. O resto não será difícil. Talvez consigamos capturar
mesmo alguns DI autênticos, isto é, seres dessa espécie na
sua forma primitiva. Neste ponto Ellert teve uma ideia
formidável. Tudo depende do resultado da experiência que
será realizada em Nevada.
— Seria muita gentileza da sua parte — resmungou
Bell — se nos contasse o que deve acontecer em Nevada.
— Isso pode ser resumido em poucas palavras, meu
caro. Crest convém que também você preste muita
atenção. O que acontecerá é o seguinte...
* * *
O novo elemento reunia todas as qualidades que
poderiam fazer dele o combustível ideal para as naves
espaciais. No estado sólido ocupava um espaço muito
reduzido; era esta sua maior vantagem. Além disso, era
absolutamente seguro enquanto não fosse exposto a um
tipo de radiações inofensivas, que poderiam ser geradas a
qualquer momento por meio de instrumentos
extremamente simples. Uma vez atingido por essas
radiações, o elemento sofria modificações em sua estrutura
atômica, e estas dependiam da intensidade das radiações.
Na prática essas radiações desempenhavam uma espécie
de função catalítica, sem a qual o novo elemento não
passava de uma peça de matéria inútil.
As experiências ainda não haviam sido concluídas.
O professor Lehmann conseguira criar o novo
elemento, que era tão barato que uma viagem a Marte não
custaria mais que um passeio de bonde, abstraídas as
despesas de financiamento da nave. Com as radiações
podia-se liberar à vontade a quantidade exata de energia
que se tornasse necessária. Seria o tipo ideal de propulsão
à base da luz.
Evidentemente tudo não passava de teoria. Mas
Lehmann aferrara-se à ideia, e ninguém conseguiria
demovê-lo.
Hoje seria levada a efeito uma das últimas
experiências.
Li Shai-tung, na qualidade de enviado oficial de
Mercant, tinha livre acesso a todas as dependências do
campo de prova. Quem menos objeções tinha a fazer
contra isso era Lehmann, que sabia perfeitamente que, da
mesma forma que ele, Li também era um DI. Os invasores
pretendiam desencadear uma reação em cadeia através da
exposição excessiva do novo elemento às radiações, e essa
reação não poderia ser controlada, acabando por destruir
todo o centro de pesquisas. Após isso os dois DI
abandonariam os corpos de Lehmann e Li, que já não
teriam a menor utilidade para eles, e procurariam novas
vítimas.
Era justamente nesse ponto que deveria ocorrer uma
modificação.
Ellert afirmara que o DI só poderia ser perseguido
quando posto em fuga numa situação de pânico e
irreflexão, pois assim seu intelecto não teria tempo para
preparar-se para a fuga. Em sua opinião, a pressa excessiva
não daria ao DI oportunidade de levantar um anteparo
mental que lhe permitisse apagar a pista que conduzia para
outra dimensão. Tudo isso parecia confuso, mas não
deixava de ser convincente.
Era por isso que a catástrofe planejada por Li e
Lehmann teria de ser desencadeada com uma rapidez
fulminante, para ser detida com igual rapidez. Isso, porém,
apenas quando os dois DI se tivessem lançado na fuga
precipitada, que teriam de empreender se não quisessem
morrer juntamente com os corpos de que se haviam
apossado.
57
Quando Lehmann entrou na sala dos reatores em
companhia de Li, não suspeitou de nada. Os assistentes,
que eram seus conhecidos, cumprimentaram-no com toda
amabilidade e logo voltaram a dedicar-se aos seus
afazeres. Mal chegou a notar dois ou três elementos novos.
O que menos lhe chamou a atenção foi Ellert, o novo
eletricista que manipulava algumas chaves secundárias que
ficavam perto do gigantesco painel de comando. Também
Anne Sloane, a peça mais importante do plano, estava
postada nos fundos da sala, numa posição em que mal se
notava sua presença.
A pesada porta de chumbo, que constituía o único
acesso ao centro de reatores, fechou-se com um baque
surdo. Lehmann sabia que seria possível abri-la do lado de
dentro. Uma vez iniciada a reação em cadeia, haveria
tempo para colocar-se em segurança. Os dois DI só
pretendiam retornar aos corpos que lhes pertenciam
quando se encontrassem no recesso dos seus gabinetes.
O professor aproximou-se da câmara de chumbo,
acompanhado de Li e Marshall. Apontou para um bloco
metálico do tamanho de um tijolo, que emitia um brilho
suspeito atrás de uma lâmina de quartzo.
— Este é o novo elemento, cavalheiros. Acima da
câmara os senhores veem as antenas de saída das radiações
elétricas, que sofrem um desvio na parte inferior. Essas
radiações atravessam o novo elemento, provocando a
alteração de sua estrutura atômica. Ainda não estamos em
condições de utilizar plenamente a energia liberada, que se
transforma em calor. Esta escala registra a temperatura. No
interior da câmara de chumbo existe um revestimento
térmico, capaz de resistir a milhares de graus centígrados.
Bem, os senhores são leigos no assunto; não
compreenderão o progresso enorme representado por esta
peça singela de metal. A energia nela contida basta para
fazer com que uma nave espacial atravesse metade do
universo à velocidade da luz.
Lehmann aproximou-se do quadro de comando.
Lançou um olhar perscrutador sobre Ellert. Este, vestido
de capa branca, fez de conta que conhecia o professor há
muito tempo, mas sabia perfeitamente que um homem tão
importante não poderia lembrar-se de qualquer
funcionário. O mesmo pensamento devia ocupar o DI que
dominava o corpo de Lehmann.
— As instalações estão em ordem? — perguntou o
cientista.
— Foram testadas e encontradas em perfeitas
condições — respondeu Ellert, que só conhecia as funções
de uma das chaves, a que regulava o suprimento de
eletricidade, que por sua vez determinava a intensidade das
radiações.
— Muito bem. Ligue o mínimo.
A chave descansou no primeiro entalho.
Havia vinte entalhos. Ninguém se atreveria a utilizar a
posição máxima. Nem mesmo Lehmann. Nesse caso, a
transformação da estrutura atômica seria tão rápida que
provavelmente a câmara de chumbo derreteria assim que o
processo tivesse início.
Nada se modificou atrás da lâmina de quartzo. O
termômetro começou a subir. Lehmann acenou com a
cabeça. Parecia satisfeito.
— O elemento está gerando calor. A temperatura
começa a subir. A primeira posição seria suficiente para
suprir um continente de eletricidade por vários séculos. É
incrível!
Li permanecia calado. Por que falar? A comunicação
entre ele e Li ou melhor, entre os dois DI, realizava-se pelo
caminho do pensamento. John Marshall não teve a menor
dificuldade em examinar cautelosamente aqueles
pensamentos que iam e vinham de um lado a outro. Tinha
de agir com prudência, pois por enquanto não deveria
despertar nenhuma suspeita. Seus conhecimentos
científicos eram muito reduzidos para permitir-lhe que
compreendesse toda a extensão da experiência que estava
sendo realizada.
Mas entendeu a pergunta do DI que se abrigara em Li.
Em que posição começa a catástrofe?
Na posição sete, respondeu Lehmann por via
telepática. Falando em voz alta, disse:
— Técnico, coloque na segunda posição.
O plano estava à vista. Lehmann iria intensificando as
radiações, até que na posição sete tivesse início a
destruição lenta, mas, inevitável. Poderia sair calmamente
do laboratório em companhia de Li, a fim de realizar a
transferência para seu próprio corpo. No reator as energias
liberadas iniciariam a obra calamitosa.
Anne Sloane sabia que seu trabalho estava para
começar. Ellert, que continuava junto ao quadro de
comando, não podia ser distraído. Teria de concentrar-se
nos dois DI, tal qual John Marshall, a fim de persegui-los
na fuga precipitada. Ellert abandonaria o corpo, mas
permaneceria na dimensão do presente. John identificaria
o instante em que os DI resolvessem pôr-se em fuga.
Enquanto isso o homem que se encontrava fora da vista
dos outros se desmaterializaria para seguir os seres
estranhos, juntamente com os dois companheiros. Tako
Kakuta, o teleportador, encontrava-se atrás de um enorme
gerador e não tirava os olhos de Marshall, que lhe daria o
sinal convencionado.
Tudo daria certo, desde que não se tivessem esquecido
nenhum detalhe. Mas será que não tinham esquecido nada?
Ernst Ellert afastou-se ligeiramente do quadro de
chumbo.
Lehmann observava o termômetro. Nos seus olhos via-
se um brilho fanático. Já não se esforçava muito para
guardar as aparências. Li permanecia impassível.
— Coloque a chave na posição sete — disse Lehmann.
Estava na hora.
Anne Sloane aproximou-se um pouco. Seus olhos
grudaram-se na chave que fora manipulada por Ellert.
Devagar no início, mas logo depois num movimento cada
vez mais rápido, foi descendo, passou pela posição número
sete, para cair subitamente na posição final. Todas as
reservas de energia dos geradores atravessaram os
condutos, foram irradiadas pelas antenas e atravessaram o
novo elemento que voltou a captar a corrente, fazendo com
que reiniciasse seu ciclo. Anne sabia que esse processo
poderia desenvolver-se por vinte segundos. Só após teria
início uma reação irreversível em cadeia. Ninguém
escaparia a ela se o único caminho da salvação não fosse
utilizado em tempo.
Voltou-se e dirigiu os olhos para a pesada porta de
chumbo. A energia invisível de seu espírito atravessou o
metal e empurrou o trinco do lado de fora. Ninguém
poderia abrir a porta do lado de dentro. Todos se
encontravam presos num inferno que logo desencadearia
suas fúrias.
Restavam-lhes vinte segundos, nem um segundo a
mais.
O professor Lehmann virou-se num movimento
instantâneo. Por um instante perdeu o autocontrole,
58
quando viu que a chave deslizou para a posição vinte,
como que movida por mão invisível. Segundos preciosos
foram perdidos, antes que pudesse retirar as informações
necessárias que se encontravam armazenadas na memória.
Ficou sabendo que dispunha de vinte segundos. Mas antes
que pudesse saltar para junto do quadro de comando e
colocar a chave numa posição segura, o circuito elétrico
esfacelou-se sob o efeito da sobrecarga. Faíscas saltavam
e, formando raios fulminantes, passavam por cima dos
fusíveis destruídos. Lehmann, apavorado, recuou ao ver
que a chave se deformava derretida pelo calor imenso. O
cheiro acre da borracha queimada e do metal derretido
queimava-lhe o nariz. Um cheiro de ozônio enchia o ar.
Li permanecia imóvel. Palestrou apressadamente com
Lehmann que, todo confuso, não lhe dava atenção. Ainda
procurava a solução do enigma da chave deslocada por
uma mão invisível. Não chegou a qualquer resultado.
Levou algum tempo para compreender que só a fuga
precipitada poderia salvá-lo. Nem se lembrou de que ainda
poderia dispor de cinco segundos para retirar-se em boa
forma.
Não conseguiu abrir a pesada porta de chumbo.
Quinze segundos se tinham passado. A catástrofe
parecia inevitável.
Dezesseis segundos. Era tarde para abrir o caminho
que conduzia a uma nova dimensão. Os DI sabiam que não
lhes restava alternativos senão abandonar os corpos
humanos, se não quisessem perecer com eles. Retiraram-se
sem os necessários preparativos, transportando-se
violentamente para o mundo reservado aos intelectos
desmaterializados. Os corpos inanimados ficaram para
trás. Imobilizados, aguardaram que seus donos
retornassem. Mas isso só aconteceria no vigésimo primeiro
segundo. E então seria tarde.
John Marshall fez um sinal a Tako. O japonês
desmaterializou-se e desapareceu. Inseriu-se no fluxo
imaterial dos fugitivos, deixando-se conduzir a um destino
desconhecido. A perseguição foi mais fácil do que
acreditaria.
Dezessete segundos.
Anne Sloane concentrou-se na chave incandescente.
Empenhou todas as reservas de energia para recolocá-la na
posição inicial. Não teve êxito. Alguns pingos de metal
derretido haviam caído e endurecido. Sua força não foi
suficiente para vencer o obstáculo. Não compreendeu.
Sabia que seu espírito era capaz de mover toneladas, mas
viu-se obrigada a entregar os pontos diante de uma
chavezinha. O esforço fora excessivo; sentia-se esgotada.
Dezoito segundos.
— Ellert, olhe a chave. Não consigo movê-la.
Dezenove segundos. Um segundo separava-os da
eternidade.
Ellert agiu imediatamente. Saltou para junto do quadro
de comando e procurou forçar a chave com todo o peso de
seu corpo. Alguma coisa chiou; a pressão súbita rompeu os
metais fundidos. Num movimento leve a chave retornou à
posição zero. O circuito elétrico, cuja intensidade ia
diminuindo, encontrou um caminho mais fácil, que não o
obrigava a percorrer os condutos interrompidos em vários
pontos. A faísca elétrica branco-azulada desprendeu-se de
um ponto brilhante e desapareceu no corpo de Ellert.
O teletemporador caiu ao solo. O toco de seu braço
queimado espalhava um cheiro horrível.
A catástrofe fora evitada.
A chave voltara à posição zero antes que decorressem
vinte segundos.
No vigésimo primeiro segundo Lehmann e Li
começaram a mover-se. A vida retornou aos seus corpos.
Estupefatos, lançaram os olhos em torno. Maior foi o
espanto de Li, que nunca estivera num centro de pesquisas
como aquele. Reconheceu John Marshall e Anne Sloane.
Logo viu Ernst Ellert, que jazia inerme. Abaixou-se
instintivamente, embora não compreendesse nada do que
estava acontecendo.
A reação de Lehmann foi diferente.
Não sabia explicar como tinha sido transportado tão de
repente de junto do seu tabuleiro de xadrez para aquele
lugar, mas reconheceu o local em que costumava trabalhar.
Tinha conhecimento da experiência que preparara por
tanto tempo. E conhecia John Marshall.
— O que houve? — perguntou com a voz tranquila. —
Não me lembro...
— Deixemos isso para mais tarde, professor —
interrompeu John. — Aconteceu muita coisa. Você saberá.
No momento temos coisa mais importante a fazer. Existe
algum perigo, Lehmann? O bloco que se encontra sob as
antenas ficou exposto durante dezenove segundos às
radiações de intensidade máxima. Isso dará origem a uma
reação em cadeia?
Lehmann fitou-o estupefato.
— Dezenove segundos na posição vinte? Quem deu
ordens para fazer uma coisa dessas?
— Responda à minha pergunta, professor.
Ainda estarrecido, Lehmann sacudiu a cabeça.
— O limite de estabilidade fica em pelo menos vinte
segundos.
— Muito bem. Nesse caso temos tempo para cuidar de
Ellert. Anne, vá buscar um médico.
O Dr. Fleet parecia ser dotado dum sexto sentido. Mal
Anne Sloane afastou o fecho da porta de chumbo, o
médico precipitou-se para o interior da sala dos reatores.
— Dizem que os instrumentos de medição registraram
grandes oscilações da corrente...
— Um dos homens foi imprudente — interrompeu-o
John Marshall. — A corrente passou pelo seu corpo.
Ellert não se mexia mais. O teletemporador jazia
estendido no chão. Só agora notaram que seu braço direito
fora destruído pelas queimaduras até a altura do cotovelo.
A lesão não era mortal. A não ser que o choque
elétrico...
O Dr. Fleet inclinou-se sobre Ellert e começou a
examiná-lo. John explicou ao professor estupefato o que
havia ocorrido. Li escutava com uma expressão de dúvida
no rosto. Não compreendia mais nada.
Anne Sloane encontrava-se perto do Dr. Fleet, numa
atitude de expectativa. Sentia-se responsável pelo que
acontecera a Ellert. Se não tivesse falhado, tudo teria sido
diferente. Ainda não sabia explicar por que sua energia
telecinética não conseguira mover a chave. Será que se
distraíra por causa do nervosismo? O Dr. Fleet ergueu-se.
— É estranho! — resmungou com a voz entrecortada.
— Este homem está vivo.
John Marshall voltou-se. Anne Sloane disse:
— Está vivo. Graças a Deus! Não vejo nada de
estranho nisso.
— Foram dez mil volts! — ponderou Lehmann. Fitou o
corpo imóvel de Ellert. — É muito estranho que tenha
resistido a isso.
O Dr. Fleet sacudiu a cabeça.
— Você não compreendeu bem. O homem está vivo,
59
isso é uma verdade biológica. Mas sob o ponto de vista
biológico também está morto.
— Um homem não pode estar vivo e morto ao mesmo
tempo — disse o professor Lehmann, que sentiu despertar
o interesse científico, que lhe fez esquecer o que havia
acontecido. — Isso seria um paradoxo.
— Pelas leis da lógica você tem razão — reconheceu o
médico. Percebia-se que procurava disfarçar a confusão
em que se encontrava. — Mas será que aquilo que está
acontecendo atualmente ainda tem algo a ver com a
lógica? Estes invasores podem ser conciliados com ela?
Não vêm de um universo que subverte nossas leis
naturais? Não estou nada admirado em ter diante de mim
um morto vivo.
— O que lhe deu essa ideia?
O Dr. Fleet apontou para Ernst Ellert, que continuava
imóvel no chão.
— Este homem não respira e as pulsações de seu
coração cessaram. O sangue está parado em suas veias. Há
quanto tempo aconteceu?
John olhou para o relógio.
— Faz cerca de dez minutos.
— A temperatura do sangue já deveria ter baixado.
Mas ainda não aconteceu nada disso. Aposto que amanhã a
temperatura de seu corpo ainda será de trinta e sete graus,
talvez um pouquinho menos.
— Mas isso é...
— Sinto não poder dar-lhe qualquer explicação. Só
posso constatar o fato. Ellert não está morto, mas também
não está vivo. Parece que seu espírito abandonou o corpo.
John Marshall olhou para Anne Sloane, entre os
presentes, só ela, Li e ele mesmo conheciam as condições
de Ellert. Quem sabe se o teleportador não efetuara um
salto no tempo, a fim de salvar a vida. Quando retornasse...
— Acho que Perry Rhodan dará a última palavra —
interveio Anne Sloane. — Avisarei a ele imediatamente do
que ocorreu.
O professor Lehmann tirou os olhos de Ellert.
— O que houve com os DI que fugiram dos nossos
corpos?
— Logo saberemos — respondeu John Marshall e saiu
em companhia de Li Shai-tung e Anne Sloane. O Dr. Fleet
permaneceu em companhia do professor Lehmann, que
estava muito indeciso.
V
Tako Kakuta foi arrastado num verdadeiro torvelinho.
Sentiu a corrente em que se encontrava. Era a primeira
vez que tomava consciência do estado que das outras vezes
só durara uma fração de segundo, e que transferia seu
corpo desmaterializado de um lugar para outro. Não via
nem ouvia nada, apenas sentia.
Talvez estivesse escuro em torno dele, e por isso não
enxergasse. Não teve muito tempo para refletir sobre o
estranho fenômeno, pois voltou a materializar-se.
Pelos seus cálculos tinham-se passado cinco segundos.
Ainda era escuro, mas sentia o corpo. Encontrava-se
em meio a uma escuridão que se ia desvanecendo aos
poucos. O brilho débil parecia vir das paredes que o
cercavam. Devia encontrar-se num salão. A temperatura
era fresca.
Alguma coisa se moveu bem diante de seus pés. Seus
olhos, que já se haviam acostumado à semiescuridão,
reconheceram os objetos de formato alongado que jaziam
sobre o chão de rocha.
Levou alguns segundos até que a certeza o penetrasse
como um choque.
O que via diante dele era a longa fileira dos corpos sem
espíritos dos membros do exército de invasão. Só dois
deles deviam ter sido reativados, os que pertenciam aos
seres que ainda há pouco ocupavam os corpos do professor
Lehmann e do tenente Li.
Não havia um segundo a perder.
Tako desmaterializou-se e logo se viu em meio a uma
planície pedregosa. Os cumes do Himalaia pareciam
cumprimentá-lo de longe. Procurou avaliar a direção do
salto bem calculado que acabara de dar. O salão em que se
encontravam os corpos dos DI ficava a cinco quilômetros
dali, no rumo exato do sul. Naquele ponto havia um monte
muito alto, mas bastante maciço.
Era uma caverna natural. Bem que poderia ter
imaginado.
Pôs-se a manipular alguma coisa no pulso. Alguns
segundos depois ele ouviu a voz de Rhodan:
— Então nossa suposição era exata. Fica no Tibet.
Qual é sua posição, Tako? Encontro-me na Good Hope, a
dez quilômetros acima do Himalaia.
— Não sei Rhodan. Não poderia usar o
radiogoniômetro?
— Um instante. Bell está ligando as telas. Dentro de
poucos segundos deveremos localizá-lo. Encontrou a base?
— Tudo saiu de acordo com as previsões de Ellert. Por
que ele não veio comigo?
Depois de um breve silêncio Perry falou:
— Houve um imprevisto. Ellert sofreu uma forte
descarga elétrica. Está morto. Seu corpo está a caminho da
base de Gobi.
Tako não respondeu. Esperou. Finalmente Perry falou:
— Talvez tenha acontecido coisa diferente, e Ellert
nem esteja morto. Ainda não sabemos. Bell acaba de
localizar você. Estamos a duzentos quilômetros daí. Nós,
nus encontraremos em poucos minutos.
O japonês deu alguns passos e sentou num grande
bloco de pedra. O crepúsculo ia descendo no poente; dali a
pouco escureceria. Não sabia quais eram os planos de
Perry Rhodan. A defesa contra a invasão transformara-se
num empreendimento mundial. Um fator integrava-se no
outro, e ninguém sabia qual era o papel que
60
desempenhava. Só um homem possuía a visão global. Era
Perry Rhodan.
A gigantesca nave pousou praticamente sem ruído. O
raio antigravitacional incidiu em Tako e elevou-o antes
que tivesse tempo de se teleportar para o interior da nave.
Numa espécie de jocosidade permitiu que Bell o
transportasse para a sala de comando por esse meio
convencional. Perry Rhodan já o esperava.
— Graças a você localizamos a base do inimigo, Tako.
Agora só falta colocá-la fora de combate. Thora concordou
em prestar-nos ajuda irrestrita. Ela sente um medo terrível
dos Deformadores Individuais. Compreendo por quê. Crest
está em sua companhia, na sala de comando de fogo. Eu
assumi a direção e a coordenação. Onde fica a caverna?
O japonês apontou para a tela.
— É naquele morro achatado. Ficam a cerca de uns
vinte metros abaixo da superfície.
— Uma caverna natural no Himalaia! — disse Perry
com um sorriso amargo. — Logo devia ter pensado nisso.
Esses tipos só poderiam ter escolhido um lugar desses.
A Good Hope ergueu-se, livre da força da gravidade, e
flutuou em direção ao morro. Parou a pouca altura acima
dele. Perry transmitiu algumas instruções a Thora. Depois
se dirigiu a Tako e Bell, que se encontravam na soleira da
porta, numa atitude de expectativa.
— Dentro de trinta segundos iniciaremos o ataque.
Thora evaporará a parte do morro que fica acima da
caverna. Se tivermos sorte localizaremos a entrada, senão
os cadáveres dos DI serão queimados. Gostaria de pegar
alguns deles vivos.
Tako sacudiu a cabeça.
— Isso não é possível. Eles se apossariam
imediatamente do nosso corpo.
Perry Rhodan concluiu o conselho de guerra com estas
palavras:
— Se utilizar o projetor mental, não.
O projetor mental era uma das armas mais inofensivas
dos arcônidas. Tratava-se de um aparelho capaz de impor a
qualquer homem a vontade de seu possuidor e de
transmitir-lhe ordens pós-hipnóticas, que são executadas
sem a menor resistência. Perry fazia votos de que seus
efeitos também atingissem os DI.
Subitamente uma forte ventania desabou sobre o cume
do morro. As massas de ar frio precipitaram-se de todos os
lados para a zona de baixa pressão gerada pelo calor,
sendo arrastadas para cima. A pedra nua desmanchou-se
em gases invisíveis e subiu para o alto. A eficácia dos
raios energéticos era tamanha que a transição do estado
sólido para o gasoso se fazia com tal rapidez que não havia
tempo de passar pelo estado líquido.
A uma profundidade de vinte metros surgiu uma
abertura.
— É o acesso à caverna! — exclamou Perry e mandou
cessar o ataque de radiações. A nave desceu. Pousou.
Alguns segundos depois a comporta abriu-se e Perry, Bell,
Crest e Thora correram para fora. Tako já os esperava.
Preferira recorrer ao transporte mais confortável, o da
teleportação.
A limitação do campo de ação do desagregador
energético era tão nítida que já não se sentia quase nada do
calor. O japonês desapareceu por um segundo e retornou.
— É aqui — anunciou. — A poucos metros de
distância. Apresse-se Rhodan. Dois desses seres começam
a se mover. São horríveis.
Perry Rhodan correu na frente dos outros. O bastão
prateado do projetor mental reluzia em sua mão. Abaixou-
se para penetrar na abertura e continuou a avançar. Os
outros o seguiram mais devagar. Especialmente Bell sentiu
dificuldade em evitar que seus ombros largos colidissem
com a rocha. Crest e Thora mantiveram-se mais atrás.
De repente a caverna abriu-se diante de Perry. Seus
olhos logo se acostumaram à semiescuridão. As paredes
emitiam uma ligeira fosforescência. Sentiu-se uma
corrente de ar, vinda não se sabe de onde. Devia haver
outra entrada para a caverna.
Bell parou pouco atrás de Perry. Acendeu a lanterna
que trazia na mão e iluminou a grande caverna. A primeira
coisa que viram foi uma fileira de corpos imóveis, pouco
maiores que os dos homens, mas completamente
diferentes. O formato de inseto era inconfundível.
De repente Bell soltou um grito de pavor. A mão que
segurava a lanterna começou a tremer.
Perry teve de esforçar-se para superar o choque no
espaço de poucos segundos. Estava preparado para um
encontro pessoal com os Deformadores Individuais, mas a
realidade era muito pior que a imaginação.
Bem à frente dele, a menos de dois metros de distância,
estavam dois dos monstros extraterrenos, cujo objetivo era
a conquista da Terra. Não, nem era isso. Destruiriam a
Terra sem a menor contemplação, já que não precisavam
dela. Simplesmente não toleravam a existência de qualquer
outra raça. Seus atos eram comandados pelo instinto da
destruição.
As duas feras tinham o aspecto de gigantescas vespas.
Havia o estreitamento na região da cintura, e os seis
membros também se encontravam presentes. Dois deles
serviam de pernas, pois mantinham a posição ereta. Os
grandes olhos emitiam um brilho traiçoeiro. Duas antenas
brilhantes executavam movimentos nervosos por cima da
cabeça pontuda. A couraça que cobria o peito parecia dura
e firme.
Perry não refletiu.
Dirigiu o projetor mental contra os dois monstros e
ordenou-lhes que se pusessem de costas para ele. Esperava
que a tentativa desse êxito, mas não pôde deixar de
suspirar aliviado quando notou que os dois DI executaram
a ordem sem hesitar. Isso significava que sua estrutura
cerebral era semelhante à dos homens. Essa circunstância
representava o fator decisivo na guerra entre os homens e
os Deformadores Individuais.
— Saiam da caverna e obedeçam às ordens de Tako
Kakuta — continuou, transmitindo logo suas instruções ao
japonês. — Esperem lá fora até que eu chegue.
Quando Tako passou perto de Bell com os dois
inimigos reduzidos à impotência, o engenheiro geralmente
destemido não pôde evitar um calafrio. Teve a impressão
de que a morte acabara de roçar em seu corpo.
— Nunca conseguimos aproximar-nos tanto destes
seres — disse Crest numa débil tentativa de justificar os
fracassos de sua raça na luta contra os DI. — Nunca
acreditamos que o projetor mental pudesse agir sobre eles.
— Pois eu acreditei, mas não sabia — disse Perry,
ressaltando uma diferença fundamental entre os terrenos e
os arcônidas. — A transformação da crença em saber
exige certa dose de energia, de que os arcônidas não
dispõem mais.
Thora lançou um olhar de nojo para a fileira de corpos
imóveis. O radiador energético tremia em sua mão. Perry
adivinhou suas intenções.
— Ainda não, Thora — advertiu. — Com isso
61
criaríamos um perigo tremendo. Se destruirmos estes
corpos, em número de vinte e dois, tangeremos vinte e
dois homens desmaterializados para o nada. Só poderão
retornar aos seus corpos se os DI os abandonarem. E estes
nunca fariam isso, pois não teriam outro lugar para
abrigar-se. Só poderemos destruir o corpo de um DI
quando seu espírito tiver retornado a ele. Quando isso
acontecer, não deveremos perder tempo.
— Vinte e dois homens? — respondeu Thora,
esticando as palavras. — Será que uma batalha ganha não
vale vinte e dois homens?
— Da minha parte não hesitaria em sacrificá-los —
respondeu Perry em tom soturno. — Mas não se trata
disso. E não há necessidade de praticarmos um ato dessa
espécie. Quero impedir que vinte e dois DI sem corpo
façam das suas sobre a Terra. Compreendeu? Alguém deve
ficar aqui, para observar o retorno dos DI. Assim que
perceber que um destes corpos se move, deve destruí-lo.
Thora confirmou com um lento aceno de cabeça.
Estava compreendendo. A expressão de nojo apagou-se
em seus olhos, sendo substituída por algo diferente, que
Perry já havia observado nela. Era uma espécie de
admiração e respeito.
“Respeito por quem?”, perguntou Perry de si para si.
Dele mesmo ou da humanidade? Isso seria um progresso
enorme, muito maior que aquele representado pela batalha
ganha contra os invasores. Mas era possível que a luz
pouco intensa da caverna produzisse uma ilusão. De
qualquer maneira era bem possível que Thora modificasse
sua opinião. Afinal, a retificação de um erro constitui
privilégio das criaturas inteligentes, e não havia dúvida de
que Thora era inteligente.
— Quem vai ficar aqui? — perguntou em tom
hesitante.
Perry sorriu.
— Acho que Bell seria o homem indicado.
Não pôde prosseguir. Bell soltou um grito apavorante e
apontou para um dos vultos que começava a mover-se. O
ser monstruoso ergueu-se ligeiramente e seus olhos
brilhantes lançaram um olhar inexpressivo para a luz
ofuscante da lanterna trêmula de Bell. Perry tocou no
braço de Thora.
— Se desejar pode destruí-lo, Thora. Lembre-se de que
os DI são inimigos mortais de sua raça. Se não
conseguirmos detê-los, acabarão penetrando em todo o
império dos arcônidas para derrubá-los de sua posição de
mando. Não hesite em matar esse monstro. Há poucos
minutos você não desejava outra coisa.
Num gesto lento a arcônida ergueu a arma e dirigiu-a
para a vespa gigante cujos olhos negros fitavam a luz com
uma expressão estúpida. A visão transmitia tanto pavor e
perigo que Thora não demorou em transformar sua
intenção em realidade.
O raio ligeiramente violeta da arma, que não fora
regulada para a potência plena, atingiu o corpo do
monstro. A dor súbita arrancou o DI da letargia inicial.
Mas qualquer iniciativa teria de vir tarde. O monstro nem
teve tempo de transmitir uma mensagem de advertência à
nave oval estacionada além da atmosfera terrestre.
Um furo incandescente surgiu na couraça do peito e o
corpo insetiforme desabou. Thora baixou o radiador.
— Então? — perguntou Perry em tom indiferente.
— Foi... foi horrível — confessou Thora, entregando a
arma a Perry. — Não conseguiria fazer isso mais uma vez.
— Pois isso terá de ser feito mais vinte e uma vezes —
disse Perry, e passou a arma a Bell, que a recebeu com um
visível desagrado. — Bell, você sabe o que tem que fazer.
— Não fico aqui sozinho! — protestou Bell.
— Tako ficará com você — tranquilizou-o Perry.
— É um consolo muito fraco — resmungou Bell. —
Quando ele sentir o chão esquentar embaixo dos pés, dará
um dos seus pulos para pôr-se do lado de fora.
Pegou o radiador com uma cara furiosa. Na outra mão
segurou a lanterna, deixando a luz deslizar sobre os insetos
imóveis.
— Nossa missão ainda não está concluída — disse
Perry, antes de sair da caverna. — Ainda existem pelo
menos vinte e um DI, todos investidos nos corpos de
homens influentes, que estão empenhados em atirar a
Terra no caos e na destruição. Temos de localizá-los. Uma
vez que conhecemos todos, não haverá problema. Acho
que poderei vir apanhá-lo hoje de noite ou amanhã de
manhã, Bell. Vou transmitir instruções a Mercant e ao
exército dos mutantes. Divirta-se! Tako o ajudará a
espantar o tédio.
* * * No instante em que Ernest Ellert tocou a chave fatídica,
uma coisa estranha aconteceu. O mais estranho foi que
percebeu tudo, pois não perdeu a consciência por um
segundo sequer.
Uma dor terrível atravessou seu corpo, mas logo
passou. A sala mergulhou num vazio sem fim. Reflexos
coloridos rodeavam-no, aproximando-se e afastando-se.
Sons indefinidos, abstratos e pouco melódicos, chegaram-
lhe aos ouvidos — ou aquilo que os substituía. As
impressões sucediam-se numa sequencia rítmica, como se
ele tivesse penetrado nas pulsações do universo.
Acima e abaixo dele só existia o vazio. Não encontrou
nada em que pudesse apoiar-se. Teve a impressão de que a
grande distância passava um sol cercado por planetas
turbilhonantes. Vias lácteas giravam lentamente em torno
do seu próprio eixo e desapareciam no espaço.
Numa velocidade inconcebível Ernst Ellert atravessava
o fluxo do tempo. Perdera todo o controle sobre o mesmo.
Numa queda desabalada precipitou-se no infinito, que
nada tinha a ver com a matéria. O presente ficou atrás dele
tal qual a Terra fica atrás de um raio de radar que corre
para o espaço. Apenas a uma velocidade muito maior.
Não havia nada que pudesse deter a queda para o
futuro.
Subitamente sentiu chão firme sob os pés. A
materialização foi tão abrupta e inesperada que caiu ao
solo e perdeu a consciência. Nunca saberia dizer por
quanto tempo ficou estendido. Mas ao acordar sentiu seu
corpo. Teria voltado ao presente, ou será que transportara
o corpo para o futuro? Logo abandonou a indagação.
Milhões de anos deviam ter decorrido, pois assistira à
formação e à destruição de segmentos completos do
universo. Nunca poderia viver tanto.
Mas possuía um corpo.
Sentiu a pelica sedosa e assustou-se. Quando resolveu
abrir os olhos, encontrou a confirmação das suposições
mais ousadas. Seu espírito, atirado para o futuro mais
longínquo, encontrara um novo abrigo. Mas não fora
acolhido num corpo humano.
O monstro possuía quatro pernas e um grau reduzido
de inteligência, que cabia facilmente naquele crânio, ao
lado do intelecto de Ellert. Um pelo macio cobria o corpo.
“Sou um urso”, pensou Ellert, todo confuso. Mas logo
reconheceu seu engano.
62
Subitamente uma voz fez-se ouvir dentro dele.
— Sou Gorx — disse a voz em tom apático. — Quem
é você?
Ellert levou um tremendo susto, mas seu pensamento
logo respondeu:
— Sou Ellert. Você não se admira de me ver aqui?
— Por quê? Não é a primeira vez que recebemos a
visita de gente vinda do universo.
— Onde estou?
— Nosso mundo é chamado de Gorx — foi à resposta.
— E como é o nome do sol de vocês?
— Gorx.
Ellert não compreendia.
— Aqui tudo se chama de Gorx?
— Tudo se chama de Gorx, porque tudo é Gorx.
Esta explicação levou Ellert à beira da loucura. Como
poderia saber para onde tinha sido tangido pelo destino?
Ou seria esta a Terra que existiria dentro de milhões de
anos? Devia apurar ao menos isso. Mas desistiu antes de
tentar. Sabia que o choque produzido pela morte orgânica
não o tinha atirado apenas através da dimensão do tempo,
mas também através do espaço.
Concentrou-se e abandonou o corpo de Gorx.
Viu abaixo de si um ser desajeitado que rastejava sobre
o chão granítico. Na parede vertical da rocha havia uma
entrada negra que dava para o interior de uma caverna.
Ali não obteria resposta às suas indagações. Ali não!
Voltou a concentrar-se. O mundo desapareceu aos seus
pés, cedendo lugar ao infinito. Voltou a precipitar-se pela
torrente do tempo, desta vez para trás. Quando parou,
flutuava no nada.
Como poderia orientar-se?
Não havia nenhum ponto de referência. Não passava de
uma minúscula gota no oceano, e deveria encontrar um
ponto bem definido em qualquer parte do litoral de um dos
seis continentes, e isso num instante determinado, medido
em termos de segundos.
O que importava não era tanto a questão de onde se
encontrava, mas a pergunta angustiante de quando se
encontrava.
E não havia nenhuma resposta a esta pergunta.
Talvez um dia a eternidade lhe desse essa resposta.
E foi assim que Ernest Ellert, o prisioneiro da
eternidade, começou sua busca de milhões de anos, à
procura do presente.
VI
Os robôs tinham terminado o trabalho. O poço de
cinqüenta metros de profundidade penetrava no solo
pedregoso do deserto de Gobi. A matéria endurecida nas
paredes do poço, que tinha a consistência do aço,
protegeria o mesmo para todo o sempre contra a ação das
intempéries. O lençol subterrâneo de água jamais
penetraria no mesmo. No fundo do poço Rhodan mandou
escavar uma câmara retangular, onde foram armazenadas
reservas de oxigênio, material de informações, instruções e
câmaras reservatórios de energia. Um dispositivo
automático de alarma garantiria a pronta atuação em caso
de necessidade.
No centro da câmara havia um leito. Um dispositivo de
alarma ligado a ele tinha o aspecto de um mecanismo
complicado. Esse mecanismo, uma vez ligado, entraria em
ação assim que no interior da câmara um homem
começasse a respirar.
Esse homem era Ernst Ellert.
Colocaram-no sob uma série de instrumentos
eletrônicos. Grampos metálicos envolviam os tornozelos e
o pulso esquerdo. Um capacete cobria a cabeça. Perto da
sua boca havia um tipo de espelho conectado com células
anímicas. Qualquer sopro da boca bastaria para acionar
todo o mecanismo.
Rhodan erigira um mausoléu para Ellert como jamais
homem algum o havia recebido. Mas desconfiava de que
Ellert não era um simples mortal na acepção comum do
termo. Bem no seu íntimo nutria a convicção de que algum
dia, num futuro próximo ou distante, ainda se encontraria
com o teletemporador.
Era bem possível que Ellert retornasse
espontaneamente. Se isso acontecesse, encontraria seu
corpo intacto. Tanto o Dr. Fleet como o Dr. Manoli
afirmavam que esse corpo jamais entraria em
decomposição. Era verdade que todas as funções daquele
organismo haviam cessado, mas a temperatura se mantinha
constante ao nível de vinte e cinco graus centígrados. Não
baixou mais que isso.
Depois de lançar um último olhar sobre Ellert, que
jazia imóvel, Rhodan mandou que a câmara funerária fosse
fechada. Dez minutos depois o poço encheu-se de
concreto, que logo endureceu. Não havia nada neste
mundo que pudesse perturbar o repouso do morto. Nada a
não ser o dispositivo aparentemente inofensivo preso ao
teto da câmara, pronto para ser acionado a qualquer
momento. Se Ellert despertasse, poderia libertar-se dentro
de meia hora. O que encontraria quando isso acontecesse?
Uma Terra que descrevesse sua órbita nas proximidades de
um sol rubro no qual poderia precipitar-se? Ou um planeta
no qual uma invasão do espaço houvesse eliminado toda
forma de vida?
Era possível que jamais houvesse uma resposta.
Com o rosto pensativo, Perry Rhodan contemplou os
robôs que colocaram um bloco em forma de pirâmide no
lugar em que se encontrava o túmulo. Lá no horizonte
brilhava a esfera gigantesca da Good Hope.
* * * Quando Bell chegou com seu planador a Gobi City,
nome que dava à base, suas feições eram sombrias e
fechadas. Nas últimas vinte e quatro horas extinguira a
vida de vinte e um seres. Procurava tranquilizar sua
consciência, lembrando que não se tratava de vidas
humanas. Mas eram vidas. Teria o direito de destruí-los?
Tivera tempo de discutir o assunto com Tako, mas não
chegaram a qualquer conclusão definida. Sem dúvida
haviam agido em legítima defesa. Se não tivessem
destruído rapidamente os DI que retornavam ao seu corpo,
eles teriam alarmado a nave oval que realizava evoluções
bem acima da Terra. Ou então se teriam apossado dele e
de Tako.
Rhodan não tinha razão. Não convinha usar a menor
contemplação, e a mesma se tornaria muito perigosa. Ao
atacarem a Terra os invasores assumiram um risco. Uma
vez que foram derrotados, deviam suportar as
consequências. Nem por isso teriam que desistir da luta.
A nave oval causava preocupações a Bell. Perry
Rhodan tinha sua opinião a respeito:
— Com o projetor mental consegui reduzir os
prisioneiros a um estado de sono hipnótico. Manoli e
Haggard examinaram-nos. Pelo que soube os dois médicos
63
descobriram diferenças extraordinárias em relação ao
corpo humano. Os DI não conhecem o uso da língua no
sentido humano.
São telepatas. Uma parte considerável de seu cérebro
consiste num complicado emissor e receptor orgânico.
Receamos que esteja em condições de manter contato a
distância de muitos anos-luz.
— Conseguiu falar com eles? Em sentido figurado,
quero dizer.
— Consegui manter contato com esses seres através de
Marshall.
— Qual foi o resultado? — perguntou Bell em tom de
expectativa.
— Não conseguimos muita coisa — respondeu Perry.
— Eles são estúpidos. Só o projetor mental fez com que
relatassem algo, mas não poderíamos descobrir mais do
que eles sabem. Pretendiam destruir a Terra. É isso
mesmo: tinham a intenção de destruir nosso planeta. Não
têm qualquer interesse político ou econômico por nós, e
muito menos foram guiados por um motivo desse tipo.
Apenas não toleram quem quer que seja ao seu lado. É
uma concepção muito simples e drástica, não é? Não
precisamos carregar nenhum escrúpulo moral se
resolvermos golpear com a mesma violência. Serão eles ou
nós, a questão é esta.
— Mais alguma coisa?
— Fiz com que se colocassem em contato com o
comandante de sua nave, evidentemente sob uma
vigilância contínua, para que o informassem sobre a
invasão malograda. Marshall inseriu-se na conversa
telepática e entendeu todos os detalhes. O comandante
ordenou-lhes que se libertassem imediatamente. Quando
lhe disseram que isso era impossível em virtude da
influência hipnótica a que estavam submetidos, ordenou-
lhes que se suicidassem. Naturalmente impedi isso através
de uma contraordem imediata. Dessa forma ainda consegui
descobrir que a nave deles pousou em algum ponto na Lua
e pretende permanecer por lá. Os DI aguardam reforços.
Acho que seria inútil procurá-los na Lua. Se tiverem o
cuidado de não se expor, nunca os encontraremos. Mas
jamais devemos reduzir nossa vigilância. De qualquer
maneira, acredito que por enquanto eles nos deixarão em
paz.
— Será a calma antes da tempestade — ponderou Bell.
Evidentemente não estava satisfeito com o resultado da
batalha. No seu entender a vitória não fora completa. —
Um belo dia ajustarão contas conosco.
— Até lá teremos aperfeiçoado nossas armas
defensivas e apurado nossos métodos de luta. Não se
preocupe Bell. Ellert apontou-nos o caminho certo de lidar
com eles. Antes de tudo, devemos observar esta regra:
quem encontrar um DI na sua forma natural deverá matá-
lo imediatamente.
Bell inclinou a cabeça.
— Quem vai matar os dois prisioneiros?
Perry Rhodan deu um sorriso indiferente.
— Usei o projetor mental para evitar a execução da
última ordem do comandante. Assim que terminou o
interrogatório, libertei os dois.
— E então?
— Executaram prontamente a ordem de seu
comandante. Sabe que num ponto têm uma semelhança
extraordinária com as vespas? Possuem um ferrão muito
venenoso...
* * *
Mercant só abandonava sua fortaleza subterrânea da
Groenlândia em caso de necessidade extrema, e isso
mesmo a contragosto. Geralmente a saída daquele abrigo
seguro prenunciava acontecimentos bastante
desagradáveis.
Hoje o caso era diferente. Ao entrar no avião pequeno,
mas muito veloz e transmitir suas instruções ao piloto,
tinha a impressão de estar partindo para uma viagem de
férias. Esse sentimento não o abandonou quando andou
pela Quinta Avenida de Nova Iorque na direção norte e
parou em meio ao torvelinho de gente, para contemplar o
arranha-céu de vinte e dois andares que se encontrava do
lado oposto da rua.
Entre o sétimo e o nono andar viam-se três letras
gigantescas, G, C e C. Então a sede da General Cosmic
Company ficava atrás dessas janelas? Se quisesse ser
sincero consigo mesmo, Mercant teria de reconhecer que
se sentia decepcionado. Esperava que Rhodan ao menos já
tivesse adquirido o edifício inteiro. Bem, talvez seus
conhecimentos em questões de negócios fossem muito
reduzidos para que pudesse formular qualquer juízo a este
respeito.
No elevador a sensação de férias foi substituída por
uma pressão desagradável no estômago. Deu-se conta de
que mais uma vez teria de carregar a responsabilidade em
dois ombros diferentes. Bem no íntimo sentia-se ligado aos
princípios e objetivos de Perry Rhodan, mas seu dever
profissional obrigava-o a cumprir a missão que lhe fora
confiada pelo governo de seu país, fazendo uma visita à
GCC, que correspondia a um ato de espionagem.
Quando disse seu nome à secretária Lawrence, o brilho
amável que surgiu nos olhos da jovem quase o fez vacilar
na execução do seu projeto. Mas logo se lembrou de que o
bom êxito do empreendimento só dependia dele. Se não
gostasse ou alguma coisa o contrariasse, diria a verdade a
Homer G. Adams, ou de preferência ao próprio Rhodan.
O diretor da poderosa empresa era um homem magro e
pequeno, que recebeu Mercant com uma cortesia extrema.
A essa hora ninguém desconfiaria de que ele saíra
recentemente de uma prisão inglesa, onde fora parar em
virtude das enormes falcatruas que praticou. Era o que
dizia a sentença condenatória.
Mercant apertou a mão de Homer e sentou na poltrona
que este lhe ofereceu. Aceitou o charuto e agradeceu,
embora detestasse charutos. Homer reclinou-se
confortavelmente.
— O que me dá o prazer dessa visita inesperada,
Mercant? Foi o chefe que o enviou?
São três coisas ao mesmo tempo, pensou Mercant,
admirando a formulação hábil que Adams sabia dar às
perguntas. De início perguntara sobre o motivo da visita.
Ao mesmo tempo Homer exprimiu sua estranheza porque
Mercant não se fizera anunciar em tempo. Por fim havia
uma pergunta-armadilha: se Rhodan estava a par do
encontro. Era claro que Rhodan teria avisado Homer se
tivesse conhecimento da visita. Mercant sentiu que teria de
usar muita cautela para não cair em uma armadilha.
— Rhodan não sabe que estou aqui — disse,
mantendo-se fiel à verdade. — Vim a pedido do governo
de meu país. Gostaria de receber algumas informações. —
Era conveniente mostrar logo as cartas. Afinal, o governo
do Bloco Ocidental e Perry Rhodan já não se encontravam
em estado de guerra. — Trata-se da construção da frota
espacial conjunta.
Homer ajustou os óculos de aros de ouro, que lhe
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davam um aspecto grotesco e antiquado.
— A frota espacial? Acho que o tema já foi vasculhado
pelos peritos. Para ser franco, não entendo muito do
assunto. Só estou interessado nos aspectos financeiros do
projeto.
— Não vim para importuná-lo com perguntas sobre as
minúcias do mecanismo propulsor — disse Mercant com
um sorriso condescendente. — Este ponto não me
interessa, porque sobre essa matéria devo entender tanto
quanto você. Como sabe, nosso governo contribuiu com a
importância de dezoito bilhões de dólares para o
financiamento das fases iniciais do projeto. Em quanto
importou a contribuição dos outros governos?
Homer ergueu as sobrancelhas.
— O capital total atinge a cifra de setenta bilhões de
dólares — disse no tom de quem fala na importância de
cinquenta centavos.
Mercant não conseguiu disfarçar o espanto.
— Tanto? — disse em tom admirado. — Não
esperávamos.
— Eu também não esperava — confessou Homer sem
rodeios. — O fato é que a execução do projeto já foi
iniciada. Em todo mundo estão surgindo novas usinas e
centros de produção. Nossos homens trabalham dia e noite
nos escritórios. E ao falar em nossos homens refiro-me aos
homens do Ocidente, do Oriente e da Ásia. Pela primeira
vez na história os habitantes de nosso planeta estão
empenhados na solução de um problema comum. A
invasão dos insetos, que acaba de ser repelida, deixou
patente a importância da cooperação de todos. Qualquer
homem que se deixasse envolver por motivos
nacionalistas, mesmo que só em pensamento, seria um
criminoso perante a humanidade. A tolice de um único
homem pode abalar a união que finalmente foi alcançada.
De qualquer maneira alguns decênios se passarão antes
que toda a desconfiança seja eliminada. Mercant sei que
você está conosco, mas acho que devia romper as últimas
amarras que o constrangem a uma atitude contrária às suas
próprias convicções. Compreendeu o que quero dizer?
Mercant fez que sim.
— Compreendi perfeitamente. Já falei com Rhodan
sobre o assunto. Acontece que ele é de opinião que por
enquanto devo permanecer no meu cargo, já que não
sabemos quem o ocupará depois de mim. O mal menor
sempre é preferível.
— É verdade — admitiu Homer sem pestanejar. —
Mas prossigamos. Nosso complexo científico remete
pedidos a todo o mundo. As grandes usinas, que em alguns
casos receberam conjuntos laminadores inteiramente
novos, já estão produzindo peças da futura frota espacial.
Sem que o saibam, os homens estão construindo canhões
de radiação. Aqui se fabrica uma parte, ali outra. Só depois
de montados constituem uma arma; enquanto separadas as
peças não passam de fragmentos desconexos, que ninguém
consegue identificar. A mesma coisa acontece com as
naves. Posso assegurar-lhe que dentro de seis meses
estaremos em condições de montar em poucos dias nada
menos que dez destróieres espaciais capazes de atingir a
velocidade da luz. A esta altura já deve ter notado o que a
colaboração de toda a humanidade pode realizar. É claro
que por enquanto ninguém sabe disso, e seria conveniente
que você também não passasse adiante as informações que
ora lhe estou transmitindo.
Mercant respondeu com um ligeiro aceno de cabeça.
Homer observava-o atentamente. Atrás dos óculos, os
olhos astutos emitiram um brilho zombeteiro. Parecia ter
consciência do dilema moral em que acabara de precipitar
Mercant. E isso parecia dar-lhe um prazer secreto.
— Além disso, fornecemos as máquinas-ferramenta
que ainda não são conhecidas na Terra — prosseguiu em
tom despreocupado, fornecendo informações que Mercant
só esperava conseguir com grande esforço. — Elas são
construídas segundo nossas instruções, em usinas situadas
em outros continentes. Ainda há os materiais que Rhodan
foi buscar na Lua. Como sabe a grande nave exploradora
dos arcônidas só foi destruída na parte externa. Os
compartimentos de carga situados no interior dela
permaneceram intactos. E é ali que se encontram os
segredos da técnica dos arcônidas.
Mercant voltou a acenar com a cabeça. Homer acabara
de tocar no ponto básico. Na Lua havia tesouros
incomensuráveis, mas o Bloco Ocidental não dispunha de
nenhuma nave com que pudesse buscá-los.
Ou será que dispunham?
Mercant sabia que no porto espacial de Nevada se
desenvolvia uma atividade febril. Era a primeira vez que o
serviço de segurança do general Pounder impedia a
entrada até mesmo dos encarregados de Mercant. Naquele
lugar se passava alguma coisa de que o mundo não devia
ter conhecimento.
Subitamente tudo parecia clarear no espírito de
Mercant. Raciocinou com uma rapidez incrível. Ligou sua
incumbência, aparentemente inofensiva, com aquilo que
Homer acabara de dizer. E compreendeu que o governo do
Bloco Ocidental não cumpria o acordo celebrado com
Rhodan tão estritamente como seria de esperar.
* * * O general Pounder e o major Maurice caminhavam
pelos campos de provas do porto espacial de Nevada.
Aproximaram-se de um dos gigantescos pavilhões que
brilhavam numa extensa fila sob o sol escaldante do meio-
dia.
A atividade febril que pouco antes se notava ali cessara
quase por completo. Não se via quase ninguém. Aqueles
dois homens não conseguiram fugir à impressão de serem
os últimos elementos destinados a uma deportação em
massa.
Era ali que fora construída a Stardust, e mais tarde o
foguete que destruíra o cruzador espacial dos arcônidas
estacionado na Lua.
Ao chegar à linha de montagem, Pounder percebeu que
as aparências enganavam. O pavilhão não possuía uma
única janela, ao contrário dos edifícios próximos, que
lembravam gigantescas estufas. Ali a luz solar penetrava
desimpedidamente. Mas aquele pavilhão fora isolado
quase que hermeticamente do mundo exterior.
Depois de um exame demorado dos documentos, a
sentinela abriu a porta apenas o necessário para que os
dois homens pudessem passar.
Uma vez lá dentro, sentiram-se ofuscados por um
instante. No pavilhão não havia nenhuma divisão. Abria-se
diante dos dois em toda a sua extensão de duzentos metros
de comprimento e quase cinquenta de altura. Os andaimes
e os guindastes permitiam o acesso a todos os pontos. As
talhas transportadoras mergulharam no ligeiro declive de
um túnel, que não vinha à tona do lado de fora.
Ao contrário da calma indolente que reinava no terreno
do porto espacial, ali notava-se uma atividade febril. O
isolamento não deixava escapar o menor ruído para o lado
65
de fora.
Homens passavam apressadamente sem dispensar-lhes
a menor atenção. Peças metálicas polidas e reluzentes
transportadas em vagonetas desapareciam no interior das
construções que se erguiam no centro do pavilhão. Era ali
que se localizavam também os escritórios dos técnicos.
O general Pounder, que pela primeira vez levava seu
ajudante àquele pavilhão, parou de repente. Maurice, que
se afastara ligeiramente para dar passagem e uma pessoa,
levantou os olhos. Teria parado, mesmo que Pounder não
se encontrasse no seu caminho.
Lá adiante um torpedo prateado jazia em posição
inclinada sobre uma rampa baixa. As vigias redondas
enfileiravam-se ao longo da linha do centro, e um
guindaste acabara de mergulhar as chapas de um tanque
cilíndrico na escotilha de carga da parte superior.
A menos de cinquenta metros viram a réplica exata da
Stardust, a nave espacial que conduzira Perry Rhodan, o
primeiro homem que pisou na Lua.
E não havia ninguém no mundo que soubesse da sua
existência.
* * * Só quatro meses mais tarde, Perry Rhodan teve certeza
de que por enquanto os DI não se arriscariam a novo
ataque. Quase chegara a esquecê-los, pois o mundo vivia
sob o signo da General Cosmic Company. Em todos os
lugares do mundo surgiam enormes fábricas que iniciavam
a produção segundo as instruções dos engenheiros e
técnicos em planejamento.
Homer, sentado em seu escritório de Nova Iorque,
parecia uma enorme aranha envolvida na sua teia. As
paredes estavam cobertas de mapas nos quais haviam sido
fincadas bandeirinhas com inscrições ininteligíveis. Homer
quase só vivia junto ao aparelho de rádio e ao televisor.
Vez ou outra até chegava a ir para a cama com eles.
O poderio do complexo por ele levantado crescia a
cada dia. Não parecia estar muito distante o dia em que
certo Benjamim Wilder anunciaria que o mundo lhe
pertencia, porque ele o havia financiado. É que Benjamim
Wilder estava atrás da GCC, e ninguém suspeitava de que
Benjamim Wilder apenas era o nome suposto de Perry
Rhodan.
Crest não chegou a entender muito bem essa evolução
vertiginosa. Subestimara o dinamismo da natureza
humana, embora a julgasse capaz de alguma coisa.
Quando pouco antes do pôr do sol deixaram os bangalôs
residenciais para respirar um pouco de ar puro, andou à
frente de Rhodan quase sem dizer palavra. Bell juntou-se a
eles. Também não disse muita coisa.
Num gesto quase inconsciente dirigiram seus passos
para a pirâmide de três facetas que se erguia no deserto,
abrigando um corpo humano que aguardava o momento de
ser chamado novamente à vida.
De longe viram um vulto esbelto diante da construção
alta e esguia.
Bell estreitou os olhos.
— Macacos que me mordam! — anunciou em tom
ligeiramente dramático. — Alguém quer depositar flores
no túmulo de nosso amigo.
Ao reconhecer o vulto, Crest fez que sim. Perry
Rhodan não conseguiu reprimir uma exclamação de
surpresa.
— É Thora! — disse. — O que está fazendo por aqui?
— Pergunte a ela — sugeriu Crest.
Sentia-se feliz pela distração. As conferências
ininterruptas representavam uma carga pesada para seus
nervos.
Thora olhou para eles. Seus olhos encontraram os de
Rhodan. Pela primeira vez este não descobriu nenhum
traço de ironia e desprezo nos mesmos. Neles havia uma
pergunta titubeante, que talvez ela tivesse formulado há
poucos instantes. Sentiu o embate de uma série de
sensações estranhas, mas nenhuma delas era de natureza
negativista.
Foi ela que rompeu o silêncio assim que os três
chegaram ao lugar em que se encontrava.
— É estranho que nos encontremos aqui fora, mas
talvez não seja nenhum acaso. Perry Rhodan, com você
não acontece o mesmo que se dá comigo? Às vezes tenho
a impressão de que Ellert ainda se encontra entre nós,
invisível.
Perry respondeu com um aceno de cabeça. Não sabia
explicar como também ela tivesse sentido a mesma coisa.
Certa vez Bell manifestara a opinião de que o espírito de
Ellert não estivesse em condições de retornar ao corpo que
lhe pertencia, e por isso vagasse sem destino pela
dimensão do presente. Rhodan e Crest, porém, estavam de
acordo em que, se Ellert ainda existisse em estado
consciente, não devia encontrar-se no presente. Quando
procurou fugir à morte orgânica, o choque elétrico o
atirara a outra dimensão, da qual não havia nenhum
caminho de volta. Não havia como conjeturar sobre se essa
dimensão se localizava no passado, no presente ou no
futuro, mas se estivesse situado no presente. Ellert poderia
ter estabelecido contato com eles. Os dons dos mutantes
ofereciam possibilidades amplas para isso.
— Só em sentimento ele se encontra entre nós, Thora
— disse Perry com a voz tranquila. — Um dia o
alcançaremos se é que o fluxo do tempo não o arrastou
para muito longe. Aliás, por que está interessada no
destino de Ellert? Afinal, era apenas um ser humano.
Thora procurou ocultar o embaraço.
— Rhodan, o reconhecimento de um erro constitui o
privilégio das raças inteligentes. E os arcônidas são
inteligentes. Dessa forma meu comportamento se ajusta ao
meu nível mental, se reconheço que subestimei os
habitantes deste planeta. Mas nem por isso os reconheço
como seres com direitos iguais aos nossos.
— Ninguém vai exigir isso de você. Ao menos por
enquanto — disse Perry em tom sério. — A revisão de sua
atitude hostil já representa um grande progresso. O fato é
que lutamos e vencemos em comum. Isso constitui um
elemento de ligação.
Crest deu alguns passos e parou perto de Thora.
— Agradeço-lhe pelo que você acaba de dizer, Thora.
Com essas palavras você construiu uma ponte dourada que
um dia, num futuro distante, representará o único caminho
que conduz à conservação do império galáctico dos
arcônidas. É bem possível que ainda chegue o dia em que
Rhodan também tenha que passar por ela.
— Se a ponte é de ouro, quero estar por aí nesse dia —
observou Bell sem o menor dramatismo. — O problema é
se conseguirei viver até lá.
— Não vejo por que não podemos prosseguir nas
pesquisas com a Good Hope — disse Crest em tom sério.
— É verdade que já não dispomos do grande cruzador.
Mas mesmo que a Good Hope não nos permita retornar à
pátria, talvez possamos encontrar o planeta da vida eterna.
Se tivermos sorte.
Seguiu-se um silêncio constrangedor, que foi rompido
66
por Rhodan.
— Temos tarefas mais urgentes, ao menos por
enquanto — disse, sacudindo a cabeça. — Os mutantes
têm de ser treinados. Para isso pretendo construir uma base
em Vênus. Nossa próxima tarefa é esta. Nos próximos dias
viajarei para Vênus a fim de preparar o acampamento
pioneiro. Nossas primeiras observações levam à conclusão
de que por lá não encontraremos qualquer forma de vida
inteligente. Quando tudo estiver em ordem na Terra
teremos tempo de partir em busca da vida eterna. Mas,
para falar com franqueza, não acredito que tenhamos êxito
nisso.
— O planeta existe! — afirmou Thora. O fogo de um
entusiasmo que quase chegava a ser fanático ardia em seus
olhos. — Os participantes de expedições que retornaram
de lá relatam isso. Mas o segredo é guardado a sete chaves.
Se encontrarmos o mundo da imortalidade, teremos de
enfrentar uma luta feroz.
— Só acredito quando tiver a prova diante de mim.
— Mas seria muito bom se pudéssemos livrar-nos do
medo do túmulo — interveio Bell. — De qualquer maneira
não comunicaria nada à companhia em que fiz meu seguro
de vida, se me tornasse imortal.
Ninguém riu. Bell virou-se, um tanto ofendido. Em
atitude pensativa contemplou a pirâmide, envolta pelos
raios dourados do Sol que entrava no ocaso.
Perry aproximou-se de Crest e Thora. Estendeu a mão
à mulher.
— Será que daqui em diante podemos ser amigos? —
perguntou com a voz um tanto insegura.
Por um segundo a arrogância costumeira brilhou nos
olhos frios daquela mulher, mas finalmente apertou a mão
que lhe era oferecida.
— Perry Rhodan, eu o admiro, por mais que o tema.
Mas você há de compreender que um sentimento desse
tipo não pode gerar uma verdadeira amizade. Sei que
precisamos de você; temos de completar-nos mutuamente.
Será que uma situação destas pode servir de base a uma
verdadeira amizade? Além de tudo, Crest me constrange.
Pelo que vê, só aperto sua mão porque sou obrigada a
fazê-lo. Está satisfeito?
Perry fez que sim.
— Por enquanto estou. Ainda chegará outra
oportunidade em que você terá que apertar minha mão, e
então os motivos serão diferentes. Até lá tenho de ficar
satisfeito com aquilo que você me oferece. E fico. Permite
que lhe agradeça?
Por um instante os olhares das duas criaturas fundiram-
se, e suas mãos congregaram-se numa unidade. Talvez
fosse um momento solene, se nesse instante preciso Bell,
com um profundo suspiro, não tivesse murmurado uma
palavra:
— Amém...
Aquela palavra retirou toda a solenidade ao pacto que
acabara de ser concluído. Talvez apenas porque havia sido
pronunciada por Bell.
O sol mergulhou sob a linha do horizonte. Subitamente
a luminosidade do túmulo apagou-se. Parecia que uma
chama invisível fora apagada no metal de que era feita a
pirâmide.
No céu a primeira estrela começou a espalhar sua
luminosidade.
Sem que tivesse consciência disso, Perry Rhodan
enxergou naquele signo um prognóstico otimista para o
futuro distante.
Perry Rhodan está decidido a realizar uma segunda viagem a Vênus, a fim de montar
uma base da Terceira Potência naquele planeta.
Para saber o que o aguarda, acompanhe a próxima aventura de Perry Rodhan em
Vênus.
BASE EM VÊNUS
67
Enciclopédia Galáctica
Povos da Via láctea:
OS ACONENSES
Descendentes dos lemurenses, que se esconderam
durante a guerra contra os halutenses (48.000 a.C.).
Utilizavam ao mínimo possível à navegação espacial,
deslocando-se entre os planetas através de transmissores
fictícios. Como seus descendentes, os arcônidas, possuem
a placa óssea ao invés de costelas. Possuem cabelos de
negros a ruivos, com pele levemente bronzeada.
Consideram-se a maior raça na galáxia, e por isso não
conseguem colaborar com os terranos.
Colonizaram vários planetas na galáxia, mas a
maior onda migratória ocorreu durante a Guerra Civil
(18.000 a.C.). Desta onda migratória surgiram os primeiros
arcônidas, bem como os primeiros antis.
Foram acidentalmente descobertos por Perry
Rhodan durante o teste de voo da nova nave linear
Fantasy, em 2102 d.C. Com a destruição do campo de
força azulado que protegia o sistema, fato que deu o nome
de Sistema Azul ao
sistema de Ácon. Embora
recentemente esta
denominação se refira ao
sol do sistema,
Ácon,
originariamente se referia
ao campo de força
erguido pelo Acônidas
para cercar o seu sistema
estelar. Este campo, de
cor azul (daí o nome do
sistema) era um campo
hexadimensional mantido
por centenas de
plataformas espaciais,
com geradores enormes
situados além da órbita do
planeta mais distante de
Ácon.
Considerando que o campo emite no mesmo
espectro que Ácon, é suposto que foi projetado para
camuflar o sistema. Embora a situação tenha mudado
consideravelmente desde então, na época da descoberta
pelos Terranos, estes praticamente não se utilizavam de
viagens espaciais, preferindo fazer uso de uma cadeia de
estações de transmissores de matéria.
Os acônidas voltaram a utilizar-se da navegação
espacial. Até então, possuíam apenas uma reduzidíssima
frota, que servia para transporte de novos transmissores e
exploração.
Os acônidas, convencidos da sua superioridade
racial, têm tentado novamente ter o controle sobre a
galáxia conhecida (frequentemente tentando destruir os
terranos). Com este fim, eles usaram vários subterfúgios,
tais como o Comando de Energia e a Condos Vasac. O
número de colônias que possam ter, espalhadas pela
galáxia, é desconhecido.
Seu mundo pátrio chama-se Drorah é o quinto de
dezoito planetas orbitando o sol azul gigante Ácon. O
Sistema de Ácon é localizado 45.000 anos luz do Sistema
Solar. Drorah tem sido o mundo pátrio dos acônidas desde
50.000 a.C. Tem 1.1 G's, uma atmosfera de oxigênio, e
duas luas. Uma delas é do tamanho de Mercúrio. A outra
só tem algumas centenas de quilômetros de diâmetro.
68
Nº 08
De
K. H. Scheer
Traduçaõ
Richard Paul Neto
Digitalização
Vitório
Revisão e new format
W.Q. Moraes
Perry Rhodan foi reconhecida como Estado legítimo pelas potências da Terra,
e com isso as lutas em torno da cúpula energética montada no deserto de Gobi
cessaram como por encanto.
Mas nem por isso termina a luta secreta, pois os potentados da Terra ainda
alimentam uma desconfiança extrema face à Terceira Potência. Não querem
conformar-se com o fato de que depois de ter realizado sua missão na Lua, a
bordo da Stardust, onde descobriu o cruzador espacial dos arcônidas, Perry
Rhodan manipula os acontecimentos deste mundo.
Mas Perry segue seu caminho, imperturbável. E o próximo passo dessa
caminhada, que conduzirá à transformação da Terra numa potência interestelar, é
a instalação da Base em Vênus...
69
I
Aquele deserto nunca vira tamanha atividade, desde
que as hordas de Gengis Khan passaram por ali.
Por entre os grupos de especialistas que haviam
chegado ao interior da cúpula energética e começavam a
executar as ordens de Rhodan, mal se notavam os robôs
dos arcônidas.
Embora haja bastante tempo se encontrassem em
minoria, ainda executavam o maior
volume de trabalho. Mas os
especialistas e as máquinas terrenas
continuavam a chegar
ininterruptamente. Dentro de alguns
dias os pratos da balança se inclinariam
para o outro lado.
Nesses dias de nervosismo
causado pelo inimigo extraterreno, a
visão do trabalho que se desenvolvia
naquele lugar proporcionava certa
satisfação a Perry Rhodan. Tudo corria
de acordo com seus desejos. A
indústria de acabamento ali instalada
que, no entendimento dele, era o único
fator que poderia conferir à
humanidade a preponderância que teria
de exercer nessa área da galáxia,
crescia com o máximo de rapidez. O
complexo de edifícios estava quase
concluído. Dentro de uns quinze a vinte
dias se defrontariam com o problema
de saber se Homer G. Adams
conseguiria realizar em tempo a
planejada fusão das indústrias terrenas
de acessórios, a fim de que o
fornecimento de máquinas-ferramentas
não sofresse interrupções.
Rhodan procurou convencer-se de
que o tempo trabalhava a seu favor.
Chegara o momento em que potências
estranhas começavam a se interessar
pela Terra. Conseguiram repelir o ataque da nave-fuso de
Fantan, e também conseguiriam defender-se dos
Deformadores Individuais, sem que a Terra corresse um
risco excessivo. Mas tudo isso representava apenas o
princípio de uma série de confrontos; e, ao que tudo
indicava muitos deles teriam um caráter hostil.
A Terra precisava de tempo. Não era possível
eliminar da noite para o dia a vantagem que as raças
estranhas haviam alcançado.
Talvez fosse possível fazê-lo dentro de duzentos ou
trezentos anos.
“Se nos deixarem esse tempo”, pensou Rhodan, “não
teremos nada a temer”.
Nos últimos dias seus pensamentos muitas vezes se
moviam num verdadeiro torvelinho, pois não sabia de que
problema devia ocupar-se em primeiro lugar. Compreendia
o espanto que a atividade febril realizada nas margens do
lago salgado produzia em Crest.
Quem se desse ao trabalho de pensar nisso veria que
era incrível que coisas tão fabulosas tivessem sido
realizadas por tão poucos homens num espaço de tempo
tão reduzido.
Mas esse punhado de homens o havia feito. Impusera
sua vontade aos homens, deixara a economia terrena de
pernas para o ar. Fizeram com que as grandes potências os
reconhecessem e se convencessem de que sem eles, isto é,
sem a Terceira Potência, nada poderia ser feito na Terra e
nos seus arredores.
* * *
— Não devemos esperar muito, Rhodan! — insistiu
Bell, enrijecendo o corpo musculoso e arrepiando os
cabelos ruivos numa atitude de desafio. — Precisamos
antes de tudo, de um posto de
reserva. Temos de...
Rhodan fez um gesto
tranquilizador.
— Não vamos precipitar
nada, Bell. Decolaremos daqui a
duas horas.
— Está bem — respondeu
Bell. — Quais são os planos?
— Pousaremos na Lua. Não
quero que o velho cruzador
espacial espere por mais tempo.
Precisamos de muita coisa que
anda jogada por lá. Da Lua iremos
diretamente a Vênus.
Interrompeu-se. Parecia
pensativo.
— Você tem razão — disse
depois de algum tempo. — Antes
de qualquer coisa precisamos de
um posto de reserva.
A ideia era clara e simples.
Fossem quais fossem as condições
na Terra e nas suas proximidades,
não havia nada que pudesse
garanti-los contra um ataque
maciço de uma raça estranha,
lançado de surpresa. Rhodan
achava que seria uma leviandade
correr o risco de um extermínio
total por um tempo maior que o
estritamente necessário. Se
instalasse uma base da Terceira Potência em Vênus não
estaria eliminando o perigo, mas evitaria que a catástrofe
fosse total.
Crest e Thora, antigos comandantes do cruzador
espacial dos arcônidas, destruído na Lua pelos foguetes
dos terráqueos, concordavam com o plano de Rhodan,
embora não se interessassem muito por ele. Só desejavam
que a tecnologia terrena, que passava por um
desenvolvimento vertiginoso, logo atingisse uma fase que
lhe permitisse construir uma nave semelhante àquela com
que haviam pousado na Lua. Crest costumava dizer com
certa ironia:
— Tivemos de parar no canto mais afastado da
galáxia para compreender que a situação do Império não é
nada boa. Ninguém poderá levar a mal que queiramos
voltar para casa quanto antes. É bem verdade —
costumava acrescentar em tom sério — que devemos
agradecer ao destino. O Império precisa de um aliado, para
enfrentar as situações que surgirão no futuro. E não
poderíamos encontrar aliado melhor que a humanidade
terrena.
Thora hesitaria em fazer coro com estas palavras. A
luta que sua razão travava, com intensidade variável,
contra o desprezo intuitivo e emocional que
Personagens Principais deste episódio:
Perry Rhodan — Comandante da nave
Good Hope e chefe da Terceira Potência.
Reginald Bell — O melhor amigo de Perry
Rhodan.
Crest e Thora — Únicos sobreviventes de
uma expedição espacial do Império
Arcônida.
Tako Kakuta — Subchefe do Exército de
Mutantes da Terceira Potência.
Anne Sloane — Jovem mutante que possui
o dom da telecinese.
Michael Freyt, Conrad Deringhouse e
Rod Nyssen — Astronautas da Força
Espacial dos Estados Unidos. Viajam à Lua
a bordo da nave Greyhound e acabam em
Vênus.
O “Comandante” — Que há 10.000 anos
não se cansa de cumprir seu dever.
70
nutria pela humanidade, ainda não findara. Thora ainda
não se conformara com a ideia de lidar com os homens de
igual para igual. Não se sabia se no seu pensamento Perry
Rhodan constituía uma exceção.
* * * A nave auxiliar Good Hope decolou ao escurecer. As
calculadoras automáticas não levaram mais que alguns
minutos para determinar a rota da Lua e regular o
dispositivo direcional automático. O único trabalho da
tripulação consistia em comprimir um botão que dava
início à operação de decolagem.
A Good Hope decolou com empuxo máximo. O
impulso produzido pelos feixes corpusculares que saíam
dos reatores à velocidade da luz conferiu-lhe uma
aceleração inicial de quase 500 g.
A pressão formidável gerada por essa aceleração foi
neutralizada no interior da nave. A força de aceleração
reinante a bordo da Good Hope nunca era superior a l g.
Uma circunstância que favorecia a tripulação era a de que
os valores da aceleração da queda nos mundos Árcon e
Terra só divergiam de poucos por cento. Nessas condições
uma viagem à Lua só durava alguns minutos.
Rhodan deixara a Terra muito tranquilo, bastante
alegre. Tako Kakuta, o teleportador e subchefe do Exército
dos Mutantes; trouxera boas notícias. O comando do
exército fora transferido a Ras Tshubai, pois Tako
participaria da expedição. Ras Tshubai dispunha como que
de um de cão de fila na pessoa da pequena Betty Toufry,
uma menina dotada de capacidades espantosas. Rhodan
estava convencido de que Ras com sua atividade
incansável, mas prudente, seria o homem indicado para
dirigir a ação contra os Deformadores Individuais. Além
disso, não haveria a menor dificuldade em interromper a
expedição e voltar à Terra pelo caminho mais breve, se
surgissem notícias alarmantes.
Rhodan pensou em Ernst Ellert. Sentiu-se possuído
pela contrariedade que costumava apossar-se dele sempre
que se lembrava da perda desse elemento tão valioso.
Ellert era um mutante que possuía um dom singular.
Teletemporação era o nome que Rhodan dera à capacidade
de que o mesmo se achava investido. Reginald Bell usava
uma expressão mais prosaica. Costumava dizer que Ellert
era um homem que sabia passear, em espírito, no futuro.
Ellert parecia morto, e as esperanças haviam morrido
com ele. Às vezes Rhodan chegava a pensar que, seguindo
uma lei metafísica ainda desconhecida, a natureza havia
corrigido a si mesma, eliminando Ellert. Ellert era um
monstro na verdadeira acepção da palavra; chegava a ser
mais monstruoso que os Dl.
Quando Rhodan espantou esses pensamentos com um
movimento cansado da mão, a Good Hope já se preparava
para as manobras de alunissagem. Depois de realizar um
movimento de translação correspondente a um quarto da
circunferência da Lua, a nave se dirigiu para o montão de
destroços formado pelos restos do antigo cruzador espacial
dos arcônidas. Os instrumentos de medição revelaram que
a radiatividade dos destroços já se reduzira a um grau que
não oferecia o menor perigo.
O som estridente do aparelho localizador constituiu
um acontecimento um tanto sensacional. Bell, que
manejava o localizador, relatou:
— Objeto desconhecido em Pi zero-cinco, Teta três-
três-seis. Não se percebe qualquer movimento na
superfície lunar.
Rhodan procurou na tela as coordenadas indicadas
por Bell. O objeto parecia miseravelmente pequeno. Não
passava de um pontinho reluzente em meio à solidão da
Lua.
Rhodan desligou o dispositivo direcional automático
e passou a pilotar a nave. Sem olhar, comprimiu a chave
do telecomunicador. A voz do Dr. Manoli fez-se ouvir.
— O que houve Rhodan?
— Localizamos alguma coisa, Manoli — explicou
Rhodan. — Procure comunicar-se com o objeto e verifique
se há alguma resposta. Bell lhe dará as coordenadas.
— Entendido.
Enquanto a Good Hope sobrevoava os destroços do
cruzador espacial e o pequeno ponto reluzente situado à
sua margem, Bell murmurava as coordenadas que sempre
mudavam no aparelho de telecomunicação.
O Dr. Manoli trabalhava com o raio direcional,
usando um ângulo bem aberto. Depois de algum tempo
informou:
— Nenhuma resposta, Rhodan!
Rhodan gritou em direção ao aparelho de
telecomunicação de Bell:
— Mantenha o contato. Descerei mais. Descrevendo
uma curva bem ampla e aproximando-se dos destroços em
outra direção, a Good Hope perdia altitude.
A distância da superfície lunar ainda era de oitenta
quilômetros. Apesar disso os telescópios de bordo deviam
ser capazes de identificar o objeto reluzente.
Rhodan duvidava de que se tratasse de um sinal da
existência dos Deformadores Individuais. Não havia
nenhum motivo especial para esse tipo de dúvida, a não ser
a esperteza super-humana dos Dl, que não lhes permitiria
deixar um objeto tão visível numa área em que mais cedo
ou mais tarde surgiria um veículo humano. Seria uma
armadilha?
Rhodan virou-se. Crest estava deitado num dos leitos
que se encontravam junto à parede da sala de comando;
Thora encontrava-se a seu lado.
— Thora, quer fazer o favor de assumir o posto de
combate?
Uma expressão de tédio surgiu no rosto da arcônida.
Levantou-se com um breve aceno de cabeça e dirigiu-se a
um painel de menos de um metro quadrado, que incluía as
chaves de comando de todas as armas que a Good Hope
trazia a bordo.
Rhodan manteve a nave na vertical do ponto
cintilante.
— Bell, já descobriu o que é?
Bell ajustou o telescópio e projetou a imagem sobre
uma das telas.
— Santo Deus! — gemeu. — É uma nave terrena
igual à Stardust!
Rhodan, num movimento rápido, girou a poltrona.
— Pousar! — ordenou.
O grito de Bell fez com que a mão que se preparava
para acionar a chave de comando parasse a meio caminho:
— Espere...!
Todos os olhares concentraram-se sobre a tela
localizadora de micro-ondas, onde a nave estranha
aparecia sob a forma de uma mancha luminosa. Dois
pontos brancos destacaram-se dessa mancha e,
deslocando-se numa velocidade formidável, dirigiam-se
para o centro da tela.
Bell virou a cabeça. Seus olhos estavam arregalados
de espanto.
71
— Não é possível! — disse com a voz baixa, em tom
quase solene. — Estão atirando contra nós!
* * *
A nave Greyhound, da mesma classe da Stardust, que
representava a última tentativa das potências ocidentais de
romper o monopólio energético-científico da Terceira
Potência, conseguira deslocar-se até a Lua sem ser
detectada e, segundo as instruções ministradas à
tripulação, manobrara para além da área em que se
encontravam os destroços do cruzador espacial dos
arcônidas. Ali a tripulação esperava encontrar os
remanescentes da maravilhosa tecnologia arconídica.
Uma vez atingido o ponto escolhido, a nave iniciou
as operações de alunissagem.
Para a Greyhound o pouso representava a manobra
mais difícil. O dispositivo direcional automático,
alimentado ininterrupta e cuidadosamente pelos sinais
emitidos da Terra, encarregara-se do voo, que decorreu
sem o menor problema. Mas o ponto de alunissagem
ficava fora do alcance dos sinais de rádio. Por isso a
manobra exigia toda a habilidade de dois pilotos
submetidos a um treinamento de vários meses.
Esses pilotos eram os tenentes Michael Freyt e
Conrad Deringhouse. Foram eles que comandaram toda a
atividade que o foguete desenvolveu durante a
alunissagem. O capitão Rod Nyssen, oficial de armas, e o
major William Sheldon, especialistas incumbidos do
recolhimento do material que esperavam encontrar entre os
destroços do cruzador espacial, não teriam nenhuma tarefa
a executar e continuavam deitados nos acolchoados
antipressionais.
Deringhouse relatou com a voz embaraçada:
— Todas as velocidades ao nível zero, com exceção
do deslocamento vertical.
O tenente Freyt respondeu:
— Deslocamento vertical de dez metros por segundo,
velocidade constante. Pode-se dizer que descemos como
uma folha.
