2. Pesquisando os auto-relatos escritos
Nada deveria ser mais “natural” que falar de si mesmo. Afinal, todos nós fazemos isso e, ao que parece, sem grande esforço psíquico. (Jerome Bruner e Susan Weisser 1995)1
Falar de si mesmo é uma atividade humana das mais comuns. Nas mais
diferentes culturas, o hábito de contar as próprias histórias ou, simplesmente, de
relatar o cotidiano não requer muito esforço, podendo envolver rituais, introduzir
novos usos da linguagem ou até mesmo inaugurar formas de narrativa. Falar das
próprias experiências, fantasias, sensações, sentimentos ou visões de mundo
parece ser irresistível para a maior parte das pessoas que, das mais variadas
formas, encontram um modo de falar de si.
No cotidiano encontramos várias dessas formas de se falar de si. Alguns
exemplos de narrativas de si são as experiências pessoais contadas numa roda
de amigos, as histórias de vida contadas nas sessões terapêuticas, os auto-
relatos publicados em livros ou na mídia impressa, as auto-apresentações dos
que ingressam em grupos de auto-ajuda, as cartas íntimas, os diários e,
também, as autobiografias.
O fato de essa atividade estar presente na maioria das culturas, das mais
diferentes maneiras, pode, equivocadamente, fazer com que a concebamos
como sendo uma atividade “natural” para os seres humanos, o que é sugerido na
provocativa citação do psicólogo Jerome Bruner, contida na epígrafe acima. A
idéia que pretendo desenvolver ao longo deste capítulo, que servirá de pano de
fundo para o estudo a ser apresentado, entretanto, é a de que o falar de si deve
ser entendido como decorrente de uma necessidade humana socialmente
construída. Procurarei explicitar melhor este raciocínio.
O presente estudo parte da premissa de que a necessidade de falar de si
está associada aos processos de aquisição da linguagem e de socialização. No
decorrer da vida, essa necessidade vai ganhando contornos mais definidos que
passa a ser experimentada então, como um desejo. As formas de narrativa se
sofisticam, podendo até mesmo originar discursos que se afirmam, de forma
consciente, como posições ideológicas.
1 BRUNER, J. e WEISSER, S., A invenção do ser: a autobiografia e suas formas. In OLSON, D. R. e TORRANCE, N., Cultura Escrita e Oralidade, p. 141.
15
Dentro dessa perspectiva, considera-se que os dizeres de si mesmo
nascem nos movimentos de homens e mulheres que, ao passarem pela vida,
constróem e reconstróem discursos auto-referentes. Pode-se dizer que todos
nós, baseados nas experiências vividas, formulamos discursos e mitos a nosso
próprio respeito e que, ao longo de nossas existências, passamos por situações
diversas que contribuem para corroborar ou não esses mitos.
Partindo, portanto, da noção de que o falar de si é uma atividade que se
desenvolve no seio das experiências socializantes, e que esta atividade dá
origem às narrativas de si, que aqui chamarei de auto-relatos, buscarei debater,
a seguir, outros aspectos relacionados a esta prática.
2.1. Os auto-relatos como construções de si
A tarefa da autodescrição se inicia com o surgimento da linguagem. Jerome Bruner & Susan Weisser (1995, p. 158)
O psicólogo Jerome Bruner, no artigo que escreveu com Susan Weisser
(1995), A autobiografia e suas formas, analisa alguns dos aspectos psicológicos
e sociológicos dos auto-relatos.2 Neste trabalho, o psicólogo americano
menciona uma pesquisa que liderou, na qual foi analisado o desenvolvimento da
linguagem de Emmy, uma criança por volta de dois anos e meio de idade.
Bruner e Weisser (1995) mencionam ter se deparado com um rico material de
pesquisa, incluindo um abundante conjunto de falas auto-referentes de Emmy,
falas estas gravadas nos momentos em que a menina encontrava-se sozinha.
Reproduzo, a seguir, uma das análises contidas no artigo a respeito dos
solilóquios de Emmy:
Sua tarefa, que é também a de toda criança, era se localizar na corrente dos acontecimentos. Mas, para fazer isso, também precisava (como veremos) adquirir um sentido de pertinência ao que fazia, ao que sentia e pensava. Trata-se de uma tremenda tarefa interpretativa, e acredito que não possa ser realizada sem a ajuda da língua. Mas aqui está o ponto central: não se trata apenas da língua per se. O que se exige é um gênero especializado, algo que ela parecia estar buscando. (1991, p. 150)
2 No artigo em questão Jerome Bruner utiliza a expressão auto-relatos e, a partir de um determinado ponto, passa a usar a expressão autodescrições para tratar das atividades narrativas auto-referentes. Embora o autor tenha optado pela segunda expressão, continuarei, ao longo deste trabalho, a adotar a forma auto-relatos exatamente pelo fato de ser uma expressão mais genérica, o que, por hora, me parece mais adequado.
16
Para o autor, o surgimento dos auto-relatos confunde-se com o
surgimento da própria linguagem, dentro de um projeto subjetivo em que cada
pessoa busca dar sentido à própria vida e definir seu lugar “na corrente dos
acontecimentos”, procurando, ainda, uma forma de narrativa que lhe pareça
mais adequada. Através deste exemplo, pode-se perceber a relação dos auto-
relatos com o desenvolvimento da linguagem e com a necessidade de cada
indivíduo localizar-se no meio em que vive.
Sabe-se, entretanto, que a necessidade de cada pessoa localizar-se no
meio em que vive envolve um entendimento dos códigos vigentes nesse meio.
Em relação aos auto-relatos, pode-se dizer que eles também estão sujeitos a
esses códigos. Nas diversas relações humanas, criam-se, de formas mais ou
menos implícitas, critérios que definem o que é mais importante ser dito, para
quem, de que maneira e por quais motivos.
Bruner e Weisser (1995) referem-se, ainda, (no mesmo artigo que
mencionei anteriormente), à importância desses códigos e das limitações que
eles geram. Os autores apontam que depois de passar vários anos “ouvindo
pessoas das mais diversas idades falarem de si mesmas e de sua vida” (Bruner
e Weisser, 1995, p.141), em autobiografias faladas e escritas, perceberam um
elemento em comum entre elas, abordado no trecho que se segue: (...), do início ao término da autobiografia literária, somos limitados por fortes convenções referentes não apenas ao que dizemos quando falamos de nós mesmos, mas também a como dizemos, para quem dizemos e assim por diante. Na verdade, as convenções de estilo e gênero são tão fortes que comandam até atividades solitárias como os solilóquios que fazemos quando estamos na cama ou o diário que escrevemos. (1995, p. 141) As convenções estudadas por Bruner e Weisser (1995) no contexto da
narrativa autobiográfica foram também investigadas por outros autores, em
outros contextos. Um desses autores é Erving Goffman (2001), que discute, em
seu livro A representação do eu na vida cotidiana, alguns dos mecanismos de
reconhecimento de um indivíduo por outros, do mesmo grupo. Um desses
mecanismos é descrito no seguinte trecho:
Quando um indivíduo chega à presença de outros, estes, geralmente, procuram obter informação a seu respeito ou trazem à baila a que já possuem. Estarão interessados na sua situação sócio-econômica geral, no que pensa de si mesmo, na atitude a respeito deles, capacidade, confiança que merece, etc. (2001, p. 11)
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Por meio desse exemplo, Goffman (2001) introduz uma discussão a
respeito de uma característica inerente às interações humanas: a presença de
códigos – implícitos ou explícitos – que atuam na vida relacional. Embora o
estudo do sociólogo priorize a importância da linguagem corporal na construção
das “máscaras” que atuam no interior das relações humanas, sabe-se que esses
mesmos códigos atuam também nos processos de construção das narrativas de
si, ou, dos auto-relatos. Seu estudo, encarado de uma perspectiva mais ampla,
remete a aspectos dos processos de comunicação que, embora muitas vezes
sejam vividos como naturais, são, na verdade, socialmente construídos.
Dessa forma, definido o pano de fundo desta investigação, parto para
uma apresentação de outros elementos que compõem seu cenário. Procurarei,
na próxima sessão, discutir outros aspectos dos auto-relatos, aspectos esses
relacionados às formas, funções e conteúdos dos mesmos nos contextos em
que surgem.
2.1.1 As mil e uma formas de construir um auto-relato
Conforme já mencionado, os auto-relatos constróem-se a partir de vários
elementos. As possibilidades oferecidas pela linguagem, as convenções sociais,
explícitas ou não, a busca de sentido para a própria existência e o lugar ocupado
por um indivíduo em seu meio são alguns desses elementos. Esses elementos e
as múltiplas possibilidades combinatórias que oferecem parecem ser a origem
da diversidade de formatos assumidos pelos auto-relatos. Não estariam as
múltiplas formas de auto-relatos falando de uma busca de adequação? Busca de
adequação por parte dos indivíduos que, deparando-se com a necessidade de
falar de si, passam a fazê-lo das formas que melhor se combinam com as
diferentes demandas que surgem das situações de interação social? Procurarei
responder a esta pergunta discutindo, de forma breve, as relações entre forma,
função e conteúdo dos auto-relatos.