Freyt saíra da mesma escola que o major Perry
Rhodan deixara um ano antes. Parecia ser do mesmo tipo
que este: grande e sério, mas com pequenas rugas nos
cantos dos olhos, que vez por outra tiravam toda a
seriedade daquele rosto que ostentava uma severidade
militar.
Os dois pilotos envergavam os trajes espaciais.
Mantinham os capacetes ligeiramente abertos; o que lhes
permitia comunicarem-se sem o auxílio do microfone.
— Distância quatro mil — anunciou Deringhouse.
Pela primeira vez lançou um olhar em direção a Freyt
e permitiu-se um sorriso jovial. O capacete jogado na nuca
dava-lhe o aspecto de um escolar que pretendia andar de
ônibus sem pagar passagem.
— Dê outra freada! — disse Freyt.
O solavanco produzido pela desaceleração percorreu
a nave. Dali a alguns segundos o reduzido campo
gravitacional da Lua voltou a fazer-se sentir.
— Deslocamento vertical de seis por segundo. Qual é
a distância?
— Distância de três mil e trezentos.
Freyt acenou com a cabeça; parecia satisfeito. A
manobra de alunissagem estava decorrendo segundo as
previsões.
A Greyhound levaria perto de dez minutos para
percorrer a distância que ainda a separava da superfície da
Lua. Para a tripulação parecia um tempo imenso. De
qualquer maneira, até aqui não tinha havido qualquer falha
e, na opinião de Freyt, seria coisa do diabo se o pouso não
fosse bem sucedido.
Freyt estava atento à sua tarefa, embora não
aprovasse os motivos que ditaram sua missão. Estivera
presente quando, nos primeiros tempos de existência da
Terceira Potência, todos os canhões e bombardeiros da
Terra dispararam suas cargas contra a cúpula energética.
Mas neste meio tempo convencera-se de que nenhum
poder terreno alheio a Rhodan teria possibilidade de
assumir parte da herança dos arcônidas.
Aceitara a incumbência por ser oficial, e
principalmente porque não se exigia dele que praticasse
qualquer ato de hostilidade caso tivesse que defrontar-se
com Rhodan ou algum dos seus auxiliares.
Sheldon rolou seu corpo desajeitado para o lado o
tanto que os cintos de segurança o permitiam e reclamou:
— Ainda vai demorar muito? Estou morrendo de
ansiedade!
Freyt limitou-se a esboçar um gesto. Um sorriso de
escárnio aflorou no seu rosto.
— Alguns minutos. Qual é à distância?
— Mil e oitocentos.
— Ótimo!
A superfície da Lua desenhava-se como uma bacia
rasa, na qual a Greyhound ia afundando aos poucos. Freyt
e seus homens haviam sido informados sobre o “efeito de
panela” que invariavelmente atinge os astronautas que
pousam em astros de pequeno diâmetro. No lugar em que a
Greyhound iria pousar o solo parecia ser liso e firme.
Freyt, porém, não se limitou a uma avaliação
superficial. Além de controlar a distância que os separava
da superfície lunar, Deringhouse ficava de olho num
instrumento capaz de, a uma distância de cem metros,
registrar acidentes do solo de um centímetro e até menos.
Tal qual a Stardust, a Greyhound dispunha de
suportes hidromecãnicos para o pouso. Esse aparelho
compensava facilmente desníveis de até três metros, e com
menor facilidade os que alcançavam até sete metros.
— Que tal lhe parece o solo? — perguntou Freyt.
— Por enquanto parece ser bom. Não existem
desníveis de mais de quatro metros.
— Qual é a altitude?
— Novecentos.
— Avise quando atingirmos a marca dos
quatrocentos metros. Realizaremos mais uma frenagem.
Deringhouse confirmou com um aceno de cabeça.
Freyt dirigiu o olhar para os instrumentos.
Indicador de combustível: o tanque estava com
sessenta por cento da capacidade, até um pouco mais.
Isso representava um fator favorável. No seu pouso
final sobre a Terra, a Greyhound recorreria à frenagem
aerodinâmica, com uma utilização mínima dos foguetes.
Na decolagem da Lua, Freyt poderia consumir quase todo
o hidrogênio que ainda se encontrava nos tanques.
“Pois bem”, pensou, “quando tivermos chegado lá
embaixo o ponteiro indicará uns cinquenta e cinco por
cento, mas isso ainda é muito bom.”
— Quatrocentos metros! — anunciou Deringhouse.
— Cuidado, frear! — soou a voz de Freyt como um
eco.
Mais um solavanco atravessou a nave. Deringhouse
ajustou o capacete. Freyt olhou-o.
72
— Fechar os capacetes! — disse.
Dali em diante a comunicação teve de ser mantida
por meio dos microfones embutidos nos capacetes.
— Duzentos!
A mão esquerda de Freyt descansava sobre a perna
inflada de seu traje espacial. Só a direita ainda tinha
algumas tarefas a executar. Segurava a chave-mestra do
acelerador de emergência, que controlava a temperatura do
reator e o suprimento de hidrogênio.
— Nenhum desnível superior a um metro! — disse
Deringhouse.
Os segundos arrastavam-se. Deringhouse iniciou a
contagem:
— Oitenta metros... setenta... sessenta...
— Controle de desnível — pediu Freyt.
— Não há nenhum superior a oitenta centímetros —
respondeu Deringhouse e prosseguiu: — quarenta...
trinta...
Seguiu-se uma pausa. Um minuto depois a voz de
Deringhouse voltou a soar:
— Suportes apoiados no solo. Completamos o pouso.
— Silêncio! — pediu Freyt.
Os suportes aguentaram parte do peso da nave. Os
dispositivos hidráulicos deslizaram pelos braços cintilantes
de aço.
Deringhouse, cujo triunfo fora interrompido de modo
tão brusco, anunciou:
— Suportes B e C estão no mesmo nível. Suporte A a
menos oitenta centímetros.
Freyt repeliu-o com um gesto.
— Com menos de um metro não compensa.
Foi então que aconteceu.
Ouviram o terrível solavanco e o toque estridente dos
alarmas, que fez a nave estremecer.
— A está abaixando! — gritou Deringhouse. —
Ligue a compensação.
Freyt levantou a mão esquerda num gesto instantâneo
e empurrou o regulador hidráulico. Sentiu-se outro
solavanco, quando os suportes B e C procuraram
compensar a diferença com A, e depois mais outro.
— A continua a descer! — gritou o tenente. —
Estamos... o chão está rompendo.
Freyt notara-o no mesmo instante. O chão quebradiço
por baixo da Greyhound estava riscado por fendas negras,
que se ampliavam sob o peso da nave.
— Cuidado! — gritou Freyt. — Darei a aceleração
máxima.
Deringhouse reclinou-se na poltrona. Freyt apertou a
chave que já vinha segurando na mão direita, e puxou-a
para trás.
A Greyhound inclinou-se com tamanha rapidez que
não houve tempo de reagir ao empuxo dos reatores.
Deringhouse mantinha os olhos arregalados presos à tela.
— Não! — berrou com a voz rouca.
Freyt empurrou a chave para trás.
— Cuidado! Estamos tombando!
Não adiantava mais. A aceleração de emergência
teria provocado o deslocamento horizontal da nave sobre a
planície pedregosa, fazendo-a espatifar-se contra a cratera
mais próxima.
O suporte A, que afundara no solo, rompeu-se com
um ruído semelhante a um tiro de canhão. Na parte
posterior do corpo da nave um dos agregados desprendeu-
se e caiu ao chão. O envoltório da nave deformou-se,
provocando um inferno de ruídos uivantes. Seguiu-se o
verdadeiro impacto.
Alguém gritou. Na parede da cabina surgiu uma
fenda, por onde o ar escapou com um silvo agudo.
O subconsciente de Freyt aguardava o golpe final,
que representaria o verdadeiro fim, mas este não veio.
Passou-se um minuto. Freyt abriu os olhos, fechados
na expectativa da morte. Incrédulo, levantou-se.
Na cabina reinava uma confusão terrível de
instrumentos destroçados e turbilhões de poeira lunar que
penetrara pela fenda.
— Deringhouse! — chamou Freyt com a voz
assustada. — Sheldon. Nyssen. Onde estão?
Ouviu-se um gemido.
— Se estiver falando comigo, ainda estou por aqui.
Era a voz rouca de Nyssen.
— Onde você se meteu Nyssen? Saia daí. Onde estão
os outros?
— Não faço a menor ideia — resmungou Nyssen. —
Irei até aí assim que conseguir tirar estes cintos. Parece
que foram eles que me seguraram. Pronto!
Parte dos destroços começou a movimentar-se. A
cabeça de Nyssen, envolta no capacete disforme, foi
surgindo por entre um equipamento amassado de alta
tensão e uma caixa deformada a ponto de tornar-se
irreconhecível.
— Tudo em ordem? — perguntou Freyt.
— Por enquanto sim.
Nyssen levantou-se.
— Nosso quarto está mudado — observou. — Há
pouco havia uma parede por aqui.
Freyt desatara os cintos e levantara-se. Seu assento de
piloto acompanhara a viravolta da cabina.
— Venha ajudar-me.
Afastaram os destroços, abrindo caminho para a parte
dos fundos. Nyssen pôs a mão na perna de um traje
espacial.
— Só pode ser o tenente.
Arrastaram-no para fora daquela confusão. O impacto
arrancara-o do assento e atirara-o para trás. Provavelmente
ficara inconsciente. Ainda respirava.
— Vamos continuar.
Depois de atirarem para o lado os últimos destroços,
encontraram Sheldon.
De início pensaram que apenas estivesse
inconsciente. Mas ao virá-lo encontraram o rasgo
comprido no seu traje, que ia do ombro até a altura dos
quadris.
Freyt ergueu-se. Cambaleava naquele chão desigual.
A voz rouca de Nyssen disse:
— Sinto muito, Sheldon. Continuaram a afastar os
destroços, até chegar à entrada da comporta. A escada
soltara-se e suas peças estavam contorcidas, mas não
precisariam mais dela. A comporta estava em posição
horizontal.
— Cuide do tenente — ordenou Freyt enquanto
engatinhava pelo túnel de saída.
Parecia ter chegado a um mundo diferente. Fora da
escada, nenhuma parte da comporta fora danificada. Freyt
começou a nutrir alguma esperança. Na popa o impacto
por certo fora menos violento.
Chegou à comporta e abriu o compartimento interior.
Realizou um controle. Não havia mais ar. Ligou o
acionador de emergência. Uma lâmpada iluminou-se
segundo as previsões. A comporta estava em ordem.
Freyt preferiu não realizar outros exames. Retornou à
73
cabina. Deringhouse estava acordando.
— Como está? — perguntou Freyt.
— Bem, obrigado — gemeu o tenente. Levantou-se
com auxílio de Nyssen.
Apalpou o traje espacial, procurando descobrir em
que ponto do corpo se localizava as dores.
— Parece que tudo está em ordem — murmurou.
Freyt parecia satisfeito.
— Vamos ao trabalho.
Iniciaram uma atividade febril. Era o melhor meio de
apagar o primeiro impacto da catástrofe.
As informações surgiram numa rápida sucessão:
— Equipamento de radiocomunicação totalmente
destruído.
— Eletrônica dos reatores não funciona.
— Conduto de emergência em ordem. Finalmente
ouviu-se o grito de triunfo de Nyssen:
— O armamento está intacto!
Freyt constatou que o depósito de mantimentos
estava praticamente intacto. Encontrou um reservatório de
oxigênio que não fora danificado. Poderia encher de ar um
dos compartimentos da nave, se é que havia algum que não
apresentasse nenhuma rachadura.
As avarias dos dispositivos eletrônicos dos reatores
poderiam ser reparadas. Mas seria inútil realizar esses
reparos, porque não havia possibilidade de colocar a
Greyhound na vertical.
Saíram. O envoltório externo apresentava-se
ondulado e abaulado. No lugar em que o suporte A deveria
apoiar-se havia um buraco profundo. O solo lunar na beira
desse buraco só tinha alguns centímetros de espessura.
Freyt tomou a palavra:
— Estamos preparados para uma permanência de
quinze dias na Lua. Só depois de vinte dias o pessoal em
Terra começará a preocupar-se conosco. Não
aguentaremos até lá. Não nos resta alternativas senão pôr-
nos a caminho.
Sentiu-se irritado pela direção em que Deringhouse
fitou os olhos.
— Olhe ali!
O tenente atirou o braço para o alto. Freyt virou-se
abruptamente. Estreitou os olhos. No firmamento negro
havia um ponto cintilante, que se deslocava numa
velocidade vertiginosa.
— É aquela raça maldita! — chiou Nyssen.
— Que raça?
— Os Dl, aqueles insetos.
Freyt hesitou.
— Nyssen! Assuma seu posto junto aos canhões. Só
atire quando eu der ordem.
— Certo.
Nyssen saiu correndo.
— Tenente, nós dois ficaremos aqui mesmo. Não
temos nada a fazer lá dentro.
Deringhouse confirmou com um aceno de cabeça,
sem tirar os olhos daquele ponto cintilante.
— Desceu mais — disse o tenente.
— A que altitude se encontra agora?
Nyssen respondeu prontamente.
— Se os instrumentos ainda estão em ordem, deve
estar a oitenta quilômetros.
— Quantos projéteis podem disparar ao mesmo
tempo com a corrente de emergência?
— Dois.
— Pois atire.
Os canos de disparo dos foguetes estavam em
posição horizontal, tal qual o resto da nave. Quando
Nyssen atirou o solo estremeceu e a nave inclinou-se
ligeiramente. Mas, apesar do ângulo de disparo
desfavorável, os projéteis descreveram uma curva e
subiram na vertical.
II
— Não há dúvida — disse Rhodan com a voz áspera.
— Devem ter enlouquecido ou então...
Virou-se. Viu que Thora manipulava o comando do
armamento, com uma rapidez algo suspeita.
— Thora!
A palma da mão de Thora bateu numa chave. Rhodan
deu um salto, mas chegou tarde. Agarrou-a nos ombros e
atirou-a para o lado. Thora deu um grito furioso e caiu ao
solo.
Rhodan colocou a chave na posição inicial.
— Bell!
— Sim, Rhodan. Ela atirou com um dos
desintegradores. O ponto desapareceu.
A voz de Manoli fez-se ouvir:
— Cuidado. Acionar o dispositivo de defesa.
Os dois foguetes disparados pela Greyhound
aproximaram-se, mas tiveram a trajetória modificada pela
tela protetora. Passaram ao lado da nave e desapareceram
no espaço.
Thora levantou-se.
— É bom que nunca mais se esqueça de que mesmo
você deve aguardar ordens antes de atirar — disse Rhodan
com a voz tranquila, mas ameaçadora. — Você terá de
haver-se comigo se qualquer coisa tiver acontecido a essa
gente.
Thora encarava-o de frente.
— Terei de haver-me coisa alguma! — chiou entre os
dentes. — Fomos atacados, e costumo defender-me contra
qualquer agressão.
— Acha que isso foi um ataque? Desde que a
conheço vive debochando da tecnologia subdesenvolvida
dos terráqueos, e agora vem me dizer que essa tecnologia
representa uma ameaça?
— Acontece que essa gente destruiu meu cruzador.
— Isso só aconteceu porque você não foi capaz de
defendê-lo — vociferou Rhodan. — Você sabe
perfeitamente que esta nave dispõe de proteção eficaz
contra qualquer arma terrena.
Thora ficou calada. O vermelho de seus olhos
74
flamejava por entre as pálpebras entreabertas.
— Está bem — disse Rhodan com a voz cansada. —
Vamos pousar.
* * * O grito de Nyssen despertou os outros.
— Meu Deus, o que é isso? Estavam acompanhando
a trajetória dos foguetes, para observar a explosão.
Viraram a cabeça e viram a modificação que se processava
em silêncio nos destroços de sua nave.
Deringhouse soltou um gemido, o que fez com que
Freyt recuperasse o autocontrole.
— Não se mova!
— Está bem; esperarei — respondeu Nyssen.
“Meu Deus” pensou Freyt apavorado, “atacamos as
pessoas erradas.”
A Terra já estava bem informada sobre as armas dos
arcônidas, motivo por que Freyt pôde identificar o tipo de
destruição que estava sendo levada a efeito em sua nave.
Sob a influência de um campo elétrico cuja microestrutura
correspondia àquela que mantém as moléculas unidas sob
a forma de cristais, esses cristais se desintegravam,
liberando as moléculas. O que sobrava era um gás
rarefeito, cujas componentes eram as mesmas da matéria
sólida de que se originara.
Esticando a cabeça para frente, Deringhouse
contemplou a obra de destruição. As paredes da
Greyhound entraram em decomposição; dali a pouco não
sobrava nada. Todo o processo não durara mais que quatro
ou cinco segundos. O reator, os mecanismos propulsores e
os tanques de combustível, privados de apoio, começaram
a escorregar e caíram ao chão.
Retendo a respiração, Freyt percebeu que nenhumas
dessas peças foram atacadas. Quando o pesado reator,
depois de alguns sacolejos, atingiu a posição de repouso,
começou a acreditar em milagres. Não estavam atirando
mais.
— Nyssen — disse com a voz tão débil que o capitão
mal podia ouvi-lo. — Venha cá!
Nesse instante uma enorme sombra negra projetou-se
sobre a planície ensolarada. Soltando um grito de pavor, o
tenente virou-se e tropeçou.
Mas era apenas a nave esférica dos arcônidas que se
preparava para pousar.
Nyssen teve tempo de admirá-la à vontade. Já a vira
antes. Foi há cerca de nove meses, quando acompanhara
Freyt no ataque ao cruzador cujos destroços se
encontravam diante deles. Acontece que naquela
oportunidade a distância fora muito maior.
— Meu Deus, que coisa monstruosa! — disse com a
voz espantada.
Freyt olhou-o. Ao que parecia, já recuperara a calma.
— Muito bem. Vamos até lá para pedir desculpas.
* * * Rhodan viu os três vultos que caminhavam por entre
os destroços. A distância era tão reduzida que se podia
estabelecer contato pelo rádio de capacete.
— Deixem de tolices! — ordenou Rhodan com a voz
áspera.
— Está bem, Rhodan — soou a voz de Freyt depois
de algum tempo. — Três náufragos como nós só podem
ser razoáveis.
Rhodan espantou-se ao ouvir aquela voz.
— Quem está falando? Será que é Freyt?
— Sim, sou eu.
— Quem são os outros?
— O capitão Nyssen e o tenente Deringhouse.
— Muito bem. Entrem.
Rhodan virou-se. Ouvira um ruído às suas costas. Era
Thora. Ao ouvir o nome Freyt exaltara-se, jogando para
trás o leito em que estivera sentada.
— Então é Freyt! — chiou, quando Rhodan lançou os
olhos sobre ela. — O homem que destruiu meu cruzador.
Rhodan não permitiu que prosseguisse.
— Não foi só Freyt. Não é o único culpado, ainda
mais se considerarmos que apenas estava cumprindo
ordens.
Os olhos de Thora chisparam um fogo avermelhado.
— O que pretende fazer com essa gente?
— Recebê-los a bordo. Tem alguma outra idéia?
— Isso está fora de cogitação. Não o permitirei!
Quem comanda o cruzador sou eu.
— O cruzador não existe mais.
— Esta nave auxiliar pertence ao cruzador. Essa
gente não será recebida a bordo.
De tão furiosa que se achava, parecia não ter dúvida
de ter dito a última palavra.
Mas houve um epílogo, e um epílogo que se revestia
de uma importância decisiva. Os presentes tiveram a
impressão de que testemunhavam uma luta singular e
extraordinária.
Rhodan virou-se para Bell.
— Bell, abra a comporta A.
— Pois não.
Thora, que lhe dera as costas, virou-se abruptamente.
— Acabo de dizer...
— O que você diz não me interessa — respondeu
Rhodan.
Crest, tomado de uma dor súbita, gemeu. Ninguém
lhe deu atenção.
— Esses homens não subirão a bordo da minha nave
— disse Thora, atropelando as palavras. — Acho que fui
bastante explícita. Proíbo...
— Você não pode proibir coisa alguma — advertiu-a
Rhodan em tom enérgico.
As palavras que Thora ainda quis proferir
transformaram-se num murmúrio ininteligível.
Deixou cair os ombros. Crest levantou-se, pegou-a
pelo braço e levou-a para fora.
Rhodan passou a mão pela testa. Bell deu um suspiro.
No corredor ouviram-se passos. A figura esbelta de
Freyt surgiu junto à escotilha.
Fez continência.
— Você tem diante de si um homem contrito —
disse, dirigindo-se a Rhodan. — Peço desculpas pelo
engano.
Sorriu ligeiramente. As feições de Rhodan
permaneceram sérias.
— Que engano?
— Pensamos que sua nave fosse dos Dl e procuramos
destruí-la.
— Por que não responderam às nossas mensagens?
— Nem sabíamos que haviam enviado mensagens.
Nossa nave sofreu avarias durante o pouso; o aparelho de
radiocomunicação ficou inutilizado.
— O que veio fazer na Lua?
Freyt baixou os olhos.
— Não é necessário responder — prosseguiu Rhodan
com a voz zangada. — Pretendiam remexer os destroços
do cruzador para ver se não poderiam conseguir algumas
75
armas aproveitáveis para o Estado-Maior da OTAN. Não é
isso?
Freyt não respondeu. Empurrando-o para o lado, o
capitão Nyssen postou-se diante de Rhodan.
— Major Rhodan, você já foi um dos nossos. Quando
saiu da escola de cadetes, eu já era capitão. Infelizmente
sou...
— Não se desvie do assunto!
Nyssen sorriu.
— Você terá que ouvir-me até o fim, tal qual fazia
quando ainda não passava de um simples cadete. Sabe
perfeitamente como trabalha a Força Espacial. Recebemos
ordem de voar até a Lua e remexer estes destroços. Não
venha me dizer que não sabe o que teriam feito de nós se
não tivéssemos embarcado imediatamente.
— Poderiam ter-me avisado — respondeu Rhodan.
Subitamente o rosto de Nyssen assumiu uma
expressão séria. Falando um pouco mais baixo, disse:
— Acontece que não é qualquer um que pode dar as
costas à pátria e fundar um clube só para ele.
As pessoas que se encontravam na sala de comando
retiveram a respiração. Todos entenderam o sentido das
palavras de Nyssen; esperavam a reação de Rhodan.
Este ficou imóvel como uma estátua. Não se saberia
dizer se a censura lhe causara qualquer impressão.
Depois de algum tempo deu de ombros e estendeu a
mão para Nyssen.
— Está bem, capitão — disse com um sorriso. —
Você ganhou.
* * * — Como vai ela?
— Tudo em ordem — respondeu Crest. — Se eu
fosse você, não faria uma coisa dessas pela segunda vez.
Rhodan deu de ombros.
— Não tive alternativas.
Crest confirmou com um vigoroso aceno de cabeça.
— Você não imagina que energia terrível há no olhar
dessa mulher. Acho que fui a única pessoa que sentiu todo
o impacto desse olhar. Até parecia que alguém queria
varrer meu cérebro com uma vassoura de aço.
Sorriu para Rhodan.
— Você devia estar com muita raiva. Não se esqueça
de que os cérebros dos arcônidas são mais treinados e
melhor utilizados que os dos homens, mas, em virtude da
degenerescência da raça, são menos resistentes. Os seus
ataques brutais podem levar Thora à loucura. Estou
falando sério.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Estava
muito contrariado.
— Sei disso. Talvez minha intenção fosse essa
mesma naquele momento.
Crest olhou-o. Parecia assustado.
— Mas isso...
Rhodan interrompeu-o com um gesto.
— Isso não se repetirá — disse para tranquiliza-lo. —
Tenho outros meios para obrigar Thora a agir
razoavelmente.
Crest seguiu-o com os olhos enquanto atravessava o
corredor, em direção à sala de comando. Num gesto
inconsciente procurou dar aos seus ombros caídos uma
expressão tão orgulhosa como a de Rhodan. Quando se
deu conta disso, sorriu.
* * * Rhodan despendeu algum tempo em subir com a
Good Hope até colocá-la numa posição que lhe permitisse
estabelecer contato radiofônico com Washington. Manteve
uma conversa demorada com os homens que, segundo
supunha, tinham ordenado a Freyt que voasse à Lua.
Ninguém assumiu a responsabilidade, mas todos
exprimiram seu pesar pelo incidente. Rhodan não se deu
por satisfeito; fez seu preço. Do outro lado houve algum
espanto, mas logo se chegou à conclusão de que não havia
nada a objetar às exigências de Rhodan.
Este logo fez a Good Hope pousar novamente no solo
lunar e pediu que comparecessem à sala de comando os
três sobreviventes da Greyhound, aos quais haviam sido
destinados camarotes individuais.
— Tive uma conversa com o pessoal de Washington
— principiou. — Pediram desculpas, mas isso não me
serve de nada. Manifestei um desejo e, face à situação
atual, resolveram me atender.
Lançou um olhar significativo para Freyt e Nyssen, e
finalmente para o tenente.
— Gostaria que vocês ficassem comigo — disse.
Freyt estreitou os olhos. Deringhouse ergueu-se de
um salto. O único que não reagiu foi Nyssen. Em
compensação foi quem falou primeiro.
— Já lhe dei minha opinião, major.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Não se trata de mudar de campo por puro amor.
Preciso de três bons pilotos espaciais, e os mesmos
acabam de cair em minhas mãos. Se resolverem aceitar a
oferta que lhes faço, a Força Espacial lhes concederá
exoneração com todas as honras. Tudo que têm que fazer é
dizer sim ou não. Dou-lhes vinte e quatro horas para
refletir. Muito obrigado, companheiros.
Levantou-se e saiu.
Duas horas depois obteve a resposta. Era sim.
Rhodan apertou a mão dos três homens. Estava
sorridente.
— Temos muita coisa importante a dizer —
começou. — E estamos com pressa. O exame dos
destroços do cruzador espacial demorará alguns dias.
Gastaram quatro dias nesse exame. Foi um tempo
bem empregado.
Os robôs da Good Hope — Rhodan trouxera alguns
deles da Terra — tiraram do núcleo quase intacto do
cruzador tudo que parecia útil e podia ser carregado na
nave. Muitos objetos tiveram que ser empilhados. Os
robôs usaram as chapas do cruzador que ainda se
encontravam em bom estado para construir um tipo de
barraca, na qual abrigaram o restante da carga.
Rhodan fez uma relação das máquinas e aparelhos
que haviam retirado do cruzador. Grande parte eram bens
de consumo destinados às trocas intergalácticas, nos quais
Rhodan viu a solução definitiva dos problemas financeiros
da Terceira Potência. Assim que tivesse em mãos o
produto da venda desses artigos, Homer G. Adams poderia
dedicar sua capacidade genial à solução de problemas mais
importantes.
Rhodan reservou, para uso próprio, uma série de
canhões de radiação de autopropulsão, armas energéticas
portáteis e uma instalação completa para a produção de
robôs especiais.
O exame da nave revelou outra coisa, que o próprio
Rhodan nem chegou a perceber. Foi Thora que o avisou.
Rhodan dispunha de um camarote especial a bordo da
Good Hope, o que também acontecia com os outros
tripulantes daquela nave de grandes dimensões, calculada
para uma tripulação muito maior. Por duas vezes Thora já
16
76
julgara necessário procurá-lo ali; mas alguns meses já se
tinham passado desde a última visita.
Por isso Rhodan ficou surpreso ao encontrá-la em seu
camarote naquela noite. Confortavelmente instalada numa
poltrona, balançava os pés.
Era noite, de acordo com a escala de tempo terrena.
Mas lá fora, na planície pedregosa, o sol continuava a
brilhar quase com a mesma intensidade de quatro dias
antes, quando a Good Hope pousou junto aos destroços da
Greyhound.
Ao que parecia, Thora não tinha a intenção de voltar
a falar no incidente havido com os tripulantes da nave
americana. Com um olhar amistoso disse:
— Acho que já é tempo de estabelecermos um bom
relacionamento.
Rhodan não dissimulou o espanto.
— É o que vivo dizendo há muito tempo —
respondeu. — Fico satisfeito em saber que resolveu
converter-se à minha opinião. Qual foi a causa da
mudança?
— A reflexão.
Rhodan procurou descobrir o que ela queria dizer.
Não acreditava que de um dia para outro compreendera as
ideias que não conseguira assimilar em um ano.
— Está bem. O que vamos fazer?
— Da minha parte prometo que não contestarei mais
sua posição de comandante desta nave e de outras que
ainda vamos construir — respondeu Thora.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Fico-lhe muito grato.
Rhodan falou devagar e procurou dar um tom
simpático à voz. Mas não o conseguiu, porque o espanto
era maior que a simpatia.
— De outro lado — prosseguiu — dependerei de
suas luzes em muitos pontos.
Thora sorriu.
— Não diga isso. Você sabe tanto quanto qualquer
comandante de cruzador arconídico, inclusive eu.
“Onde será que essa mulher quer chegar com estes
elogios?”, pensou Rhodan.
— Iremos a um planeta que vocês chamam de Vênus,
não é?
— Sim, naturalmente — respondeu Rhodan em tom
distraído.
Todas as pessoas que se encontravam a bordo da
Good Hope já sabiam disso antes de deixar a Terra.
— Será possível levarmos de uma vez tudo que
retiramos do cruzador?
— Não. Teremos de fazer três viagens.
— Isso levará bastante tempo. Acha que o pessoal
que ficou na Terra pode ser deixado só por tanto tempo?
— Por que não? Ras Tshubai é um elemento digno de
toda confiança. Além disso, serei avisado se houver algo
de anormal.
Thora continuava a balançar os pés. Tinha o aspecto
de quem procura lembrar-se de alguma coisa que ainda
possa dizer. Não se recordou de nada e levantou-se.
Seguindo os costumes humanos, estendeu a mão em
direção a Rhodan.
— Faço votos de que tenhamos uma boa colaboração
— disse.
Umas porções de ideias se cruzaram na cabeça de
Rhodan. Não sabia o que significava toda essa conversa.
Era a primeira vez em todo aquele tempo que se sentia
inseguro.
— Seria formidável se pudéssemos conversar mais
vezes.
— No que depender de mim, isso será feito —
respondeu Thora com um aceno de cabeça.
* * * Pouco antes da decolagem Rhodan teve uma palestra
com Crest. Provocara-a na esperança de descobrir alguma
coisa sobre os motivos do comportamento de Thora. Mas
quando se viu diante de Crest, não soube como traduzir
suas preocupações em palavras.
Mas deixou as ideias à vista, de modo que Crest pôde
lê-las no seu rosto.
— Que tal está o cruzador? — perguntou Crest por
achar que o problema era tão melindroso que seria
preferível não abordá-lo diretamente. — Será que existe
alguma possibilidade de colocar em funcionamento ao
menos o núcleo central?
— Está se referindo à nave espacial?
Crest confirmou com um aceno de cabeça. Rhodan
respondeu prontamente com algumas sacudidelas.
— É impossível. Não sobrou nenhuma peça do
mecanismo propulsor. Conseguimos resgatar as
instalações destinadas à fabricação de robôs. Acho que
elas nos serão muito úteis.
— Contando com os robôs especiais, quanto tempo
nós levaremos para construir na Terra uma nave que
realmente esteja em condições de enfrentar o espaço?
Rhodan deu de ombros.
— Alguns anos.
— Está vendo? — disse Crest.
— Não vejo nada. Crest sorriu.
— Conheço alguém — disse em tom matreiro — que
apoiou seu orgulho desarrazoado numa última esperança
de encontrar o caminho de volta sem o auxílio de uma
desprezível raça subdesenvolvida. Quando percebeu que
essa esperança não se realizaria... bem, você viu.
Rhodan compreendeu.
— Quer dizer que durante todo esse tempo ela
acreditou que seria possível colocar o cruzador espacial
em condições de navegabilidade?
Crest confirmou com um aceno de cabeça.
— Ela se agarrou a essa esperança, mas agora tem de
largá-la. Não foi fácil. Acho que está precisando de algum
apoio.
— O caminho está aberto — respondeu Rhodan
laconicamente.
* * *
Rhodan e Bell completaram o cálculo da trajetória
em quinze minutos. Na sua configuração atual, o triângulo
Terra-Sol-Vênus assumia uma posição quase vertical em
relação ao Sol. Com isso os cálculos tornavam-se mais
fáceis.
Rhodan e Bell utilizaram uma das calculadoras
eletrônicas existentes a bordo da Good Hope. Ao contrário
das calculadoras terrenas, que no caso exigiriam uma
programação complexa e uma série de operações
matemáticas, o aparelho arconídico trabalhava de forma
bastante simples, reduzindo as funções a um mínimo.
O voo decorreu sem incidentes. A distância de 180
milhões de quilômetros foi percorrida em três horas.
Para os três astronautas americanos, tratava-se de um
acontecimento que os levou ao limite da sua capacidade de
compreensão. Até Nyssen perdeu o autocontrole; o
espanto deixou-o mudo.
77
Freyt deu-se conta de como a técnica dos arcônidas
devia ser superior à dos terráqueos para permitir que suas
naves realizassem voos desse tipo. Subitamente sentiu-se
pequenino e miserável. Indagou de si para si como Rhodan
teria vencido esse choque, que sem dúvida sentira da
mesma forma que ele.
Ao iniciar-se a operação de frenagem, Vênus surgiu
sob a forma de uma bola amarela bem na linha de sua
trajetória. De início surgiu apenas um vago tremeluzir na
tela, mas dentro de alguns segundos percebia-se
nitidamente o planeta coberto por uma camada de nuvens.
A esfera amarela cresceu para além das bordas da tela
e seu brilho foi diminuindo. A turbulência da atmosfera de
Vênus tornou-se perceptível.
Vênus efetuava um movimento de rotação a cada 240
horas. O dia desse planeta tinha a duração de dez dias
terrenos. Além disso, ficava cerca de uns trinta por cento
mais próximos do centro de nosso sistema solar que a
Terra. Esses dois fatos faziam com que, apesar da
atmosfera protetora, houvesse uma diferença considerável
entre a temperatura diurna e noturna. Essa diferença
ocasionava tempestades tão intensas que um furacão dos
Caribes seria como uma pá de brinquedo comparada com
um trator.
Mas essas tempestades não atingiam a Good Hope.
Era bem verdade que ela oferecia um bom alvo aos
temporais que, ao penetrarem na atmosfera, atingiam
velocidades de até quinhentos quilômetros por hora;
todavia, a energia de que era dotado seu dispositivo
estabilizador bastava para mantê-la na rota.
Bell encarregou-se do localizador. Por ocasião de sua
primeira visita a Vênus, realizada há poucos meses,
Rhodan efetuara um mapeamento rudimentar de toda a
superfície do planeta, fixando as coordenadas a partir de
um ponto arbitrariamente escolhido. O continente
equatorial, onde Rhodan pretendia instalar a base,
estendia-se dos dezesseis graus de latitude sul aos vinte e
dois graus de latitude norte, e de zero a cinquenta e quatro
graus de longitude oeste. Sua superfície correspondia à da
América do Sul. A extremidade leste fora batizada de cabo
Cabeça de Cão, por causa de seu formato. A linha de
longitude zero passava pela ponta desse cabo.
O continente ainda não tinha nome, tal qual o mar
que o banhavam. Mas Rhodan fizera um estudo detalhado
de sua subdivisão e decidira instalar a base na costa norte,
junto à foz de um rio de mais de dez quilômetros de
largura. O terreno estava coberto por um matagal
impenetrável. Ninguém desejaria montar o acampamento
num ponto afastado da costa.
Os graves acontecimentos que se desenrolaram na
Terra não permitiram que a primeira expedição fizesse um
estudo mais minucioso das formas biológicas existentes no
planeta Vênus. Rhodan e os outros membros do grupo só
sabiam que o continente equatorial abrigava várias
espécies gigantescas e primitivas.
Sobre a flora não sabiam praticamente nada. As
folhas eram verdes como as da Terra, e não havia a menor
dúvida de que o ciclo da vida se desenvolvia no mesmo
sentido que o do planeta Terra.
O fator decisivo da escolha de Vênus como sede da
base foi a composição surpreendentemente favorável de
sua atmosfera. Era bastante densa para mitigar os efeitos
do Sol, que ficava bastante próximo, tornando suportável a
permanência humana. Durante as duzentas e quarenta
horas do dia reinavam temperaturas que em média
atingiam cinquenta e cinco graus centígrados. Durante a
noite, que tinha a mesma duração, o termômetro indicava
treze graus. A camada de nuvens que sempre cobria o
planeta fazia com que houvesse uma luz crepuscular e um
clima de estufa que se mantinha constante por várias
horas.
* * * — Olhe o cabo Cabeça de Cão! — anunciou Bell.
A estranha ponta de terra apresentou-se sob a forma
de uma mancha branca sobre o fundo verde reluzente da
tela.
Rhodan estava realizando a direção manual da Good
Hope. Face à reduzida exatidão dos dados consignados no
mapa, o pouso constituía um problema que não poderia ser
deixado a cargo da direção automática.
O cabo Cabeça de Cão deslizou pela tela do
localizador, arrastando atrás de si o continente com o
litoral que se desenvolvia nas direções noroeste e sudoeste.
Depois de algum tempo, o cabo desapareceu por uma das
bordas da tela, e os primeiros rios tornaram-se visíveis no
trecho de terra que ficava abaixo da Good Hope.
Rhodan verificou a altitude. Noventa e um mil
metros.
Comparou o quadro que se desenhava na tela com as
linhas de seu mapa. A distância entre o ponto em que se
encontrava a nave e a foz do rio onde seria instalada a base
ainda era de quatro mil quilômetros.
— É o rio das Mil Voltas! — exclamou Bell.
Escolheram esse nome porque nos seus meandros
intermináveis, o curso d'água descrevia inúmeras curvas e
volteios.
Bell registrava suas observações a intervalos
regulares, pois sua memória era excelente em relação a
mapas e configurações de terrenos.
Freyt, Nyssen e Deringhouse mantinham um silêncio
compenetrado. Crest e Thora, sentados num dos leitos,
observavam as telas. Tako Kakuta entrara em companhia
de Anne Sloane; também pareciam admirados. Rhodan
cumprimentou Anne com um gesto amável. Ela quase não
saíra da cabina desde que decolaram da Terra.
Manoli, bastante contrariado e olhando de vez em
quando para a tela do rastreador, ocupava-se com o
equipamento de rádio, que se mantinha em silêncio. Se é
que em Vênus existia alguma forma de vida dotada de
inteligência, a mesma ainda não atingira um estágio que
lhe permitisse utilizar a transmissão de mensagens sem fio.
— Aqui — exclamou Bell com a voz alta e alegre —
fica o...
Não pôde prosseguir. Um tremendo solavanco
sacudiu a nave, e o quadro na tela deu um salto para o sul.
As sereias de alarma uivaram.
“É um ataque!”, pensou Rhodan. “Alguém nos
ataca.”
Reagiu instantaneamente.
— Thora. Assuma seu posto de armas.
— Posto de armas ocupado.
— Conseguiu localizar alguma coisa?
— A localização não reage.
— Bell!
— Pronto!
— Coloque em posição os instrumentos externos.
Procure descobrir o que é.
— Está bem.
— Thora — gastou o tempo necessário para voltar e
encará-la — desta vez você vai aguardar minhas ordens
78
antes de atirar.
Thora limitou-se a confirmar com um aceno de
cabeça.
Rhodan pôs toda a potência nos reatores. Orientou o
acelerador de partículas, que produzia as ondas de matéria.
Uma simples manipulação da respectiva chave bastou para
regular o suprimento da massa de apoio.
A Good Hope opunha-se com o empuxo máximo dos
seus reatores à força estranha que a impelia para o norte.
Rhodan olhou fixamente para a tela do rastreador.
Bell anunciou:
— Campo gravitacional orientado procedente de zero
hora três minutos.
— Quero uma localização mais precisa — disse
Rhodan.
Com uma satisfação feroz, constatou que conseguia
manter a nave no mesmo lugar.
Bell calculou com uma pressa febril. Em palavras
apressadas deu a posição:
— Ponto de origem do campo em 29 graus 18
minutos norte, 15 graus 48 minutos leste.
— Thora!
— Tudo preparado.
— Fogo!
Comprimindo um botão, Thora disparou uma série de
foguetes gravitacionais, que no mesmo instante fizeram
sua aparição na tela de orientação de tiro.
No momento da explosão um foguete gravitacional
desencadeava um choque de gravidade que, conforme o
grau de estabilidade do alvo causava graves danos ou a
desagregação total do mesmo. Uma vez que a energia
gravitacional se desenvolvia num espaço de cinco
dimensões, os anteparos capazes de oferecer proteção
contra os efeitos dessas bombas eram extremamente
complicados. Thora fazia votos de que o inimigo, fosse ele
quem fosse, não dispusesse desses anteparos.
Na tela de orientação viam-se os minúsculos pontos
deslocarem-se para o norte. No local calculado por Bell,
um pequeno ponto reluzente surgiu na margem da tela
rastreadora.
— É um objeto metálico — constatou Bell.
Os foguetes de Thora prosseguiam na sua trajetória.
Aproximavam-se inexoravelmente do alvo. Na atmosfera
desenvolviam uma velocidade de Mach 10. Dentro de um
ou dois minutos o inimigo deixaria de existir.
Rhodan reduziu a energia do mecanismo de
propulsão da nave; a velocidade aumentou. Ao mesmo
tempo dirigiu-a para baixo. Uma explosão pesada como a
que seria desencadeada por aquela série de foguetes era
uma coisa linda e muito breve. Cinco minutos após a
explosão pousariam junto à base inimiga para verificar o
que sobrara.
Bell concentrou a atenção sobre a tela do rastreador,
enquanto Rhodan controlava os instrumentos de controle
de viagem várias vezes por minuto. Thora foi a primeira
que, através da imagem da tela de orientação de tiro,
tomou conhecimento dos acontecimentos espantosos que
se verificaram com os foguetes por ela disparados.
Toda a formação, constituída de seis projéteis, que
até então desenvolviam trajetórias paralelas e bastante
próximas, orientadas para o norte, descreveu subitamente
uma curva para o leste, aumentou de velocidade e dali a
poucos segundos, sob a influência do inimigo, deslocou-se
para fora do campo de alcance da tela de orientação de
tiro.
O susto deixou Thora paralisada. Demorou tanto em
virar-se e soltar um grito abafado que Rhodan chegou
tarde para ver o que havia acontecido com os foguetes.
Thora fez seu relato em palavras confusas. Rhodan
correu de volta para o assento do piloto, pôs toda a força
no mecanismo propulsor e voltou a imobilizar a nave,
submetida à ação de dois campos energéticos opostos.
As ideias cruzavam-se vertiginosamente em seu
cérebro, originando um quadro bastante vago: os Dl!
Era apenas uma suposição, mas entre todas as
hipóteses possíveis era a mais provável e racional. Os Dl
possuíam uma base ainda desconhecida na Lua. Era
perfeitamente possível que também tivessem concebido a
idéia de instalar uma base alternativa em Vênus.
Havia uma única contradição que não sabia explicar.
Por que não realizaram um ataque direto contra a Good
Hope? O raio direcional, consistente de um campo
gravitacional orientado, era uma força relativamente suave
face aos recursos de que certamente dispunha um inimigo
que sem mais aquela desviava seis foguetes gravitacionais.
Rhodan não se deixou perturbar pela confusão
causada pelas sucessivas hipóteses levantadas por Thora.
Fez o que lhe parecia mais acertado: aos poucos foi
conduzindo para baixo a Good Hope, que com toda a força
dos seus mecanismos lutava contra o raio direcional. De
um momento para outro aguardava um ataque mais eficaz
da parte do inimigo desconhecido, mas nada aconteceu.
Rhodan procurou compreender a mentalidade daqueles
seres que, ao que tudo indicava, desejavam apoderar-se da
nave inimiga, mas nada faziam para impedir que a mesma
se libertasse de sua influência.
A força tremenda arrastara a Good Hope além do
paralelo quarenta de latitude norte. Já haviam passado pelo
litoral do continente ártico, que se localizava quase
exatamente no paralelo trinta e oito.
Rhodan pôs fim à discussão que se desenvolvia atrás
de suas costas.
— Vamos pousar — anunciou. — Espero que com
isso consigamos nos subtrair à influência estranha.
Provavelmente será mais fácil nos aproximarmos do
inimigo pela superfície do planeta. Não temos alternativas.
O inimigo é superior a nós, ao menos na quantidade de
energia de que pode dispor; tomara que não o seja também
nos aperfeiçoamentos técnicos. Se estiver no mesmo nível
que nós, não terá possibilidade de localizar-nos depois que
tivermos pousado. Naturalmente o continente ártico deve
oferecer muitas possibilidades de ocultar uma nave como a
nossa. Enquanto estivermos dentro do matagal, ou pouco
acima dele, seremos invisíveis. Por outro lado, não
podemos nos dar ao luxo de deixar completamente fora
das nossas vistas um inimigo que se encontra em nossa
área de atuação. Assim nada nos resta senão nos
arrastarmos pelo matagal.
Bell estava a ponto de responder. Mas nesse exato
instante os acontecimentos tomaram um rumo
completamente novo: o receptor a cargo do Dr. Manoli
começou a dar sinal de vida.
O equipamento funcionava com base em hiperondas.
Isso significava que o inimigo possuía um emissor capaz
de operar nessa faixa. Dali se concluía que sua técnica era
bastante desenvolvida.
Do receptor saíram palavras acusticamente perfeitas,
distinguíveis uma das outras. Acontece que ninguém as
entendia, nem mesmo Crest.
— Responda — disse Rhodan, dirigindo-se a Manoli.
79
— Nossas intenções são pacíficas. Não admitimos
qualquer intromissão em nossa rota.
Manoli fez o que lhe fora ordenado. Mal terminara,
quando a resposta começou a sair do receptor. Rhodan
esperara que conseguisse analisar aquela língua. Mas as
palavras continuavam ininteligíveis.
Afastando Manoli, Rhodan repetiu a mensagem na
língua dos arcônidas. Mais uma vez a resposta veio sob a
forma de uma série de sons incompreensíveis. Teve a
impressão de que o interlocutor desconhecido repetia
constantemente as mesmas palavras. O fato de ser ele
mesmo o destinatário da mensagem não o impressionava.
— Crest! — gritou. — Vou retirar a fita. Coloque-a
no tradutor e procure descobrir que língua é essa.
Abriu o registrador de fita acoplado com o emissor-
receptor e cortou a parte da fita que registrara a mensagem
do desconhecido. Crest inseriu-a na tradutora automática.
O estranho desistiu de transmitir suas mensagens.
Com certa inquietação Rhodan deu-se conta de que esse
gesto poderia ser o prenúncio de um ataque. Talvez o raio
direcional não passasse de uma forma de orientação da
nave inimiga. Talvez só agora, quando não obtinha
resposta satisfatória às suas mensagens, compreendesse
que uma nave estranha se aproximava.
Rhodan fez a Good Hope baixar o mais rápido
possível. A altitude ia diminuindo, e a dez mil metros do
solo também diminuiu subitamente a intensidade do
campo gravitacional do inimigo. A mil metros desapareceu
praticamente, e a Good Hope recuperou sua capacidade de
manobrar.
Bell, que reassumira seu posto, observava o trecho de
terreno projetado sobre a tela do rastreador. A essa altitude
também as telas óticas começaram a funcionar. A camada
compacta de nuvens ficara para trás a uma altitude de
cerca de cinco quilômetros, e o terreno acidentado, talvez
montanhoso, do continente polar ofereceu-se, nas telas, à
visão dos observadores.
— Montanhas até seiscentos metros de altura —
anunciou Bell.
Rhodan respondeu com um aceno de cabeça; parecia
satisfeito.
— Isso basta para esconder uma nave de sessenta
metros.
Crest, que concluíra o exame da fita, aproximou-se
do assento do piloto. Rhodan afastou-o com um gesto,
antes que começasse a falar.
— Um instante, por favor. Dentro de cinco minutos
minhas mãos estarão livres.
Bell começou a comparar as imagens projetadas na
tela do rastreador e do visor ótico. A nave continuava a
descer.
— Olhe! — exclamou. — Nosso lugar é ali.
Rhodan levantou os olhos. Na direção nordeste,
ligeiramente fora da trajetória da Good Hope, uma série de
colinas estendia-se pelo terreno, subindo suavemente até o
cume da primeira montanha. A uns dois terços da distância
que separava a planície do cume abria-se uma cratera. Era
redonda e seu diâmetro media uns duzentos metros. Suas
bordas desciam para as profundidades das colinas. No
lugar em que se encontravam não era possível determinar a
profundidade.
Rhodan respondeu com um aceno de cabeça e
modificou o curso da nave. Passou junto à montanha,
seguiu a linha da cumeeira e parou acima do centro da
cratera.
A visibilidade era boa. A Good Hope estava
estacionada a menos de cem metros acima da borda da
cratera. A profundidade da mesma era de cerca de oitenta
metros. Rhodan sentiu-se tranquilizado ao perceber que as
paredes não eram muito íngremes, como as crateras
vulcânicas.
— Está bem — disse. — Vamos pousar.
O fundo da cratera estava coberto de um emaranhado
de vegetação e de algumas árvores.
As telas escureceram quando a Good Hope
mergulhou. Rhodan desceu devagar, com muita cautela.
Quando as bordas da cratera se erguiam acima do ponto
mais alto da nave, o sinal azul de parada iluminou-se no
painel.
A Good Hope concluíra o pouso.
III
Rhodan voltou-se. Crest estava de pé atrás dele, com
a fita do tradutor na mão.
— Diz que se trata de uma forma antiga do
intercosmo — informou. — Aqui está a tradução.
Entregou o cartão a Rhodan. Na linguagem silábica
dos arcônidas lia-se a seguinte mensagem:
Queiram dar o sinal convencional em código.
Bell olhou por cima de seus ombros. Dominava a
língua arconídica, escrita ou falada, tão bem quanto
Rhodan, Crest e Thora.
— Sinal convencional! — murmurou. — Com quem
será que essa gente convencionou alguma coisa?
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Isso não é tão importante. O que interessa é saber
o que vem a ser o intercosmo antigo.
Procurou recorrer à memória do que lhe fora
transmitido pelo treinamento hipnótico. Intercosmo?
Intercosmo antigo?
Ao que parecia Crest também não dispunha de uma
resposta. Rhodan sabia da existência de uma língua
denominada de intercosmo. Servia de instrumento de
comunicação em todo o Império. O intercosmo
desenvolvera-se nos últimos mil anos da escala de tempo
terrestre. O adjetivo antigo parecia indicar que havia uma
forma ainda mais velha dessa língua. Mas nem Rhodan
80
nem Crest sabiam dizer quando a mesma se desenvolvera,
e por quem era usada.
De qualquer maneira era tão antiga que não guardava
a menor semelhança com o intercosmo falado nos dias
atuais.
Rhodan levantou-se.
— Assim não chegaremos a nada. Temos que pôr-nos
a caminho.
Abandonou a suposição de que dera com uma base
desconhecida dos Dl. Pela estrutura do seu cérebro, esses
seres não utilizavam nenhuma língua para comunicar-se.
Se dispusessem de uma base neste planeta, teriam usado a
via telepática para solicitar a senha codificada.
Isso tranquilizou Rhodan, embora ele não dispusesse
de qualquer informação que lhe permitisse concluir que o
inimigo com que se defrontava não era ainda mais
perigoso que os Dl.
Olhou os presentes um por um e disse em tom
compenetrado:
— Não vamos perder tempo. Antes que termine o
dia, nossa patrulha deve avançar um bom pedaço.
* * * — O que lhe parece?
Rhodan estava no seu camarote, em companhia dos
dois arcônidas. Há meia hora Bell, Tako Kakuta e os três
astronautas americanos haviam saído da nave para
explorar os arredores e realizar o levantamento
cartográfico do terreno.
Thora parecia abatida. Rhodan indagou de si para si
se isso ainda seria efeito da impressão causada pelo
cruzador espacial destroçado sobre a Lua, ou se o seu
estado fora causado pelo surgimento de um inimigo
desconhecido, capaz de enfrentá-la de igual para igual.
Crest inclinou-se.
— Não podemos formular nenhuma conjetura —
respondeu. — Não temos qualquer indicação sobre os
seres que se põem no nosso caminho.
— Indagou aos registros?
— Indaguei; não sabem de nada. Vênus não consta
entre os mundos habitados onde nossas naves já
aportaram.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Era o que eu esperava. Se os registros soubessem
quem vive em Vênus, minha memória recém-implantada
devia ser capaz de informar o que vem a ser o Intercosmo
antigo. Acontece que não sei; pior que isso, não tenho a
menor ideia do que vem a ser isso.
Crest ficou calado por um instante. Depois
conjeturou:
— Não é de todo impossível que no início da
expansão galáctica alguma expedição arconídica tenha
avançado até aqui e perdido a comunicação com o planeta
natal em virtude de uma catástrofe. Assim se explicaria
por que nossos registros nada sabem sobre esta colônia.
Rhodan refletiu sobre as palavras de Crest.
— Daí se concluiria que segundo os padrões terrenos
esta colônia teria pelo menos dez mil anos.
Crest fez que sim.
— Isso mesmo. Foi nessa época que teve início a
expansão. Alguns séculos depois as comunicações já
tinham sido aperfeiçoadas tanto que uma colônia recém-
instalada nunca poderia cair no esquecimento.
— Muito bem. Suponhamos que se trate de
arcônidas, como vocês. Ou melhor, de arcônidas que se
desligaram da terra natal há dez milênios e certamente
desenvolveram seu próprio estilo de vida. Isso adiantaria
alguma coisa, se não entendem nossa língua, nem nós a
deles?
Crest lançou-lhe um olhar de surpresa.
— Quer dizer...
— O que quero dizer é que temos um inimigo diante
de nós, quer se trate de arcônidas, quer não. E continuará
sendo nosso inimigo enquanto não pudermos informá-lo
sobre nossas reais intenções. Quando pudermos fazer isso,
decidirá se vai ficar conosco ou contra nós.
— Ou se vai ficar neutro — ponderou Crest.
Rhodan estacou. Depois de algum tempo sorriu.
— Acredita mesmo que neste setor da galáxia exista
alguém que possa ficar neutro nos próximos milênios?
Quero dizer mais uma coisa — prosseguiu. — Teremos de
aproximar-nos sorrateiramente da base deles, como se
tivéssemos um inimigo diante de nós. Se não o fizermos,
acabaremos sendo localizados e provavelmente destruídos.
Assim que conseguirmos chegar à base, teremos de atacar.
Faremos o menor estrago possível, mas não podemos
deixar de atacar, nem que seja para entrar e falar com essa
gente. Não nos abrirão as portas espontaneamente. Não
adianta perdermos tempo quebrando a cabeça a este
respeito.
Crest acenou, numa atitude pensativa.
— Meu jovem amigo, sua lógica é de uma energia
assustadora — disse com a voz baixa. — Embora meu
treinamento cerebral tenha sido mais prolongado que o
seu, teria levado algumas horas para chegar a essa decisão.
De qualquer maneira existe a possibilidade de nos vermos
obrigados a atirar contra seres da nossa espécie.
Rhodan levantou-se. Ia dizer alguma coisa, mas
Thora cortou-lhe a palavra.
— Já pensou? — perguntou. — Como é possível que
há dez mil anos, segundo sua escala de tempo, um grupo
se tenha fixado aqui, e em todo esse tempo não tenha
conseguido realizar uma colonização visível do planeta?
Rhodan fez um gesto de assentimento.
— Já pensei nisso. Seria de esperar que num espaço
de dez mil anos um grupo de colonizadores, por menor que
fosse, conseguisse pôr sua marca ao mundo que habita. E o
que encontramos aqui? O matagal, a água, os vulcões. Não
há o menor vestígio de uma civilização.
— Será que um campo gravitacional orientado e o
desvio de seis foguetes não constituem um sinal? —
perguntou Crest numa ironia bonachona.
— Está certo. Mas fora da base não existe nada.
Crest fitou o vazio.
— Que conclusão você tira disso? — perguntou
depois de algum tempo.
— Nenhuma — respondeu Rhodan laconicamente.
— Resolvi quebrar a cabeça com coisas mais importantes.
Assim que conseguirmos penetrar na base deles, lá no
norte, veremos o que encontramos.
* * * Às cento e oitenta horas, tempo local, Bell retornou
com seu grupo. Apresentou-se imediatamente a Rhodan.
Entregou-lhe um mapa desenhado numa folha de plástico,
que tinham levantado com o cartógrafo automático.
— Realizamos o levantamento completo de uma área
com o raio de cem quilômetros em torno da nave. Não foi
fácil, nem mesmo com os trajes transportadores
arconídicos. Não nos arriscamos a subir mais que
81
cinquenta metros acima das copas das árvores.
— Tomara que não tenha sido demais — disse
Rhodan em tom preocupado.
— Cinquenta metros? É impossível. A base deles fica
a uns quinhentos quilômetros. A uma distância dessas...
— O traje transportador funciona com base na
gravitação artificial. E uma fonte de gravitação pode ser
detectada a milhares de quilômetros de distância.
Bell empalideceu.
— É verdade. Mas ouça. Talvez o que descobrimos
baste para eliminar suas dúvidas — apontou para o mapa.
— Esta área tem acesso direto ao mar. Um fiorde ou coisa
parecida avança até aqui. Fica a menos de dez quilômetros
do ponto em que nos encontramos. Nessa altura ainda tem
duzentos metros de largura.
— Um fiorde?
— Isso mesmo. A água é salgada e imóvel. Se não
for um fiorde, só pode ser um lago salgado.
Rhodan acenou com a cabeça.
— Está bem; prossiga.
— A água está repleta de animais de toda espécie.
Encontramos peixes completamente normais e um tipo de
foca. De resto, só há bichos horríveis; nunca vi nada
parecido. Você vai ficar todo arrepiado. Há polvos tão
grandes que um batalhão inteiro pode esconder-se atrás
deles; alguma coisa parecida com uma cobra, só que tem
seis pés; e outros bichos que ficam parados em cima da
água que nem um tapete fino. Só se mexem quando se toca
neles. Não lhe dão a menor chance. Ao menos não deram
nenhuma chance à pedra que atirei neles; de repente o
lindo tapete transformou-se numa bola gosmenta que
agarrou a pedra e arrastou-a para o fundo.
Rhodan interrompeu-o rindo.
— Está bem. Mais alguma coisa importante?
Bell lançou-lhe um olhar de censura.
— Pois bem — disse com um suspiro. — O terreno
apresenta um declive para o norte. Localizamos uma
cadeia de montanhas a grande distância. Não acreditei nos
instrumentos, mas os picos mais altos chegam a mais de
dez mil metros!
Rhodan deu de ombros.
— Todo o interior do continente parece ser um
emaranhado de montanhas. Os picos mais elevados ficam
na região em que o inimigo tem sua base. Entre eles há
alguns vulcões bem feitos. Nos demais lugares, o terreno
não oferece nada de interessante. Para o leste e o oeste a
altitude mantém-se constante, embora haja algumas
colinas. Para o sul vai descendo em direção ao mar.
O ar fede a fogo e enxofre, mas pode-se respirá-lo
sem sentir náuseas. Existem animais que são do tamanho
do Empire State Building.
— Vamos devagar, Bell.
— Está bem; são de um tamanho apavorante. Mas
não parecem muito inteligentes. Nyssen testou sua
capacidade de reação. Não teve a menor dificuldade em
flutuar no ar bem à frente da boca deles e escapar em
tempo. Ainda há dois rios pequenos, que correm na
direção geral do sul. Não encontramos mais nada. O mapa
registra tudo o que achamos interessante.
Rhodan assentiu com um movimento de cabeça.
— Você ficou de me explicar por que aqueles seres
estranhos não poderiam localizá-los, mesmo que voassem
a cinquenta metros acima das copas das árvores.
— Estão encurralados no meio das montanhas do
norte, e é muito provável que na nossa direção tenham
pelo menos um cume diante do nariz, que lhes roube a
visão e a possibilidade de localização.
Rhodan virou-se de lado e examinou Bell dos pés à
cabeça.
— E você acha que é impossível que tenham
montado suas instalações de localização em cima do cume
mais alto, para dar-lhe maior eficiência, não é?
— Não, isso não; mas...
Parou em meio à frase.
— Bem, saberemos — disse Rhodan. — Que Deus
tenha compaixão de você se tiver revelado nossa
localização.
Por alguns minutos Bell parecia muito abatido.
Depois disse:
— Acho que, se soubessem onde estamos já nos
teriam bombardeado.
Rhodan sacudiu os ombros.
— Talvez.
* * * Pouco depois das cento e noventa horas chegou o
crepúsculo, e com ele um verdadeiro exército de
tormentas. Rhodan mandara equipar os principais
cronômetros da nave com mostradores adaptados à rotação
de Vênus. O dia tinha duzentas e quarenta horas de Vênus,
e uma hora de Vênus só apresentava uma diferença de
cerca de quinze segundos em relação à hora terrena.
Rhodan decidira manter a patrulha a bordo por mais
algum tempo. Achara conveniente explorar em primeiro
lugar os arredores da nave, a fim de que os homens
pudessem levar o equipamento necessário para a marcha
pela selva. Antes de tudo, quis ter certeza de que a
leviandade de Bell não despertara a atenção do inimigo. Se
este fosse o caso, não poderiam utilizar os trajes
transportadores dos arcônidas, ao menos em voos por cima
das copas das árvores. E abaixo delas eram inúteis. Na
selva do continente polar ninguém conseguiria voar.
Além disso, Rhodan postara sentinelas. Ao menos
um homem que sabia lidar com os instrumentos de busca e
vigilância da Good Hope tinha de permanecer na cabina de
comando. Em caso de emergência talvez não bastasse que
acudissem aos sinais de sirena para defender-se de um
atacante. Quem estivesse de sentinela devia gravar numa
fita as observações mais importantes, quer se
relacionassem com a tarefa da expedição, quer não.
Qualquer indicação, inclusive sobre animais ou
ocorrências da natureza, assumia certa importância na
medida em que contribuía para fornecer um quadro de
informações sobre os arredores.
Rhodan assumiu o primeiro turno, das cento e
noventa as cento e noventa e três horas. Apagou a luz da
cabina de comando, onde não havia mais ninguém e, para
observar os arredores, colocou uma sonda ótica em nível
superior ao da borda da cratera.
A tempestade desenvolvia uma fúria inconcebível em
meio ao crepúsculo.
A tormenta vinha do leste, do meio da noite.
Utilizando uma sonda aerodinâmica, Rhodan mediu a
velocidade do vento.
Constatou valores de trezentos e cinquenta
quilômetros por hora, menores, portanto, que os
observados em grandes altitudes.
Lá pelas cento e noventa e duas horas escureceu por
completo, o que obrigou Rhodan a conectar a sonda ótica
com o dispositivo infravermelho. Com isso perdeu o
colorido das imagens que surgiam na tela. Os raios
82
infravermelhos projetavam desenhos brancos em fundo
negros.
Meia hora depois a tempestade começou a amainar.
Bem perto, uma cabeça com formato de cobra surgiu
por cima da folhagem; pertencia a um animal da classe dos
sáurios. O pescoço encimado por uma cabeça minúscula
executava movimentos pendulares. Provavelmente o
animal tentava orientar-se pela tempestade. Rhodan
observou atentamente, para descobrir quanto tempo
gastaria nisso. Ao que parecia a informação de Bell era
correta: os animais não eram nada inteligentes.
Rhodan ligou o gravador e falou:
— Avistei um animal da classe dos sáurios. Com o
pescoço esticado a cabeça fica a uns cinco ou seis metros
acima da folhagem. Leva dez minutos para orientar-se
num terreno que oferece ampla visibilidade.
Era bom saber disso. Com isso a patrulha não
precisaria dar uma volta enorme em torno de cada sáurio
com que se deparasse. Provavelmente poderia passar por
entre as suas pernas, sem que ele percebesse nada.
Subitamente ouviu um ruído atrás de si. Virou-se
abruptamente e viu o vulto esbelto de Thora à luz mortiça
das telas.
— Não meta um susto destes nos outros — disse em
tom de gracejo. — Existe gente mais nervosa que eu.
Thora deu uma risadinha.
— Vim revezá-lo. Seu turno está quase no fim.
Rhodan olhou para o relógio. Faltavam mais de vinte
minutos.
Ambos contemplaram a tela em silêncio.
— Você devia ter visto isso quando a tempestade
ainda uivava — disse Rhodan depois de algum tempo. —
Era um quadro bem romântico.
Thora não respondeu. Levou alguns minutos para
formular uma pergunta estranha:
— Está gostando?
— De quê?
— Deste mundo.
Rhodan confirmou com uma expressão séria.
— Gosto de qualquer mundo em que ponho os olhos.
Conheço muitos deles, alguns bem, outros menos bem. Só
ficarei satisfeito quando tiver visto todos eles.
Prosseguiu depois de uma pausa:
— Por quê? Você não gosta?
Thora hesitou antes de responder.
— Não sei se compreenderá. Quem pertence a uma
raça como a minha sabe que não encontrará nada de novo
no universo. Tudo que descobrimos já foi visto por nós em
outro lugar, igual, ou sob uma forma semelhante. Com o
tempo a gente se cansa de ver coisas, sabe? Às vezes
chego a perguntar quando algum filósofo terá a ideia de
pedir a abolição das viagens espaciais, já que elas não
contribuem para o desenvolvimento espiritual dos seres
inteligentes.
Rhodan deixou que a ideia lançasse raízes em sua
mente. “Não é tão absurda assim”, pensou. “Quem tem
uma história de dezenas de milhares de anos não encontra
mais nada que seja novo.”
— Suas naves nunca atingiram as outras galáxias, ou
melhor, nenhuma das raras tentativas nesse sentido teve
algum êxito. Isso não seria uma possibilidade?
— Você fala como um homem — respondeu Thora
com uma ponta de ironia. — É jovem, curioso e um tanto
impetuoso.
— Sou um homem — disse Rhodan.
— Pense no custo de uma expedição intergaláctica, e
na utilidade que pode proporcionar em comparação ao
mesmo.
— Custo? — interrompeu Rhodan em tom exaltado.
— Quem quer saber de custos quando se trata de um
empreendimento novo, que revolucionará o mundo? O
desenvolvimento do programa de viagens espaciais dos
terráqueos, até a construção da primeira nave lunar,
consumiu tanto dinheiro que toda a humanidade poderia
viver despreocupadamente na maior abundância. Alguém
se preocupou com isso? Não. Na Ásia, na África e nos
países latino-americanos milhões de pessoas continuaram
a morrer de fome, ou de doenças que poderiam ter sido
curadas se houvesse o dinheiro necessário para a compra
de remédios. Em vez disso preferiu-se construir uma nave
lunar. Não sei até que ponto esse tipo de desenvolvimento
pode ser compatibilizado com a moral. De qualquer
maneira a humanidade é um bando de teimosos que não
está empenhado em voltar ao paraíso, mas em satisfazer
sua curiosidade e enfiar o nariz cada vez mais pelo mundo
adentro. Quem sabe se a humanidade já não existiria se
não fosse assim. Não faltaram catástrofes que fizeram tudo
para extinguir a chama de sua vida.
Falara com certa violência. Mas Thora compreendeu
que essa violência não se dirigia a ela. Foi o orgulho da
raça que o arrebatou.
Subitamente Thora invejou-o por esse tipo de
orgulho.
— Não sei se, mesmo nos seus melhores anos, nossa
raça já esteve tão repleta de energia como a sua — disse
depois de alguns minutos.
Rhodan voltou-se e procurou enxergar seu rosto na
escuridão. Seus olhos vermelhos emitiam um reflexo débil
sob a luz das telas. Não parecia que estivesse fazendo
pouco dele.
A resignação daquela mulher inquietava-o e deixava-
o acanhado. Olhou para o relógio. Seu tempo terminara.
— Foi um prazer conversar com você. Espero que
ainda tenhamos muitas oportunidades para isso.
Thora cumprimentou-o com um aceno da cabeça.
Quando fechou a escotilha atrás de si, lamentou não
ter ficado com ela. Thora chegara mais cedo. Por que ele
não poderia ficar até mais tarde? Talvez estivesse
decepcionada. Voltou-se e esteve a ponto de abrir a
escotilha. Mas acabou desistindo. Talvez ela lhe lançasse
um olhar irônico quando o visse entrar de novo, e isso lhe
estragaria a disposição.
Devagar e pensativo foi voltando ao seu camarote.
Sentou na poltrona e fumou um cigarro. Ligou a tela, mas
os aparelhos do camarote não dispunham de sonda, e por
isso só viu as paredes escuras da cratera em que a nave
estava escondida.
* * * Rhodan não sabia quanto tempo tinha dormido
quando foi acordado pela campainha do interfone. Sentiu-
se cansado.
O rosto redondo de Bell surgiu na tela:
— Acorde! — gritou este. — Que diabo, acorde!
Ainda meio sonolento Rhodan pôs o dedo no botão
do interfone e comprimiu-o.
— O que houve? — resmungou.
Bell respirou aliviado.
— Já pensava que você nunca mais...
— Deixe de preâmbulos! Quero dormir.
— Acabo de fazer uma observação, Rhodan.
83
— E daí? Registre-a no gravador e deixe-me em paz.
— Nada disso! — gritou Bell. — As focas saíram da
água e estão realizando uma conferência no cume da
montanha. Você não pode deixar de ver isso.
Espantado, Rhodan sacudiu a cabeça.
— As focas? Que focas são essas?
Mas logo se lembrou do relatório que Bell lhe
apresentara no dia anterior. Saiu da cama gemendo.
— Está bem. Já vou até aí.
Não se lavou. Apenas acendeu um cigarro.
Bell estava boquiaberto diante da tela. Fez um gesto
para que Rhodan se aproximasse; não emitiu um som,
como se tivesse receio de assustar as focas.
Rhodan viu que ele acoplara um ampliador setorial
na sonda ótica. Dessa forma conseguira aproximar o platô
da montanha, situado a oito quilômetros de distância, de
tal forma que se distinguiam todos os detalhes.
Tanto a longa encosta daquela montanha de cerca de
quinhentos metros de altura, nem seu cume pareciam ser
diferentes da borda da cratera no que dizia respeito à
composição do solo. A vegetação subia pelas paredes da
cratera, prosseguia pela encosta, tornando-se cada vez
mais rala e deixava o cume completamente à vista.
Rhodan olhou para o relógio. Era pouco antes das
cento e noventa e seis. Bell fora escalado para servir de
sentinela depois de Thora.
Passou a observar a tela. Bell quis dizer alguma
coisa, mas Rhodan interrompeu-o com um gesto.
No cume uns grupos enormes de animais estranhos se
moviam. Tinham uma vaga semelhança com focas; mas,
pela descrição de Bell deviam ser animais da classe dos
peixes, que respiravam através de guelras.
Seus movimentos eram fascinantes. Parecia que
alguma coisa fazia com que sempre dessem o mesmo tipo
de salto ao mesmo tempo.
— Que acha disso? — perguntou Bell.
— Você não disse que são peixes?
— Sim; têm guelras e enquanto os observamos não
puseram a cabeça para fora da água.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça.
— Quem sabe se estes peixes não têm pulmão? —
disse em tom pensativo.
— Santo Deus, você acha que a respiração deles é tão
interessante? Gostaria muito mais de saber que tipo de
procissão é esta que estão realizando.
— Não é nada de especial. Na Terra temos coisa
semelhante, como por exemplo, a brama do galo silvestre.
Bell sacudiu a cabeça.
— Nunca vi um galo silvestre bramar, mas tenho
certeza de que não ficam pulando em ritmo como esses
animais.
Rhodan passou a mão pela cabeça.
— Você não deixa de ter razão.
Subitamente o cansaço abandonou-o.
— Rápido, arranje dois trajes transportadores.
Bell levantou-se com um sorriso.
— Finalmente!
Rhodan tomou lugar junto ao interfone e chamou
Crest, que devia ficar de sentinela depois de Bell.
Informou-o sobre o que este havia observado e disse que
pretendiam aproximar-se do bando de focas para observá-
las de perto e capturar uma delas.
Crest concordou e no momento em que Bell e
Rhodan terminaram de colocar os trajes transportadores,
entrou na sala de comando.
— Parece que sua preocupação com o localizador do
inimigo desapareceu como por encanto, não é? —
perguntou Bell quando abriram a comporta externa.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Não pretendo deslocar-me a cinquenta metros
acima das copas das árvores, e, além disso, no nosso caso,
os cumes das montanhas realmente oferecem uma proteção
excelente.
Bell não o contradisse.
Foram voando lentamente bem junto às colinas.
Rhodan se armara com uma pistola de radiação, enquanto
Bell carregava um desintegrador um tanto pesado.
A noite estava escura. De início a diferença entre a
nitidez do quadro que se desenhava na tela e o negrume do
nada para o qual olhavam deixou-os irritados. Mas mesmo
por entre à camada compacta de Vênus penetravam alguns
raios de luz, e com o tempo seus olhos acostumaram-se a
essa iluminação escassa.
Levaram quinze minutos para percorrer os oito
quilômetros. Não se deslocaram com muita rapidez, para
não assustar as focas.
Ficaram observando por alguns minutos. As focas
tinham cerca de um metro.
Geralmente moviam-se como as focas da Terra,
apoiando-se na cauda e nas barbatanas. Mas durante a
dança conseguiam às vezes desprender as barbatanas do
chão, equilibrando-se por meio minuto apenas sobre a
cauda. Pareciam engraçadas e dificilmente alguém
imaginaria que esses animais, mesmo atacados, pudessem
representar um perigo para quem quer que fosse.
Subitamente aquilo que Bell chamara de procissão
terminou. No silêncio que passou a envolver o platô,
Rhodan lembrou-se de que os próprios animais não
haviam emitido qualquer ruído além do arranhar das
barbatanas. Parecia ser um grupo silencioso.
Tudo indicava que se preparavam para deixar o local.
Rhodan deu um empurrão em Bell. Ergueram-se de trás da
moita que os ocultava e com dois ou três saltos alcançaram
o grupo de focas. A reação dos animais foi instantânea. A
maior parte deles desceu em largos saltos a encosta do
outro lado, muito mais íngreme. Outros procuraram
escapar em meio à escuridão. Apenas um deles não foi
bastante rápido para escapar às mãos de Bell e Rhodan.
Por estranho que parecesse não se defendeu quando
notou que estava preso. Ficou deitado de costas, imóvel,
fitando os dois homens com seus olhos grandes.
— Cuidado! — disse Rhodan. — Pode ser um
truque. De repente pode dar um salto e desaparecer.
Mas o bichinho não parecia pensar nisso. Permitiu
que Bell e Rhodan o levantassem. Puseram a funcionar os
propulsores de seus trajes e num rápido voo rasante
levaram-no até a nave.
Crest já avisara o resto da tripulação de que algo de
interessante se passava. Quando Rhodan e Bell entraram
na cabina com o prisioneiro, todo mundo já estava reunido.
— O que pretende fazer com ele? — perguntou
Manoli.
— É o que quero perguntar a você — respondeu
Rhodan. — Chegou a observar esses animais?
Manoli fez que sim.
— Acho que dispõem de um nível de inteligência
relativamente elevado — disse Rhodan. — Como
poderíamos descobrir se é assim?
— Quem sabe se uma análise cerebral não
resolveria? — interveio Bell.
84
Rhodan pôs-se a refletir.
— Isso só seria viável se o bichinho fosse capaz de
conceber ideias lógicas. Não custa tentar.
A foca estava estendida sobre uma das mesas do
laboratório. Manoli apalpou-a cautelosamente.
— É estranho — disse. — Sou capaz de apostar que
este animal é capaz de emitir sons. Por que não fala?
Bem junto à cabeça da foca, em cima da mesa de
laboratório trazida para a cabina de comando, havia um
pequeno recipiente de vidro, de paredes bem finas.
Subitamente o animal começou a emitir sons estridentes,
deu um salto e quebrou o vidro. Perplexo, Manoli fitou os
cacos.
— Ora essa! — disse Rhodan. — Devíamos ter
pensado nisso.
No laboratório, repleto de instrumentos destinados a
estabelecer contato com seres de língua e técnica de
comunicação diferente, havia um receptor de ultrassom,
que tinha por fim transformar as frequências supersônicas,
imperceptíveis aos ouvidos humanos e arconídicos,
colocando-as numa faixa audível.
Colocaram o aparelho perto da foca; ouviu-se uma
série de zumbidos, chiados e chilreios. Tais sons foram
gravados em fita, a fim de que o analisador cerebral os
conjugasse com os impulsos cerebrais do animal e
procurasse realizar a reconstituição lógica da linguagem
das focas. Isso, porém, só seria possível se o animal tivesse
emitido uma verdadeira linguagem, e não apenas uma série
de sons inarticulados ditados pelo medo, pela excitação ou
pela raiva.
O analisador era um aparelho pequeno, se o
comparássemos com seu desempenho.
Reforçava as micro-ondas emitidas pelo cérebro e,
com base nos modelos ideológicos armazenados em sua
memória, atribuía-lhes determinado sentido. Partia do
pressuposto de que cada ideia, mesmo vinda de cérebros
diferentes, originava impulsos idênticos, desde que o
cérebro fosse do modelo C-O-H, isto é, pertencesse a um
ser nascido num planeta dotado de uma atmosfera
oxigenada.
O analisador registrava o resultado sob a forma de
impulsos gravados em fitas, que eram interpretadas pelo
cérebro eletrônico.
Rhodan pegou a fita e introduziu-a no computador. A
decifração durou dez segundos. No cartão de plástico
expelido pela máquina lia-se em linguagem arconídica:
Eu,... (palavra
indecifrável, provavelmente o
nome), peço aos sublimes...
(palavra equivalente a deuses
ou divindades) que me
permitam voltar ao meu
elemento (o mar?), pois em
caso contrário morrerei
sufocado.
Rhodan ficou perplexo. Imóvel, fitou a tira de
plástico.
— Tako! — gritou.
— Pois não!
— O bichinho está morrendo sufocado. Temos de
levá-lo imediatamente até a água. Está disposto?
Tako fez que sim. Segurou a foca nos braços.
— Não haverá nenhum problema — disse com um
sorriso.
No mesmo instante desapareceu, para reaparecer logo
após. Rhodan dispôs-se a responder às perguntas que
começaram a chover sobre ele.
— Não há dúvida de que se trata de seres inteligentes
— declarou. — O fato de que o analisador foi capaz de
decifrar seus pensamentos já prova isso. Também não há
dúvida de que se trata de um tipo de peixe dotado de
pulmão. Esse peixe respira de duas maneiras: pelas guelras
e pelo pulmão. Evidentemente a última modalidade ainda
não está suficientemente desenvolvida. As focas só
conseguem sobreviver fora da água por um tempo
limitado.
Depois de uma pausa acrescentou:
— É claro que tentaremos novamente estabelecer
contato com elas. Procuraremos aprender sua língua para
conversar com esses seres. Mais uma coisa: é claro que
não foram as focas que instalaram uma base no norte, com
uma técnica superdesenvolvida. Acho que podemos
excluir esta possibilidade.
IV
Rhodan marcara a partida para depois do nascer do
sol. Mas a noite era tão longa que a impaciência dos
membros da tripulação terrena não lhe permitiria passá-la
na inatividade.
Mandou entregar trajes transportadores aos
participantes da patrulha, e também algumas armas. Além
disso, forneceu-lhes instruções detalhadas.
Os membros da patrulha foi ele mesmo Reginald
Bell, o Dr. Manoli, os três astronautas americanos, Tako
Kakuta e ainda, por insistência sua Anne Sloane.
Estavam a ponto de sair pela comporta da nave
quando o grito de advertência de Crest soou nos
interfones:
— Aguardem! Localizei alguma coisa.
Rhodan mandou que todos permanecessem no
interior da comporta. Ele mesmo dirigiu-se
apressadamente à sala de comando. Crest estava sentado
diante da tela do rastreador, onde se via um enxame de
manchas luminosas brancas, que se deslocavam
nervosamente de um lado para outro, aparentemente sem
destino.
— O que é isso? — perguntou Rhodan.
— Diria que são espiões robotizados — respondeu
Crest. — Não sei se ainda está lembrado: nos primórdios
de nossa história havia instrumentos desse tipo. São apenas
sondas radiogoniométricas, óticas ou de micro-ondas de
grande alcance. O tamanho destas aqui não é maior que
três ou quatro vezes a palma de minha mão.
Modificou a regulagem para ampliar um trecho do
campo de observação. Por alguns segundos viu-se um
pequeno objeto em forma de disco, que se manteve
imóvel. Quando Crest voltou à regulagem normal, o objeto
desapareceu.
— Ainda não nos encontraram — constatou Rhodan.
Crest deu de ombros.
— Quem sabe se não é um truque?
“É isso mesmo”, Rhodan refletiu.
— Seja como for, partiremos — disse depois de
algum tempo. — Mas iremos a pé; não voaremos.
Levaremos um robô-planador, que nos garantirá um
85
caminho livre.
Olhou para Thora, para ver se ela estava com medo.
Sorria para ele.
— Manterei contato ininterrupto com você —
prosseguiu Rhodan. — Não exponha a nave a qualquer
perigo. Quando tiver a impressão de que não podemos nos
defender mais sob as nossas cúpulas protetoras, suba, mas
não muito alto, e dê o fora. Seja como for, tentaremos
bater o inimigo. Estamos equipados para alguns meses. Se
a missão falhar, entraremos em contato para estabelecer o
lugar em que possam buscar-nos, ou então — hesitou por
um instante — ou então não haverá mais nada para
comunicar. Naturalmente isso é outra possibilidade.