A relação que existe entre um auto-relato e o contexto no qual ele surge
abarca vários aspectos que envolvem, certamente, relações entre forma, função
e conteúdo. A forma pela qual um relato se constrói, os conteúdos expressos e
as funções exercidas são aspectos que, freqüentemente se misturam. Um
exemplo que surge comumente no cotidiano ilustra este fenômeno: a narração
de uma história pessoal numa reunião de amigos. A recepção do grupo –
18
expressa por risos, comentários ou até mesmo por um silêncio generalizado –
dará ao narrador de si pistas sobre as sensações que seu relato despertou,
sobre os conteúdos mais valorizados e ainda, sobre a adequação da forma que
escolheu para contar sua história pessoal.
A psicóloga Carol F. Feldman (1995), em seu artigo Metalinguagem Oral,
expõe, a partir de um exemplo que trata de um dos usos da linguagem, uma
breve reflexão sobre forma, função e conteúdo nas narrativas. Referindo-se a
uma função universal da linguagem, geralmente acionada numa situação de
disputa, a autodefesa, Feldman indica, de forma sucinta, algumas nuances das
relações entre forma, função e conteúdo presentes neste tipo de discurso.
Certos tipos de desempenho lingüístico, como por exemplo, a resolução de uma disputa, surgem em praticamente todas as culturas. Em muitas delas, esse desempenho assume uma forma cerimonial alheia aos acontecimentos rotineiros. Nesse caso, a disputa oral constitui parte fundamental das relações legais. Em outros casos, todo o procedimento é oral. Assim, por exemplo, quando uma cultura não possui um gênero escrito de código de leis, com freqüência se encontra um gênero oral que desempenhe a mesma função, (...).Em algumas culturas, o “código” concentra-se nos fatos e se esforça por explicitar as diferenças das várias versões dos contenedores para fazer surgir um julgamento em favor de um contra o outro, enquanto em outras culturas o código na verdade evita a explicitação dos fatos para se chegar a um novo consenso em que todos possam viver sem constrangimentos. Da mesma forma, as histórias em algumas culturas são, estritamente recitações fatuais, enquanto em outras são fantasiosas e inventivas. (1995, p. 57)
Não é meu objetivo aqui levantar uma discussão pormenorizada das
relações entre forma, função e conteúdo na construção dos auto-relatos. O mais
importante, no momento, é pontuar que, num auto-relato, os três aspectos estão
intimamente relacionados e associados, também, à situação em que emergem.
Parece haver em cada cultura um contrato entre seus integrantes,
contrato este que define as situações mais adequadas para o falar de si, bem
como os arranjos entre forma, função e conteúdo mais adequados. Em cada um
destes contextos alguns aspectos são valorizados em detrimento de outros.
Esses aspectos podem já ser conhecidos pelo narrador de si ou então ir
tornando-se mais claros no decorrer das histórias narradas, através das reações
de seus ouvintes. Um exemplo que ilustra este processo é o típico auto-relato
apresentado numa sessão psicoterápica. Este tipo de auto-relato tende,
geralmente, a priorizar aspectos bem diferentes daqueles que são valorizados
19
durante a narração de um caso pessoal numa roda de amigos, inclusive pelo tipo
de recepção que costuma obter.3
Um auto-relato apresentado numa sessão terapêutica e a narração de
uma história pessoal numa roda de amigos são alguns exemplos de auto-relatos.
Esses exemplos mostram como a história de vida de uma pessoa pode ser a
matriz de diversas pequenas histórias, que priorizam aspectos distintos, de
acordo com o contexto em que essa se encontra.
As várias maneiras de se contar a própria história costumam ter como
suporte a linguagem oral ou a linguagem escrita. O presente estudo concentrar-
se-á nos auto-relatos escritos e, embora as narrativas de si baseadas na
linguagem oral possam se constituir como um interessante objeto de estudo, não
serão tratadas aqui. Encaminho-me assim, para os auto-relatos escritos.
2.1.2 Os auto-relatos escritos
A história dos auto-relatos escritos parece confundir-se com a própria
história da escrita. Vários exemplos mostram que, ao longo da História, a difusão
de uma forma de auto-relato está diretamente relacionada à difusão do tipo de
linguagem em que o mesmo se baseia. Essa relação será ilustrada, através de
vários exemplos, no decorrer desse trabalho.
Um desses exemplos é a escrita de cartas, prática difundida durante a
Idade Média. Na medida em que essa prática se intensificava, passava a ser
usada, também, como um espaço para o falar de si. Procurarei explicar como
isso ocorreu.
Desde que surgiu, sob a forma pictográfica, a escrita já era usada para a
comunicação pessoal.4 Mas foi ao final da Idade Média que a prática de escrever
cartas – com teor mais pessoal - difundiu-se, confundindo-se assim com a
difusão da própria escrita alfabética. No segundo volume da coleção História da
vida privada, que aborda os modos de vida da Era Medieval, há um artigo que
menciona este fenômeno. Neste artigo, intitulado A vida privada dos toscanos no
limiar da Renascença, o historiador Charles de la Roncière (1997) mostra como
3 O tipo de recepção que um auto-relato pode obter numa sessão psicoterápica dependerá, em grande parte, da linha teórica seguida pelo psicoterapeuta e da experiência clínica que tanto este quanto o cliente possuem. Algumas linhas defendem uma abordagem mais sutil por parte do psicoterapeuta enquanto outras são a favor de uma postura mais diretiva por parte do mesmo. 4 Um estudo sobre a linguagem escrita, incluindo um breve panorama histórico de sua fase pictográfica até a escrita digital pode ser visto na Dissertação de Mestrado de ZAREMBA, R., Escrevendo (ou seria ‘teclando’ ?!) o homem do século XXI.
20
a correspondência, encarada até então como um meio de comunicação
impessoal, passa a ser utilizada também como um espaço para expressão da
vida interior:
Resta a correspondência, a maravilhosa correspondência, privada, descoberta e alegria dos italianos do século XIV. Escrever, trocar informações comerciais é, desde o século XIII, uma das técnicas comprovadas do sucesso mercantil dos italianos. Porém, à medida que passam as gerações, notícias, cartas puramente privadas acrescentam-se às primeiras. Pouco a pouco, cada um se familiariza com a escrivaninha (...). (1997, p. 256) (grifo meu)
O trecho acima mostra a íntima relação entre a difusão da linguagem
escrita e o aumento dos relatos privados, baseados nesta forma de linguagem,
que gerou, ainda, outros efeitos sociais. O historiador Philippe Braunstein
(1997), em seu artigo Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV, disponível
também no segundo volume de História da vida privada comenta a esse
respeito. Braunstein (1997) afirma que na Idade Média a escrita ainda era um
privilégio de uma minoria da população européia. Com o passar do tempo
passou a ser usada maciçamente de forma pessoal – nas confissões, crônicas e
diários da época – lançando, assim, as sementes das transformações subjetivas
que viriam a se desenvolver na Idade Moderna. Nas palavras do autor:
A escrita privada ou sobre o privado introduz incontestavelmente, quando os testemunhos se multiplicam, uma profunda mutação na atitude dos indivíduos em relação aos grupos familiares e sociais aos quais pertencem: uma preocupação de transmitir, no mínimo de descrever fenômenos vividos, sobre os quais as gerações precedentes se calavam. (1997, p.527)
Por meio desses apontamentos, Braunstein (1997) mostra como a difusão
da escrita privada contribuiu para as transformações sociais em curso, a partir da
valorização que os relatos escritos em primeira pessoa adquirem nos grupos
familiares e sociais dos narradores.
As memórias, crônicas e correspondências não foram, entretanto, as
únicas formas literárias que testemunharam a propagação do uso da primeira
pessoa do singular na linguagem escrita. O mesmo fenômeno parece ter
ocorrido, ainda, nas formas literárias artísticas do período. Danielle Régnier-
Bohler (1997), indica em seu estudo Exploração de uma Literatura, também
parte do segundo volume de História da vida privada, como as formas líricas do
período medieval foram marcadas pela presença cada vez maior do “eu” em
21
seus versos, substituindo as tradicionais colocações impessoais. Régnier-Bohler
(1997) menciona, por exemplo, como o artifício “Eu sou aquele” se torna mais
freqüente entre as trovas da época. Um exemplo deste tipo de trova, citado pela
autora, é: “Eu sou aquele de coração vestido de negro”, de Charles d’Orléans.
(Régnier-Bohler, 1997, p. 375)
Esses são alguns exemplos, de um período remoto, que ilustram algumas
das relações entre forma, função e conteúdo dos auto-relatos escritos no
contexto em que surgiram. No decorrer deste trabalho pretendo apresentar
outros exemplos de auto-relatos escritos, surgidos em outros períodos da
História. Esses exemplos serão apresentados, no entanto, de uma forma
sistematizada, dentro da classificação em que se baseia este estudo. A respeito
dessa classificação procurarei situar o leitor.
Os auto-relatos escritos constituem um assunto amplo e diverso.