Crest confirmou com um aceno de cabeça. Sua
atitude quase chegava a ser devota diante de tamanha
audácia. Deu ordem a Bell para que retirasse o pesado
robô-planador dos compartimentos de carga e o instruísse
sobre o que tinha a fazer. Teria que trabalhar em base
semiautomática, isto é, alguém teria que dirigi-lo, pois não
havia tempo para elaborar um programa e introduzi-lo em
seu centro de memória.
— Ficaremos com os trajes transportadores —
explicou Rhodan. — Mas torcerei o pescoço de qualquer
um que se atreva a voar por cima das copas das árvores
sem minha licença.
Bell arrastou o robô pela comporta. Os outros o
seguiram. Quando chegaram à borda da cratera eram
duzentas e trinta horas e trinta, meia hora antes da meia-
noite de Vênus.
Rhodan fez o grupo descer pela outra encosta da
montanha, em direção ao fiorde.
A descida foi muito penosa. Felizmente o caminho
íngreme estava livre de qualquer vegetação que lhes
impedisse a marcha. Certamente a violência das
tempestades fazia com que nada crescesse naquele declive.
O robô-planador, que nada tinha a fazer, avançava
ruidosamente à frente do grupo, esforçando-se para não
perder o equilíbrio. Atrás dele vinha Rhodan, seguido dos
outros. Tako Kakuta formava a retaguarda.
A descida para o mar durou mais de uma hora. Do
cume da montanha até o mar o grupo havia percorrido dois
quilômetros, medidos na horizontal. Impaciente, Rhodan
calculou que nessa marcha consumiriam duzentas e
cinquenta horas de percurso para chegar à base inimiga.
Era bem verdade que a descida fora realizada num terreno
difícil, mas do outro lado do fiorde as coisas não seriam
mais fáceis, pois o terreno, que subia lentamente, estava
coberto de um denso matagal.
Rhodan decidira que o grupo atravessaria o fiorde
com o auxilio dos trajes transportadores. Ao nível da água
não havia perigo de serem localizados, já que o terreno
ligeiramente elevado formava um abrigo.
O robô-planador atravessou o fiorde à sua maneira.
Entrou na água, deixou que a espuma lhe cobrisse as
costas e desapareceu. Seu mecanismo era tão robusto que
poderia enfrentar sem maiores problemas os perigos com
que se defrontasse no fundo do mar.
Acontece que seu avanço impetuoso alarmara os
habitantes do mar. Sombras esguias dispararam pelo ar;
provavelmente tratava-se de um tipo de peixe-voador.
Mais de longe o grito soturno de um animal que homem
algum jamais vira cortou a noite, e em vários pontos luzes
coloridas iluminaram a superfície da água.
— São os tapetes — disse Bell. — Por certo o robô
lhes deu apetite, e agora procuram atrair suas vítimas.
Continuaram parados. De qualquer maneira
chegariam à margem oposta antes do robô, que tinha de
percorrer um caminho mais longo, pelo fundo do mar.
Anne Sloane achegou-se a Rhodan.
— Isto aqui me dá arrepios — disse em tom brejeiro.
Rhodan examinou o grupo.
— Vamos! — ordenou. — Não adianta esperar mais.
Tako Kakuta foi o primeiro que desapareceu.
— Quem dera que eu fosse uma teleportadora —
disse Anne.
O voo foi muito silencioso. Em compensação os seres
aquáticos fizeram um barulho tremendo. Rhodan passou
bem acima de um dos tapetes luminosos. Este pareceu
levantar-se em sua direção, contraiu-se e emitiu uma
luminosidade mais intensa: depois de ter errado o alvo
transformou-se numa bola fosca e desapareceu sob a água.
A travessia durou menos de dois minutos. Tako
gritava ininterruptamente para orientar o grupo que devia
deslocar-se em direção ao lugar em que se encontrava,
onde uma área livre de vegetação formava uma ótima
cabeça de ponte para o avanço na selva. O lugar ficava
fora da trajetória inicial, motivo por que Rhodan acionou o
dispositivo direcional, que faria o robô sair da água no
ponto indicado.
Quinze minutos depois apareceu. Estava
irreconhecível.
— Façam luz! — ordenou Rhodan. — Limpem-no.
Estava envolto num emaranhado de trepadeiras. Bell
o fez parar e pediu a Anne que dirigisse a luz de um
refletor sobre ele.
Enfiou as mãos naquela confusão branco-esverdeada.
Subitamente deu um grito. Retirou a mão de dentro
do montão de plantas e sacudiu-a. Lançou um olhar
perplexo sobre o ser estranho que mantinha os dentes
fincados em sua luva. Tinha certa semelhança com um
macaco Rhesus, mas seus olhos estavam cobertos por
cápsulas ósseas que os protegiam da água. Pareciam bolas
de vidro brancas e sem vida. Em vez do pelo, havia uma
cobertura de pequenas escamas flexíveis. Na ponta do rabo
havia ferrões pequenos, mas pontudos, e como o animal o
agitasse ininterruptamente, Bell poderia sair ferido, por
mais resistente que fosse seu traje.
— Jogue fora esse bicho — gritou Rhodan.
— Terei muito prazer — resmungou Bell. — Mas
primeiro tenho que me livrar dele.
Pensou que o mais seguro seria puxar o bicho pelo
rabo. Mas o macaquinho intensificou a pressão das
mandíbulas. Assim que Bell soltou o rabo, este voltou a
agitar-se e arranhou o seu traje.
Bell tentou uma série de outros truques, mas sem
êxito. Finalmente teve a ideia de bater com o punho
cerrado na cabeça do macaco, até que o mesmo
desmaiasse.
O animal caiu ao chão, imóvel. Anne aproximou-se.
— Não está morto — tranquilizou-a Bell. — Viu? Já
está despertando.
Com um chiado o animal procurou novamente
alcançar sua mão com os dentes. Mas Bell reagiu
prontamente, atirando-o à água.
Depois disso teve mais cautela ao desvencilhar o
robô.
Terminada a limpeza, dirigiu a luz do refletor para as
frestas do aparelho. Deu uma palmadinha naquele artefato
que imitava uma torre e disse em tom zangado:
— Da próxima vez prefiro carregá-lo nas costas.
86
Depois de uma ligeira comunicação com Crest,
Rhodan deu o sinal de partida. A luta contra a selva iria
começar.
* * * O robô, que o grupo apelidara de Tom, excedeu a
todas as expectativas.
Afastava a vegetação como se estivesse lidando com
folhas de grama. Ao mesmo tempo fazia um barulho
tremendo, fazendo com que os seres de aspecto estranho
que pudessem assustar o grupo fugissem espavoridos,
mata adentro.
Era bastante inteligente para contornar as árvores
maiores. Tinha não apenas força, mas também a
capacidade de distinguir claramente entre os obstáculos
que poderia ou não vencer.
Dali a meia hora tiveram de fazer uma pausa, porque
a mão de Bell começou a doer. Anne examinou-a e
constatou que a dentada do macaco subaquático passara
pela luva, atingindo a mão.
O ferimento foi tratado com um medicamento da
farmacopeia arconídica. Dentro de poucos minutos as
dores cessaram.
— Espero que todo mundo tire uma lição disso —
disse Rhodan. — Devemos observar uma regra: não tocar
em nada. Enquanto não conhecermos as coisas que
existem neste mundo, elas são extremamente nocivas a
nós.
Depois prosseguiram na marcha, sempre atrás das
costas largas de Tom. A passagem aberta por este tinha
dois metros e meio de altura, e largura suficiente para que
duas pessoas andassem facilmente uma ao lado da outra.
Vez por outra Rhodan olhava para cima e dirigia a luz do
refletor para a folhagem. Nunca se sabia que espécies de
animais viviam nas copas das árvores. Mas não via nada.
Depois de três horas pararam e levantaram um
acampamento provisório. Cada uma das barracas infladas
dos arcônidas era ocupada por dois homens. Mas, uma vez
dobradas, cabiam perfeitamente no bolso de uma calça.
Anne foi a única que ficou só, numa barraca.
A escuridão prolongada deixou os membros do grupo
um tanto perturbados. Deitaram para dormir um pouco,
mas dali a duas horas já estavam de pé.
Rhodan ficou de sentinela. Não se sentia cansado.
Aproveitou a oportunidade para conversar com Thora.
Soube que os pequenos espiões robotizados voltaram a
aparecer, mas mais uma vez foram embora sem que
tivessem conseguido nada. Não havia sinais de outra
atividade do inimigo.
Durante essas duas horas não aconteceram nada de
extraordinário. “Ainda bem”, pensou Rhodan, “não
precisamos de problemas.” Mas no íntimo sentiu-se um
pouco decepcionado por não encontrar nada que saciasse
sua sede de aventuras. O ribombar compassado que poucos
minutos antes do fim de seu turno passou ao longe, e
provavelmente era causado pelas patas de um sáurio em
movimento, constituía um péssimo substituto para um
verdadeiro acontecimento.
* * *
Dividiram a marcha em etapas de trinta horas. Nas
primeiras duas etapas percorreram cerca de oitenta
quilômetros. Isso representava um bom desempenho, já
que se deslocavam em meio à selva impenetrável.
Ao fim do segundo período de trinta horas,
levantaram suas barracas numa clareira que Tom abrira às
pressas. Um novo dia parecia raiar por cima da folhagem.
Rhodan pediu a Tako que subisse às copas das árvores
para verificar se já conseguia distinguir o objetivo.
Tako voltou dali a alguns minutos.
— A cerca de cento e cinquenta quilômetros ao norte
começa a cadeia de montanhas. Até mesmo em meio ao
crepúsculo veem-se os enormes paredões. Não será fácil
subir por ali.
Neste meio tempo Bell e Deringhouse haviam
preparado uma refeição. Comeram um tanto cansados e
recolheram-se às barracas.
No primeiro turno o capitão Nyssen ficou de
sentinela; não houve nada de anormal. Ao que tudo
indicava, os animais que compunham a fauna de Vênus
tinham medo dos homens.
Poucas horas depois a catástrofe desabou sobre o
grupo.
O Dr. Manoli estava de sentinela. Sentado diante da
barraca que partilhava com Tako, apagara a lanterna,
embora Rhodan o tivesse proibido. Sentiu certo prazer em
ver como a folhagem opunha uma resistência cada vez
mais débil à luz do novo dia, que começou a espantar a
escuridão até mesmo no chão sombrio da mata.
Era o segundo dia que passavam em Vênus, segundo
a escala de tempo daquele planeta.
A selva estava repleta de sons. Mas subitamente
Manoli ouviu um ruído que parecia vir de perto.
Imediatamente acendeu a lanterna e aguçou o ouvido.
Ouviu um rastejar. Levantou-se e procurou descobrir
de que direção vinha o ruído.
Subitamente ouviu um grito estridente; era tão
pavoroso que o deixou todo arrepiado. Reconheceu a voz
de Anne. Com alguns saltos colocou-se à frente de sua
barraca, abriu o cortinado e dirigiu a luz para o interior da
mesma.
Anne não estava mais ali. Aquilo que se movia no
interior da barraca era pavoroso e repugnante que Manoli
não se atreveu a fazer qualquer movimento.
Não enxergou o começo nem o fim daquela coisa.
Um pedaço de carne branca e gosmenta, com um diâmetro
de aproximadamente trinta centímetros, parecia sair da
terra, executando uma série de contrações espasmódicas.
Não se via nenhuma articulação, apenas uma série
irregular de anéis ligeiramente afundados. Manoli tinha
certeza de que esse ser havia aberto o buraco de onde saía.
A outra extremidade daquela coisa já havia saído da
barraca. Novas massas de carne repugnante saíam do solo,
para desaparecer do lado oposto da barraca. Era este o
ruído rastejante que ouvira.
Subitamente Rhodan estava ao seu lado.
— O que houve?
Manoli não teve necessidade de explicar nada. Com a
mão trêmula apontou para a coisa rastejante.
Rhodan voltou a cabeça para o lugar indicado. Logo
compreendeu a situação.
— Bell! — gritou. — Traga o desintegrador.
Ouviu-se uma resposta. Rhodan pegou a pistola de
radiação, apontou-a para a carne gosmenta e apertou o
gatilho. Só baixou a arma quando tinha feito um corte
fumegante e malcheiroso no corpo do animal.
O resultado foi espantoso. A parte da frente parecia
não se preocupar com o que estava acontecendo à parte de
trás. Continuou a rastejar e dentro de poucos segundos
tinha saído completamente da barraca.
87
A parte traseira, com a extremidade chamuscada,
ficou balançando por alguns instantes sobre o buraco.
Subitamente começou a adquirir novas formas. Com um
ligeiro estalido as crostas causadas pela queimadura
desprenderam-se do corpo. A ponta achatada esticou-se até
formar uma cabeça pontuda. Logo esse resto de animal
pôs-se em movimento: saiu do buraco e atravessou a
barraca. Uma das partes do animal seguiu a outra.
O espetáculo só durara alguns segundos. Rhodan
logo compreendeu que por essa forma não poderia
socorrer Arme. Saiu correndo e chamou Bell aos berros.
— Estou aqui! — respondeu Bell.
— Um tipo de verme carregou Anne — explicou
Rhodan apressadamente. — Parece que é tão difícil de
matar como uma minhoca terrena. Temos de ir atrás dele.
Contornaram a barraca e descobriram a segunda
metade do animal, que seguia pelo rastro gosmento
deixado pela primeira. Bell, muito assustado, ofegava.
Pegou o desintegrador e abriu uma brecha na selva,
na direção que o animal tinha tomado. Compreendeu que
tudo dependia de ultrapassarem o animal e alcançarem a
cabeça da primeira parte. Dessa forma encontrariam Anne.
Por um instante Rhodan pensou em mandar Tako à
frente. Mas o objetivo era incerto, o risco grande demais.
Numa atividade furiosa penetraram na brecha,
acionaram o desintegrador para abrir outra, tropeçaram nas
trepadeiras. Vez por outra caíam sobre o corpo flácido do
animal. Contorciam-se de repugnância, mas logo se
levantavam para prosseguir em sua carreira desabalada.
Rhodan notou que avançavam muito devagar. Em
cada minuto avançavam um metro mais que o verme e,
pelo que já tinham visto, o seu comprimento devia
ultrapassar tudo que já tinham imaginado.
Gastaram dez minutos para atingir o início da
segunda parte do animal. Bell virou-se e dirigiu o raio
mortífero sobre o corpo gosmento, até que este se
dissolvesse.
— Tenha mais cautela com a outra parte — advertiu
Rhodan. — Não sei se este verme é capaz de perceber o
perigo. Se for, pode desaparecer com Anne embaixo da
terra.
Bell fez um gesto de assentimento. Acionou o
desintegrador para estender o caminho pelo qual
avançavam na selva. Rhodan dirigiu a luz do refletor para
frente. A extremidade posterior do verme desapareceu no
fim do caminho.
Precipitaram-se atrás dele. Enquanto passavam pelo
rabo do verme e se esgueiravam por entre os galhos que
não puderam ser afastados com os tiros ligeiros do
desintegrador, não perceberam, de tão excitados que
estavam, que o terreno subia ligeiramente.
A primeira parte do verme era bem mais comprida
que a segunda, que já tinham deixado para trás. Levaram
quase meia hora para avistar a cabeça pontuda do animal, e
também Anne.
O verme carregava-a de forma estranha. Formou um
tipo do laço em torno de sua vítima e segurava-a na parte
da frente de seu corpo, levantada em posição oblíqua.
Anne estava inconsciente. Seu corpo flácido pendia do
laço; tudo indicava que até então não sofrerá nenhum mal
mais sério.
Enquanto se conservavam lado a lado com o verme,
procurando um meio de libertar Anne da situação terrível
em que se encontrava, não perceberam que o matagal se
abria em torno deles, formando uma clareira coberta com
uma vegetação rala.
— Fico abaixo dela — disse Rhodan. — Quando
você atirar; poderei pegá-la.
Bell confirmou com um gesto. Esperou até que
Rhodan atingisse uma posição favorável junto ao animal,
que continuava a rastejar apressadamente, e começou a
cobrir o corpo gosmento com o raio constante do
desintegrador.
O verme dissolveu-se. Ao que parecia percebeu o
perigo que o ameaçava, pois se desviou para o lado. Bell
teve de dar um pulo para não ser atingido por uma pancada
daquele corpo. O animal continuou a mover-se até que
Bell havia dissolvido uns sete oitavos do volume visível do
corpo, do ponto em que Bell se encontrava. Subitamente as
contorções cessaram.
Mas Anne continuava presa no laço. Bell preferira
não atirar sobre essa parte do corpo do animal, pois
receava atingir Anne.
Rhodan pegou a pistola de radiação e separou em três
partes do que restava do animal. Depois retirou Anne da
massa grudenta que a enlaçava. Deitou-a no chão num
ponto que lhe parecia seguro e procurou fazer com que
recuperasse os sentidos.
Ninguém percebeu que a poucos metros dali abria-se
um buraco redondo de paredes quase verticais, cujo
diâmetro e profundidade eram consideráveis. Ninguém viu
o ser bizarro e multiarticulado, parecido com um galho
fino e reluzente com numerosos ramos laterais, que foi
surgindo por cima da borda do buraco e se aproximava do
grupo em movimentos espasmódicos.
Numa atitude pensativa Rhodan contemplou o rastro
gosmento que o verme deixara no solo. Haviam percorrido
quarenta metros do corpo daquele animal. Qual seria o seu
comprimento total? Quando ele e Bell se puseram a
persegui-lo, parte dele ainda se encontrava sob a terra.
Ao que parecia, em Vênus tudo saíra grande demais:
os vermes, os répteis, os peixes-voadores. A
monstruosidade só cessava no ponto em que a evolução
atingia a escala dos seres mais inteligentes. As focas eram
uma prova disso, e talvez também o macaquinho
subaquático que mordera a mão de Bell.
Como este verme gigantesco era indefeso! Sua única
arma era a repugnância. Conseguira enlaçar e carregar
Anne, mas nem tentara defender-se dos homens que o
atacaram.
Anne abriu os olhos. De início parecia confusa, mas
subitamente sentiu-se tomada de pavor. Lançou os olhos
em torno e, com um grito, ergueu-se e segurou o braço de
Rhodan.
— Onde estamos? — perguntou. — O que
aconteceu?
Com um gesto suave Rhodan obrigou-a a ficar
deitada.
— Não se assuste, já passou tudo.
— O que foi...?
Cobriu o rosto com as mãos quando a recordação
voltou à sua mente.
— Alguma coisa me agarrou e carregou. Era tão
gosmento e nojento. O que foi?
— Foi uma simples minhoca — respondeu Bell. — É
bem verdade que foi a versão venusiana de uma minhoca.
Anne levou algum tempo para acalmar-se. Tirou as
mãos do rosto e olhou para Rhodan.
— Onde está? Conseguiram...
Rhodan fez que sim.
88
— Bell acaba de liquidá-lo. Como se sente?
— Obrigada. Fora o susto; estou bem. O
acampamento fica longe daqui?
— A cerca de uma hora. Se estiver melhor, vamos
andando.
Anne estava de acordo. Levantou-se. Seu olhar
passou junto a Bell, que estava agachado e foi então que
viu.
— Oh, não! — gritou, caindo nos braços de Rhodan.
— O que foi?
— Olhe!
Bell continuava agachado. Quando Anne apontou
para junto dele, quis virar-se.
— Fique aí! — berrou Rhodan. — Não se mova!
Bell obedeceu.
Rhodan viu o que Anne lhe estava mostrando.
Parecia que um galho fino e comprido com uma porção de
ramos ainda mais finos tinha caído ao solo. No entanto,
não seria de esperar que um galho caído se erguesse
lentamente e que seus ramos começassem a mexer nas
roupas de Bell.
Aquele ser devia ter uns dois metros de comprimento
e, erguido nos ramos que lhe serviam de pernas, sua altura
atingia três palmos.
Rhodan apontou a arma e, atirando cautelosamente,
dividiu o animal em duas partes. As pernas em forma de
ramo dobraram-se. Com um estranho crepitar o animal
caiu ao solo.
Rhodan guardou a pistola de radiação.
— Pronto, já pode levantar! — disse, dirigindo-se a
Bell.
Bell levantou-se de um salto e virou a cabeça.
— O que foi?
— Ali, aquele galho.
Bell abaixou-se para levantá-lo.
— Não ponha a mão nisso! — berrou Rhodan. —
Será que você nunca aprende?
Enquanto os dois homens concentravam a atenção no
animal morto, procurando descobrir de que tipo era Anne
lançou os olhos em torno. Descobriu o segundo pé-de-galo
e soltou um grito.
Rhodan viu que o animal parecia sair diretamente do
chão. Logo atirou. Evidentemente os pés de galho eram
animais muito mais articulados que os vermes. Um tiro
com a pistola de radiação matava-os instantaneamente.
Bell tivera a atenção despertada. Ergueu o cano do
desintegrador e, avançando com o corpo ligeiramente
inclinado para frente, dirigiu-se ao lugar em que o animal
parecia ter saído.
— Cuidado! — gritou Rhodan.
Depois de destruir um resto de vegetação, Bell viu-se
à beira do buraco que até então não haviam notado.
Rhodan ouviu-o dar um grito de surpresa e correu para
junto dele. Mudo de nojo e espanto Bell apontou para o
fundo do buraco, debilmente iluminado pela luz do
crepúsculo.
Rhodan dirigiu a luz da lanterna para o buraco. Seu
diâmetro era de cerca de três metros. Seria difícil calcular
a profundidade, pois estava cheio de uma massa confusa e
crepitante de pés de galho. Deviam ser centenas deles, e
pareciam estar à espera de alguma coisa.
Bell ergueu o desintegrador, mas Rhodan segurou sua
mão.
— Olhe!
Parecia que havia mais alguma coisa além da
confusão reinante entre eles que movia os pés-de-galho. A
massa subia e descia em movimentos alternados. Alguma
coisa branca surgiu em meio a eles e finalmente apareceu.
Era a cabeça pontuda de um verme igual ao que haviam
liquidado meia hora atrás.
Seguiu seu caminho sem deixar perturbar-se pela
confusão que reinava em torno dele. Esticando a cabeça
pontuda, foi subindo aos solavancos por entre a massa de
pés de galho. Atingiu a borda do buraco no lugar exato em
que Bell e Rhodan se encontravam.
— Atire! — ordenou Rhodan, quando a cabeça do
verme se sacudia a menos de um palmo da ponta do seu
sapato.
Bell cobriu com o raio do desintegrador primeiro o
verme e depois o resto do buraco. Levou um minuto,
talvez mais, até que o buraco ficasse completamente vazio.
Agora se via que tinha uns cinco metros de
profundidade. No fundo viam-se duas aberturas escuras, de
aproximadamente trinta centímetros de diâmetro. Eram os
pontos de saída dos vermes, que deviam viver numa
simbiose estranha com os pés de galho.
Anne agarrou-se a Rhodan; tremia por todo o corpo.
— Voltemos! — disse Rhodan. — Já sabemos que no
futuro devemos ter muito cuidado.
Rhodan levou um pedaço do primeiro pé-de-galo,
pendurado no cano da pistola. Embora o animal estivesse
morto, não se arriscava a tocá-lo com as mãos.
No acampamento, Manoli e os outros membros do
grupo já haviam dado cabo do resto do verme que saíra do
buraco.
Rhodan entregou os restos do pé de galho a Manoli.
— Examine-o como puder, mas não o toque com as
mãos.
Fez um breve relato das ocorrências que cercaram o
resgate de Anne.
Depois de concluir o exame, o Dr. Manoli disse:
— Todo o animal é formado de uma substância
córnea. Seus órgãos estão reduzidos a um mínimo, e
também são formados de substância córnea, sempre que
esta não prejudica as respectivas funções.
Fez uma pausa e remexeu o solo com um galho.
— Fiquei quebrando a cabeça. Analisei uma amostra
da substância gosmenta encontrada no rastro do verme.
Contém uma variedade tamanha de proteínas e outras
substâncias, que não é possível que todas elas provenham
do corpo desse animal. Minha teoria é a seguinte: ao
contrário dos nossos vermes, este é um carnívoro típico, ou
melhor, nutre-se da parte interna dos animais.
“Já os pés de galho alimentam-se com as substâncias
córneas contidas nos corpos dos diversos animais. Mas não
estão em condições de procurar seu alimento. Por outro
lado, o verme não dispõe de qualquer instrumento cortante
com que possa romper a pele de suas vítimas”.
“Por isso, as duas espécies fizeram um tipo de
contrato. O verme carrega a vítima até a toca, os pés de
galho tiram-lhe a pele e devoram-na. A recompensa do
verme consiste na parte interna do corpo”.
“Nunca ouvi falar numa simbiose tão estranha.”
V
Durante o restante da marcha em direção à base
inimiga só houve dois acontecimentos dignos de nota.
89
O primeiro foi um chamado da Good Hope. Crest e
Thora informaram que o inimigo não dera mais sinal de
vida. Em compensação as focas voltaram a aparecer.
Executando uma verdadeira marcha forçada, certamente
para voltar em tempo à água, subiram ao cume da
montanha e desceram à cratera.
— Sabe o que fizeram? — perguntou Crest em tom
jocoso. — Depositaram um montão de peixes diante de
uma das comportas da nave. Deve ser um sacrifício em
homenagem aos deuses. Felizmente Thora percebeu em
tempo a marcha das focas e pôs o analisador cerebral a
funcionar na comporta. O analisador registrou os
pensamentos das focas. Juntamente com os dados colhidos
pelo detector ultrassônico, estava em condições de
reconstituir a maior parte da linguagem das focas. Eu
retirei os peixes, para que as focas não se sintam ofendidas
quando voltarem. Da próxima vez espero poder falar com
elas.
O segundo acontecimento
foi o encontro com um sáurio
venusiano, pelo qual esperavam
há tanto tempo.
Acontece que o encontro
foi muito menos dramático do
que esperavam. É que o
gigantesco animal nem notou a
passagem da patrulha.
Apesar disso, o encontro
representava certo perigo.
Naquela altura tinham
vencido cerca de quatrocentos
do total de quinhentos
quilômetros. Tinham escalado
duas cadeias de montanhas, e
atrás da segunda encontraram
um vale comprido, coberto por
um denso matagal.
Rhodan sentiu-se tentado a
permitir o uso dos trajes
transportadores, para que o grupo voasse por cima do vale
bastante profundo. Mas chegou à conclusão de que a
distância de cem quilômetros, que ainda os separava do
inimigo, não oferecia bastante segurança. A gravitação era
uma das formas de energia mais fáceis de localizar através
de instrumentos apropriados. Até certa distância do
instrumento localizador, nem mesmo os teoremas da ótica
geométrica tinham validade. Isso significava que de perto
um localizador poderia reconhecer uma fonte de
gravitação até mesmo “atrás de um canto”.
Por isso desceram para o vale e se dispuseram a
atravessar a selva atrás das costas largas de Tom.
Anne Sloane foi a primeira a perceber que diante
deles havia alguma coisa de anormal. Parou subitamente;
Bell, que vinha logo atrás, esbarrou nela. Rhodan notou
que havia alguma coisa atrás dele e também parou. Só
Tom prosseguiu imperturbável por entre a vegetação, até
que Bell o fez parar com um chamado.
— Não ouviu nada? — perguntou Anne perturbada.
Bell sacudiu a cabeça.
— Nada. Você ouviu alguma coisa?
Anne fez que sim. Estava a ponto de dizer alguma
coisa, mas um ruído retumbante cortou-lhe a palavra. O
chão estremeceu. Desta vez todos perceberam.
Rhodan lembrou-se do barulho retumbante que
ouvira no primeiro acampamento.
— É um sáurio.
Bell não concordou.
— O que está fazendo? De onde vem o ruído?
— Está andando.
Bell aguçou o ouvido. Depois de algum tempo
voltaram a ouvir o barulho retumbante.
— Está andando?! — disse rindo. — Leva trinta
segundos para dar um passo.
Rhodan confirmou com um aceno de cabeça. Parecia
sério.
— Acha que com essas pernas compridas devia levar
menos?
Fez sinal para Tako.
— Tako, suba ali e veja se consegue localizá-lo.
Tako desapareceu. Voltou dentro de alguns segundos.
— Vem do leste — informou. — Se continuar na
mesma direção, deverá passar a uns duzentos metros ao
norte do lugar em que estamos.
— Pois suba novamente e
veja se não modifica a direção.
Esperaram. Não adiantava
prosseguir, pois iriam em
direção ao norte, e dessa forma
dariam com os costados bem em
cima do sáurio.
O barulho retumbante foi
crescendo de intensidade, até
assumir a feição de pequenos
terremotos. Rhodan olhou por
entre a folhagem, procurando
ver ao menos o pescoço do
animal. Mas o matagal, que os
protegia dos furores das
tempestades crepusculares,
também lhes impedia a visão.
O passo seguinte foi dado
com tamanha fúria que até
Rhodan estremeceu.
No mesmo instante Tako
surgiu ao seu lado.
— Modificou a direção. Vem diretamente para onde
estamos.
— Quanto falta, para chegar aqui?
— Dois passos.
Rhodan olhou para os membros do grupo.
— A esta altura não adianta fugir — disse em tom
tranquilo. — Não há mais tempo para escaparmos. Mas
podemos nos defender.
Bell compreendeu. Trouxe apressadamente os dois
desintegradores. Entregou um deles a Rhodan e ficou com
o outro.
— Aponte para cima, em direção oblíqua — ordenou
Rhodan. — Assim que começar a cair, devemos
providenciar para que o corpo se dissolva no ar.
Bell confirmou com um gesto. Rhodan virou a cabeça
e falou por cima do ombro:
— Fiquem bem juntos!
Ao longe se ouvia um forte ruído, igual ao de uma
cachoeira. O corpo imenso do sáurio ia afastando o
matagal à sua passagem.
Subitamente escureceu. Uma sombra enorme cobriu a
mata. Alguns segundos depois uma coluna imensa
irrompeu com um ruído ensurdecedor em meio à
vegetação, a menos de cinco metros do lugar em que
Rhodan se encontrava. Rhodan chegou a ver a pele suja e
90
escamenta, mas logo dirigiu sua atenção à massa que se
movia em cima deles. À primeira vista compreendeu a
situação.
— Cuidado! — gritou. — Está passando por cima de
nós.
E foi o que o animal fez. Com o intervalo usual a
outra pata estalou em meio à vegetação, desta vez à
esquerda de Bell, ao mesmo tempo em que o ventre penso
do gigantesco animal passou por cima daquele grupo de
seres minúsculos e trêmulos.
Por alguns instantes a escuridão foi completa. A uns
cinco metros de suas cabeças pendia o ventre malcheiroso
do animal. Mas ninguém se incomodou com o cheiro.
Todos se indagavam se as duas pernas traseiras também
passariam por eles sem produzir nenhum dano.
Rhodan baixou o desintegrador.
— Cuidado com o rabo! — disse, dirigindo-se a Bell.
— Pode varrer-nos com uma sacudidela.
A imensa massa de carne deslocou-se um bom
pedaço para a frente. A claridade começou a surgir do
norte.
— Graças a Deus! — gemeu Bell. Mas logo olhou
bem para a frente, procurando ver o rabo.
Rhodan olhou para cima e procurou adivinhar o lugar
em que o rabo do animal tocaria no solo.
Ainda estava calculando quando alguma coisa passou
ruidosamente bem por cima de suas cabeças. O vento
começou a uivar.
— Está jogando o rabo para a direita! — gritou Bell.
Rhodan viu o rabo, que media vários metros de
espessura, voar para o leste. No mesmo instante o
gigantesco animal deu outro passo.
Rhodan apontou o desintegrador para cima e esperou.
Se o intervalo entre um e outro passo era de trinta
segundos, qual seria o período de oscilação do rabo, que
era muito mais comprido?
Nada aconteceu. As pernas do sáurio foram-se
afastando, mantendo sempre o mesmo ritmo. Não houve o
temido golpe de rabo. Rhodan teve a impressão de que
mais uma vez o animal modificou seu curso, voltando a
deslocar-se na direção anterior. Isso explicaria por que não
chegaram mais a ver o rabo.
Mais alguns minutos se passaram numa situação
tensa de alarma. Finalmente os membros do grupo
descontraíram-se e começaram a acreditar que o perigo
passara.
Bell largou o pesado desintegrador e enxugou o suor
que lhe cobria a testa.
— A trilha tem sete metros de largura — disse. — Se
fosse menos, o bicho nos teria pegado do lado direito ou
do lado esquerdo.
Concluiu que o comprimento do sáurio, incluindo o
rabo, devia atingir mais de duzentos metros. Com base nos
dados fornecidos por Tako, Rhodan calculou a altura do
animal, incluído o longo pescoço, nuns sessenta ou setenta
metros.
Mesmo nas condições reinantes em Vênus, devia ser
um monstro. De qualquer maneira, seu tamanho excedia o
de qualquer sáurio que jamais viveu na Terra.
* * * Pelo meio-dia do terceiro dia de Vênus, contado a
partir de sua partida da Good Hope, atingiram a região em
que supunham localizada a base do inimigo.
Era uma área completamente diversa da que haviam
visto nos primeiros dois terços da marcha.
Encontravam-se a cerca de seis mil metros acima do
nível do mar. A respiração tornou-se difícil, embora a
atmosfera de Vênus fosse bem mais densa que a da Terra.
O zumbido nos ouvidos gerado pelo excesso de pressão
reinante das baixadas, cedera ao causado pela falta de
pressão nas alturas.
O matagal não os acompanhara. A cerca de cinco mil
e quinhentos metros de altura atingiram o limite da zona
de crescimento das árvores. O planalto cercado de morros
em que se encontravam só apresentava uma vegetação
escassa, formada de gramíneas ressequidas, arbustos
raquíticos e alguns troncos nodosos que não chegavam a
erguer-se do solo.
O último trecho do caminho deixara-os exaustos.
Às vezes quase chegaram a desistir. Mas além da
lembrança do inimigo, que devia ser localizado e
subjugado, ainda havia Rhodan que persistia na missão
que traçara a si mesmo e forçou os demais a submeterem-
se à sua vontade.
Pelo alvorecer atingiram a extremidade sul do
planalto. Seguindo pela extremidade oeste, sempre sob o
abrigo de morros ou grutas, avançaram em direção ao
norte, até chegarem à extremidade setentrional do
complexo.
Diante deles erguiam-se montanhas altas como
jamais haviam visto. Rhodan tinha certeza de que o
inimigo montara os instrumentos de grande alcance no
cume da montanha mais alta. Mas mesmo os telescópios
mais potentes não permitiriam a ele reconhecer o que quer
que fosse ao ponto em que se encontravam. Se é que havia
algum instrumento lá em cima, o mesmo devia estar
encravado na rocha, ou oculto atrás de um excelente
disfarce.
Rhodan mandou construir um acampamento na
extremidade norte do planalto.
Na tarde daquele dia dividiram-se em dois grupos,
que se puseram a explorar os arredores do acampamento.
Tako Kakuta, o capitão Nyssen e o tenente Freyt chegaram
a subir mais de mil metros pelas montanhas, mas a única
coisa que encontraram foi um animal morto, parecido com
uma raposa.
Anne Sloane e o tenente Deringhouse foram os
únicos que ficaram no acampamento. Anne encarregou-se
do pequeno instrumento rastreador, que apresentava uma
desvantagem: a reduzida capacidade de reação, medida
pelos padrões arconídicos. Em compensação, reagia a
diversas formas de energia. Era capaz de localizar tanto
um emissor eletromagnético como uma fonte de
gravitação. Mas durante as primeiras horas em que foi
posto a funcionar não acusou nada.
Rhodan não se sentia muito à vontade. Enquanto não
sabia onde estava o inimigo tinha que contar com a
possibilidade de que o acampamento se apresentava diante
dele como se estivesse em uma bandeja. Era bem possível
que, enquanto os membros do grupo cansavam os olhos de
tanto procurar, os seres inimigos, fossem eles quem fosse,
estivessem ocultos em meio às montanhas, rindo daquela
patrulha desajeitada, até o momento em que se cansassem
de rir, quando então passariam ao ataque.
O fato de que o local do acampamento fora escolhido
com vistas a todos os perigos e possibilidades de ataque,
era um consolo muito fraco. Não havia a menor garantia
de que não existia nenhuma brecha por onde o inimigo
pudesse olhar.
* * *
91
No segundo período de trinta horas, depois que
tinham erguido o acampamento, voltaram a procurar.
Desta vez Tako e os dois americanos tomaram a
direção em que Bell, Rhodan e Manoli haviam procurado a
vez anterior, enquanto estes últimos subiram as montanhas
pelas pegadas de Tako.
A primeira parte da subida pelas encostas ainda
suaves daquele cume de treze mil metros foi fácil, mas
também inútil.
Contornaram uma extensa área pedregosa e iniciaram
a escalada da parte mais íngreme da montanha. Ainda se
encontravam a duzentos metros abaixo do local de que
Tako voltara no dia anterior.
Levaram uma hora para atingi-lo. O lugar em que
Tako havia encontrado a raposa era desinteressante e não
apresentava vestígios.
Estavam a ponto de retornar, mas antes que
iniciassem a descida Rhodan lançou mais um olhar para o
alto e estacou.
— Vejam!
Todos olharam para cima. Levaram algum tempo
para compreender o sentido das palavras de Rhodan.
A parte superior da encosta parecia ficar mais para
trás, isto é, mais ao norte que a parte inferior. Não viram
nenhum entalhe, e o cinza homogêneo da rocha não
permitia qualquer conclusão sobre a distância do desvio de
uma das partes em relação à outra. De qualquer maneira, lá
em cima devia haver um planalto que não podia ser visto
de baixo.
Rhodan continuou a subida. A encosta tornava-se
cada vez mais difícil. Avançaram uns cem metros por uma
espécie de chaminé; mas os cinquenta metros que ainda os
separavam do planalto, que agora se desenhava bem nítido
diante deles, pareciam intransponíveis.
Finalmente o acaso veio em seu auxílio. Esse acaso
resultou de uma regulagem efetuada há bastante tempo em
determinada máquina.
Rhodan, que ia à frente dos outros, foi o primeiro que
sentiu a trepidação da rocha. Uma coisa ameaçadora
parecia avançar em sua direção. Agarrando-se com uma
das mãos, Rhodan tirou a pistola de radiação com a outra.
Subitamente ouviu um som borbulhante. Virou a
cabeça e viu que atrás dele o ar tremeluzia e a poeira saía
entre duas pedras.
Não havia nenhuma explicação para o fenômeno. A
temperatura do ar parecia ser superior à do ambiente, e
tudo indicava que saíra com enorme pressão entre as duas
pedras. Rhodan ainda notou que vários blocos de pedra
colocados sobre a extremidade da chaminé de que
acabavam de sair devia servir para desviar o ar expelido
pela mesma, fazendo-o retornar para o seu interior.
Pelas pedras que o ar arrastava consigo Rhodan
concluiu que o ar quente desenvolvia uma pressão enorme
ao ser desviado e retornar para o interior da chaminé. Se
ainda estivessem lá dentro, não teriam resistido ao furacão.
O fenômeno durou cerca de dois minutos. Depois os
sons foram-se tornando mais fracos, o tremeluzir foi
cessando e tudo voltou ao silêncio. Como antes, a floresta
jazia calmamente sob a luz difusa filtrada pelas nuvens.
Nesses dois minutos ninguém proferira uma palavra.
Rhodan rompeu o silêncio. Apontando para as duas
pedras, disse:
— Talvez consigamos passar por aí. Vamos! Se o
vento voltar a soprar, segurem-se bem.
Procurando equilibrar-se, foram avançando. Desta
vez Rhodan seguiu em último lugar. Bell foi o primeiro
que atingiu a abertura entre as pedras. Lançou um olhar
desconfiado para o interior da mesma. Depois deu um
passo e desapareceu.
Manoli seguiu-o, e depois Rhodan. Descobriram que
os dois blocos de pedra não eram outra coisa senão a boca
de um canal de cerca de metro e meio de largura, aberto na
parte superior, que subia suavemente. O chão e as paredes
eram bastante lisas, o que dificultou a escalada, embora a
subida fosse suave.
Rhodan insistiu para que se apressassem. Achou que
a lisura da rocha podia ser explicada pelo polimento
resultante de correntezas de ar como a que acabaram de
observar. Provavelmente essas correntezas vinham a
intervalos regulares, ou ao menos repetidamente em certo
espaço de tempo. Só assim o fluxo de ar poderia ter
deixado vestígios semelhantes aos da passagem da água.
Aos poucos a altura das paredes foi diminuindo.
Tudo indicava que o canal desembocava no planalto.
Essa expectativa não se cumpriu inteiramente. A
desembocadura ficava num paredão rompido por um
buraco irregular, mas esse paredão não tinha mais de
metro e meio de altura. Com um salto, Rhodan colocou-se
na parte de cima.
Lá em cima havia uma plataforma com a área de
cerca de dez mil metros quadrados, que na parte dos
fundos terminava junto a uma parede de rocha em forma
de ferradura. Ao primeiro lance de vistas, Rhodan sentiu-
se irritado pela lisura extraordinária do chão de pedra. Ao
segundo, descobriu uma série de aberturas rentes ao chão
no paredão que subia íngreme do outro lado da plataforma.
Ajoelhou-se e examinou o chão. Não descobriu nada
de extraordinário. Levantou-se e com um movimento de
cabeça apontou para as aberturas existentes no paredão.
— Vamos dar uma olhada naquilo.
Sentiram-se tomados de certa desconfiança quando
foram caminhando lentamente em direção ao paredão. As
aberturas eram de formato irregular. Avançaram com as
armas engatilhadas, pois não confiavam naquela calma
aparente.
Vistas de perto, as aberturas, apesar do formato
irregular, apresentavam um aspecto mais ou menos
circular. O diâmetro era de cerca de um metro. A distância
do centro dos mesmos ao nível da plataforma correspondia
aproximadamente à altura de um homem. A distância entre
as aberturas era de uns oito metros.
A alguns metros do paredão, Rhodan parou e
levantou a mão. Bell estava à sua esquerda, Manoli à
direita. Rhodan tentou romper a escuridão que reinava no
interior da abertura, mas não o conseguiu.
— Vejo alguma coisa! — disse Bell com a voz baixa.
Estava diante de outra abertura. Rhodan foi para
junto dele. Esforçando bastante a vista, viu no interior da
abertura um objeto cinzento. Não conseguiu descobrir o
que era.
Fez sinal para que Bell e Manoli parassem e
continuou a avançar. Aproximou-se até chegar a apenas
três metros da abertura e não tirou os olhos da forma
sombria.
Distinguiu um objeto cilíndrico que saía da
escuridão, terminando junto à abertura.
Quando descobriu o que se tratava, sentiu-se tomado
de pânico por um instante. Nunca vira um desintegrador
desse tamanho e, mais que isso, nunca se deparara com um
que apontasse tão diretamente para sua barriga.
92
Deu um enorme salto para frente, ao mesmo tempo
em que gritou para Bell e Manoli:
— Abriguem-se!
* * *
Antes disso, os seguintes acontecimentos se
desenrolaram no interior da montanha:
O equipamento de localização automática observou
alguma coisa e relatou ao comandante:
— Três seres penetram no platô de aterrissagem
através do canal de arejamento. São...
Seguiu-se uma descrição detalhada daqueles seres, ou
melhor, a trilha sonora de um filme que o equipamento de
localização remetia à sala de comando a partir do
momento em que Rhodan saltou por cima do paredão do
canal.
Os ocupantes da sala de comando não se deram por
satisfeitos com o relatório. Exigiram dados mais
detalhados sobre os trajes daqueles seres estranhos.
O autômato realizou uma localização estrutural e
transmitiu o resultado.
Logo após recebeu a seguinte ordem:
— Prossiga na localização e transmita relatórios
padronizados.
Efetuou a regulagem correspondente.
Enquanto isso, o comandante pôs em funcionamento
outra linha de comunicação direta, através da qual
transmitiu instruções ao posto de combate do setor F:
— Alarma grau três. Regular as peças para fogo
dirigido. Só atirem por ordem expressa do comandante.
Pelos dados resultantes da localização estrutural, o
comandante concluíra que aqueles três seres não eram
daqueles em que se devia atirar sem mais aquela. Além
disso, sentia-se um tanto confuso. Teve de esforçar o
cérebro para chegar à conclusão de que o simples
surgimento desses seres estranhos e o aspecto de seus
trajes não lhe permitiam formular qualquer juízo
concludente. Depois de tantos anos que passara na paz
tranquila daquela fortaleza, o comandante sentiu-se
tomado de certa impaciência ao dar-se conta de que teria
de aguardar mais um pouco antes de satisfazer sua
curiosidade.
Dessa forma, tudo continuou calmo. O comandante
examinou o relatório ótico-eletrônico do localizador e
esperou.
* * *
Depois que ficara deitado de bruços durante cinco
minutos sem que acontecesse nada, Rhodan começou a
achar graça do susto por que acabara de passar.
Quem quer que tivesse colocado o desintegrador
naquele local, isso certamente fora feito na mesma época
em que o chão do platô tinha sido polido. Rhodan não
tinha a menor ideia quanto ao tempo durante o qual o
granito polido tinha de ficar exposto às intempéries antes
que só restassem algumas manchas do polimento, mas
tinha certeza de que isso duraria mais de mil anos. Era
pouco provável que o cano do desintegrador, exposto às
intempéries tal qual o granito, tivesse resistido melhor que
o polimento.
Levantou-se, mas teve certa cautela, porque se
lembrou de que o reator gravitacional devia funcionar
perfeitamente quando desviou a Good Hope de sua rota.
Rolara para junto do paredão. Ao levantar colocou-se
ao lado da abertura. Lentamente foi se aproximando dela.
Milímetro por milímetro foi avançando a cabeça pela
borda e olhou para dentro. O cano do desintegrador estava
tão perto dele que poderia tocá-lo com a mão. Seu
diâmetro era de pouco mais de meio metro. Havia espaço
suficiente para passar entre ele e a borda da abertura.
Sem refletir muito no risco que corria, Rhodan
baixou a cabeça e saltou para dentro da abertura. Por um
segundo angustiante, seu corpo ficou exposto à arma. Com
movimentos apressados esgueirou-se junto ao cano,
escorregou por cima do metal plastificado, muito liso, e foi
parar um tanto desajeitadamente no chão acidentado da
caverna, na qual a abertura parecia desempenhar a função
de janela.
Aguardou a reação; não houve nenhuma. Aproximou-
se da abertura e chamou Bell e Manoli, pedindo-lhes que
se aproximassem. Por uma questão de cautela, fez-lhes
sinal para que não se expusessem diretamente ao
desintegrador.
* * *
O comandante não deixou de perceber o salto
arriscado de Rhodan. Mais uma vez o relatório ininterrupto
do localizador automático deixou-o confuso. Era difícil de
imaginar que alguém com o aspecto e as vestimentas
daquele estranho se arriscasse a passar bem à frente do
cano do desintegrador.
O comandante teve de reconhecer que o
comportamento daquele estranho não correspondia às suas
previsões. Mas ainda não dispunha de certas informações
importantes, sem as quais não estaria em condições de
tomar uma decisão em relação a ele.
Não estavam prevenidos para dar busca numa
caverna. Em outras palavras, não haviam trazido a
lanterna. A luz crepuscular que filtrava pelas aberturas era
bastante débil. A caverna devia ter uns cinquenta metros
de largura e igual altura.
Atrás da segunda e da quinta aberturas, contadas a
partir do leste, havia um desintegrador. As quatro
aberturas restantes não pareciam preencher outra
finalidade senão a de deixar entrar um pouco de luz.
Rhodan examinou o desintegrador junto ao qual
penetrara na caverna. Fora construído segundo os mesmos
princípios dos aparelhos que, numa versão mais reduzida,
se encontravam a bordo da Good Hope. Mas Rhodan sabia
que esse detalhe não constituía qualquer indício válido da
filiação racial de seus construtores.
Manoli e Bell puseram-se a examinar as paredes da
caverna e deram uma olhada em outro desintegrador.
No primeiro desses aparelhos Rhodan já notara que
não dispunha de qualquer dispositivo de comando. Outro
fato que lhe pareceu estranho foi o de estar preso ao solo,
pelo que só poderia atirar para frente. Era bem verdade que
essa desvantagem aparente poderia ser compensada pela
possibilidade de dar qualquer abertura ao ângulo de
emissão do campo cristálico-neutralizador. Dois
desintegradores desses seriam mais que suficientes para
eliminar qualquer adversário que se encontrasse em
qualquer ponto do platô.
Mas a ausência de um mecanismo de comando
deixou-o estupefato. Certificou-se de que a caixa existente
na extremidade posterior da pesada arma só continha o
gerador destinado à produção do campo cristálico.
— Que decepção, não é? — disse Bell.
— Por quê?
93
Bell sacudiu os braços.
— Esta caverna. Esperávamos encontrar uma
fortaleza poderosa, e tudo que vemos é um buraco na
montanha.
Rhodan sorriu.
— Encontrou algum gerador gravitacional?
— Que...
Subitamente uma luz acendeu-se em sua mente. Deu
uma palmada na testa.
— Ah, sim. Onde está o gerador?
Rhodan ainda sorria.
— Provavelmente as pessoas que construíram esta
caverna contavam com uma reação igual à sua —
prosseguiu. — Qualquer um que não tenha passado pelas
nossas experiências há de acreditar que nada mais existe
por aqui. Se, além de tudo, não souber o que é um
desintegrador, sairá decepcionado. Acontece que notei
mais uma coisa.
Falou sobre a ausência do mecanismo de comando.
— Isso significa que se trata de um desintegrador
teleguiado. A partir de onde é guiado? Não pode ser a
partir de qualquer canto desta caverna. Há outra coisa.
Passou a mão pelo cano do desintegrador, liso como
um espelho.
— O metal plastificado é um material muito
resistente. Dura um século sem entrar em decomposição.
Mas se este desintegrador existe desde o tempo em que
aquele granito polido foi colocado lá fora, será fácil
imaginar como devia estar este metal plastificado, a não
ser que...
— A não ser quê...?
— A não ser que tenha uma conservação muito
cuidadosa.
Bell compreendeu o raciocínio de Rhodan, mas
Manoli ficou boquiaberto.
— Quer dizer que por aqui existe gente que vem
regularmente limpar estes canhões?
— É mais ou menos isso — admitiu Rhodan.
— Mas onde está essa gente?
Rhodan deu de ombros.
— Não sou nenhum profeta. Aliás, temos uma
pergunta muito mais interessante: este desintegrador se for
bem tratado, dá para atirar. Não fizeram nada disso. Se
admitirmos que os seres que habitam esta fortaleza
raciocinam em termos de lógica humana, então é de
esperar que queiram entrar em contato conosco, já que se
abstiveram de quaisquer hostilidades. Onde estarão?
* * * O comandante estava esperando.
* * * — Assim não conseguimos ir adiante — constatou
Rhodan, depois de ter realizado um exame prolongado e
improfícuo do chão e das paredes da caverna. — Vamos
chamar Anne e Tako. Anne poderia tentar localizar e ativar
qualquer mecanismo destinado a abrir uma passagem que
se localizasse no alcance de sua atuação. Se esse
mecanismo não existir, teremos de pedir a Tako que
penetre na montanha.
O rosto de Manoli exprimia certa dúvida.
— É um comando suicida.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Nada disso! A capacidade de Tako está sujeita a
leis físicas. Não pode materializar-se no interior de uma
matéria estranha. Para isso dispõe de um freio de
emergência. Se não houver nenhum espaço no interior da
montanha, logo encontrará o caminho de volta para o
ponto de partida.
— Não me refiro a isso; estou aludindo àqueles seres
estranhos — objetou Manoli.
— Eles não nos fizeram nada. Por que fariam alguma
coisa a ele?
Bell ofereceu outra sugestão.
— Por que não tentamos com os nossos
desintegradores? Poderíamos remover a parede, até
encontrarmos a abertura que nos levará adiante.
Rhodan confessou que já havia pensado nisso.
— É um risco muito grande. Esses seres poderiam
pensar que queremos atacá-los, o que os levaria a revidar.
Evidentemente dispõem de armas mais potentes que nosso
equipamento de bolso.
— É de supor que tenham inteligência suficiente para
saber que só queremos abrir caminho.
Rhodan concordou.
— Então?
Rhodan respondeu com um aceno de cabeça. Bell
ergueu o pequeno desintegrador que trazia na mão,
apontou-o para certa área da parede e comprimiu o gatilho.
Foi quando tiveram outra surpresa, que não era
menor que aquela causada pela descoberta da caverna e do
desintegrador gigante: a parede de rocha permaneceu
inalterável.
Com um resmungo de raiva, Bell abaixou a arma,
correu até a parede e examinou o trecho sobre o qual
dirigira o desintegrador.
— Nada! — gritou com a voz furiosa.
Sua raiva era tão grotesca que Rhodan começou a rir.
Manoli estava tão perplexo quanto Bell. Para ele, que
não havia sido submetido ao treinamento hipnótico, nada
neste mundo poderia resistir a um desintegrador.
Uma vez dominada a raiva, Bell procurou recorrer às
informações armazenadas em sua memória.
— Então é isso! — resmungou. — Recorreram à
intensificação do campo cristálico. De onde virá a energia?
Rhodan limitou-se a dar de ombros. Era
perfeitamente possível neutralizar os efeitos de um
desintegrador de potência média, correspondente ao tipo
portátil, através da intensificação da estrutura cristálica,
que a torna mais forte que a energia destrutiva do
desintegrador. Acontece que para uma parede dessa
extensão era preciso um suprimento constante de energia
da ordem de dez milhões de quilowats, desde que se
quisesse protegê-la contra os efeitos de um desintegrador
portátil até uma profundidade de cinquenta centímetros.
Era uma quantidade considerável, ainda mais se levarmos
em conta que aquela parede só devia representar uma parte
insignificante da fortaleza.
O inimigo — Rhodan começou a duvidar de que
realmente se tratasse de um inimigo — devia dispor de
reservas energéticas praticamente inesgotáveis.
* * * observador ótico registrou instantaneamente a
tentativa de danificar a parede da caverna, realizada por
Bell. Uma vez que se tratava de um ato hostil, ou ao
menos inamistoso, fez uma advertência ao comandante
através de uma ampliação dos impulsos.
Mas, tal qual Bell supusera, o comandante possuía
bastante capacidade de discernimento para perceber que
aqueles seres estranhos apenas procuravam um acesso para
94
o interior da montanha. Não expediu nenhuma ordem de
fogo, mas admirou-se de que os estranhos acreditassem
que além da caverna existissem outros compartimentos.
Depois de observá-los por algum tempo, quase chegara a
concluir que eram tão subdesenvolvidos que logo
abandonariam a caverna.
O fato de não terem procedido assim, e de terem
recorrido a um desintegrador para vencer a parede de
rocha, fê-lo concluir que esses seres não se enquadravam
em nenhum dos esquemas tradicionais. Portanto, só lhe
restava esperar.
* * * As pessoas que se encontravam no acampamento
foram avisadas. Assim que retornou com seu grupo, Tako
assumiu o comando. Mandou levantar as barracas e
distribuiu o equipamento, para ser transportado. Desta vez
Tom teria uma tarefa difícil para vencer. Os paredões de
rocha daquela montanha de treze mil metros não
constituíam um terreno adequado para seu vulto
avantajado. Houve necessidade de ativar um equipamento
auxiliar destinado a gerar uma gravidade artificial, o que
diminuiria sua capacidade de carga. Só assim conseguiria
realizar a subida.
Na chaminé o transporte teve de ser realizado
exclusivamente pelos meios humanos. Tom aguardou
pacientemente na entrada até que os três americanos
descessem cordas que o ajudaram a flutuar paredão acima.
De qualquer maneira, conseguiram realizar o
transporte. Cinco horas depois de ter sido transmitida a
ordem de Rhodan, que mandou levantar o acampamento,
as barracas e o equipamento estavam depositados na
plataforma. Tako e o resto do grupo esforçaram-se para
levantar Tom por cima do paredão de metro e meio
existente na boca do canal.
* * * O surgimento de Tom representava outro enigma
para o comandante. Era claro que já fora localizado
quando se deslocava pelo planalto. Mas o exame detalhado
só se tornou possível quando o aparelho foi colocado na
plataforma.
Tom não combinava com as observações que o
localizador realizara naqueles seres estranhos, exceto nas
vestimentas.
Os estranhos pareciam ser seres primitivos muito
audaciosos, às vezes temerários, que não sentiam o menor
respeito pela técnica infinitamente superior corporificada
nos desintegradores gigantes. Os trajes que envergavam e
o robô removedor não poderiam ter sido produzidos por
eles. Onde estariam os seres que fabricaram as vestimentas
e os robôs, sobre os quais o povo dos seres marinhos já
prestara algumas informações?
O comandante começou a compreender que essa
pergunta só seria respondida depois que tivesse localizado
a nave que há algum tempo ele tentara atrair para a
plataforma por meio do raio de sucção, já que as instruções
que lhe haviam sido ministradas não lhe permitiam abrir
fogo contra um artefato desse tipo. Acontece que a nave
conseguira subtrair-se à ação do raio e pousar, não em
qualquer lugar, mas num excelente esconderijo. As
indicações fornecidas pelos habitantes do mar
correspondiam ao estado primitivo desses seres. Eram tão
imprecisas que o comandante só pôde fornecer aos robôs
uma indicação aproximativa da área em que devia ser
realizada a busca. Face a isso, a nave não fora descoberta,
e a curiosidade do comandante permanecia insatisfeita.
Agora, porém, alguma coisa parecia acontecer.
* * * Estavam parados lado a lado junto ao paredão quase
vertical existente nos fundos da plataforma. A dois metros
deles ficava a abertura onde se encontrava o desintegrador
do lado ocidental.
Estava anoitecendo. Rhodan lançou um olhar
perscrutador para o céu. As nuvens estavam muito baixas,
a uns duzentos ou trezentos metros acima deles. Seria
preferível que na hora em que as tormentas crepusculares
começassem a soprar já dispusessem de um abrigo melhor
que aquela caverna com as seis aberturas.
— Quer tentar? — perguntou, dirigindo-se a Anne.
Anne fez que sim. Rhodan afastou-se e sentou no
chão para não perturbar o trabalho da moça.
Anne fechou os olhos e começou a procurar. Algum
tempo se passou sem que tivesse qualquer impressão, mas
enquanto ia se concentrando, o conteúdo daquela
montanha desenhava-se com nitidez cada vez maior em
seu espírito.
Evidentemente não se tratava de uma visão. Era antes
um sentir e um tatear, uma capacidade perceptiva
incompreensível ao homem comum, que se relacionava
com a telecinese.
Anne apalpou o corredor que começava logo atrás da
parede da caverna, conduzindo para o interior da
montanha. Supôs que devia haver uma porta no lugar em
que terminava numa parede. Procurou localizar o
mecanismo que a abria. Não o encontrou e, esgotada, teve
de interromper a experiência.
Descansou um pouco e começou de novo. Desta vez
encontrou um corredor mais amplo, que atingia a parede a
uns dez metros à direita do primeiro. Realizou nova
tentativa, que também se revelou inútil.
Encontrou um terceiro corredor, e depois um quarto.
Não havia nada na estrutura dos trechos de parede em que
terminavam que revelasse tratar-se de portas e, mais que
isso, não encontrou coisa alguma com que pudesse abri-
las.
A mente de Anne penetrou nos corredores e seguiu-
os até onde isso foi possível. Sua capacidade rastreadora
tinha um alcance de cerca de trinta metros. Dali em diante
tornava-se menos nítida, até cessar por completo.
A trinta metros de distância o feitio dos corredores
era idêntico ao que se observava junto à parede. As
paredes eram compactas. Anne não descobriu qualquer
indicação da sua finalidade ou do lugar para onde
conduziam.
A busca mental durara cerca de hora e meia. Anne
estava tão exausta que teve que deitar imediatamente numa
barraca montada no interior da caverna. Rhodan gostaria
de ouvir mais alguma coisa, mas Anne limitou-se a
murmurar “nada” e adormeceu.
O comandante não teve conhecimento das tentativas
de Anne. Os localizadores mecânicos não seriam capazes
de detectar a tentativa de um telecineta que, por meio de
suas capacidades extraordinárias, procurasse penetrar na
fortaleza.
O comandante surpreendeu-se com a inatividade
aparente dos estranhos. Depois da atividade febril que
desenvolveram no início, esperava coisa diferente.
95
VI
Quando Anne despertou, as últimas horas do dia
chegavam ao fim. De tão esgotada que ficara, havia
dormido quase vinte horas.
Rhodan aproveitara o tempo, embora não pela forma
prevista. Toda a bagagem foi introduzida na caverna, para
que Tom pudesse entrar. Após isso, as aberturas foram
fechadas com pedaços de lona. Não resistiriam à
tempestade por mais de quinze minutos, mas quinze
minutos de tempestade representavam um tempo
considerável.
Quando Anne acordou, Rhodan informou-a sobre
suas descobertas. Estava muito abatida.
— Você perdeu muito tempo, não é? — perguntou.
— E foi por minha causa.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Anne, para nós você vale tanto que não
hesitaríamos em deixá-la dormir um dia inteiro, um dia de
Vênus.
— Obrigada. Quer pedir a Tako que venha até aqui?
Rhodan fez que sim.
— Está disposto a sair?
— Perfeitamente. Apenas espera que o informe sobre
aquilo que você observou.
Rhodan saiu da barraca. Tako estava esperando junto
à parede da caverna. Rhodan explicou-lhe o que Anne
conseguira descobrir. Tako respondeu com um aceno de
cabeça.
— Esteja de volta dentro de uma hora no máximo! —
insistiu Rhodan. — Se demorar mais, suporemos que
alguma coisa lhe aconteceu.
O rosto largo de Tako abriu-se num sorriso.
— O que pretende fazer se isso acontecer?
Rhodan não se perturbou.
— Encontraremos um meio — respondeu. — Pode
confiar em nós.
— Está bem — respondeu Tako. — Até daqui à uma
hora, o mais tardar.
No mesmo instante desapareceu.
O rosto de Rhodan tornou-se muito sério. Tinha
certeza de que descobriria um meio de ajudar Tako, se
algo lhe acontecesse.
* * * Tako sentiu-se tomado de pavor; ficou arrepiado.
Sentiu um golpe quando seu primeiro salto teleportado
sofreu um desvio que evitou sua rematerialização no
interior de uma matéria estranha.
Dali a um segundo voltou à imobilidade. Estendeu os
braços e com a mão esquerda apalpou alguma coisa que
parecia uma pedra lisa.
A escuridão era completa. Tako sabia que continuaria
assim. Num ambiente em que não penetra o menor raio de
luz o olho não pode acostumar-se à escuridão. Teria de
encontrar seu caminho às apalpadelas, até vencer o receio
de usar a lanterna.
Por um instante permaneceu imóvel e aguçou o
ouvido. Mas a ausência de ruídos era tão completa como a
de luz.
Sentiu um cheiro estranho que penetrava o interior
daquela montanha. Procurou analisá-lo. A única conclusão
a que chegou foi que nunca sentira um odor semelhante.
Tateando, deslocou-se para a direita, mas também
encontrou um obstáculo. Atrás dele e à sua frente não
havia nada. Isso significava que se encontrava num
corredor.
Voltou a aguçar o ouvido. Como ainda desta vez não
ouvisse nada, acendeu a lanterna. Regulou-a de forma a só
emitir um feixe de luz fraco e bem aberto, que bastaria
para orientá-lo, mas não era visível à distância.
Mesmo à luz da lanterna, não conseguiu ver o fim do
corredor, nem descobriu nada de extraordinário.
Continuou avançando. À medida que o tempo passava sem
que fosse molestado, o medo ia diminuindo. Depois de ter
caminhado durante dez minutos, repreendeu-se pelo medo
que sentira no início.
* * * A invasão de Tako foi detectada instantaneamente
pelo localizador automático. A notícia foi transmitida ao
comandante, numa faixa de amplitude que chegou a ser
dolorosa.
O comandante não viu nenhum perigo no fato de um
único homem ter penetrado na fortaleza, mas finalmente
teria possibilidade de descobrir alguma coisa sobre as
intenções daqueles seres estranhos, sobre sua origem e
principalmente sobre as características dos seres que lhes
haviam fornecido o equipamento.
Receava que essas informações não fossem muito
agradáveis. Provavelmente se constataria que os estranhos
haviam aprisionado os dois seres que constituíam o alvo
principal do interesse do comandante, obrigando-os a
entregar-lhes seu equipamento.
Em face dessa suposição, que um ligeiro
processamento dos dados disponíveis transformou numa
probabilidade bastante elevada, Tako tornou-se alvo de
medidas mais rigorosas que as que seriam adotadas se o
comandante conhecesse a situação real.
Ordenou ao destacamento policial que capturasse o
invasor. Os policiais obedeceram imediatamente.
* * * Tako indagou de si para si de que serviria essa
marcha pelo corredor escuro, aonde já ia tateando há uns
vinte minutos.
As paredes eram lisas, mas não eram de pedra
natural, como acreditara no início. Estavam cobertas de
uma camada de metal plastificado. Não descobriu outros
detalhes. Não havia portas, nem instrumentos embutidos
na parede. Absolutamente nada.
Até onde atingia a luz da lanterna, — Tako já se
arriscara a regulá-la para um feixe de luz estreito, mas
potente — o quadro era o mesmo. Chegou a acreditar que,
se andasse mais um trecho, o corredor terminaria em outra
parede, igual à que devia existir atrás dele e que,
teleportando-se através dela, atingiria o ar livre do outro
lado do morro.
“De que pode servir um corredor que simplesmente
atravessa o morro?”, pensou.
Voltou a concentrar a atenção sobre as paredes do
corredor. Pensou que nos outros pontos não as tivesse
examinado com bastante atenção.
Mas as paredes continuavam lisas e compactas como
antes.
* * *
Os policiais receberam instruções diretamente do
comandante.
Sabiam que o invasor era um teleportador natural.
Por isso não bastaria agarrá-lo; teriam que deixá-lo
96
inconsciente, para que não pudesse utilizar seus dons.
Também sabiam que usava uma lanterna para
iluminar o corredor. Dessa forma, não poderiam aguardá-
lo em qualquer lugar. Teriam de postar-se num corredor
lateral e golpeá-lo no instante exato.
Finalmente sabiam que o invasor estava armado.
Pelas indicações que o localizador pôde colher, a arma que
trazia devia ser de elevada potência. Os policiais estavam
treinados para manter a ordem na fortaleza, se necessário
com o sacrifício da própria vida. Mas um instante
poderoso dizia-lhes que, sempre que possível, deviam
manter-se afastados dos desintegradores.
Os dez policiais que o comandante destacara para a
captura do invasor postaram-se, cinco a cinco, em dois
corredores laterais opostos, que desembocavam no
corredor pelo qual Tako se deslocava.
Calmamente, aguardaram que o comandante lhes
desse a ordem para abrir a porta e agarrar o estranho.
* * * Tako estava prestes a voltar. Achava inútil percorrer
vários quilômetros num corredor completamente vazio.
Gostaria que Perry Rhodan estivesse ao seu lado.
Talvez este tivesse alguma ideia de como lidar com
aquelas paredes.
Parou e voltou-se. Atrás e diante dele, o corredor
entediante estendia-se. Um quilômetro já ficara atrás, e
para diante só o demônio saberia dizer quanto faltava.
Concentrou-se sobre a caverna de onde partira e
esteve a ponto de teleportar-se para lá, quando ouviu um
ruído ao seu lado.
Virou-se abruptamente e arregalou os olhos para a
grande abertura que se formara na parede. Seres que nunca
vira antes se aproximaram à luz da lanterna.
Provavelmente poderia ter-se salvado se dois
impulsos não se tivessem sobreposto em sua mente. Ficou
sem saber se devia sacar o desintegrador para livrar-se dos
atacantes ou escapar por meio de um salto teleportado. Foi
quando uma coisa dolorosa atingiu-o nas costas,
imobilizou-o e o fez mergulhar em profunda
inconsciência.
As instruções do comandante chegaram
imediatamente.
— Transportar prisioneiro ao setor A, pavimento
XIV, corredor 2, compartimento 331.
Dois dos policiais levantaram o homem inconsciente.
O grupo entrou em formação e pôs-se em marcha. Desta
vez os dez homens seguiram na mesma direção, dispondo-
se a executar as ordens do comandante.
O grupo encontrava-se no setor F, perto do lugar em
que todos os setores daquele complexo circular se
encontravam no centro do círculo. E o pavimento era o de
número XXI.
No corredor que os policiais haviam atravessado a
uns cinquenta metros, do lugar em que Tako fora agarrado
de surpresa, havia um elevador que funcionava com base
na eliminação da gravidade. A plataforma que se movia
sob o influxo de um campo gravitacional artificial tinha
uma área suficiente para abrigar os dez policiais e o
prisioneiro.
A viagem ao pavimento XIV só durou alguns
segundos. Os policiais dirigiram-se para a direita. No
momento em que atingiram o compartimento 331 do
corredor 2 e a porta abriu-se diante deles, receberam uma
ordem:
— Preparar o prisioneiro para o interrogatório.
Verificou-se que a iluminação do complexo não fora
colocada fora de funcionamento. Apenas era utilizada em
ocasiões especiais, pois subitamente uma profusão de
lâmpadas espalhou uma luz branco-leitosa na sala de
interrogatórios.
Os policiais colocaram Tako sobre uma peça de
móvel que se pareceria com uma cama, se não estivesse
munida de uma série de instrumentos. Puseram-lhe um
capacete e ligaram um dos fios vermelhos que o uniam a
um dos instrumentos.
Logo reportaram ao comandante:
— Ordens cumpridas.
O comandante respondeu:
— Voltem aos seus postos.
* * * Não foi pequena a surpresa do comandante ao tomar
conhecimento da resposta de Tako à pergunta formulada
por via hipnótica. Teve de rever sua opinião sobre a
maneira pela qual os dois seres que haviam fornecido o
equipamento técnico se tinham encontrado com os
membros do grupo. Ele o fez com a maior rapidez.
Todavia, não se devia esquecer que os estranhos que
se encontravam no interior da caverna nada sabiam dessa
revisão. Por intermédio de Tako, o comandante soube que
para os seres estranhos, as instalações encravadas na
montanha eram uma base inimiga. Por isso seria um erro
abrir-lhes as portas sem mais aquela.
Fez seus preparativos e dispôs-se a estabelecer
contacto com os estranhos.
* * * Uma hora se passou sem que Tako voltasse. Rhodan
começou a inquietar-se.
Nesse meio tempo haviam recebido o sinal
codificado da Good Hope e respondido ao mesmo. A
bordo da nave tudo parecia estar na mais perfeita ordem.
Antes que atingissem o planalto, Rhodan e Crest
combinaram que as mensagens radiofônicas trocadas de
hora em hora seriam substituídas por um simples sinal.
Seria muito mais difícil captar e localizar um sinal breve
que uma palestra prolongada.
Pelo mesmo motivo, Tako não levava nenhum
equipamento de radiotransmissão.
Só Anne Sloane conseguira acompanhá-lo por algum
tempo através do rastreamento telecinético. Mas já fazia
mais de cinquenta minutos que ele se encontrava fora do
seu alcance.
Rhodan começou a compreender que não teria
alternativas senão solicitar a presença da Good Hope fosse
qual fosse o risco. Só mesmo os instrumentos potentes que
a nave trazia a bordo poderiam ser capazes de romper
aquelas paredes e penetrar no interior da montanha.
Foi uma decisão difícil; Rhodan consumiu alguns
minutos para justificá-la perante sua consciência.
Depois de algum tempo sentou diante do
radiotransmissor e dispôs-se a transmitir a Crest e Thora
um relato minucioso, acompanhado de um pedido de
socorro.
Foi quando Bell irrompeu na barraca.
— A parede! — disse ofegando. — A parede está
aberta.
Rhodan saiu de trás do transmissor e, passando junto
a Bell, precipitou-se para fora da barraca. Alguém ligara
97
um refletor portátil que iluminava um pedaço da parede.
Bem no meio da área iluminada via-se uma abertura.
Rhodan não hesitou.
— Preparar para a partida! — gritou com a voz
retumbante. — Peguem lanternas, armas e um
radiotransmissor. Rápido!
Não tinha a menor ideia de como surgira à abertura
na parede. Talvez Tako tivesse localizado o mecanismo
que movimentava a porta. Mas se fosse assim seria difícil
de compreender por que não retornara no tempo
combinado.
Apesar disso, não refletiu. Mesmo que a abertura não
passasse de uma armadilha, o grupo, equipado com aquele
armamento, tinha boas chances diante do inimigo.
Dentro de poucos minutos estavam prontos para
partir. As primeiras rajadas da tempestade varreram a
plataforma quando o grupo, com Rhodan na ponta,
penetrou na escuridão.
Anne Sloane vinha logo atrás de Rhodan. Este lhe
pedira que estendesse suas “antenas” para todos os lados,
procurando localizar qualquer coisa que pudesse
representar um perigo.
Anne não podia enxergar através de uma parede
compacta, mas sua capacidade telecinética fazia com que
identificasse qualquer área em que estivesse ausente a
resistência ao tateamento.
A seguir vinha Manoli e os três americanos. Reginald
Bell formava a retaguarda.
Avançaram cerca de trinta metros à luz do refletor,
que Rhodan segurava com o braço estendido para o lado, a
fim de não oferecer um alvo ao ataque. Subitamente e sem
qualquer aviso, uma mortiça luz branco-leitosa parecia sair
das paredes.
Rhodan estacou; mas, além da luz, não houve
qualquer surpresa.
Provavelmente tinham passado por cima de um
contato.
— Aqui há um corredor lateral — cochichou Anne
— e do outro lado também.
— Está vazio? — perguntou Rhodan desconfiado.
Anne fez que sim.
Rhodan compreendeu que nenhum dos dois
corredores lhe serviria de nada. Também aqui não se via
qualquer mecanismo acionador das portas. Continuariam
pelo mesmo corredor, até que chegassem a uma
encruzilhada onde houvesse uma entrada mais convidativa
que esta.
Dali em diante Anne passou a registrar a intervalos
regulares corredores laterais fechados. Com base nos
dados por ela fornecidos, Rhodan pôde traçar um quadro
mental do complexo. De início Anne teve a impressão de
que os corredores laterais prosseguiam em linha reta, mas,
à medida que avançavam, tornava-se cada vez mais
evidente que descreviam uma curva. Para Rhodan não
havia mais dúvida de que a fortaleza cavada na montanha
era de forma circular. Havia corredores radiais como o que
estavam percorrendo, que se dirigiam ao centro do círculo,
e corredores laterais, de formato circular, que ligavam os
corredores radiais a intervalos regulares.
Atrás das paredes situadas entre os corredores radiais
e laterais devia haver salas. Rhodan bem que gostaria de
dar uma olhada numa delas. Mas nas paredes não havia o
menor indício da existência de portas, e uma ligeira salva
de desintegrador deixou claro que a estabilização do
campo cristalino no interior da montanha era tão eficiente
como na caverna.
Estavam andando há cerca de meia hora e deviam ter
percorrido uns dois ou três quilômetros. Anne parou tão
abruptamente que os que vinham atrás esbarraram nela.
— Parem!
Rhodan virou-se.
Anne apontou para a parede.
— Aquele corredor não está vazio. Há gente por ali.
— Gente?
Anne fechou os olhos e procurou concentrar-se.
Tateou os corpos que se encontravam do outro lado da
parede e procurou determinar sua forma. Era bastante
estranha, mas não havia dúvida de que aqueles seres
desconhecidos guardavam certa semelhança com os
homens.
Mas não se moviam. Permaneciam rígidos como
cadáveres. Um calafrio passou pela espinha de Anne, que
relatou:
— São semelhantes aos homens. Mas não se movem.
Rhodan resolveu não se preocupar com aqueles
vultos estranhos. Mandou que o grupo prosseguisse na sua
marcha.
* * * Com certa inquietação o comandante constatou que o
grupo de estranhos parou justamente diante do corredor
lateral em que postara o primeiro destacamento de
policiais.
Seria uma coincidência? Os localizadores não
puderam fornecer qualquer indicação sobre a maneira pela
qual os estranhos poderiam ter notado a presença dos
policiais. Só podia ser coincidência.
Abriu a porta de um elevador e esperou que o grupo
de estranhos o atingisse. Enquanto iam descendo ordenou
aos policiais que saíssem do corredor lateral e
bloqueassem o corredor radial atrás do grupo.
* * * A porta tinha mais de dois metros de altura e pelo
menos três de largura. Atrás dela havia um compartimento
sem teto, em forma de caixote. Rhodan enfiou a cabeça e
sentiu a estranha sucção na nuca, provocada pela ausência
de gravidade no interior do poço.
Era um poço de elevador.
Nas paredes não havia qualquer indicação sobre a
maneira de comandar o elevador. Rhodan fez sinal para
que os membros do grupo se aproximassem e ordenou-lhes
que saltassem ao mesmo tempo sobre a prancha.
Por um instante parecia que o elevador não se movia.
Mas de repente ele o fez com tamanha rapidez que todo
mundo pensou que alguém lhes arrancara o apoio sob os
pés.
A viagem só durou alguns segundos. Pela
movimentação da parede Rhodan calculou que haviam
vencido uma diferença de altitude de cerca de cem metros.
No lugar em que o elevador parou, viram diante de si um
corredor igual aos que já haviam percorrido. Era igual,
exceto...
— Olhem ali atrás! — sussurrou Bell.
Desta vez não precisaram do poder sobrenatural de
Anne. Os seres estranhos estavam bem à vista. Parados do
lado esquerdo do corredor, a uns vinte metros do elevador,
não faziam o menor movimento.
Tinham formato humano, mas os rostos eram escuros
e bexiguentos. Ao que parecia, não usavam nenhuma
roupa. A pele nua brilhava em toda a extensão, exceto nas
98
manchas escuras que lhes cobriam o corpo.
Num movimento instantâneo Bell levantou a arma.
Ainda assim os estranhos permaneceram imóveis.
Rhodan destacou-se do grupo e caminhou na direção
deles. Deixaram que se aproximasse a dez metros, depois
executaram o primeiro movimento. Levantaram os braços.
Rhodan percebeu que estavam armados. Traziam as armas
apontadas em sua direção.
Rhodan deu de ombros e voltou atrás.
Do outro lado, o corredor estava vazio.
— Quem sabe se não vamos cair numa armadilha? —
disse Bell com a voz furiosa.
— O que podemos fazer? — perguntou Rhodan. —
Trocar tiros com eles? Não temos um palmo de cobertura.
— Como não? O elevador...
Virou-se abruptamente. O elevador havia
desaparecido. A porta fechara-se diante dele. A parede
voltara a ser tão lisa como as outras paredes daquela
fortaleza.
— Que porcaria!
Foram caminhando para a direita. Os seres estranhos
também se moveram, seguindo-os com os passos
hesitantes.
Rhodan começou a inquietar-se. O corredor
prosseguia em linha reta até onde alcançava a vista. Não
havia nenhum ponto em que pudessem abrigar-se.
Se a única intenção desses seres medonhos fosse
atraí-los para uma armadilha, não teriam muita dificuldade
em conseguir seu intento. Na situação atual, Rhodan
preferia deixar que o aprisionassem sem resistência a
arriscar a vida de seus homens numa luta em que não
teriam a menor chance.
Provavelmente a fortaleza estava repleta daqueles
seres estranhos. Se parassem em determinado ponto do
corredor para defender-se, a parede poderia abrir-se
naquele mesmo lugar e expelir um montão de inimigos.
As forças de Anne começaram a diminuir. A tensão
ininterrupta deixara-a cansada. Rhodan preferiu poupá-la,
para poder recorrer a ela quando tivesse muita
necessidade.
* * *
Como Rhodan avançasse devagar, o comandante teve
tempo de ampliar os conhecimentos extraídos do cérebro
de Tako Kakuta.
Constatou que o cérebro de Tako registrava o
conhecimento completo de duas línguas e noções
fragmentárias de uma terceira. Procurou combinar as duas
línguas que ali se achavam completas e ligá-las a uma raiz
comum; não o conseguiu. Isso o deixou surpreso.
Transmitiu os conhecimentos linguísticos recém-
adquiridos a dois oficiais e mandou que fossem ao
encontro dos seres estranhos.
— Parem! — gritou Rhodan quando os dois vultos
surgiram no corredor.
Os dois oficiais avançaram com as mãos levantadas.
Rhodan aguardou-os à frente do grupo, de arma em punho.
Notou que tinham a pela clara e, ao contrário do
destacamento que ficara para trás, usavam certo tipo de
roupa. Além disso, seus rostos não eram bexiguentos.
Procurou decifrar suas fisionomias, mas viu apenas
um sorriso amável e inexpressivo, que não permitia
qualquer conclusão sobre suas reais intenções.
Os dois homens não usavam barba nem bigode.
Tinham a testa mais alta que a dos terráqueos, mas quanto
ao mais poderiam ser confundidos perfeitamente com
homens europeus, americanos ou australianos.
Pararam a alguns metros de Rhodan. Um deles disse
algumas palavras numa língua clara e melodiosa. Calou-se
e esperou pela resposta de Rhodan.
Este não entendera nada. Sob o aspecto fonético, a
língua falada por aquele estranho se parecia com o japonês
ou o coreano. Acontece que Rhodan não dominava
nenhuma dessas línguas, e, além disso, achava pouco
provável que naquela fortaleza houvesse alguém que
falasse justamente o japonês ou o coreano.
Depois que Rhodan permaneceu calado por algum
tempo, o outro estranho começou a falar:
— O comandante pede que tenham a bondade de ir
ao lugar em que se encontra. Manda dar-lhes as boas-
vindas como seus hóspedes. Não têm nada a temer.
Por uma fração de segundo Rhodan ficou perplexo.
Enquanto atrás dele o espanto ainda se manifestava em
sons ofegantes e assustados, já compreendera o que havia
acontecido. Tinham aprisionado Tako, ou então,
conservavam-no consigo por sua livre vontade, e de seu
cérebro extraíram as línguas que ele dominava: o japonês e
o inglês.
Rhodan refletiu febrilmente. Não havia nenhum
motivo para supor que o comandante da fortaleza não tinha
qualquer intenção hostil. O convite de entrar na armadilha
poderia ser adoçado por meio de palavras amáveis. Se
fosse assim, poupariam muito trabalho ao inimigo caso
aceitassem seu convite.
Apesar de tudo Rhodan respondeu:
— Ficamos muito gratos ao seu comandante. Querem
fazer o favor de levar-nos para junto dele?
— Queiram acompanhar-nos — disse o estranho que
falava o inglês.
Virou-se e seguiu juntamente com seu acompanhante
pelo caminho por onde tinham vindo. Rhodan e os outros
membros do grupo foram atrás deles.
Virando a cabeça ligeiramente para o lado, Rhodan
disse com a voz baixa:
— Preparem-se. É bem possível que queiram tentar
um truque.
Alguém resmungou algumas palavras de
assentimento. Bell disse:
— Devíamos ter perguntado onde está Tako.
— No momento isso não adiantaria — disse Rhodan
em tom apressado.
Na luz difusa do corredor tornava-se difícil calcular
as distâncias. Por algum tempo parecia que o corredor
continuava por alguns quilômetros numa reta contínua.
Mas ainda não tinham caminhado dois minutos depois do
encontro com os estranhos, quando alguns contornos
começaram a desenhar-se diante deles. Poucos instantes
depois o corredor desembocou numa praça cuja extensão
era considerável.
À primeira vista parecia ter formato retangular,
medindo uns quinhentos metros para a esquerda e para a
direita, e duzentos metros de largura. Mas logo
constataram que a praça não passava de um tipo de
corredor circular, que contornava um edifício também
circular que se encontrava no centro.
Os dois estranhos atravessaram a praça. A patrulha
acompanhou-os. Rhodan lançou os olhos em torno. Ficou
espantado ao constatar que a altura da praça, ou corredor
circular, era de pelo menos cinquenta metros, e que a
intervalos de cerca de doze metros havia galerias cavadas
nas paredes, onde desembocavam os corredores de outros
67
99
pavimentes.
Tudo indicava que se aproximavam do centro da
fortaleza. Rhodan ficou curioso para saber o que
encontrariam no interior do edifício situado no centro da
praça.
Tinha a altura da praça, e em certos pontos parecia
mesmo que rompia o teto da mesma. Suas paredes não
apresentavam emendas, tal qual acontecia com as demais
paredes daquela fortaleza. Quando os dois estranhos
atingiram o edifício, depois de terem cruzado a praça, uma
das paredes abriu-se diante deles e deixou à vista um salão
imenso, muito mais iluminado que os recintos que Rhodan
e os membros de seu grupo tinham visto até então.
Apesar do tamanho descomunal, o salão só ocupava
uma parte minúscula do edifício. Assim que penetrou pela
grande abertura que se formara diante dos dois estranhos,
percebeu a finalidade daquele edifício.
A parede dos fundos, que media cerca de trinta
metros de largura e quinze de altura, era um único painel
de instrumentos, semelhante ao que se encontrava, em
versão muito mais reduzida, na sala de comando da Good
Hope. Um tipo de quadro de comando avançava uns dois
metros da parede para fora; à direita e à esquerda do
mesmo viam-se pequenas plataformas, que devia servir
para levar as pessoas que ali trabalhavam de um a outro
ponto do gigantesco painel.
Rhodan percebeu imediatamente que a sala de
comando em que se encontravam devia pertencer a um dos
maiores cérebros positrônicos jamais construídos na
galáxia.
Assim que chegaram ao centro da sala, os estranhos
pararam. Esperaram que Rhodan e os membros de seu
grupo se aproximassem. Depois um deles fez um gesto
grandioso em direção ao painel e disse:
— Eis aí o comandante. Sente muito prazer em tê-lo
diante de si.
* * *
O resto dos dias passados na fortaleza decorreu num
assombro incessante causado pelas maravilhas técnicas
que a montanha abrigava.
Rhodan e Bell, que haviam recebido instrução
arconídica, espantaram-se menos com as maravilhas que
com o fato de as encontrarem justamente em Vênus.
O comandante, que gostava tanto de receber
informações como de dá-las, deu a entender que seus
construtores foram arcônidas pertencentes à mesma raça
de Crest e Thora. Estes haviam decolado com a Good
Hope assim que Rhodan os avisou da descoberta,
pousando sem incidentes na plataforma diante da caverna.
Para Rhodan o fato de pela primeira vez ver Crest
espantado de verdade foi um grande acontecimento. Crest
não compreendia que parte da história colonial dos
arcônidas, por mais insignificante que fosse e por mais
recuada que ficasse no passado, tivesse escapado aos
registros históricos. A observação um tanto irônica de
Rhodan, de que mesmo a máquina mais bem regulada
pode cometer um engano, correspondia ao curso do
pensamento humano-terreno, o que impediu Crest de
aceitá-la.
Mergulhou afoitamente nas informações históricas
que o comandante — para Crest era o maior cérebro
positrônico que já vira, além do grande cérebro central
localizado em Árcon — lhe ministrava com a maior boa
vontade, em forma de relatórios falados numa língua que o
tradutor robotizado da Good Hope identificara como o
intercosmo antigo, e ainda sob a forma de filmes e fitas
magnéticas, cujo conteúdo foi assimilado pelos estudiosos
nos moldes da instrução hipnótica.
Sem que o soubesse, Crest realizou por essa forma
uma divisão de trabalho que lhes poupou bastante tempo,
pois permitiu que, além do levantamento dos dados
históricos, também coletassem os dados puramente
materiais.
Seguindo as informações transmitidas por Crest,
revistaram pavimento por pavimento, setor por setor,
corredor por corredor da enorme fortaleza e levantaram o
inventário de tudo que encontravam. Só levaram algumas
horas para constatar que por ali havia material suficiente
para que a Terceira Potência superasse as dificuldades dos
estágios iniciais.
Naturalmente Tako Kakuta foi libertado, depois de
recuperar-se do esgotamento causado pelo interrogatório
hipnótico. Tal quais os outros membros da patrulha,
passou a ocupar um camarote residencial que o
comandante lhe destinara no décimo pavimento.
Os outros membros do grupo foram passando o
tempo, conforme lhes dava na cabeça, no interior dos
enormes salões da fortaleza. Uma vez obtidas às
indicações necessárias, as portas embutidas nas paredes
inteiriças não representavam mais nenhum obstáculo. Sua
atividade não passava dum tatear infantil em meio às
maravilhas da técnica. No entanto, ao menos um fato
deixou-os mais tranquilos: o comandante ordenara que os
policiais bexiguentos retornassem aos seus alojamentos,
para que não os assustassem mais.
Os policiais não passavam de robôs, que resistiram ao
longo tempo decorridos desde a construção da fortaleza.
No interior dela não havia um único ser vivo. O que existia
era um gigantesco cérebro positrônico, o comandante, e
um exército de robôs. Nada mais. Os setores de reparos
providenciavam para que todo o equipamento atravessasse
os milênios sem sofrer maiores danos. Apenas, o
comandante não atribuía maior importância ao
revestimento orgânico em forma de pele que cobria o
corpo metálico dos robôs, e por isso não ordenara uma
conservação mais cuidadosa do mesmo. Assim, o plástico
orgânico escurecera e se abrira em furos, ou em bexigas,
conforme diziam os terráqueos com base numa primeira
impressão. Os oficiais robotizados, que desempenhavam
funções muito mais complexas, constituíam a única
exceção.
* * * Certo dia Crest saiu das salas de instrução cansado,
mas radiante. Declarou-se disposto a informar os membros
da patrulha sobre todos os detalhes de que ficara sabendo
através das anotações encontradas na fortaleza.
Essa forma de transmissão de conhecimentos
tornava-se necessária porque além de Bell e Rhodan
nenhum dos terráqueos estava em condições de submeter-
se aos impulsos hipnóticos dos arcônidas.
Reuniram-se na sala que tinha uma das paredes
coberta pelo painel do cérebro positrônico. Todos
compareceram, exceto Thora.
Esta aparecera raras vezes, desde que a Good Hope
pousara na plataforma. Rhodan pensava que sabia o que
estava procurando. Uma vez que conhecia melhor os
depósitos de equipamentos técnicos da fortaleza, teve
compaixão dela por causa de suas esperanças vãs.
Crest fez seu relatório em inglês. Adquirira um
domínio perfeito dessa língua; ninguém poderia apontar o
100
menor erro em sua exposição.
— Esta base — principiou — tem uma idade de cerca
de dez mil anos, segundo a escala de tempo dos senhores.
Pelos dados da história do Império Galáctico, data do
primeiro período de colonização. O destino da frota
colonizadora que pousou neste planeta era outro.
Interrompeu sua viagem por entender que o terceiro
planeta deste sistema solar constituía um objetivo mais
desejável que o mundo que lhes fora indicado com base
nos mapas estelares dos arcônidas.
“No entanto, ao aproximarem-se do terceiro planeta,
que é a Terra, constataram que o mesmo estava habitado.
Por isso realizaram um pouso em Vênus, onde iniciaram
os preparativos para a colonização deste mundo. Aqui
instalaram uma base secundária, que é precisamente a
fortaleza em cujo interior nos encontramos. Os arcônidas,
em número de duzentos mil, segundo revelam as crônicas,
colonizaram um dos continentes da Terra. Pelo que sei o
mesmo não existe mais. Naquela época recuada formava a
ponte entre as terras afro-europeias e as americanas”.
“Mas essa colônia teve uma curta duração. Mais tarde
poderão informar-se sobre os detalhes da catástrofe que a
destruiu e afetou toda a Terra. Só cinco por cento dos
arcônidas sobreviveram à catástrofe e retornaram a Vênus.
Falaram num ataque de seres invisíveis. É claro que com
isso apenas quiseram justificar seu fracasso.
“A base de Vênus ainda dispunha de metade da frota
de naves em condições de navegabilidade espacial, ou
seja, de naves capazes de percorrer qualquer distância,
quase sem nenhuma perda de tempo. Os colonos...
esperem.”
Neste ponto seria conveniente intercalar uma
explicação.
— Uma expedição colonizadora nunca foi um
empreendimento democrático, e nem poderia ser. Nos
primeiros anos de sua instalação e desenvolvimento, uma
colônia jovem precisa de um regime forte, e este era
exercido através de uma espécie de aristocracia.
“O conselho aristocrático da colônia terrena decidiu
que o remanescente dos colonos decolaria nos veículos
espaciais de que ainda dispunham, e procuraria alcançar o
ponto de destino inicialmente fixado, já que por vários
séculos a Terra não ofereceria uma área adequada para a
colonização. A decisão foi cumprida, o que era mais que
natural, pois não se admitia qualquer oposição às
resoluções do conselho de colonização. A maior parte dos
colonos decolou de Vênus com as naves que ainda lhe
sobravam. Uma minoria ficou para trás, por não encontrar
lugar nos veículos espaciais. A maior parte da frota
espacial fora destruída na Terra. Uns dois mil colonos
tiveram de ficar em Vênus. Levaram vida solitária, mas
não desconfortável. Ao que tudo indicava, o conselho
aristocrático escolhera-os porque espiritualmente eram
mais indolentes que os outros. Nem pensaram em lançar
mão dos recursos de que dispunham para construir suas
naves espaciais. Continuaram onde estavam”.
“Faz cerca de oito mil anos que o último membro
desse grupo morreu”.
“Até parecia que uma estrela má pairava sobre os
colonos deste setor da galáxia. Nunca mais se ouviu falar
da frota espacial que decolou de Vênus depois da
catástrofe terrestre. Temos certeza de que não chegou ao
destino. Mas ninguém sabe o que lhe aconteceu. Nenhuma
notícia chegou a Árcon, nem o comandante sabe dizer o
que é feito dela. Ao que parece também em Vênus
aconteceram coisas estranhas. Mas as informações a este
respeito são tão escassas que de nada nos servem”.
“A fortaleza continuou a viver. Formava um
complexo autárquico. Os grupos de reparo estavam em
condições de manter em funcionamento toda a
aparelhagem existente nela. Atravessou os milênios e
apenas revela sua presença de dez em dez horas, expelindo
o ar quente gerado no seu interior através de um canal bem
disfarçado”.
“As ordens que o último comandante arconídico
inseriu no cérebro positrônico continuaram a vigorar.
Além disso, o cérebro fora instruído a obrigar qualquer
nave estranha a pousar, ou destruí-la. As naves arconídicas
eram a única exceção. Mas, como se presumia que estas
mesmas só pousariam em Vênus se pertencesse a alguma
empresa colonial do setor, exigia-se que transmitissem o
respectivo sinal codificado. Fora essa a razão da
mensagem que não entenderam. Embora não tivéssemos
transmitido o sinal, o comandante, ou melhor, o cérebro
positrônico, percebeu que a nave era do tipo daquelas que
não deviam ser bombardeadas. Tentou arrastar-nos para a
plataforma por meio do raio de sucção; mas — fez um
cumprimento a Rhodan — nosso comandante conseguiu,
numa reação instantânea, subtrair a nave à influência
estranha e pousá-la num lugar em que o cérebro
positrônico não a encontraria. Após isso o comandante
entrou em contacto com os animais do tipo das focas,
dotados de pouca inteligência, procurando localizar a nave
por seu intermédio. Mas essa tentativa também falhou,
pois a inteligência das focas não basta para fornecer
indicações de local que possam ser aproveitadas pelo
cérebro positrônico.
“Pois bem. O cérebro aguardou pacientemente.
Poucos dias depois viu que os estranhos vinham
espontaneamente para junto dele. Alguns detalhes
espantosos foram constatados: os membros do grupo eram
estranhos, mas seu equipamento era de origem
arconídica”.
“O cérebro concluiu que aqueles seres deviam ter
dominado uma nave arconídica, aprisionado seus
tripulantes e roubado o equipamento. Mas essa conclusão
não se revestia de um grau de probabilidade aceitável,
motivo por que o cérebro continuou a trabalhar”.
“Poucas horas depois Tako deu o salto. O cérebro
reconheceu sua chance. Tako foi aprisionado, e sobre o
resto os senhores já estão informados.”
O relatório propriamente dito não causou muita
impressão em Rhodan. O que lhe inspirou certa
tranquilidade e devoção foi o fato de que as tradições de
uma inteligência extraterrena forneciam a primeira
indicação da existência da Atlântida. No seu entender era
essa a única interpretação possível do relato sobre o reino
colonial situado entre o continente euro-africano e o
americano.
Um sorriso passou pelo rosto de Rhodan. Lembrou-se
de que os arcônidas, que o acaso fizera pousar na Lua há
certo tempo, representavam um ganho inestimável não só
para a tecnologia terrena, mas também para a
historiografia do planeta, já que seus registros lançaram
uma luz fulgurante sobre um dos setores mais obscuros da
história humana: o que se relaciona com o reino da
Atlântida e o dilúvio.
— Isso significa — prosseguiu — que o cérebro
ficou na expectativa durante oito mil anos. Isto é fácil de
dizer; acontece que este nosso cérebro — apontou com o
101
dedo por cima do ombro — tinha um objetivo. Aguardava
um novo comandante cuja constituição mental permitisse
adaptá-lo de tal forma que só obedecesse a ele. Ao que
parece, acaba de encontrar esse comandante.
Interrompeu-se para observar o efeito de suas
palavras.
— Através dos dados fornecidos por Tako, e
principalmente por mim, o dispositivo positrônico tomou
conhecimento das características mentais de todos os
membros desta expedição. A constituição mental do futuro
comandante desta base não difere da dos arcônidas, muito
embora seja um terráqueo: Perry Rhodan!
* * * Rhodan levou algum tempo para recuperar-se do
espanto. Não é que lhe faltasse à consciência das suas
qualidades. O que o surpreendia eram as consequências
que resultariam da decisão do cérebro. Gostaria de saber se
Crest não pregara algumas mentiras ao dispositivo
positrônico, ao responder às indagações formuladas a
respeito dele, Rhodan.
Mas constatou que ninguém seria capaz de enganar
um dispositivo positrônico. Aceitou o posto. Por algum
tempo ficou receoso de que Crest pudesse ressentir-se com
a decisão do cérebro.
Mas Crest era um cientista cujo espírito se situava
muito além da zona em que se sente inveja por razões de
conteúdo político.
Dessa forma Rhodan tornou-se comandante, ou
melhor, senhor absoluto de uma fortaleza cujo recinto
abrigava, concentrada em espaços reduzidos, maior
quantidade de energia que a de que dispunham todas as
fábricas e centros de pesquisa da Terra reunidos. O
equipamento da fortaleza bastaria para destroçar sistemas
solares inteiros e rechaçar qualquer inimigo, desde que o
mesmo não se lançasse ao ataque com uma frota inteira.
Mas havia uma coisa de que a fortaleza não
dispunha...
***
Thora não quis acreditar. Menos de uma hora após
sua chegada, solicitou ao cérebro um esquema sobre a
situação dos compartimentos em que se dividia a fortaleza
e lançou-se à procura.
Poucas horas depois de ter assumido o comando da
fortaleza, Rhodan já havia ajustado a frequência dos
impulsos de comando que acionavam o dispositivo
positrônico aos impulsos de seu próprio cérebro. Ao
examinar juntamente com Bell um dos depósitos do último
pavimento, encontrou-se com Thora.
— Você está procurando em vão — disse em tom
sério.
Ao que parecia Thora sabia a que estava se referindo.
— Sei — respondeu cabisbaixa.
— Por que não procura ver as coisas como são? —
perguntou Rhodan. — Após a catástrofe terrena, quando
os colonos resolveram dirigir-se ao objetivo inicial,
levaram consigo todas as naves de que dispunham. As
coisas que se encontram nesta fortaleza são maravilhosas
para os objetivos que eu tenho em vista. Mas não existe
nada que possa ajudar você a vencer a distância enorme
que nos separa de Árcon.
Calou-se. Esperou que Thora o olhasse.
— Você está presa a Terra — prosseguiu com um
sorriso. — Esforço-me para que sua permanência em
nosso planeta seja agradável. E estou disposto a fazer tudo
para que você possa retornar quanto antes ao seu planeta.
Mas até o meio mais rápido levará alguns anos para
concretizar-se. Até lá terá de viver com uns
semisselvagens...
— Pare! — interrompeu-o Thora com uma
veemência surpreendente. — Acha que é a única pessoa no
mundo que nunca cometeu um engano?
O mistério milenar de Vênus foi decifrado e Perry Rhodan obteve uma base que será da
maior importância para o progresso da Terceira Potência.
Mas Perry Rhodan não descansará. Um pedido de socorro vindo da Terra exige seu
retorno imediato.
Rhodan e seu Exército de Mutantes se lançam em um novo empreendimento no próximo
número intitulado:
SOCORRO PARA A TERRA
O EXÉRCITO DE MUTANTES
102
Enciclopédia Galáctica
Povos da Via láctea:
OS ARAS
Os Aras são descendentes dos saltadores, e, portanto,
dos arcônidas. São de elevada estatura (próximo a 2,0
metros), mas com uma constituição física mais delicada.
Possuem pele clara, olhos de rosáceos, e cabelos brancos
(quando o possuem, pois preferem manterem-se carecas).
Estabeleceram-se no planeta Aralon (Sistema de
Kesnar), onde centralizavam suas pesquisas médicas e
vendiam seus serviços. Ao longo do tempo desenvolveram
o monopólio da tecnologia médica, e através disso enorme
poder econômico e político dentro do Império Arcônida.
Contudo, sua mentalidade não permitia que esperassem
pela necessidade, e eles próprios desenvolveram várias
pragas com os respectivos tratamentos. O que ocorria
então era que "pragas desconhecidas" surgiam e em pouco
tempo os aras apresentavam um remédio "desenvolvido
com extrema urgência", que era então vendido. Assim,
quando queriam um determinado planeta, contaminavam
sua população, e para curá-los, obrigava-os a se
submeterem ao seu controle.
Os Aras desenvolvem suas pesquisas escusas, muitas
vezes envolvendo criaturas inteligentes capturadas
ilegalmente. Seu maior feito, todavia, talvez tenha sido o
de criar os superpesados, uma subespécie dos saltadores,
através de engenharia genética. Aras e Superpesados
sempre tiveram uma relação muito próxima através dos
tempos. São extremamente inescrupulosos, capazes de
tudo para obterem lucros, apesar da alcunha de “médicos
da Galáxia”, não hesitam em criar novas doenças para
poder cobrar altas somas pela cura.
A partir do encontro com os terranos (no ano 1984), o
comércio ara diminuiu largamente, e a maior parte deles
continua trabalhando na área médica (muitos até mesmo
no Império Solar).
103
Nº 09
De
W. W. Shols
Tradução
Richard Paul Neto Digitalização
Vitório Revisão e novo formato
W.Q. Moraes
Perry Rhodan foi a Vênus na Good Hope, uma das naves auxiliares do cruzador
dos arcônidas destruído na Lua, a fim de instalar uma base e um centro de
treinamento da Terceira Potência. Naquele planeta descobriu um segredo mais
velho que a história da humanidade — tão velho que nem os arcônidas Crest e
Thora sabiam dele.
Tratava-se de uma gigantesca central arconídica, dirigida por robôs, que
atravessou os milênios e continua a funcionar tão bem como no dia em que foi
construída.
É claro que essa descoberta representa um aumento enorme do poderio da
Terceira Potência, que bem precisa disso, pois numa mensagem radiofônica que
Perry Rhodan recebe em Vênus pede-se com urgência Socorro Para a Terra.
104
1
Perry Rhodan comprimiu o botão vermelho com a
estranha gravura branca. O sinal lembrava a letra F do
alfabeto rúnico. Mas há essa hora pouco importava sua
origem. Bastava saber que designava o botão que cortava o
suprimento de energia do supercérebro positrônico.
A vibração monótona, só perceptível ao subconsciente,
cessou. A série de luzes de controle
com seu brilho mágico apagaram-
se. As membranas sonoras
imobilizaram-se. O maior e mais
potente dos cérebros positrônicos
jamais instalados no sistema solar
corria em ponto morto.
Perry Rhodan reclinou-se
exausto. O diálogo com aquela
máquina quase onisciente chegara
ao fim. O silêncio que se espalhou
pela caverna do subsolo de Vênus
foi interrompido por outro zumbido.
Rhodan acionou o aparelho de
intercomunicação.
— Quem é?
— Sou eu.
A voz rouca de Reginald Bell
não permitia a menor dúvida sobre
a identidade da pessoa que se
ocultava detrás da palavra “eu”.
Sem levantar-se, Rhodan destravou
a porta.
— Entre, Bell!
— Que diabo, Perry! Você me
mete medo. Faz mais de vinte e quatro horas que se
trancou nesta caverna misteriosa. Até parece que está no
encalço do mistério fundamental do universo.
— Nunca deixamos de andar no encalço dele. Se não
conseguimos aproximar-nos é porque o mistério está muito
distante.
— Aposto que não comeu nada.
— Pois está enganado! Tinha comigo uma ração diária
de alimentos desidratados. Já não posso me dar ao luxo de
cometer os pequenos enganos do dia-a-dia.
— Mas acho que você está nutrindo uma falsa ambição
ao...
— Também não me posso dar ao luxo das falsas
ambições. Nenhum de nós pode.
— Toquei a campainha ontem de noite. Hoje de manhã
toquei três vezes, e agora estava diante da porta há mais de
duas horas, sem conseguir entrar. Por que não abriu?
— Porque não sabia que você estava lá fora. Não
queria ser perturbado. O cérebro está regulado de tal forma
que as reações vindas de fora penetram nele, enquanto está
ativado.
— Dizem que nestes últimos dias você andou fazendo
um bom número de regulagens neste cérebro. É verdade?
— Não sei a que está se referindo. Exprima-se com
mais clareza.
— Crest falou no modelo das suas ondas cerebrais.
Afirma que é bem possível que você conheça suas
frequências pessoais...
— E daí? Por enquanto suas insinuações continuam
bastante confusas. Acho que não estarei errado ao supor
que logo ouvirei uma recriminação.
— Acho que por aqui ninguém se julga com direito de
dirigir recriminações a você.
— É por medo, não é? Mas sempre existe um pouco de
inveja.
Bell não conseguiu enfrentar o olhar penetrante de
Rhodan. Pegou um cigarro, que o fez recuperar um pouco
da sua autoconfiança.
— Sempre há um pouco de inveja.
— Acontece que o pessoal confia em você. Sabem que
é o mais forte entre nós. Sentem-
se satisfeitos porque ainda existe
uma pessoa à qual podem recorrer
quando não sabem mais como agir
diante dos problemas.
— O.K.! — confirmou Perry
Rhodan. — Conheço minhas
freqüências, e este cérebro
robotizado foi regulado para elas.
Nunca me deparei com tamanho
volume de saber prestes a revelar-
se a mim. Apesar disso ainda não
consegui solucionar o problema.
Penso em termos arconídicos, na
medida em que isso é possível a
alguém que carrega a condição
humana desde o nascimento.
Procuro raciocinar com o espírito
de quem construiu esta máquina,
mas defronto-me com problemas
de semântica. Afinal, não
podemos alcançar a interpretação
do saber arconídico de um dia
para outro. Não possuímos a
consciência do passado dos arcônidas. Bell, você não tem
nenhum motivo para invejar-me. Um diálogo de vinte e
quatro horas com este cérebro representa um massacre
físico e intelectual.
— Valeu a pena? — a pergunta de Bell exprimia
curiosidade e esperança.
Perry Rhodan fez que sim.
— Nesta montanha existem hangares ocultos. O
cérebro aludiu a seis naves espaciais.
— Isso seria mais do que os arcônidas desejam. Thora
e Crest só precisam de uma nave para voltar para casa.
Você não se entusiasma com essa perspectiva, não é?
— Preciso encontrar as naves.
— Mas não lhe faria nenhuma diferença se não as
encontrasse. Sei perfeitamente o que está pensando, Perry.
Precisamos de Thora e de Crest. Precisamos deles no
planeta Terra e no nosso sistema solar, não a uma distância
de trinta e quatro mil anos-luz. Se eu fosse você, não diria
nada sobre a existência dessas naves.
— Acha que devo começar um jogo de intrigas? Acha
que devo enganar e lograr os arcônidas, aos quais a Terra
deve sua união política? Devo retribuir sua amizade por
meio de uma prisão indireta? Não acredito que esse tipo de
comportamento concorreria para promover o entendimento
entre as duas raças.
— Para você seria uma traição; para mim, um ato de
diplomacia.
Perry Rhodan fez um movimento violento com a mão,
para espantar qualquer ambiguidade sobre seu ponto de
vista.
— Localizaremos o que puder ser localizado, Bell. Não
há dúvida de que devemos conservar Thora e Crest ao
Personagens principais deste episódio:
PERRY RHODAN — Chefe da Terceira Potência. Reginald Bell — Melhor amigo e principal colaborador de Perry Rhodan. Crest e Thora — Únicos sobreviventes da expedição espacial dos arcônidas. Freyt, Nyssen e Deringhouse — Ex-pilotos da Força Espacial dos Estados Unidos. Homer G. Adams — Cuja tarefa consiste em obter dinheiro para a Terceira Potência. Clive Cannon — Chefe de um grupo de gangsteres. Pelo que dizem, os DI apossaram-se dele. John Marshall — Telepata pertencente ao exército dos mutantes.
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nosso lado para fortalecer a posição da humanidade e do
planeta Terra. Mas nem por isso podemos cometer uma
traição contra nossos amigos. Os hangares devem ficar ao
norte. Vamos procurá-los; você virá comigo.
— Seis naves! — exclamou Bell espantado. — Nelas
poderíamos transportar todo o pessoal da Terceira
Potência. Conforme as circunstâncias seis naves
arconídicas dariam para percorrer toda a galáxia.
— Então você estaria disposto a “bater em retirada”?
Sabe o que aconteceria se eliminássemos a Terceira
Potência?
— Aconteceria mais ou menos a mesma coisa que tem
acontecido nos milênios da história da humanidade. Seria
uma sucessão de inveja, malquerença, sede de mando,
guerras. Talvez só houvesse mais uma guerra. A guerra
definitiva.
— Então você sabe muito bem. Acontece que também
somos homens, e por isso vamos desistir do cruzeiro pela
galáxia, mesmo que as seis naves arconídicas estejam em
condições de decolar.
Saíram. Perry Rhodan trancou a sala em que estava
abrigado o cérebro positrônico, usando um novo código.
Só ele o conhecia.
Diante deles abriu-se um labirinto cavernoso. Fazia
mais de um mês que estavam no interior daquela montanha
situada no hemisfério norte de Vênus. E fazia mais de um
mês que se encontravam na pista dessa última testemunha
de uma colônia arconídica de há muito caída no
esquecimento.
Para termos uma ideia dos acontecimentos, devemos
recuar mais de dez mil anos na história da humanidade.
Quando Árcon se encontrava no auge, numa época em
que seus habitantes ainda não apresentavam o menor sinal
de degenerescência, uma nave expedicionária tripulada
com mais de cem arcônidas pousara em Vênus e instalara
aquela fortaleza de retaguarda. O raio de fusão atômica
abrira um labirinto de corredores na rocha da montanha,
fazendo surgir uma verdadeira cidade, que não podia ser
vista do lado de fora. As instalações correspondiam em
toda linha ao elevado nível da civilização e da tecnologia
dos arcônidas. Para o homem do vigésimo século terreno
era algo de fabuloso e inacreditável, como o quadro vago
do futuro distante da própria humanidade.
Ainda por outro motivo eram fabulosas.
Ao se depararem com elas, parecia que penetravam no
castelo da bela adormecida. Os arcônidas daquela época já
não existiam. Haviam descoberto a Terra e verificaram que
era um mundo ideal para a colonização. A nova colônia
dos emigrantes arconídicos surgira na Atlântida.
Proporcionara uma época de elevado desenvolvimento
tecnológico à Terra, mas submergira com o continente
situado entre a África e a América.
Embora nessas quatro semanas os homens já tivessem
tido tempo de acostumar-se ao novo ambiente, não podiam
deixar de evocar constantemente essas ligações históricas.
— Não posso compreender que possam estar mortos —
disse Reginald Bell enquanto subiam numa vagoneta que
trafegava numa das vias principais da cidade
subvenusiana. — Será que todos viviam na Terra quando a
catástrofe diluviana irrompeu sobre a Atlântida?
— É de supor que sim — respondeu Rhodan. — Mas
tenho minhas dúvidas. Em Árcon não sabiam nada sobre a
base de Vênus e sobre a colônia terrena. É bem possível
que o cérebro montado na base venusiana nunca tenha
tomado conhecimento de certos fatos importantes.
Dependia das informações orais que lhe fossem
transmitidas — esboçou um sorriso misterioso. — Os
centros de memória falaram em ocorrências inexplicáveis
que tiveram lugar em Vênus, em seres invisíveis que
andaram pelas proximidades. É possível que a informação
tenha sido ministrada por algum elemento perturbado que
tenha permanecido aqui, nunca devemos esquecê-la,
embora para nós só possa ter uma importância histórica.
— É claro que já compreendi a teoria concebida por
você. Mas tenho lá minhas desconfianças. É bem possível
que tudo se tenha passado de forma bem diferente.
— Queira explicar o motivo das suas desconfianças.
— Ora, é simples. Crest e Thora conseguiram
convencer-nos de que esta base foi instalada por
emigrantes que aqui aportaram numa nave arconídica. E
agora você me fala em seis naves que estariam escondidas
por aqui. Seis naves são uma frota. Se neste planeta
chegaram a pousar seis naves arconídicas completas, não
resta a menor dúvida que a base mantinha contato
permanente com seu mundo natal. Dali se conclui que
Thora e Crest mentiram.
— Você não devia ter proferido esta última frase. Só
teremos uma conclusão desse tipo quando tivermos certeza
de que os dados que induzem suspeitas são corretos.
Bell percebeu que Rhodan não estava disposto a
prosseguir num debate apoiado apenas em probabilidades.
Por isso ficou calado, reclinando-se na poltrona do
pequeno veículo que os conduzia. Seguiu por um corredor
secundário longo e retilíneo que, partindo do centro da
fortaleza, penetrava na montanha cerca de dois
quilômetros. A extensão total das instalações pareceria um
exagero a qualquer homem terreno. Bell exprimiu esse
sentimento em palavras e sacudiu a cabeça.
— Sem dúvida devemos admirar as realizações dos
arcônidas. Mas acho um absurdo que uma simples
fortaleza tenha estas dimensões. Deve ter sido montada por
gente estúpida. Até se parece com alguém que queira
matar pardais a tiro de canhão.
— Também parece que alguém que não aplica os
padrões corretos sofre de uma falta grave de substância
cerebral — respondeu Rhodan em tom áspero.
— E qual é o padrão correto?
— O dos arcônidas. Ao ver este labirinto, você logo
pensa em termos de dispêndio de tecnologia terrena.
Acontece que com os recursos dos arcônidas não há nada
de extraordinário em perfurar corredores e cavernas de dez
ou vinte quilômetros na rocha de uma montanha.
Rhodan interrompeu sua exposição didática e parou a
vagoneta.
— Vamos! — disse em tom lacônico, e caminhou em
direção a um dos grandes portões que a intervalos
regulares ladeavam a estrada subvenusiana.
Um toque de dedo sobre o mecanismo da fechadura
bastou para que dez toneladas de aço arconídico
deslizassem para o lado.
Quando viu diante de si o enorme pavilhão, Reginald
Bell deixou cair o queixo. Não é que se sentisse
impressionado com as instalações e o tamanho, que em sua
opinião era exagerado. Depois que tinham descoberto a
fortaleza, já tivera oportunidade de admirar essas coisas.
Tentara acostumar-se aos padrões que prevaleciam ali.
Acontece que até então tudo parecia morto naquele
pavilhão. E hoje a vida reinava por ali. Ruídos abafados
em toda a gama de escala sonora atingiram seu ouvido. Os
medidores, as agulhas dançantes, as células eletrônicas e
6
106
positrônicas cintilavam em tons coloridos. Robôs dos mais
variados formatos e tamanhos corriam por entre as
máquinas.
— Feche a boca! — disse Perry Rhodan, permitindo-se
um sorriso condescendente. — Você já conhece a fábrica.
— Mas nunca a vi trabalhando. Foi você que a pôs em
funcionamento?
— Já estava na hora de uma instalação tão bem
montada reiniciar a produção. Não estamos em condições
de deixar ociosa essa capacidade produtiva que se encontra
paralisada há dez mil anos.
— Hum! — fez Bell, esticando o som para que o
amigo percebesse que não acreditava muito naquilo. — Há
pouco você me disse que devia aplicar os padrões corretos.
Você também devia fazer o que pede aos outros.
— O que quer dizer com isso?
— Acho que esta fortaleza foi instalada pelos arcônidas
e para os arcônidas. O que for produzido aqui só pode ter
uma utilidade para esses seres.
O rosto de Rhodan assumiu uma expressão séria. Bell
sentiu a mão pesada do amigo sobre o ombro.
— Ouça, Bell! Não temos muito tempo, pois ando com
esse assunto das seis naves espaciais atravessado na
garganta. O que está sendo feito aqui corresponde a uma
finalidade terrena, não arconídica. Seria difícil aplicar
nosso conhecimento hipnótico sobre a ciência e a
tecnologia arconídica às necessidades humanas. Ando
meditando sobre isso há várias semanas. Examinei todos
os recantos do saber arconídico a que tenho acesso e
elaborei um minucioso plano esquemático. O que está
sendo feito aqui terá utilidade única e exclusivamente para
a humanidade terrena. Esta fábrica robotizada está
produzindo robôs, mais exatamente autômatos de
construção e armamento. Olhe a esteira automática ali à
sua direita. Jamais um olho arconídico viu essas formas
modificadas de máquinas inteiramente positronizadas.
— Você faz isso sem que Crest e Thora saibam?
— Faço porque acho melhor assim. Thora e Crest são
arcônidas muito inteligentes, mas como homem acho que
sei avaliar melhor o que poderá ser útil à Terra. Nem
penso em enganá-los, se é isso que você quer dizer.
— Acontece que podem interpretar a coisa assim. A
desconfiança reinante entre eles e nós ainda não foi
eliminada. Até você não está muito seguro na sua
concepção, Perry. Ao menos acredito que não esteja. Pense
naquelas seis naves espaciais. Recorde a reconstituição do
período histórico em que aqueles arcônidas emigraram.
Sua colônia na Atlântida desapareceu. Se naquela época
ainda havia arcônidas em Vênus, os mesmos morreram por
não terem possibilidade de voltar para Árcon. As seis
naves espaciais a que esse cérebro se referiu não
combinam com o quadro. Talvez você pudesse ter a
gentileza de informar o que conseguiu descobrir.
— Não é muita coisa. Com a palavra-chave “nave
espacial” não consegui extrair maiores detalhes do
cérebro. Só sei que as naves devem estar estacionadas
numa caverna distinta junto à encosta norte. Vamos
procurá-las.
Perry Rhodan montou um conjunto de aparelhos de
medição de ondas sonoras e sondas de matéria que
funcionavam com base no processo químico-analítico.
Ativou um robô que se encontrava nas proximidades e
ordenou-lhe que colocasse o equipamento sobre a
vagoneta e tomasse lugar nela. Avançaram mais setecentos
metros na direção norte, até chegarem ao fim do corredor.
Uma parede lisa de concreto fechou-o contra a rocha da
montanha.
— Você acha que o corredor continua depois dessa
parede? — perguntou Bell enquanto saltava da vagoneta.
— O cérebro falou numa caverna distinta. Disso se
conclui que daqui não existe qualquer acesso. Mas, antes
de tudo, devemos demarcar a situação da caverna. Robô
coloque o aparelho azul junto à vagoneta. Os outros
instrumentos podem continuar onde estão.
Reginald Bell pediu a Rhodan que lhe explicasse o
funcionamento dos aparelhos. Como seu cérebro também
tivesse sido ativado pelo treinamento hipnótico, aprendeu
em poucos minutos o suficiente para prestar assistência a
Rhodan. Cada medição era submetida à dupla conferência;
uma era realizada pelo processo da ecossonda, outra por
via químico-analítica. Dessa forma conseguiram
estabelecer em pouco tempo um quadro preciso da
composição da montanha, ate a encosta norte.
A uma distância de oito quilômetros as escalas de
medida indicaram uma perda total de pressão.
— É a caverna! — gritou Bell mais alto do que seria
necessário.
— O.K.! — confirmou Rhodan com um aceno de
cabeça. — Anote as coordenadas. Vamos prosseguir em
sentido radial, para determinar o diâmetro da caverna.
Depois ampliaremos as observações para os lados.
Em menos de meia hora completaram o diagrama sobre
a lâmina eletrônica de desenho. Logo se viam dois queixos
caídos.
— Você entende isso? — perguntou Bell.
— Ainda não consegui. De qualquer maneira
realizamos duas medições, e sabemos que a caverna não
tem mais de noventa e cinco metros de diâmetro. A
hipótese de um engano está completamente excluída.
— Num buraco de ratos como esse não podem caber
seis naves arconídicas completas. Talvez os hangares
sejam separados.
— Mesmo uma única nave teria de ser muito pequena
para caber ali. Nossa Good Hope mede seus bons sessenta
metros, e não passa de uma nave auxiliar cujo raio de ação
mal chega aos quinhentos anos-luz.
— Então deve tratar-se de veículos menores —
concluiu Bell. — Talvez sejam naves de socorro ou de
patrulha. Acho que nossa preocupação com Thora e Crest
não tinha o menor fundamento. Os dois terão de ficar
conosco.
— O acesso fica aqui — disse Rhodan, apontando para
o mapa cujos contornos acabavam de formar-se. Não deu
atenção às palavras de Bell. Mas de si para si fazia votos
de que ele tivesse razão.
* * *
Decolaram com a Good Hope e voaram alguns
quilômetros para o norte. Depois de vencerem os cumes
mais elevados, deixaram que a nave descesse junto às
encostas íngremes. Ao atingirem a altitude determinada
através das medições, Perry Rhodan parou e ajustou o
regulador gravitacional, até que a nave aparentemente sem
peso encontrou uma posição de equilíbrio a uns quinhentos
metros do fundo do vale.
Logo encontraram o acesso para o misterioso hangar.
Embora a encosta norte tivesse sido polida pela erosão
provocada pela chuva venusiana, logo notaram a área
alterada em que se encontravam as duas escotilhas.
Envergando seus trajes arconídicos, que também
107
dispunham de um regulador gravitacional, Rhodan e Bell
saíram da nave e aproximaram-se da encosta rochosa. A
localização do mecanismo de travamento da escotilha e
sua combinação não representavam qualquer problema. O
treinamento hipnótico habilitara-os a pensar em termos
arconídicos.
A área da encosta artificialmente criada deslizou para o
lado, pondo a descoberto uma abertura de menos de vinte
metros.
— É grande para um homem, mas pequena demais
para uma nave espacial — constatou Reginald Bell.
Viram-se diante de uma galeria escura, que descia na
vertical. A camada profunda de nuvens venusianas só
deixou penetrar uma luz mortiça, que mal dava para
iluminar os primeiros metros da galeria. Um ligeiro
impulso propulsor dos seus trajes bastou para fazer os
homens penetrarem na montanha. Regularam o antígravo
para a posição zero e voltaram a sentir chão firme sob os
pés.
Com o auxílio de lanternas descobriram um amplo
painel de instrumentos. Rhodan acionou uma chave. No
mesmo instante uma luz de teor branco-azulada encheu a
caverna.
Toda a instalação continuava a funcionar tal qual
funcionara há dez mil anos.
Era outro fato que mereceria a admiração dos homens.
Mas nos últimos anos estes tiveram de habituar-se a muitas
maravilhas arconídicas. O choque do não querer acreditar
já não tinha a mesma intensidade dos primeiros encontros
com a nova tecnologia. E, mais interessante que a luz
alimentada por fontes de energia instaladas há milênios era
o próprio hangar.
— São seis! — exclamou Reginald Bell espantado. —
Mas até parecem uns brinquedinhos. Faço votos de que
não esteja decepcionado.
A atitude de Rhodan provou que não estava. Sentiu-se
entusiasmado. Percebeu intuitivamente o que tinha diante
de si. Tirou o traje desajeitado dos arcônidas e saltou sobre
o aparelho mais próximo.
— Você acha que são brinquedos? Acontece que são
uns brinquedos muito perigosos. Veja aqui! Nesta máquina
cabe um único homem. Quem sabe se você não quer
pensar um pouco e me diz o que vem a ser isto?
Reginald Bell segurou-se na borda de uma das asas em
delta e subiu.
— Até parece um avião de caça. A fuselagem tem
aspecto intergaláctico. Até me sinto tentado a estabelecer
comparação com as naves dos habitantes de Fantan. Mas o
dispositivo direcional aerodinâmico e as asas em forma de
delta poderiam ter sido concebidas numa prancha de
desenho terrena.
— Em qualquer assunto a razão e a lógica sempre
conduzirão ao mesmo resultado. Aqui está a prova. Você
ainda tem alguma dúvida de que estes caças espaciais são
de origem arconídica?
— Nenhuma. A semelhança na disposição dos
instrumentos prova que são. É verdade que tudo é menos
complicado que na Good Hope, mas o princípio é o
mesmo. O assento fica numa cabina pressurizada. Existe
um painel de comando do mecanismo propulsor. Com isso
fica garantida a saída das partículas à velocidade da luz.
Aqui está à chave reguladora da alteração volumétrica da
câmara de combustão, e este olho só pode servir para a
observação do regulador do campo de saída dos jatos.
Perry! Vejo que você não está nem um pouco
decepcionado. Até acredito que aprecie mais esta
esquadrilha que seis supernaves espaciais.
— Um belo dia nós também construiremos naves deste
tipo, Bell. Acho que ainda precisam de nós no planeta
Terra, e este caça a velocidade da luz é o melhor presente
para nós. Que tal um voo de experiência?
Nos olhos de Bell lia-se o entusiasmo.
— Você acha que sou capaz de pegar um aparelho
destes e sair voando por aí sem mais aquela?
— Se não for, peça a Thora que lhe devolva a taxa de
matrícula. Vamos embora! Pegue aquele ali. Eu vou neste.
* * *
No momento a guarnição da fortaleza de Vênus era
muito reduzida.
Além dos dois arcônidas, Crest e Thora, nesse amplo
labirinto de cavernas só residiam o Dr. Eric Manoli, a
telecineta Anne Sloane e o teleportador Tako Kakuta, que
pertenciam ao exército dos mutantes, bem como o tenente
Michael Freyt, o capitão Rod Nyssen e o tenente Conrad
Deringhouse, ex-oficiais da Força Espacial dos Estados
Unidos.
Nas últimas semanas todos eles tinham desenvolvido
uma atividade útil, contribuindo para o conhecimento
daquela fortaleza esquecida em Vênus. Só os três oficiais
sentiam-se um tanto inúteis quando os outros conversavam
sobre assuntos que eles não entendiam. Não conheciam as
concepções arconídicas, nem dispunham das vantagens de
um mutante positivo. Eram apenas pessoas sadias, com
uma mente sã num corpo são, e essas qualidades
habilitaram-nos a atingir a Lua numa primitiva nave
terrena.
No dia do aniversário do tenente Freyt surgiu uma
modificação.
— O que você gostaria de receber, Freyt? — perguntou
Rhodan com a voz bonachona.
— Gostaria de tornar-me um membro ativo da Terceira
Potência — foi a resposta. — E meus camaradas desejam a
mesma coisa. Sentimo-nos um tanto inúteis.
— De que se julgam capazes?
— Se possível gostaríamos de voar. É verdade que só
conhecemos as máquinas convencionais produzidas pela
nossa técnica.
— Estas eu não tenho, tenente. Mas gostaria de dar
uma olhada na Good Hope?
Foi este o presente de aniversário de Freyt. Crest e Bell
levaram o dia inteiro mostrando a nave aos três oficiais.
Depois Rhodan submeteu-os a um treinamento hipnótico
intensivo.
Aprenderam literalmente, dormindo, a pilotar as naves
arconídicas. Depois de deitá-los em pequenas macas,
ligaram seus braços, pernas e cérebros com o instrumento
de ensino psicossensorial. Após isso ficaram entregues a
uma série intensa de sonhos dirigidos, nos quais pilotaram
naves arconídicas de todos os tipos de um grupo de
estrelas a outro. Sem correr o menor perigo, aprenderam a
realizar as manobras mais difíceis e a reparar defeitos em
pleno vôo. Um aparelho positrônico de testes registrou
automaticamente os resultados dos exames a que eram
submetidos ininterruptamente. As falhas tornaram-se cada
vez mais raras, e em menos de três dias os três oficiais
anunciaram a Perry Rhodan que já eram capazes de pilotar
sozinhos a Good Hope.
Um vôo experimental confirmou a informação. Logo
após isso, Freyt, Nyssen e Deringhouse obtiveram uma
108
licença bem merecida.
Aproveitaram-na em pequenas expedições pela selva
de Vênus.
Pelo meio-dia de sete de julho — em Vênus ainda
contavam o tempo segundo o calendário terreno —
apressaram sua volta de um passeio, pois se surpreenderam
ao verem a Good Hope decolar. Foi Deringhouse quem
primeiro viu a nave esférica.
— Será que pretendem voltar para casa sem nós?
— Não me consta que Rhodan queira retornar à Terra.
Faz tempo que está metido com aquele cérebro, realizando
conversas intelectualizadas.
— Gostaria de saber o que significa isso. Tomara que
os arcônidas não estejam fazendo alguma tolice!
— Acha que Thora e Crest estão fugindo? —
perguntou Freyt com um sorriso. — Você é muito
esquentado, Deringhouse. Os arcônidas conhecem
perfeitamente as suas limitações. Não pinte logo o diabo!
Podemos nos apressar um pouco, se é que isso o
tranqüiliza.
Dali a meia hora chegaram à posição de combate da
fortaleza. Na cúpula gigantesca concentravam-se todas as
armas ofensivas com os respectivos dispositivos de
comando.
Um olhar bastou para que Freyt se convencesse de que
nenhum veículo havia penetrado na atmosfera de Vênus. A
capacidade de observação estendia-se até o pólo sul. A
suspeita de Deringhouse já não parecia tão absurda. Mas
quando o tenente se dispôs a falar, dois pontinhos surgiram
na tela.
— Que diabo! O que será isso?
— Capitão! Localize os objetos e mantenha-os em
observação constante! — gritou Freyt. Nyssen obedeceu
instantaneamente. Pouco depois o goniômetro localizou os
dois caças espaciais e não deixou mais que escapassem,
por mais complicadas que fossem as manobras que
realizavam.
— São naves muito pequenas — constatou
Deringhouse. — E não são da Good Hope. Vamos chamar
Crest!
Freyt já cuidara disso. Dali a alguns segundos o
arcônida respondeu pelo vídeo-fone.
— O que deseja tenente?
— Estamos na cúpula de observação. Será que podia
dar um pulo até aqui agora?
— É muito urgente? Tenho uma coisa mais importante
a fazer.
— Descobri dois objetos voadores, que aparentemente
não deviam estar aqui. Passaram bem perto, por cima da
montanha e depois subiram quase na vertical. No momento
encontram-se a uma altitude de 14.000 quilômetros.
— Você está vendo fantasmas, Freyt. Nossos
dispositivos de alarma captariam e reportariam qualquer
nave estranha. Não há nada que possa penetrar até esta
montanha sem ser reconhecido.
— Por favor, olhe!
Freyt afastou-se, para que Crest pudesse ver a tela
através do videofone. Os três notaram um ligeiro tremor
em seu rosto.
— Irei imediatamente — disse o arcônida.
Subiu no elevador expresso e precipitou-se para o
painel das telas de defesa.
— Tudo pronto para abrir fogo, tenente. A cúpula foi
reforçada. Entre em contato com aqueles desconhecidos e
avise-os de que serão destruídos imediatamente se não
seguirem nossas instruções.
Freyt mexeu apressadamente no telecomunicador.
Antes que tivesse tempo de falar, o alto-falante transmitiu
um diálogo exaltado, que os apanhou de surpresa. Rhodan
e Bell comunicavam-se pela mesma forma, porque isso
correspondia ao que os arcônidas falecidos há dez mil anos
haviam feito.
— ...voltarei imediatamente, meu caro. Não estou com
vontade de ser abatido por Crest.
— Para voltar é tarde. Você já foi localizado. Sugiro
que entre em contato com a base. Talvez seja possível
conversar com essa gente.
No início parecia que não era possível. Freyt, Nyssen e
Deringhouse tinham perdido a fala. Até Crest teve de
vencer a surpresa antes que conseguisse proferir uma
palavra.
— O que é isso, Rhodan? Como conseguiu pôr as mãos
nesses modelos dos fantanitas?
— Está vendo? — interveio Bell. — Ele diz que são
modelos fantanitas. Eu disse logo quando vi o formato em
fuso.
— Deixe de tolices! O que você está vendo Crest, na
verdade, são verdadeiros caças arconídicos. Revire sua
memória e descobrirá que há dez mil anos seus
antepassados construíram estes modelos.
Crest logo compreendeu.
— Você descobriu os caças estacionados na fortaleza!
É isso mesmo! Assim os fatos combinam. Só faz dois mil
anos que os habitantes de Fantan imitaram nossas naves-
fuso. Onde encontrou esses aparelhos?
— No interior da montanha. E há mais quatro. Todos
eles estão equipados com canhões de impulso
superpotentes — Perry Rhodan riu. — Você cancelou o
alarma, não foi, Crest? Do contrário não vejo alternativas
viáveis, senão arriscar uma catástrofe.
— Não brinque Rhodan! Com o armamento de um
caça espacial você pode destruir um planeta. Logo após a
explosão espontânea, as bombas-foguetes arconídicas
ocasionam um incêndio atômico que atinge todos os
elementos pesados acima do grau dez. Os núcleos podem
ser regulados para desencadear uma reação nuclear em
cadeia.
— É possível — respondeu Rhodan. — Mas posso
tranqüilizá-los. As bombas não se encontram a bordo. Mas
poderemos carregá-las no próximo vôo. É que acabo de ter
uma idéia.
Perry Rhodan não expôs a idéia antes do pouso. Bell
teve de recolocar o caça no hangar e levar a Good Hope à
fortaleza. Rhodan veio na sua pequena maravilha. Pousou
junto à entrada da fortaleza. Enquanto explicava a Crest
como havia descoberto os seis caças espaciais, os três
oficiais dispensaram suas atenções à máquina. Finalmente
haviam encontrado em Vênus algo que correspondia à sua
paixão.
— Estão gostando? — perguntou Rhodan.
— Um astronauta só pode sonhar com uma coisa
destas.
— Que pena que seu aniversário já passou Freyt.
— Até parece que estes caças espaciais serão dados de
presente.
— Não é isso. Proponho um acordo, tenente. Você,
Nyssen e Deringhouse submetem-se a um novo ciclo de
treinamento hipnótico, concebido especialmente para estas
coisinhas. Depois disso as receberão em custódia, como
representantes da Terceira Potência.
109
Os olhos de Freyt brilhavam.
— Não sei como agradecer! Pode confiar em mim em
quaisquer circunstâncias.
— Isto é uma das condições do acordo — confirmou
Rhodan em tom sério. — Preciso de uma frota bem
combativa. Pode ser pequena, mas tem de ser veloz e
invencível.
Como sabem, os acontecimentos que se desenrolaram
nos últimos meses em nosso sistema solar despertaram a
atenção de muitas inteligências. Conseguimos repelir os
primeiros ataques. Os que se seguirem serão mais intensos.
Se quisermos sobreviver, teremos que nos prevenir. A
potência de que dispúnhamos ontem poderá ser
insuficiente para as lutas de amanhã. Aí vem Bell com a
Good Hope. Ele levará vocês à encosta norte e lhes
mostrará o local exato. Observem tudo. Hoje de noite
falaremos sobre o novo ciclo de treinamento. Acho que
começaremos nas próximas vinte e quatro horas.
Reginald Bell esperou que os três oficiais subissem a
bordo e voltou a decolar em direção ao norte. Crest e
Rhodan dirigiram-se à entrada do forte. Quando abriram o
portão, Thora veio ao seu encontro. Rhodan teve a
impressão de que estava esperando. Seu olhar era rígido e
sombrio; passando pelos dois homens, dirigiu-se ao caça
espacial.
— Este aparelho pertencia a um dos nossos antigos
cruzadores espaciais, não é?
Crest fez que sim.
— Foi Rhodan que os encontrou. São seis.
— Para vocês homens; trata-se de um achado, não é?
— E para vocês, o que é? — perguntou
Rhodan. Sentiu a recriminação na pergunta de Thora.
— Para nós é roubo — respondeu Thora com a voz
áspera. — Isso mesmo, Perry Rhodan: para nós é roubo. E
depois que conheci a humanidade fiquei sabendo que ela
tem uma ética semelhante. Sabemos perfeitamente que
você é um ladrão, tanto aos olhos dos homens como dos
arcônidas. Aliás, onde foi buscar todo esse orgulho?
— Só me resta muito pouco. Você me tirou quase todo.
Mas ficarei com um restinho de orgulho. Preciso dele para
salvar a humanidade.
— Você fala na salvação da humanidade, mas esquece
da galáxia.
— A galáxia terá de esperar até que consigamos
estabelecer a ordem no sistema solar. Para construirmos
uma obra gigantesca, temos de começar de baixo. A mais
bela das torres desabará se não tiver um alicerce sólido.
— E este alicerce são os homens, não são? Alguns
bilhões de seres estúpidos. Acha que são bastante fortes e
amadurecidos para suportar todo um grupo de mundos?
— Acho que são bastante jovens Thora. Tudo depende
da juventude. Das reservas de vitalidade. O
amadurecimento é um processo lento. Por que insiste em
voltar constantemente a este tema?
— Porque fico perguntando de mim para mim se ainda
sou comandante. A esta altura minha nave é a Good Hope.
É um nome terreno.
— Também é um nome belo e esperançoso. Não gosta?
— Gostaria de saber se ainda sou comandante —
obstinou-se Thora.
— Voltará a ser quando tiver dado provas de sua boa
vontade e confiabilidade.
— Quer dizer que sou uma prisioneira. E o nome Good
Hope continua a ser um nome terreno, por mais belo que
seja.
— A imagem dos arcônidas está modificada. Vocês se
tornaram sentimentais demais para o orgulho que anda
ostentando. E, mais que tudo, tornaram-se mais fracos. O
Grande Império de vocês está caindo aos pedaços. Qual é a
esperança que lhes resta, Thora?
Thora não respondeu.
— Fale Crest! — dispôs Rhodan. — Diga uma palavra
definitiva de esclarecimento. Não se esqueça do seu
orgulho de arcônida. Mas deixe que a razão decida.
— A galáxia é um mundo de caos — explicou Crest.
— Nosso império chegou ao fim. Seres insensíveis
destroçam as culturas criadas por nós e a cada ano vão se
aproximando do centro do Império. A Via Láctea precisa
de uma mão forte. Até aqui temos plena consciência do
curso ameaçador que os acontecimentos estão tomando.
Também tenho consciência do papel que você,
Rhodan, poderia desempenhar. Mas não sei se está
disposto a desempenhá-lo.
— Que papel seria este?
— Você está entusiasmado pela humanidade do
planeta Terra. Ama esses poucos bilhões de seres e faz
tudo por eles. Daria a eles de bom grado o domínio de toda
a galáxia. Mas há um detalhe: o caminho do domínio para
a opressão é muito curto.
— A desconfiança é uma reação sadia, Crest, mas não
o liberta do dever de decidir. E você não pode passar sem
um pinguinho de confiança. Ninguém aqui é profeta. Basta
que estejamos dispostos a dar o melhor de nós.
— Você está disposto, Rhodan? Está disposto a
permitir que também os outros tenham o seu, desde que
isso lhes caiba pelo direito da liberdade? Falarei claro e
sem rebuços, e também direi uma palavra definitiva,
conforme pediu. Os homens e os arcônidas são parecidos.
Seria totalmente contrário aos nossos interesses comuns se
um belo dia uma inteligência totalmente desumana
assumisse o poder nas estrelas do nosso sistema. Quis o
destino que os homens e os arcônidas se encontrassem.
Caso esteja disposto a lutar por nós todos e empenhar às
forças da humanidade a bem de toda a galáxia, você pode
contar com a nossa confiança, Rhodan.
— Estou disposto.
110
2
Dali a dois dias.
Tempestades furiosas açoitam o hemisfério norte de
Vênus, tangem a água e as massas de nuvens para dentro
dos vales cercados de montanhas e fazem com que os
lagos e os rios cubram grandes extensões de terra junto às
margens.
Por entre o relampejar ininterrupto das trovoadas rivais
surgem sinais de um desempenho matemático retilíneo:
cinco caças espaciais decolaram.
Concluído o treinamento hipnótico especializado dos
pilotos de caça Freyt, Nyssen e Deringhouse, Perry
Rhodan ordenou a realização das manobras finais.
A comunicação entre os cinco pilotos foi um
verdadeiro festival de satisfação.
— O desempenho destes aparelhos é inacreditável —
disse Nyssen. — Se pensarmos que foram construídos há
mais de dez mil anos, só nos resta pedir aos engenheiros
terrenos que peçam de volta o dinheiro gasto em estudos.
— Nada de ofensas contra qualquer grupo profissional
— advertiu Bell com uma seriedade fingida. — Se não
fosse o treinamento hipnótico, este seu vôo exibicionista
também teria caído à água, capitão.
— Basta! — soou a voz de comando de Rhodan. —
Estamos saindo da atmosfera de Vênus e passamos por
cima do pólo norte a uma altitude de cento e vinte mil
quilômetros. Entrar em forma para o voo em fila e
aguardar comandos de frenagem e mudança de rumo!
Dentro de trinta segundos as cinco máquinas deixaram
para trás a furiosa trovoada de Vênus. Diante deles
estendia-se o preto aveludado do espaço, onde a brancura
do sol formava o centro aparente. As comunicações
radiofônicas voltaram a funcionar normalmente,
permitindo a captação de um emissor menos potente.
O pedido de socorro da Terra foi captado com igual
intensidade nas cinco naves.
E nas cinco naves os pilotos souberam que o último
comando de Rhodan perdera sua finalidade.
— ...solicitamos retorno imediato. A Terceira Potência.
A pedidos de John Marshall... Aqui fala a Terceira
Potência. Estamos chamando Perry Rhodan. Certos
números de naves ovais, ao que tudo indicam tripuladas
por Deformadores Individuais, pousaram na Lua, segundo
relata a estação espacial Freedom I, e logo depois voltaram
a decolar e desapareceram no espaço. Devemos contar
com nova manobra de aproximação. Ao mesmo tempo o
exército de mutantes reporta fenômenos de deformação
suspeita em personalidades expostas. Estamos fornecendo
maiores detalhes pela faixa secreta AK III. Rhodan,
solicitamos retorno imediato. A Terceira Potência, a
pedido de John Marshall. Terceira potência chamando
Perry Rhodan. Naves ovais...
Perry Rhodan ordenou o retorno imediato ao forte de
Vênus. Descrevendo uma curva fechada, que homens e
máquinas só suportavam graças ao compensador
automático de força centrífuga, os caças espaciais
desceram e penetraram no furacão. Mas as cúpulas
energéticas protetoras eliminavam os efeitos atmosféricos
em torno das naves e permitiram que descessem sem sofrer
dano.
Na fortaleza o ambiente também estava tenso. Crest
também captara a mensagem radiofônica do deserto de
Gobi e recomendou aos homens que se preparassem para
uma decolagem de emergência.
— Tudo em ordem! — confirmou Rhodan com um
aceno de cabeça. — Faça os homens subirem, Bell. Não é
necessário que ninguém fique para trás. Não se esqueça de
colocar a bordo três dos caças espaciais. Venha, Crest!
Quero ouvir o que eles têm a nos dizer pela faixa AK III.
Rhodan e Crest tomaram o elevador e subiram para a
cabina de comando. O grande receptor arconídico já
expelira uma fita escrita. Depois de ler apressadamente
alguns nomes desconhecidos, Rhodan não prosseguiu.
Ligou seu próprio receptor que, acionado pelos impulsos
pentadimensionais, funcionava a velocidade superior à da
luz, isto é, sem qualquer perda de tempo determinada pela
distância. Ao contrário do intercâmbio radiofônico normal,
onde na posição atual da Terra e de Vênus a transmissão
de uma mensagem levava mais de doze minutos, a faixa
pentadimensional AK III permitia um intercâmbio
instantâneo.
— Aqui fala Perry Rhodan. Estou chamando a base de
Gobi. O que houve, Marshall?
— Alô, Rhodan. Graças a Deus que está chamando.
Recebeu nossa mensagem?
— Naturalmente! A Good Hope está pronta para
decolar. Faça o favor de me dizer quais foram às
mensagens transmitidas pela faixa AK III.
— Vou colocá-lo em contato com Mercant. Ele está
aqui.
— Alô, Rhodan. Aqui é Mercant.
— Bom dia. O que houve?
— Há dois dias recebi um chamado do coronel Kaats,
da Polícia Federal. Há mais de um ano está atrás do
sindicato de bandidos Blue Bird, mas a única coisa que
conseguiu descobrir foi esse nome misterioso. Finalmente
conseguiu uma pista. Pelo que afirma, um dos três cabeças
é um sujeito chamado de Clive Cannon, que possui uma
residência confortável na Michigan Avenue, em Chicago.
— Isso é muito interessante. Todavia, peço licença
para salientar que a Terceira Potência não pretende
intrometer-se nos assuntos internos de outros países.
— Será que você acha que não tenho um bom motivo
para contar-lhe isso, Rhodan? Um homem do FBI
descobriu Cannon por acaso. E esse acaso por certo não
deixará de ser interessante para você. Cannon tem um
pastor-alemão bem treinado. Desde o início da semana o
animal não o reconhece mais como dono. Daí não se pode
Concluir muita coisa. Há longo tempo o homem é
conhecido na sociedade como comerciante idôneo; além
disso, sabia-se alguma coisa sobre seus hábitos e
relacionamentos. Pelo que diz o coronel Kaats, Cannon já
não é o mesmo.
— Quer dizer que em sua opinião, os DI apossaram-se
dele?
— Tenho certeza quase absoluta. Continuaremos a
manter o sindicato sob um controle rígido. Se é que os DI
apoderaram-se dele, deverá ocorrer um deslocamento de
interesses políticos e econômicos. Os invasores
extraterrenos não se limitarão a desenvolver uma atividade
puramente criminal.
— O que significam os outros nomes incluídos em sua
mensagem?
— Trata-se de suspeitos, que serão vigiados. Tenho
certeza de que os DI serão bastante inteligentes para
apoderar-se em primeiro lugar das pessoas mais influentes.
E o começo é o presidente dos Estados Unidos.
— Já avisou as potências mundiais?
111
— Ainda não. Não quis tomar uma decisão dessas por
minha conta.
— Pois eu lhe ordeno que faça. O Conselho
Internacional de Defesa dispõe das melhores ligações
possíveis com o comando das forças armadas do Bloco
Oriental e da Federação Asiática. Entre imediatamente em
contato com Kosselov e Mao Tsen. Avise os terráqueos de
que cada um deve cuidar de seu próximo, pois o melhor
amigo poderá transformar-se no pior inimigo. Mas antes
de qualquer coisa, ponha em ação o exército de mutantes,
na medida em que está treinado. Por enquanto você
assume o comando.
— Obrigado! Já formulei algumas sugestões e elaborei
alguns detalhes sobre a atuação de nossos homens. Mas
quero ponderar que, embora sejamos dotados de
capacidades sobre-humanas, nosso número é muito
reduzido. Só poderemos lançar mão de seis ou sete
pessoas. Enquanto isso a frente de ataque do inimigo
abrange todo o planeta e a humanidade inteira. Além disso,
só nossos telepatas estão em condições de reconhecer ao
primeiro contato uma pessoa que se encontra sob o poder
de um DI. Precisamos de um instrumento, Rhodan.
— Sei disso — respondeu Rhodan em tom pensativo.
— Os arcônidas nos presentearam com uma porção de
instrumentos. Mas nenhum deles serve para o que estamos
precisando no momento.
— Você não tem um rastreador de ondas cerebrais?
Estou me referindo ao aparelho que Bell e Kakuta usaram
no Japão para procurar mutantes.
— O rastreador só pode localizar cérebros que se
afastam do modelo normal. Não serviu sequer para
determinar o tipo de capacidade parapsicológica de que era
dotado um mutante. Esse aparelho não nos servirá de nada.
— Deve ser aperfeiçoado.
— Sinto-me honrado pela confiança que deposita em
mim — disse Rhodan em tom sarcástico. — Mas não
pense que sou Deus. Verei o que posso fazer.
— Tem alguma idéia?
— Apenas uma esperança. Exploraremos todas as
possibilidades. Não deixaremos de tentar, seja lá o que for.
Para isso preciso do seu auxílio.
— O que devo fazer?
— Fale com Kaats e peça-lhe que deixe Clive Cannon
em paz. Deve limitar-se a um tipo de vigilância que não dê
na vista.
— Procurarei transmitir-lhe a mensagem de forma
diplomática. Não acredito que aceite ordens suas.
— Isso é problema seu Mercant.
Reginald Bell anunciou que a Good Hope estava pronta
para decolar. Rhodan mandou que esperasse. O chefe da
Terceira Potência tinha um traço típico: quando surgia
uma situação de alarma, costumava desenvolver uma
atividade enervante em coisas aparentemente secundárias.
— Gostaria de ter os nervos desse homem! — gemeu o
Dr. Manoli, exprimindo o sentimento de todos.
Dali a duas horas Rhodan finalmente subiu a bordo.
Carregava uma pasta com pilhas de cartões perfurados,
positrogramas e fórmulas. Guardou-a sem dizer uma
palavra. Não fez a menor referência ao trabalho que
desenvolvera junto ao cérebro.
— Os caças espaciais estão a bordo?
— Sim! — confirmou Freyt.
— Muito bem. Vamos embora, Bell. Faço votos de que
não gaste mais de três horas.
Reginald Bell liberou a potência dos reatores HHE. A
Good Hope acelerou lentamente para uma velocidade de
18,2 km/seg e, uma vez fora da influência da gravitação de
Vênus, disparou para o espaço com uma força de empuxo
cujo valor absoluto era de 800.000 toneladas. A aceleração
atingiu o valor máximo de 500 km/seg. Nem por isso seria
possível atingir, numa viagem curta como a de Vênus à
Terra, uma velocidade próxima à da luz. Todavia, talvez
Reginald Bell conseguisse cumprir o desejo de Rhodan,
que pedira uma viagem-relâmpago.
Depois de uma hora de viagem foram ligados os
instrumentos de localização de velocidade superior à da
luz que, graças ao impulso pentadimensional de que eram
dotados, não poderiam ser reconhecidos por um eventual
atacante localizado no universo normal. A desvantagem
desse tipo de observação consistia no fato de só permitir a
exploração de setores limitados do espaço. Havia amplas
regiões do espaço quadridimensional, situadas sobre a
linha direta da luz, que ficavam fora do alcance da
observação. Por isso realizava-se uma observação paralela
pelo radar, que na distância atual trabalhava com alguns
minutos de atraso.
Logo se verificou que as providências adotadas por
Rhodan eram acertadas. Sempre que os DI aparecem e
voltam a desaparecer espontaneamente, deve-se contar a
qualquer momento com um novo ataque.
Quando haviam atingido a velocidade máxima e Bell já
se preparava para inverter a aceleração, iniciando a
frenagem, a tela de radar mostrou duas naves ovais.
— São os DI! — foi o grito saído de muitas bocas. —
Dirigem-se à Lua.
— Pode ser coincidência. É possível que estejam
voando diretamente para a Terra. Ligue a mira automática,
Bell.
Os raios tateadores atravessaram o hiperespaço a
velocidade superior à da luz e alcançaram o alvo cuja
posição aproximada já era conhecida. Dentro de poucos
segundos ajustaram-se ao inimigo. As células de reação de
contato garantiam que o raio direcional não mais largaria
as naves dos DI, fossem quais fossem as manobras
diversionistas que realizassem.
— Distância: vinte e cinco milhões de quilômetros da
Terra, quarenta e quatro milhões de quilômetros das naves
dos DI.
— Qual é a distância entre os DI e a Terra?
— Menos de dezoito milhões de quilômetros.
— Só isso? O cartograma, por favor! — ordenou
Rhodan.
A luz fosca de uma lâmina vermelha iluminou-se no
painel de comando.
— Ângulo entre os DI e a Terra exatamente oito graus,
quarenta e cinco minutos e trinta segundos — disse Bell
— Os DI voam em direção quase oposta à nossa, pois vêm
praticamente do outro lado. A velocidade deles é
ligeiramente inferior à nossa. Também já iniciaram a
manobra de frenagem.
— Uma simples estimativa não nos serve de nada.
— Nunca se pode saber antes o que o inimigo vai
fazer. No momento prosseguem normalmente; ao que
parece ainda não sabem que foram descobertos. Assim que
nos localizarem, deverão acelerar outra vez. Você já viu
com que empuxo essa gente trabalha.
— Não assumiremos o menor risco. Mantenha a
aceleração positiva por mais dez minutos. Se necessário
passaremos ao lado da Terra. Freyt!
— Sim.
112
— Prepare-se para decolar juntamente com Nyssen e
Deringhouse. Os três aparelhos conduzirão o armamento
completo.
— Cada caça já traz a bordo uma bomba-foguete com
carga nuclear. Os canhões de radiação estão em condições
de funcionar.
— Muito bem. Já conhecem a situação. Pretendo pegar
as duas naves antes que atinjam a Terra. Enquanto for
possível, a Good Hope prosseguirá sem aceleração
negativa de frenagem. Assim que invertermos a
aceleração, vocês deixam a nave nos seus caças e
prosseguem, voltando a acelerar. Prendam-se bem entre os
colchões pneumáticos, pois é bem provável que no
momento da pontaria tenham de desacelerar em 500
km/seg. Os projetores antigravitacionais não poderão
compensar isso.
— Fui treinado em 20g e até mais.
— Isso é bom, mas é pouco para os valores de
aceleração usados pelos arcônidas. Só lhes posso
recomendar que se cuidem e não exagerem. Assim que
perceberem que os antígravos não dão mais conta do
recado, reduzam a força dos reatores. Quero que o inimigo
seja destruído, mas o mais importante é que vocês e os três
caças voltem sãos e salvos. São muito valiosos para mim.
— Sim! — responderam os três oficiais.
Fizeram continência e retiraram-se.
* * *
Tudo decorreu com extrema precisão. Pelo menos no
início. Segundo as informações de Crest, o sistema de
alarma dos DI era menos aperfeiçoado, e seus
instrumentos de localização tinham um alcance de menos
de dez milhões de quilômetros. Dali a pouco a Good Hope
teria que desacelerar, para dar a precedência aos caças
espaciais que, graças às superfícies refletoras, tinham boa
chance de se aproximar mais um pedaço do inimigo sem
serem detectados.
E tinham de aproximar-se sem serem detectados para
terem alguma chance de êxito. A força dos DI eram as
cúpulas energéticas, que podiam cercar a nave em poucos
segundos. E um canhão de radiação dos arcônidas nada
poderia contra elas. Outro fator de vantagem dos DI era a
extrema maleabilidade de suas naves. Assim que
descobrissem que um dos seus ataques traiçoeiros fora
descoberto e, portanto, frustrado, recorriam à fuga. E isso
de nada adiantava aos homens. Um DI voltaria depois de
ter fugido. Surgiria a qualquer momento, em qualquer
lugar. E então o fator surpresa estaria novamente de seu
lado.
— Alô, Freyt! Avise quando estiver pronto para
decolar! — gritou Perry Rhodan.
— Os três caças estão prontos para passar pela
comporta.
— Muito bem! Ligue os reatores. Acelere, conforme
combinamos. Dentro de vinte segundos a Good Hope vai
desacelerar. Aí vocês já deverão estar do lado de fora.
Assim que Reginald Bell inverteu os jatos, dando
início à desaceleração, três minúsculos pontinhos
cinzentos desapareceram no espaço. Dentro de poucos
segundos cessaram os efeitos luminosos produzidos pelas
superfícies metálicas dos caças sobre as telas de
observação visual. Outro super-raio localizador atingiu-os
pela quinta dimensão, tornando-os visíveis aos ocupantes
da nave.
Estabeleceram contato radiofônico pela faixa AK III.
Não haveria possibilidade de detectá-lo no espaço
contínuo quadridimensional.
Perry Rhodan observaria todas as fases do confronto
que se aproximava. Se necessário, anunciaria modificações
estratégicas.
— Mudar o rumo dois graus para estibordo! — foi à
ordem que se seguiu.
Bell estava surpreso, pois esperara poder conduzir a
Good Hope para casa a seu bel-prazer. Mas ao que parecia
ela ainda tinha um papel a desempenhar nos planos de
Rhodan. Executou a manobra sem discutir.
As maiorias das pessoas que se encontravam a bordo,
de certo imaginaram o que Rhodan pretendia com a
mudança de rumo. Mas só tiveram certeza quando chamou
Freyt.
— Mantenho o mesmo rumo, tenente. Levamos a Good
Hope dois graus para estibordo. Com isso devemos
aparecer a uma distância de seis milhões de quilômetros do
seu ponto de encontro com os DI. Além disso, daqui a
pouco iremos a uma velocidade bastante reduzida, para
atrair a atenção do inimigo. Com isso serão maiores as
chances de vocês se aproximarem sem serem percebidos.
Boa sorte!
Dali a quarenta e oito minutos uma manobra dos DI fez
concluir que a Good Hope fora descoberta.
— Não perca a calma, meu filho! — disse Rhodan.
“Meu filho” era Bell. — Prosseguiremos sem mudar de
rumo. Também manteremos a mesma desaceleração. O
inimigo pensará que procuramos atingir um ponto situado
além da Terra. Se continuarmos assim, só poderá pensar
que não o descobrimos.
Logo se ouviram as mensagens de comando de Freyt.
As pessoas que se encontravam a bordo da Good Hope
acompanharam-nas pela superfaixa AK IH.
— Abrir um grau. Nyssen para bom-bordo.
Deringhouse para estibordo. Nyssen aumente a aceleração
em dois km/seg. Deringhouse reduza em dois km/seg.
Você se encarregará do primeiro, isso se eu falhar. Nyssen
atacará o segundo.
— O.K.! Entendido!
A fileira de caças espaciais abriu-se em leque. Depois
de modificada a aceleração voava um atrás do outro, em
diagonal. O capitão Rod Nyssen ia à ponta. Teria de passar
pelo primeiro inimigo para abrir fogo contra o segundo,
antes que fosse prevenido pelo ataque contra a primeira
nave.
Os DI se limitaram a uma mudança insignificante de
rumo. Ao que parecia tratava-se de uma reação instintiva,
provocada pelo surgimento da nave dos arcônidas. Como
Rhodan prosseguisse no mesmo rumo, os DIs tornaram-se
mais confiantes e, mantendo a mesma desaceleração,
prosseguiram na direção Lua—Terra.
Os três caças espaciais, submetidos a uma aceleração
constante, haviam atingido uma velocidade próxima à da
luz. Para estabilizar a massa que tendia para o infinito, os
astronautas proporcionaram um apoio adicional ao raio de
partículas, injetando um elemento de sustentação no
mecanismo propulsor. Com isso se atingiam velocidades
que excediam tudo que o homem jamais vira no sistema
solar.
O mais importante era que o inimigo não contava com
esse ataque súbito.
A distância prevista de dois milhões de quilômetros os
caças abriram fogo com seus canhões de radiação. Ao
113
mesmo tempo Nyssen e Freyt lançaram os torpedos
espaciais com carga nuclear.
Os DI não tiveram tempo de levantar a cúpula
energética. Quando viram a luminosidade dos canhões, já
era tarde. A onda mortal aproximou-se com a velocidade
da luz.
As duas naves desmancharam-se em pura energia.
Os três astronautas não tiveram tempo para apreciar o
espetáculo infernal. Os caças também corriam perigo. A
enorme velocidade aproximava-os a cada instante daquela
fornalha de energias em fúria.
Imediatamente após o disparo tiveram de eliminar toda
a aceleração e mudar de rumo. Com isso surgiu uma
pressão lateral que perdurou por mais de quinze segundos.
Os astronautas jaziam imóveis nas suas poltronas
anatômicas e contaram instintivamente até quinze. Só ao
chegarem a esse número em plena consciência souberam
que estavam salvos.
— Iniciar manobra de frenagem! — A voz de comando
de Perry Rhodan soou abruptamente nas pequenas cabinas
pressurizadas. — Foi um trabalho muito bem feito,
cavalheiros. Sigam um curso comum e retornem a Terra
assim que tiverem atingido uma velocidade que permita o
pouso. Encontramo-nos na órbita lunar, onde voltaremos a
recolhê-los a bordo da Good Hope.
Os homens que se encontravam a bordo da Good Hope
dispuseram-se a uma soneca reconfortante. Foi quando
subitamente o hiperlocalizador voltou a reagir.
— Que inferno! O que será isso? — suspirou Reginald
Bell.
— Sem dúvida é um objeto voador — explicou Crest.
— E procede exatamente do setor do espaço que os três
caças acabam de abastecer com energia. Deve ser uma
nave salva-vidas dos DI. Trata-se de veículos menores que
nossos caças, e que podem abrigar no máximo dez seres.
— É impossível. Nosso ataque destruiu tudo que...
— Não se exalte. Esse veículo praticamente não
conduz nenhum armamento. Não pode fazer-nos nenhum
mal.
— Não se trata disso, Crest. Trata-se de saber como é
que alguém conseguiu escapar.
— Tenho certeza de que não tiveram tempo para
decolar da nave — constatou Perry Rhodan.
— É verdade — confirmou Crest. Suponho que a nave
já tenha sido tirada de bordo antes, para cumprir uma
missão especial. Vamos segui-la por algum tempo. Já
podemos permitir-nos esse luxo.
A minúscula nave salva-vidas dos DI tomara o curso
da Lua. Rhodan voltou a estabelecer contato com Michael
Freyt. Os três caças voltaram, depois de descrever uma
curva de 800.000 quilômetros de raio e dentro de noventa
minutos atingiram, pouco antes da nave esférica dos
arcônidas, a órbita previamente indicada.
— Freyt, pelos meus cálculos é você que se encontra
mais próximo da nave.
— Sim, Rhodan.
— Peço-lhe que se ponha a persegui-la. Nada de
ataque. Sempre será possível pegar uma mosca dessas,
enquanto não se dirigir diretamente à Terra. Gostaria de
receber as coordenadas exatas do local de pouso.
— Correto! Quais são as instruções para Nyssen e
Deringhouse?
— Podem se aproximar. Vamos abrir as comportas.
A nave dos DI foi submetida a uma dupla vigilância.
Além do tenente, também o raio hiperlocalizador ficou
grudado nela. E as pessoas que se encontravam na nave,
inclusive Thora, acompanhavam com o maior interesse
todos os seus movimentos.