Costumam se desenvolver de diferentes formas e com objetivos diversos. Por
essa razão busquei organizar este estudo em três partes. Estas compreendem
os três eixos nos quais me baseei para analisar os diversos tipos de auto-relatos
escritos.
O primeiro eixo de análise refere-se às funções que são, geralmente,
desempenhadas pelos auto-relatos escritos. Para desenvolvê-lo, baseio-me em
um estudo de Michel Foucault sobre o assunto, onde o filósofo francês levanta
as possíveis funções exercidas pelas formas de auto-relatos escritos praticadas
por dois filósofos gregos e, ainda, por Santo Atanásio.
O segundo eixo de análise dos auto-relatos escritos envolve algumas
questões relacionadas aos destinos dos auto-relatos, conforme planejados por
seus autores no momento da escrita. Em linhas gerais, pode-se dizer que os
auto-relatos costumam ser escritos para o consumo por parte do próprio autor,
para o consumo por parte de pessoas íntimas do mesmo ou, ainda, para o
consumo por parte do público. Há ainda os casos em que o destino inicialmente
planejado se altera, seja por vontade do próprio autor ou não.
O terceiro eixo deste estudo compreende os diferentes níveis de
explicitação de si presentes nos auto-relatos escritos. Nesta parte do trabalho
serão discutidos os gêneros literários nos quais aparecem, de forma implícita, as
questões pessoais do autor, como, por exemplo, nas formas de literatura
ficcional.
Procurarei, a seguir, iniciar uma discussão acerca de algumas das
funções exercidas pelos textos auto-referentes. Para isso baseio-me, como já foi
22
mencionado, em um estudo de Michel Foucault sobre formas de auto-relatos
encontrados na Antigüidade Clássica e na Literatura cristã.
2.2 Algumas funções exercidas pelos auto-relatos escritos: dois filósofos e um santo confessam o que viveram
É enganoso pensar a escrita em termos de suas conseqüências. O que realmente importa é aquilo que as pessoas fazem com ela, e não o que ela faz com as pessoas. Olson, Hildyard & Torrance (Olson & Torrance,1995, p. 7)
Michel Foucault (1992) define escrita de si, em seu artigo de mesmo
nome, como sendo o registro de movimentos interiores, pensamentos, desejos e
ações daquele que escreve. Neste ensaio, o filósofo francês apresenta uma
análise de três formas de auto-relatos encontrados em documentos da literatura
cristã e em registros da Antigüidade grega, detendo-se, principalmente, nas
funções exercidas por essas formas de auto-relatos para aqueles que delas se
utilizavam.
Procurarei expor, a seguir, as principais contribuições da análise de
Foucault para este estudo. Serão apresentadas, assim, algumas das funções
exercidas pelos auto-relatos escritos para Sêneca e Lucílio - dois filósofos da
Antigüidade -, e ainda, para Santo Atanásio - um praticante da vida monástica
cristã -, funções estas identificadas no estudo do filósofo francês. Iniciarei esta
apresentação pela função de “companhia” exercida pela escrita de si.
2.2.1 A função de companhia
(...) eis aí a verdadeira e única razão de ser da amizade: fornecer ao outro um espelho em que ele possa contemplar sua imagem de antigamente, a qual, sem o eterno blablablá das lembranças entre colegas, estaria apagada há muito tempo. Milan Kundera (1998, p. 15)
Segundo Foucault (1992) Via Antonii é um conjunto de registros de si
escritos por Santo Atanásio durante sua vida. A partir da análise de tais registros
Foucault (1992) sugere que a prática de escrever de si exercia um papel
fundamental na vida ascética, por desempenhar, entre outras funções, a de
companhia. Na visão do autor francês o hábito contribuía para que Santo
Atanásio se sentisse menos solitário, proporcionando-lhe a sensação de estar
23
acompanhado ou mesmo de estar sendo observado. Neste caso, a escrita de si,
ao simular a presença de um outro, acabava também por exercer um efeito
mantenedor e disciplinador da prática espiritual, o que aparece em um dos
trechos de Via Antonii, contido em SANTO ATANÁSIO, vida e conduta de nosso
pai Santo Antônio. (Foucault, 1992).
(...) Do mesmo modo, escrevendo os nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar mutuamente, melhor nos defenderemos dos pensamentos impuros por vergonha de os termos conhecido. Que a escrita tome o lugar dos companheiros de ascese: de tanto enrubescermos por escrever como por sermos vistos, abstenhamo-nos de todo o mau pensamento. Disciplinando-nos dessa forma, podemos reduzir o corpo à servidão e frustrar as astúcias do inimigo. (1992, p. 130)
Esta mesma função foi observada por Foucault (1992) ao analisar uma
outra forma de escrita de si, conforme era praticada na Grécia,
aproximadamente dois séculos antes: a correspondência. Ao examinar as cartas
de Sêneca a Lucílio, Foucault aponta que elas forneciam, aos correspondentes,
a impressão de proximidade física e que reproduziam, de certo modo, a
sensação de “um contato face-a-face”. (Foucault, 1992, p. 150). Esta sensação
de presença “quase física” contribuía para o reconhecimento das identidades
mútuas, uma das características das relações de amizade, conforme indica a
epígrafe que abre esta seção, de autoria de Milan Kundera, romancista tcheco
contemporâneo. Para Sêneca, “o traço de uma mão amiga, impressa nas
páginas, proporciona o que há de mais doce na presença: reconhecer”.
(SÊNECA, 40 [1]. In Foucault, 1992, p. 150)
A função de companhia não era, porém, a única exercida pelas
correspondências. Vejamos outras funções que o hábito de escrever cartas
exercia para estes dois filósofos. Uma destas funções é apontada por Foucault
como sendo a função de auto-aprimoramento, sobre a qual discorrerei a seguir.
2.2.2 A função de auto-aprimoramento
Ainda referindo-se às cartas de Sêneca a Lucílio, Foucault (1992)
percebe que esta escrita, mais do que um conjunto de orientações de um
homem mais maduro a outro mais jovem, consistia numa atividade de
aprimoramento pessoal para o escritor de si. Na medida em que o missivista
24
escrevia, exercitava a percepção de si sobre si mesmo, contando ainda com a
participação de um outro nesse processo. A esse respeito o autor comenta:
Sêneca continua a exercitar-se a si próprio, em função de dois princípios que invoca freqüentemente: que é preciso aperfeiçoar-se toda a vida e que a ajuda alheia é sempre necessária ao labor da alma sobre si própria. (Foucault, 1992, p. 146)
Segundo Foucault (1992, p. 132), a escrita de si era, para os filósofos
gregos, uma das atividades que contribuía para o “auto-adestramento”, uma
prática essencial no aprendizado da arte de viver. E, para isso, os gregos
utilizavam-se, ainda, de uma outra forma de escrita de si: os hypomnemata.
Foucault nos diz que os hypomnemata “podiam ser livros de
contabilidade, registros notariais, cadernos pessoais que serviam de agenda”.
(Foucault, 1992, p. 134-5). Em outras palavras, eram registros diários reunidos
em cadernos, constituídos de elementos heterogêneos - tais como
apontamentos, lembranças e reflexões do próprio autor ou de outros –, e
funcionavam como um registro material da memória do que foi lido, ouvido ou
pensado. Num segundo momento, poderiam ser relidos, servindo de inspiração
para o próprio autor ou para que este aconselhasse pessoas próximas em
dificuldades. A esse respeito, o filosófo francês comenta:
O contributo dos hypomnemata é um dos meios pelos quais libertamos a alma da preocupação com o futuro, inflectindo-a para a meditação do passado. (Foucault, 1992, p. 140)
Além de contribuírem para o auto-adestramento – diretamente ligado ao
auto-aperfeiçoamento -, os hypomnemata pareciam exercer, ainda, outras
funções, duas das quais serão comentadas a seguir.
2.2.3 A função de seleção das informações conhecidas
Fartura de livros, barafunda do espírito. Sêneca ([Cartas a Lucílio, 2.]. In Foucault, 1992, p. 139.)
Como já foi mencionado, a utilização dos hypomnemata compreendia
dois processos. O primeiro processo era o da escrita e o segundo envolvia sua
25
leitura, por parte do próprio escritor ou de pessoas próximas. Quanto ao
processo escritural, pode-se dizer que a confecção de um hypomnemata, a partir
da seleção de dados aprendidos, lidos ou escutados, contribuía para reforçar a
relação de cada indivíduo consigo mesmo, num contexto de relativa
efervescência cultural e “fartura de livros”. Tal função fica bem explicitada no
seguinte trecho, presente no estudo de Foucault:
Há que re-situar os hypomnemata no contexto de uma tensão muito sensível naquela época: no interior de uma cultura muito fortemente marcada pelo tradicionalidade, pelo valor reconhecido ao já dito, pela recorrência do discurso, pela prática “citacional” com a chancela da Antigüidade e da autoridade, desenvolvia-se uma ética muito explicitamente orientada pelo cuidado de si para objetivos definidos como: (...) tirar proveito e desfrutar de si próprio. (Foucault, 1992, p. 137-8)
Segundo a análise de Foucault, as pessoas mais cultas deparavam-se
com um “excesso de informações” provocado pela leitura das coisas do mundo.