Freyt acelerou e chegou bem perto do inimigo.
— Tenha cuidado, tenente! É possível que os DI
disponham de uma base fixa na Lua. De lá você poderia
ser alvejado.
— O.K.! Cuidarei. Está nos seguindo?
— Sim, por precaução. Mas nem por isso você deve
relaxar.
Freyt riu.
— Com o equipamento de que disponho aqui tenho
pouca chance de relaxar. Quero experimentar tudo. Tenho,
por exemplo, uma câmera maravilhosa que permite tirar
quinhentas fotografias por segundo. Ela alcança
frequências que vão do infravermelho ao ultravioleta e é
dotada de um cérebro positrônico rastreador físico-
químico, além de ter um revelador embutido que libera as
fotografias imediatamente. Quer que eu leve um filme?
— A idéia não é má. Trabalhe com a câmera.
Realmente o tenente Freyt operou um filme
aproveitável.
A nave dos DI desaparecera na face oculta da Lua, na
altura da linha equatorial. As medições realizadas por
Freyt indicavam a área da cratera de Mendelejew, no 80o
grau de longitude. Estranhamente naquele lugar havia
vestígios de metal que, segundo o cérebro positrônico, não
ocorriam em estado natural.
— Quer dizer que conseguimos localizá-los —
constatou Eric Manoli. — Convém cuidar deles.
— É o que vamos fazer. Mas não quero arriscar a vida
de qualquer homem.
— Usaremos robôs. Acho que com eles os DI vão
quebrar os dentes.
Pouco tempo depois a Good Hope desembarcou na
cratera Anaxágoras um contingente de tropas robotizadas
completamente equipado, que foi incumbido de missões de
esclarecimento de âmbito restrito. Seu raio de ação era de
seis mil quilômetros.
3
A Good Hope pousou num verdadeiro ninho de
marimbondos.
114
O ninho de marimbondos era o território da Terceira
Potência, situado no deserto de Gobi. É bem verdade que a
designação de “deserto” já não era correta. A desolação e a
solidão haviam desaparecido. Além da cúpula energética
de dez quilômetros de diâmetro outros dez mil quilômetros
quadrados de terra foram incluídos no plano de cultivo.
Centenas de técnicos e trabalhadores especializados
ajudados por um exército de robôs estavam todos
ocupados na montagem de um complexo industrial
integrado.
A terra florescia. Chuvas artificiais puseram fim à seca
eterna. O oásis natural crescera, atraindo um número cada
vez maior de camponeses mongóis, que montavam suas
tendas junto aos limites do território da Terceira Potência,
a fim de aproveitar o milagre do paraíso que ia crescendo
aos poucos.
Visto de cima, o conjunto oferecia um quadro
encantador. Por alguns minutos a esfera arconídica flutuou
a pequena altura acima daquela azáfama, seguindo a
sugestão de Allan D. Mercant, que se opusera
decididamente a um pouso fora da cúpula energética.
— Você me mete medo — disse Rhodan. — Estou
interessado em saber o que aconteceu no território da
Terceira Potência. Pelo que vejo, muita coisa boa e
positiva foi feita. Será que tudo isso muda de figura
quando nos aproximamos?
— Faça a nave pousar, Rhodan. Depois que os DI
fizeram sua mais recente aparição, não permiti que a
cúpula fosse aberta.
— Não estão precisando de você no quartel-general da
Groenlândia?
— Em toda a parte precisam de mim. Mas jurei ficar
aqui até que você retornasse. Mandarei abrir a cúpula. Por
três segundos no máximo. O risco é muito grande.
— Não haverá problema.
Reginald Bell executou um pouso exemplar.
No campo de pouso foram recebidos pelos
colaboradores mais chegados.
Mercant aproximou-se. Estava acompanhado de John
Marshall e do Dr. Haggard. Rhodan apertou-lhes a mão.
— Fale logo, Mercant! O que houve?
— Se examinar os jornais de hoje, encontrará pelo
menos trezentos casos de gente que é suspeita de ter sido
apossada pelos DI. Mesmo que em noventa por cento dos
casos isso não passe de fantasia, ainda há motivo mais que
suficiente para nos alarmarmos. Para mim os casos não
reportados são os mais perigosos.
— Em poucas palavras, receia um ataque em massa
contra a Terceira Potência.
— Isso está na cara. O primeiro DI que se apossar de
um grande político ou economista estará orientado sobre o
significado de nossa nação. Quem quiser dominar a Terra
terá que dominar a Terceira Potência. É uma conclusão
perfeitamente lógica.
— É verdade. Foi por isso que determinou o bloqueio
total entre a cúpula e os territórios adjacentes.
— Não dispomos de meios para controlar todo o
território e evitar uma infiltração. Por isso limitamo-nos à
cúpula. Enquanto o cerne continuar intacto, disporemos de
um núcleo sadio para revidar qualquer golpe.
— Estou satisfeito com sua atuação. O que você acha
que devemos fazer daqui por diante? Segundo deduzi do
nosso contato pela faixa AK III, você já tomou algumas
providências.
— Falei com os colegas do Bloco Oriental e da
Federação Asiática. Submeterão nossas propostas aos
respectivos governos.
— Isso me cheira a burocracia.
— Desta vez tudo será mais rápido. A estação espacial
Freedom I observou seu combate com as naves dos DI. A
notícia dessa vitória estrondosa já se encontra em todas as
agências de notícias do mundo. Todos reconhecem o
perigo. A idéia até chegou a ser propagada excessivamente
e entregue às massas. Por isso torna-se difícil reprimir as
manifestações de pânico. As potências não tiveram
alternativas, senão decretar o estado de exceção. Acontece
que essa desconfiança de homem para homem não nos
ajudará em nada. Há meia hora a rádio de Cingapura
transmitiu a notícia de que em Manila um homem matou a
esposa porque, segundo diz, estava possuída. Mas os
vizinhos informam que o casamento não estava dando
certo. Quem poderá fazer prevalecer o direito, se um
homem mata o outro e dá a culpa aos DIs?
— Precisamos de uma força policial — disse Rhodan.
— Quero que seja recrutada entre os homens de seu
serviço secreto. Por enquanto teremos de nos contentar
com quinhentos homens.
— Quinhentos? — exclamou Mercant apavorado.
— Quinhentos — confirmou Rhodan com um ligeiro
sorriso. — Afinal, o que são quinhentos homens em
comparação com o problema que estamos enfrentando e os
numerosos problemas que teremos de enfrentar no futuro?
Não devemos ser otimistas a ponto de supor que todas as
posições podem ser preenchidas com mutantes. O número
dos mutantes positivos nem chega a tanto.
— Arranjarei os quinhentos homens. Dentro de uma
semana aproximadamente. Mas não lhe garanto que entre
eles não haja nenhum elemento possuído pelos DI.
— Não exijo tanto. Você não deve ver as coisas tão
pretas. Se apenas um dos seus quinhentos homens for um
possuído, isso significa que os DI já se apossaram de um
em cada quinhentos habitantes da Terra. Não é nada
provável que a percentagem seja tão grande.
— Permita que conteste esse seu cálculo de
probabilidades — disse Mercant. — Já chegamos à
conclusão de que os DI agem racionalmente, que não
mexem na grande massa de pessoas que não exercem
qualquer influência. A meu ver, além dos políticos e dos
economistas, as pessoas preferidas pelos DI devem ser os
agentes secretos.
— Você é teimoso, Mercant — disse Rhodan com um
sorriso. — Faz questão de abordar um tema que só estará
maduro dentro de uma semana. Vamos adiar esta
discussão por sete dias. Talvez então tenhamos uma base
bem mais sólida que hoje.
— Em sua opinião! Será que conseguiremos descobrir
tão depressa, uma possibilidade de identificar as pessoas
possuídas pelos DI?
— Ainda não dispomos de um profeta em nosso
exército de mutantes. Só disponho de planos e esperanças.
Fiquemos nos fatos do presente. Cada um tem sua tarefa.
A sua consiste em arranjar quinhentos policiais que
mereçam toda confiança. De início procederá segundo o
regulamento a que já está sujeito. Nenhum estranho pode
penetrar na cúpula energética. Todos os elementos novos
serão alojados fora dela. Na área central só podem penetrar
homens e mulheres que já tenham provado serem
elementos de primeira ordem, merecedores de toda
confiança. A quem podemos nomear, como seu assistente?
— Gostaria que fosse um mutante.
115
— Que tal Marshall?
— Bem, simpatizo com ele. Acontece que eu mesmo
entendo um pouco de telepatia. Preciso de um
teleportador. Assim nos completaríamos mutuamente.
— Está bem. Leve Tako Kakuta. Qual é seu itinerário?
— De início terei de ir à Groenlândia. Dali a Nova
Iorque e possivelmente a Washington.
— Muito bem. Desejo-lhe uma boa viagem. Quando
tiver alguma mensagem importante, procure ater-se às
horas combinadas para o tráfego radiofônico, para que não
tenhamos de abandonar o trabalho a todo instante. Mas
quando se tratar de um assunto inadiável estou à sua
disposição a qualquer hora.
Enquanto Mercant e Kakuta se preparavam para a
viagem, Rhodan classificou os dados resultantes de sua
última palestra com o cérebro robotizado estacionado em
Vênus.
— Companheiros — disse Perry depois de algum
tempo. — Acho que não há necessidade de fazer um
discurso. Todos conhecem a situação. Defrontamo-nos
com um inimigo mais traiçoeiro que qualquer um com que
a humanidade já se viu a braços. Não conhecemos sua
força numérica, nem sua posição. Não sabemos onde fica o
front; a única coisa que sabemos é que se estende em
inúmeras ramificações, e pode passar pelo nosso
acampamento. Um ataque contra os DI só se justifica no
espaço, onde podemos localizar suas naves. Ainda temos
de preparar a luta em terra. Antes de golpearmos aqui,
temos de conhecer a situação do front. No momento nos
defrontamos com duas necessidades de ordem estratégica.
Uma é a vigilância espacial e o reconhecimento em terra.
Tenente Freyt!
— Sim, Rhodan!
— Nos próximos dias você terá uma missão muito
difícil. É imprescindível que a qualquer hora do dia e da
noite um comando de dois caças espaciais patrulhe o
espaço até uma altitude de quinhentos mil quilômetros.
Você vai se encarregar disso juntamente com o capitão
Nyssen e o tenente Deringhouse. Só um de vocês poderá
ficar de folga de cada vez. Combinem entre si.
— Correto!
— Muito obrigado! Espero que decolem dentro de
cinco minutos.
Os três astronautas saíram da sala.
— Agora você, Dr. Haggard. Quero que se recolha em
si mesmo e procure pensar sobre as possibilidades,
puramente teóricas, de atingir os DI segundo sua biologia.
Se as instalações de seu laboratório não forem suficientes,
avise imediatamente. O dinheiro e o material não serão
nenhum problema.
— Sinto-me honrado com a sua confiança. Mas não
espere muito deste tipo de trabalho, que deve ser
considerado de pesquisa pura. E uma pesquisa num terreno
inteiramente novo pode levar anos.
— Não fixei prazo, doutor. Está claro? Aliás, faço
questão de que os mutantes continuem a dispor de
assistência médica. Prepare essa gente para uma próxima
transferência para Vênus, onde serão submetidos a um
treinamento final.
— Me dedicarei ao trabalho teórico, sem prejuízo das
tarefas que tenho de executar. Se fizer questão de uma
solução rápida, peço-lhe que faça o possível para
providenciar o material necessário.
— Que material é este?
— Um Deformador Individual, ou seu cadáver, e um
homem possuído.
— Verei o que posso fazer.
Com isso o Dr. Haggard foi dispensado. Perry Rhodan
e Reginald Bell estavam a sós.
— Agora chegou minha vez — disse Bell
laconicamente. — Não seria conveniente reforçar os vôos
de patrulhamento? — sugeriu.
— Você gostaria de acompanhar Freyt?
— Não pense que é porque isso me dá prazer. A tarefa
de Freyt é a mais importante. Temos de impedir a todo
custo qualquer novo pouso dos DI, pois sem isso os
contragolpes que teremos de preparar com um trabalho
extenuante chegarão tarde. Até você lutará em vão contra
um mundo de DI.
— Não subestimo a tarefa de Freyt.
— Mas ele terá de dar conta dela juntamente com
Nyssen e Deringhouse. De você precisamos para o novo
comando.
— Mercant cuidará disso.
— Ele vai conseguir apenas quinhentos homens dentro
de uma semana, e ainda teremos de verificar se os mesmos
nos servem. Depois de dois ou três testes não sobrarão
muitos. Você terá de arranjar mais uns quinhentos ou mil
voluntários. Também dentro de uma semana.
— Como poderei fazer isso? Não disponho de uma
organização montada, como Mercant, onde poderia
recrutar minha gente.
— Você precisa de voluntários. Voluntários de todo o
mundo. Só os agentes não nos servirão de muita coisa,
mesmo que sejam superdotados. Precisamos de soldados,
técnicos, cientistas, juristas.
— Suas exigências aumentam de dia para dia. Já lhe
disse que não disponho de ligações pessoais que...
— Se quiser coloque anúncios de página inteira nos
jornais mais importantes. Você pode arranjar isso com
Adams em Nova Iorque. Ele dispõe de relações.
— Quer dizer que vou à Nova Iorque?
— Entre outros lugares. Antes irá a Chicago. Mais
precisamente, à Michigan Avenue.
— Devo procurar Clive Cannon?
— Isso mesmo. Cannon está sendo vigiado pela polícia
secreta federal. Se o coronel Kaats seguiu as minhas
recomendações, nada aconteceu ao chefe dos gângsteres.
— O que devo fazer quando estiver diante de Cannon?
— Você vai convidá-lo para uma temporada no deserto
de Gobi.
— Acho que não vai fazer muita questão disso.
— Será que não? Como homem possuído pelos DI
deve estar doido para pôr os pés aqui.
— Mas ficará desconfiado. Até mesmo um patife
menos sagaz que ele perceberá logo o que significa um
convite desse tipo. Acho que um golpe de violência teria
melhores possibilidades de êxito.
— Não lhe dito regras sobre como deve proceder.
Preciso de Cannon aqui. E preciso dele vivo.
— Quem posso levar comigo?
— Quem gostaria de levar?
— John Marshall.
— Concedido. Arrume as malas. E avise Marshall.
Ainda quero falar com vocês antes de partirem.
* * *
Perry Rhodan foi sozinho para junto do cérebro
positrônico estacionado no interior da cúpula energética.
116
Levava consigo os dados elaborados pelo cérebro gêmeo
que se encontrava em Vênus. Esses dados não haviam sido
submetidos a um processamento coerente. A partida
precipitada de Vênus não lhe deixara tempo para ocupar-se
intensamente com o problema.
Inicialmente, Rhodan introduziu na máquina os cartões
perfurados e positrogramas que tinha em seu poder. Na
primeira passagem formulou a pergunta em termos muito
gerais. O cérebro tinha de ser conduzido ao núcleo do
problema numa progressão e logicamente coerente. Não
que lhe faltasse capacidade de solucionar problemas
complexos num tempo muito reduzido. O caso era que
tudo dependia do equacionamento correto do problema por
parte do homem.
— Como poderei identificar o cérebro de um homem?
— principiou Rhodan.
— Pergunte-lhe quem é.
— Neste caso não existe a possibilidade de perguntar.
O cérebro que se pretende identificar não libera a
informação.
— Cada cérebro possui uma freqüência individual,
identificável através da medição do comprimento das
ondas — respondeu o cérebro.
— Nossa tarefa consiste em identificar certas
características de determinado grupo de cérebros —
prosseguiu Rhodan. — Não se trata de um indivíduo
isolado.
— Isso não altera nada na resposta que acabo de dar
Rhodan refletiu. Dessa forma nunca chegaria ao fim.
— O estímulo transmitido de molécula a molécula
irradia um espectro mensurável. Nossa sonda cerebral
permite a medição das freqüências. A constituição e o
funcionamento da sonda são conhecidos?
— São conhecidos — respondeu prontamente o
cérebro positrônico.
— Mas por essa forma só conseguimos apurar desvios
em princípio. Não conhecemos nenhuma análise
qualitativa. A mesma não pode ser realizada por meio do
exame do modelo cerebral. Este fato já foi constatado.
Minha pergunta é a seguinte: Quais são os dados
utilizáveis, além do espectro de ondas cerebrais?
— Não dispomos de informações a este respeito.
Mais uma vez Rhodan havia chegado a um ponto
morto. O cérebro positrônico não fora concebido
exclusivamente para o armazenamento de experiências;
também possuía áreas dedicadas ao pensamento criativo.
Rhodan pegou um exemplar dos positrogramas e
introduziu-o na máquina.
— O que resulta deste estímulo?
— Recomenda-se a utilização de telepatas.
— Neste caso não dispomos de telepatas.
— A verificação da atividade cerebral só pode ser
realizada por meio do exame das freqüências, pois
qualquer fluido tem um caráter eletromagnético.
Recomenda-se o aperfeiçoamento do receptor. A
modulação proporciona a melhor possibilidade para a
determinação do caráter individual.
— A modulação por meio de uma onda?
— Sim.
— Como faço para conseguir a onda?
— Ela já existe. O cérebro a ser identificado faz o
papel de emissor.
— Quer dizer que todo segredo está no fato de que as
sondas cerebrais dos arcônidas trabalham numa faixa de
freqüências muito restrita. A onda portadora deve ser
incluída na área de ressonância.
— É muito provável que seja assim.
— Quais são as freqüências que devem ser incluídas?
A resposta do cérebro positrônico foi abafada por um
uivo ensurdecedor. Perry Rhodan endireitou o corpo. Seu
espírito vivaz logo se adaptou à nova situação. Uma sereia
de alarma era mais importante que qualquer resposta do
cérebro positrônico, por mais vital que fosse. Não se podia
perder a sabedoria da máquina positrônica. Mas num
alarma, cada segundo podia representar uma perda
irreparável.
Rhodan correu para o portão e olhou para fora.
Os homens corriam pelas ruas arenosas ladeadas de
barracos. Isso não tinha nada de estranhável, pois o alarma
no território cercado significava que de início cada um
tinha de deslocar-se para um ponto indicado, onde
aguardaria instruções.
O ponto de Rhodan ficava no escritório, que servia de
quartel-general da Terceira Potência. Só ali podia ser dado
o alarma.
Do ponto em que Rhodan se encontrava era apenas um
pulo. Por isso preferiu não usar seu rádio de bolso. Saiu
correndo sem perder tempo.
Na entrada do escritório Reginald Bell aguardava-o em
traje de viagem.
— Foi você que deu o alarma?
— Entre. Ali fora, além da área bloqueada, o diabo está
solto.
— São os DI?
— É o que dizem. Pelo menos é uma das coisas que
dizem. Estão fazendo uma pequena revolução. Num caso
destes é difícil conseguir uma informação precisa.
— É uma nova invasão? Será que os caças espaciais
deixaram passar alguém?
— Nada disso. Se forem DI, os mesmos já estão na
Terra há alguns dias. Olhe!
Rhodan aproximou-se da tela.
Bell modificou a regulagem. O olho energético da
antena direciona foi penetrando no espaço e colocou-se
numa perspectiva que lhe permitia abranger todo o
território submetido à soberania da Terceira Potência.
— Onde foi que aconteceu? — perguntou Rhodan.
— Aqui — respondeu Bell, trazendo para a tela um
setor ampliado. — Bem ao noroeste. Perto do posto
número trinta e sete.
Não precisou dar outras explicações. A imagem dizia
mais que as palavras.
Verdadeiras massas humanas comprimiam-se junto à
cúpula energética. Via-se perfeitamente que se tratava de
dois grupos inimigos.
— Você disse que é uma revolução?
— É sim. Ras pode dar maiores detalhes.
Rhodan voltou-se ao africano.
— O que aconteceu?
— Eu estava fazendo uma inspeção de rotina.
Encontrava-me no posto número trinta e sete, que fica na
área número dois, isto é, a menos de dois quilômetros da
cúpula. Naquele lugar a Harris Corporation está
construindo dez pavilhões de montagem para agregados de
refrigeração de plástico endurecido e outras peças
padronizadas para o interior das naves. Junto às betoneiras
havia um grupo de pessoas que conversava animadamente.
Algumas delas discutiram e passaram às vias de fato.
Naturalmente resolvi intervir, mas logo me ameaçaram de
pancada. Mas nenhum dos briguentos chegou a bater em
117
mim, pois não estavam de acordo. Alguns elementos
menos agressivos perguntaram se era verdade que havia
gente possuída no território da Terceira Potência.
— E você respondeu alguma coisa?
— Não, outros responderam no meu lugar, afirmando
insistentemente que havia prova disso. Um dos técnicos
apontou para dois homens, acusando-os abertamente de
serem possuídos. Quando fizeram menção de saltar sobre
ele, apontou-lhes uma arma. Em torno dos acusados logo
se formou um grande grupo de pessoas. Todos procuraram
afastar-se deles, com exceção de quatro homens que, ao
que tudo indicava, pertenciam ao grupo dos seus colegas
de trabalho mais chegados. Estes também foram acusados,
e disseram-lhes que rezassem, porque iriam morrer.
Subitamente alguém me empurrou para junto dos acusados
e ouvi gente gritar: “Também é um deles. Vamos liquidá-
lo!” Vi o fanatismo escrito nos rostos, e sabia
perfeitamente que esses sujeitos que portavam armas
estariam dispostos a tudo. Ouvi um tiro atrás de mim; um
dos trabalhadores caiu ferido. Logo me teleportei para cá.
— Fez bem. Mais alguém tem alguma coisa a dizer?
— Ninguém — disse Bell, fazendo um gesto inequívo
em direção à tela. — Mas receio que já tenha havido
mortos. Pela imagem ótica parece que os dois grupos têm
aproximadamente a mesma força. Evidentemente o partido
dos acusadores está armado. Por isso tem certa
superioridade que lhe permite acusar muitos dos outros de
serem possuídos.
Rhodan pegou o microfone de seu emissor particular e
ligou o sistema de alto-falantes.
— Aqui fala Rhodan. Não foi dada nenhuma ordem
para um alarma geral. Os que não foram convocados
devem ficar de prontidão. Comando de vigilância da Good
Hope, preparar para decolagem. Estou chamando o
comando de terra dos astronautas. Favor responder.
— Aqui fala o tenente Deringhouse.
— Também se prepare para decolar. Você deixará o
território bloqueado juntamente com a nave esférica. A
contagem regressiva será iniciada no máximo dentro de
cinco minutos. Por motivos de segurança a cúpula só será
aberta por dois segundos. É bem possível que toda essa
revolução não passe de uma trama do inimigo, que nos
quer fazer sair do abrigo. Tenente, sua missão consistirá
em cruzar sobre o território da Terceira Potência, dando
aviso de qualquer movimentação suspeita em terra e no ar.
— Sim, Rhodan.
Dirigindo-se ao Dr. Manoli, Rhodan prosseguiu:
— Eric, você vai exercer o comando até nosso
regresso. Manteremos contato ininterrupto pelo som e pela
imagem. Capitão Klein, você assumirá o controle da
cúpula energética, uma vez que já está conosco. Sempre se
desempenhou muito bem desse serviço. Mas não confie na
sua capacidade de reação. A contagem positrônica será
iniciada a partir do segundo menos sessenta.
— Entendido!
— Bell, você irá comigo.
— O.K.! Sugiro que usemos trajes arconídicos.
— Isso não é necessário. Precisamos de projetores
mentais e neutralizadores gravitacionais.
Reginald Bell obedeceu. Os instrumentos a que
Rhodan acabara de aludir sempre se encontravam ao
alcance das mãos. O mesmo acontecia com os trajes
arconídicos, que Rhodan e Bell só usaram para atingir sem
perda de tempo a nave Good Hope, que se encontrava a
mil metros de distância.
A nave recebeu-os como uma catedral deserta. Os
passos dos homens apressados retumbavam pelos
corredores e produziam eco. Thora e Crest estavam na sala
de comando. Encontravam-se ali, como se fossem
acessórios imprescindíveis da nave. A Good Hope era o
último vestígio da pátria arconídica. Era ali que residiam
os dois arcônidas, que a tudo assistiam com um interesse
dúbio, quando um alarma colocava os homens em estado
de exaltação. Faziam papel de espectadores, sempre que
não se encontrava em jogo uma questão do seu interesse.
Thora, a comandante do gigantesco cruzador
arconídico, destruído na Lua, raramente fazia uso do seu
direito inato. Sua vida sempre desembocava no conflito
entre o passado orgulhoso e a situação atual, sempre
mutável, que lhe era imposta pela convivência com os
terráqueos.
Rhodan atirou-se no assento do piloto e começou a
manipular os comandos. A Good Hope despertou para a
vida. Ergueu-se do solo e subiu com ligeira aceleração.
A uma altitude de dois mil metros encontrava-se o
zênite da abóbada energética.
— Rhodan chamando o capitão Klein. Altitude:
duzentos metros. Estou ligando o piloto automático. Mude
para o contador positrônico. Alô, Deringhouse! Mantenha
a mesma altitude. Quando atingir os quinhentos metros,
acelere l g. Transmita a contagem regressiva pelo emissor,
capitão Klein.
Uma voz mecânica iniciou a contagem em direção a
zero. A decolagem das naves e a retirada da cúpula
energética estavam conectadas a uma reação positrônica
automática, que seria expedida a partir da central. Tudo
daria certo. E deu. Pelo menos no que dizia respeito à
decolagem. Na terra a série de manipulações não deixou
de provocar seus incidentes.
O televisor orientado para a área critica do posto 37
revelou tudo.
A massa enfurecida, cujos fronts estavam separados
por uma estreita faixa de terra, comprimia-se junto à
cúpula energética. Um dos grupos levantara barricadas,
apoiando-as contra o muro invisível. Dois homens subiram
nelas, para apresentar uma demonstração tola.
Quando a energia foi retirada da cúpula, a armação
ruiu. Dois segundos depois a mesma energia retornou,
impelindo tudo que se colocava ao seu alcance. A reação
lenta dos homens não conseguiu aproveitar esses dois
segundos.
A cúpula que voltou a funcionar depois da interrupção
teve o efeito de uma catapulta. A massa de energia
“limpa”, livre de radiações, que só funcionava de forma
cinética, golpeou como um punho de ferro. Homens que
iam cambaleando para frente foram atirados para trás,
aterrizando de forma nada suave. A reação da barricada
desmoronada foi semelhante. Tábuas e pranchas caíram
em meio às massas que se aglomeravam, completando o
caos.
Bell interpretou as minúcias que conseguiu captar na
tela.
— Agora precisamos de médicos e enfermeiros.
— Eles terão de procurar imediatamente eventuais
corpos de DI que foram abandonados — interrompeu uma
voz vinda dos fundos da sala. Era Crest.
— Procurar corpos de DI em nosso território?
— Esses sujeitos preferem a escuridão. A divisa
exterior do nosso território não é totalmente
intransponível. É bem possível que os DI tenham
118
escondido seus corpos nas proximidades.
— Eles precisam disso?
— Nunca se deve subestimar um inimigo, é o que ouço
os homens dizerem — disse Crest, dirigindo-se para frente
da sala. — É uma regra que muitos táticos e estrategistas
entre as diversas inteligências da galáxia já descobriram.
Mas toda e qualquer sabedoria só tem validade dentro de
certos limites. Além desses limites ficam as exceções que,
ainda segundo um dos seus provérbios, confirma a regra.
— Que exceção poderia ocorrer no presente caso?
— Para os terráqueos as qualidades naturais dos
Deformadores Individuais são verdadeiramente sobre-
humanas. Por isso a raça dos homens tenderá a atribuir
uma superioridade infinita aos DI, e essa atitude já envolve
uma disposição inconsciente para a capitulação. Sempre
que um obstáculo pareça intransponível, somos tentados a
desistir.
— Acho que você está aludindo antes às qualidades
arconídicas que às terrenas — corrigiu Bell.
O arcônida ergueu os ombros num gesto de dúvida.
— Se fosse você, não me sentiria tão seguro.
Rhodan insistiu para que atacassem logo o núcleo da
questão. Não havia tempo para pesquisas demoradas sobre
as características das diversas raças.
— Quer dizer que você recomenda que os DI sejam
avaliados com base em critérios objetivos, para que suas
limitações naturais possam ser conhecidas.
Crest fez que sim.
— Superestimá-los seria um erro tão grave como não
dar atenção às suas manhas traiçoeiras. Os DI são uma
raça obstinada, mas o heroísmo não ocupa um lugar de
destaque entre eles. Possuem um instinto de
autoconservação muito desenvolvido, que os põe em alerta
diante de qualquer risco. São bons intrigantes, dotados de
grande inteligência e flexibilidade. Mas, como acabo de
dizer, prezam antes de tudo sua segurança pessoal. Vocês
já sabem de que forma os DI costumam apossar-se de suas
vítimas. Chegam bem perto e sem maiores esforços
realizam a troca de identidades. Mas sempre estão
dispostos a bater em retirada. Para isso é necessário que
seu corpo fique o mais perto possível, muito embora o
salto para dentro do homem seja muito mais difícil que o
regresso ao próprio eu.
— É por isso que acredita que devíamos procurar
corpos de DI nas proximidades da cúpula?
— Isso mesmo. Quando se sentem seguros, preferem
procurar um esconderijo para seu corpo o mais perto
possível do homem em que se recolhem. Em média, pode-
se contar com uma área situada num raio de duzentos
metros. É bem verdade que já se verificaram casos em que
os DI se afastaram alguns milhares de quilômetros com o
corpo por eles possuído.
— E mesmo assim conseguem regressar?
— Só com um esforço extremo. E isso se torna ainda
mais difícil quando o corpo em que se abrigaram é
ameaçado de morte. A morte do mesmo significaria sua
própria morte. O DI não sabe saltar de um homem para
outro. Tem de regressar ao seu corpo, e isso enquanto o
corpo possuído estiver vivo. Se matarmos um homem
possuído por um DI, o DI também morre.
— Faço votos de que isso seja verdade — disse Bell
em tom desconfiado.
— Você não tem motivo para duvidar da veracidade do
que acabo de dizer — retrucou Crest.
— Não estou falando por mal. Acontece que você já se
enganou quando viu tudo sob a perspectiva dos arcônidas.
Afirmou que um homem que é possuído, cujo “eu” ao
retornar ao corpo a que pertence, acaba enlouquecendo.
— Isso diz respeito a homens e arcônidas, entre cujas
mentalidades existem diferenças enormes. Enquanto
estivermos falando nos DIs, você pode confiar nos meus
conhecimentos.
* * *
Quando surgiu a Good Hope, houve certa agitação
entre as massas que se aglomeravam junto ao posto trinta e
sete. A divisão entre os dois fronts já se tornara menos
nítida com o desmoronamento das barricadas. A essa
altura a consciência pesada parecia unir os homens. A
esfera dos arcônidas corporificava uma autoridade toda
especial.
Rhodan pousou e pediu a Thora que mantivesse a nave
em condições de decolar a qualquer momento. Olhou para
Bell e fez-lhe um sinal.
— Vamos, Bell! Tenha cuidado com o neutralizador.
Só utilize feixes de raios estreitos e bem concentrados, e
isso mesmo só quando não tiver alternativas. Não quero
que um setor amplo do território onde esteja sendo
erguidas nossas construções fique subtraído de repente aos
efeitos da gravidade. Se todas as cargas verticais perderem
sua posição estática, gastaremos várias semanas na
reconstrução.
— Não se preocupe — disse Bell com um sorriso
cordial. — Acho que não teremos necessidade de recorrer
a isso. Só carrego estas coisinhas comigo por uma questão
de tranqüilidade de espírito.
Foram para frente da nave. A massa humana recuara
um pouco, enfileirando-se como um muro compacto.
Rhodan aproximou-se. Reginald Bell seguiu-o.
— Vejo mil rostos estranhos — suspirou enquanto
caminhava.
Era o que Rhodan estava pensando. A maior parte
desses homens haviam sidos colocados ali durante a
expedição a Vênus. Quase todos viam Rhodan pela
primeira vez. Sentiu-se envolvido por uma onda de
reverência, desconfiança e insegurança. Até mesmo o
pensamento falso e traiçoeiro podia estar presente. Mas
Rhodan e Bell prosseguiram imperturbáveis. Agora, a uma
distância de cinqüenta metros, já tivera início um duelo
espiritual; os dois homens mais proeminentes da Terceira
Potência tinham de provar que realmente possuíam a
autoridade que corporificavam.
Perry Rhodan levou o jogo ao máximo. Sabia que a
essa altura nenhum exagero seria demasiado. Quando
chegou junto à massa, não parou. Prosseguiu como um
robô; Reginald Bell seguiu-o com a mesma obstinação.
A muralha humana recuou. Ninguém tocou nos dois
homens. Uma passagem estreita abriu-se diante deles.
Subitamente Rhodan parou.
— Quem é o chefe da seção?
Silêncio.
Rhodan encarou o homem que se encontrava mais
próximo.
— Será que você perdeu a língua?
— É o professor Morton — gaguejou o homem,
olhando em torno com uma expressão de insegurança.
— Desejo falar com o professor Morton! — disse
Rhodan com a voz alta. — Queiram abrir caminho.
Mais para os fundos houve uma movimentação. Todos
119
se afastaram para deixar o chefe de seção passar.
— Bom dia, professor. Sou Perry Rhodan. O que
houve?
— Não posso explicar. Parece que tudo não passa de
um mal-entendido, ou então é obra de um pequeno grupo
de fanáticos. Terei muito prazer em dar-lhe todas as
informações de que disponho. Mas ficarei muito grato ao
senhor se me der oportunidade de cuidar primeiro dos
feridos.
— Há um hospital nas proximidades. Por que ainda
não tomou nenhuma providência?
— Não disponho de autoridade para isso, senhor
Rhodan. Peço seu apoio.
— Ordene aos homens que retornem aos seus locais de
trabalho, professor. Não me importo de aguardar com as
minhas perguntas.
Morton transmitiu as instruções que acabara de
receber. Aos poucos os homens da frente foram recuando,
empurrando os colegas que se encontravam atrás. Bell
segurou um dos homens pela manga do paletó.
— Como é seu nome?
— Brian — respondeu o homem com a voz tímida.
— Muito bem, Brian. Você fica responsável pelos
feridos. Dentro de dois minutos deverá haver por aqui um
número suficiente de médicos e enfermeiros. Pode retirar-
se. Como é o seu nome?
— Schley.
— Schley, você será responsável pela remoção das
barricadas. Pegue quantos homens precisar. Quero que
termine em vinte minutos.
O homem desapareceu, proferindo um “sim senhor”
com a voz rouca. Mas não foi só este. De repente todos
pareciam empenhados em dar o fora o mais rápido
possível. Num instante toda a área foi evacuada. Rhodan,
Bell e Morton estavam a sós.
— Isto não deixa de ser uma arma — disse Bell com
um sorriso de satisfação.
— Uma arma psicológica — confirmou Morton. —
Fico-lhes muito grato. Há alguns minutos a situação ainda
era muito ameaçadora. Tudo começou há meia hora.
Encontrava-me...
— Não vamos entrar em detalhes, professor. Da central
e da nave observamos tudo. Se hoje ouvimos homens
acusarem-se mutuamente de serem possuídos pelos DIs,
isso parece muito perigoso, mas tudo indica que se trata de
uma reação de pânico em cadeia. Será que você tem base
para afirmar o contrário?
— De forma alguma, senhor Rhodan. Já lhe disse que
para mim tudo não passa de um mal-entendido.
— Foi o que você disse. Mas é o que pensa? —
interveio Bell.
— Não entendo.
— Se é que não me entende, será que tudo está bem
com você?
— Por que não estaria?
— Ora, professor. Há pouco você teve uma verdadeira
revolução. E agora vem nos dizer que tudo não passa de
uma bagatela. Talvez com isso queira livrar-se de nós.
Você é um dos possuídos, não é?
Morton ficou rubro de raiva. Demorou a encontrar as
palavras.
— Isso é um absurdo. Será que até o senhor está
apoiando essa campanha sub-reptícia?
Bell continuou, muito gentil.
— Não é nenhum absurdo, professor. Os DI sempre
procuram apossar-se das pessoas mais influentes. E no
posto trinta e sete a pessoa mais influente é você.
— No momento não, se é que me permite dizer isso na
minha modéstia. Se eu fosse um DI, já teria procurado
apossar-me do seu corpo ou, melhor ainda, do corpo do
senhor Rhodan.
— Teria saltado para nós?
— É o que minha lógica humana diz.
— O que acha Perry? Parece que tudo está em ordem
com ele, não é?
— Acredito que sim. Você passou pelo exame,
professor.
— Muito obrigado — Morton ficou aliviado. Mas seu
rosto também exprimiu certa perturbação. — Sua maneira
de examinar os homens é muito estranha. Gostaria de
conhecer o método.
— Se fosse um DI, nunca lhe teria passado pela cabeça
transferir-se do professor Morton para o corpo de Perry
Rhodan. Isso não é possível.
Caminharam até a muralha energética e viram que só
quatro pessoas haviam recebido ferimentos sem maior
gravidade.
Brian estava junto dos enfermeiros, conforme lhe fora
ordenado.
— Como vê, tive razão — disse Reginald Bell
satisfeito.
— Mais que isso. Você tinha a intenção de prender três
cabeças da revolução, mas não houve necessidade disso.
Tudo isso só demonstra o estado de ânimo que hoje deve
prevalecer em toda a humanidade. O resultado é a
insegurança, a desconfiança, a disposição para os atos
irrefletidos. Não temos tempo a perder, Bell; devemos
salvar a Terra do caos.
— É verdade! — confirmou Bell.
O sorriso já desaparecera do seu rosto largo.
— Tive muito prazer em conhecê-lo, professor —
prosseguiu Rhodan, estendendo a mão a Morton. — Mas
não quero que se sinta em segurança só porque o conflito
foi dominado com tamanha facilidade. Ainda existe a
possibilidade de que entre seus homens exista algum DI.
Não adianta ficar perguntando a todo mundo. O mais
importante é procurar os corpos abandonados daqueles
seres. Ainda hoje transmitirei instruções nesse sentido a
todos os grupos de trabalho situados fora da cúpula.
Espero que me avise pelo rádio quando tiver apurado algo
de concreto. A qualquer momento estaremos prontos para
revidar um golpe.
* * *
A Good Hope regressou para a cúpula energética. O
tenente Deringhouse pousou ao mesmo tempo que ela.
Não descobrira nada de suspeito durante sua missão de
reconhecimento aéreo.
— Uma missão de patrulhamento sempre é uma coisa
tediosa — procurou consolá-lo Bell. — Mas um dia colhe-
se a recompensa. Tem alguma ordem para Marshall e para
mim, Perry?
— Tudo continua conforme foi combinado. Primeira
escala: Chicago, em casa de Clive Cannon. Preciso de um
homem possuído e de um abandonado. Em Nova Iorque
você se encontrará com Homer G. Adams, que lhe prestará
ajuda no recrutamento da nossa força policial. Acho que
não preciso fornecer outros detalhes.
— Quanto ao resto saberei arranjar-me. Até a volta,
120
Perry.
— Boa sorte!
Depois que Allan D. Mercant e Tako Kakuta tinham
saído; também Reginald Bell e John Marshall
abandonaram sua nova pátria no deserto de Gobi.
Enquanto isso, Rhodan refletiu no seu escritório.
“Fico para trás. Sou o homem do segundo plano.”
Depois se levantou, endireitou o corpo e dirigiu-se ao
pavilhão onde o cérebro positrônico já o aguardava. A
palestra recomeçou no ponto em que terminara por ocasião
do alarma.
— Modulação, onda portadora, campo espectral
completo com valores elevados em angstrom.
— O velho detector dos arcônidas só pode determinar
o modelo cerebral — explicou o robô. — Já um telepata lê
os pensamentos. Sugere-se a construção de um
pseudotelepata.
Esse telepata artificial seria um detector completo de
ondas cerebrais.
Rhodan recordou a primeira carga da Good Hope, que
trouxera de Vênus uma série de robôs de trabalho
construídos segundo suas concepções. Entre eles havia
máquinas idênticas. Havia robôs-engenheiros cuja
capacidade ia da de um mecânico até a de um positrônico.
Ainda hoje seriam iniciados os trabalhos de construção
do primeiro modelo experimental. A Terra precisava do
detector telepático, para não ter que capitular diante dos
DI.
4
Quem passasse pela Michigan Avenue teria que
inclinar a cabeça bem para trás para enxergar o céu por
cima dos grandes edifícios.
John Marshall voltou a baixar o queixo, depois de ter
feito suas observações sobre Chicago em geral e a
Michigan Avenue em particular. Ele e Reginald Bell
tinham descido perto da esquina com a Congress Street e,
guardando certa distância, dirigiram-se ao hotel de igual
nome. Bell registrara-se no Congress Hotel com seu nome
completo, enquanto Marshall adotara o nome de John
Linker, embora ocupasse um quarto do sétimo andar, logo
ao lado do de Bell. Oficialmente não se conheciam.
Do lado que dava para o pátio interno do Congress
Hotel havia uma sacada que ocupava todo aquele lado. Era
verdade que uma parede alta e grossa de vidro fosco
separava a parte correspondente a cada apartamento, mas
não era necessário ser um grande alpinista para escalar
esse obstáculo.
As janelas vizinhas estavam escuras. John Marshall
arriscou a entrada no apartamento de Bell. Fechou as
cortinas e disse:
— Pronto! Já pode acender a luz.
Bell acendeu o abajur que se encontrava perto da
poltrona. Sugou a fumaça do cigarro que acabara de
acender e ofereceu o estojo ao telepata. Este se serviu em
silêncio e sentou.
— Afinal, o que há com Cannon? — perguntou Bell, já
que Marshall não demonstrou a menor pressa.
— Não estive com ele.
— Mas como?
— Peço-lhe que guarde seu juízo a meu respeito para
depois. Cannon está preso numa fortaleza. Para falar com
ele a gente tem de atravessar três antessalas, e cada uma
delas representa uma verdadeira corrida de obstáculos.
— Será que estou condenado a ouvir uma ladainha de
desculpas? — interrompeu Bell. — Afinal, para que serve
sua telepatia?
Marshall não se abalou.
— Pelo que se nota nas cercanias de Cannon, o homem
caiu numa armadilha dupla — informou.
— Você examinou essas cercanias?
— Afinal, minha missão de telepata consistiu nisso. E
descobri uma porção de coisas. Provavelmente essas
coisas são mais importantes que as que poderia ter
descoberto se tivesse falado com o chefão em pessoa.
— Faça o favor de contar.
— A cem metros do edifício Kreysky, que fica nesta
rua, do mesmo lado do nosso hotel, existe um restaurante
subterrâneo. Nesse restaurante estão os primeiros guardas.
Tanto os da polícia como os do Blue Bird Syndicate. Às
vezes até ficam sentados na mesma mesa, conversando
entre si.
— Será que é um acordo secreto?
— Não acredito. Ambas as partes conservam a linha.
Ficam brincando de gato e rato, e às vezes nem sabem
direito se foram reconhecidos uns pelos outros. Quase
chegaria a dizer que guardam uma desconfiança instintiva
entre si.
— Onde é que a coisa começa a ficar mais
interessante?
— No edifício Kreysky, evidentemente. E, o que é de
surpreender, também no prédio vizinho. O pavimento
térreo de ambos os imóveis foi construído para abrigar
lojas independentes. No edifício Kreysky existe um
autosserviço para a venda de sabonetes e cosméticos.
Além disso, há uma representação geral da Mix Centry.
— Essa gente instala seus motores em qualquer coisa
que possa rodar por aí.
— Isso mesmo. Cheguei a ver veículos de rua para
uma pessoa, lanchas e hélices individuais que cabem numa
pasta.
— Espero que não se tenha limitado a olhar, mas
também tenha procurado investigar pensamentos. A loja
da Mix Centry pode se tornar muito interessante para nós.
— Por quê?
— Adams manifestou um interesse bastante intenso
pelas ações dessa empresa. Por enquanto a usina continua
firme nas mãos do grupo Kreysky. Mas pelo que sei nossa
121
General Cosmic Company já conseguiu tirar suas
casquinhas. Mas continuemos! No edifício ao lado há uma
loja de cerâmica e decorações comerciais. Já passei por lá.
Acho que já chegou a hora de passarmos aos detalhes.
— Muito bem. Uma vez que já conhece as fachadas,
estará interessado em saber que na loja de cosméticos
trabalham duas agentes da polícia federal secreta. Uma
delas é supervisora, outra trabalha na caixa. No entanto, o
gerente só fica pensando em coisas tais como o Kreysky,
Cannon e umas ideias muito desligadas sobre eventuais
atacantes. O gerente do posto de vendas da Mix Centry
pertence à mesma categoria de pessoas. Há dois dias viu-
se obrigado a contratar outro empregado, já que a policia
prendeu um antigo colaborador seu. Quer dizer que o
velho está preso para investigações. O novo funcionário é
um agente que trabalha para Kaats. É bem verdade que
essa alteração no pessoal da empresa deu na vista, tanto
que o chefão desconfiou.
— Percebeu que o novo funcionário é um homem de
Kaats?
— Não chegou a tanto. Mas desconfia dele por uma
questão de princípio.
— Nesse caso não vamos dramatizar a situação. Como
estão as coisas nas outras lojas?
— Fiz uma lista, Bell — Marshall tirou um papel do
bolso e colocou-o sobre a mesa. — Na primeira coluna
estão registrados os nomes, na segunda a organização a
que pertencem: à polícia ou à gangue do Blue Bird. A
seguir vem a indicação de sua relação de emprego. Verá
que em quase todos os pavimentos encontrei pessoas
suspeitas. Principalmente no escritório de advocacia de
Smith & Smith, que fica logo ao lado.
— Ao que parece Kaats não conseguiu penetrar no
escritório de Smith. Os doze funcionários que trabalham
ali simpatizam com Cannon. Receio que, se começarmos
por ali, poremos as mãos numa casa de marimbondos.
Reginald Bell submeteu a lista a um exame demorado.
Finalmente levou o papel até a lareira, encostou a chama
do isqueiro e espalhou as cinzas.
— Quer dizer que existem vários círculos de bloqueio,
que se interpenetram. Cada um protege para fora, enquanto
outro procura penetrar para o interior e isolar. Kaats vigia
cada passo de Cannon. Será muito difícil sequestrá-lo.
— Por que não procura o apoio de Kaats?
Bell repeliu a idéia com um gesto.
— Uma série de negociações com a polícia consumiria
muito tempo e provavelmente não levaria a nada. Kaats
não é nenhum Mercant. Serve aos Estados Unidos da
América e nem chega a simpatizar com a Terceira
Potência. Quando muito utiliza as informações fornecidas
por Mercant, mas de resto a ambição leva-o a querer fazer
tudo sozinho.
— Então acredita que não concordaria em que
levássemos Cannon ao deserto de Gobi?
— Tenho certeza, Marshall. Portanto, elimine o
caminho mais fácil. Devemos seguir as instruções de
Rhodan. Uma colaboração de Kaats significaria uma
adaptação dos respectivos interesses.
— Quer dizer que teremos de agir fora da lei.
— Não se trata de respeitar determinadas normas
legais, mas de salvar toda a Terra dos DIs. E para isso só
podemos fazer uma coisa: cumprir as ordens de Rhodan.
— Concordo plenamente.
— Não esperava outra coisa. Afinal, você realizou um
trabalho preliminar muito valioso, criando condições para
a elaboração de um plano de combate bastante promissor.
Tenho na cabeça a relação que acabo de queimar. No
futuro recorreremos o menos possível a quaisquer registros
escritos. Mais uma pergunta: existe alguma suspeita de que
qualquer das pessoas observadas por você seja possuída
pelos DI?
— Não. Excluo essa possibilidade. Só temos um
conhecimento positivo disso em relação a Clive Cannon.
Acredito que os DI devem ter lançado seu ataque num
front bastante amplo, que se estende por toda a Terra. O
primeiro contingente invasor deve ter sido relativamente
fraco, motivo por que os indivíduos tiveram de ser
bastante espalhados. Aliás, para eles basta ocuparem as
posições-chaves. Cannon é o chefe da gangue Blue Bird,
cuja direção intelectual provavelmente é idêntica à do
Kreysky Syndicate. Todos os outros não desconfiam de
nada, e seguem suas instruções sem pestanejar.
— O.K.! Vamos ao que importa. Pelo que acaba de
dizer, o edifício vizinho é bastante suspeito, por estar
ocupado pelos gângsteres. Já notou que o escritório de
advocacia de Smith & Smith fica à mesma altura que a
secretaria do Kreysky Syndicate?
— É verdade. As coisas combinam tão bem que
podemos ter certeza de que encontraremos uma ligação
entre os dois edifícios. Só resta saber de que lado nós
devemos começar.
— De ambos os lados ao mesmo tempo. Além disso,
você fica encarregado de entrar em contato com Clive
Cannon. Enquanto isso, eu darei uma olhada no pessoal de
Smith & Smith.
No dia seguinte John Marshall compareceu ao edifício
Kreysky trinta minutos antes do início do expediente.
Assim mesmo teve de esperar, pois havia dois cavalheiros
que tinham levantado antes dele.
De início não se importou, ainda mais que resolveu
fazer um exame da vida psíquica dos dois indivíduos.
“...fui o primeiro. Terminarei antes do meio-dia...
Falar pessoalmente com Cannon... estará de bom humor?
Trago uma recomendação do secretário... Posso ameaçá-
lo com a GCC. Em Nova Iorque Adams compra tudo em
que consegue pôr as mãos. Mesmo empresas duvidosas...
Será que já posso fumar? Antes disso devia comer alguma
coisa... Tolice! Cannon terá que dar-se por satisfeito com
as condições que vou oferecer. Os Kreysky não deviam
bancar os importantes. Se não quiserem ser engolidos pela
GCC, precisarão de toda substância que conseguirem
assimilar... mesmo que as condições não sejam tão
favoráveis... É claro que ontem ficou muito tarde.”
No cérebro do homem ao lado um problema financeiro
parecia ocupar o lugar de maior destaque.
O outro homem encontrava-se mais afastado. Marshall
teve dificuldades em alcançar a área dos seus fluidos.
Acabou se levantando e andando pela sala, como se
estivesse profundamente entediado. Ainda de pé, remexeu
num montão de jornais, e assim conseguiu estabelecer um
contato telepático de primeira ordem. Não só isso: também
era muito precioso.
“...esse jovem parece um executivo. Roupa muito
elegante. Deve ser uma pessoa de influência, do contrário
não andaria por aqui... Mas o dinheiro do seu carro deve
ter saído do bolso do velho...”
John Marshall não se sentiu muito lisonjeado. Mas no
momento não lhe interessava o que os outros pensavam
dele. A próxima série de pensamentos provou que havia
algo melhor.
122
“...ordens são ordens. Gostaria de ver como Kaats me
dará cobertura. É uma estranha forma de execução num
estado de direito... Tomara que não me submetam a uma
revista muito detalhada. Da terceira vez devo dar um jeito
de chegar ao chefão... Este rapaz deixa a gente nervoso.
Talvez ele mesmo esteja nervoso. Por que não senta?...
Evidentemente, se Cannon é um dos possuídos, nada me
poderá acontecer. Cabe exclusivamente a Kaats decidir
como se elimina uma fera dessas. Além disso todas as
portas estão trancadas... Nada me pode acontecer... Nada
me pode acontecer... Devia ler um pouco...”
— Com licença! — disse o policial e pegou um dos
jornais que talvez pertencessem ao montão que Marshall
parecia ter reservado para seu uso exclusivo.
— Pois não!
John Marshall pegou o jornal que segurava na mão e
dirigiu-se à sua poltrona.
Não conseguiu concentrar-se na leitura. O homem
sentado naquela poltrona era um policial. Recebera a
incumbência de matar Cannon e hoje faria sua terceira
tentativa de penetrar no santuário do Kreysky Syndicate.
Quem sabe se Kaats já teve a intenção de guiar-se pelos
desejos de Mercant.
Provavelmente com o tempo o encargo de vigiar um
único possuído representaria um peso muito grato. Um DI
morto era um DI bom. Provavelmente haveria algumas
centenas deles perambulando pelo país, e seria necessário
cuidar de todos eles com os meios dos serviços de
identificação.
Sob essa perspectiva o coronel Kaats não deixava de
ter razão.
Acontece que até então Clive Cannon era o único
homem possuído pelos DI que havia sido identificado com
alguma segurança. Por isso era uma pessoa muito
importante para ser abatida sem mais aquela.
John Marshall percebeu que Bell tivera toda razão ao
desaconselhar qualquer tipo de colaboração com a polícia
federal secreta. Os interesses e os planos da Terceira
Potência eram ligeiramente diferentes. Era bem verdade
que o fato de que Marshall deveria depender cada vez mais
de si mesmo, representava um consolo muito fraco.
Lembrou-se da pasta que continha vários instrumentos de
origem arconídica, e que lhe serviriam de proteção num
perigo extremo. Mas teria de fazer o possível para evitar
seu uso, a fim de não provocar suspeitas.
Além disso, seria necessário modificar os planos
primitivos. Ninguém contara com a possibilidade de um
atentado. O próprio Bell, que pretendia dar uma olhada no
escritório de advocacia Smith & Smith, não tinha a menor
idéia de que a situação se modificara dessa fora. Por isso
mesmo Marshall não poderia seguir um caminho
inteiramente novo. Enquanto os ponteiros iam se
aproximando das nove, esforçou-se para ordenar seus
pensamentos. Ficou satisfeito em ter mais um prazo, já que
o outro cavalheiro foi convidado a entrar antes dele.
Com pequenos intervalos apareceram mais cinco
visitantes que depois de um ligeiro cumprimento sentaram
e pegaram os matutinos.
Marshall procurou fazer uma ronda disfarçada num
passeio inofensivo, mas teve dificuldades em sondar os
pensamentos dos homens que se encontravam tão
próximos uns aos outros. As impressões sobrepunham-se.
Tudo indicava que um dos cinco simpatizava com o
policial e estava informado sobre sua missão. Mas
Marshall não conseguiu descobrir qual deles era. Aquela
gente nem chegou a trair-se por meio de ligeiros olhares.
Estavam bem treinados e não assumiam o menor risco.
Bem, era claro que para um golpe desses Kaats devia ter
destacado os melhores elementos de que dispunha.
“Brown será o seguinte”, foi o pensamento nítido que
surgiu de repente. Então o nome do policial era Brown.
A recepcionista voltou a aparecer e convidou Brown a
entrar.
Os nervos de Marshall quase chegavam a arrebentar de
tamanha tensão. O assassino contratado iria subtrair-se ao
seu controle. Nem sequer poderia vigiá-lo com os olhos.
Será que teria de perder a oportunidade?
Se os agentes de Kaats matassem o homem possuído
pelos DI na sua presença, Bell e Marshall levariam um
sabão daqueles quando retornassem ao deserto de Gobi.
Além disso, tal ato representaria uma grande vitória para
os DI, mesmo que por algum tempo perdessem uma
posição importante.
Era imprescindível impedir a execução dos planos de
Kaats.
Marshall teria de concentrar-se, evitando qualquer tipo
de pânico interior.
O policial Brown ainda não poderia estar perto de
Cannon. Enquanto o primeiro visitante não saísse, Brown
teria de lutar obstinadamente pelo seu objetivo nas três
antessalas. Talvez nem conseguisse chegar à posição de
tiro.
Quem sabe se chegaria a conseguir?
Marshall sentiu que deveria eliminar esta última
restrição. Representava um consolo produzido pelo desejo,
que não podia merecer a menor confiança.
A porta abriu-se e o primeiro visitante saiu com uma
expressão nada satisfeita no rosto.
A porta fechou-se.
Ninguém convidou Marshall a entrar. Decidiu tomar a
iniciativa.
Levantou-se e bateu à porta. Entrou sem esperar pelo
convite. A moça sentada atrás da mesa era a recusa e a
indignação personificadas.
— Aqui não é costume entrar sem ser convidado. Peço-
lhe que espere lá fora até que chegue sua vez.
— Já está na minha vez, senhorita.
— Não espere outras explicações de minha parte,
cavalheiro. Tenho minhas instruções. Recomendo-lhe que
se adapte às peculiaridades desta casa. Aliás, o senhor já
foi anunciado? Posso verificar se para o senhor vale a pena
esperar.
— Essas palavras não foram apenas francas, mas
descorteses, senhorita — respondeu Marshall com uma
expressão de ironia no rosto e, num movimento suave,
tirou a agenda das mãos da recepcionista. — Não fui
anunciado, tal qual a morte não é. E tal qual a morte
ninguém me pode pôr para fora. Será que a senhorita
entendeu a comparação?
No rosto da recepcionista lia-se o pânico. Como uma
das colaboradoras mais chegadas do círculo de Clive
Cannon, porém, pertencia à classe das pessoas que se
distinguem pela inteligência e capacidade de decisão.
Alarma! Era este o elemento principal dos pensamentos
que se atropelavam em sua cabeça. Mas hesitou. Era muito
comum que por ali aparecessem blefadores que recorriam
a falas imponentes para forçar a entrada. Chegou a hesitar
tanto que Marshall teve de animá-la.
— Não se acanhe em apertar o botão da campainha,
senhorita! Não perca tempo, se é que está interessada em
123
salvar a vida de seu chefe.
— Cavalheiro...!
Marshall procurou frustrar a iniciativa da moça com
um movimento semelhante ao que executara pouco antes.
Mas ela foi mais rápida. Não anunciou sua decisão através
de uma série de pensamentos que pudessem traí-la; agiu
imediatamente.
Marshall defrontou-se com o cano de uma pistola.
— Suas brincadeiras vão longe demais. Já que
escolheu um tema macabro, vamos prosseguir por esta
forma. Saia imediatamente!
— Não está mesmo interessada em salvar a vida de
Clive Cannon?
— Acho que ela não corre o menor perigo, enquanto o
senhor não conseguir chegar perto dele.
— É engano, senhorita! A vida de seu chefe correrá
perigo assim que o capitão Brown entrar na sua sala. E,
para evitar qualquer dúvida, quero realçar que Brown
entrou bem à minha frente. Só faço votos de que ainda
esteja numa das antessalas. Pelo que estou informado, não
foi anunciado diretamente a Cannon; apenas vem com uma
recomendação de certo secretario. Será que falei bastante
claro para fazer com que a senhorita dirija sua atenção ao
lugar certo?
— Um momento.
A recepcionista levantou-se e abriu apressadamente a
porta.
— Lem! Onde está o cavalheiro que eu lhe trouxe por
último?
— Acabo fazê-lo avançar mais uma casa — respondeu
uma voz masculina vinda da peça contígua.
— Fale imediatamente com Mac Phan e faça-o esperar
mais um pouco. Tenho uma notícia muito importante para
o chefe. Não permita em nenhuma circunstância que esse
homem se aproxime dele.
Marshall ouviu um arrastar de cadeira e uma voz que
emitia um som de surpresa. De qualquer maneira as
instruções foram cumpridas. Outra fechadura abriu-se.
— Desculpe a interrupção, Bill. Peça a esse cavalheiro
que aguarde mais cinco minutos. O chefe está recebendo
um telefonema importante e não pode ser perturbado.
— Quando o chefe fala pelo telefone, eu fico sabendo.
— O telefonema vem diretamente da central. Portanto,
você está informado.
O homem que a recepcionista chamara de Lem surgiu
na antessala.
— Agora você vai fazer o favor de explicar o que
significa isso, Marge!
— Quem vai explicar é este cavalheiro. Ele ainda está
me devendo à mesma explicação.
— Meu nome é Linker — disse John Marshall com
uma ligeira inclinação do corpo. — Podemos ter certeza de
que o capitão Brown não se aproximará do senhor
Cannon?
— Meu nome é Steinberg — disse o homem cujo
prenome era Lem, com a mesma cortesia. — O que tem
para nos contar?
— Gostaria que antes respondesse à minha pergunta,
Steinberg. No momento o senhor Cannon se encontra em
segurança?
Marshall já o sabia face aos pensamentos de seu
interlocutor. Até sabia que Cannon fora prevenido por uma
lâmpada de advertência vermelha, ativada a partir da mesa
de Steinberg, de que alguma coisa não estava em ordem.
Por isso o sistema de travamento automático da porta não
seria liberado antes que o perigo tivesse sido eliminado.
Marshall sabia tudo isso. Acontece que ali não poderia
revelar sua qualidade de telepata, motivo por que tinha de
formular perguntas como qualquer homem normal.
Steinberg deu um sorriso irônico.
— Você faz perguntas muito estranhas, Linker. É claro
que Clive Cannon está em absoluta segurança. Justamente
por isso você terá que se dar ao incômodo de relatar tudo.
— Reviste o capitão Brown. Encontrarão uma pistola,
provavelmente até mais de uma. Penetrou aqui com a
finalidade de matar Cannon.
— Ora! Você diz que Brown é policial. O fato é que
manteve contatos comigo como representante de uma
empresa privada. E hoje não foi a primeira vez. Como
pode afirmar que pertence à polícia?
— Não só pertence a ela, mas está agindo a seu mando.
— Linker, imaginei que você fosse mais inteligente.
Então a polícia estaria tramando um assassinato! E ainda
espera que eu acredite que faz isso oficialmente.
— Fornecerei os detalhes ao senhor Cannon. Há esta
hora já deve ter compreendido que são muito importantes.
A expressão de ironia no rosto de Steinberg aumentou.
— Se está interessado em convencer-nos da sua
ingenuidade, Linker, pode ficar tranqüilo: já o conseguiu.
Apenas receio que o senhor Cannon não o queira receber
hoje, nem qualquer outro dia. Mas sente por um instante.
Vamos cuidar do capitão Brown.
Steinberg transmitiu ordens a várias pessoas através do
interfone. Dali a pouco houve uma verdadeira invasão.
Cinco homens saíram da segunda antessala, onde deviam
ter entrado por um corredor lateral. A seguir o capitão
Brown foi introduzido no recinto. Seus pensamentos
revelavam que se sentia descoberto. Mas seu rosto não
traía nada.
— Revistem estes homens — ordenou Steinberg.
John Marshall notou que receberia um tratamento tão
ríspido como o que era dispensado a Brown. A revista
pessoal realizada em sua pessoa até parecia dar mais
resultado. Enquanto o capitão só trazia três armas comuns,
umas delas artisticamente costurada no forro do paletó, nas
roupas de Linker foram descobertos instrumentos que
ninguém ali sabia para que servissem, mas que por causa
de suas formas estranhas tinham um aspecto bastante
perigoso.
— Hum! — disse a recepcionista. — Acho que
encontramos um par muito interessante.
— Também acho. É claro que estes bonecos nunca vão
confessar que trabalham juntos. Mas terão tempo para
refletir sobre isso. Queira explicar para que serve isto!
— Não vou explicar coisa alguma. Estes instrumentos
são meus e vocês nada têm que ver com eles.
— Vamos confiscar essa sua propriedade, até que o
chefe decida a respeito. Knox será que você dispõe de dois
quartos separados e bem seguros para os dois?
Um dos cinco homens armados deu um sorriso.
— Sempre temos lugar para umas belezinhas como
estas, Steinberg. Permite que os leve logo?
— Protesto! — indignou-se o capitão Brown. — Vocês
não podem privar um homem de sua liberdade pelo
simples fato de carregar armas a serviço do Estado.
Previno-os de que estão assumindo uma posição ilegal,
que pode sujeitá-los a um castigo bem pesado. Se tiverem
alguma coisa contra mim, ajam dentro da lei. Estou pronto
a prestar declarações perante qualquer corte de justiça
regular.
124
— Acredito — interveio Marshall. — A promotoria
sempre vai defender as posições sancionadas pela polícia.
Mas você vai pagar pelo fato de eu ter sido identificado
com suas intenções. E quem vai fazer você pagar serei eu;
assim que conseguir sair daqui. Disponho dos meios, e
também disponho de relações para isso. Basta olhar sobre
os instrumentos que estão em cima daquela mesa. Nossos
amigos não têm a menor idéia do que venham a ser, muito
menos sobre a maneira de lidar com eles.
O homem chamado Knox, que carregava a pistola
automática, aproximou-se para olhar de perto os
instrumentos de Marshall. Chegou a estender a mão para
pegar o neutralizador.
— Deixe de ser tolo! — gritou Marshall a plenos
pulmões. — Não ponha a mão nisso, se não quiser fazer
desta casa seu túmulo.
A advertência parecia tão exagerada que quase chegava
a dar a impressão do ridículo. Mas Steinberg continuou a
falar objetivamente.
— Que instrumentos são estes, Linker? Serão armas?
— São armas, sim. E quero dirigir a todos a
advertência que acabo de fazer a Knox. Faço-a no seu
interesse e no meu.
— Explique-se melhor.
— Não há nada a explicar. Não vim dar aulas a você.
Ainda acontece que estes instrumentos são muito caros
para vocês.
— São de procedência terrena? — Steinberg atirou
verde, para colher maduro.
— Vejam só! — John Marshall procurou dar à sua voz
um tom de tranqüila ironia. — Já começa a compreender.
Continue a pensar. Com toda essa inteligência, você
acabará descobrindo um dia.
— Picaremos com você até que resolva falar.
— Isso é chantagem! E provavelmente ainda furto e
cárcere privado. Acha que Cannon está de acordo com
isso?
— Acredito que sim.
— Em absoluto! — a voz saiu abruptamente dos alto-
falantes. — Mande os homens embora, Steinberg. Prenda
Brown e traga Linker à minha presença.
— Sim senhor!
Pelo comportamento daqueles homens Marshall
concluiu imediatamente que quem acabara de falar não era
outro senão Clive Cannon. Dentro de poucos segundos a
sala ficou vazia. Lem Steinberg fez um gesto convidativo.
— Faça o favor, linker!
John Marshall estava esperando.
— Você esqueceu uma coisa — disse com um sorriso,
apontando para o neutralizador e o projetor mental.
— Não sei se o senhor Cannon estará de acordo em
que você leve isso.
— Estou de acordo, Steinberg, desde que Linker nos
garanta que você vai trazer esses instrumentos e os
colocará sobre minha mesa.
— De acordo — confirmou John Marshall.
Clive Cannon recebeu-o como se fosse um velho
conhecido.
— Sente Linker. Queira servir-se.
Marshall olhou para o estojo em que havia uma dezena
de cigarros de marcas diferentes. Escolheu um.
— Para deixá-lo logo a par, Linker, quero informá-lo
de que ouvi sua palestra na primeira antessala.
Acompanhei o diálogo. Mas a apresentação, se é que posso
falar assim, tomou um rumo nada sério, motivo por que
prefiro que os entendimentos prossigam aqui.
Marshall esforçou-se para conseguir uma pausa para
captar alguns detalhes dos pensamentos a que Cannon não
deu expressão. Mas, se pensava que reconheceria ao
primeiro lance um homem deformado pelos DI, sentiu-se
decepcionado.
— Além disso — prosseguiu Cannon — o que acaba
de ser dito não foi apenas confuso, mas também muito
estranho. Poderia dar-me uma explicação?
Cannon lançou um olhar sobre o neutralizador e o
projetor mental. Seus pensamentos formularam definições
bem reconhecíveis. Marshall viu nisso um primeiro indício
de que Cannon assumira a identidade de um DI. Um ser
humano, e sendo um habitante dos Estados Unidos jamais
reconheceria esses instrumentos.
— Serei breve, Cannon. Nas antessalas infelizmente
me vi condenado a fornecer explicações extensas, que não
levavam a nada. Conforme já deve saber, há meses Perry
Rhodan procura recrutar pessoas competentes para formar
um núcleo sadio de onde sairá a população de seu Estado.
Para isso já estebeleci contatos bem proveitosos. Tudo isso
por um bom dinheiro, é evidente. É por isso que estou
aqui. O incidente com o capitão Brown não fazia parte do
programa. De qualquer maneira, só hoje de manhã tive
conhecimento das intenções da polícia. Por isso
infelizmente não pude deixar de dramatizar minha
presença.
— Apesar de tudo estou perplexo — disse Cannon. —
Além de não saber o que a polícia pode ter contra mim,
acho muito estranhável que a justiça seja administrada por
essa forma.
— Hoje em dia até costumam ter alguma coisa contra
os homens mais pacatos, Cannon. Não preciso explicar a
influência que a invasão dos DI exerceu sobre a mente dos
homens. Por isso não é de admirar que algum funcionário
do escalão médio dê ordens para matar este ou aquele
cidadão. O medo dos DI pode justificar qualquer
assassinato.
— Medo dos DI! Isso é muito interessante —
respondeu Cannon, fazendo de conta que nada tinha que
ver com isso. Mas sua mente desenvolvia uma atividade
febril.
“Descoberto? Terei sido descoberto? O que estará
pensando esse Linker? Será que faz parte do jogo? Isso
seria muito complicado. Não é possível que Linker saiba.
Se simpatizasse com a polícia, não os teria impedido de
me matarem.”
— Por que iriam suspeitar justamente de mim?
— A palavra justamente está fora de lugar. Hoje em
dia suspeitam de qualquer pessoa. Basta, por exemplo, que
ela tenha aparecido em um mau sonho. Parece que todo
mundo perdeu a razão. Só nos resta um consolo: dentro de
pouco tempo nossa tecnologia nos ajudará a vencer tudo
isso. Estão iniciando a construção de aparelhos que
permitem a identificação de qualquer pessoa possuída
pelos DI.
Mais uma vez o pânico tomou conta da mente de Clive
Cannon. Era muito pior do que seria num homem que se
encontrasse em situação idêntica. A essa altura Marshall já
tinha certeza de que Clive era um possuído e que o caráter
dos DI não era nada heróico.
— Estão dando início à construção — observou Clive
com um sorriso de dúvida, como se lamentasse que ainda
não se dispusesse desses aparelhos. — Quando nossa
tecnologia chegar lá, os DI já terão completados a
125
conquista da Terra. Não tenha a menor dúvida!
— Não seja tão pessimista! — objetou Marshall. — É
claro que uma coisa dessas não pode ser feita de um dia
para outro, mas com os recursos dos arcônidas, de que se
dispõe no deserto de Gobi, poderemos contar com um
resultado positivo dentro de poucas semanas. A Terceira
Potência está empenhando todas as forças na solução do
problema. E um dia encontrará a solução.
— Um dia... será amanhã?
— Amanhã não. Mas aposto que não demora mais que
uns dois ou três meses. Até lá a humanidade tem de
agüentar, e até lá qualquer um de nós terá de contar que
algum maluco o mate. Ninguém está seguro.
— Ninguém — repetiu Cannon em tom pensativo.
Sua exaltação de DI diminuíra sensivelmente. Já
namorava outros planos, onde a tecnologia da Terceira
Potência ocupava um lugar de destaque. Marshall captou a
seguinte série de pensamentos: “dentro de dois meses
estarão em condições de reconhecer um DI. Logo, a
Terceira Potência terá de ser conquistada dentro de dois
meses.”
— Ninguém. De qualquer maneira, fico-lhe muito
grato. Hoje você salvou minha vida.
— Fiz isso no meu interesse — Marshall procurou
minimizar a importância de seu ato. — Afinal, gostaria de
fazer negócios com você.
— Isso já é uma conversa mais agradável. Que
negócios seriam esses?
— Conhece Homer G. Adams e a General Cosmic
Company?
— Andam dizendo por aí que a Terceira Potência está
atrás disso. Por que fala justamente no meu concorrente
mais feroz?
— Porque a concorrência é uma coisa boa. Vamos
abrir o jogo, Cannon. É verdade que Adams é um dos
nossos melhores homens. Chega a ser bom demais.
Compreendeu?
— Não posso dizer que tenha compreendido.
— A Terceira Potência é antes de tudo um instrumento
político. Precisamos da eficiência econômica,
corporificada sob a forma da GCC. Mas no momento em
que pensa em tornar-se independente torna-se perigosa
para nós. Queremos dividir nossa indústria entre duas
empresas equivalentes. Precisamos oferecer uma figura
gêmea ao nosso gênio financeiro. Cannon, você seria
capaz de fazer concorrência a Homer G. Adams com a
nossa ajuda?
— Isso representa um grande desafio. É uma pergunta
que não pode ser respondida de supetão.
Realmente era uma pergunta difícil. Apesar disso, os
dois homens chegaram a um acordo naquela mesma
manhã. Marshall teve todos os motivos para orgulhar-se de
sua tacada diplomática. Não chegou a pedir que Cannon o
acompanhasse numa viagem ao deserto de Gobi: foi
Cannon que pediu. Insinuou-se com o fanatismo de um
homem possuído pelos DI que pretendia conquistar o
território da Terceira Potência para impedir a invenção de
certo instrumento.
— Não sei — disse Marshall com a voz insegura. —
Não tenho competência para decidir se posso levá-lo
comigo. Segundo os planos de Rhodan, você manteria seu
escritório e todo o complexo do Kreysky Syndicate, para
construir sobre essa base.
— É exatamente o que penso. Continuaremos a
trabalhar aqui em Chicago e mostramos a Adams que não
está só no mundo. Mas você há de compreender que
preciso obter alguma orientação. Preciso colher uma
impressão das coisas imensas que se ouve falar a respeito
do deserto de Gobi. Tenho de saber para quem vou
trabalhar. O lugar que me foi destinado justifica um
contato pessoal com Perry Rhodan.
— Compreendo seu ponto de vista, Cannon. Dê-me um
dia, para que possa entrar em contato com minha gente.
Voltarei amanhã à mesma hora e lhe trarei a decisão de
Rhodan. Se for positiva, gostaria de decolar
imediatamente.
— Estarei pronto, Linker.
* * *
No hotel, Bell e Marshall entraram em contato pelo
rádio. Não era aconselhável realizar uma demonstração de
alpinismo na sacada à plena luz do dia.
Bell teve a decência de reconhecer que falhara por
completo. Em compensação sentiu-se consolado pelo êxito
de Marshall.
— Sabe que Cannon não desconfia de nada?
— Não desconfia de que tenho a intenção de atraí-lo
para o deserto de Gobi. Mas de resto desenvolve uma
atividade que nos poderá custar a vida.
— Não vá me dizer que em tudo isso existe um ponto
fraco.
— Um ponto muito fraco. Você terá de ir a Nova
Iorque ainda hoje, Bell. Cannon planeja um ataque contra
Adams.
— Ele lhe disse isso?
— Pensou. Com toda nitidez. Um possuído de nome
Porter entrará em contato com ele e marcará encontro em
Staten Island, onde um DI autêntico estará à espera, para
apossar-se dele. Acho que você devia estar presente
quando isso acontecer.
— É claro que estarei presente. Partirei dentro de uma
hora. Quando é que esse misterioso Porter tomará o avião?
— Hoje de tarde. Você ainda dispõe de algum tempo.
Os DI não agirão antes do escurecer.
— O.K.! Se tudo der certo, dentro de vinte e quatro
horas conduzirei um DI autêntico à presença de Rhodan.
Será um achado importante.
— Nem tanto — disse Marshall, dando uma risada. —
Cannon pretende levar seu corpo. Pensa em levar uma
bagagem enorme. Gostaria de saber qual será o conteúdo
declarado.
— Por que será que vai levar seu verdadeiro corpo, que
só pode traí-lo? Além disso, não é necessário que o mesmo
se encontre nas proximidades quando surgirem
complicações. Pelo que diz Crest, o retorno pode ser
realizado a uma distância muito grande.
— Mas não o salto para o corpo de outro homem.
— Qual é o significado de tudo isso?
— O sujeito tem um plano muito simples. Assim que
estiver no interior da cúpula, pretende deixar o corpo de
Cannon e saltar para o de Rhodan.
Reginald Bell ficou devendo a resposta por algum
tempo.
— Marshall! Estamos brincando com fogo! Não deixe
de avisar Rhodan.
— É o que eu pretendo fazer. Boa viagem! Dê
lembranças a Adams.
126
5
Realmente a mala de Clive Cannon tinha o tamanho
descomunal que seria de esperar face às informações de
Marshall.
— O quê? Pretende carregar tudo isso, Cannon?
O chefe da gangue Blue Bird deu um sorriso.
— Está pensando que carrego vinte e quatro dúzias de
camisas, não é?
— Seria antes tentado a pensar que fosse um jacaré.
Como sabe, ainda não existe nenhum jardim zoológico no
deserto de Gobi. Se pensa em dar um presente a Rhodan,
deve pensar em outra coisa.
— É um presente. Mas não vou trocá-lo mais. Acredito
que Rhodan ainda tenha conservado o sentimento do
romântico.
— Você me deixa curioso. Um esquife pode ser uma
coisa romântica, mas um defunto seria um presente de mau
gosto. Abra logo, Cannon! Estou interessado em conhecer
sua idéia.
Cannon abriu a tampa da mala. Viu-se uma réplica de
cerca de dois metros da Stardust, que fora a primeira nave
terrena a bordo da qual Rhodan atingira a Lua.
— Não estou em condições de oferecer uma maravilha
técnica ao seu chefe. Os arcônidas são melhores
fornecedores para esse tipo de produto. Mas isto aqui é um
monumento digno de um homem como Rhodan. É
romântico, sim. Fale com franqueza, Linker. Será que
Rhodan vai gostar, ou será que vai achar que sou um
esquisitão? Não quero causar uma impressão desfavorável.
Você compreende?
Por um instante John Marshall sentiu-se perturbado.
Piscou os olhos e passou a manga do paletó pelo rosto.
Finalmente esboçou um sorriso.
— Posso tranqüilizá-lo, Cannon. Em matéria de
romantismo, Perry Rhodan não fica atrás de você. Mande a
mala ao aeroporto. No deserto de Gobi haverá um lugar
condigno para a Stardust.
Foram ao aeroporto.
Parecia antes uma excursão despreocupada de fim de
semana. Não foram acompanhados por qualquer escolta
armada. Numa das pistas laterais do aeroporto, um
pequeno avião particular estava à espera. Os membros da
Terceira Potência dispunham de um aparelho desses em
qualquer uma das maiores cidades da Terra. A grande
mala já fora colocada no compartimento de carga.
John Marshall , pilotou o avião. Quando atingiu a
altitude de vinte mil metros, ligou o piloto automático e
reclinou-se confortavelmente. Por algum tempo os dois
homens conversaram sobre assuntos banais. Era uma
conversa igual à que todo mundo costuma entreter sobre as
condições atmosféricas e os tempos difíceis. Uma
conversa insignificante, já que nenhum dos dois estava
disposto a falar abertamente sobre as coisas importantes
que lhes enchiam o espírito. Marshall tinha a vantagem de
poder sondar os pensamentos de seu interlocutor. Encenou
um bocejo e disse que havia dormido mal.
— Ainda dispomos de duas horas. Bem poderíamos
aproveitar para um cochilo.
Clive Cannon aceitou a sugestão e calou-se. O silêncio
fez com que os pensamentos se desenvolvessem em toda a
plenitude.
Marshall sentiu um calafrio.
Seria um homem que se encontrava a seu lado? Ou
seria um monstro?
Muito antes da decolagem já sabia o que vinha a ser
esse esquife que imitava a Stardust. Havia dois esquifes! O
que se encontrava a bordo não representava uma simples
imitação de foguete. Continha uma das metades de Clive
Cannon, a que lhe faltava para ser um homem de verdade.
E continha o corpo do Deformador Individual, que
representava a prisão do espírito humano de Cannon.
Até esse espírito emitia suas radiações, embora o
recinto em que se encontrava o forçasse a uma situação de
morte aparente. Não podia defender-se nem manifestar-se.
Mas vivia e sentia a prisão representada por aquele corpo
monstruoso. Disse ao telepata que se encontrava num
inferno que nenhuma palavra de qualquer língua humana
poderia descrever.
John Marshall aguardava ansiosamente que a hora de
pouso chegasse. Sentiu os limites de sua resistência
mental. Mais duas ou três horas de confinamento naquele
recinto minúsculo com os pensamentos martirizantes e
ameaçadores dos dois seres que haviam trocado de corpo o
teriam levado à loucura.
Finalmente chegaram ao deserto de Gobi. Ao território
soberano da Terceira Potência.
Seguiram-se os contatos habituais e a regulagem
positrônica para a penetração na cúpula energética, que só
seria aberta por alguns segundos. O jato pousou na
vertical.
Perry Rhodan transmitiu as últimas instruções.
Destacara poucos homens para recepcionar o avião
procedente de Chicago: o Dr. Manoli, o Dr. Haggard e o
teleportador Ras Tshubai.
— A palestra será conduzida por mim — voltou a
explicar Rhodan. — Só intervenham quando eu lhes der
ordem para isso. E, o que é mais importante, não peçam a
Cannon que mostre seu estranho presente. Se o fizerem,
ele se verá obrigado a agir. Prefiro que o momento em que
isso deverá acontecer seja escolhido por mim. Apenas faço
questão de que se mantenham vigilantes, conservem o
autodomínio e estejam prontos para atirar a qualquer
instante. Não deixem Cannon perceber que reconheceram
o monstro encerrado em seu corpo.
O visitante foi recebido com honras de chefe de
Estado; apenas faltaram os jornalistas e o desfile militar.
Enquanto Rhodan acompanhava Clive Cannon ao seu
escritório, dois robôs aguardaram até que os dois tivessem
desaparecido no interior do edifício. Após isso, dirigiram-
se ao compartimento de carga do aparelho que acabara de
pousar e, com o cuidado que lhes era peculiar, retiraram a
enorme mala. Colocaram-na numa barraca próxima e,
seguindo as ordens recebidas, ficaram de sentinela nas
imediações.
Nesse meio tempo, os dois homens haviam chegado ao
escritório de Rhodan.