Esse excesso causava-lhes dispersão e preocupação com o futuro, mal que
encontrava na escrita dos hypomnemata um antídoto eficaz, uma vez que no ato
de escrever cada indivíduo realizava sua seleção do que havia lido, visto ou
escutado. Outra função dos hypomnemata exercia-se nos momentos de sua
leitura, proporcionando ao seu autor instantes de reflexão e tranqüilidade.
Os dois processos dos hypomnemata – escrita e leitura – parecem,
ainda, estar ligados a uma outra função, que comentarei a seguir.
2.2.4 A função de construção da identidade
A partir do artigo de Foucault (1992), pode-se dizer que, enquanto
seleção das “coisas do mundo”, os hypomnemata contribuíam também, de forma
indireta, para a construção da identidade de seu autor na comunidade em que
vivia. Quando lido por outras pessoas, geralmente próximas do escritor, esses
cadernos contribuíam para reforçar as singularidades do autor no grupo
circundante. Foucault (1992) adverte-nos, porém, que os hypomnemata não
devem ser entendidos como diários íntimos. Para ele:
O movimento que visam efectuar é inverso desse: trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si. (Foucault, 1992, p. 137)
26
Nota-se que o processo de constituição de si, conforme apontado por
Foucault, trata a identidade não como uma instância individual que surge de
forma autônoma e sim como uma construção efetuada na coletividade, a partir
das informações disponíveis no mundo.
Ainda no estudo de Foucault, menciona-se uma outra função, que a meu
ver, se aproxima da de construção da identidade por referir-se ao modo de vida
experimentado pelo escritor de si. A ela estão relacionados os registros das
sensações corporais, dos estados psíquicos e dos atos cotidianos. A respeito
desses registros procurarei discorrer a seguir.
2.2.5 A função de registro das condições de vida
Uma das funções que, aparentemente, exercia a escrita de si conforme
praticada por Sêneca, Lucílio e Santo Agostinho, era a de servir como espaço
para o registro das condições de vida de seus autores. Esses registros
costumavam reunir descrições das sensações corporais, dos estados psíquicos
e, ainda, descrições da vida cotidiana de seus autores. Vejamos mais de perto
cada um desses casos.
2.2.5.1 As descrições dos estados físicos e psíquicos
Foucault, ao analisar as correspondências dos dois filósofos da
Antigüidade, aponta que as descrições dos próprios estados físicos e psíquicos,
por parte dos missivistas eram elementos constantes nesses registros. Além
dessas descrições, que procuravam revelar o estado de saúde do missivista,
reuniam também, em alguns casos, indicações de tratamentos já
experimentados pelo mesmo. A esse respeito o autor comenta:
As notícias de saúde fazem tradicionalmente parte da correspondência. Pouco a pouco, porém, adquirem a dimensão de uma descrição detalhada das sensações corpóreas, das impressões de mal-estar, das diversas pertubações que ser terão podido experimentar. Por vezes, também se trata de relembrar os efeitos do corpo sobre a alma, a acção exercida por esta em retorno, ou a cura do primeiro pelos cuidados prestados à segunda. (Foucault, 1992, p. 153)
Um exemplo é a carta 78 de Sêneca para Lucílio. Nesta, o missivista
relata detalhadamente os males que lhe acometeram durante a juventude.
27
A princípio, não me preocuparam; a minha juventude ainda tinha forças para resistir aos golpes e enfrentar valentemente as diversas formas do mal. Com a continuação, acabei por sucumbir a tal ponto que toda a minha pessoa se esvaía em catarro e fiquei reduzido a uma extrema magreza. Várias vezes tomei a precipitada decisão de acabar com a existência, mas um motivo me deteve: a avançada idade de meu pai. (Foucault, 1992, p. 154)
Além dessas descrições, Foucault menciona a presença de registros do
cotidiano nas correspondências trocadas entre Sêneca e Lucílio. Procurarei
indicar, a seguir, como foram, esses registros, interpretados por Foucault.
2.2.5.2 As descrições da vida cotidiana, ou, a vida como ela era
Examinar-me-ei a partir deste mesmo instante e, seguindo uma prática das mais salutares, passarei em revista o meu dia. ([Sênca, Cartas a Lucílio, 83]. In Foucault, 1992, p. 151)
Na visão de Foucault, os relatos das situações cotidianas, presentes na
correspondência de Sêneca, aproximavam a escrita de si ao exame de
consciência, prática comum a correntes filosóficas diversas da época, tais como
a pitagórica, a epicurista e a estóica. Tal relação, conforme entendida pelo
filósofo francês, é explicitada em um dos trechos de sua análise:
Assinale-se que Sêneca, ao dar início a uma carta onde se propõe expor a Lucílio a sua vida diária, relembra a máxima moral segundo a qual “devemos pautar a nossa vida como se toda a gente a olhasse”(...) ([Sêneca, Cartas a Lucílio, 83, I]. In Foucault, 1992, p. 151)
A preocupação em descrever o próprio cotidiano, em detalhar as próprias
ações através de um registro escrito, como exercício de revisão do próprio
comportamento, parece estar, também, relacionada a duas outras funções
comentadas anteriormente – a função de companhia e a função de auto-
aprimoramento. Estas relações lembram-nos que as divisões propostas devem
ser vistas mais como uma forma de organização do estudo da escrita de si do
que, propriamente como experimentadas na prática.
Dito isto, encaminho-me para um breve resumo das principais
contribuições da pesquisa de Foucault apresentadas anteriormente.
28
2.2.6 Um resumo das funções da escrita de si
A pesquisa que Foucault nos apresenta em A escrita de si é ampla e traz-
nos um rico panorama dos significados assumidos pelos auto-relatos em dois
contextos que em muito influenciaram costumes e modos de vida ocidentais.
Como já foi visto, Foucault sugere que, por meio dos hypomnemata, seus
autores buscavam selecionar e interpretar os conhecimentos dados, o que,
indiretamente parecia contribuir para os processos de construção de identidade
daqueles que os escreviam. Já as correspondências relacionavam, através dos
relatos detalhados, as percepções de si mesmo, mantidas pelo missivista,
daquelas construídas pelo seu destinatário, o que, segundo Foucault, indica um
movimento de “introspecção”. Na opinião do filósofo francês a “introspecção”
proporcionada pela troca de correspondências mais se aproxima de uma
abertura de si para o olhar do outro, do que de um descobrimento de si por si
mesmo. Já os registros de Santo Atanásio pareciam funcionar,
fundamentalmente, como um instrumento de autoconhecimento e de regulação
da vida espiritual.
Considero estas colocações enriquecedoras para este estudo, uma vez
que evidenciam os processos subjetivos envolvidos na escrita de si situando-a,
ao mesmo tempo, no contexto em que estes se encontravam.
Parto, neste momento, para uma exploração de outras formas de escrita
de si, de outros períodos e conforme analisadas em outros estudos. Procurarei,
para isso, desenvolver o segundo eixo deste estudo, referente aos destinos
pretendidos pelos escritores de si para seus registros.
2.3 Interpretando os auto-relatos de acordo com os destinos pretendidos por seus autores
Na dissertação de Mestrado Passeio literário pelo território das escrituras
de mim, Adriana Saldanha Guimarães (1998) introduz sua pesquisa chamando a
atenção do leitor para a indefinição das fronteiras do que ela chama de
escrituras de mim. A autora utiliza este termo – tradução literal de écritures du
moi, do pensador Georges Gusdorf - para englobar formas aparentemente
distantes, tais como correspondências, diários e anotações íntimas. A definição
29
de Guimarães (1998) para este gênero literário é a seguinte: “As escrituras de
mim fazem parte de um conjunto de textos que têm como objeto o próprio sujeito
que escreve” (Guimarães, 1998, p. 4). Seu estudo inclui uma análise das
correspondências trocadas entre Clarice Lispector e Lúcio Cardoso e, com esta
análise, a autora busca verificar a importância dos relatos pessoais na vida dos
dois escritores.
O estudo de Guimarães (1998) é rico e traz um interessante mapeamento
deste território literário, que como bem nos lembra a autora, é impreciso em seus
limites. Procurarei comentar alguns dos pontos de seu estudo que contribuem
para este trabalho. Pretendo prosseguir, entretanto, utilizando a expressão
escrita de si, sugerida por Michel Foucault em seu artigo de mesmo nome. A
partir deste artigo, já discutido anteriormente, a escrita de si pode ser entendida
como o registro de movimentos interiores, pensamentos, desejos e ações
daquele que escreve. (Foucault, 1992).
Voltando ao estudo de Guimarães (1992), nele foram encontrados
elementos que se mostraram enriquecedores para este trabalho, os quais
buscarei apresentar. A partir de sua definição de escrituras de mim, a autora
sugere uma classificação para este gênero literário na qual diferencia os textos
reservados para o consumo do próprio autor daqueles destinados a outras
pessoas.