— Pelo que sei nosso amigo já lhe explicou os pontos
fundamentais.
— Só assim consegui convencer Cannon a aceitar o
posto de que se trata — disse John Marshall.
— É verdade — disse o homem possuído pelos DI. —
Em linhas gerais estou orientado e disposto a aceitar o
cargo que me destinam. E quero agradecer pela
oportunidade de conhecer pessoalmente o grande centro,
que já se tornou legendário.
— Seu desejo era perfeitamente plausível, Cannon.
127
Como sabe, concordei imediatamente. Todavia, há de
convir que na situação atual a Terceira Potência adote
algumas medidas de segurança.
— O que quer dizer com isso?
— Qualquer visitante é submetido a um exame, para
que se verifique se não está possuído por um DI.
— Naturalmente. Linker já me falou a respeito disso.
Pelo que diz, dentro de poucas semanas construirão um
aparelho que lhes permitirá detectar imediatamente
qualquer infiltração de um DI.
Esta frase deu início ao duelo.
Clive Cannon e a substância estranha que se
encontrava em seu interior estavam num estado de
extremo alarma. O sinal fora dado. Uma cadeia de reações
múltiplas comprimia-se numa fração de segundo.
O medo inato da morte existente no DI procurou
ocultar-se atrás da tranqüilidade do corpo humano. Mas o
choque era forte demais. Clive Cannon não pôde deixar de
enrijecer na poltrona e lançar um olhar martirizado para o
lado.
Viu cinco pistolas apontadas para ele.
Como que resignado, reclinou-se na poltrona e voltou a
oferecer um aspecto descontraído.
— Que susto, Rhodan! Quer fazer uma demonstração
do seu método?
— Não é uma demonstração, mas uma aplicação. É
claro que não podemos deixar de examiná-lo. Se for um
homem normal, nada lhe acontecerá. Mas se houver um DI
dentro de você nós o agarraremos dentro de poucos
minutos.
— Com essas pistolas? — riu Cannon.
— Isso mesmo! — confirmou Rhodan. — Antes que
atirássemos o DI teria de abandonar o corpo humano para
retornar ao seu próprio corpo. E o verdadeiro espírito de
Cannon, que seria trocado, nos revelaria tudo.
— É verdade. Mas o DI teria escapado.
— Talvez não, Cannon. Continuemos no seu exemplo.
Admitamos que seu corpo de DI se encontre depositado
nas proximidades. Nesse caso seria de supor que o DI se
lançasse imediatamente a um ataque a outro homem.
Escolherá o homem mais importante que se encontra à
disposição. Eu, por exemplo.
— Naturalmente. Como exposição teórica tudo isso é
muito interessante.
— Procure acompanhar meu raciocínio. O que poderia
fazer a Terceira Potência para se proteger contra um
ataque desses?
— Não sei. Para ser franco, nunca me ocupei com esse
tipo de idéia. É verdade que ouço as notícias de hora em
hora e costumo ler os jornais.
— Pois eu lhe direi. Teríamos de localizar o corpo
originário do DI. Teríamos de vigiá-lo para matá-lo no
momento adequado. Com isso repeliríamos o ataque
contra minha pessoa e livraríamos a humanidade de um
observador.
A observação telepática realizada por Marshall foi
acompanhada de grandes dificuldades, pois havia gente
demais por perto. No entanto, nessa altura da palestra a
atividade cerebral de Cannon se intensificara tanto que
suas emissões se colocaram em primeiro plano.
— É verdade — disse Cannon lentamente e sem muita
convicção. — Teriam de localizar o corpo do DI e matá-lo.
Todos viram que Cannon tremia. Todos esperavam a
mudança de seu ego. Mas ao que parecia o monstro
também estava interessado em receber informações. A
exposição de Rhodan assustava-o e cativava-o ao mesmo
tempo. Ainda hesitava.
— Ainda haveria outra possibilidade — explicou
Rhodan em tom de mistério. — O DI poderia desistir de
qualquer outra atividade e se entregaria. Com isso salvaria
a vida.
Clive Cannon soltou uma risada estridente e
descontraída.
— Para isso você teria de saber onde está seu corpo.
Como vai encontrá-lo?
O chefe da Terceira Potência apontou para uma fileira
de botões que havia em sua mesa.
— Veja! Se eu comprimir um destes botões, surgirá um
impulso que desencadeará a atividade de dois robôs. Esses
robôs sabem atirar. Neste instante estão postados perto da
grande mala que, segundo você diz, contém o objeto com
que quer me presentear.
Para o DI o dilema estava completo.
Levantou-se de um salto, deu um grito desumano e
precipitou-se em direção a Perry Rhodan.
* * *
De Chicago a Nova Iorque só era um pulo.
O avião de Reginald Bell aterrizou pelas dezesseis
horas. Depois de cumprir, a formalidade junto às
autoridades do aeroporto pediu a um carregador que
levasse sua volumosa bagagem ao Cumberland Hotel,
onde pediu um apartamento.
Após, dirigiu-se imediatamente ao edifício da GCC.
Sentiu-se contente porque iria rever Homer G. Adams, que
era um homem pequeno, com uma cabeça grande e muito
inteligente. r
Foi recebido por Lawrence, secretária de Adams.
Cumprimentaram-se efusivamente.
— Boa-tarde, senhor Bell. Que bom vê-lo por aqui.
Mandarei preparar um bom café.
— Está bem. Mas não seria preferível servi-lo no
gabinete do chefe?
— Ah, sim, o chefe. Hoje o senhor Adams já fez três
viagens de negócios com uma extensão média de
quinhentos quilômetros. Terá de esperar um pouco. Vivo
dizendo a ele que está exagerando; já não é tão jovem
assim.
— Acha um elogio deste muito diplomático?
— Nem sei se no caso dele a diplomacia adianta
alguma coisa. O senhor Adams sempre faz exatamente
aquilo que acha certo. Não se deixa influenciar por
ninguém.
— Nem mesmo por uma mulher bonita?
— Ora, senhor Bell! Que intimidade!
Os dois riram e combinaram que Reginald Bell tomaria
seu café na sala de Lawrence. A secretária também serviu
biscoitos e pediu a Bell que contasse o que havia.
— Daqui a pouco. Antes gostaria de saber aonde
Adams foi e quando deve voltar.
— Bem, hoje já veio aqui por duas vezes um sujeito
que lhe quer apresentar um artefato pronto para ser
patenteado. Não sei nada sobre os detalhes de ordem
técnica. Mas ao que parece é uma novidade muito
promissora, coisa que geralmente não se pode dizer dos
inventores que diariamente aparecem por aqui. Há quinze
minutos o chefe voltou de Albany. O homem já estava
esperando há algumas horas. Por isso logo saíram juntos.
Pretendiam ir a Staten Island.
Bell saltou na poltrona.
128
— Staten Island? Tem certeza?
— Absoluta. Isso é tão importante?
— Sabe o nome do sujeito?
— Espere aí! É Porter.
— Ora, Porter! Que diabo! Sabe que esse Porter é um
homem possuído pelos DI? Vamos embora! Não temos um
segundo a perder.
Arrastou Lawrence para o primeiro elevador e subiu à
cobertura. Abriu a porta de um helicóptero da companhia e
empurrou a moça para dentro dele. Só voltou a falar depois
de ter colocado a máquina no rumo sudoeste.
— Staten Island é muito grande. Adams fez alguma
indicação mais precisa sobre o lugar?
— Só disse que iriam a Relling Docks. É tudo que sei
— disse a moça com a voz ofegante. Ainda trazia muitas
perguntas engatilhadas, mas estava tão nervosa que não
conseguiria dizer nada que fizesse sentido. A idéia de que
seu chefe poderia estar prestes a cair nas mãos dos DI foi
um choque tremendo.
Bell explicou em poucas palavras o que soubera em
Chicago.
— Fizemos um erro de cálculo. Supúnhamos que
Porter também sairia de Chicago. Agora sei que reside em
Nova Iorque, o que lhe permitiu comparecer ao seu
escritório assim que recebeu as instruções de Cannon.
Enquanto isso ainda fui almoçar tranqüilamente em
Chicago.
Atravessaram a Upper Bay.
— Conhece isto aqui? — perguntou Bell.
— Siga mais pela direita, em direção â Newark Bay.
Vê aquele telhado vermelho? Deve ser por ali.
O helicóptero desceu. Reconheceram navios, barcos,
automóveis e gente. Mas ainda não tinham notado que
aquela gente estava fugindo.
Só depois de terem pousado perceberam que se
encontravam numa verdadeira fornalha do inferno.
Centenas de trabalhadores, inclusive mulheres, corriam
para o oeste, dominados pelo pânico.
— Que diabo! O que é isso?
Bell abriu a capota de vidro plastificado. Subitamente
viu um homem pendurado no helicóptero.
— Vamos! Vou com o senhor. Decole logo, se preza a
vida.
— Um momento! O que está havendo por aqui?
— O que está havendo? — disse o homem com uma
risada histérica. — O que está havendo é que os DI
acabam de aterrisar. Ali, atrás daquele pavilhão. Vamos
logo, homem! Não fique fazendo perguntas.
Subindo ao caixilho da porta, o homem brandiu uma
barra de ferro.
Homer G. Adams não desconfiara de nada.
Diariamente apareciam inventores por ali. Geralmente
tratava-se de gente amalucada, que há vinte anos vinham
sacrificando diariamente umas três ou quatro horas do seu
lazer para descobrir o perpetuum mobile. Porter parecia
mais objetivo. Além disso, não falou no perpetuum mobile,
mas numa câmara de combustão eletrônico-dinâmica que,
utilizando as linhas de energia existentes no espaço
cósmico, proporcionava uma economia de cerca de
noventa por cento da energia suprida pela nave.
Adams só percebeu a armadilha quando já era tarde.
Porter introduziu-o num pavilhão.
— Meu laboratório fica aqui. Dentro de poucos
minutos estará convencido.
Atrás da porta não havia nada que se parecesse com um
laboratório. O pavilhão estava vazio. Sua decoração
consistia apenas em cinco Deformadores Individuais, que
se aproximavam a passos lentos e comedidos.
Adams não teve tempo de assimilar em sua mente
analítica a impressão ótica daquele quadro monstruoso. Os
corpos de formato quase humano de quatro braços e duas
pernas, as cabeças de inseto com os olhos salientes — tudo
isso perdeu seu significado sob os efeitos do ataque mental
que foi desencadeado imediatamente. Adams não sabia
qual dos cinco seres procurava penetrar em seu interior.
Apenas sentiu a dor cruciante que penetrou em seu cérebro
que nem um escalpelo e parecia desmanchá-lo.
Percebeu que caiu ao chão, mas não sentiu o impacto.
Logo um saber estranho misturou-se à dor.
Era um sentimento de triunfo.
“Pegamo-lo. Você é nosso. Pegamos Homer G. Adams.
A cidade de Nova Iorque é nossa. Você irá para onde eu
mandar.”
Ao mesmo tempo em que estava deitado de costas,
Adams permanecia de pé, inclinado sobre seu próprio
corpo. Pouco importava que esse paradoxo não pudesse ser
verdadeiro. E pouco importava que o corpo estendido no
chão pertencesse ao homem, e o que se encontrava de pé,
ao Deformador Individual. O que importava era que tinha
uma dupla visão de si mesmo.
As imagens sobrepunham-se e penetravam-se como as
de um filme submetido a dupla exposição. O olho do
homem refletia-se nos milhares de entrelaçamentos do
olho facetado do DI. Adams até se esqueceu da dor
provocada pela indefinição do seu ego. Viu-se a si mesmo
numa ânsia de conquista. Também se viu num pânico, que
fez com que quisesse voltar e se precipitar para o nada.
A hora do ataque aberto dos Deformadores Individuais
à cidade de Nova Iorque havia chegado.
Sabia qual era o momento combinado. Os DI e os
homens possuídos.
Porter percebeu a movimentação. Saltou para o caos e,
usando o pânico fingido, lançou o caos entre os homens.
Os DI seguiram-no. Quatro desses seres saíram do
pavilhão. Ainda não era o ataque mental. Apenas quiseram
agir através de sua figura monstruosa. E conseguiram-no.
Nesse instante o duelo entre Adams e o DI não teve
mais testemunhas. Estavam a sós, e cada um lutava com as
armas que a natureza lhe dera. Lutaram por três minutos.
Fisicamente o homem era mais robusto. Mesmo que já
tivesse deixado a juventude para trás e fosse de estatura
pequena e cabeça grande.
As mãos de Adams penetraram profundamente na
carne do inimigo. Uma substância córnea estalou sob seus
dedos, um líquido vermelho-escuro correu pelo chão de
pedra cheio de sujeira.
A dor desapareceu. O monstro estava morto.
Adams levantou-se exausto. Num movimento
instintivo limpou o terno. O raciocínio dirigiu-se a
objetivos mais concretos. Ao perigo que ameaçava Nova
Iorque. Sabia o que os DI sabiam e agiu em conformidade
com isso.
As docas de Relling estavam desertas. Um porto
abandonado em meio ao crepúsculo. Ao longe algumas
sereias uivavam.
Milhares das posições mais importantes da metrópole
foram ocupadas pelos DI. Do prefeito ao chefe de polícia,
do chefe de empresa ao coordenador das emissoras de
rádio.
129
Números extras dos jornais estavam sendo preparados.
Neles se avisava que a saída da cidade ou a divulgação de
notícias não permitidas eram proibidas sob a pena de
morte. Um anel começou a fechar-se em torno da cidade.
Por quanto tempo ainda estaria aberto?
Adams sabia que não tinha um segundo a perder.
A volta a Manhattan representaria uma perda de tempo
irreparável.
Pegou um carro estacionado junto ao pavilhão e fugiu
em direção ao sul. Em algum lugar encontraria um avião...
* * *
— Senhor Bell! — gritou Jeanette Lawrence,
apontando para a frente.
— Deixe de ser idiota! — berrou o homem com a barra
de ferro. — Ainda não percebeu o que está acontecendo?
Reginald Bell percebeu. Sabia que nessa altura seria
inútil procurar Homer G. Adams. No cais viam-se
Deformadores Individuais. Não eram centenas; apenas
quatro. Mas esses quatro foram suficientes.
— Vamos! Entre logo! Comprimiram-se na cabina
feita para duas pessoas. Bell decolou.
Quando pousaram na cobertura do edifício da GCC, o
inferno estava às soltas nas ruas. Exército e polícia
patrulhavam os desfiladeiros de concreto de Manhattan.
Subitamente a distinção entre o homem e o possuído pelos
DI perdera todo sentido. O poder estava nas mãos dos DI.
— Não compreendo! — Jeanette Lawrence estava
chorando. — Não é possível que milhões de invasores
tenham penetrado na cidade.
— Acontece que algumas centenas são suficientes. Se
estes ocuparem as posições-chaves da estrutura política e
econômica, a massa estará impotente.
— Toda a população de Nova Iorque contra algumas
centenas? — A pergunta terminou numa risada histérica.
— Pronto. Sente e respire profundamente. Enquanto
isso procurarei explicar por que não temos o poder. Os DI
conhecem-se uns aos outros. Mas nenhum homem pode ter
certeza de que o outro é um elemento leal. As pessoas
sadias estão desunidas.
— Mas nós dois sabemos que nenhum de nós foi
possuído. Por que não transmite uma mensagem a
Rhodan?
— Porque não é possível. Enquanto vínhamos para cá,
você ouviu as instruções do prefeito.
— E o senhor pretende segui-las? Por causa da pena de
morte? Francamente, senhor Bell, eu pensava que o senhor
fosse mais corajoso.
— O que adianta a coragem contra a violência técnica?
Não faça drama, Lawrence. Tentei estabelecer contato pelo
rádio. Parece que você não percebeu. Não consegui.
Lawrence lhe lançou um olhar de pavor. Não se
conformava com sua atitude resignada.
— O senhor é um DI, não é? Está possuído, senhor
Bell. É claro! Só pode ser isso.
— Deixe de tolices! Venha comigo.
Foram ao gabinete de Adams. Pôs o rádio a funcionar e
chamou Perry Rhodan. Esperaram por alguns minutos.
Não houve resposta.
— Compreende agora? — gemeu Bell. — A proibição
não passa de uma formalidade. Os DI estudaram nossa
mente por bastante tempo para poderem prever nossas
reações. Cobriram Nova Iorque com uma cúpula
energética.
— Tal qual Rhodan fez no deserto de Gobi?
— Em princípio, sim. Mas pode ser que sua estrutura
seja diferente. Pelo que diz Crest, em nossa galáxia não
existe nenhuma inteligência que saiba montar cúpulas
energéticas iguais às dos arcônidas. Além disso, nossa
experiência só demonstra que as ondas de rádio esbarram
num obstáculo. Isso só prova que a cúpula energética
absorve as chamadas freqüências de rádio no espectro
eletromagnético. Falta verificar se a cúpula pode deter a
matéria.
— Pois vamos verificar.
— Como poderíamos fazer isso?
— Com o helicóptero, por exemplo.
— Para sermos abatidos? Ou para esbarrarmos numa
muralha invisível e cairmos?
Lawrence olhou-o desesperada.
— Quer dizer que tudo está no fim. Bell sacudiu a
cabeça.
— Se agir com a mesma coragem que acaba de exigir
de mim, não estará.
— O que devo fazer?
— Ser valente e agüentar firme. Aqui mesmo, em
Nova Iorque.
— Pretende fugir sozinho? Senhor Bell, em certa
ocasião o senhor Adams me falou em certas hiperondas
arconídicas. Pelo que diz, funcionam no espaço
pentadimensional.
— Sei. Acontece que os respectivos emissores só
existem na Good Hope, no deserto de Gobi e em Vênus.
Ouça Lawrence. Pesei todas as possibilidades. Fugirei
sozinho e levarei a notícia da conquista de Nova Iorque.
Sou o único homem que dispõe dos necessários recursos
técnicos.
— Que recursos são esses?
— Um traje arconídico. Já ouviu falar a respeito, não
ouviu?
A moça arregalou os olhos.
— Sim, senhor Bell, já ouvi. Dizem que no momento
só existem dois trajes desse tipo. Um deles se encontra em
poder de Perry Rhodan...
— ...e o outro está em meu poder. Aqui mesmo, em
Nova Iorque. Possui um campo energético capaz de
desviar as freqüências visuais e as frequências de rádio.
Quando sair de Nova Iorque, estarei invisível.
6
— Mas que diabo, não atirem! — gritou Perry Rhodan.
Deu um salto para o lado. O pulo de Cannon foi
terminar de encontro à mesa. Quando se voltou, viu
novamente as pistolas diante de si. Hesitou. Também
hesitou em realizar o salto para o corpo do DI. Não viu
qualquer saída.
Marshall, que captara seus pensamentos, explicou:
— Você ainda tem uma terceira alternativa, conforme
Rhodan acaba de explicar. Pode entregar-se. Pelas leis
terrenas, um prisioneiro não é morto enquanto cumprir as
instruções de seu custodiador.
Cannon lançou um olhar indagador para Rhodan.
— Quais são suas intenções?
— Queremos negociar com você. Se chegarmos a um
entendimento satisfatório, estarei disposto que volte para
junto dos seus na qualidade de enviado nosso. É claro que
130
não poderá fazê-lo na condição de homem.
— Por que não permite que retorne logo ao meu corpo?
— Por que na forma em que se encontra está mais bem
guardado. Então, qual é sua decisão?
— Você vai estabelecer condições, não vai?
— No momento não estou em condições de esclarecer
este ponto. As decisões são tão importantes que prefiro
não tomá-las sozinho. Nossa palestra será conduzida em
presença do cérebro positrônico.
Mais uma vez alguma coisa se revoltou no corpo de
Cannon.
— Você está planejando alguma traição, Rhodan.
— Não julgue os outros por si, Cannon. Já deve
conhecer o funcionamento de um cérebro robotizado. Se
tivesse a intenção de matá-lo, não precisaria fazer tantos
rodeios.
Clive Cannon acenou com a cabeça.
— Está bem; aceito. Mas gostaria que fosse o mais
rápido possível.
— Neste ponto estamos de acordo. Eric e Ras, levem-
no ao pavilhão e esperem por mim.
O Dr. Eric Manoli e Ras Tshubai levaram Cannon.
Ao ver-se sozinho com o Dr. Haggard e John Marshall,
Rhodan perguntou:
— O que andou pensando, John? Será que o sujeito
está tramando alguma traição? Sabe das minhas intenções?
— Quais são suas intenções?
Nem mesmo Marshall com seus dons telepáticos
conseguia romper o bloqueio mental de Rhodan.
— Estou pensando em negociar com os DI, se é que
existe uma possibilidade para isso. Sei perfeitamente que
os invasores não suspenderão sua agressão com vistas ao
destino de um único desses seres. O mais importante é a
pesquisa do cérebro possuído pelo DI. Examinaremos
Cannon e realizaremos medições em seu corpo sem que
ele o perceba. Ou será que percebeu alguma coisa?
— Não; neste ponto não suspeita de nada.
— Muito bem. Vamos!
Estavam prestes a sair do escritório quando o radio
receptor foi ativado automaticamente.
— Adams chamando Rhodan, Adams chamando
Rhodan. Peço confirmar recepção para que possamos
iniciar imediatamente a troca de mensagens.
Perry Rhodan deu um salto em direção ao quadro de
comando do emissor.
— Aqui Rhodan. O que houve Adams?
— Graças a Deus! Preste atenção! Estou no Canadá,
mais precisamente a cinqüenta graus de longitude oeste,
junto à via férrea Quebec—Winnipeg.
— Como foi parar nesse lugar? Isso fica praticamente
na selva.
— Tome nota do que segue Rhodan: vi-me obrigado a
fugir de Nova Iorque. A cidade foi ocupada pelos DI, que
a dominam completamente. A partir de ontem de tarde,
todas as notícias vindas de Nova Iorque passaram pela
censura deles. Deve tomar providências imediatas; se
possível, mande-me buscar aqui. Tive de roubar um velho
avião a hélice; o combustível acabou.
Perry Rhodan recebeu as notícias alarmantes com uma
tranqüilidade extrema. A reação de um robô não poderia
ser mais objetiva.
— Pode dar informações mais detalhadas sobre a
situação em Nova Iorque?
— Não. Os DI procuraram apossar-se de mim. Tive
que desaparecer. Fugi imediatamente por Staten Island, em
direção ao sul.
— Os DI procuraram apossar-se de você? —
Subitamente havia uma nota de desconfiança na voz de
Rhodan. — Gostaria de saber como conseguiu subtrair-se
à influência deles.
— Fique tranqüilo, Rhodan. Tudo está em ordem
comigo. Acho que você teve boas razões para me admitir
no seu exército de mutantes. Meu cérebro, que, pelo que
dizem, é fotográfico, possui capacidades que só ontem vim
a conhecer. Encontrava-me a sós com o DI. Foi uma luta
honesta. O sujeito não conseguiu apossar-se de mim. Ao
que parece meu ego depende realmente das células de
memória do meu cérebro. Ficou grudado em mim e não
quis sair. Quando o DI se lançou ao ataque, cheguei a ter a
impressão de que já tinha sido dominado. Já via através
dos olhos facetados. Sabia o que pretendiam os DI.
— Um instante! Você acaba de dizer que não conhece
a situação em Nova Iorque.
— Nem podia conhecer. Tive que dar o fora. Mas acho
que existe uma diferença entre os planos dos invasores e a
situação atual da cidade.
— Não seja tão pedante, Adams. Quais eram os planos
do inimigo?
Homer G. Adams relatou o que sabia. E isso foi
suficiente para os homens de Gobi. Enquanto falava,
Rhodan pensou nas medidas que devia tomar.
— Existe a possibilidade de que os DI o tenham
seguido?
— Não acredito. Se me tivessem visto, não teriam
deixado que saísse de Nova Iorque.
— Se é assim, aguarde. Mandarei Ras Tshubai buscá-
lo. Posteriormente fornecerei indicações sobre as medidas
a serem tomadas em relação a Nova Iorque. Mantenha seu
rádio ligado para a recepção. Aliás, em Nova Iorque por
acaso ouviu falar em Bell?
— Não. Por quê? Ele ia para lá.
— Isso mesmo — disse Rhodan em tom preocupado.
— E chegou a ir. Mais um motivo para nos preocuparmos
com o destino da cidade.
— Não seja por isso. Já me encontro na altura do fosso
japonês.
Era a voz de Reginald Bell.
— Santo Deus, Bell. Tudo bem com você?
— Tudo bem.
— Não esteve em Nova Iorque?
— Venho de lá. O traje arconídico me ajudou a sair.
— Vocês não são mesmo de brincadeira. Você deve
chegar dentro de meia hora aproximadamente, não é?
— Isso mesmo.
— Pois bem. Nossa conversa termina aqui. Tenho uma
coisa importante a fazer.
* * *
Um cérebro positrônico construído pelos arcônidas
dispõe de estágios finais para vários tipos de resposta.
Pode transmitir os resultados através de alto-falantes, fitas
escritas, fitas magnéticas, fitas fotográficas, cartões
perfurados de origem terrena ou, o que vem a ser a mesma
coisa, através de uma série de impulsos gravados numa fita
plástica. A gama disponível para a formulação de
perguntas é a mesma. Isso permitiu a Perry Rhodan operar
por dois caminhos distintos.
Falou pelo microfone as perguntas formuladas em
concordância com Clive Cannon. Mas o trabalho mais
131
importante, consistente na divisão seletiva do cérebro do
DI no corpo humano, foi convertido em símbolos através
do teclado.
Dessa forma obtinham-se, no espaço de vinte minutos,
dois resultados distintos. Um deles foi exibido ao
prisioneiro de Rhodan.
— Como vê, o cérebro é incorruptível. No momento
não valeria a pena fazer de você nosso emissário. O medo
e a boa vontade não bastam para isso. Acho que devemos
ter paciência por mais alguns dias, para ver se não ocorre
uma alteração no front que predisponha seus companheiros
para as negociações.
Cannon conformou-se com seu destino. Se é que
percebeu alguma coisa, foi a situação de impotência em
que se encontrava. Foi levado por dois robôs.
Para os amigos Rhodan teve um olhar de otimismo.
— Leiam isto!
Era a fita escrita que trazia o resultado do exame
realizado no DI.
— Encontramos a solução — constatou o Dr. Haggard
depois de um instante de silêncio. — Meus parabéns,
Rhodan.
— Ainda não é a solução final para a construção de um
aparelho telepático de alcance total. Ao que parece, isso
não fica ao alcance da nossa tecnologia. Mas no momento
podemos dar-nos por satisfeitos com o setor especializado
que corresponde ao cérebro dos DI. Foi o que
conseguimos. Nas três fórmulas que estão escritas aqui,
encontramos tudo de que precisamos. A base de tudo
continua a ser o detector arconídico de ondas cerebrais.
Ainda hoje introduziremos os dados em cinco robôs. Estou
convencido de que dentro de vinte e quatro horas teremos
em mãos o primeiro modelo.
— Nossos robôs vão fazer isso?
— Sim, nossos robôs — disse Perry Rhodan com um
sorriso. — Evidentemente serão os que trouxemos de
Vênus. Conseguirão. Se não acreditar, doutor estou
disposto a apostar.
— Agradeço! Seu otimismo parece ser muito realista.
— Muito bem. Nesse caso poderemos examinar o
corpo do DI, que no momento abriga o ego do verdadeiro
Clive Cannon. Mas acabo de me lembrar de uma coisa. Já
faz algum tempo que não temos notícias de Mercant, não
é?
— Ele ainda dispõe de três dias.
— De qualquer maneira acho que os acontecimentos
que se desenrolaram justificam um contato imediato.
Rhodan chamou a base do Conselho Internacional de
Defesa, situada na Groenlândia. Mercant atendeu.
— Alô, Rhodan. Alguma novidade?
— Alô, Mercant. Aqui houve algumas novidades. Mas
comecemos por aí. No caminho de volta você pretendia
visitar Adams.
— Isso mesmo. Será amanhã.
— Deixe disso. Nova Iorque encontra-se em poder dos
DI.
— Não brinque!
— Não estou brincando. Adams e Bell foram às únicas
pessoas que ontem conseguiram escapar.
Mercant fungou.
— Escute aí! Há meia hora conversei com meus
colegas de Nova Iorque.
— E as respostas que você recebeu passaram pela
censura dos DI. Não se faça de mais bobo do que é,
Mercant. Regresse imediatamente ao nosso território. E
traga todos os homens que conseguiu recrutar para nossa
causa.
— São exatamente trezentos e quatro.
— Isso basta. Providencie para que aterrisse aqui
dentro de vinte e quatro horas o mais tardar.
— Como queira. Até a vista.
— Até a vista.
* * *
Homer G. Adams reclinou-se no assento do avião sem
combustível para cochilar um pouco. Subitamente
sobressaltou-se. Não sabia por quê. Só sabia que alguma
coisa havia despertado uma reação em seu cérebro.
Olhou para o chão, depois subiu às asas do avião, para
ter uma visão mais ampla. Do zênite ao horizonte não se
via nada de suspeito. Só pastagens, extensões infinitas de
capim, nenhum homem, nenhum animal. Dali a dois
quilômetros via-se a linha férrea. Nada se modificara. Só
lhe restava esperar. Dormir e talvez sonhar.
Teria sonhado? Qual seria a origem das suas dúvidas?
Nunca tivera qualquer problema de memória. Essa
auréola grudara-se nele desde os tempos de escola.
Bastava-lhe ler um poema para sabê-lo de cor. Olhava uma
série de fórmulas matemáticas e guardava-as na memória.
Acostumara-se a tudo isso e acabara aceitando aquilo que
diziam ser um gênio como um fato consumado.
E agora se sentia tomado de dúvidas?
Adams deu alguns passos por entre o capim e
regressou.
Começou a refletir na sua tarefa. Era uma tarefa que no
fundo era idêntica a de uma especulação de bolsa.
“Fui um DI. Isso mesmo. Em Staten Island parte do
meu ser foi possuída pelos DI. Olhei através de um olho
multifacetado. Sabia o que o inimigo sabia. Mas continuei
a ser Homer G. Adams, e dei cabo do monstro. Não
conseguiram dominar-me. Nem destruíram minha
memória fotográfica. Como homem, continuo a ser o
mesmo.”
De repente soube!
Parte da mente do DI continuava no seu interior.
Fortemente reprimida. Era muito estranho para ele, que
nunca esquecia nada. Estava ali como se fosse uma
sombra. No subconsciente.
E surgiu a nova pergunta, que não poderia estar
imbuída de maior dose de autocrítica.
“Por que fui justamente ao Canadá? Para fugir dos
Estados Unidos, onde os DI estavam desencadeando sua
invasão maciça?”
Não havia lógica nisso. Os DI não se incomodavam
com as fronteiras traçadas pelo homem.
“O que me atraiu para o Canadá? Para estas terras de
pastagem, onde o grau cinquenta de latitude cruza com o
grau oitenta e cinco de longitude? Terá sido o
subconsciente?”
Adams procurou reprimir essas ideias, que
contrariavam as concepções geradas por sua mente
humana. Mas sentiu-se inclinado a ficar atento a elas.
Havia alguma coisa dentro dele.
Fechou os olhos e procurou concentrar-se ao máximo.
Por alguns minutos ficou sentado assim, na sombra do
avião. Depois se levantou como que num estado de transe
e caminhou em direção à linha férrea. Eram dois
quilômetros.
A dúvida transformou-se em certeza. De repente soube.
Soube o que o DI trucidado deixara em sua memória.
132
Os nichos! A cada cem metros havia um nicho no
aterro da linha férrea. Um deles ocultava a entrada para a
caverna artificial.
Adams caminhou com a segurança de um sonâmbulo.
O primeiro nicho era o que procurava. Havia um
mecanismo oculto. Uma parede de concreto afastou-se,
deixando livre uma passagem sem degraus, que prosseguia
num declive suave.
Mais de duzentos corpos aparentemente sem vida.
Nenhuma sentinela. Só os egos aprisionados dos homens
de corpos trocados tremeluziam no seu martírio psíquico
sobre os meandros cerebrais daqueles seres monstruosos.
Adams voltou. Antes que chegasse ao avião, surgiu o
aparelho de Ras Tshubai, que vinha buscá-lo.
7
O reencontro de tanta gente importante até mereceria
uma festa.
Allan D. Mercant voltara da Groenlândia, trazendo
trezentos e quatro voluntários para a força policial da
Terceira Potência. Por sugestão de Rhodan, desistira da
escala em Nova Iorque. De qualquer maneira Homer G.
Adams, que era a pessoa que Mercant pretendia visitar, já
havia chegado ao deserto de Gobi. Assim os dois tiveram
oportunidade de se cumprimentarem sob a proteção da
cúpula energética.
A palestra, conduzida em termos corriqueiros, cessou
no momento em que Rhodan entrou na sala. Os diversos
grupos abriram caminho para deixá-lo passar. O chefe da
Terceira Potência teria algo a lhes dizer..
— Companheiros! Procurarei ser breve. Tomei
conhecimento das informações recebidas por intermédio
de vocês. Pelo quadro geral da situação concluo que não
nos resta muito tempo para inverter a corrente a nosso
favor, a favor do planeta Terra. Não pudemos exercer a
necessária vigilância das pessoas mais importantes do
globo terrestre, porque não dispomos de telepatas em
número suficiente. Um ataque lançado pelo menos com
duas naves permitiu ao inimigo colocar em nosso planeta
um número desconhecido de Deformadores Individuais.
Sabemos que depois da destruição de sua base situada no
Tibet conseguiram instalar outros pontos de apoio. Até
chegaram a controlar uma das maiores cidades do mundo.
A população de Nova Iorque está isolada do resto do
mundo, embora se procure enganar o público, dizendo que
tudo está normal. Vocês já devem ter percebido como o
inimigo é perigoso.
Rhodan pôs a mão no bolso e tirou um instrumento que
a maior parte dos presentes já conhecia em suas linhas
gerais. Apenas o formato exterior havia recebido algumas
modificações insignificantes.
— Já conhecem o detector de modelos cerebrais.
Aquilo com que sonhamos há muito tempo, ou seja, o
aperfeiçoamento do aparelho para transformá-lo num
detector de tipos de freqüência, acaba de ser conseguido,
embora em escala limitada. A definição exata de um
cérebro humano possuído pelos DI tornou possível ao
cérebro positrônico, fornecer em curto prazo, dados novos
que se revelaram úteis ao aperfeiçoamento tecnológico.
Este aqui é o detector de freqüências aperfeiçoado. Ele nos
permite identificar instantaneamente, por simples leitura,
qualquer homem possuído pelos DI. Já fiz a experiência
com nosso prisioneiro, Clive Cannon. Dentro de alguns
minutos, vocês terão oportunidade de ver o aparelho em
funcionamento, para se convencerem de sua eficiência.
Mercant, os trezentos e quatro candidatos que desejam
ingressar em nossa força policial estão estacionados junto
ao posto quarenta e dois, não é?
— Sim, Rhodan.
— Iremos todos até a saída nordeste do território
bloqueado. Utilizaremos a nova ferrovia local. Capitão
Klein, você se encarregará da cúpula energética.
Manteremos contato sobre a faixa de ondas ultracurtas.
Bell, você ficará de plantão junto ao rádio.
Bell confirmou com um ligeiro aceno de cabeça.
— Vamos! — disse Rhodan.
Os trezentos e quatro candidatos já haviam entrado em
forma. Aguardavam o momento de entrar no território
bloqueado pela cúpula energética. Rhodan transmitiu um
aviso telegráfico a Klein, que retirou a cúpula energética.
Para proteger o território central, os três caças patrulharam
toda a área. Tinham ordens para abrir fogo sem aviso
contra qualquer pessoa que tentasse penetrar no núcleo da
Terceira Potência sem que tivesse sido convidada. Além
disso, mais de cem robôs armados desfilavam diante da
fronteira subitamente desguarnecida.
No caminho Rhodan dera instruções detalhadas a
Mercant.
— Seus homens deverão passar pelo posto quarenta e
dois em fila de um. Deverão passar por mim a uma
distância não superior a cinco metros. Se entre eles houver
um possuído pelos DI, darei um sinal. Prenda-o
imediatamente.
Mercant foi o único que se dirigiu à área externa a fim
de transmitir aos seus homens as necessárias explicações.
Todos eles eram homens inteligentes e bem treinados.
Dentro de dois minutos teve início o desfile dos aspirantes
a policial.
Fizeram continência, como se estivessem num desfile
militar. Rhodan agradecia, respondendo aos olhares que
lhe eram dirigidos.
John Marshall contava automaticamente. Encontrava-
se a um passo de Perry Rhodan.
— 257, 258, 259, 260, 261...
O engasgo de Marshall e o movimento do ponteiro do
detector foram simultâneos.
— Aquele louro alto — disse Rhodan, dirigindo-se a
Mercant. — Prenda-o.
— Tenente Pirelli! Faça o favor de vir até aqui.
O tipo nórdico de nome italiano estremeceu
ligeiramente. Marshall cochichou:
— É um deles!
Pirelli hesitou.
— Que diabo, tenente! — berrou Mercant, que de
repente ficou furioso. — Quer um convite escrito? Você
está atrasando tudo. Continuem! 263...
Pirelli obedeceu. A marcha daqueles homens
prosseguiu.
— Um instante, tenente! Seu rosto me faz lembrar uma
pessoa que já vi. Daqui a pouco quero falar com você —
disse Rhodan e logo voltou a dedicar sua atenção aos
outros. Sabia que havia um número suficiente de armas
engatilhadas para liquidar Pirelli ao primeiro movimento
suspeito.
133
John Marshall prosseguiu na contagem até chegar ao
número 304. Nem ele, nem o detector, identificaram outro
indivíduo possuído pelos DI. Era uma boa média.
— Alô, Klein! — disse Rhodan pelo interfone. —
Feche a cúpula. A ação está concluída.
Dirigindo-se a Pirelli, disse:
— Tenho uma pergunta, tenente! Reflita bem na
resposta. Você estaria disposto a servir de intermediário
nas minhas negociações com os DI?
O rosto de Pirelli estremeceu ligeiramente. As pessoas
entendidas sabiam que os acontecimentos que se
desenrolavam no interior do corpo e da mente daquele
indivíduo eram muito mais dramáticos.
— Não compreendo senhor!
— Você foi identificado como um DI. Foi por isso que
fiz a pergunta. Então?
— Como pode afirmar que sou um DI, senhor Rhodan?
Que blefe é esse?
— Quem faz perguntas aqui sou eu, não você.
Conforme a resposta que nos der, você será utilizado na
execução dos nossos planos ou será fuzilado aqui mesmo.
Pirelli deu um salto prá frente, mas controlou-se antes
que sua atitude pudesse ser interpretada como uma
ameaça.
— Está sendo detido pelo medo — explicou Marshall.
— Está em nossas mãos. Seu corpo de DI não se encontra
no raio de transplante. Infelizmente este cavalheiro não
nos dirá onde está. Desconfia de que sou um telepata.
Procura confundir seu pensamento.
— Está bem, Marshall. Pirelli, você já viu o que
sabemos. Se o fuzilarmos aqui, isso representará a morte
definitiva para você. Qual é sua resposta à minha primeira
pergunta?
Pirelli procurou dar uma expressão de altivez ao seu
corpo. Como não devia sentir-se o ego covarde de um DI
num corpo destes?
— Estou à sua disposição, senhor Rhodan. Se ordenar
que sirva de intermediário, obedecerei. Acontece que
minha posição subalterna não me permite dizer qualquer
coisa sobre as chances das negociações.
— Isso não é necessário, tenente. Até amanhã ficará
em isolamento. Terá dois guardas robotizados ao lado de
sua cama. Eles o matarão à menor tentativa de fuga ou
atentado. Amanhã receberá novas instruções. Muito
obrigado.
* * *
Ainda havia 303 homens bem selecionados. Rhodan
devia dirigir-lhes algumas palavras de saudação, ainda
mais que se tratava de um núcleo inteiramente novo que se
formava dentro da Terceira Potência. Mas voltou a falar
em termos breves e não convencionais.
— Talvez um dia possa dedicar-me melhor a vocês.
Acontece que hoje não existe fortuna que pague um
segundo perdido.
Desejo-lhes bom apetite para a refeição que já foi
preparada. Daqui a pouco Reginald Bell e o coronel
Mercant lhes transmitirão as instruções necessárias.
No escritório Rhodan manteve uma palestra num
círculo bastante íntimo.
— Você é de uma leviandade imperdoável — disse
Reginald Bell assim que se ofereceu oportunidade para
falar, antes que Rhodan tocasse em qualquer dos assuntos
que compunham a agenda dos debates.
— Pretende dar-me outra lição?
— O que está em jogo não são minhas ambições
pedagógicas, mas a sua segurança. Enquanto aqueles
homens desfilaram, você não usou a menor proteção.
Procurou dissuadir Pirelli da intenção de cometer um
atentado. Acha que o olhar hipnótico será suficiente para
protegê-lo contra esse tipo de gente?
— Acho, sim. Você se enganou com a atitude do
Pirelli. Ao que parece você ainda não compreendeu como
é covarde o espírito que se oculta atrás dessas criaturas.
Um DI jamais cometerá um atentado se tiver que arriscar
sua vida. Mas chega de discussão! Tenho diante de mim as
notícias mais recentes de todo o mundo. Infelizmente devo
constatar que para o bem intencionado torna-se cada vez
mais difícil ser acreditado pelos outros. A melhor prova
são as acusações incessantes que formulam contra nós.
Farei uma última tentativa para convencer o mundo. A
população de Nova Iorque será nossa fiadora. Se é que
algum habitante deste planeta teve oportunidade de
convencer-se da crueldade dos DI, são os habitantes
daquela cidade, violentada há três dias.
— Para isso teríamos de libertar aquele contingente de
oito milhões de seres humanos.
— Meu plano é este. A usina robotizada já está
fabricando a primeira série de detectores de DI. Por
enquanto encomendei quatrocentas peças.
— Quando estarão prontos os aparelhos?
— Amanhã de manhã. Todos os mutantes de que
dispomos, com exceção dos telepatas, serão equipados
com os mesmos. Também os novos membros do
contingente policial e vocês, que são meus colaboradores
mais chegados. Bell, você irá à Lua amanhã. Leve uns
duzentos homens e procure entrar em contato com o
comando de robôs estacionado na cratera Anaxágoras.
Procure avaliar os resultados de sua atuação. Caso a base
lunar ainda não tenha sido precisamente localizada, você
ficará encarregado disso. Assim que descobrir o objetivo,
entre em contato comigo.
— Um simples contato?
— Por enquanto sim. O ataque pelo qual você deve
ansiar não demorará muito. Apenas pretendo golpear em
todos os lugares ao mesmo tempo. Por isso você aguardará
minhas ordens.
— Está bem!
— E agora você, Adams! Não me venha dizer que não
tem talento para herói. Darei a você um punhado de
homens nos quais pode confiar. Talvez Ras Tshubai e
vinte dos policiais recém-engajados. Seu objetivo será a
base canadense dos DIs. Mas não deve também iniciar
nenhum ataque antes que tenha recebido minhas ordens.
— Como queira, Rhodan — disse Adams no tom
humilde que costumava usar nas raras ocasiões em que sua
fala não se ligasse ao dinheiro.
As últimas instruções, e as mais detalhadas, foram
transmitidas a Allan D. Mercant, dirigente oficial do
Conselho Internacional de Defesa e membro não oficial do
exército de mutantes da Terceira Potência, dirigida por
Perry Rhodan. Mercant recebeu uma armada de seis
planadores espaciais que dispunham de armamentos,
espaço de carga e velocidade suficientes. Sua missão era a
libertação de Nova Iorque.
* * *
Enquanto no deserto de Gobi raiava um novo dia, o dia
134
de Nova Iorque ia chegando ao fim.
As máquinas haviam decolado.
Em primeiro lugar o grupo de Mercant, seguido pouco
depois por um avião de radiações isolado que seguia em
direção ao Canadá. A Good Hope foi à última. Embora seu
objetivo ficasse mais longe, teve que dar a precedência aos
aviões estratosféricos, já que a capacidade de aceleração
que desenvolvia no espaço compensava qualquer distância
interplanetária.
Rhodan estava só no edifício central. Desistira de
qualquer espécie de assistência. Preferira destacar os
homens disponíveis para os três pontos críticos em que
seriam travados os combates.
Seu assistente era a técnica avançada, que convergia no
quadro de comando que tinha diante de si. Conforme se
esperava, a primeira mensagem veio da Lua.
— Alô, Perry! Pousei sem incidentes na cratera
Anaxágoras. A força policial está saindo da nave. Voltarei
a chamar depois que tiver estabelecido contato com o
comando de robôs.
— Obrigado e boa sorte!
O ponteiro do relógio continuou a avançar. O contacto
seguinte.
— Estamos cruzando por cima de Nova Iorque.
Conforme previmos, não encontramos obstáculo ao
penetrar na cidade. Ao que parece o bloqueio só atinge os
que querem deixá-la. Pousaremos em seis aeroportos
diferentes. A ação está sendo iniciada conforme previsto.
Conforme previsto. Isso significava que nos próximos
trinta minutos os personagens mais importantes da cidade
seriam visitados por pessoas armadas. Seriam
reconhecidas prontamente como indivíduos possuídos
pelos DI e receberiam o tratamento adequado. As ordens
de Rhodan eram terminantes. A luta contra os DI seria
conduzida sem a menor contemplação.
— Alô, Rhodan! — Era a voz de Adams. — Acabo de
pousar em cinqüenta graus de latitude e oitenta e cinco de
longitude. Meu velho avião permanece intocado.
— O.K., Adams! Tome posição junto à linha férrea e
aguarde.
Por dez minutos o rádio permaneceu em silêncio.
Depois a voz de Bell voltou a encher o recinto.
— Decolamos em direção ao sul, pela face oculta da
Lua. Dentro de três minutos pousaremos na cratera de
Mendelejw. O comando de robôs determinou a localização
precisa da base dos DI. Não há o menor sinal de vida.
As notícias começaram a precipitar-se. Surgiam
simultaneamente, através de faixas substitutas. As fitas
gravadas registravam-se para Rhodan. Dali a trinta
minutos a situação era a seguinte:
Três vigias DI em plena atividade haviam sido mortos.
Bell noticiou a descoberta de mais de quinhentos corpos de
DI imobilizados, cujo ego originário sem dúvida devia
encontrar-se na Terra.
Rhodan interrompeu a mensagem:
— Basta de detalhes. Os corpos dos DI devem ser
colocados imediatamente a bordo da Good Hope e trazidos
ao território bloqueado da Terceira Potência. Quanto
tempo levará para isso?
— Somos duzentos homens. Em média o peso de um
DI corresponde ao dobro de um homem. Com a gravitação
lunar isso vem a ser uns vinte e cinco ou trinta quilos.
Levaremos quinze minutos.
— Apresse-se, Bell! Tenho muita necessidade da sua
presa.
Também Adams recebeu instruções para agir. Seu
trabalho era muito mais difícil. Seus vinte homens tiveram
que colocar a bordo duzentos corpos de DI. É bem verdade
que Ras Tshubai logo os livrou das maiores preocupações.
Por precaução o africano trouxera o neutralizador, com o
qual o peso dos corpos foi quase totalmente eliminado.
Pelas onze e meia a Good Hope pousou; o “comando
Adams” chegou pouco depois. A Terceira Potência tinha
em seu poder 732 corpos, que foram depositados no seu
território, fora da cúpula energética.
Poucos minutos depois a Good Hope decolou em
direção à Nova Iorque, onde se amarraria ao mastro do
Empire State Building.
A Good Hope era larga e parecia desajeitada. Oferecia
um bom alvo, mas era inexpugnável. Seus superemissores
martelaram o apelo de Rhodan, dirigido aos homens e aos
DI, usando todas as frequências disponíveis. A voz de
Rhodan superava toda e qualquer interferência, até uma
potência de três mil quilowats. Não era só Nova Iorque
que o ouvia, mas toda a Terra. Os homens livres logo se
colocaram a seu lado. Três dias de ditadura dos DI em
Nova Iorque bastaram para convencer a humanidade de
que só a Terceira Potência podia proporcionar-lhes um
auxílio eficaz.
Mercant veio com cem detectores. A Good Hope
trouxe outros trezentos, que já não eram necessários na
Lua ou no Canadá.
A guerra em meio àquele oceano de prédios perdeu-se
em episódios isolados. O conflito desenvolveu-se de rua
para rua, de prédio para prédio, de sala para sala. Os
homens de Rhodan estavam sós. E depois da primeira
investida já não representavam uma surpresa. Apesar
disso, venceram. Poucos dos DI chegaram ao extremo. A
maior parte deles agarrou-se ao corpo que os hospedava, já
que, afora umas poucas exceções, seus corpos originários
estavam fora de seu alcance. A notícia do roubo dos
setecentos corpos abandonados, depositados na Lua e no
subterrâneo do Canadá, levou o pânico dos invasores ao
auge. Os DI haviam chegado ao fim.
O prefeito, o chefe de policia e os sete senadores de
Nova Iorque puderam subir a bordo da Good Hope
exatamente ao meio-dia, a fim de oferecer seu relato dos
acontecimentos. Os rostos dos primeiros homens
libertados atravessaram o mundo pela televisão.
— Repórter do demônio? — Alguém soltou a
observação a bordo da nave, evocando uma idéia bastante
corrente há cerca de um decênio. Mas havia um ponto de
interrogação atrás dessas palavras. Já havia a certeza de
que a mensagem de Rhodan, que já cobria todas as
emissoras da Terra, tinha um sentido bastante sério.
Representava um apelo dirigido a todos os terráqueos,
representava o brado de alerta final dirigido a uma geração
que praticamente perdera a hora de sua missão cósmica a
partir do lançamento do Sputnik.
Hoje penetrava, como fato mais consumado, nos
recantos mais íntimos, de Tóquio a Lisboa, de São
Francisco a Moscou.
“Não estamos sós no mundo. Nós, os terráqueos, não
somos os únicos. Outros seres existem. E alguns deles não
são nossos amigos.”
135
Pouco depois Perry Rhodan dirigiu um apelo pessoal
Quando os últimos embaixadores dos governos terrenos
deixaram o deserto de Gobi, levando notícias conciliadoras
e esperançosas aos seus povos, dez mutantes encontravam-
se diante da Good Hope, que estava pronta para decolar.
Terminado o treinamento preliminar, seriam transferidos
para Vênus, onde o curso hipnótico ministrado pelo grande
cérebro positrônico lhes daria o preparo definitivo, que os
habilitaria ao ingresso no exército secreto de mutantes da
Terceira Potência.
— Vencemos por hoje, e talvez por amanhã — disse
Rhodan por ocasião da despedida. — Mas convém que
saibam que segundo o cérebro não é impossível que
surjam novas complicações.
Dependemos uns dos outros. Eu dependo de vocês,
vocês dependem de mim. Devemos ficar vigilantes e
nunca podemos deixar de aprender. Nosso caminho para o
universo é longo e obscuro. Ajudem-me a encontrá-lo e
percorrê-lo em segurança.
Quanto aos governantes da Terra. Fê-lo na qualidade
de primeiro presidente da Terceira Potência. E a
mensagem foi coroada de êxito. Desta vez os
representantes eleitos foram obrigados pela vontade
popular a percorrer o caminho que conduzia para Perry
Rhodan, no deserto de Gobi, para estabelecer a união
definitiva da humanidade.
As condições feitas aos DI eram inequívocas e não
admitiam qualquer discussão. Os monstros tiveram
oportunidade de aguardar na órbita de Marte até que uma
de suas naves os levasse de volta ao seu mundo natal. Mas
esse tratamento humano não os iludia quanto ao fato de
que não teriam a menor chance contra a humanidade.
— A forma de expor a situação ao seu governo
depende exclusivamente dos senhores — foram estas as
últimas palavras que Rhodan lhes dirigiu. — Os homens e
os arcônidas são aliados, e daqui por diante proíbem-lhes
qualquer violação da área submetida à sua soberania.
Mantenham-se dentro dos seus limites cósmicos, e
poderemos ser amigos.
* * *
Quando os últimos embaixadores dos governos
terrenos deixaram o deserto de Gobi, levando notícias
conciliadoras e esperançosas aos seus povos, dez mutantes
encontravam-se diante da Good Hope, que estava pronta
para decolar. Terminado o treinamento preliminar, seriam
transferidos para Vênus, onde o curso hipnótico ministrado
pelo grande cérebro positrônico lhes daria o preparo
definitivo, que os habilitaria ao ingresso no exército
secreto de mutantes da Terceira Potência.
— Vencemos por hoje, e talvez por amanhã — disse
Rhodan por ocasião da despedida. — Mas convém que
saibam que segundo o cérebro não é impossível que
surjam novas complicações.
Dependemos uns dos outros. Eu dependo de vocês,
vocês dependem de mim. Devemos ficar vigilantes e
nunca podemos deixar de aprender. Nosso caminho para o
universo é longo e obscuro. Ajudem-me a encontrá-lo e
percorrê-lo em segurança.
A Terceira Potência obrigou os DI a “baterem em retirada”, repelindo uma invasão
vinda das profundezas do espaço, invasão esta a que o restante da humanidade teria de
assistir completamente indefesa.
Perry Rhodan e seus homens sentem-se orgulhosos. Mas também estão preocupados,
pois sabem que para a Terceira Potência, e posteriormente para toda a humanidade, vai ter
início a Era Galáctica.
O décimo volume da coleção Perry Rhodan,nós conduzirá ao limite dessa era
intitulado:
BATALHA NO SETOR VEGA
136
Nº 10
De
K. H. Scheer
Tradução
Maria M. Würth Texeira
Digitalização
Vitório
Nova revisão e formato
W.Q. Moraes
Terceira Potência conheceu um período de paz após a ameaçadora invasão
de seres extraterrenos, rechaçada por Perry Rhodan com o auxílio da técnica
arcônida e dos extraordinários poderes de seu corpo de mutantes. A Terceira
Potência representa a mais poderosa nação terrestre, a despeito de sua reduzida
dimensão territorial.
Galáxia, a supermoderna cidade dotada de uma imensa base espacial, e de
amplos complexos industriais operados quase que exclusivamente por robôs, é o
monumento mais impressionante da nova civilização.
Mas, de repente, Galáxia é colocada em estado de alarma. A bordo da Good
Hope, a nave auxiliar do destruído cruzador cósmico dos arcônidas, Perry Rhodan
decola em direção ao sistema planetário de Vega, na distante constelação de Lira.
137
I
Em obediência à estridente voz de comando, duzentos
braços mecânicos ergueram no ar seu fulgor metálico.
Cem fuzis de raios apontaram as bocas para o céu sem
nuvens do deserto de Gobi. Cem soldados-robôs de aço
perfilaram-se em total
imobilidade, porém com as
entranhas eletrônicas em
silenciosa e invisível
atividade.
— Nosso visitante será
recebido com as devidas
honras! — disse o coronel
Freyt, com um olhar
irônico para o oficial que
comandava os guerreiros
de metal.
O capitão Klein
pigarreou discretamente.
Semicerrando os olhos,
examinou a aeronave
recém-pousada.
— Um tanto familiar,
não lhe parece? —
comentou. — Você oficia
a cerimônia, coronel?
Rígido como um
boneco, Freyt, chefe da
Força de Caça Espacial da
Terceira Potência,
encaminhou-se para o
avião. O leme do
gigantesco bombardeiro a
jato ostentava a insígnia da
Força Espacial dos
Estados Unidos. Freyt
aguardou junto à escada
rolante.
Na estreita porta de
desembarque desenhou-se
um vulto alto e imponente.
Em silêncio, o general
Lesley Pounder, chefe da
Força Espacial americana,
olhou em torno. Por
instantes, seu olhar se
deteve sobre a formação
impecável das máquinas
de lutar. Correspondeu
com displicência à
continência do capitão
Klein. Sua atenção estava
voltada para as manobras
tonitruantes dos aparelhos,
mal e mal visíveis no céu
azul a considerável altura.
Estava-se no mês de maio
e o relógio marcava pouco
mais de treze horas. O calor era opressivo.
Uma série de estrondosos trovões indicou que a
esquadrilha, rumando para o espaço cósmico, rompera a
barreira do som. Porém os minúsculos pontinhos prateados
desapareceram do campo visual muito antes que as ondas
de som alcançassem o solo.
— Um belo espetáculo! — elogiou Pounder,
impressionado. — Como vai, Freyt? Faz tempo que não
nos vemos, não é?
Comentário óbvio, para disfarçar o constrangimento.
Também para Pounder o momento do reencontro era um
tanto deprimente.
— Sim, cerca de três anos,
general — confirmou Freyt,
evasivamente. — O senhor
tinha me enviado à Lua, num
foguete do tipo Stardust. A
missão resultou tão desastrosa
quanto a aterrissagem no
nosso satélite. E se Perry
Rhodan não nos tivesse
resgatado com a nave
esférica, o senhor teria mais
três nomes de pilotos de
provas em sua lista de baixas.
Pounder, o baixo e
corpulento chefe da Força
Espacial, reprimiu a custo sua
conhecida irritabilidade.
— Sorte sua... —
constatou em tom seco. — E
em conseqüência disso, o
senhor tem usado nos últimos
três anos a farda da Terceira
Potência. Mas até que o
uniforme é bonito. Um tanto
utópico, talvez... Vejo que foi
promovido.
O coronel Freyt preferiu
não dar resposta. Pounder
vinha visitar a Terceira
Potência em caráter oficial;
portanto, não havia sentido
algum em discutir com seu
antigo superior hierárquico.
— O carro está a sua
espera, general! — disse, para
desviar o assunto. — O chefe
ainda não regressou. Enviou-
nos uma mensagem há meia
hora. Encontra-se nas
proximidades de Marte,
testando um caça espacial.
O general Pounder engoliu
igualmente aquela pílula.
Com que naturalidade seu ex-
subordinado falava de proezas
ainda inconcebíveis para
homens comuns!
— Nas proximidades de
Marte, ora vejam! —
murmurou Pounder. — Como
soam importantes suas
palavras, coronel! O senhor
foi longe... certamente muito mais longe do que lhe seria
possível na Força Espacial. E isto aqui progrediu, não é?
Cheio de admiração, o general lançou um demorado
olhar aos distantes edifícios em forma de torre da nova
cidade. Ficavam ao norte, perto do lago Goshun. Perry
Rhodan dera à capital da Terceira Potência o nome de
Personagens principais deste episódio:
Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potência.
Reginald Bell — Ministro da segurança da Terceira Potência
General Lesley Pounder — Chefe da Força Espacial dos
Estados Unidos.
Dr. Frank Haggard — Ministro da saúde da Terceira Potência
e fundador da Clínica Arcônida.
Homer G. Adams — Ministro das finanças da Terceira Potência,
e diretor da General Cosrnic Company.
Coronel Freyt — Chefe da Força de Caça Espacial da Terceira
Potência.
Major Deringhouse — Comandante do 1o Grupo de Caça
Espacial da Terceira Potência.
Major Nyssen — Comandante do 2o Grupo de Caça Espacial da
Terceira Potência.
Capitão Klein — Agente de segurança da Terceira Potência.
Tenente Li Shai-tung — Oficial de ligação da Terceira Potência
com o Serviço Secreto da Federação Asiática.
Thora e Crest — Arcônidas, respectivamente, comandante da
nave arcônida destruída, e cientista-chefe da raça.
Betty Toufry — Telepatia e telecinésia.
John Marshall — Telepatia e supercérebro.
Tako Kakuta — Teleportação.
Wuriu Sengu — visão raios-X.
Ralf Marten — parapsicologia e exopersonificação.
Allan D. Mercant — Chefe do Conselho Internacional de
Defesa.
Marechal Gregor Petronski — Chefe da Defesa Aérea e Espacial
Oriental.
Kosselov — Chefe do Serviço Secreto Oriental.
Thort — Chefe supremo dos ferrônios e do sistema Vega.
Chaktor — Ferrônio resgatado no espaço por Rhodan e seu
intérprete.
Lossos — Cientista-chefe ferrônio.
Crek-Orn — Almirante-chefe dos tópsidas
Galáxia — Cidade da Terra, capital da Terceira Potência.
Good Hope — Nave com que Rhodan viaja para Vega. Ex-nave
auxiliar do cruzador arcônida destruído na Lua.
Perrol — Oitavo planeta de Vega, habitado pelos ferrônios.
Rofus — Nono planeta de Vega, com a capital Chuguinor.
Tópsidas — Raça oriunda do sistema Orion-Delta, a estrela
dupla. Descendentes de répteis são inteligentes, altamente
civilizados, porém cruéis e insensíveis.
Ferrônios — Raça semelhante à humana. Inteligentes e
avançados têm pele azul e povoaram os planetas do sistema
Vega.
138
Galáxia.
A última visita de Pounder datava de três anos, quando
as instalações não passavam de construções provisórias. E
agora aquilo! Só os dois aeroportos constituiriam motivo
de orgulho para qualquer nação. E a base espacial
ultrapassava qualquer empreendimento jamais criado por
mãos humanas.
— Planejamos para o futuro — respondeu Freyt, em
tom neutro. — O território que adquirimos da Federação
Asiática abrange quarenta mil quilômetros quadrados. E
Galáxia conta, segundo o último censo, duzentos e trinta
mil habitantes. Pronto para embarcar, general? Nosso
pessoal se encarregará do avião.
Com um ligeiro olhar para o enorme bombardeiro,
acrescentou com uma ponta de ironia:
— Carreta meio primitiva essa! Vocês ainda empregam
os antiquados propulsores atômicos?
— Foi este tipo de propulsão que o levou à Lua, Freyt!
Faz mesmo questão de me mostrar o quanto estamos
atrasados, não? Mas convém não esquecer que tanto o
senhor como Perry Rhodan receberam sua formação na
Força Espacial. Se eu não tivesse enviado Rhodan à Lua,
ele jamais encontraria os arcônidas. É assim que se
chamam os extraterrenos, não?
— Exatamente, general! — confirmou Freyt.
— E este progresso todo só foi possível com a
colaboração dos cérebros espaciais — disse Pounder, com
um riso sarcástico. — Rhodan teve muita sorte em
conquistar-lhes a confiança. Foi o que lhe permitiu criar a
Terceira Potência. Mas deixemos o assunto de lado. Que
tal é Rhodan como chefe de Estado?
— Refere-se ao senhor Presidente, general?
Resfolegando indignado, Pounder explodiu:
— Freyt, para mim, seu presidente continuará sendo
sempre o major Rhodan! O recruta que treinei
pessoalmente e designei para o primeiro vôo tripulado à
Lua... E dê-lhe este recado na primeira ocasião!
— Ele não esqueceu general! — respondeu Freyt,
rindo. — E, aparte nossas diferenças, afirmo-lhe que é um
prazer revê-lo entre nós. Pretende negociar com o chefe
sobre o fornecimento de pulsopropulsores?
O general deteve seus passos. Da distante base espacial
vinha novamente o rugido avassalador. Silhuetas
fulgurantes ganharam o espaço, impelidas por quase
imperceptíveis fluxos de impulsos. Pounder aguardou a
diminuição da infernal barulheira.
— O esquadrão de Deringhouse — explicou Freyt. —
Ótimo elemento este rapaz... O senhor soube escolher seus
homens, general, sem dúvida!
— Naturalmente! E foi por isso que Rhodan fez de
vocês seus oficiais. Para mim, foi uma perda lamentável.
Como sabe de meus planos?
Freyt não estranhou a brusca mudança de rumo da
conversa, nem a expressão severa do rosto do general.
— O chefe me falou disso. Se me permite um palpite,
acho inútil insistir na obtenção de propulsores completos.
A Terceira Potência reserva-se o privilégio de construir
naves espaciais mais velozes do que a luz. Sugiro que
desista do intento. Mas tenho autorização para mostrar-lhe
nossos novos estaleiros oficiais, caso esteja interessado.
Normalmente estão interditados para visitantes. Porém
guardamos afeto todo especial ao nosso antigo
comandante...
Pounder afastou-se sem uma palavra. O sorriso do
homem mais jovem o atingira em cheio. Ainda calado,
tomou lugar no turbo-carro aberto. Seus olhos se voltaram
para a cintilante cúpula energética visível do aeroporto.
Aliás, o extenso domo de dez quilômetros de diâmetro não
podia deixar de ser notado.
Freyt acomodou com alguma dificuldade o corpo
comprido ao lado do general. Este estabeleceu
involuntariamente uma comparação: Freyt e Perry Rhodan
poderiam ser irmãos. Ambos altos e magros, com as
diminutas rugas no canto dos olhos revelando permanente
disposição para rir. E haviam recebido formação idêntica,
numa escola tida comumente por dura e implacável.
Pounder sentiu-se invadido por uma onda de orgulho.
Aqueles jovens tinham criado uma instituição que
prometia revolucionar toda a ordem até então estabelecida
no mundo.
Com um breve aceno para Klein, Freyt comentou:
— Ele fez parte outrora do serviço secreto da OTAN,
sob as ordens de Allan D. Mercant. Inacreditável, não?
Com um suspiro, o coronel continuou:
— A raça humana parece estar criando juízo
devagarinho. Ainda posso recordar o momento em que dei
ordem para lançar as três bombas de hidrogênio. Na
ocasião em que destruímos o cruzador arcônida... Nossa
velha Lua entrou em ebulição em alguns pontos. Mas
muita coisa mudou depois disso. A humanidade parece ter
compreendido, afinal.
— Compreendido? — repetiu o general. — Eu diria
que ficou convencida. Se algum doido conseguisse
eliminar sumariamente a Terceira Potência, o mundo se
tornaria um hospício da noite para o dia! As nações
desencadeariam uma luta mortal pela posse de seus
conhecimentos técnico-científicos. “No interesse de nossa
autoconservação lamentamos ser obrigados à adoção de
rigorosas medidas preventivas.” Não é assim que se
expressariam os diplomatas?
O pessimismo do general, aparentemente acabou com o
bom humor de Freyt. O chefe da Força de Caça Espacial
mostrou rugas de preocupação.
— Não conjure os demônios, general! — disse,
pensativo. — Aquela cúpula energética foi alvejada por
mais de seis mil projéteis de fabricação terrena por
semanas inteiras, sem o menor resultado. Apenas um
poder superior será capaz de nos destruir e não existe na
face da Terra ninguém com capacidade para isso. Todos
nós temos que aceitar como fato irrefutável a existência de
seres extraterrestres altamente civilizados. E se não nos
acautelarmos, qualquer dia nossa própria sobrevivência
estará em jogo. É mais do que hora de adotar e manter
atitudes racionais. A idéia de Perry Rhodan é estabelecer
um governo terrestre central, com representantes de todas
as nações do mundo. A questão da cota de participação de
cada uma pode ser resolvida mais tarde; acho que não será
difícil chegar a um entendimento.
— Impraticável! — afirmou Pounder, secamente. —
Freyt, você pode ser um bom militar e um astronauta
excepcional, mas não entende coisa alguma de assuntos
desta espécie. Que é aquilo ali?
“Tática de evasão”, disse Freyt para si mesmo. E teve a
desagradável sensação de que o general lhe ocultava algo
da maior importância.
Dirigiu o olhar para os prédios do complexo industrial
do qual se aproximavam. Uma série de hangares e torres,
imaculadamente limpos, sem traço da fumaça ou fuligem
provocadora de poluição ambiental. E, no entanto, a
produção era superior à de qualquer fábrica do mundo.
139
— As seções de acabamento final — disse Freyt, com
naturalidade. — E os estaleiros oficiais da Terceira
Potência para fabricação de naves espaciais. Tudo criado
do nada em pouco mais de três anos.
— Complexos industriais acabados em apenas três
anos? — duvidou Pounder. — Produção dos foguetes,
estandes de testes, linhas de montagem final? Freyt,
qualquer mortal comum levaria três anos só para lançar os
fundamentos de uma obra tão gigantesca!
— Colocamos dez mil robôs especializados em ação —
explicou Freyt, com um sorriso levemente arrogante. —
Além disso, empregamos máquinas que executaram o
trabalho de aplainamento com a ajuda de campos
antigravitacionais de alta intensidade. Com recursos
comuns, a tarefa levaria pelo menos vinte anos! É difícil
conceber a magnitude dos recursos arcônidas.
Pounder desistiu. Era inútil discutir com pessoas que
argumentavam com conceitos super-humanos e utilizavam
máquinas extraterrenas.
O veículo parou diante da linha vermelha. A poucos
passos erguia-se a parede de inconcebível energia, mal e
mal visível de tão perto.
— Um campo estrutural em cinco dimensões —
explicou Freyt, sorrindo.
— Com quem posso me entender aí dentro? —
indagou Pounder, ignorando o esclarecimento dado por
Freyt.
Espiou para a área coberta pela cúpula energética. Era
fértil e viçosa, com alguns poucos edifícios esparsos. Mas
estes eram gigantescos. O palácio do governo da Terceira
Potência representava uma combinação harmoniosa de
elementos arquitetônicos arcônidas e terrestres. Todo
branco, o belo prédio se destacava entre os demais.
— Sua excelência, o ministro da segurança, lhe
concederá audiência — observou Freyt, esforçando-se por
disfarçar a ironia. — Pois o senhor ministro, ou seja, o
capitão Reginald Bell, manifestou extrema simpatia diante
de sua visita iminente.
— Bell! — gemeu o general. — Essa não! Aquele
palerma que ria à toa e nunca conseguia manter a
disciplina! Quantos esforços me custaram impedir sua
degradação ao posto de tenente! E está disposto a me
conceder audiência... Pois bem, vá dizer ao seu ministro
que talvez eu o reconheça como representante da Terceira
Potência... caso ele consiga fazer uma continência mais ou
menos correta!
* * *
Homer G. Adams apareceu no telecom, ocupando com
seu rosto de testa larga quase toda a tela colorida e
tridimensional. O legendário diretor da General Cosmic
Company, denominada abreviadamente GCC, chamava da
distante Nova Iorque.
— Ah, o chefe ainda está viajando? Que pena! — a voz
de Adams soava impessoal e fria no alto-falante. — Escute
Bell, não me agrada a ideia de saber que você está sozinho
com Pounder. Não leve a mal meus escrúpulos, porém
considero-me um bom psicólogo. Pounder é um gênio
militar, fato que em si não constitui risco maior. Mas, além
disso, é um homem extraordinário, a quem você deve
gratidão, respeito e consideração, mesmo que recuse
admiti-lo. Acho que você não tem condições para enfrentar
o general. Espere pelo chefe!
O homem baixo e atarracado, trajando o uniforme
verde-pálido da Terceira Potência, disfarçou o
constrangimento com um sorriso. Reginald Bell não se
sentia de fato à altura da situação. Lá em Nova Iorque seus
olhos azuis muito claros apareciam como pálidas manchas
luminosas na tela.
— Vou aceitar sua sugestão, Adams! — disse Bell,
acenando com a cabeça. — Mas pode me pôr a par de suas
intenções? A visita do general não foi iniciativa sua?
— Certamente; porém eu ignorava que Perry Rhodan
estaria ausente, em voo de experiência. Bell, ganhe tempo
com o general! Aguarde pelo menos até que eu chegue ao
deserto de Gobi. Não lhe reconheço competência para
conduzir negociações delicadas como essas! Pounder
embrulharia você com a maior facilidade.
— Acho que está certo, Adams. Afinal, não é à toa que
você é o nosso ministro das finanças, não é? — respondeu
Bell, sorrindo. — Minha vontade se resume em abraçar o
velho ferrabrás e bater um papo amistoso. Fazem bem
quatro anos que não o vejo... Você pode vir
imediatamente?
— Meio difícil... — respondeu Adams, indeciso. —
Encontro-me em negociações com uma companhia de
mineração latino-americana. Vocês querem cobre barato,
não é?
Bell levou os dedos inconscientemente à cintilante
insígnia de seu posto, no bolso superior esquerdo. Curioso,
no íntimo tinha a inquietante sensação de que as
conversações com Pounder já estavam fadadas ao fracasso
antes mesmo de terem começado.
— Sim, confesso que me sinto em desvantagem diante
do velho! — disse, com inusitada gravidade. —
140
Emocionalmente, compreende?... Gosto demais dele. O
general comeu fogo por nossa causa. E foi ele que nos
equipou com todo o conhecimento de que hoje fazemos
uso. Jamais teríamos chegado à Lua se não fosse o total
apoio de Pounder. Largue tudo e corra para cá, Adams!
Acho que o representante do poder econômico número um
do mundo pode se dar ao luxo de adiar uma conferência.
Homer G. Adams, o mutante de memória fotográfica,
tido como maior gênio financeiro de todos os tempos,
deixou ver um pouco de calor humano em seu sorriso.
Pena do ar meio desamparado de Bell, talvez...
— Bem, chamei você para combinarmos tudo
direitinho. Não queremos cometer erros, não é? Vou
providenciar minha partida imediata. Mais alguma coisa?
O rosto de Adams mudou de expressão ao perceber a
repentina tensão de seu interlocutor. Ao mesmo tempo, o
ótimo sistema de som fez ouvir um uivo estridente. Bell
transformou-se instantaneamente no homem dos nervos de
aço. Algo de inesperado devia ter ocorrido em Galáxia.
— Bell! — gritou Adams, alarmado. — Que foi que
aconteceu?
— Pode cancelar a viagem, por enquanto, Adams.
Espere novo comunicado. Estamos sob alarma.
Transmissão encerrada!
Adams viu a imagem se desvanecer na tela côncava do
telecom. Permaneceu imóvel em sua cadeira. O gabinete
no topo do gigantesco arranha-céu lhe pareceu de repente
nu e desolado. O uivo das sirenas continuava. Chegava
ligeiramente atenuado à grande metrópole, porém seu
impacto não foi menor do que o causado no palácio do
governo da Terceira Potência.
Homer G. Adams não era homem de se deixar
descontrolar por barulhentas manifestações de
aparelhamento acústico. Principalmente naquele dia,
quando a jovem Terceira Potência, sob a direção do ex-
major e piloto de provas da Força Espacial dos Estados
Unidos, Perry Rhodan, era o eixo econômico, político e
militar do planeta Terra. O fato de aquele conglomerado
de poderes ser fruto da inteligência superior e capacidade
de produção de uma raça cósmica, alheia à Terra, era de
menor importância. O mais surpreendente no caso era ver
reconhecida como potência mundial uma pequena nação
perdida no coração do continente asiático; não sem
algumas dificuldades iniciais, é claro.
Uma vez estabelecida a soberania da Terceira Potência,
a General Cosmic Company encontrara bases sólidas para
se desenvolver. Adams estava em vias de revolucionar
toda a economia mundial com os produtos e técnicas
arcônidas. Segundo o cômputo mais recente, o capital
social da GCC se elevara a duzentos bilhões de dólares; e
estava iminente o lançamento de novas subscrições no
montante de mais setenta bilhões. Sem dúvida, a
instituição criada por Homer G. Adams era sólida e
economicamente estável.
Nada, até então, levara este homem a perder a calma e
a serenidade, nem sequer por uma fração de segundo.
Portanto, era bastante estranho vê-lo trêmulo e de olhos
arregalados, atento para o lamento das sirenas. Momentos
após chegou a confirmação ótica. Luzes violetas piscavam
ininterruptamente. Aos poucos, a tonalidade alarmante
predominou sobre a iluminação natural na peça
semiobscurecida.
Homer G. Adams sobressaltou-se, como que
despertando de um pesadelo.
— Não! — murmurou, com os lábios comprimidos
num esgar de angústia. — Isso não! Meu Deus, tudo,
menos isso!
— Para trás com esse carro! — gritou o jovem oficial
de guarda. — Não vê que a passagem está impedida?
Ande! Recue pelos menos uns trinta metros!
O rapaz suava em bicas. Após o cessar do frenético
lamento das sirenas, o território da Terceira Potência
parecia ter virado casa de loucos. Para cúmulo da
confusão, acabara de chegar à coluna de transportes da
Mongólia, com seu carregamento de máquinas. E o tenente
encarregado do posto na fronteira era impotente para
prestar auxílio aos perturbados asiáticos. Pois o cérebro-
robô positrônico dos arcônidas assumira a direção dos
acontecimentos.
A máquina era inexorável. Acionada ao primeiro sinal
de alarma deixava aos humanos o prazo de apenas dois
minutos exatos para se colocarem em segurança. Depois a
cerca de energia foi erguida, estendendo-se ao longo de
toda a fronteira. Uma barreira luminosa e flamejante de
energia pura impedia a passagem do que quer que fosse. E
era irremediavelmente mortal. Também não era
aconselhável sobrevoar o intrincado entrelaçados de linhas
e espirais energéticas; acoplado a inúmeros localizadores,
o cérebro-robô não hesitaria um só instante em abater o
invasor alado com uma bateria de canhões de raios. Afinal,
o alerta geral fora amplamente difundido, a fim de evitar
ocorrências desta espécie.
O tenente recolheu-se apressadamente a sua casamata
de concreto, dentro da cerca energética. Os enormes
soldados-robôs — pesadas máquinas portando armas nos
braços articulados e providos de minimecanismos
atômicos nos corpos metálicos — recusavam há quatro
minutos qualquer ordem humana. Eram comandados agora
pelo cérebro eletrônico.
Momentos após chegou o comunicado automático a
todos os postos de fronteira e estações de controle:
Alerta com prioridade 1 em efeito.
Ninguém poderia deixar o território da Terceira
Potência e, muito menos, entrar nele.
A imensa cúpula energética, localizada no centro
geométrico dos quarenta mil quilômetros quadrados de
área da nação, intensificou seu brilho. O fulgor intenso e
ofuscante feria os olhos. Tinha-se a impressão de ver
surgir de repente um sol artificial.
Da base espacial, agora invisível, os novos caças da
Força de Caça Espacial se projetaram, rugindo, para o alto.
O general Pounder, cujo carro cruzara os limites no último
instante, segundos antes da barreira energética entrar em
funcionamento, viu-se de repente abandonado. Apenas um
soldado-robô montava guarda ao veículo. Pálido e
consternado, o general não obtinha resposta às suas
inquietas perguntas. Todo mundo parecia ignorar sua
presença ou esquecê-la de todo.
O coronel Freyt desaparecera com uma sonora praga.
Correndo provavelmente, para seu posto de comando nas
cercanias da base espacial...
Pounder não viu outra solução a não ser armar-se de
paciência e esperar. Alguém acabaria por dar-lhe atenção.
Desconhecendo o funcionamento de um cérebro-robô
positrônico, não podia saber que este já registrara sua
presença. Não era em vão que o soldado-robô tomara
posição junto ao carro do general.
141
Assim que o cérebro-robô arcônida verificou que o
general era inofensivo e que se tratava de pessoa
devidamente anunciada, enviou uma inaudível ordem
radiofônica ao guerreiro mecânico. Com um sobressalto,
Pounder sentiu o carro arrancar bruscamente e rumar em
alta velocidade para o palácio do governo.
Lá, deparou com um oficial do serviço de segurança à
sua espera. Após ligeira hesitação, Pounder reconheceu o
homem sorridente e atencioso. Li Shai-tung ganhara as
manchetes mundiais três anos atrás. Ocupava agora o
posto de elemento de ligação com o Serviço Secreto da
Federação Asiática.
Levando a mão ao quepe, Pounder pensou consigo
mesmo: “Mais um velho conhecido, ora veja!”...
— Queira aguardar na recepção, por favor! — foi-lhe
dito. — Espero que compreenda a indisponibilidade
momentânea de qualquer dos dirigentes.
— Qual a razão do alarma? — indagou o general,
secamente. — Pode me explicar o que está acontecendo?
— Fui destacado especialmente para informá-lo,
general. Queira entrar, por obséquio. Não se deixe
impressionar pela atitude ameaçadora dos robôs; faz parte
do sistema de alarma. Não há perigo algum; eles são
controlados automaticamente. Por aqui, general!...
Pounder inspecionou com o olhar o amplo recinto
composto de vidros, material sintético e efeitos luminosos.
Também aqui a movimentação era febril. Percebeu ao
fundo os vãos fulgurantes dos fabulosos elevadores
antigravitacionais. Tanto na construção, como nos
acabamentos e nas instalações, evidenciava-se a aplicação
de técnicas superavançadas.
“Devem ter gasto uns cento e vinte milhões de dólares
nisso”, calculou o general, habituado a fazer avaliações
daquela espécie.
— Bell não tardará a vir cumprimentá-lo, general. Sua
inesperada presença acabou sendo providencial. Fui
encarregado de lhe prestar as informações preliminares. É
provável que lhe solicitemos, em vista das circunstâncias,
a convocação urgente da Comissão de Segurança Mundial,
em caráter de emergência prioritária. Talvez em Pequim,
por sua localização centralizada. Terá que tomar decisões
muito rápidas. Nossos meios de comunicação estão ao seu
dispor.
A emoção embargava a voz de Pounder.
— Compreendo tenente! A situação está preta outra
vez, não? Ainda recordo a crise anterior, há três anos,
quando seres extraterrenos se introduziram sorrateiramente
nos corpos e mentes de nossos mais destacados cientistas e
políticos, subjugando-os por completo. Os serviços de
segurança já foram informados?
— Sim. O código preestabelecido foi emitido
automaticamente. Não perdemos tempo aqui, general...
Ainda não dispomos de informações precisas. Nossa
estação de observação em Plutão apenas nos transmitiu os
dados registrados pelos sensores de deformação da
estrutura espacial.
— Tenente, você tem diante de si um homem de boa
paz, que se pergunta de vez em quando com que direito se
intitula chefe da Força Espacial dos Estados Unidos —
observou Pounder, sarcástico. — Voamos em foguetes
obsoletos, enquanto vocês usam naves espaciais mais
velozes do que a luz. Que diabo vem a ser um sensor de
deformação da estrutura espacial?