Considero esta forma de classificação interessante, pois, como já
mencionei, as formas de escrita de si, bem como as funções por ela exercidas,
relacionam-se diretamente com o destino que os escritores de si pretendem para
seus textos. Inspirando-me nesta classificação encaminho-me, neste momento,
para uma análise das diversas formas de auto-relatos organizando-as de acordo
com os destinos pretendidos pelos escritores de si para os próprios textos. Para
desenvolver esta análise sugiro, entretanto, três destinos para a escrita de si: o
consumo por parte do próprio autor, o consumo por parte de pessoas íntimas e o
consumo por parte do público. Procurarei explicar como percebo esta divisão.
Quando alguém resolve escrever sobre si mesmo, de forma consciente e
explícita, pode fazê-lo objetivando guardar o texto para si, pretendendo que
alguma pessoa íntima o leia ou mesmo desejando que o texto torne-se público.
No momento da escrita, algum destino é traçado para o texto em construção: o
consumo por parte do próprio autor, o consumo por parte de pessoas íntimas ou
mesmo o consumo por parte do público.
Nem sempre, no entanto, o destino do texto é aquele que foi imaginado
inicialmente pelo seu autor. Desse modo, saliento que a classificação sugerida é
30
apenas uma tentativa de organizar o território vasto e exuberante da escrita de
si, devendo esta divisão ser imaginada mais como uma membrana porosa do
que como uma rígida demarcação.
Iniciarei este mapeamento pelos casos em que os escritores de si dizem
construir seus registros apenas para si mesmos. Posteriormente pretendo
comentar os casos em que, também se revelando na escritura, os autores
destinam seus textos para o consumo por parte de pessoas íntimas. Num outro
momento, explorarei os auto-relatos escritos destinados ao consumo por parte
do público e, realizada esta tarefa, comentarei os casos de textos destinados à
publicação em que a escrita de si aparece de forma implícita.
2.3.1. A escrita de si para si próprio: os livres de raison e os diários íntimos
O diário talvez seja um dos gêneros que melhor represente a escrita
explícita de si destinada ao consumo do próprio autor. Não há como pensar nos
auto-relatos escritos sem pensar nesta forma literária e, em como os diários vêm
sendo, para muitas pessoas, um espaço de expressão e de auto-reflexão. Os
diários íntimos, porém, tal como são concebidos atualmente, repletos de
confissões e detalhes da intimidade do autor, só se difundiram após um longo
período desde que surgiu a prática de escrever sobre si mesmo e sobre o
próprio cotidiano de forma regular.
Madeleine Foisil (1997), estudiosa da escrita privada do período que vai
do final do século XVI ao século XVIII, menciona três formas de escrita pessoal
como tendo sido as mais populares do período: as memórias históricas, os livres
de raison e os diários íntimos. Discutirei nesta seção, os livres de raison e os
diários íntimos, formas de escrita de si para consumo próprio. Já as memórias
históricas serão analisadas na seção relativa à escrita de si para o consumo por
parte do público.
Os livres de raison podem parecer similares ao diário. De acordo com a
análise de Foisil (1997), entretanto, os livres de raison podem ser melhor
compreendidos se concebidos como livros-caixa domésticos e continham,
também, descrições da vida cotidiana. A definição de Foisil (1997) para este
gênero, que se tornou bastante popular na França, é a seguinte:
Em seu aspecto primeiro e mais elementar[os livres de raison] são, em geral, livros de contas; e mesmo quando mais desenvolvidos, mais elaborados e mais ricos de informações, ainda assim articulam-se e elaboram-se em torno da contabilidade. Escritos no dia-a-dia, na imediata transcrição cotidiana, baseiam-
31
se num esquema simples: o da vida de cada dia em seu ritmo (...) (Foisil, 1997. p. 334) Para a historiadora, o grande mérito dos livres de raison se deve à
abundância de detalhes do cotidiano registrados por seus autores, geralmente
homens, e, em sua maioria, comerciantes ou chefes de família. Como registros
da intimidade, no entanto, são contidos ou até mesmo silenciosos.
A prática de escrever diários pessoais, recheando-os de registros íntimos
e de relatos sobre afetos, desafetos, sensações, sentimentos e visões de
mundo, tornar-se-ia mais comum, segundo Foisil, apenas a partir da segunda
metade do século XVII, na França e, principalmente, na Inglaterra.
Entre os diários analisados por Foisil, os ingleses são os mais
reveladores da intimidade, ou até mesmo indiscretos, sendo a maioria deles de
autoria feminina. “As mulheres falam sobre si mesmas”, diz Foisil. (1997, p. 353)
Nesses diários elas relatavam as atividades diárias típicas de uma dona de casa
da época - bordados, doces, decoração - e também as preocupações e alegrias
suscitadas pelos filhos. (Foisil, 1997, p. 353)
Mesmo quando não são as autoras, entretanto, as mulheres aparecem de
forma bastante presente nos registros íntimos da época. Um caso particular de
diarismo deste período, citado por Foisil (1997), é o conjunto de registros de
Samuel Pepys, um funcionário da Marinha inglesa. Nesses registros, escritos
entre 1660 e 1669, Pepys fala de sua intimidade conjugal, de suas infidelidades
e das próprias sensações corporais. A historiadora reproduz, em seu estudo,
diversos trechos nos quais o diarista dedica-se a escrever de sua vida privada.
Em um dos trechos, ele relata os detalhes de um desentendimento com a
esposa:
Ela, muda; eu, pedindo-lhe de quando em quando para que viesse deitar-se. Depois de sua fúria explodiu: eu era um canalha, eu a traíra. ([Samuel Pepys, 1985, Journal Mercure de France]. In Foisil, 1997, p. 353)
Pelos assuntos abordados no diário e pela escolha da linguagem cifrada,
presume-se que as escrituras de Pepys eram apenas para consumo próprio. O
conjunto dessas escrituras, no entanto, descoberto três séculos mais tarde,
tornou-se um célebre exemplo de registro da intimidade.
Os motivos que levam uma pessoa a escrever detalhes de seu cotidiano
e de sua vida íntima variam. Um motivo, no entanto, parece ser comum a vários
diaristas modernos: o desejo de escrever sobre si para ler-se num momento
32
posterior. Anne Martin Fugier (1991), em seu estudo sobre a vida privada
burguesa, fornece um bom exemplo desse caso, no trecho que se segue :
Os diários íntimos também são escritos como repositórios de lembranças. Gabrielle Laguin, jovem burguesa de Grenoble, começa a escrever seu diário em julho de 1890, aos dezesseis anos e meio de idade : "Dentro de muitos anos, relerei talvez com felicidade esses rabiscos iniciados nos dias de juventude e de alegria" (12 de julho). Em 30 de outubro ela volta a essa idéia : "Mais tarde, quando eu for bem velha, vou me divertir em relê-lo, em rever-me, nesse espelho do passado, como eu era então." Em pouco tempo seu diário se torna uma referência. Ao escrevê-lo, ela cria uma história para si. Ao inscrever o presente entre o passado e o futuro, ela estrutura sua vida. O presente é o que menos aparece, transformando-se imediatamente em passado e objeto de referência. (Martin-Fugier, 1991, p. 195) Escrevendo para ler-se na velhice ou não, a prática do diarismo sempre
esteve cercada, para muitas pessoas, de cuidados especiais. Um destes
cuidados refere-se à preocupação de muitos escritores de si em manterem seus
registros pessoais protegidos do olhar alheio. Michelle Perrot (1991), em seu
estudo sobre a vida privada do século XIX, situa a prática de escrever diários
entre os adolescentes dos internatos oitocentistas como um movimento em
busca de privacidade, o que pode ser entendido pelas frases que se seguem:
(...) a ternura que envolve a criança se tinge de desconfiança e distanciamento em relação ao adolescente, sempre suspeito de sedição. Mas essa própria vigilância estimula o sigilo. Os adolescentes imaginam mil formas de conquistar sua privacidade. A leitura de romances, no tempo furtado aos estudos ou à hora de dormir, a poesia, o diário íntimo, o devaneio, enfim, constituem formas de apropriação do espaço interior. (Perrot, 1991, p. 166, grifos meus.) No exemplo acima, o diarismo, como forma de "apropriação do espaço
interior", prolifera, paradoxalmente, num ambiente claramente desapropriador
deste mesmo espaço. Este tipo de situação, porém, não é rara em se tratando
de diários íntimos. Desde que esse gênero literário difundiu-se, vários diários
foram iniciados em situações claramente limitadoras ou mesmo de
confinamento. Estes diários constituíram-se, inclusive, como objeto de estudos
específicos que serão comentados aqui.
Antes, porém, de abordar as questões relativas à prática do diarismo em
situações de confinamento pretendo discutir uma outra característica da prática
de escrever diários, levantada, indiretamente, pelo exemplo que há pouco citei.
Trata-se da popularidade que esta prática mantêm entre os adolescentes, de
várias sociedades e épocas. Procurarei a seguir refletir acerca das possíveis
causas dessa popularidade.