Li Shai-tung sorriu. Lá fora reboava um rugido
infernal. Foi crescendo de forma alarmante, até se
extinguir gradualmente, à medida que as ondas sonoras se
dissipavam no ar. Pounder conhecia bem o fenômeno,
mas, não com tal intensidade.
— É a Good Hope decolando sob o comando dos dois
arcônidas — explicou o agente chinês, com displicência.
— A nave auxiliar do cruzador arcônida destruído na Lua,
lembra?
— Nave auxiliar! — suspirou o general. — Tenente,
para mim, uma nave espacial esférica com sessenta metros
de diâmetro representa um verdadeiro colosso, entendeu?
E o que é um sensor de deformação da estrutura espacial?
— Um aparelho de detecção arcônida, para localizar e
medir diretamente alterações quadridimensionais da
estrutura espacial no cosmo normal. O instrumento mede
desvios de gravitação. E como a gravitação é uma forma
de energia do hiperespaço, os sensores funcionam
forçosamente a velocidades superiores à da luz. Quando
emitem sinal, sabemos que em algum ponto situado num
raio de cerca de cinqüenta anos-luz a estrutura curva do
espaço foi abalada, rompida por forças poderosas. Por
experiência, sabemos que isso só pode ser ocasionado pelo
hipersalto de uma nave mais veloz do que a luz: a
denominada transição. E quando o fato se dá a uma
distância tão próxima, a Central de Defesa da Terceira
Potência toma providências imediatas. Pois a coisa pode
ser conosco, general!
Pounder murchou, sem ter entendido uma só palavra da
explicação.
— Está bem, tenente! Pode poupar seu latim. Não
passo de um homem das cavernas diante dos
conhecimentos científicos de Rhodan e você. Sempre lhe
dei apoio total; primeiro, quando desobedeceu às minhas
ordens; depois à custa de minha consciência de militar;
mais tarde com a sanção oficial do meu governo. Pode ir,
eu espero... Deve ter obrigações a cumprir. Só não esqueça
que deixou um homem desarvorado sentado aqui.
— General, todos estes conhecimentos serão
amplamente divulgados no dia em que a humanidade
chegar a uma verdadeira comunhão espiritual. Não há
dúvida de que cresce dia a dia a garantia de uma paz
mundial permanente e duradoura; mas, por enquanto, para
a própria consolidação deste objetivo, é preciso que o
poder se concentre exclusivamente nas mãos de Perry
Rhodan. O que lhe acarreta a obrigação de proteger tanto o
seu mundo quanto o nosso. Medite sobre o que eu disse,
general, por favor. Os chefes dos três grandes serviços
secretos devem chegar dentro de uma hora, no máximo. E
agora, peço permissão para me retirar. Tenho efetivamente
obrigações a cumprir.
Li afastou-se apressado. Perturbado e preocupado com
o que ouvira, Pounder fixou o olhar ausente sobre o
mostrador do relógio.
Porém, pôs-se de pé rapidamente ao avistar a jovem.
Conhecia-a bem; mas, da frágil menina de rosto pálido e
olhos ardentes, apenas ouvira falar.
— Como está? — o indagou, mecanicamente,
enquanto procurava sondar os misteriosos olhos infantis.
Recapitulou mentalmente o que sabia sobre aquela
menina. Sem dúvida, Betty Toufry fazia parte do
legendário Exército de Mutantes da Terceira Potência.
Pounder engoliu em seco, impressionado com o
incrível da situação. Porém sabia que o pai de Betty
trabalhara num laboratório nuclear, tendo sofrido
alterações em seu gen. Na filha, estas alterações não se
manifestaram sob a forma de deformidade física, mas
142
resultaram numa capacidade mental extraordinária, muito
acima da de qualquer ser humano comum. Pounder
ignorava as qualidades específicas da inteligência da
menina, mas decidiu levar o caso ao chefe do Serviço
Secreto Ocidental. Não lhe agradava a ideia de ver Perry
Rhodan dar guarida a tais monstruosidades; muito menos a
de que as submetia a treinamento especial.
Sobressaltou-se ao ver Betty se afastar abruptamente.
Chegando junto ao cintilante campo energético dos
elevadores antigravitacionais, a menina murmurou:
— O senhor não devia pensar isso, general!
As palavras cruzaram o vasto recinto como um
sussurro trazido pela brisa.
Pounder deixou-se cair de volta na cadeira. Percebera
estar diante de uma telepata espontânea, um ser para o qual
não existiam pensamentos secretos e privados. O general
sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
* * *
Um vulto corria alucinado pelo negrume do espaço. O
silvo agudo dos pulsos-propulsores trabalhando no
máximo de sua capacidade parecia passar inteiramente
despercebido para o homem imóvel, sentado diante dos
controles.
Os pensamentos de Perry Rhodan, no entanto,
fervilhavam. Cruzou a órbita lunar a toda a velocidade. Na
frente do pequeno caça espacial brilhava já a Terra. Os
jatos de reversão de campo cuspiam para frente uma
torrente de partículas, em sentido contrário à direção do
voo. Em consequência, o pequeno aparelho em forma de
torpedo era freado, com uma desaceleração da ordem de
quinhentos quilômetros por segundo.
Rhodan verificou mais uma vez os dados do aparelho
automático de aproximação. À altura da órbita dos
satélites, o caça deveria estar na velocidade apropriada
para a aterrissagem. Pontinhos luminosos dançavam na
tela do hipersensor, que trabalhava com velocidade
superior à da luz. No alto-falante audiofônico espocavam
palavras esparsas. O que se projetava para o espaço, ali à
sua frente, era obra construída por mãos humanas, assim
como eram humanos os ocupantes das exíguas cabinas
pressurizadas.
O rosto de um rapaz surgiu na pequena tela do telecom.
Sorrindo e acenando com a cabeça, ele informou:
— Deringhouse para Cometa 1: segundo grupo
decolando a fim de tomar posição de alerta. Alguma
ordem, chefe?
Rhodan puxou o microfone articulado para diante da
boca. À frente de seu caça, a Terra emergia do vazio
espacial como uma gigantesca bola de inflar. Avistavam-
se nitidamente as Américas e um extenso trecho do
Oceano Pacífico. O litoral europeu envolvia-se lentamente
nas sombras crescentes da noite.
— Nenhuma; ao menos por enquanto. Nada de
explicações compridas, por favor. Recebi o aviso. O
alarma foi desencadeado?
— Conforme programado. Aquilo lá embaixo virou um
inferno!
Rhodan cortou a comunicação.
Os caças sob o comando de Deringhouse prosseguiram
em sua alucinante corrida para o espaço, enquanto Rhodan
iniciava a primeira órbita de frenagem. Após uma volta
completa em torno do globo terrestre, ele mergulhou nas
camadas superiores da atmosfera, com os anteparos
térmicos flamejando. Os gases incandescentes das massas
de ar violentamente deslocadas precipitavam-se
estourando no vácuo criado pelo aparelho em queda.
Parecia um meteoro consumindo-se em fogo, na atmosfera
cada vez mais espessa.
Era a técnica de aterrissagem de aproximação rápida
dos arcônidas. Cabia a projetores especiais, embutidos nos
anteparos térmicos, a tarefa de ionizar as renitentes
moléculas gasosas, a fim de expulsá-las da trajetória do
aparelho que se precipitava em direção ao solo.
Também aquilo constituía um processo avançado, que
mesmo um homem competente como o general Pounder
não imaginava nem em sonhos. Perry Rhodan valia-se dele
com a tranqüila naturalidade do iniciado. Por força do
hábito, mal percebia a violenta turbulência produzida na
atmosfera agora mais densa.
Seus pensamentos se concentravam inteiramente no
alarma. Uma situação aguardada com lúcida ansiedade
tinha se concretizado, afinal!
No entanto, Rhodan ainda ignorava os detalhes
essenciais. Mas, como o cérebro-robô positrônico havia
desencadeado o alarma, era de supor que a posição
galáctica do planeta Terra corria risco imediato.
A posição galáctica! Durante os últimos três anos, toda
a preocupação de Rhodan havia girado em torno deste
ponto. Pois há três anos, pouco após a criação da Terceira
Potência, seres extraterrenos haviam conseguido pôr pé na
Terra pela primeira vez. Debelado o perigo, semanas,
meses e anos decorreram sem ocorrências dignas de
menção, a não ser que se considerasse fora do comum a
febril atividade de construção desenvolvida na área
territorial da Terceira Potência.
Rhodan fora brindado com uma trégua de três anos. E
neste espaço de tempo o ex-major e piloto de provas da
Força Espacial dos Estados Unidos conseguira pelo menos
estabilizar definitivamente a vacilante paz mundial e
congregar as nações mais poderosas da Terra numa
coalizão de defesa.
Mas tudo aquilo seria ilusório caso a Terra fosse
novamente descoberta! O que ocorreria caso as
indubitavelmente existentes inteligências extraterrenas
tentassem alcançar a pátria dos homens — com armas de
poderio infinitamente superior — a fim de estabelecer-se
nela, ou desencadear um ataque de surpresa? O alarma
declarado tinha vindo confirmar os temores recônditos de
Rhodan.
O litoral norte da Sibéria surgiu à vista. Os sensores
indicavam que o caça estava sendo detectado por diversas
estações de radar. Que diferença fazia? O pessoal lá
embaixo sabia muito bem quem era o suposto maluco que
se precipitava do espaço pilotando um aparelho
aparentemente desgovernado.
Rhodan avistava agora a Mongólia. Quando começou a
aparecer nas telas à cercadura luminosa em torno da área
territorial da Terceira Potência, Rhodan recordou o
desesperado pouso de emergência feito ali três anos antes.
Ele regressava da Lua, onde fora o primeiro homem a
pisar, trazendo consigo os dois arcônidas. E a presença dos
seres extraterrenos é que o tinha levado a descer num
ponto isolado do globo.
Aquilo havia sido o começo de tudo. Seguiram-se
graves e profundos desentendimentos com as nações mais
poderosas da Terra; atacaram seguida e impiedosamente o
novo poder em formação, até verificar a total impotência
diante da tecnologia e armas de defesa dos extraterrenos.
143
O termo arcônidas passou a ser assunto de manchetes
mundiais. Agora se reconhecia de bom grado os benefícios
prestados à humanidade pela raça interestelar. Por outro
lado, existia o ponderável fato de que a vinda acidental dos
arcônidas à Terra aumentara muito o risco de esta ser
descoberta por outros seres cósmicos.
Provavelmente o planeta Terra continuaria sendo um
corpo celeste desconhecido por anos e anos se o cruzador
arcônida, destruído por mãos humanas, não tivesse
irradiado pedidos de socorro. Os sinais se espalharam pelo
cosmo. E dali em diante acabara-se a doce ilusão da
humanidade de ser única no universo.
Rhodan forneceu o código apropriado, para que o
cérebro-robô lhe permitisse passagem; o caça passou a ser
pilotado pela estação de controle remoto em terra. Perry
Rhodan ficou livre para entregar-se às suas cogitações.
Percebia com nitidez que a humanidade se encontrava
diante de um repentino despertar, que encerrava um
terrível potencial de perigo. E os homens teriam que
admitir a existência positiva de outros seres dotados de
inteligência, talvez superior à deles próprios. E o pior,
pouco ou nada tinha para opor-se a eles...
A face do homem alto e magro, confinado na apertada
cabina pressurizada do caça, denotava profunda
preocupação. Pois compreendia que caberia a ele e aos
dois arcônidas sobreviventes tomarem medidas para a
segurança da Terra.
A nave pousou suavemente. O pequeno reator de alto
rendimento, por trás da blindagem antirradiação na cabina
do piloto, foi desligado. Em consequência, cessou
igualmente a atividade do poderoso conversor de energia,
e do aparelhamento auxiliar, sem os quais jamais seria
possível controlar o tremendo potencial de força liberado.
O coronel Freyt estava a postos para receber o
comandante que regressava. Sua saudação foi curta e
breve, enquanto fitava Rhodan com expectativa.
Empurrando para trás o capacete, Rhodan aceitou o cigarro
oferecido. Nos olhos cinzentos brilhava mal contida
tensão.
Porém nada em sua aparência externa denotava que há
menos de uma hora se encontrava nas proximidades de
Marte, testando um novo caça espacial. Era o impassível
comandante de sempre, o homem sem nervos. Possuía,
pelo menos, extraordinária capacidade de negar a
existência de semelhantes contingências físicas.
— A Good Hope decolou com Thora e Crest, chefe! —
informou Freyt laconicamente. — Deringhouse e Nyssen
estão no espaço, com quarenta e cinco aparelhos cada um.
Conservei o terceiro esquadrão em terra, em rigorosa
prontidão. Apto para levantar voo em cinquenta segundos,
se for preciso. O general Pounder chegou pouco antes do
alarma. Está aguardando no palácio do governo. Posso
fazer uma pergunta, chefe! Que se passa! Cá embaixo,
nós...
— Bell não deu um pio, não é? — interrompeu
Rhodan. — A mim não adianta perguntar. Não tenho a
menor idéia. Mas fique de olhos abertos, está bem? Meu
aparelho?...
Freyt ficou vendo o helicóptero se afastar com uma
expressão de profunda inquietação. Em flagrante contraste
com as avançadas instalações na área da Terceira Potência,
o helicóptero era produto terrestre comum. Lá longe, a
cintilante cúpula energética desfez-se por um breve
segundo, admitindo a entrada do aparelho. Mas tornou a
erguer-se outra vez com o mesmo brilho contra o céu azul
do deserto de Gobi.
Rhodan pousou no heliporto do palácio do governo,
situado no topo do edifício. Recebeu com um sorriso
irônico as honras militares prestadas pelos robôs de
guarda. Sempre lhe parecera fútil sobrecarregar os
complexos cérebros dos guerreiros mecanizados com
aquela programação supérflua.
Além dos robôs, só uma pessoa havia comparecido
para recebê-lo. Rhodan dispensava as cerimônias de estilo.
O homem de cabelos negros e rosto fino envergava
igualmente o uniforme da Terceira Potência. Porém, o
elegante macacão não trazia insígnias de posto; apenas no
bolso esquerdo superior brilhava um símbolo estranho.
Olhando de perto, via-se que era um cérebro cercado por
brilhante auréola.
O mutante John Marshall procurou o olhar de Rhodan.
Adivinhava intuitivamente o que ia à cabeça do presidente.
E pareceu-lhe que Rhodan retardava propositalmente a
entrada na Central de Comando do palácio.
— Olá, Marshall! Como vai indo a leitura de
pensamentos?
— Mal, no que toca ao senhor, chefe! — constatou o
mutante. — O senhor está sendo aguardado. Bell está uma
pilha de nervos. Dentro de quinze minutos chega o pessoal
dos serviços secretos. Que fazemos com eles?
Sem uma palavra, Rhodan entrou no campo cintilante
dos elevadores antigravitacionais. Libertos de peso
flutuaram suavemente para baixo.
Marshall procurava antecipar mentalmente a provável
atitude de Rhodan naquela emergência. Em contraste com
a frenética agitação reinante no palácio do governo,
Rhodan era a calma personificada. Marshall sondou
cautelosamente as ondas cerebrais de seu acompanhante,
ainda metido em seu traje espacial e com os cabelos louro-
escuros empastados de suor.
— Desista, Marshall! — disse a voz grave. — É como
dar contra uma parede... Chegou a sondar o general
Pounder?
Marshall fez uma careta, com os olhos brilhando de
indignação.
— Ele nos toma por monstros! — resmungou. — Há
gente que se recusa a compreender que o que eles chamam
de monstros resultou de pesquisas monstruosas, das forças
nucleares que jogaram contra nós...
— Mas fora isso, Pounder é legal, não é? — respondeu
Rhodan, sorrindo. — Escute John, você não devia levar a
sério essas alusões a monstros e coisas semelhantes.
Procure pensar de preferência na impressão que seus dotes
super-humanos causam em viventes comuns. Pois eu...
Suas palavras foram abafadas pelo rugido de uma nave
espacial em processo de aterrissagem. Rhodan saltou do
elevador no pavimento seguinte.
— Ué, a Good Hope está voltando?
— Era o recado que eu tinha para lhe dar. Thora acha
mais conveniente, por enquanto, deixar a nave abrigada
sob a cúpula energética. Bell bloqueia o cérebro; não
consegui saber o que ele pensa a respeito disso tudo. Nem
ao menos sei o que está se passando!
As linhas angulosas do rosto contraído de preocupação
suavizaram-se num momentâneo sorriso.
— Que falta de consideração de Bell, não acha? Muito
bem, Marshall, chegou o momento! Você percebeu que eu
procurava ganhar tempo, não?
Rhodan fitou a pesada porta blindada de aço arcônida
que constituía a única entrada para a Central de Comando
144
do palácio. Dois enormes soldados-robôs montavam
guarda diante dela, com as carabinas energéticas
engatilhadas, prontas para disparar seus raios mortais.
O telepata sorriu; claro que tinha percebido.
— Vamos lá! E peça a Deus para que saiamos disso
incólumes também desta vez! Por enquanto, a Terra é
fraca demais para enfrentar ataques de alguma poderosa
nação galáctica. Nossos diminutos caças espaciais não
valeriam nada diante de uma frota de verdade. Venha!
A atitude dela era fria, controlada e arrogante. Mas
ninguém podia ter certeza de que dominava efetivamente
seus nervos. Thora, a ex-comandante do cruzador espacial
em missão de pesquisa, forçado a pousar na Lua e
posteriormente destruído por obra humana, tornava a
tomar consciência de sua condição de arcônida. Rígida e
ereta, sua atitude denotava mais tensão do que
propriamente dignidade. Em silêncio, ela observava a
agitada movimentação de pessoas dentro da Central de
Comando.
Rhodan achava melhor não instalar aquela Central de
Comando, o ponto vital da Terceira Potência, no subsolo.
Pois no caso de a cúpula energética falhar, fosse qual fosse
à causa, até os mais sólidos abrigos subterrâneos seriam
inúteis.
O belo rosto de Thora, que não permitia adivinhar sua
verdadeira idade, assemelhava-se a uma máscara sem
expressão. Já tinha apresentado suas exigências. Agora
cabia a Perry Rhodan definir-se, mostrando até onde
estava disposto a satisfazê-las.
Thora não se sentia à vontade entre aquelas pessoas
afobadas, ocupadas e entregues a acaloradas discussões.
Descendente direta da dinastia reinante do Império
Arcônida, ela dera a entender por mais de uma vez que
considerava a raça humana inferior e subdesenvolvida.
Seu olhar dirigiu-se para o fundador e dirigente da
mininação terrestre chamada Terceira Potência. Um travo
de amargura repuxou involuntariamente os lábios bem
formados. Perry Rhodan era, sem dúvida, um ser humano
excepcional. E depois de haver absorvido, através da
aprendizagem hipnótica, todos os conhecimentos da raça
arcônida, tinha adquirido status super-humano. Nada mais
conseguiria surpreendê-lo.
Mas nem por isso justificava-se sua atual soberba;
devia lembrar-se com mais freqüência de que devia toda
aquela capacidade e conhecimento aos arcônidas. Era a
opinião de Thora, pelo menos há irritava um pouco ver
com que grandiosa e impressionante naturalidade Rhodan
fazia uso dos conceitos fornecidos por uma cultura
superior, cultura que os homens, três anos atrás, nem em
sonhos imaginavam existir.
E, no entanto, Rhodan manuseava forças elementares e
projetos ousados com uma segurança incrível, fazendo até
a mulher arcônida perder o fôlego. E ela tirara a falsa
conclusão de que Rhodan era a única pessoa merecedora
de atenção no meio dos quase quatro bilhões de habitantes
da Terra.
Uma ira profunda transpareceu na testa franzida
quando Thora percebeu o pressuroso entusiasmo de seu
conselheiro científico e companheiro de raça. Crest, o líder
dos cientistas arcônidas e representante da grandeza
intelectual do Grande Império, parecia estarem
inteiramente subjugados à vontade de Rhodan. Era
surpreendente ver o quanto esse homem dominava o
melhor cérebro do planeta Árcon.
Thora continuava a se manter a parte, na expectativa,
absorta em seu estranho sentimento de amor-ódio pelo
homem que lhe despertava incontida admiração, mas a
quem não fazia concessão alguma. Ao lado de uma
ilimitada indignação, turbilhonavam em sua mente
pensamentos suaves e ternos.
Nas telas côncavas do cérebro-robô positrônico piscava
e brilhavam as fórmulas dos cálculos finais. Rhodan
manipulava os controles com incrível desembaraço,
dominando uma máquina cuja perfeição mecânica jamais
deveria admitir ordens humanas. E, no entanto, ela
obedecia a Rhodan.
— Ruptura estrutural No 118! — anunciou a voz rouca
de um homem atarracado, de ombros largos.
Thora estremeceu. Reginald Bell, ex-capitão da Força
Espacial dos Estados Unidos e pioneiro lunar,
demonstrava seu propalado sangue-frio diante de
emergência. Mas era preciso conhecê-lo bem para
adivinhar a férrea calma que ia por trás da face zombeteira.
— Mais um salto, a centésima décima nona transição...
— disse Bell, elevando a voz acima do zunido dos
aparelhos. — É o quanto basta! Para que continuar
escutando as mensagens? E agora?...
Seu olhar ia de Perry Rhodan para Crest, num
incessante vaivém. Sabia que as opiniões dos dois homens
divergiam.
— Insiste nisso, Crest? — perguntou Rhodan,
erguendo-se da cadeira giratória.
O arcônida demonstrava sinais de excitação.
Ocorrência incomum na maneira de ser, em geral
ponderada e cordata, do ser extraterreno. Rhodan sentia
que a Terceira Potência do planeta Terra se encontrava em
vias de entrar numa nova fase. Portanto, acrescentou à sua
pergunta:
— Parece-me que acaba de iniciar-se a segunda etapa
de nosso empreendimento. Medite sobre isso. As
informações transmitidas por nossas estações-robôs em
Plutão indicam com clareza que as rupturas registradas
pelos sensores estruturais ocorreram no setor do sol Vega.
Foi constatado igualmente que inúmeras astronaves,
vindas do hiperespaço, executaram ali sua reentrada no
universo normal. Significando que seres desconhecidos
145
estão explorando ativamente o sistema planetário que deve
existir em torno de Vega. Conserve-se lúcido, Crest! Prezo
muito sua inteligência e tolerância e o auxílio que prestou
à Terra e aos homens tem sido inestimável.
— Pois então não lhe custaria nada atender uma vez a
um pedido nosso! — interrompeu Thora, do lugar onde
estava.
Haggard e Manoli, os dois médicos, se entreolharam. O
cenho franzido de Haggard revelava séria preocupação:
Thora estava criando problemas!
— Não nos foi possível até agora atender aos pedidos
que me fizeram — respondeu Rhodan, secamente. — A
posição galáctica da Terra precisa ser mantida em segredo,
custe o que custar. Já me bastou o incidente com invasores
extraterrenos há três anos passados. Crest está
redondamente enganado com suas suposições!
— Pois continuo pedindo e implorando uma expedição
imediata ao setor do sol Vega! — insistiu Crest. — Meus
cálculos provam, sem sombra de dúvida: o mundo que
tenho procurado tão desesperadamente se encontra entre os
planetas do sistema Vega! Perry, pelo menos uma vez,
aceda aos meus desejos! Faz quase quatro anos, na medida
terrena do tempo, que fomos forçados a descer na Lua.
Coisa que não fazia parte dos nossos planos. Eu vim para
este setor remoto da galáxia em busca de um planeta cujos
habitantes conhecem o segredo da conservação biológica
das células. O que quer dizer: a vida eterna.
— Mas o senhor ainda nem pode afirmar com certeza
que Vega possui planetas! — objetou Reginald Bell. —
Seus cálculos podem estar corretos. Mas e daí? Para mim
não é motivo suficiente para alguém se jogar naquele
caldeirão de bruxas. As naves que emergiram lá do
hiperespaço não ameaçam a Terra por enquanto, mesmo
que o cérebro positrônico tenha alvitrado a possibilidade
da Terra ter sido descoberta. Por razões óbvias, não creio
que seja o caso.
Rhodan persistia em seu inquietante mutismo. Lá
embaixo, no vasto salão de conferências, aguardavam os
chefes dos serviços secretos e os delegados das nações
terrestres. O alarme fora de âmbito mundial. E agora
aquela surpresa!
— Mas trata-se de naves arcônidas, cujos comandantes
vêm igualmente com a missão de procurar o mundo da
vida eterna, tenho certeza! — teimou Crest.
A impassibilidade de Rhodan parecia transtorná-lo
profundamente.
Novamente a resposta foi dada por Bell:
— Por que tenta iludir-se a si próprio, Crest? Todos
nós sabemos que a outrora poderosa e ativa raça dos
arcônidas degenera a olhos vistos. O declínio mental já era
tão acentuado há quatro anos que a tarefa de equipar seu
cruzador de pesquisa custou esforços inauditos. A turma
que surgiu do hiperespaço lá em Vega não tem nada a ver
com seus patrícios, os arcônidas. Confie em meu instinto.
Recuso decolar com a Good Hope num vôo mais rápido do
que a luz. Assim como detectamos e localizamos com
exatidão os abalos da estrutura espacial, os desconhecidos
nos perceberão por sua vez. Com o que delataríamos a
posição de nosso sistema solar. Que diabo, afinal eu sou o
ministro da segurança, não é?
Bell ergueu-se da poltrona de controle. Acima dele
cintilavam as telas dos hipersensores, funcionando em
velocidade superior à da luz. O major Nyssen, comandante
do 2o Grupo de Caça Espacial, comunicava não haver
vestígio de objetos estranhos no âmbito do sistema solar.
— Viu? — exclamou Bell, carrancudo, com os pálidos
olhos azuis cheios de animosidade. — Crest, ninguém vai
me forçar a sacrificar a Good Hope! Os sensores
estruturais em Plutão registraram até agora cento e vinte e
duas transições. Todas na vizinhança imediata de Vega!
Pretende mesmo jogar nossa única espaçonave grande no
meio daquele caos? Seria rematada loucura!
— Sua opinião não é a decisiva, Bell! — exclamou
Thora, acremente, enquanto assumia uma postura ainda
mais rígida. Porém o rosto denotava intensa comoção.
“Uma bela mulher!” constatou Rhodan. Não pela
primeira vez; já se habituara a reconhecer a beleza da
arcônida, e seu cérebro apenas confirmava
automaticamente o fato, como coisa rotineira. Ficou
observando Thora com os olhos semicerrados.
Ela emudeceu no meio da frase ao ver o estranho
sorriso de Rhodan. A face contraída não escondia mais o
nervosismo.
— Prossigamos! — encorajou Rhodan. — Que mais
precisa ser dito?
Bell cerrou os poderosos punhos.
— Eu nada tenho a dizer! — reclamou, irritado. —
Perry é que é o chefe. Sei que não me suporta, Thora; mas
bem que poderia pensar um pouco na nossa nave. E a
única mais rápida do que a luz disponível no momento. A
sorte ainda nos protegeu desta vez, está claro? Quando
escutei o primeiro sinal de alarma da estação em Plutão,
imaginei ver surgir sobre a Terra uma frota atacante.
Prefiro pecar por excesso de cautela, o que não pode
prejudicar nem a Humanidade, nem a vocês, arcônidas.
Dentro de aproximadamente um ano, nossos estaleiros
terão concluído a construção das novas naves e então
poderemos fazer outros planos. Vou erguer as mãos para
os céus se nos deixarem em paz até lá. Atualmente não
dispomos ainda de armas para enfrentar inteligências
cósmicas. E justamente nestas circunstâncias você insiste
em fazer o que vínhamos evitando nos últimos três anos,
por medida de segurança: um hipersalto espacial. E em
direção de Vega, ainda por cima, onde acaba de aparecer
uma numerosa frota espacial!
Rhodan pigarreou.
John Marshall sorriu zombeteiro. O coronel Freyt,
chefe da Força de Caça Espacial, que chegara momentos
antes, divertia-se com a eloqüente arenga de Bell.
— Você me recusa toda e qualquer oportunidade,
Perry! — queixou-se o arcônida, com voz magoada. —
Durante três anos tem se oposto até as viagens curtas, no
raio de cinquenta anos-luz.
— Exato. Sempre fui obrigado a refrear minha própria
curiosidade a bem da segurança da Terra. Poderiam nos
localizar. Sabe muito bem que nenhuma concentração de
energia incipiente é tão fácil de localizar quanto uma
distorção da estrutura gravitacional.
— Já esperamos bastante! Continuo a afirmar que as
naves surgidas no sistema Vega provêm de Árcon, minha
pátria. Justamente por causa da degeneração que se alastra
cada vez mais, somos obrigados a tentar prolongar a vida
útil das mentes ainda sãs, submetendo-as a um processo
artificial de rejuvenescimento. O Conselho Central de
Árcon deve ter feito um esforço supremo a fim de
possibilitar ainda no último momento a descoberta do
planeta da preservação celular.
— Exijo a partida imediata! — manifestou-se
novamente Thora. — Estou certa de poder entrar em
contato com meu povo no sistema Vega. Transmitimos a
146
você tudo que sabemos através da hipnoinstrução, portanto
não precisa mais de nós, Rhodan. Faço-lhe presente da
Good Hope. Leve adiante seu plano de elevar sua tão
amada Humanidade a um poder galáctico, da forma que
achar melhor. Mas primeiro será preciso domar os seres
primitivos de sua raça, dominados pelo instinto. Meios
para isso não lhe faltam. Portanto, repito minha exigência:
quero decolar e ser conduzida para Vega!
— Que idéia absurda! — gritou Bell, furioso. — Será
preciso lhe dizer claramente que a altiva raça arcônida
chegou ao fim? Sinto muito, porém é tempo de que alguém
lhe abra os olhos, Thora. Ainda guardo nitidamente na
memória a expressão passiva e sonolenta dos rostos dos
tripulantes de seu cruzador aniquilado. Você e Crest
podem se dá por satisfeitos, ainda conservam a mente
ilesa. Pois a usem para pensar e não para alimentar
fantasias irreais!
As palavras eram duras, de uma franqueza quase
brutal. Rhodan aguardou o resultado delas.
Thora tremia de indignação. Crest pareceu desmoronar
interiormente. Abalado, deixou-se cair no primeiro assento
que encontrou. Na Central de Comando o silêncio era
opressivo. Apenas o berreiro incessante do
radiotransmissor galáctico se fazia ouvir da peça vizinha.
— Coronel Freyt!
A voz de Rhodan era seca e impessoal. Sobressaltando-
se, Freyt assumiu involuntariamente a posição de sentido.
Bell fitou o comandante com os olhos arregalados.
Conhecia bem aquela expressão. Rhodan era o tipo
humano classificado pelos psicólogos da Força Espacial
como de adaptação instantânea. E o hipnotreinamento
recebido dos arcônidas intensificara ainda mais essa
capacidade.
Perry Rhodan era agora o comandante severo e
intransigente que não admitia contradições.
— Às ordens! — respondeu Freyt, engolindo em seco.
— Mande o major Deringhouse aterrissar
imediatamente! Nyssen fica em órbita lunar com seu
grupo. Obrigado! Capitão Klein?
O segundo homem se perfilou diante do comandante.
Os olhos cinza-névoa deste não encorajavam perguntas.
Rhodan não tinha consciência de que dominava os
presentes com o poder de sua vontade, forçando-os
inconscientemente a aceitar suas sugestões.
— Colocar em prontidão um esquadrão de emergência.
Cinquenta homens bastam. Assuma o comando. Sintonize
igualmente cem guerreiros-robôs para frequência
individual. Decolamos dentro de cinco horas, exatamente.
Obrigado!
Dois homens abalados deixaram o recinto.
Crest ergueu-se lentamente; o rosto ao mesmo tempo
jovem e idoso refletia profunda emoção.
— Muito obrigado! — falou, com voz embargada. —
Encontrará todo o apoio imaginável no sistema Vega.
Talvez eu possa conseguir até que lhe cedam um cruzador
espacial realmente capaz de enfrentar batalhas. O Grande
Império protegerá a Terra em toda e qualquer
circunstância. Jamais esqueceremos o que fez por nós.
Eu!...
Mas Crest calou diante do olhar do homem magro, de
estatura elevada. Pois leu no fundo dos olhos claros um
remoto indício de piedade, amenizando a anterior
expressão autoritária.
— Crest, eu lamento ter que dizer isso, mas não vai
encontrar uma só nave arcônida no sistema Vega! Não se
iluda! A ansiedade enche sua mente de sonhos. A raça
arcônida não possui mais condições para desencadear um
ataque maciço desta espécie. Lembre-se de que
localizamos mais de cento e vinte espaçonaves em
transição. Isso não é gente sua!
O corpulento ministro da defesa se adiantou.
— Exatamente o que penso! Mas por que insiste em
decolar, Perry, se é que me permite a pergunta? De acordo
com as observações feitas, o ataque não se dirige contra
nós. Por que atrair a atenção dos desconhecidos, homem?
Por que, Rhodan? É mais do que evidente que a ação deles
se concentra em torno do sol gigante. Será que refreamos à
toa nossa impaciência por vôos interestalares nestes três
últimos anos? Parece que todo mundo ficou biruta de
repente por aqui!
— Se eu fosse ditador, você estaria frito agora, Bell! —
murmurou Rhodan, com seu famoso sorriso enigmático
brincando no canto dos lábios. — Nunca lhe ocorreu que
poderia estar enganado?
— Enganado, eu? — replicou Bell, atônito.
— Sim, isso mesmo. A Good Hope decola dentro de
cinco horas! Exclusivamente no interesse da Terra, em
missão de reconhecimento. Pensa que vou permanecer de
braços cruzados diante de uma invasão extraterrena a
apenas vinte e sete anos-luz daqui? E trata-se efetivamente
de uma invasão! Negociantes ou pesquisadores nunca se
apresentariam assim em massa, com naves evidentemente
poderosas. E mais uma coisa!...
Perry Rhodan olhou em torno com ar severo.
— ...mais uma coisa, senhores, que passou
despercebida de todos: alguém, lá longe no espaço
galático, cometeu um pequeno erro de cálculo. Esta
invasão tinha por objeto real a Terra, e não Vega. Os
chamados de socorro emitidos da Lua pelo cruzador
arcônida foram registrados com uma falha infinitesimal.
Ora, levando em conta as distâncias galácticas, um desvio
mínimo na navegação hiperespacial resulta em errar o alvo
visado por vinte e sete anos-luz. É por isso que vamos dar
uma olhada nos acontecimentos. Senhores, a segunda
etapa está se iniciando. Ou a segunda crise, se preferirem.
Marshall anuncie-me aos delegados no salão!
Rhodan colocou o quepe na cabeça, fez uma rápida
continência e encaminhou-se para a porta blindada. O
tenso silêncio provocado por suas últimas palavras foi
rompido por uma risada sarcástica.
Reginald Bell postou-se com ar de desafio diante dos
complicados aparelhos de detecção.
— Veremos quem está com a razão, comandante. Mas,
se com esta doidice atrairmos seres estranhos para a Terra,
eu me permitirei a liberdade de taxar de irresponsável o
ilustre major Perry Rhodan, dirigente da Terceira Potência.
E, com sua licença, comandante, se algum subordinado
meu cometesse erro de tal monta, eu o mandaria submeter
à corte marcial, sob a acusação de comprometer
deliberadamente a segurança mundial.
Firmando as mãos sobre o encosto de uma das
poltronas, o Dr. Manoli aguardou fremente a reação de
Rhodan. Voltando-se lentamente, ele declarou em tom
suave, acompanhado de uma olhar enigmático:
— Eu também faria o mesmo, Bell!
A porta de aço fechou-se com um baque surdo. Os
braços metálicos dos guerreiros-robôs de fabricação
arcônida abaixaram imediatamente as armas apresentadas
em continência. O chefe se retirara.
— Bom psicólogo é que você não é! — comentou o
147
Dr. Haggard, ministro da saúde da Terceira Potência desde
sua criação e fundador da renomada Clínica Arcônida.
O corpulento gigante tomou o rumo da porta blindada.
Eric Manoli, ex-médico de bordo da Stardust
acompanhou-o sem comentários. Reginald Bell seguiu-os
com um olhar sombrio. Depois fitou os dois arcônidas.
E compreendeu, num relance, por que Rhodan desistira
de sua contínua oposição contra viagens espaciais mais
rápidas do que a luz: porque fora obrigado a ceder.
As circunstâncias não permitiam mais a recusa de um
vôo interestelar. Pois a possibilidade de transformar Thora
e Crest em ferrenhos inimigos da Humanidade era muito
mais arriscada do que a eventual descoberta da Terra por
seres estranhos.
Além disso, havia desconhecidos operando
relativamente perto dali...
* * *
O ruído dos potentes pulsos propulsores em
funcionamento fazia pensar no rufar de imensos tambores
acionados por gigantes invisíveis. Rugindo, a Good Hope
se ergueu no ar.
Seu local de pouso ficava debaixo da grande cúpula
energética. Assim que a curvatura do polo superior da
esfera com sessenta metros de diâmetro ameaçou tocar a
radiosa cobertura, o cérebro-robô positrônico reagiu, com
a precisão de um mecanismo desprovido de nervos. O
campo energético entrou em colapso, deixando passar a
nave. Porém, segundos após, voltou a ver-se a intensa
luminosidade produzida pela incompreensível força
desconhecida. Com o reerguimento do anteparo protetor
emudeceu igualmente o tonitruante rugido do aparelho em
ascensão. Segundos após, ele sumiu no céu do deserto.
Rhodan acelerava com valores que levariam à
incandescência, por efeito da fricção do ar, qualquer outro
veículo.
O general Pounder refreou a custo seus sentimentos.
Para o homem habituado à atividade espacial, constituía
espetáculo grandioso ver a gigantesca nave projetar-se
para o alto com tamanha facilidade. Diante daquilo, os
foguetes usados pela Força Espacial dos Estados Unidos
pareciam lerdos e pesados; ineficientes com seu primitivo
sistema de propulsão nuclear. E não só os americanos!
Também o marechal Gregor Petronski, chefe da Defesa
Aérea e Espacial Oriental, não conseguia disfarçar a
emoção nos traços pétreos do rosto. Os olhares dos dois
altos oficiais se cruzaram.
Pounder disse:
— Que é feito de nosso orgulho? Uma formiguinha
pisada por pé gigante não poderia se sentir mais indefesa e
insignificante...
O marechal preferiu não responder. Sua atitude era
significativa. Não havia mais lugar para divergências e
inimizades mal disfarçadas. Pelo menos aquilo Perry
Rhodan conseguira obter com o simples fato de criar sua
Terceira Potência.
O homem baixo e franzino, aureolado com uma coroa
de cabelos dourados, sorriu com benevolência. Ninguém
diria que se tratava do chefe todo-poderoso de um serviço
secreto denominado Conselho Internacional de Defesa.
Allan D. Mercant avançou alguns passos. A
conferência relâmpago realizada por Rhodan causara
tremendo impacto. Mercant consultou o relógio. Sua voz
era calma e amável como sempre:
— Vamos cavalheiros? Ou alguém ainda duvida da
existência de raças altamente desenvolvidas além da
nossa? Em caso negativo, rogo-lhes que comuniquem aos
respectivos governos o resultado de nossas conversações.
Estarei em Washington durante os próximos dias.
Viajamos junto, general?
Pounder concordou com um aceno.
— E o que acontecerá caso o voo de Rhodan acabe em
insucesso? — indagou uma voz.
Pertencia a Kosselov, o chefe do Serviço Secreto
Oriental.
Mercant enxugou o suor da testa com as costas da mão.
— Neste caso, só nos restaria fazer votos pela não
descoberta da Terra. Meus senhores, neste momento é
imprescindível alertar nossos governos para o fato de que
não estamos mais sós! E seria mais do que oportuno
renunciar de uma vez por todas a qualquer preconceito
ainda existente contra a unidade universal. A Humanidade
não pode apresentar-se desunida diante de eventuais
invasores cósmicos.
O grupo se desfez.
— Faço votos pelo êxito da expedição! — murmurou
Petronski. — Se os dados registrados pelos localizadores
forem corretos, Rhodan vai se meter num verdadeiro
inferno. Qual é a capacidade de reação da Good Hope?
— Tudo depende das armas possuídas pelos
adversários desconhecidos!
— Bem, aguardemos! — respondeu Petronski. — Vou
preparar o alarma atômico em minha área de comando.
Pois gostaria de estar razoavelmente preparado caso seres
estranhos comecem a se interessar por nós.
A densa floresta de Vênus ainda reverberava com o eco
da estrondosa decolagem da Good Hope, porém a nave já
desaparecera no turbilhão convulso que sua ascensão
provocara na cobertura de nuvens do segundo planeta do
sistema solar. As massas de ar violentamente deslocadas e
comprimidas haviam sido aquecidas até quase a
incandescência; uma faixa luminosa revelava o rumo
tomado pela nave, que decolara verticalmente, após vencer
a distância Terra-Vênus em cerca de quarenta minutos.
Para Perry Rhodan, a escala em Vênus não passava de
um breve pouso com a finalidade de colher informações.
Porém estas informações eram de vital importância. É que
o cérebro-robô, relativamente pequeno, existente na área
148
terrestre da Terceira Potência não continha dados sobre o
provável sistema planetário do sol Vega; portanto, Rhodan
alimentava a vaga esperança de encontrar algo no
computador gigante de Vênus. O monstro mecânico-
positrônico, construído por cientistas arcônidas na remota
era de sua expansão galáctica, fornecera de fato os dados
que Perry Rhodan precisava.
O mais difícil fora convencer Thora e Crest da
necessidade do pouso prévio em Vênus. Mas, por trás do
sorriso amável, a exigência de Rhodan era explícita: só
arriscaria a transição para Vega, a apenas vinte e sete anos-
luz de distância dali, se pudesse obter primeiro dados reais
e concretos sobre a família planetária da estrela gigante.
Thora a Crest encerraram-se em teimoso mutismo. A
situação a bordo da Good Hope beirava perigosamente os
limites de uma séria desavença. E Rhodan percebia a
necessidade urgente de chegar a uma solução mediadora.
A consulta ao gigante positrônico, mil vezes mais
eficiente do que o cérebro retirado da Good Hope e
instalado na Terra, resultou positiva. Realmente, as naves
arcônidas tinham explorado as vizinhanças do Sistema
solar há cerca de dez mil anos, em contagem terrena de
tempo, por ocasião das expedições migratórias então
efetuadas. A fortaleza em Vênus fora construída com a
finalidade de servir como uma espécie de refúgio cósmico
para situações de emergência.
Na ocasião, os atualmente degenerados arcônidas
deviam encontrar-se ainda em plena posse de sua
capacidade mental e criativa. Nada mais natural, portanto,
do que acumular informações acerca do armamento
vizinho à Terra.
Perry Rhodan contara com isso. Mas, para Thora e
Crest, era uma inesperada surpresa. Como o cérebro-robô
do cruzador de pesquisa destruído não continha tais dados
em seu banco de memória, os dois arcônidas haviam
concluído que o computador gigante de Vênus nada
saberia também acerca do sistema planetário de Vega.
Rhodan viu-se obrigado, a contragosto, a chamar a
atenção do cientista Crest para um engano frequentemente
cometido por sua raça: o arquivo positrônico central do
distante planeta Árcon não era tão completo quanto os
arcônidas julgavam. Acabavam de ter uma prova positiva
disso. De onde se poderia concluir que muitas das
expedições feitas pelos arcônidas a mundos afastados
jamais haviam sido reveladas e registradas. Fato que Crest
costumava negar com veemência.
Provido com informações essenciais, Rhodan levantou
voo de Vênus, mas agora com seu rumo bem traçado.
* * *
Na cabina de comando da nave esférica mal se ouvia o
ronco surdo dos propulsores trabalhando em carga
máxima. Carga máxima; isso significava a expulsão, à
velocidade exata da luz, de um jato de partículas coerentes,
compactadas por um campo energético gerado em espaço
hiperestrutural.
Perry Rhodan e os arcônidas denominavam o processo
onda de corpúsculos, noção que provocara verdadeira
sensação nos meios científicos terrestres. A tecnologia
arcônida parecia estar ferozmente empenhada em invalidar
as teorias prevalentes na Terra, e em tornar realidade
impossibilidades científicas. A julgar pela última aula de
Rhodan na mundialmente famosa Academia Espacial,
seria preciso esquecer a maior parte do que os homens
tinham aprendido até então caso quisessem enfronhar-se
nos conhecimentos arcônidas. Ou então reformular por
completo a maneira de ver as coisas.
Pulsopropulsão e onda de corpúsculos eram conceitos
explicáveis apenas através da matemática
pentadimensional.
A Good Hope acelerou na razão aparentemente
alucinante de quinhentos quilômetros por segundo, o que,
em teoria, lhe permitiria alcançar velocidade igual à da luz
em dez minutos.
Também aqui se aplica o princípio claramente
estabelecido para a velocidade relativística, de acordo com
a simples relação linear de que a velocidade é igual a
tempo vezes aceleração constante.
Para o observador na Terra, no entanto, após dez
minutos de aceleração constante, a nave teria alcançado
apenas uma velocidade correspondente a 70% da luz.
Para Rhodan se tornavam aplicáveis os conceitos mais
elementares da contração relativística proporcional do
tempo. Sob o ponto de vista dos conhecimentos humanos,
as equações envolvidas eram bastante complexas; porém,
arcônidas do nível de Crest costumavam fazer os cálculos
mentalmente.
O domínio de uma nave interestelar acarreta inúmeros
problemas. A despeito de sua excepcional capacidade
científica,, Rhodan e Reginald Bell se defrontariam com
obstáculos insuperáveis não fosse o hipnotreinamento
recebido dos arcônidas. Rhodan pilotava com mão firme e
ânimo tranquilo a nave, em seu vertiginoso voo pelo
sistema solar. Os controles quase totalmente
automatizados permitiam que a Good Hope fosse
controlada por uma só pessoa em caso de necessidade,
desde que esta estivesse familiarizada com a técnica
arcônida.
Crest e Thora aguardavam a transição iminente com a
indiferente calma provinda do hábito. Rhodan e Bell, no
entanto, não escondiam seu nervosismo, apesar de terem
sido devidamente preparados para a experiência. E as
coisas corriam bem demais!... Os cálculos necessários para
o vencimento de um trecho espacial correspondente a,
vinte e sete anos-luz já estavam sendo feitos, com Vega
por objetivo final. Compilando os dados básicos
fornecidos pelos localizadores — a distância do alvo, a
massa da nave e os campos gravitacionais prevalentes — o
computador galatonáutico calculou a taxa de impulsão,
conceito completamente incompreensível para pessoas
comuns, e que os arcônidas denominavam hipervelocidade
de fuga universal.
Rhodan sabia muito bem que o rompimento da barreira
da luz não podia ser nem concebido nem explicado com a
matemática terrena. Portanto viu-se obrigado a relegar ao
esquecimento toda sua bagagem de aprendizado
tradicional e guiar-se apenas pelos preceitos da ciência
arcônida. Era suficiente para provocar tanto nele como em
Bell profundos conflitos emocionais. Haviam passado por
todas as experiências possíveis e imagináveis, o que não os
impedia, porém de se sentir agora como o homem pré-
histórico diante de seu primeiro contato com o fogo:
sabiam como usá-lo, porém ainda ignoravam que ele podia
igualmente ferir e matar.
O ruído dos quatro pulsopropulsores sincronizados
intensificou-se, lembrando trovoada roncando ao longe.
Quanto mais a Good Hope se aproximava da velocidade
exata da luz, tanto mais acelerado se tornava o trabalho das
máquinas de fabricação extraterrena.
149
A órbita terrestre ficara para trás. A nave afastava-se
do Sol, a fim de iniciar o salto hiperespacial ainda no
âmbito do sistema solar. Quando o ponteiro do
velocímetro chegou a uma fração centesimal da marca que
indicava a velocidade da luz e os sinais acústicos do piloto
automático principal clamaram por empuxo adicional,
Rhodan soltou as mãos dos controles e girou em sua
poltrona.
Apenas os líderes da reduzida tripulação se
encontravam reunidos na cabina de comando. Nas
numerosas telas de observação externa cintilavam sóis
remotos, muitos dos quais deviam possuir sistemas
planetários.
Um rápido toque no comutador extinguiu as luzes
piscantes no painel do controle. Thora olhou para Rhodan
intrigada, perguntando em tom inquieto:
— Por que suspendeu a aceleração, Rhodan?
O comandante ergueu-se lentamente de seu assento.
Bell ficou na expectativa. Algo estava errado.
— O excelente hipnotreinamento que recebi me gravou
firmemente na memória que não é aconselhável iniciar um
hipersalto de dentro de um sistema planetário — explicou
Rhodan, pausadamente. — Vamos prosseguir em queda
livre até atingir a órbita de Júpiter, em velocidade um por
cento abaixo da luz. Prefiro não provocar indesejáveis
distúrbios no campo magnético da Terra. Querem vir
comigo até a cantina?
Bell ligou os hipersensores, para detecção imediata de
qualquer corpo estranho, conectando-os com os projetores
dos anteparos de defesa. Depois seguiu Rhodan. O piloto
automático inteiramente positrônico merecia total
confiança, mais do que qualquer ser humano.
John Marshall, o mutante dotado de qualidades
telepáticas, sondou de longe os dois arcônidas. Não
conseguindo penetrar nas mentes bloqueadas, virou-se
para pedir auxilio à menina magra, de olhos imensos.
Betty Toufry brindou-o com um ligeiro sorriso que, no
entanto, não tinha nada de infantil. Com um movimento de
ombros, deu a entender que também ela não conseguia
captar o conteúdo mental dos extraterrenos, apesar de seus
dons serem mais fortes do que os de Marshall.
Tako Kakuta, o diminuto japonês que ainda há pouco
estivera de pé ao lado de Bell, desapareceu de repente. O
jovem com o espantoso dom da teleportação preferira mais
uma vez o caminho mais curto. Era parte de sua constante
prática e treinamento.
Além de Marshall, Betty e do franzino japonês,
encontravam-se a bordo duas pessoas que Bell antes da
decolagem conhecia apenas de nome. Rhodan mandara
dois caças espaciais ultrarrápidos ir buscá-los em Vênus,
onde ambos concluíam seu curso de especialização.
Dizia-se que Wuriu Sengu, o japonês gordo e troncudo,
era capaz de enxergar através de corpos sólidos usando
exclusivamente sua força mental. Mineiro de profissão,
sempre maravilhara seus companheiros com sua infalível
precogniçâo da produtividade de tal ou qual nova galeria
de carvão aberta. O Corpo de Busca de Mutantes da
Terceira Potência fora descobrir Sengu no Japão.
Ralf Marten, nascido igualmente no Japão, filho de um
comerciante alemão e mãe nativa, possuía dotes ainda
mais espantosos. Também ele pertencia à geração vinda ao
mundo pouco após a explosão atômica sobre Hiroshima. O
alto e esbelto jovem era capaz de abolir temporariamente a
própria identidade, assumindo parapsicologicamente a de
outra pessoa. Via por seus olhos e ouvia por seus ouvidos,
sem que a vítima encontrasse meio de eximir-se dessa
invasão. Capacidade que poderia explicar o extraordinário
êxito de Ralf Marten no mundo dos negócios.
Tako Kakuta, cuja mera presença provocava acessos de
irritabilidade em Reginald Bell, possuía o dom da
teleportação. Sem qualquer artifício, transportava seu
corpo para outro local em questão de segundos.
Betty, a menina, era duplamente excepcional. Além de
seus poderosos dons telepáticos, era capaz de executar a
telecinésia: usar seu poder mental para mover objetos sem
tocá-los com as mãos.
Estranhos tripulantes aqueles cinco mutantes! Para os
arcônidas, cuja cultura mais adiantada admitia tais
fenômenos, o grupo ainda era considerado tolerável. Mas
os tripulantes humanos comuns consideravam-nos
verdadeiras monstruosidades. Claro que jamais alguém
expressava esta opinião em voz alta, evitavam até pensar
nisso, porém era a maneira de ver que predominava entre
os demais membros da tripulação.
Na espaçosa cantina da nave auxiliar do cruzador
arcônida, adaptada às necessidades humanas, formou-se
uma nítida barreira de separação entre os mutantes e os
cinquenta homens da tropa de choque destacada para a
missão. Apenas olhares carregados de respeito, admiração
incontida, desconfiança e curiosidade voavam de um lado
para outro. O Exército de Mutantes, unidade especial da
Terceira Potência, constituía poderoso fator de segurança.
Era compreensível que os cinquenta integrantes da tropa
de choque se sentissem inferiorizados, a despeito de sua
formação categorizada.
Rhodan tinha plena consciência de não poder
harmonizar em uma só geração o cisma profundo entre
pessoas normais e mutantes. Portanto, ele contentava-se
em obter um convívio razoavelmente tolerável entre os
dois grupos.
Reinava na cantina um clima feito de extrema tensão,
excitamento e conformada resignação. Esta provinha
principalmente de Reginald Bell, que via suas enérgicas
objeções à expedição interestelar serem completamente
ignoradas.
Rhodan foi breve. O impaciente olhar para o relógio
denotou que não estava disposto a perder tempo com
argumentos prolixos.
— Assim que chegarmos à órbita de Júpiter, partimos
para o primeiro salto hiperespacial jamais realizado por
homens! — anunciou, calmamente. No entanto, seu
nervosismo íntimo era aparente. — Peço-lhes
encarecidamente que obedeçam à risca às instruções
dadas. Os doutores Haggard e Manoli se encarregarão da
assistência médica assim que emergirmos no hiperespaço.
A ocorrência de danos físicos é pouco provável; a mente
também não será afetada. Se o processo fosse perigoso, a
raça arcônida teria sido extinta dez mil anos atrás.
Mantenham o maior relaxamento possível durante a
transição. A desmaterialização é inevitável durante o
fenômeno de passagem para o hiperespaço
pentadimensional. Nossos organismos sofrerão uma
passageira solução de continuidade, pois não podem
subsistir no estado presente num plano supernatural. Mas
podem estar certos de que, por ocasião do regresso à
dimensão quadridimensional de nosso mundo normal, cada
qual encontrará novamente seu apêndice no lugar exato
determinado pela mãe-natureza. Mais uma observação...
Rhodan percorreu a atenta audiência com um olhar
imperscrutável.
150
— O cérebro-robô de Vênus forneceu-me dados exatos
sobre o sol Vega. De acordo com ele, a estrela contava a
dez mil anos, tempo terrestre, com quarenta e dois
planetas. Fato nada surpreendente, em vista de suas
dimensões gigantescas. Uma expedição arcônida andou
explorando a área na época mencionada, colhendo
informações detalhadas. Vida inteligente só foi constatada
no oitavo planeta, denominado Ferrol. Consta que os
ferrônios têm aparência humana; pelo menos possuem dois
braços, duas pernas, uma só cabeça e andam eretos.
Quando os arcônidas visitaram Ferrol, os nativos
acabavam de descobrir a pólvora. O que nos permite
deduzir que atualmente, dez mil anos após, possuam armas
nucleares, ou estejam capacitados para viagens
interestelares. Podemos deparar com uma raça altamente
desenvolvida; ou com um monte de detrito planetário,
girando deserto e solitário em torno de seu sol,
inteiramente arrasado pela radioatividade. Seja como for,
estejam preparados para surpresas e mantenham a calma.
Recomendo uma hora de sono para quem conseguir
adormecer. Seria ótimo passar pela transição em estado de
sonolência.
Rhodan despediu-se com uma breve saudação e voltou
à cabina de comando. O capitão Klein dispensou os
homens. O major Deringhouse, responsável pelos dois
caças arcônido-terrestres trazidos a bordo, decidiu ir
inspecionar seus aparelhos.
Ao acionar a porta blindada que dava acesso ao hangar
dos aviões, ele murmurou consigo mesmo:
— Sei lá, a coisa não me cheira bem!
Bell alimentava dúvidas semelhantes.
Dispensando o elevador antigravitacional, subiu
resfolegando pela escada espiral de emergência.
Entrando na central de comando repleta de
instrumentos que ainda lhe aturdiam os pensamentos, Bell
percebeu um ligeiro clarão à sua frente. Do nada emergiu
um vulto humano que, em fração de segundos, se
materializou na frágil e inequívoca silhueta do japonês
Kakuta. A face infantil e compenetrada mostrava um
amável sorriso:
— Esqueceu seu quepe, capitão! — disse ele. — Aqui
está!
Contando mentalmente até três, Bell desferiu um soco
na direção do risonho jovem. Mas como este voltara a
tornar-se invisível, não havia o que acertar e o golpe se
perdeu no ar.
Bell encaminhou-se para o assento do copiloto. Rhodan
recebeu-o com expressão impassível; mas as minúsculas
rugas nos cantos dos olhos revelavam vontade de rir.
— Os mutantes têm ordem para treinar seus
excepcionais poderes sempre e onde puderem! —
comentou, ironicamente.
Bell fixou o olhar sobre as telas fronteiras, sem dar
resposta. Marte, o planeta vermelho, aparecia no quadrante
direito superior da tela de estibordo. A Good Hope cruzava
em velocidade máxima.
Thora, a esguia arcônida, ocupava o assento diante do
computador galatonáutico. Sua expressão era enigmática.
— Como se sente? — indagou Rhodan.
— Ótima, obrigada! Perry, você se parece com um
campo energético instável, pronto a entrar em colapso a
qualquer momento.
Sem responder, Rhodan mantinha o olhar fixo para a
frente. Em algum lugar das profundezas do espaço devia
estar o ponto cujas coordenadas estavam sendo levantadas
pelo computador. Era essencial que o hipersalto se
processasse exatamente na fração de segundo determinada.
Thora lançou um olhar suplicante para Crest. Não sabia
por que se sentia de repente tão deprimida.
A transição se processou com a rapidez de um
relâmpago. Fugaz demais para ser percebida pela
consciência. Mal ressoou nos ouvidos o reboar estrondoso
dos conversores do campo estrutural, acionados
espontaneamente, as telas refletiram luz violeta e tudo se
transformou de repente.
A cabina de comando parecia o olho incandescente de
um gigante mitológico; o aparelhamento foi se dissolvendo
em névoa e desapareceu.
A incipiente sensação de dor era aguda e lancinante.
Cessou ao atingir o auge, como se o sistema nervoso
tivesse se desligado espontaneamente.
Dentro do campo estrutural erigido com toda a energia
disponível, a fim de excluir por completo a entrada de
qualquer força quadridimensional, a Good Hope
transformou-se num corpo incapaz de continuar mantendo
sua estabilidade. A física avançada dos arcônidas dava ao
fenômeno o nome de efeito de sublimação. Ao mesmo
tempo, as ondas corpusculares que acionavam os
pulsopropulsores convertiam-se em unidades energéticas
pentadimensionais, uma vez que também não conseguiam
conservar as características normais dentro do campo de
absorção esférico. Portavam-se como água diante de uma
fonte térmica intensa: era forçada a vaporizar-se, por não
poder continuar em estado líquido no ambiente
modificado.
Rhodan tentara passar pela transição em estado
consciente. Porém não havia evidentemente diferença
entre cérebros arcônidas e humanos neste particular. Seu
último pensamento, antes de penetrar no hiperespaço, foi
para a futura rematerialização. Afinal, transformar matéria
em energia era simples; porém nunca se conseguira obter
substância física de energia pura, fosse qual fosse seu
estado ou constituição.
Todavia, no caso de uma transição, o efeito ocorria
forçosamente, só que a rematerialização consistia apenas
na reversão exata ao estado de origem.
O processo todo durou pouquíssimo. O anterior
conceito relativista de tempo perdera toda a validade. Anos
151
podiam valer por segundos, e vice-versa. A sombria cor
vermelha ainda predominava no ambiente quando a dor
excruciante voltou, aliada a aguda sensação de
desintegração. Mas os contornos dos objetos eram
novamente visíveis na cabina de comando.
O regresso ao universo normal foi espontâneo, sem
qualquer estágio intermediário. A visão clareou, os
sentidos retomaram o funcionamento normal, como se
nunca o tivessem interrompido.
Apenas as imagens captadas pelas telas eram
radicalmente diferentes. Nos vídeos frontais brilhava de
forma deslumbrante uma imensa estrela, que, de forma
alguma, poderia ser confundida com o sol terrestre. Era
grande e quente demais para isso, além de irradiar luz mais
clara.
Perry Rhodan foi arrancado do estado semiconsciente
pelo zumbido do sistema de alarma. Um gemido de dor
acabou de acordá-lo. Ao seu lado, uma voz preocupada
dizia:
— Parada dura, não é chefe? Tudo em ordem agora?
Rhodan viu-se diante de Tako Kakuta. O mutante
capaz de teleportação achava-se de pé diante do painel de
controle aparentando total indiferença.
— Senão...! — suspirou o comandante. — Como é que
você?...
— Ora, estou mais do que familiarizado com o
processo. Rematerializações são sempre iguais, quer sejam
provocadas por forças físicas ou psíquicas. Com o tempo a
gente se acostuma, pode crer. O alarma, comandante! Os
localizadores detectaram algo.
Rhodan não se preocupou com as irritadas
exclamações de seu copiloto, que levantava cambaleante
do assento. Com a face contraída de dor, Bell apalpou os
membros, um por um. Mas o sinal de alarma seguinte fez
com que ele ficasse instantaneamente alerta. Também
Crest e Thora davam sinais de vida. Das várias seções da
nave chegavam comunicados dizendo que estava tudo
bem. Haggard e Manoli confirmaram o bom estado da
tripulação.
O alarma fora ativado pelos sensores estruturais da
própria nave; tinham detectado violentas deformações na
estrutura do espaço. Os sinais continuaram a manifestar-se
por alguns momentos; depois foram rareando, até que a
última lâmpada se extinguiu.
Rhodan fitou os companheiros em silêncio. Estavam
todos presentes e, ao que parecia, sem ter sofrido o menor
dano. A atitude de Thora denotava tal superioridade e
condescendência que Rhodan não ousou expressar a
pergunta que lhe queimava os lábios.
Bell, no entanto, não se dominava tão bem. Vacilando,
e com a vista turva, aproximou-se das telas, indagando:
— Chegamos inteiros? Isso ai é Vega?
Soberbamente, a arcônida respondeu:
— Que acha? As hipertransições de nossas naves
sempre se processam com absoluto êxito!
— Saltamos por cima de vinte e sete anos-luz? — Bell
engoliu em seco, praguejando baixinho. Sem mais
comentários, voltou à sua poltrona, e pôs-se a recolher as
informações que iam sendo fornecidas, numa fita, pelo
painel de controle. Sim, tudo corria muito bem. Um
acontecimento inédito e espetacular para a tripulação
humana decorrera com a precisão de um mecanismo de
relógio bem ajustado. E ninguém parecia impressionar-se
com isso, muito menos os arcônidas.
Crest postara-se, fremente, diante dos calculadores dos
sensores estruturais. O resultado dos cálculos, inteiramente
automáticos, indicava a aproximação do primeiro planeta.
O fato era confirmado pelos hipervelozes localizadores;
seus impulsos se projetavam na dianteira da Good Hope,
sendo refletidos com a mesma incalculável rapidez.
Nas telas começaram a brilhar inúmeros pontinhos
verdes. Eram eles que despertavam o ardoroso interesse do
cientista arcônida.
— Nossas naves! — murmurou Crest, comovido. — E
uma frota inteira! Veja as indicações dos sensores
estruturais, Rhodan: mais de cinqüenta delas emergiram
quase simultaneamente do hiperespaço.
— Quando, exatamente? — indagou Rhodan, com fria
impassibilidade.
— Bem ao mesmo tempo que nós.
— Ótimo! — exclamou Rhodan. — Portanto não
devem ter detectado o abalo estrutural que provocamos
com nossa aparição. Coincidência benéfica, não?
— Seria conveniente proceder a um reconhecimento
mútuo — interveio Thora, excitada. — Não sinto
disposição para prolongar as buscas. Mande calcular o
curso para o oitavo planeta, por favor. Garanto que
daremos com nossas naves de pesquisa lá.
— É, talvez tenha razão, Thora... — respondeu Rhodan
com voz pausada.
Depois levantou a voz, ordenando energicamente:
— Bell, todos em prontidão de combate! Dê alarma
geral. Thora, encarrregue-se dos localizadores. Bell, você
fica com o comando do centro de armamento!
Bell não fez comentários. O brilho dos olhos de aço do
chefe lhe dizia o suficiente.
As campainhas de alarma se fizeram ouvir em todas as
dependências da nave. Entreolhando-se alarmados, os
homens fizeram seus preparativos.
Deringhouse anunciou pelo intercom que os dois caças
estavam prontos para a manobra de ataque.
— Você enlouqueceu? — gritou Thora, com os olhos
vermelhos flamejando de ira. Ereta, diante do homem alto
e magro, tremia de ódio.
— Talvez sim, talvez não... — replicou Rhodan com a
maior tranquilidade. — Mas não sou louco bastante para
me precipitar ébrio de alegria num sistema planetário
desconhecido. Já lhes disse mais de uma vez que não creio
na existência de naves arcônidas. Queira ocupar sua
posição de combate, por obséquio.
Furiosa, Thora obedeceu, sob o olhar indiferente de
Rhodan.
— Capitão Klein! Cuide da orientação... — ordenou
Rhodan, tranquilo. — Wuriu Sengu, mantenha-se atento.
Atravessaremos o sistema Vega em cerca de oito horas.
São quarenta e dois planetas, com distâncias fabulosas
entre um e outro. Obrigado, é tudo!
Ao retomar seu lugar de piloto, os reatores do circuito
externo começaram a funcionar ruidosamente. Em torno
do revestimento da nave foi-se formando, após breves
lampejos luminosos, o anteparo protetor de unidades
energéticas extradimensionais. Seguiu-se o campo repulsor
de corpos materialmente estáveis. Com isso, a Good Hope
munira-se dos recursos defensivos mais avançados da
tecnologia arcônida.
Os pontinhos verdes continuavam a luzir nas telas dos
sensores. Distantes ainda, a mais de três horas-luz, que a
Good Hope percorreria com sua velocidade normal.
— Exijo uma transição de curta distância! — gritou
Thora.
152
Rhodan não lhe respondeu. Thora calou-se, porém era
evidente que não se conformava. Ao fundo da cabina, os
cinco mutantes formavam um grupo unido e quieto. Betty
Toufry e John Marshall captavam sensações e
pensamentos que nenhum mortal comum perceberia.
Momentos após, a menina murmurou, baixinho:
— Ouço almas chorando! Tem gente morrendo. Muitos
mortos. O espaço está repleto de lamentos e soluços.
Desespero, dor, morte!
Os olhos profundos estavam dilatados, vastos como o
espaço cósmico. Bell fitou-a, impressionado. Nas telas dos
detectores da nave interestelar os pontos verdes se
multiplicavam. Rhodan ordenou alarma total, o sistema
positrônico de mira entrou em funcionamento. No vídeo,
Vega brilhava como o olho ciclópico de um deus
ameaçador.
Lá adiante, nas profundezas do sistema planetário da
grande estrela, sucedia algo ainda não de todo
compreensível...
* * *
O grito ecoou surdamente na cabina de comando.
Ninguém havia contado com o que estava acontecendo e
os fatos tinham chegado de surpresa, precipitando-se sobre
eles como uma ágil fera dando o bote.
A gigantesca Vega, principal estrela da constelação da
Lira, refletia-se nos vídeos como uma imensa bolha de
sabão iridescente. Um sol de proporções verdadeiramente
avantajadas.
Com isso, a tripulação tardou a discernir os longínquos
raios luminosos, finos como fios de cabelo, e o relampejar
contínuo de minúsculas explosões. Apenas as telas
amplificadoras, com sua magnitude de foco, acabaram
revelando a ocorrência de um tremendo conflito nas
imediações da órbita do décimo quarto planeta.
Cinco minutos após a detecção positiva, os
hipervelozes sensores de localização se fizeram ouvir. Seu
estridente clamor ainda prosseguia. O equipamento
altamente sensível, que reagia à presença de descargas
energéticas, não fora instalado em vão. Mas era tarde
demais, pois a Good Hope seguia com a mesma
velocidade, quase igual à da luz. Portanto seria impossível
desviar das naves surgidas de maneira tão inesperada, ou
esquivar-se de passar através de suas confusas trajetórias.
Os propulsores gêmeos de estibordo rugiram numa
furiosa exibição de força. Um desvio mínimo de rumo
bastaria, naquela velocidade alucinante, para arrancar a
Good Hope da área imediata de perigo. Mas os
amortecedores de inércia protestaram guinchando,
obrigados a dissipar a energia que Rhodan canalizara
momentos atrás, para os projetores dos anteparos de
defesa.
A seta luminosa que se lançava contra a Good Hope
não podia estar se movendo com a velocidade da luz. Pois
se estivesse, os videoscópios só captariam sua imagem no
momento do impacto. Porém ela vinha com rapidez
suficiente para arrancar exclamações de susto dos homens
na cabina de controle. Conheciam o cintilante fenômeno;
por trás de seu aspecto inofensivo se escondia a morte.
Rhodan acionou novamente o reostato dos propulsores
de estibordo. Porém era impossível forçar uma mudança
de rumo acentuado naquela altura. Também a técnica
arcônida tinha as suas limitações e continuava aceitando o
princípio de que um corpo voando à velocidade da luz não
pode ser detido em instantes. E as manobras de
esquivamento não podiam ser executadas abruptamente,
nem em ângulo reto. O máximo que se podia conseguir era
uma deflexão curva, com um arco de pelo menos dois
milhões de quilômetros. Afinal, massa em movimento era
massa em movimento e nada podia ser feito a respeito.
No entanto, a manobra forçada, que submetia o
material da nave a uma rigorosa prova de resistência,
bastou para arrancar a esfera da zona perigosa no momento
crucial. A seta luminosa, formada por um fogo energético
concentrado de alta intensidade, passou a um escasso
quilômetro da nave desviada, perdendo-se no vazio do
espaço interplanetário.
— Bela recepção! — reclamou Rhodan, furioso.
Muito pálida Thora encarou o comandante, cujos traços
se contraíam de preocupação. A seguir, aconteceu o que
era inevitável diante daquele aglomerado de naves.
Os pontinhos anteriormente avistados apareciam agora
nos videoscópios como corpos volumosos, agrupados no
espaço em fileiras densas e traçando na escuridão profunda
do cosmo uma filigrana multicolorida.
A exclamação de angústia viera de Crest. Com os olhos
fixos nas telas, ele fitava estarrecido, as naves que
apareciam nitidamentes. Eram de dois tipos diversos.
Klein focalizava justamente uma delas no localizador de
curta distância. Tratava-se de uma das unidades ovoides,
presentes na área conflagrada em nítida superioridade
numérica. O propulsor traseiro desta nave expulsava jatos
de luz extremamente intensa, cujo brilho ofuscante feria os
olhos.
Porém a quantidade delas não impedia que fossem
rapidamente dizimadas pelas naves adversárias. O espaço
interplanetário de Vega enchia-se de catastróficas
explosões nucleares, sob o efeito das quais as naves
ovoides se desintegravam em número crescente. Pareciam
completamente indefesas, o que se poderia atribuir em
primeiro lugar à volumosidade excessiva.
Os computadores já haviam revelado a Rhodan que as
naves desconhecidas possuíam reduzida taxa de
aceleração. Com isso, suas manobras eram penosamente
lentas. E iam-se transformando em bombas, uma a uma,
sob o impacto das setas luminosas.
— Elas não têm anteparos protetores! — gritou Klein,
excitado. — Nem sistema detector de energia, chefe! Não
passam de tartarugas, não têm chance alguma!
Rhodan atentava para suas ousadas manobras de
esquivamento. Caso a Good Hope prosseguisse no rumo
atual, mergulharia inevitavelmente no grosso da confusão.
Crest deixou escapar nova exclamação.
No vídeo mais amplo da popa surgiu outro tipo de
nave. Em contraste com as rotundas e pesadas formas
antes avistadas, estas apresentavam o aspecto de um longo
e delgado cilindro. No meio deste destacava-se um forte
abaulamento central. Como se alguém tivesse atravessado
uma castanha com um lápis, deixando-a espetada
exatamente no meio.
— Depressa! Aumente a deflexão! — gritou Crest, fora
de si. Sua habitual compostura desaparecera agora.
Naquele instante, o sábio arcônida não era mais do que um
trêmulo feixe de nervos.
A resposta de Rhodan era dispensável. Com os
propulsores soltando fogo, a Good Hope procurava evitar
o centro da batalha, porém continuava sendo alvejada.
Havia uma quantidade excessiva das misteriosas e
desconhecidas naves espalhadas num extenso setor
espacial de Vega. Mais uma vez perceberam, no último
153
instante, a seta luminosa, quase tão rápida como a luz. O
sistema de detecção positrônico entrou em ação
automaticamente, porém os propulsores recusavam
fornecer empuxo mais poderoso. Já estavam funcionando
com carga máxima.
A seta atingiu a Good Hope em cheio. E ela saltou fora
de seu curso, rodopiando, como uma bola chutada com
violência. No amplo videoscópio externo brilhou uma
descarga luminosa de fulgor ofuscante; um tremendo
estouro acompanhou o fenômeno luminoso. O corpo da
nave, feito de aço arcônida, pôs-se a reverberar como um
sino, em consequência das vibrações resultantes do
impacto.
O imaterial dedo de fogo continuou sua trajetória pelo
espaço. Lá longe, uma das naves cilíndricas se afastava
velozmente. Fora de sua cúpula armada que partira o tiro.
Os tripulantes da cabina de comando viram Rhodan rir.
Não podiam ouvir a risada, pois o eco trovejante
produzido pelo tiro quase fatal ainda reboava pelo recinto.
Crest continuava de pé diante das telas. A área
conflagrada foi ficando para trás. As naves espaciais,
fielmente retratadas há pouco, voltaram a assumir a forma
de pontinhos luminosos. Em troca, a relativamente
pequena nave esférica dos arcônidas deixou de ser
alvejada.
Muito atrás da Good Hope, as naves ovóides
continuavam a explodir. Seu número se reduzia mais e
mais, principalmente porque novas formações inimigas
acabavam de emergir do hiperespaço.
A última situação crítica surgiu quando atravessaram
com velocidade alucinante uma massa de gás
incandescente. Segundos antes, uma das naves ovóides
explodira no local, atingida pelo inimigo. Os anteparos
protetores externos uivaram novamente seu protesto, mas a
Good Hope conseguiu passar incólume. À frente dela
brilhava o décimo quarto planeta de um sistema solar
nunca imaginado. Parecia tratar-se de uma imensa esfera
gasosa, semelhante a Júpiter. Rhodan desligou os
propulsores de estibordo; a cessação do barulhento ronco
do motor foi bem-vinda e a nave dirigiu-se em queda livre
para o ainda distante planeta.
— Grandes recursos é que eles não possuem! —
comentou Reginald Bell, com a irritante calma de um
homem que nada consegue abalar. — Será que consideram
aquela beliscadinha arma energética? Quem tem
comentários a fazer?
Bell olhou de esguelha para Rhodan, que se levantava
do lugar do piloto. Vagarosamente, aproximou-se dos dois
arcônidas. Crest esboçou um gesto de recuo diante do
sorriso semidisfarçado do comandante. Mas logo Rhodan
reassumiu o ar severo do inflexível piloto de provas que
não admitia situações ambíguas.
— Estava querendo dizer qualquer coisa antes de
sermos atingidos — disse Rhodan. — O que era?
O aspecto de Crest era lamentável. Pálido e desfeito,
afundara numa poltrona.
— Eu estava enganado! — murmurou o grande
cientista, com voz embargada. — Cometi realmente um
erro! Perdoe-me!
— Um erro? Ora, isso não é novidade que abale o
mundo. O que ia dizer no momento do ataque?
Os olhos vermelhos de Crest suplicavam: sua
perturbação era evidente.
— Aquelas naves cilíndricas, com o bojo central... eu
as conheço! Qualquer arcônida as conhece. Não pode
haver dúvida. Só uma raça em toda a galáxia emprega esse
sistema extraordinariamente incomum de aeronaves.
— E de onde vêm eles?
Crest vacilou. O Dr. Haggard conduziu-o de volta à sua
poltrona. Dali, o sábio arcônida explicou, abalado:
— Não é Árcon, é claro. A raça dos tópsidas provém
de um tronco reptílico. São altamente inteligentes, ativos e
cruéis. Não têm nada de humanos! Dominam três
pequenos sistemas solares. Seu mundo principal é Topsid.
Em relação à Terra, o sistema fica a cerca de oitocentos e
quinze anos-luz, no setor de Órion. O planeta Topsid
gravita em torno de Orion-Delta, a estrela dupla. Uma tem
luz branca; a da outra é roxa. Não posso imaginar o que é
que os tópsidas procuram aqui. Foi à primeira raça
colonial que se sublevou contra o poder do Grande
Império. Há uns mil anos, em tempo terrestre, enviamos
algumas expedições punitivas contra eles.
Rhodan deu uma curta risada.
— Há mil anos! — repetiu, suspirando. — Ora, meu
caro! E ainda queria me convencer de que seu povo
conseguiu reunir energia suficiente para organizar uma
poderosa expedição de pesquisa! Aliás, eu posso revelar-
lhe o que esses sujeitos procuravam.
— Nós? — indagou o capitão Klein, inquieto.
— Exatamente! E nós, patetas, lhes fizemos o favor de
nos colocar diretamente na mira de seus canhões
energéticos! Estamos às voltas com uma poderosa nação
galáctica e a Terra tem desesperadamente pouco com que
se opor a ela. Não adianta aborrecer-se, Thora! Seu famoso
Grande Império encontra-se em derrocada. É tempo dos
arcônidas tomarem conhecimento do que se passa na
periferia da galáxia. Ainda julga conveniente chamar
alguma daquelas naves pelo rádio? É evidente que os
tópsidas conhecem navegação interestelar. Talvez lhe
ofereçam uma carona para Árcon, caso se disponha a
reconhecer sua posição de descendente dos soberanos
arcônidas.
As palavras eram ofensivas. A única reação dos dois
arcônidas foi a de abaixar as cabeças. Rhodan afastou-se,
mas foi detido pela pergunta de Crest:
— Mas a quem pertencem aquelas naves pesadonas?
Viu com que facilidade eles se deixavam aniquilar?
— Claro! Não passavam de um rebanho de mansas e
tranquilas ovelhas diante dos ferozes agressores.
Representavam exatamente o papel que nos tocaria, em
escala mais ampla, caso os tópsidas resolvessem invadir o
sistema solar. Bell quer fazer o favor de tirar os dedos dos
controles das armas? Se um só de nós perdermos a cabeça
agora, teremos aquele bando de lagartixas pululando sobre
a Terra amanhã. Não descobriram, por enquanto, seu
pequeno engano; e não darão por ele enquanto os nativos
de Vega continuarem a reagir de maneira semelhante à que
faríamos nós próprios. Mas os coitados só podem se
defender, serão inexoravelmente vencidos. Deve se tratar
dos seres inteligentes que habitam Ferrol, o planeta de
Vega descoberto há dez mil anos por uma viagem de
exploração arcônida. Os seres, então primitivos, evoluíram
para espaçonautas capazes. E estão sendo forçados a
engolir o angu preparado para nós.
Rhodan calou-se. A Good Hope disparava pelo espaço
sem ser molestada. O campo de batalha tinha ficado longe.
— E agora? — indagou Reginald Bell. — Sumimos do
cenário? E, em caso afirmativo, como?
Rhodan sentou-se pensativo em sua poltrona de
comando.
154
— Sim, no interesse da Terra, temos que desaparecer;
porém, discretamente. Vamos atravessar o sistema de
Vega em velocidade ligeiramente inferior à da luz. Depois
teremos que arriscar um hipersalto espacial. Tudo indica
que a distorção estrutural não será percebida no meio do
caos reinante. Tem alguma coisa a dizer, Crest?
O arcônida sacudiu negativamente a cabeça. Rhodan
deu início à programação. Novamente os propulsores de
estibordo da Good Hope entraram em ação, rugindo. A
manobra de retorno consumiria um considerável espaço de
tempo, pois Rhodan não pensava em desacelerar até zero,
para depois rumar em sentido oposto.
As ordens se sucederam, breves e concisas. No pólo
superior da nave esférica, o major Deringhouse saiu,
resmungando, da carlinga de seu caça. Havia contado o
tempo todo com uma emocionante expedição punitiva.
Três minutos após, os sensores indicaram a
proximidade de objetos à frente da nave. Destroços
juncavam o trajeto a ser percorrido. Era evidente que,
recentemente, houvera violenta batalha nas proximidades
do décimo quarto planeta.
— Interessante! — comentou Bell. — Será que há
sobreviventes? Suponho que esses tais de ferrônios
conhecem trajes espaciais... Bem que poderíamos tentar
conversar com um deles.
Rhodan levou alguns momentos para responder,
absorvido por um pequeno ajuste nos controles. Todos os
quatro propulsores da Good Hope começaram a rugir;
desta vez, porém, com os jatos em reversão.
Crest estremeceu. Mal aquele homem esguio tinha
acabado de declarar que precisavam afastar-se do sistema
Vega o mais depressa possível, ele recorria a toda a
potência da nave para uma manobra de frenagem. Rhodan
era imprevisível, uma pessoa fenomenal. Ocorreu a Crest
que em todo o Grande Império não existia mais ninguém
capaz de tomar decisões com tanta rapidez.