33
2.3.1.1 Confissões de adolescente: o diarismo adolescente como uma forma de autoconhecimento
A partir de hoje, como num espelho, descobrirei quem sou... Sandrine, personagem de A vida sonhada dos anjos5
No exemplo que citei anteriormente, referente aos jovens dos internatos
oitocentistas, o diarismo surgiu como uma forma de "apropriação do espaço
interior". Isso parece sugerir que uma das funções do diário pode estar ligada a
demandas de auto-expressão e de autoconhecimento, demandas essas que se
intensificam na adolescência.
A forma como a fase da adolescência vem sendo vivenciada no Ocidente,
nos últimos séculos ou, pelo menos, desde o advento da Modernidade, torna
este um período no qual são experimentados, em maior ou menor intensidade,
conflitos das mais variadas ordens. Tais conflitos estão relacionados a
"descontinuidades"6, experimentadas no aspecto do trabalho, no terreno dos
relacionamentos íntimos e, ainda, no campo da sexualidade. Por conta dessas
descotinuidades e dos conflitos daí oriundos, a definição da própria identidade
torna-se, nessa fase, um desafio para a maioria das pessoas.
A prática do diarismo parece, assim, estar associada a dois processos
subjetivos, que costumam ser experimentados de forma intensa na
adolescência : a construção da identidade e a busca de um espaço para a
expressão de sentimentos vivenciados. Cito um outro exemplo para ilustrar esta
relação.
O exemplo trata de um caso particular de diarismo, que se tornou célebre
no mundo inteiro a partir da década de 1950 : o Diário de Anne Frank. Anne
Frank, uma polonesa que viveu sua adolescência durante a Segunda Guerra
Mundial, escreveu seu diário no período em que se manteve escondida,
buscando escapar da perseguição nazista aos judeus, ocorrida no mesmo
período. Num dos primeiros dias de seu diário, Anne escreve:
Tenho vontade de escrever, e tenho uma necessidade ainda maior de tirar todo tipo de coisas de dentro do meu peito. “O papel tem mais paciência do que as pessoas”. Pensei nesse ditado num daqueles dias em que me sentia deprimida e
5 La Vie Rêveé des Anges, dirigido por Erick Zonca, 1999, França. 6 A esse respeito ver BENEDICT, R. (1954, p.207-219)
34
estava em casa, sentada com o queixo apoiado nas mãos, chateada e inquieta, pensando se ficaria ou se sairia. Finalmente fiquei onde estava, matutando. É, o papel tem mais paciência, e como não estou planejando que ninguém mais leia esse caderno de capa dura que geralmente chamamos de diário, a não ser que algum dia encontre um verdadeiro amigo e isso provavelmente não vai fazer a menor diferença. (Frank, 2000, p. 16)
No trecho reproduzido Anne define seu diário como um espaço para a
expressão de suas dúvidas, sentimentos e pensamentos. Essa mesma utilização
do diário pode ser vista em um outro exemplo de diarismo adolescente,
contemporâneo e oriundo de uma obra ficcional. Refiro-me ao filme francês La
Vie Rêveé des Anges, cujo título em português é A vida sonhada dos anjos7. Por
meio desta narrativa, passamos a conhecer os desejos, anseios, medos e
experiências da adolescente Sandrine. O fato curioso é que a moça, por
permanecer hospitalizada durante toda a história, só se torna conhecida do
espectador através das páginas de seu diário, lidos em todos os detalhes por
Isa, a protagonista da trama. Logo na primeira página, a autora do diário declara:
“A partir de hoje, como num espelho, descobrirei quem sou...”
Este breve exemplo ilustra um caso de diarismo adolescente e aponta, de
forma poética, uma de suas possíveis funções: a de funcionar como um
instrumento nos processos de autoconhecimento.
Adolescentes ou não, os diaristas costumam, no entanto, tomar certos
cuidados com seus diários objetivando, assim, preservá-los do olhar alheio. A
figura do caderno de capa dura acompanhado de um pequeno cadeado, vendido
nas papelarias para a prática do diarismo, ainda nos dias de hoje, é um exemplo
clássico que ilustra a preocupação de certos escritores de si em terem seus
escritos resguardados da curiosidade de outras pessoas.
Os diários íntimos, porém, por mais bem guardados que estejam, são, na
maioria das vezes, motivos de preocupação para seus donos que costumam
atemorizar-se perante a possibilidade de terem seus registros pessoais
descobertos e lidos por outras pessoas. Essa preocupação revela, certamente,
uma tensão presente em toda a história do diarismo, tensão esta entre a
privatização e a publicação dos registros pessoais. Situações específicas da
prática do diarismo parecem, porém, reeditar em cores mais vivas essa tensão
como, por exemplo, as situações de confinamento, quando estas são o cenário
da escrita íntima. Debaterei algumas questões suscitadas por estas situações,
partindo das contribuições de uma estudiosa do assunto. 7 La Vie Rêveé des Anges, dirigido por Erick Zonca, 1999, França.
35
2.3.1.2 O diarismo em espaços confinados: prisão ou projeto de revelação?
Para iniciar a discussão relativa à escrita de diários em situções de
confinamento, citarei novamente O diário de Anne Frank. Além de ter sido escrito
por uma adolescente este diário representa, ainda, um caso típico de diarismo
praticado em situação de confinamento. Exporei, a seguir, algumas reflexões
trazidas por esse caso, a partir das contribuições de Bèatrice Didier.
O diário de Anne foi um dos diários estudados pela autora francesa que,
segundo Wander Melo Miranda (1992), se concentrou em pesquisar diários
escritos em situações de confinamento. Em Corpos Escritos, Miranda afirma que
para Didier, que estudou também os registros do Marquês de Sade, o diário
íntimo reforça o isolamento de quem o escreve, esteja o autor numa situação
carcerária ou não. Ainda segundo o autor, Didier atribui à escrita de diários
íntimos um caráter carcerário. No caso do escritor estar vivendo uma situação de
confinamento, a prisão "objetiva" intensificaria a sensação de confinamento
subjetivo que é inerente à prática do diarismo. Nas palavras da pesquisadora,
reproduzidas no estudo de Miranda, o diarista, ao escrever sua vida :
cria para si uma prisão isolando-se facilmente dos que o circundam, refugiando-se na sua escrita, que se torna uma espécie de masmorra. ([Didier, B., Le journal intime, Paris: PUF, 1976, p.12]. In Miranda, 1992, p. 89) A questão proposta por Didier não é de fácil entendimento mas parece
relacionar-se, ainda que de forma rasa, à uma outra questão : a tensão entre os
domínios privado e público, tensão esta que aparece com freqüência na história
do diarismo. O Diário de Anne Frank, talvez tivesse sido apenas um diário de
uma adolescente escrito numa situação de confinamento se, após a guerra,
Anne não tivesse decidido publicá-lo. No prefácio de seu livro há uma explicação
de como se deu essa decisão:
Anne Frank decidiu publicar um livro baseado em seu diário após escutar, pelo rádio, uma declaração de Gerrit Bolkstein, membro do governo holandês no exílio, em que incentivava as testemunhas do período de ocupação alemã a publicarem os registros escritos do que presenciaram, entre eles cartas e diários. Assim, Anne Frank começou a organizar seus registros com o objetivo de publicá-los após a guerra, o que foi feito após sua morte, por seu pai Otto Frank. (Frank, 2000, p. 5)
36
Dessa forma o Diário de Anne Frank tornou-se, também, um dos registros
mais significativos dos impactos sofridos por um ser humano durante um regime
de opressão. 8
Mesmo numa situação de confinamento, entretanto, não estaria Anne
Frank, ao escrever seu diário, já pensando na eventual divulgação de seus
registros? Difícil seria responder a esta pergunta com certeza. Alguns trechos de
seu diário, entretanto, revelam que Anne cultivava nessa época, o desejo de ser
jornalista ou escritora e, assim, escrever “alguma coisa grande”. Em um desses
trechos, a autora afirma:
Será que conseguirei escrever alguma coisa grande, será que me tornarei jornalista ou escritora? Espero, ah, espero muito, porque escrever me permite tudo, todos os meus pensamentos, meus ideais e minhas fantasias. (Frank, 2000, p. 233-4)
Em outro momento de seu diário, ela escreve:
Se Deus me deixar viver, vou realizar mais do que mamãe jamais realizou, vou fazer com que minha voz seja ouvida, vou para o mundo e trabalharei pela humanidade! (Frank, 2000, p.244)
Esses trechos mostram que Anne mantinha, além do hábito de escrever
de si para si mesmo, um desejo escrever publicamente. Percebendo o contexto
em que foi publicado seu diário, vemos que esta decisão, concretizada por seu
pai, Otto Frank, não foi um ato isolado. A partir de 1945, parece ter ocorrido um
movimento de desprivatização dos relatos de guerra. Perrine Simon-Nahum,
autora do artigo Ser judeu na França, contido no quinto volume de História da
vida privada, nomeia este fenômeno de “síndrome do sobrevivente”. A esse
respeito, a autora comenta:
Os historiadores constatam há algum tempo o aparecimento da questão do genocídio no domínio público. Mais do que um ressurgimento, caberia falar em desprivatização. As lembranças do extermínio ficaram por muito tempo sepultadas no mais íntimo da memória dos sobreviventes. (Simon-Nahum, 1992, p. 484) A publicação do diário de Anne Frank, organizada por seu pai, Otto
Frank, pode ser entendida, portanto, como situada num movimento mais amplo,
8 CARVALHO, R. M. Diários íntimos na Era Digital. Diários públicos, mundo privados.Disponível em http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_ros1.htm, acesso em 26 agosto 2002.