— Armamento em prontidão! — ordenou Rhodan, em
voz rouca. — Sabe que a ideia não é má, Bell?
— Parece que é bem fácil fazê-lo mudar de opinião,
não é, Perry? — disse Thora, ironicamente. — É só dar um
palpite e você faz exatamente o contrário do que pretendia
antes.
Raramente se via Rhodan sorrir tão zombeteiro. A face
de Thora tingiu-se de rubro sob o olhar do comandante.
— Há um ligeiro engano — corrigiu ele, mansamente.
— Não foi à sugestão de Bell que me fez mudar de ideia e
sim as informações mais recentes dos computadores
positrônicos. Olhe para estes diagramas! Os compridos
canudos dos tópsidas não podem comparar-se com a Good
Hope em matéria de aceleração. Antes que consigam
atingir a velocidade da luz, temos dez oportunidades de
sumir no hiperespaço. As naves ovóides dos ferrônios são
ainda mais vagarosas. O cérebro do computador
determinou a natureza da propulsão que empregam:
geradores de fótons ultraconcentrados. Não se pode
esperar nenhum rendimento espetacular de propulsores
desta espécie. Portanto, vamos examinar de perto o que
flutua aí na nossa frente, no vácuo.
— Destroços sem conta! — murmurou o Dr. Manoli.
— Olhe! Os localizadores respondem de todas as direções.
Deve haver, de fato, sobreviventes.
Betty Toufry olhou para Rhodan com um sorriso
tímido. Conseguira ler parte de seus pensamentos. Rhodan
fizera a Good Hope parar não porque a sabia superior às
naves inimigas. Pensava também nos seres vivos talvez
existentes naquela área vizinha do décimo quarto planeta,
perdidos e abandonados no vazio.
A taxa de desaceleração era agora de quinhentos
quilômetros por segundo. No hangar dos pequenos caças
de bordo, o major Deringhouse tornava a espremer a
elevada estatura na apertada carlinga pressurizada. Os
homens da tropa de choque fecharam a cúpula transparente
sobre sua cabeça.
A manobra não fora nada fácil, visto que tinha que ser
executada sob a intensa atração gravitacional de um
planeta gigante. O número quatorze devia ter três vezes o
diâmetro de Júpiter. O próprio Crest demonstrou surpresa
diante das dimensões enormes daquele mundo.
Os destroços do que haviam sido naves espaciais já
iniciavam a lenta e inevitável descida para a superfície do
planeta, atraídos pela gravidade, antes que Rhodan
conseguisse posicionar a Good Hope em rumo e
velocidade adequados para a operação de salvamento.
Buscas prolongadas no vazio resultaram no resgate de um
sobrevivente. Um, apenas...
Após trazer a criatura para bordo com os jatos de
sucção, através da escotilha estanque, verificaram que se
encontrava semimorta por asfixia. Além disso, o corpo do
estranho estava coberto de queimaduras, causadas
evidentemente pela radiação ultravioleta da imensa Vega.
O pobre ser se mantivera trêmulo e intimidado num
canto, até que as atenções dos doutores Haggard e Manoli
lhe provaram que ninguém atentaria contra a sua vida.
Tratava-se, efetivamente, de um ferrônio. Descendente
dos que uma expedição de pesquisa arcônida localizara há
dez mil anos. Já haviam ultrapassado a idade da pólvora,
evidentemente. Porém Rhodan achou que a raça poderia
ter avançado mais naqueles dez mil anos. A humanidade
havia precisado de apenas quinhentos para chegar da arma
de fogo ao primeiro foguete-satélite. Aplicando padrão
semelhante, os ferrônios deveriam conhecer há séculos as
viagens interestelares.
Mas seus sistemas de propulsão tinham se detido no
ponto máximo permitido pelos princípios adotados. Uma
evolução maior requereria conceitos inteiramente diversos.
Donde era possível deduzir que os ferrônios eram
incapazes, por natureza, de raciocinar em termos de quinta
dimensão; portanto, criar um sistema matemático
155
correspondente não cabia em sua capacidade mental. E
sem essa matemática em nível superior, condicionada pelo
poder do raciocínio abstrato, as viagens mais rápidas do
que a luz eram irrealizáveis. Em consequência, os
ferrônios continuavam a fazer uso de seus propulsores
quânticos, extraordinariamente eficientes, e que lhes
permitiam alcançar facilmente a velocidade da luz.
Por outro lado, tinham desenvolvido uma tecnologia
fabulosamente exata no campo da micromecânica. Rhodan
emitiu assobios de admiração ao examinar
superficialmente alguns pedaços dos destroços trazidos
para bordo.
De uma maneira geral, era preciso reconhecer que os
ferrônios eram muito superiores aos homens em todos os
sentidos. Jamais a Humanidade havia alcançado um
estágio tão avançado. Porém ferrônio algum podia medir-
se com a técnica superior dos arcônidas.
Assim que o ferrônio foi embarcado e quando seus
processos mentais começaram a emergir da letargia da
exaustão total, Rhodan comunicara pelo intercom a toda a
tripulação:
— Ele está voltando a si. Os mutantes vão lançar as
primeiras bases para a comunicação, por meio da telepatia.
Ordeno que ninguém se refira ao planeta Terra. Não
esqueçam que a localização de nosso mundo deve
permanecer em absoluto segredo. Muita atenção neste
particular, portanto! Para qualquer ser vivente, seja qual
for seu nome ou aparência, nós somos arcônidas! A Good
Hope é prova evidente dessa afirmação. Além disso, a
aparência física com os arcônidas nos favorece. Risquem
da memória, por enquanto, o fato de sermos terrestres.
Esqueçam até onde fica a Terra! É tudo!
A ordem era clara e explícita. Com uma sensação de
amargura, os dois arcônidas perceberam que Rhodan se
preocupava apenas com seu mundo e com a Humanidade.
A atitude poderia passar por egoísta. Mas a própria Thora
foi obrigada a admitir, a contragosto, que a camuflagem
era absolutamente necessária. Para ela, o súbito
aparecimento da raça reptílica fora um golpe severo.
O instrumento especial, de funcionamento totalmente
positrônico, era mais uma das maravilhas da técnica
arcônida. Era o tradutor automático. Assim que registrou e
classificou os primeiros sons da língua ferrônia, a
comunicação se processou com facilidade.
Fazia três horas que o ferrônio tinha sido recolhido.
Betty Toufry e John Marshall anotavam telepaticamente
uma série de dados que eram fornecidos à máquina
tradutora. Assim a tarefa era relativamente simples.
Crest e Thora, valendo-se do privilégio de possuir
memória fotográfica, já começavam a falar aos poucos a
língua ferrônia. Enquanto isso, a Good Hope continuava a
descrever a ampla órbita em torno do décimo quarto
planeta.
Perry Rhodan mantinha-se à parte do grupo
empenhado na conversação, apesar de ser alvo constante
dos olhares do estranho. Este parecia ter percebido que era
aquele homem alto e magro quem dava as ordens.
Rhodan examinou-o atentamente. O ferrônio era de
estatura relativamente baixa, porém robusto e de músculos
poderosos. Ferrol, seu planeta nativo, possuía uma
gravidade de 1,4 g. Portanto, o corpo atarracado não era de
surpreender.
Braços e pernas eram do tipo humanoide; assim como
a cabeça e a espessa cabeleira. Os olhos eram miúdos e
afundados por trás de uma fronte fortemente abaulada. A
boca era surpreendentemente pequena. A diferença mais
flagrante com a raça humana residia na cor da pele, de um
azul pálido, o que contrastava com os cabelos cor de fogo.
Enfim, não se tratava de nenhum monstro. Devia haver,
forçosamente, diferenças anatômicas, porém era mais
difícil determinar o fato de imediato.
Atento ao som das palavras que não compreendia,
Rhodan tentava analisar uma sensação indefinível que
crescia dentro dele. Nada de concreto e perceptível; apenas
uma vaga e distante noção de perigo iminente.
John Marshall acercou-se da poltrona do comandante.
O olhar do ferrônio o seguiu. Quando Rhodan se voltou, o
estranho empertigou-se, levando a mão direita ao peito.
Rhodan acenou com a cabeça. O traje espacial do ferrônio
era de excelente qualidade, tão bem acabado nos detalhes
que permitia avaliar com precisão a adiantada técnica que
o produzira. Para Rhodan, era um tanto melancólico
constatar o quanto a Humanidade estava atrasada em
relação àqueles seres. Não obstante, o ferrônio salvo
demonstrava claramente sua convicção de encontrar-se
diante de gente infinitamente superior ao seu povo.
— Que há? — indagou Rhodan. — Problemas? A
expressão de seu rosto não me agrada.
O telepata mostrou um sorriso contrariado.
— Crest está enchendo o espírito do estranho com
relatos fabulosos e mirabolantes acerca do poderio do
Grande Império! — queixou-se Marshall.
— Sei disso. Foi ordem minha. Que mais?
— Ordem sua? Essa não! Também deu ordem para
contornar todas as questões importantes e ficar
perguntando insistentemente sobre o tal mundo da vida
eterna? Há aspectos que me parecem muito mais
merecedores de atenção no momento.
— Ele não desiste, não é? — murmurou Rhodan. — A
comunicação funciona?
— Maravilhosamente bem. A máquina é fenomenal e
Crest já formou um vocabulário bastante amplo.
— Vantagem da memória fotográfica... Que diz o
ferrônio sobre a batalha?
John Marshall lançou um olhar ao desconhecido.
Haggard acabava de administrar-lhe a segunda injeção,
que o ferrônio suportou calmamente.
— Chama-se Chaktor e comandava uma pequena nave,
destruída há cerca de vinte e quatro horas. Aqui, diante do
décimo quarto planeta, ficava a primeira linha de defesa. A
segunda está sendo dispersada no momento presente. A
terceira fica em torno do planeta principal, o oitavo.
Chaktor informou que as naves inimigas surgiram a uma
semana, de surpresa. O pânico tomou conta de Ferrol. A
frota espacial dos ferrônios está sendo totalmente
aniquilada. O ferrônio implora freneticamente por ajuda,
baseando-se no ilimitado exagero das palavras de Crest.
Chefe, isso não me parece direito!
Marshall mordeu os lábios. Parecia estar muito
perturbado.
— Que mais possuem os ferrônios? — perguntou
Rhodan.
— Muito pouco. Não têm a menor noção de viagens
interestelares. Daí o imenso respeito que nos devotam.
Para Chaktor, você é um personagem miraculoso. Não
possuem anteparos protetores de espécie alguma. Quando
uma de suas naves é atingida pelos raios energéticos, está
perdida. Dispõem de uma frota espacial muito numerosa,
porém formada em sua maioria por naves comerciais,
equipadas com armas de pequeno calibre. Não conhecem
156
armas energéticas. Empregam principalmente projéteis-
foguete dotados de cabeçotes atômicos que explodem por
impacto; e são espetacularmente eficientes. Valeram-lhes
brilhantes vitórias no começo da luta. Crest diz que os
invasores tópsidas têm armas defensivas verdadeiramente
desprezíveis. Seus anteparos protetores não valem nada.
Chaktor confirmou isso. Mas os tópsidas aprenderam
gradualmente a esquivar-se dos foguetes atômicos. Estes
alcançam mal e mal 30% da velocidade da luz, e demoram
a atingir o alvo. Sabendo disso, os tópsidas tomam
medidas preventivas a tempo. Acertam, também, os
projéteis ferrônios em voo com seus raios energéticos,
fazendo-os explodir muito antes de chegar ao destino.
Chefe, nós devíamos...
Rhodan interrompeu-o com um gesto da mão.
— Um momento, John! Como é que os ferrônios
possuem uma frota espacial tão vasta? Existem outros
seres inteligentes por aqui?
— Só subdesenvolvidos. Os ferrônios povoaram, além
de seu mundo principal, só os planetas sete e nove. Em
especial este último. Respiram oxigênio, porém em
temperatura superior à que nós estamos habituados. O
oitavo deve ser bastante quente, mas suportaríamos viver
no nono. O Ferrônio pede para ser deixado ali. O planeta
se chama Rofus.
Rhodan agradeceu. Ouvira o suficiente. Olhou para
Bell, pensativo; este se reclinava com aparente indiferença
na poltrona ao lado.
— E então? Que lhe parece?
— Grato por indagar minha opinião! — resmungou
Bell, com sarcasmo na voz. — Foi-se nosso plano de
sumir sem mais nem menos, percebe, Perry? Enquanto as
coisas não estiverem em ordem por aqui, a Terra corre
perigo. Que representam os insignificantes vinte e sete
anos-luz para os tópsidas? Acho melhor explorar um
pouco esta zona, principalmente para conhecer os pontos
fracos do adversário. Creio que podemos chegar a um
entendimento satisfatório com os ferrônios. E proveitoso
ao mesmo tempo... Possuem uma série de coisinhas de que
a Humanidade poderia fazer bom uso. Gostei de seus
métodos de produção e fabricação; técnica e acabamento
de primeira. Não custa examiná-los mais de perto.
Dificilmente correremos algum risco. A Good Hope
sobrepuja as naves tópsidas tanto em velocidade como em
poder ofensivo. E ainda nos resta o recurso de mergulhar
no hiperespaço a qualquer instante, se for preciso.
Rhodan ergueu-se com ar meditativo.
— É, seu miolo ainda funciona... Era exatamente o que
eu tencionava fazer. Localize o oitavo planeta e forneça os
dados ao computador positrônico. Não quero perder
tempo. Incomoda-me saber que o verdadeiro objetivo dos
tópsidas era a Terra. Vamos olhar esses caras de perto. Dê
as ordens necessárias.
Momentos após, Rhodan estava diante do estranho.
Chaktor dobrou humildemente um joelho. Depois se pôs a
falar apressadamente. O tradutor automático dava a versão
em linguagem humana.
Crest interrompeu, excitado:
— Constatei a existência de algumas contradições
surpreendentes nesta gente! Possuem transmissores de
matéria, coisa que só é possível mediante o conhecimento
da matemática pentadimensional. No entanto, os ferrônios
não têm a menor capacidade para construir tais aparelhos,
que transportam corpos desmaterializados com a
velocidade da luz. O que é indício evidente da existência
de uma raça superior entre eles! Chaktor falou qualquer
coisa sobre contato com entes superiores em época muito
remota. Perry, você precisa ir até o planeta principal dos
ferrônios! Estou convencido de que o mundo da vida
eterna se encontra no sistema Vega. É de lá que procedem
esses transmissores de matéria, tenho certeza!
— Bem que eles me interessariam! — disse Rhodan,
secamente.
— O cavalo de batalha de sempre, não é, Perry? Tudo
pelo bem da Humanidade... — interrompeu Thora com
sarcasmo.
Rhodan voltou-se para Chaktor, cuja atitude era quase
solene. Sentia uma impressão estranha. Há quatro anos, ele
próprio era bem mais ignorante do que aquele comandante
espacial ferrônio. Naquela ocasião, Rhodan seria
nitidamente o inferior. Os olhos vermelhos de Thora
zombavam. Parecia adivinhar o que ia pela mente do
comandante.
— Vou conduzi-lo ao nono planeta de seu sistema —
disse Rhodan no microfone da máquina de traduzir. —
Pode providenciar que suas próprias naves não nos
ataquem?
Chaktor aguardou a tradução. Depois a face achatada
irradiou alegria. Novamente repetiu a embaraçosa
genuflexão.
— Distância para o oitavo cerca de onze horas-luz! —
informou Bell.
Chaktor confirmou a indicação, fazendo uso de
símbolos já conhecidos pelo tradutor. O ferrônio olhava
maravilhado para o pequeno aparelho. Pouco a pouco era
levado a considerar aqueles homens como deuses. Depois
sua resposta chegou. Sim, ele poderia transmitir o código
adequado, caso lhe fornecessem um transmissor.
— Puxa, e agora? — exclamou Klein. — Que será que
esses caras usam para transmitir?
— Mostre-lhe o funcionamento dos aparelhos
terrestres, temos alguns deles instalados na nave. Talvez
ele saiba como usar a onda curta normal. Garanto que não
conhecem o sistema de hipertransmissão.
Três horas mais tarde, segundo o relógio de bordo, o
aprendizado terminara. Chaktor não teve, aparentemente,
dificuldade em entender o funcionamento do rádio terreno.
Betty Toufry, a menina telepata-, comunicou a Rhodan,
com um sorriso disfarçadamente zombeteiro:
— Chaktor se pergunta em que monte de lixo vocês
poderiam ter recolhido esse trambolho primitivo.
Thora explodiu numa sonora gargalhada. Rhodan fitou
o estranho com ar atônito, enquanto Bell praguejava entre
dentes:
— Que diabo! É o mais moderno, avançado e
complexo transmissor jamais construído na Terra! E o
sujeito me vem dizer que é um trambolho primitivo!
O capitão Klein disfarçou um sorriso, enquanto
Rhodan, respirando fundo, procurava uma saída
diplomática.
— Betty, diga-lhe que adquirimos o aparelho de uma
tribo selvagem num mundo remoto, apenas por
curiosidade. Nossa intenção era exibi-lo num museu.
O Doutor Haggard estava achando aquilo tudo
engraçadíssimo.
Chaktor tomou conhecimento da resposta de Rhodan, o
que o relegou novamente à anterior posição de
inferioridade.
— Pílula amarga essa! — disse Rhodan. — Doutor,
pare com essas risadas! Poderiam nos denunciar... E você,
157
Thora, não me venha de novo com a perpétua acusação de
que seríamos uns ignorantes sem sua preciosa técnica
arcônida. Com o tempo isso satura, entendeu?
Rhodan ligou o sistema de radiocomunicação interna e
postou-se diante do vídeo.
— Atenção! Do comandante a toda a tripulação:
largada para uma curta transição de cerca de onze horas-
luz. Que nos levará à área espacial entre o oitavo e o nono
planeta deste sistema. Manter rigorosa prontidão de
combate e não dar importância excessiva à ligeira
sensação de dor. É possível que nos precipitemos bem no
meio de uma violenta batalha. Fogo livre para todas as
armas. Mostrem o que valemos. Major Deringhouse, de
prontidão para ataque, junto com o capitão Klein. Vou
ejetá-los no espaço assim que chegarmos. Ajustem os
localizadores de contato dos caças aos sensores da Good
Hope, para poderem nos reencontrar. Em caso de
emergência, aterrisse em Rofus, o nono planeta. Chaktor
anunciará nossa chegada. Verão uma cidade imensa na
zona equatorial, a única do planeta, que é uma espécie de
colônia dos ferrônios. Fim!
Dez minutos depois, a nave alcançava a velocidade
exata da luz. O enorme mundo número quatorze ficou para
trás. Não havia um só adversário à vista. O espaço
interplanetário do sistema Vega parecia ter sido totalmente
evacuado.
Se horas atrás tinham acreditado estar no meio de uma
acirrada batalha espacial, agora se defrontavam com um
verdadeiro inferno.
Os enervantes sinais dos detectores eram ininterruptos.
O espaço todo estava repleto de naves. Mas não se tratava
evidentemente de uma competição pacífica entre duas
culturas de igual nível de civilização. E a nave subitamente
surgida foi recebida com um chuveiro de cintilantes raios
energéticos. Antes mesmo que Rhodan superasse a dor da
transição, a Good Hope já se encontrava sob o fogo
cruzado.
Nos vídeos brilhava o nono planeta do sistema Vega.
Pelo menos a transição de curta distância funcionara com a
mais absoluta precisão. Mas bem que Rhodan teria
preferido emergir no hiperespaço a alguns milhões de
quilômetros dali. Mas talvez isso não viesse alterar
basicamente a situação, pois a feroz batalha se desenrolara
praticamente num plano. No entanto, as naves estavam
espalhadas por uma área de alguns milhões de quilômetros
quadrados.
Antes que o eco dos gritos de comando de Rhodan se
apagasse, Bell já abria fogo contra o inimigo. Por entre o
estrondoso trovejar dos raios energéticos acertando seus
alvos, os torretes armados da Good Hope entraram em
ação. A mira era controlada automaticamente. Todo o
trabalho de Bell era conferir as coordenadas fornecidas
pelos localizadores e calcar botões. Mais uma
demonstração da eficiência da tecnologia arcônida.
Usando a força total dos propulsores, Rhodan arrancara
a nave da área imediata do fogo cruzado dos azulados
raios energéticos. Mais uma vez o superdimensionado
anteparo de defesa provou ser imune a armas rotineiras,
que não conseguiam nem rompê-lo, nem neutralizá-lo.
Apenas as furiosas descargas não podiam ser evitadas.
Além do intenso efeito térmico, a violenta repercussão
se transmitia ao casco externo da nave.
Pelo jeito, os tópsidas não possuíam armamento
teledirigido mais veloz do que a luz, pois o campo de
repulsão mecânico-gravitacional da Good Hope ainda não
fora obrigado a entrar em ação. Ou então o inimigo
preferia lutar exclusivamente com seus canhões
energéticos. Quando o clamor estridente do último
impacto diminuiu, ouvia-se o pipocar das armas arcônidas.
Neste ponto, pelo menos a Good Hope estava muito
melhor provida do que várias naves tópsidas somadas.
Como nave auxiliar de um cruzador de pesquisa sempre
exposto a riscos, o equipamento de defesa era
suficientemente amplo para satisfazer até o mais exigente
artilheiro.
John Marshall tomava conta dos detectores; Quando a
primeira linha das naves cilíndricas atacantes ficou para
trás da Good Hope, e os tiros de perseguição não
conseguiam mais emparelhar com a nave mais rápida do
que a luz, Marshall anunciou o aparecimento de novas
unidades. Porém estavam mais espalhadas. Além disso,
travavam luta com um infindável enxame de naves
ovoides, no meio das quais as explosões se sucediam sem
parar.
— Corrigir a mira! — gritou Rhodan no minúsculo
microfone do radiotransmissor embutido no capacete. Já
não havia condições para a comunicação normal diante da
ensurdecedora barulheira reinante. — Temos que forçar
passagem a qualquer custo, senão nunca nos livraremos
desse inferno! Thora, dê uma mãozinha a Bell. Acione as
bombas gravitacionais. Vejamos do que elas são capazes.
Bell espiou rapidamente para a sua esquerda, onde a
mulher arcônida assumia o comando dos manipuladores de
controle.
“Bombas de gravidade” pensou ele, com um ligeiro
arrepio. “A mais poderosa arma criada pelos arcônidas.”
Na realidade, não se tratava de bombas na acepção
usual do termo. Ao menos Bell achava impróprio dar o
nome de bomba a um campo em espiral de energia
estabilizada, projetada com a velocidade da luz. Campos
que eram quanta energéticos extradimensionais, com a
extraordinária capacidade de dissolver matéria comum,
arrancando-a da estrutura curva do espaço.
Luzes vermelhas brilharam na tela de mira de Bell. O
localizador automático detectara três alvos. Quando
apertou os botões, os três pulsocanhões abriram fogo
simultaneamente, sacudindo com violência a nave de
158
ponta a ponta, por efeito da força de recuo dos tiros. Faixas
roxas de energia se lançaram pela perpétua escuridão do
espaço, com a velocidade exata da luz. Não deixavam ao
adversário tempo para percebê-las. Antes que qualquer
instrumento chegasse a acusar seu brilho, elas atingiam o
alvo visado.
O inimigo ainda se encontrava a cerca de dois milhões
de quilômetros de distância. Precisamente sete segundos
após o disparo, viu-se um relampejar por entre as densas
fileiras das naves tópsidas. Os impactos foram registrados
pelos hipersensores antes que o brilho ofuscante das
explosões se tornasse visível, sete segundos mais tarde.
John Marshall manejava agora os pesados projetores
neutrônicos. Seu efeito só se tornava aparente quando se
via a nave inimiga perder o rumo e vagar desarvorada no
espaço, por falta de mãos nos controles. Pois os
ultraconcentrados raios neutrônicos afetavam apenas a
vida orgânica.
Thora lançou duas bombas gravitacionais. A tripulação
acompanhou com o olhar o trajeto das tremeluzentes
espirais, afundando nas trevas. Duas unidades inimigas
desintegraram-se por entre ofuscantes explosões.
Rhodan nunca vira à bela e estranha mulher em tal
estado. Absolutamente imóvel, ela se limitava a tocar com
as pontas dos dedos os botões de controle das terríveis
armas. Apenas nos olhos transparecia o fogo interior que a
consumia. Sua educação inflexível vinha à tona naquele
momento e ela agia de acordo com a máxima fundamental
da dinastia arcônida soberana: quem quer que se oponha
ao poder do Grande Império deve perecer.
— Eles devem ter percebido agora com quem lidam!
— murmurou ela, com voz fria e impessoal. — Cabeças
ocas! Vou acabar com eles antes que consigam fugir!
Rhodan gritou nova série de ordens. A trajetória em
arco iniciada não podia ser alterada. A Good Hope ia ter
que passar bem no meio das fileiras cada vez mais densas
do adversário, a toda a velocidade.
— Deringhouse! Aprontar para ejeção! — berrou ele
no radiofone. — Abra uma brecha nas fileiras, depois
cubra nosso flanco. Fique perto de nós, entendido?
Deringhouse confirmou a ordem recebida. Jamais
imaginara possíveis os acontecimentos que presenciava.
Enquanto a Good Hope em pleno vôo mantinha o fogo e o
decrescente bombardeio energético do inimigo totalmente
confuso era neutralizado pelos anteparos de defesa, os dois
caças com Deringhouse e Klein chisparam para fora dos
tubos de lançamento. Já lançados com a velocidade da
nave-mãe, ainda levavam a vantagem da mobilidade
maior. Afastaram-se da Good Hope em ângulo agudo e
segundos após os canhões fixos da popa despejaram fogo.
Tratava-se de pulsos-canhão de grosso calibre, ocupando
com seu volume a maior parte do espaço dos pequenos
aviões. A apenas dois segundos-luz das naves tópsidas,
ambos os caças acertaram nos alvos pela primeira vez.
Depois a Good Hope emparelhou com eles e o grupo
cruzou velozmente através de nuvens de fogo, que
instantes atrás haviam sido pesadas astronaves.
Também desta vez precisaram apenas de alguns
instantes para atravessar as cerradas filas inimigas. Todas
as armas concentravam o fogo sobre a área que acabavam
de cruzar. A tripulação sentiu-se invadida por
incontrolável sensação de euforia, incrementada pelo
excitado ferrônio, que saudava cada tiro com estridentes
berros de alegria ou apoio.
Rhodan sabia dos riscos implícitos contidos naquela
sensação de superconfidência. A situação poderia sofrer
uma súbita reviravolta. O mutante Tako Kakuta devia ter
lido seu pensamento. Arrancou o ferrônio de seu lugar
diante das telas, empurrando-o para diante do equipamento
telerradiofônico pronto para funcionar. Rhodan manejava
os controles com gestos rápidos e enérgicos. Os quatro
propulsores em plena ação aumentavam ainda mais o
fragor da fantástica batalha.
— Diga a ele que envie sua mensagem! — gritou
Rhodan para Betty Toufry. — Depressa! As naves dos
ferrônios começam a apontar na nossa frente. Meu Deus,
como são lerdas! Vou desacelerar!
Enquanto a Good Hope reduzia sua velocidade igual à
da luz com o máximo poder de repulsão, disponível,
Chaktor começou a falar rapidamente no microfone. Ainda
não era certo que o captassem imediatamente. Devido à
desaceleração, produzia-se um fenômeno curioso: os raios
energéticos das naves tópsidas, apesar de menos velozes
do que a luz ganhavam terreno agora. Aproximavam-se
mais e mais da nave em processo de desaceleração
constante.
Impossível pensar em manobras de esquivamento
durante o processo de frenagem. Portanto, Rhodan recebeu
com estoica tranquilidade os dois impactos — o homem
desprovido de nervos, o comandante que observava com
calma férrea e não perdia um só detalhe.
A nave recomeçou a vibrar. Apesar da maior abertura
do foco do raio, devido à distância percorrida, o impacto
foi tremendo. Mas o destrutivo efeito térmico não chegou
a alcançar o casco da nave. O pessoal da central de força
comunicou uma sobrecarga passageira nos diversos
reatores de corrente. O hipercampo de alta tensão devorava
imensa quantidade de energia, que nem o aparelhamento
arcônida estava em condições de fornecer.
— Não exagere! — gemeu Crest. — Lembre-se de que
tem em mãos uma simples nave auxiliar e não um
cruzador equipado com máquinas poderosas!
Rhodan teve que rir. Crest tinha conceitos muito
peculiares sobre potência e capacidade destrutiva.
No rastro da Good Hope reinava a maior balbúrdia.
Thora acionara também os canhões desintegradores,
capazes de desmanchar totalmente qualquer estrutura
cristalina. Os incansáveis aparelhos positrônicos acusavam
fielmente os resultados obtidos.
— Passamos! — anunciou Bell, com voz neutra. Mas
tinha o corpo todo banhado em suor. — Os anteparos
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defensivos deles não resistem a uma só de nossas armas.
— Obtivemos contato! — gritou Tako Kakuta,
agitando as mãos, excitado. — Chaktor conseguiu se
comunicar! O pessoal dele já nos percebeu. Temos
permissão para atravessar as linhas dos ferrônios quando
for preciso.
Rhodan virou-se. Na ampla tela do videofone via-se o
rosto sorridente de um Ferrônio idoso. Um oficial superior,
obviamente. Apontando para o painel de controle, Chaktor
despejou nova torrente de palavras no microfone. O som
das palavras se perdia por entre o fragor das armas em
ação e do rugido dos motores. Apenas os dois telepatas se
encontravam em condições de inteirar-se do conteúdo
mental do nervoso ferrônio.
Betty alinhavou uma explicação através do fone de seu
capacete.
— Aquele é o comandante da frota ferrônia.
Comunicou nossa aparição ao quartel-general no nono
planeta. Chaktor está combinando um código suplementar,
válido especialmente para nós... Espere! O comandante
está fazendo um pedido insistente: quer que continuemos a
prestar-lhe ajuda na batalha. Perry, ele diz que está
disposto a passar-lhe o comando geral!
Rhodan não conseguiu reprimir uma praga. O
alucinante ímpeto da Good Hope dificilmente poderia ser
contido antes de chegar às linhas das naves ovoides. Os
propulsores já sobrecarregados não se prestariam de
maneira alguma a uma desaceleração superior aos
quinhentos quilômetros por segundo que vinha fazendo.
— Diga a ele que se defenda! — ordenou Rhodan. —
Vou atacar o inimigo pelos flancos e do alto. E mande
Chaktor dar o recado de que é impraticável organizar uma
frente de defesa eficiente com uma única nave. Nossa
atuação terá que reduzir-se a ataques de provocação, mais
não podemos fazer.
Concretizara-se, pois, o dilema sempre presente no
subconsciente de Rhodan. O observador neutro, vindo
apenas para avaliar a situação, acabara se tornando
participante ativo de acontecimentos que, por enquanto,
não representavam risco iminente para a Humanidade.
Porém forçavam Rhodan a tomar medidas preventivas,
rechaçando os agressores tópsidas.
Eles não eram humanos. Quando se compenetrou desse
fato, sua própria condição de homem tornava inevitável
sua intervenção no conflito. Pela primeira vez na sua
existência concordou com a máxima arcônida de que entes
não humanos só poderiam ser tolerados em circunstâncias
muito excepcionais. Pois se regiam por uma ética muito
diversa, alimentando conceitos existenciais incrivelmente
estranhos. Se apareciam com más intenções, não havia
alternativas a não ser a guerra de extermínio.
A Good Hope encontrava-se há apenas alguns
segundos-luz das oscilantes linhas ferrônias quando ecoou
o clamoroso som de alarme emitido pelos hipersensores.
Junto com o berreiro dos alto-falantes, a tremenda zoeira
se transformava em algo quase palpável. Depois os alto-
falantes emudeceram de repente, assim como as indicações
luminosas da tela dos instrumentos.
Algo de proporções monstruosas devia ter abalado à
curvatura estrutural do universo normal nas imediações. O
anteparo protetor da Good Hope foi percorrido por
cintilante luminescência. Por segundos, o campo
energético entrou em completo colapso. Os reatores de
corrente giraram em seco, sem carga alguma. Descargas
coruscantes saltavam intermitentemente dos fusíveis dos
conversores de energia. Os supersensíveis sensores
estruturais se fundiram. O odor acre e penetrante invadiu a
cabina de comando. Compreendendo intuitivamente o
acontecido, Rhodan deu ordem para a colocação dos
capacetes pressurizados. As esferas transparentes foram
encaixadas nos aros magnéticos dos trajes espaciais.
Automaticamente entraram em funcionamento os sistemas
vitais de fornecimento de ar condicionado, oxigênio e
radiocomunicação.
Reduzida a uma velocidade correspondente a apenas
25% da da luz, a Good Hope viu-se de repente no meio de
uma descarga energética de inacreditável intensidade.
Chamas azuis envolveram o casco externo de aço. Todo o
poder ofensivo até então desenvolvido pelas naves
invasoras tornava-se insignificante diante daquela força
titânica.
O grito de pavor foi ouvido por todos. Alastrando-se
por intermédio dos alto-falantes embutidos nos capacetes,
acendeu nos cérebros humanos uma centelha de pânico.
Rhodan viu Crest correr para o painel do
hipercomunicador. Antes que as oscilações da nave se
estabilizassem, o cientista arcônida começou a falar diante
das telas transmissoras iluminadas.
Até então Rhodan estivera entregue à tarefa de manter
a Good Hope mais ou menos sob controle. Deu, então,
com o monstruoso vulto de metal e energia que emergia do
hiperespaço, a cerca de cinqüenta quilômetros de distância
dali.
— Não! — gemeu ele. Depois berrou: — Thora, isso
é...?
— Uma nave de guerra arcônida! — ela completou,
afobada. — Da classe imperial, o último modelo
desenvolvido pelo Império. Conheço bem o tipo. Eu
poderia conquistar um sistema solar inteiro com ela. Perry,
nossa gente está chegando! Crest transmita o código de
reconhecimento. Lá em Árcon devem ter percebido o que
ocorre em Vega. Veja só, Perry! Um gigante invencível,
equipado com magníficas armas. Deve ter um diâmetro
mínimo de oitocentos metros, segundo os padrões
terrestres. Eu...! O que está fazendo?
As juntas dos dedos crispados de Rhodan se abateram
sobre o reostato que comandava os quatro propulsores
principais. Luzes de controle piscantes indicavam uma
reversão de cento e oitenta graus nos campos de força dos
jatos. Mal acabara a manobra de frenagem, a nave retomou
impulso com o máximo de velocidade. O rosto de Rhodan
estava contraído. Reginald Bell foi o primeiro a
compreender. Seu grito rouco de alerta se transmitiu
através do intercom. Apenas os dois arcônidas
continuavam radiantes. Mas momentos depois Crest caiu
em si e afastou-se do hipercomunicador, profundamente
perturbado.
— Contato nulo! — queixou-se ele. — Mas o
computador central da nave de guerra deveria ter
identificado imediatamente o código dado. Não
compreendo o que...!
— Ainda não percebeu que naquela nave não há um só
arcônida? — gritou Rhodan, exaltado.
— Ela está dando volta e abre fogo contra as linhas
ferrônias! — anunciou a voz do mutante Ralf Marten que
estava tomando conta dos detectores.
Rhodan não podia fazer mais do que já fizera. O
gigante espacial, produto máximo da técnica arcônida, não
perdia terreno para a Good Hope em fuga. Apesar de suas
impressionantes dimensões, conseguia uma taxa de
160
aceleração idêntica. Quando o raio violeta se projetou da
gigantesca esfera, era tarde demais para desviar. Disparado
com a velocidade exata da luz, percepção e impacto do
raio foram simultâneos na relativamente minúscula nave
auxiliar do ex-cruzador arcônida. O artilheiro da nave de
guerra não lhe concedera a menor chance.
A potente faixa energética, ultraconcentrada, media
bem quarenta metros de diâmetro. Caso tivesse atingido a
Good Hope em cheio, esta se transformaria
instantaneamente numa nuvem gasosa. Porém a nave
resistiu ao tremendo impacto produzido pelo tiro de
raspão. Descargas flamejantes explodiram ruidosamente
nos anteparos de defesa; o campo energético desmoronou
impotente para opor-se a forças tão poderosas. Reduzida
agora a uma simples partícula de pó, a esfera espacial
virou joguete indefeso de uma tremenda onda energética,
desferida pelo gigante voador sem maiores preocupações,
apenas de passagem, para aproveitar a situação.
Rhodan ainda chegou a perceber que quase toda a
maquinaria da Good Hope tinha deixado de funcionar. O
baque violento de comportas de segurança fechando-se
automaticamente provava que mesmo o tiro de raspão
provocara tremendos estragos. Antes de ser arrancado de
seu assento diante dos controles, ainda escutou o incipiente
zumbido da reversão dos campos de força. Processo
automático, cuja finalidade era canalizar, em caso de
catástrofe, a energia disponível para os amortecedores de
inércia. Se isso não tivesse acontecido, não haveria mais
vida na nave violentamente arrancada de seu rumo por
uma força extraordinária.
O major Deringhouse, cujo veloz caça se havia
aproximado até uma distância de cerca de dois quilômetros
da Good Hope em virtude da manobra de frenagem desta,
viu que a nave esférica rodava desarvorada pelo espaço,
como uma bola chutada com violência.
Só Deringhouse se encontrava em posição de verificar
que o terrível raio energético tocara apenas a curvatura do
pólo inferior da nave. No entanto, ele estava
incandescente. O aço arcônida derretera como manteiga ao
sol ardente do deserto. Cintilantes vapores metálicos se
desprendiam ainda da parte inferior da esfera. A Good
Hope arrastava consigo pelo espaço uma extensa cauda
luminosa, como se fosse um cometa.
A luminescência dos anteparos defensivos se
extinguira. A única avaria visível agora era o pólo inferior
em brasa.
Deringhouse chamou desesperadamente Rhodan e os
outros tripulantes a bordo da Good Hope, porém não
obteve resposta alguma. Só lhe restava acompanhar a
pobre nave ferida em sua trajetória de fuga forçada. Muito
adiante o supergigante esférico deslizava pela escuridão do
espaço, com os torretes armados espalhando destruição.
Estava transformando as semiorganizadas linhas ferrônias
num confuso amontoado de vultos fugitivos, dominados
pelo pânico total. O número das naves ovoides reduzia-se
aceleradamente sob o impacto dos tremendos golpes
desferidos por um atacante de poder ofensivo
infinitamente superior.
Era um golpe fatal para os ferrônios. Pálido e desfeito,
Deringhouse tinha os olhos fixos nas telas de seu caça. A
Good Hope corria em direção do nono planeta, com a
avaria mortal em seu casco brilhantemente rubra.
— Acho que eles sobreviveram ao tiro! — disse de
repente uma voz no alto-falante do telecomunicador de
bordo do caça. Era o capitão Klein, no segundo aparelho.
— Aguardemos, está bem? Foi apenas um tiro de raspão.
Se for preciso, posso tentar engatar no canal de
lançamento superior. Eles voam apenas com 30% da
velocidade da luz.
— Tiro de raspão?! — exclamou Deringhouse, com
um riso sarcástico. — De onde será que surgiu o diabo
daquele monstro espacial? Apareceu de repente... Ande,
acerquemo-nos deles. Vão direto para o planeta nove!
Reduzida a dois propulsores em funcionamento
precário, a Good Hope precisou de oito horas para
completar a viagem. Poderia ter desenvolvido velocidade
maior caso os neutralizadores de inércia estivessem
funcionando; mas estavam seriamente avariados. E com
eles fora de ação, a desaceleração tinha que se limitar à
capacidade de absorção dos projetores, cujo
funcionamento era intermitente.
A penetração na densa atmosfera do nono planeta
assemelhou-se a um mergulho do alto na água. Rhodan
viu-se obrigado a submeter a tripulação a uma
desaceleração de gravidade extremamente severa, pois as
forças de inércia geradas não podiam mais ser absorvidas.
Também tivera que ligar rapidamente a carga máxima de
retropropulsão, pois ao primeiro contato com as moléculas
de ar deixaram de funcionar os projetores de campos de
absorção.
Portanto a nave auxiliar se precipitou através das
massas de ar cada vez mais densas como um meteoro em
brasa. Caso os aparelhos antigravitacionais tivessem
recusado igualmente funcionar, a Good Hope se espatifaria
contra o solo do planeta. No entanto, com a nave quase
desprovida de peso, foi possível equilibrá-la ainda, se bem
que a aterrissagem não fosse das mais suaves.
Todas as instalações da metade inferior da nave haviam
sido destruídas. Seria impraticável fazer reparos durante a
morosa operação de frenagem; além da elevada
temperatura reinante na zona avariada, surgira nela uma
mortal radiação gama.
Numa fração de segundo, a Good Hope fora
transformada num destroço indefeso. Já não havia
condições para pensar em voos mais rápidos do que a luz.
Os hiperconversores, essenciais para a formação dos
campos estruturais de defesa, haviam sido totalmente
161
destruídos. O grupo de reparos, protegido por trajes
espaciais, só encontrou montinhos de metal fundido por
ocasião da vistoria feita posteriormente. Os demais
aparelhos poderiam ser consertados, mas aquele
equipamento essencial estava definitivamente perdido.
Antes de mergulhar na atmosfera, sob a orientação de
Chaktor, Perry Rhodan tomara consciência do irreversível
fato de que se tornara prisioneiro do sistema Vega.
Após a descida no espaçoporto da cidade principal do
nono planeta, foram recebidos com bastante frieza pelos
oficiais ferrônios. Estes se limitaram a providenciar a
retirada da nave severamente avariada da pista de
aterrissagem desprotegida. Agora a Good Hope repousava
num hangar subterrâneo, estalando em todas as juntas
enquanto se processava gradualmente o resfriamento da
massa superaquecida. O recinto não apresentava nada de
extraordinário; em qualquer ponto da Terra se encontraria
algo semelhante.
Klein e Deringhouse tinham aterrissado sem maiores
problemas. Rhodan enviara-os novamente ao espaço, a fim
de prestar apoio à frota ferrônia em sua precipitada retirada
e escoltá-la até a volta ao oitavo planeta. Aquela pequena
colaboração em prol da defesa comum lhe parecera
imprescindível.
Quando Deringhouse anunciou pelo hiperrádio que a
gigantesca nave aparecida de surpresa se juntara às fileiras
dos tópsidas, um sorriso frio surgiu nos lábios de Rhodan.
Dali em diante, pouco falou. Encontravam-se num mundo
alheio, entre seres estranhos, que pareciam encarar o
desastre ocorrido com a Good Hope com sentimentos
contraditórios.
A análise psicológica da situação efetuada pelo Dr.
Haggard fora quase desnecessária. Mesmo sem ela,
Rhodan sabia que o vivo entusiasmo inicial da tripulação
por ele, e a confiança no poder ofensivo da Good Hope
tinham diminuído consideravelmente.
Chaktor, o ferrônio resgatado do vácuo, ocupava
passivamente uma poltrona na cabina de controle. Bell e
uma equipe de técnicos tentavam recuperar pelo menos a
aparelhagem de controle mais importante. Crest parecia ter
desmoronado interiormente; matinha-se num canto,
silencioso e apático. Thora, ainda mais suscetível do que o
sábio arcônida, debatia-se contra um incipiente colapso
nervoso.
Os mutantes circulavam, procurando avaliar as
circunstâncias. Ralf Marten, o homem dotado das
qualidades mais peculiares em todo o grupo, rondava ã sua
maneira, por perto e por longe: há mais de uma hora não se
movia da poltrona, rígido e hirto como se estivesse em
transe. Periodicamente relatava, em voz impessoal, o que
observara através dos olhos de algum chefe ferrônio, ou o
que escutara pelos ouvidos dele. Pelo que informava os
habitantes do planeta não nutriam intenções malévolas
contra os visitantes humanos. O sentimento predominante
era de profunda desilusão, diante do súbito fim das
esperanças despertadas pelo aparecimento da espaçonave
terrena. Os telepatas confirmaram as observações de Ralf
Marten.
Diante disso. Rhodan deu ordem para recolher os
guerreiros-robôs, prontos para entrar em ação, ao
compartimento de carga da nave. Reginald Bell emergiu
da estreita portinhola das escadas de emergência. Os
elevadores antigravitacionais já não funcionavam.
Resmungando baixinho, ele se desembaraçou do pesado
traje protetor e estendeu a mão para um cigarro.
Entrementes, as pessoas presentes na cabina de comando
tinham adquirido a impressão de que Rhodan se
transformara de repente num calado sonhador. Fazia horas
que não pronunciava uma só palavra.
Mas ergueu a cabeça com a chegada de Bell.
Vagarosamente ele se levantou do assento que ocupava.
Os olhares dos dois homens se cruzaram.
— E agora?
As palavras ficaram no ar, carregadas de inquietação.
Bell deu de ombros. Esmagou o cigarro recém-aceso
sob a sola do sapato.
— Fim da linha para nós! — declarou, sem o menor
traço de emoção no rosto. — Aquele raio energético da
supernave acabou com a Good Hope. Começo a
compreender agora as contínuas alusões de Crest,
classificando nosso veículo de nave auxiliar. Não passava
de porcaria diante de uma nave de guerra autêntica, apesar
de nos julgarmos possuidores de uma arma poderosa.
— Foi suficiente para revidar o ataque das naves
tópsidas!
— Certo, mas faríamos feio diante de um cruzador
arcônida. E quando se topa de cara com uma supernave
que lança raios energéticos de diâmetro quase superior ao
da Good Hope, então...
Bell interrompeu-se, com uma risada seca. Depois
concluiu:
— Pois é que mais posso dizer? Estamos encalacrados.
Foi quase um milagre conseguirmos aterrissar mais ou
menos inteiros. Os pulsopropulsores precisam de completa
revisão. Viagens interestelares estão fora de cogitação. E
como os ferrônios desconhecem os princípios envolvidos
no sistema, nosso destino é ficar em Vega até o fim de
nossos dias. Em resumo: a pior calamidade jamais sofrida
até hoje pela Terceira Potência. A central de força pode ser
reparada. Portanto poderemos pelo menos notificar a
Terra. Daqui por diante, vai depender do coronel Freyt
mantê-la forte e unida. Se a sorte nos favorecer de maneira
extraordinária, nosso pessoal talvez venha nos buscar
daqui a uns dois anos, quando concluírem a construção das
novas espaçonaves.
— A ideia é sedutora, mas improvável — corrigiu
Rhodan, friamente. — Lembre-se de que as novas naves
jamais levantarão voo sem nossos conhecimentos
especializados.
— Intensa comoção em área próxima! — avisou Betty
Toufry, a telepata. De olhos fechados, ela continuou a
dizer: — Grande consternação entre os ferrônios.
Pensamentos confusos se cruzando. Um alto dignitário
abandonou seu povo.
— Marten, tente introduzir-se na mente de um ferrônio
bem informado. De preferência um dos que se encontram
no local que Betty estuda. Ajude-o, menina! Marshall,
entre no circuito também.
Entre Rhodan e Bell surgiu uma aura luminosa, que
deu lugar ao aparecimento do teleportador Tako Kakuta. O
frágil rosto infantil mostrava evidentes sinais de cansaço.
Desde a aterrissagem o rapaz estivera constantemente em
movimento.
— Caos em todo o planeta! — anunciou ele. — Mas
parece que os tópsidas desistiram de um ataque direto;
colocaram apenas algumas naves de observação em órbitas
bem afastadas. O planeta é jovem, o clima terrestre, o
povoamento escasso. Há oceanos, montanhas e planícies
muito semelhantes às da Terra. Esta cidade se chama
Chuguinor, a única concentração populacional mais densa
162
do planeta, que leva o nome de Rofus. É aqui que fica o
espaçoporto principal, só que não vi muitas naves
ferrônias. Devem estar todas no espaço. Apenas uma ou
outra unidade avariada ficou em terra. Novas ordens,
chefe?
— Descanse um pouco, Tako — murmurou Rhodan,
absorto. — Você parece fatigado. Por enquanto pouco nos
interessa o aspecto da paisagem. Este planeta não deve
diferir muito de dez mil outros da mesma espécie.
Interessante... aos poucos começo a raciocinar em termos
cósmicos. — Rhodan riu, depois acrescentou, com um
sorriso: — Nada de esforços desnecessários agora, Tako!
Em breve vou ter que destacá-lo para uma missão bem
difícil.
Alertado pelo tom da voz de Rhodan, Bell fitou-o,
intrigado. Depois comentou:
— Você anda tramando alguma coisa, não é?
O hipertransmissor trazia uma mensagem do major
Deringhouse, cuja face se tornou visível na tela. Foi um
bom pretexto para poupar Rhodan de responder.
— Estamos perto do planeta principal — informou
Deringhouse. — A derradeira linha de defesa dos ferrônios
está sendo destroçada. Abatemos sete naves tópsidas, mas
agora a grandona anda olhando para o nosso lado. Parece
não estar gostando de nossa interferência. Que faço, chefe?
O gigante vem em minha direção. Estou com ele na mira.
Ataco?
—Você ficou louco? — gritou Rhodan.
— Trate é de dar o fora, e depressa, ouviu? Com toda a
potência das máquinas! Tática de esquivamento e cuidado
para não se deixar espetar pelas setas de fogo do gigante.
Ainda vou precisar de você, rapaz! Volte imediatamente!
— Chefe, os ferrônios não vão gostar! Cada caça nosso
vale por cem das naves ovoides. Por incrível que pareça,
acabamos sendo a espinha dorsal da frota ferrônia.
— Caia fora, já disse! Klein também! Se a nave de
guerra não for ao encalço de vocês, podem voltar para a
luta. Mas por enquanto tomem distância. Que tal a cena
em torno do oitavo planeta?
— Os tópsidas começam a aterrissar. Sem lançar
grandes ataques. Contentam-se com o bombardeio de
locais determinados; centros militares, provavelmente.
Estão poupando as cidades. Posso contar nos dedos as
explosões nucleares lá embaixo. E nem são das grandes.
Rhodan desligou, comentando:
— Bem que acertei quando preferi não pousar em
Ferrol. Aquilo virou um inferno. As lagartixas vão
aterrissar instalar-se na área e dar início à conquista dos
planetas-colônias vizinhos. Por enquanto estamos seguros
aqui. Que tem ele?
Rhodan percebera que Chaktor dialogava diante do
videofone comum com um companheiro de raça.
Bell prestou atenção. Crest mantinha-se na mesma
atitude de apática resignação, desinteressado do que
acontecia.
Ninguém aguardava novidades naquele momento.
Deringhouse anunciou alegremente que a nave gigante se
desinteressara de vez pelos caças, aprestando-se, pelo
jeito, para aterrissar no oitavo planeta.
— Não ganhamos em velocidade, mas somos mais
ágeis do que ela — continuou a informar Deringhouse.
— Crest!
O chamado foi tão enérgico que o arcônida se ergueu
num pulo. Viu-se diante de um homem de expressão dura
e decidida.
— Antes que torne a mergulhar novamente na letargia,
quero uma curta informação. Tem certeza de que a nave
gigante é um vaso de guerra de sua raça?
— Claro! Que outra espaçonave seria capaz de nos
derrotar?
— É pouco provável que arcônidas participem de uma
invasão promovida por seres não humanos. Portanto, a
nave deve ter tripulação tópsida. Sabe-me dizer como é
que esses indivíduos conseguiram se apoderar de uma das
naves mais poderosas da frota imperial?
Crest deu de ombros, desanimado, sem encontrar
resposta. Thora fitava com olhar ausente a parede mais
próxima.
— Existem duas possibilidades — continuou Rhodan.
— Ou a nave foi entregue aos tópsidas por oficiais
arcônidas decadentes, indiferentes ao destino de sua raça,
ou foi simplesmente capturada pelo inimigo. O que não
seria de admirar, diante da inigualável passividade e apatia
de seu povo. Em qualquer dos casos, porém, pergunto-me
como é que os tópsidas conseguem manejar tão bem o
complexo aparelhamento de uma espaçonave de guerra
arcônida. Talvez as duas hipóteses sejam válidas:
arcônidas cativos passaram seus conhecimentos aos
tópsidas.
— Isto é um insulto! — protestou Thora.
— Apenas repetição do que ocorreu conosco. Vocês
estavam em situação difícil e compartilharam sua ciência
conosco. Só que caíram nas mãos de seres humanos e não
de tópsidas. Nisto reside à diferença. Thora, eu peço que
inicie imediatamente o treinamento dos meus homens!
Ela ergueu a cabeça, surpresa. Rhodan encaminhou-se
para o ferrônio, que prosseguia em sua animada palestra
diante do videofone. Na tela, além do rosto de seu
interlocutor, via-se um vasto recinto abobadado.
— Que treinamento? — indagou a arcônida, com
evidente incompreensão. O interesse de Crest parecia
despertar, se bem que sua testa se enrugasse de
preocupação. Bell sorriu. Conhecia a fundo seu ex-capitão.
Para ele, a palavra impossível não existia.
— Perdi sete homens na batalha. Portanto você, que já
comandou um cruzador de guerra vai se encarregar de
instruir os quarenta e três sobreviventes no manejo dos
principais instrumentos de uma supernave bélica. Ou ela
pode ser controlada por um só homem?
— Nunca! Seriam imprescindíveis pelo menos
trezentos homens especialmente treinados, apesar da
automatização quase total. Perry, você enlouqueceu! Não
pode...
— Posso e não vai demorar muito! — interrompeu
Rhodan, secamente. — Ou acha que pretendo passar o
resto de meus dias num planeta de Vega? As naves
ferrônias não ultrapassam a velocidade da luz; portanto
não me interessam. E jamais entenderemos o
funcionamento daqueles trambolhos tópsidas. Logo, só nos
resta a opção de pensar na supernave arcônida, pelo menos
seu manejo nos deve ser mais familiar. Vamos abocanhar
o naco maior, entendeu? Inicie o treinamento
imediatamente. Obrigado!
O chefe falara. Os presentes trocaram olhares
significativos. Os dois arcônidas ainda não haviam se
recuperado da surpresa. Por fim, Thora murmurou:
— Já lhe ocorreu que a nave de guerra está aterrissando
no oitavo planeta?
Rhodan sorriu de leve.
— Estou começando a me preocupar com este aspecto
163
do problema — disse, mansamente. — Já olhou para esta
tela? Observe aqueles imensos aparelhos em formato de
coluna ligados a potentes cabos de força. Deve estar
lembrada de que Crest se referiu a algo semelhante aos
transmissores de matéria, com os quais os ferrônios
poderiam transladar qualquer espécie de matéria. Pois
bem, o que cintila naqueles campos energéticos bem pode
ser vida orgânica!
O zumbido surdo proveniente dos alto-falantes
chamou-lhe a atenção. Chaktor apontava excitado para a
tela, gritando algumas palavras para Betty Toufry. Ela
traduziu sem demora:
— Vejo na mente dele que pensa numa pessoa
altamente colocada. Está se definindo... Dá ao dignitário o
nome de Thort. Não é um nome próprio, e sim um título.
Assim como rei ou imperador. Não, não é bem isso... O
Thort é o Senhor, o governante.
— Estão abandonando o barco que soçobra —
murmurou Rhodan, semicerrando os olhos. — Chegam
mulheres e crianças, também. Portanto, a família
governante evacua a pátria ameaçada para vir refugiar-se
aqui. As coisas estão ficando interessantes. Que foi?
Chaktor dirigia-se a Rhodan, numa arenga nervosa.
Betty captou o sentido das palavras lendo a mente do
ferrônio.
— O Thort quer conferenciar com você,
imediatamente. O comandante da frota ferrônia fez um
relato completo há algumas horas. O Thort está
perfeitamente a par de nossa atuação. Sabe igualmente que
fomos alvejados. Não vai ter que perder tempo em
explicações.
Rhodan engoliu em seco; depois pigarreou. Bell foi
menos reticente. Respirando fundo, opinou:
— Puxa, se o chefão em pessoa se digna pisar num
transmissor só para falar com você, estamos feitos! Essa
gente é bem superior ao gênero humano. Caso consigamos
um entendimento com o Thort, o futuro pode ser risonho.
Nós...
— Em primeiro lugar, temos que voltar para a Terra —
interrompeu Rhodan, com sarcasmo. — No momento,
precisamos manter a aparência de superioridade. Aliás,
não nos resta outra alternativa; temos que poupar o coitado
de uma tremenda desilusão. Parece que nós e a Good Hope
representamos o recurso derradeiro para a salvação deles.
Além disso... — Rhodan fez uma pausa para pensar, e
continuou: — ...além disso, é muito fácil negociar com
oprimidos e refugiados. Costumam ser acessíveis a
argumentos lógicos. Prefiro tratar com o Thort aqui na
cabina de comando. Eu me sentiria inseguro demais lá
fora. Bell ligue a máquina de traduzir. Precisamos
aprender o idioma ferrônio. Crest pode nos dar uma mão
com um breve hipnotreinamento. A memória do aparelho
já possui um bom estoque de vocábulos.
Rhodan fitou Chaktor que fremia de reverente
antecipação. Evidentemente este seria o primeiro encontro
de sua vida com o Thort.
— Vamos com calma, Perry! — observou Bell. —
Afinal, o homem domina todo um sistema planetário!
Rhodan aproximou-se do tradutor automático. Chaktor
seguiu-o, emocionado.
— Betty, diga que o comandante desta espaçonave
solicita a visita do Thort, uma vez que só aqui poderão ser
superadas as dificuldades de comunicação; o aparelho
destinado a isso não é portátil.
A telepata transmitiu o recado a Chaktor, através da
máquina; imediatamente, o ferrônio repetiu a mensagem
no telecom, em seu próprio idioma. A confirmação levou
apenas alguns segundos: sim, o Thort viria. Na tela do
vídeo surgiu um ferrônio de meia-idade.
— É Lossos, o mais eminente cientista ferrônio —
informou Betty.
Rhodan murmurou algumas palavras no minúsculo
transmissor em seu pulso. No compartimento de carga da
nave, os guerreiros-robô despertaram. Com passos
pesados, mas surpreendentemente rápidos, marcharam pela
ampla rampa de descarga para o ar livre.
— Não faça bobagens! — cochichou Bell, preocupado.
— Para que isso?
— Para impressionar, mais nada! — respondeu
Rhodan. — Marshall, seu uniforme é bastante decorativo.
Sabe berrar?
— Como um touro, chefe, se for preciso.
— Pois então, poste-se no alto da rampa e comande os
robôs. Quero cerimônias militares em grande estilo, apesar
de achá-las ridículas há alguns dias. O Thort deve ser
recebido com todas as honras.
O mutante desapareceu.
— Será que vai dar certo? — indagou Thora, nervosa.
— O que vai dizer ao Thort? Não se esqueça de que lida
com uma raça superiormente civilizada.
— Sei disso! — concordou Rhodan, com franqueza. —
Os conhecimentos deles são superiores aos dos homens,
exceto nós mesmos. Peço-lhe que não me contradiga
enquanto falo com eles. Para os ferrônios, somos todos
arcônidas, vindo de um planeta a trinta e quatro mil anos-
luz daqui...
— Como quiser — disse ela, ironicamente.
Rhodan ajustou seu uniforme. Os dois guerreiros-robôs
de pé na cabina de comando receberam instruções
especiais. As luzes de controle dos poderosos geradores de
pulsos se acenderam. As máquinas estavam prontas para
funcionar.
— Tudo deve ter a aparência de estar em perfeita
ordem — disse Rhodan. — Bell, o tradutor automático
está ligado? Obrigado! Betty sonde o conteúdo mental do
governante ferrônio. Gostaria de saber o que se oculta por
trás de seus gestos e palavras.
A menina aquiesceu com um leve sorriso lhe brincando
nos lábios.
Do lado de fora se ouviu um brado sonoro:
— A-pre-sen-taaar armas! Realmente, Marshall
berrava como se quisesse alertar o mundo inteiro contra
um ataque inesperado.
Seguiu-se um rumor surdo. Os braços armados dos
robôs perfilados haviam se erguido simultaneamente,
atendendo à ordem dada.
O ferrônio idoso estacou. Os oficiais de sua comitiva
demonstravam profunda admiração. A figura de Marshall
surgiu nas telas. Em rígida posição de sentido, prestando
uma continência que arrancaria louvores até do general
Pounder, caso estivesse presente. O Thort agradeceu, com
as mãos estendidas para frente. Era um belo quadro.
— Senhores! Não esqueçam por um só instante que
representamos o gênero humano. Portanto, vocês porte-se
com urbanidade, mas com dignidade. Evitem dar a
impressão de se sentirem superiores. Bell, você se
encarrega das formalidades de recepção e introdução.
— E como você quer que eu o apresente? — gemeu
Bell, transpirando nervosamente.
— Como presidente da Terceira Potência, idêntica com
164
o Grande Império. Para o Thort, o título de presidente vale
tanto como qualquer outro. Deve achá-lo tão estranho
quanto a denominação Thort é para nós. Aí vem ele!
— Pretensioso! — murmurou Thora. Mas Crest sorriu
compreensivo. O eminente sábio arcônida adivinhara as
intenções de Rhodan.
Este se postou imóvel ao lado do aparelho tradutor.
Quando a saudação de Bell, em idioma ferrônio, ecoou
através do alto-falante, o Thort recebeu o segundo choque
de surpresa. Evidentemente atônito, fitou a extraordinária
máquina. Rhodan sorriu-lhe com cordialidade. Sua
saudação foi respeitosa, porém ligeiramente mais
condescendente do que a de Bell.
Depois os dois representantes de culturas tão diversas
se viram frente a frente. O Thort, idoso, baixo e
acabrunhado; Perry Rhodan, alto, esbelto, senhor de si da
cabeça aos pés.
— Seja bem-vindo, Senhor. Tome lugar, por favor.
Os dois guerreiros-robôs postaram-se silenciosamente
ao lado do comandante, com as bocas de suas armas
apontando para o alto. Após examiná-los demoradamente,
o governante ferrônio deixou-se cair numa das poltronas.
Rhodan expressou ainda algumas frases de cortesia, por
meio do aparelho automático.
O Thort aguardou a tradução. Sua resposta foi breve e
surpreendente. Parecia compreender o que se ocultava por
trás daquelas demonstrações e aceitava plenamente as
implicações nelas contidas. Tinha consciência de estar
diante de um ser totalmente estranho, conforme ocorria
igualmente com Rhodan. Mas sabia que os humanos
tinham corrido em socorro dos ferrônios durante a luta.
— Sua espaçonave está seriamente avariada — dizia o
aparelho, traduzindo as palavras do Thort. — E o senhor
sabe que, sem sua ajuda, nós estaremos perdidos. Portanto,
em que posso ajudá-lo? Meu império está à sua disposição.
A nave pode ser reparada?
Palavras claras e explícitas, que não causaram
estranheza a Rhodan. O Thort não era um fraco e sim um
pensador lúcido. A resposta ainda mais breve e sucinta
correspondia ao caráter de Rhodan. A situação exigia a
mais absoluta franqueza.
Mas antes que Rhodan pudesse responder, o hiperrádio
trouxe a notícia de que a imensa nave esférica tinha
aterrissado no oitavo planeta. O major Deringhouse
aguardava novas ordens. Rhodan mandou-o prosseguir na
missão de observação, pedindo ao mesmo tempo que
procurasse obter boas telefotos da nave. Depois desligou.
— Eram os pilotos daquelas naves minúsculas? —
indagou um dos altos oficiais, excitado. Rhodan
confirmou.
— Mas como é que conseguem comunicar-se com tal
rapidez?
— Distância não tem significação para nós. Assim
como viajamos com velocidade superior à da luz,
dominamos a comunicação audiovisual hiperrápida.
Ao ser divulgada a tradução, o oficial ferrônio olhou
em torno, triunfante. Aparentemente já fizera afirmações
naquele sentido antes, deparando com a incredulidade de
seus colegas. Rhodan bem podia imaginar o que se
passava no íntimo daquela gente. Dali por diante, os
oficiais ferrônios guardaram respeitoso silêncio. Apenas os
olhos atentos do Thort examinavam tudo com a maior
atenção.
— Com sua licença, posso saber se chegou até aqui por
meio de um transmissor de matéria? — perguntou Rhodan.
Percebeu uma reação estranha no regente de pele azul.
— Claro! Fui forçado a deixar o oitavo mundo. Que
sabe sobre os transmissores? Conhece o princípio que os
faz funcionar? É o maior segredo do universo!
— Nem tanto! — replicou Rhodan, suavemente, porém
sem acrescentar mais nenhum comentário. A perturbação
do Thort já era suficiente. — Oferece-me sua assistência,
senhor. Sim, minha nave não tem mais condições de voo.
Não pode ser reparada com os recursos de que dispõe. O
tiro da espaçonave bélica que surgiu tão inesperadamente
foi fatal.
— Quer dizer que sou obrigado a renunciar ao seu
auxílio?
Rhodan viu a face azul entristecer-se. Nos olhos
mortiços refletia-se o desespero.
— De maneira nenhuma. Seria necessário apenas que
me cedesse sua estação transmissora de matéria. Acabei de
saber que a nave gigante pousou no oitavo planeta. Preciso
de uma oportunidade para ir até lá e os transmissores
resolverão este problema. Caso não possa utilizá-lo para
transportar meus homens, serei obrigado a recorrer à
alternativa mais trabalhosa de usar meus dois caças.
O Thort parecia assombrado. Porém concordou
imediatamente. No entanto, ainda alimentava uma dúvida:
— Que pretende fazer lá? O planeta está ocupado pelos
inimigos.
— Vou apoderar-me da nave de guerra! Depois disso
faremos novos planos.
Rhodan sorria.
— Conforme já disse esta pequena nave já não me
serve. Era apropriada para a curta expedição exploratória
que empreendíamos. Caso eu tivesse sabido que se
processava uma invasão por aqui, teria vindo com uma
frota inteira. Lamento...
Bell dominava-se a custo. Os ferrônios faziam
perguntas excitadas. Rhodan explicou detalhadamente
quem eram os tópsidas, de onde vinham e qual era sua
natureza. O Thort prometeu toda a assistência possível.
Rhodan recebeu permissão para usar os transmissores.
Depois veio a pergunta embaraçosa:
— Vai ser capaz de manejar a nave gigante?
— Trata-se de um vaso de guerra de meu povo, senhor!
— disse Rhodan, tranquilamente. A reação foi violenta. Os
oficiais imobilizaram-se em respeitoso silêncio. Apenas o
Thort não se alterou. Sabia raciocinar.
— Mas não tripulado por gente de sua raça, não é
verdade?
— Claro que não. Não imagino como foi parar nas
mãos dos tópsidas. Portanto, necessito urgentemente de
um tópsida vivo, custe o que custar. Existem prisioneiros?
Não, os ferrônios não tinham conseguido capturar um
só tópsida vivo. No entanto, um oficial mais jovem
informou ter visto um bote salva-vidas tópsida destacar-se
de uma das naves abatidas. Havia descido na região do
pólo norte do planeta. Os soldados ferrônios destacados
para aprisionar a tripulação não conseguiam aproximar-se
pois eram repelidos com armas desconhecidas.
Rhodan não hesitou um momento.
— Senhor, mande levar dois de meus homens ao local,
o mais rápido possível e dê ordem de retirada às suas
próprias tropas. Preciso daqueles sujeitos vivos!
— Eles possuem armas terríveis! — objetou Lossos, o
cientista ferrônio.
— As nossas são melhores. Tome as providências
necessárias, Senhor, e ponha à disposição de meu pessoal
165
sua aeronave mais veloz, ou uma pequena nave espacial.
Não podemos perder tempo.
Enquanto o Thort agia, Rhodan pôs-se a examinar com
atenção os membros presentes de sua tripulação. Por fim
decidiu:
— Tako Kakuta e Betty, aprontem-se. Equipem-se com
psicorradiadores e convençam aqueles tópsidas a sair de
suas tocas como meninos obedientes. Aguardo aqui. Quero
de preferência os oficiais. Deve haver alguns entre eles.
Tako se for preciso, salte para a retaguarda dos tópsidas. E
procurem voltar inteiros!
Os mutantes aprontaram-se. O japonês sorria, Betty era
a calma personificada.
— Como? É com estas pessoas que pretende dominar
uma tripulação fortemente armada?! — exclamou o Thort,
com o rosto azul se tingindo de sombras escuras. Pela
primeira vez Rhodan o via descontrolado.
— São mais do que suficientes. Dispomos de poderes
que o senhor desconhece. O transporte está pronto?
Tako retirou-se, piscando um olho. O Thort tornou a
sentar-se, calado.
— Isso ultrapassa minha compreensão — murmurou
ele no microfone do aparelho de tradução. — Quem são
vocês? De onde vêm? Infundem temor com suas
capacidades aparentemente ilimitadas...
Rhodan forneceu as explicações necessárias, porém
sem aludir à Terra. Para os ferrônios, eles eram e
continuariam a passar por arcônidas. As palavras de
Rhodan foram aceitas sem a menor sombra de dúvida.
Ele procurou aproveitar o período de espera.
Gradualmente estabeleceu um excelente relacionamento
com o Thort, cujo cargo não era hereditário, conforme
depreendeu da conversa. Após sua morte, um novo Thort
seria eleito entre os homens mais capazes do reino.
Intrigas políticas parecia ser coisa desconhecida. Rhodan
entrevia um futuro brilhante para aquela raça, mas
percebia que faltava algo indefinível para concretizá-lo.
Duas horas mais tarde, segundo o relógio de bordo,
Tako manifestou-se por meio do microtransmissor que
levara.
— Conseguimos chefe! Cinco tópsidas vivos, sendo
que dois deles são oficiais. Foi brincadeira. Betty
localizou-os e eu saltei para perto deles. Reagiram logo
aos psicorradiadores. Dentro de meia hora estaremos de
volta. A aeronave é bem veloz.
— Vamos ver o que acontecerá agora — disse Rhodan,
em tom neutro.
O Thort estremeceu. De repente via aquele homem
com outros olhos. Toda a urbanidade desaparecera. Com
um sorriso apenas perceptível, o governante observou:
— Começo a compreender que não passo de um
insignificante funcionário de província diante de sua
elevada posição. Disponha de mim, mas só lhe peço que
ajude meu povo.
Nunca em toda a sua vida Rhodan sentira tão
embaraçosa comoção. Bell mordeu os lábios e o Dr.
Haggard mal disfarçava o constrangimento.
— Se há mesmo oficiais tópsidas entre os prisioneiros,
devem falar o idioma intercosmo, conhecido em todos os
sistemas do Grande Império — disse Crest. — Todo
oficial tópsida é obrigado a conhecê-lo.
Momentos após, os prisioneiros foram introduzidos,
completamente submissos à vontade do mutante Kakuta. O
profundo efeito pós-hipnótico do raio psíquico fazia dos
estranhos obedientes autômatos.
Com uma exclamação de susto, o Thort ergueu-se da
poltrona. Nunca vira um tópsida de perto e os ferrônios
ignoravam a natureza de seus agressores.
Instintivamente, os oficiais levaram as mãos às suas
armas. Eram pistolas de raios, altamente eficientes: seu
funcionamento baseava-se em quanta luminosos de alta
concentração. As passivas criaturas que penetravam na
cabina de comando viram-se diante de uma bateria de
bocais finos como agulhas, até que Rhodan disse, com um
suspiro nervoso:
— Por favor, baixem essas armas! Poderiam precipitar
um acidente. Seus homens estão preocupados, senhor.
Diga-lhes que eu me responsabilizo por sua segurança.
O Thort transmitiu as ordens necessárias. As pequenas
pistolas de raios foram recolocadas nos respectivos
coldres.
O interrogatório foi realizado na cabina de comando
semidestruída. Os doutores Haggard e Manoli ausentaram-
se brevemente, a fim de irem buscar algum instrumental
médico na enfermaria de bordo.
Não havia a menor dúvida; aqueles seres nada tinham
de humanos! Percebia-se claramente que descendiam de
répteis. Rhodan examinou-os de cima a baixo. Vestiam
uniformes justos, que acentuavam ainda mais as linhas dos
corpos altos e delgados.
— Tako, mande aquele da esquerda tirar a roupa. E
depressinha! Marshall sonde as mentes desses indivíduos.
Tako dirigiu o foco do psicoirradiador, em leque bem
aberto, para o tópsida colocado à esquerda do grupo. Com
gestos ágeis, ele começou a despir as peças da farda.
Rhodan mordeu os lábios, a fim de não deixar escapar um
gemido, conforme sucedia com o regente ferrônio. Pela
primeira vez lhes era revelada a verdadeira natureza dos
tópsidas. Os dois médicos, que acabavam de retornar,
complementariam as observações.
— Meu Deus! — suspirou o Dr. Haggard, com a face
congestionada. — Por isso eu não esperava!
— Diga-lhe que pode tornar a vestir-se — ordenou
Rhodan, com voz rouca. — Bell! Thora e Betty podem
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voltar à cabina. O caso está resolvido. Tako, regule o
radiador para bloco-hipnose. Transmita ordem permanente
para responderem com a verdade às nossas perguntas.
Enquanto Tako regulava o aparelho, Rhodan lançou
um último olhar perscrutador aos estranhos indivíduos.
Apesar de possuírem dois braços, duas pernas e andarem
eretos, não eram humanoides. Respiravam igualmente
oxigênio, porém com isso acabava a semelhança com seres
humanos. A pele escamosa, marrom-escura, já constituía
prova insofismável. Também a constituição orgânica devia
ser radicalmente diferente e Rhodan nem se arriscava a
conjeturar sobre seu sistema metabólico.
Os crânios achatados e calvos eram nitidamente de
répteis, com lábios finos como lâminas de faca e enormes
olhos protuberantes, de surpreendente mobilidade. A
intensa luminosidade de Vega devia ser-lhes bastante
desconfortável.
Sua grande inteligência não ocultava o fato de
possuírem caráter frio e desumano, com conceitos
radicalmente diversos sobre tolerância, ética e moral.
Compaixão e piedade eram sentimentos inexistentes neles.
No entanto, tinham suas próprias regras de conduta, que
aos olhos dos homens eram estranhas e até ridículas. Só
com a maior cautela se poderia tratar com aqueles
reptilóides providos de seis dedos nos membros. Conforme
Crest já observara anteriormente, qualquer acordo ou
tratado feito com eles não conservava a validade por muito
tempo.
Rhodan começou a interrogar um dos oficiais. O
prisioneiro respondeu em fluente intercosmo, o que
dissipou qualquer dúvida por ventura ainda existente
quanto à sua real identidade. Após algumas perguntas
rotineiras, Rhodan foi ao âmago do problema:
— Declara que sua nave foi abatida por um pequeno
veículo arcônida nas proximidades do nono planeta. O
senhor era o comandante. Portanto, deve saber de onde
veio àquela nave gigante arcônida, do tipo Império, de
modo tão inesperado. Como é que foi parar nas mãos dos
tópsidas? Quem são seus tripulantes? Há arcônidas a
bordo?
— Foram mortos! — explicou o oficial, em tom
monótono.
Os enormes olhos mortiços pareciam não enxergar, sob
a influência constante do psicoirradiador.
— Capturamos a nave de guerra no planeta Topsid III.
Ela desceu lá para se reabastecer com água potável. A
tripulação dormia. Dominamos as sentinelas com gás. Os
arcônidas foram forçados a nos treinar. Aquela nave
representa o sustentáculo de nossa frota espacial.
As explicações vinham aos arrancos, interrompidas por
numerosas perguntas. Rhodan deu-se por satisfeito;
guardas ferrônios levaram os prisioneiros.
— Bem que gostaria de saber o que os levou a atacar o
sistema Vega. Mas esse sujeito parece não ter a menor
ideia. O almirante-chefe dos tópsidas é que deve saber.
Como se chama?
— Crek-Orn — informou o cientista arcônida. —
Nome bastante conhecido; o homem está em vias de
tornar-se uma personalidade importante no reino tópsida.
Seria bom ficar de olho nele.
Assim que os tópsidas saíram, Rhodan entrou
imediatamente em contato radiofônico com o major
Deringhouse. Os dois caças já rumavam para o nono
planeta.
O Thort acompanhava atentamente o diálogo.
— Calma em toda a frente — informou Deringhouse.
— A nave de guerra pousou num imenso espaçoporto. A
invasão encontra resistência quase nula. Em terra travam-
se violentas lutas, mas os ferrônios estão em desvantagem.
No setor do espaço em que me encontro, não há sombra de
naves inimigas. Concentraram-se exclusivamente sobre o
mundo principal. Cerca de cento e cinquenta unidades da
frota ferrônia, entre naves grandes e pequenas, regressam
conosco. Não podemos acelerar muito, senão ficam para
trás. Portanto, ainda temos um bom tempo de viagem.
Estamos exaustos.
Deringhouse esperou a resposta de Rhodan, que não
tardou:
— Não espere pelas outras naves. Acelere o mais que
puder e venha logo. Os caças estão intactos?
— De ponta a ponta. Apenas Klein tem uns arranhões
na pintura externa, escapou por pouco de um tiro
energético.
O sorriso de Deringhouse iluminava sua face coberta
de sardas. Acenou alegremente para o Thort, quando este
se mostrou na tela do caça. Rhodan sorriu
imperceptivelmente e desligou.
— Meus homens estão prontos, senhor! — disse ele ao
Thort. — Ficar-lhe-ia muito grato se providenciasse a fim
de que sejam instruídos no uso dos transmissores.
O Thort respondeu:
— Vou ter que deixá-los agora. Mas logo contarão com
a assistência do engenheiro-chefe de uma fortaleza secreta
do deserto. Trata-se de fortificações subterrâneas,
construídas na época em que os diversos grupos de minha
raça ainda viviam desunidos. Eu recomendaria o transporte
da nave avariada para esse local. Os transmissores daqui
terão que ser inativados, pois estão ligados diretamente ao
meu palácio. Meus homens não conseguirão defendê-lo
por muito tempo, o que poderia ocasionar uma utilização
indesejável dos transmissores. Portanto, em hipótese
alguma vocês poderiam usar os daqui. A fortaleza no
deserto possui equipamento similar, plenamente utilizável.
Vou tomar as providências necessárias imediatamente.
Com isso, o senhor supremo de um sistema planetário
inteiro se retirou.
— Bem, este caso está resolvido! — exclamou
Rhodan. — Crest, calcule onda e direção para um
hiperchamado à Terra. Vou ditar a mensagem ao
codificador. Quero que seja enviada em frequência muito
alta, com condensação máxima. E mande repeti-la várias
vezes, pois o coronel Freyt não poderá acusar o
recebimento de modo algum sob risco de sermos
localizados. Temos que enviá-la ao acaso, esperando que
seja devidamente captada. Capriche nos cálculos, Crest!
Para a Good Hope iniciava-se um período de repouso.
Quando Rhodan se encaminhou para sua cabina foi
interpelado por Bell, que parecia fatigado.
— Não acha bom a gente se interessar de perto por
esses transmissores de matéria, chefe? Estou vindo do
laboratório de controle dos ditos cujos. Os troços são
enormes e, pelo jeito, funcionam com velocidade superior
à da luz. A Humanidade poderia fazer bom uso deles...
Rhodan esforçou-se por sorrir. Bell semicerrou os
olhos, resignado, ao escutar o leve suspiro do comandante.
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— Meu caro, até você dar pela coisa, eu já agi. Por que
acha que insisti tanto em usar as máquinas? Pois, em caso
de emergência, poderíamos voar para o oitavo planeta nos
caças, espremendo quatro pessoas em cada um, não é
verdade? Mas é hora de dormir! Quando você tornar a ver
Vega surgir no firmamento amanhã, com todo o seu
esplendor, terá com que se ocupar.
Rhodan desapareceu. Reginald Bell afastou-se,
resmungando, em direção à sua própria cabina.
Não, Rhodan não era homem de deixar passar
despercebido.
despercebido qualquer coisa que, em última instância,
pudesse beneficiar a Humanidade. Porém mesmo um
homem loucamente temerário como Bell era forçado a
confessar que não seria tarefa fácil apoderar-se da nave
gigante arcônida. Mas tinham que tentar! Antes de
qualquer outro empreendimento, era preciso garantir a
retaguarda.
A noite caía sobre o nono planeta de Vega. O espaço
estava tão vazio como se jamais houvesse existido uma
frota tópsida. Só se via as estrelas, e elas eram eternas.
A Good Hope não passa de um destroço incapaz de voltar ao sistema solar. Perry
Rhodan está consciente disso. Mas sabe que os tópsidas possuem uma espaçonave que
corresponderia aos planos que tem em mente.
Portanto, Rhodan concebe algo incrivelmente arrojado e ataca de surpresa com seus
mutantes.
A próxima aventura de Perry Rhodan intitula-se:
MUTANTES EM AÇÃO.
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Nº 11/12/13/14/15
De K. H. Scheer
Clark Darlton
Kurt Mahr
e W. W. Shols
O Sistema Vega, a vinte e sete anos-luz da Terra, tornou-se cenário duma
tremenda guerra interestelar.
Tentando apurar as causas das deformações do hiperespaço naquela zona,
acusadas pelos sensores de deformação da estrutura espacial da base em
Plutão — deformações que só poderiam ser provocadas pela transição de
numerosas espaçonaves — Perry Rhodan vê-se envolvido na luta.
A Good Hope, ex-nave superior às naves inimigas, tripuladas pelos tópsidas,
os homens-répteis. Porém, de repente, surge a imensa nave de guerra
arcônida, capturada por tópsidas, e a pequena Good Hope é seriamente
avariada.
A fim de sair daquela situação desesperada e regressar à Terra, Rhodan só
tem um recurso: pôr os Mutantes em Ação...