37
envolvendo as pessoas de sua cultura religiosa que, após vivenciarem os
horrores da guerra, decidiam divulgar os registros de suas experiência.
Vimos, portanto, que a escrita do diário, tanto para os adolescentes
quanto para os confinados, contém dois elementos que, ao que tudo indica, lhe
são inerentes: a busca de privacidade e, em maior ou menor grau, a promessa
de publicização. Dependendo de vários fatores esses dois elementos podem
ganhar intensidades próximas, o que torna a tensão entre as duas forças ainda
maior.
Entre a privatização e a publicação totais de um auto-relato, existem,
porém, posições intermediárias, adotadas por alguns escritores de si. Este
parece ser o caso dos indivíduos que pretendem, ao escreverem sobre si
mesmos, a leitura de seus registros por parte de alguém íntimo. Os exemplos
mais representativos dessas formas de escrita de si são as correspondências,
das quais falarei a seguir.
2.3.2 A escrita de si para o outro: as cartas
Por que persiste o ato de se escrever cartas ? Porque o telefone é inoportuno, indiscreto e tagarela. (...) e também porque existem coisas que não podem ser ditas – a escrita nasce da impossibilidade da fala, de seus limites, de seu fracasso. O impossível que trazemos em nós – do que não se pode dizer. (...) O que não se pode falar, há que escrevê-lo. ([Comte-Sponville], in Gorrese, 1997, p. 38)
Entre os registros de si que almejam o olhar de alguém íntimo, os
exemplos mais representativos ficam, conforme já mencionado, por conta das
correspondências. Estas, por introduzirem a "presença" de um outro, mesmo que
apenas na intenção do escritor, costumam suscitar algumas questões.
Procurarei comentar dois aspectos envolvidos na escrita de si das
correspondências : a questão da privacidade – e de como ela atua diretamente
na história das correspondências -, e a questão da construção da identidade do
missivista perante seu leitor.
38
2.3.2.1 A revelação da intimidade nas correspondências
Como já foi mencionado as correspondências são formas de escrita de si
dirigidas, mesmo que apenas na intenção, para uma outra pessoa. Por esta
razão a questão do nível de explicitação de si torna-se uma questão central para
o missivista uma vez que seus registros, saíndo do domínio total do privado,
correm mais riscos de tornarem-se públicos do que, por exemplo, os diários.
Observando a história das correspondências esta questão aparece.
Assim que surgiu, a prática epistolar era voltada, sobretudo, para a comunicação
formal. O uso das cartas como espaços para a escrita de questões pessoais foi
se tornando mais comum apenas com o passar do tempo. Durante muito tempo
as correspondências foram submetidas às regras e fórmulas de escrita. Tiago
dos Reis Miranda, em seu artigo A arte de escrever cartas: para a história da
epistolografia portuguesa no século XVIII, discorre sobre as fórmulas de escrita
adotadas pelos missivistas portugueses. Em um trecho ele cita os manuais de
civilidade difundidos na época, aos quais a escrita de correspondências estava,
também, submetida.
Ao longo do século XVII, a afirmação da sociedade de corte exacerbou o controle sobre gestos e atitudes. No seu interior, todos os elementos deveriam contribuir para recordar os lugares ocupados pelos indivíduos, tanto junto a seus pares, como em relação ao monarca. Manter o nível social – ou conseguir um outro, superior – exigia conhecer as mais pequenas normas do representar. Essa situação, descrita com maestria por Norbert Elias, encontra nos “manuais de ciivilidade” alguns de seus melhores testemunhos. (Miranda, 2000, p. 44)
A aplicação de tais normas à escrita de cartas mostra que estas
representavam mais um espaço para exercício das convenções sociais do que
propriamente um espaço para se falar de si. Um outro exemplo corrobora esta
idéia. Anne Martin-Fugier, que analisou as cartas das famílias burguesas do final
do século XIX e início do século XX, comenta :
Caroline Chotard-Lioret recenseou 11 mil cartas dirigidas a Marie e Eugène Boileau entre 1873 e 1920, a maioria delas dos filhos e membros de suas respectivas famílias. Essas cartas transmitem informações que podem ser lidas por toda a família, sobre os filhos, os negócios, as visitas e contratos interfamiliares, e principalmente sobre a saúde. Quase não contém expressões de sentimentos íntimos. A correspondência possui uma função ritual : ela marca concretamente laços afetivos, e vale menos pelo que diz do que pela regularidade de seu funcionamento. (Martin-Fugier, 1991, p. 196-197, grifos meus).
39
A análise de Martin-Fugier (1991) aponta para algumas características do
período, relacionadas às definições dos espaços público e privado e à
negociação dos assuntos íntimos dentro desses espaços. No entanto, é
importante lembrar que, neste período,o direito ao segredo da correspondência
ainda era uma novidade. Este direito passa a ser reconhecido apenas no final do
século XIX, a princípio na Inglaterra, quando as autoridades deixam então de
controlar as cartas nos postos de correio. Aos maridos ainda era concedido, no
entanto, o direito de lerem as correspondências de suas esposas e, nos
internatos e prisões, os internos e detidos tinham suas cartas supervisionadas
sem nenhum pudor. (Corbin, 1991, p. 215)
Segredo, intimidade e privacidade são, portanto, questões que afetam a
prática epistolar desse período e, também, de outros períodos. Em outras
épocas, porém, novos usos das correspondências mostram que as questões
relativas à privacidade deixam de ser tão preocupantes ou, pelo menos, passam
a ser solucionadas de outra maneira. Um exemplo do que estou sugerindo é o
conjunto de cartas enviadas às seções de confissões das revistas femininas, nas
décadas de 1930 e 1940. Antoine Prost (1987), em sua análise das fronteiras e
espaços do privado, descreve como estas revistas, que giravam em torno de
assuntos de interesse feminino geral da época - receitas culinárias, moldes de
costura e tricô, explicações de como se maquilar, cuidar da casa, seduzir o
marido e educar os filhos – passaram a disponibilizar um espaço para as
confissões das leitoras:
Para dar um aspecto mais pessoal a essas prescrições, as revistas femininas começam a dialogar com suas leitoras: oferecem-lhes pesquisas e histórias verídicas, pedindo-lhes a sua opinião. E, acima de tudo, abrem uma seção de correio sentimental, que conhece um imenso sucesso. Évelyne Sullerot lembra a propósito a revista Confidences, onde a correspondência se amontoava, num “terrível jorro de aflições, tormentos, doenças e vícios, e todos os tipos de pedidos de ajuda [...]. Essa torrente demonstrava claramente que a criação desse confessionário anônimo respondia a uma necessidade.” [Sullerot, E., La presse féminine, Paris, Armand Colin, 1966, p. 58] Marcelle Auclair, Marcelle Ségal ou Ménie Grégoire, que respondem a algumas dessas cartas nas colunas dessas revistas, assumem gradativamente o papel de diretores da consciência. Como novas autoridades morais, dão conselhos semanais mais ou menos íntimos a milhões de leitoras, que nem precisam pedi-los. Ao confessionário anônimo responde o conselho em domicílio. (Prost, 1987, p. 147) Ao que indica o trecho acima, o anonimato parece ter sido a solução para
que as leitoras de revistas femininas, ao depararem-se com este novo espaço
40
para a escrita de si, não se sentissem intimidadas na revelação de suas
intimidades.
O espaço de seções confessionais nas revistas femininas, parece, dessa
forma, ter respondido a uma necessidade da época – devido à rapidez com que
se difundiu -, e inaugurou, também, um novo tipo de discurso de si. Esta forma
de discurso, geralmente construído por uma única leitora, inspirava as
orientações dos editores para o esclarecimento das dúvidas e alívio dos
sofrimentos de milhares de leitoras.
Indicados alguns eventos históricos que mostram as transformações no
nível de intimidade contido nas correspondências, procurarei, neste momento,
debater, um outro aspecto relacionado à escrita de si das correspondências.
Refiro-me ao papel que estas desempenham na construção da identidade do
missivista perante o destinatário.
2.3.2.2 A construção da identidade do missivista perante o destinatário: Franz Kafka e Clarice Lispector
A escrita de correspondências parece exercer, também, um papel na
construção da identidade do missivista perante o destinatário. Esse aspecto das
correspondências foi observado por Foucault, em sua análise da
correspondência de Sêneca a Lucílio, discutida em outro momento deste
trabalho. Vejamos, neste momento, alguns exemplos contemporâneos que
apontam para essa mesma relação.
O primeiro exemplo foi encontrado em Carta ao meu pai, de Franz Kafka.
A obra reúne alguns registros do escritor encaminhados a seu pai ainda em vida
e que, após sua morte, tornaram-se públicas. Nesses registros, Kafka busca
explicar o significado de suas escolhas e, ao mesmo tempo, expressar suas
opiniões e sentimentos a respeito da educação recebida do pai. Em outras
palavras, buscava na escrita da correspondência se situar na corrente dos
acontecimentos, mas nesse caso, os acontecimentos eram subjetivos e oriundos
da sua relação com a figura paterna. Nas palavras de Torrieri Guimarães:
Nesta “Carta ao Pai” ele procura analisar, numa deliberada tentativa para encontrar um ponto de apoio na areia movediça em que se constituíam as suas
41
teorias sobre o mundo exterior, as suas relações com a família, mais particularmente com o pai. (Guimarães, p. 5-6) A mesma função é mencionada por Guimarães (1998), em sua análise
das cartas enviadas por Clarice Lispector a Lúcio Cardoso. A autora mostra a
importância que as mesmas passaram a exercer na vida da escritora – que,
embora tenha recebido poucas respostas de Lúcio Cardoso,9 dizia se sentir
mais próxima de seu correspondente.10 Na opinião de Guimarães, as cartas
exerciam, para Clarice, um papel fundamental na construção de sua identidade
como escritora. Em uma dessas cartas, datada de 13 de julho de 1941, ela
escreve:
(...) eu tinha vontade de escrever outras coisas, mas você diria: ela está querendo ser ‘genial’. (Guimarães, 1998, p. 5-6). Guimarães atribui a essa afirmação o seguinte significado: Através dessa carta, exposta ao olhar do outro, Clarice experimentava construir sua identidade como escritora. A carta funciona como um laboratório de experiências. Serve para expor e fixar uma identidade, sempre passageira e nunca definida. (Guimarães, 1998, p. 46)
Já Lúcio Cardoso parecia não ver nas cartas um suporte confiável para a
expressão de suas confissões. Em um dos trechos de seu Diário não-íntimo, ele
declara: ”Nunca escreva cartas. Dê somente entrevistas. As cartas traem, são
terrivelmente cartas.” ([Cardoso, L., Diário não-íntimo. O Jornal, s/ data.
ALC/FCRB]. In Guimarães, 1998, p.56)
Para Lúcio Cardoso, o espaço mais adequado para a escrita de si era o
seu diário, embora sua noção de diário não correspondesse à de um registro
secreto e íntimo. Os diários do escritor faziam conjunto com sua obra, ou, em
outras palavras, foram escritos com a intenção do autor de serem publicados.
Pretendo, na próxima seção, abordar esses registros, situando-os, porém, no
conjunto de textos auto-referentes criados com a intenção de publicação.
9 A “greve epistolar” de Lúcio Cardoso é citada em algumas cartas de Clarice Lispector que não deixa de continuar escrevendo para o mesmo. Pesquisando o acervo de Clarice Lispector, disponível no Arquivo – Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa Rui Barbosa, A. Guimarães encontrou 3 cartas assinadas pelo escritor enquanto no acervo de Lúcio Cardoso, disponível no mesmo arquivo, foram encontradas 16 cartas assinadas por Clarice Lispector. 10 A função que a correspondência de Clarice exercia de aproxima-la do destinatário, assemelha-se à função que exerciam as cartas de Sêneca a Lucílio, citadas no item 1.2.1.
42
2.3.3. A escrita de si para todos: memórias e autobiografias
As formas mais comuns de escrita de si destinadas ao consumo por parte
do público são as memórias e as autobiografias. Procurarei apresentar alguns
exemplos dessas formas literárias e discutir, ainda, alguns aspectos subjetivos
implicados nessas formas de escrita de si.
Madeleine Foisil, estudiosa da escrita de foro privado, já citada
anteriormente, menciona as memórias históricas como tendo sido as formas
mais populares de escrita de si destinadas à publicação, no período que vai do
século XVI ao século XVIII. Uma definição de memórias fornecida por Madeleine
Foisil, elaborada por Furetière, diz que:
Memórias, no plural, diz-se dos livros dos historiadores escritos por aqueles que participavam dos fatos ou foram suas testemunhas oculares ou que contêm sua vida e suas ações. ([Furetière, Dictionnaire, 1690]. In Foisil, 1997, p. 331)
Para ilustrar essa forma de escrita auto-referente citarei um exemplo que
surgiu por volta da metade do século XIX, os registros escritos por Tocqueville.
Segundo Claudia Chigres, autora da Dissertação de Mestrado A cura pela
palavra: os Ensaios de Montaigne e as Lembranças de Tocquivelle, (1995),
Alexis de Tocqueville, que viveu entre 1805 e 1859, inicia a escrita das próprias
lembranças no período em que se afasta de suas atividades públicas. Chigres
defende que, para Tocqueville, a escrita das Lembranças de 1848 consistia em
um exercício de reconstituição dos acontecimentos dos quais foi ator e
testemunha e, também, em um espaço para a descrição das próprias
impressões. Tocqueville não buscava registrar a verdade das situações, mas sim
relembrar, num exercício de clarificação da memória, os fatos que testemunhou
em seu tempo – entre os quais as jornadas revolucionárias em Paris.
Foisil (1997) adverte-nos, porém, das diferenças entre as memórias
históricas e as autobiografias. Para definir o gênero autobiográfico, que surge
bem mais tarde, ela cita a definição de Philippe Lejeune em um ensaio que
dedicou ao tema. O conceito de autobiografia sugerido pelo autor francês é a
seguinte:
O relato retrospectivo em prosa que alguém faz da própria existência quando coloca a ênfase principal em sua vida individual, sobretudo na história de sua personalidade. ([Lejeune, P., 1971, L’autobiographie en France, Paris, Armand Collin, 1971]. In Foisil, 1997, p. 333)
43
“Relato da própria existência, ênfase na vida individual, história da
personalidade do autor” são, nas palavras de Foisil, algumas das definições de
autobiografia que diferenciam esta forma das memórias históricas.
Já Wander Melo Miranda (1992), baseando-se em uma pesquisa de
Maurizio Catani11 sobre o assunto, aponta a necessidade de se posicionar
ideologicamente como uma das causas para a proliferação das autobiografias: a autobiografia aparece como uma necessidade de configuração ideológica do mundo ocidental, não encontrada em outras partes com a mesma freqüência e significado. (Miranda, 1992, p.26) Já Goulemot (1997) dá mais um passo na análise de autobiografias.
Analisando os escritos auto-referentes de Jean-Jacques Rousseau, relaciona-os
à postura filosófica de Rousseau, que incluía sua preocupação com o enunciado
da verdade. Para o historiador:
Além do papel de Confessions na luta do cidadão de Genebra contra seus adversários, a análise do eu íntimo decorre naturalmente da perspectiva filosófica que ele adotou. A autobiografia não se atém a acidentes biográficos: procede de uma lógica inerente à trajetória de Rousseau. Existe uma necessidade de análise do eu – das Confessions à Rêveries du promeneur solitaire – que, indo além da consciência infeliz de Jean-Jacques, é preciso situar na própria origem de seu engajamento filosófico. (grifos meus) (Goulemot, 1997, p. 399)
Não é meu objetivo aprofundar-me nas relações entre a escrita de si e o
posicionamento ideológico nas autobiografias. Minha intenção é apenas delinear,
no gênero autobiográfico, alguns aspectos que relacionam a escrita de si ao
contexto no qual o seu autor se encontra. Citarei, neste momento, o exemplo de
Lúcio Cardoso, para quem, de acordo com Guimarães, a escrita de si estava
diretamente relacionada à escrita das coisas do mundo.
Segundo Guimarães (1998), o escritor Lúcio Cardoso mantinha, junto
com a produção de seus romances, o hábito de registrar “suas reflexões, idéias
e lembranças”. (Guimarães, 1998, p. 52). O escritor não via, no entanto, esses
registros como secretos, a serem resguardados do público. Além do Diário
Completo, cuja parte referente aos anos de 1949 a 1962 foi publicada, foram
encontrados em seu acervo outros registros pessoais, todos com a aparente
11CATANI, Maurizio, 1983, La question de l’autre: débat. In CATANI, Maurizio e DELHEZ-SARLET, Claudette (Orgs.) Individualisme et autobiographie em occident. Bruxelles, Éditions de l’Úniversité de Bruxelles. In Miranda, 1992, p. 26
44
intenção de serem publicados: diário do terror, livro de bordo e, também,
anotações referentes ao período de 1942 a 1947.
Um aspecto interessante na análise de Guimarães é a constatação da
heterogeneidade de assuntos presentes nos escritos de Lúcio.
Fala-se um pouco de si, do mundo, do escritor, das leituras, da literatura, do cinema, do teatro, do diário, da carta, dos beijos, do vazio da alma, da paisagem, das saudades... A escritura, feita de fragmentos que se assemelham a peças de quebra-cabeças, constrói a identidade do escritor. Mas quem era Lúcio? (Guimarães, 1998, p. 54)
Esse fenômeno, já apontado em outra prática de escrita de si analisada
anteriormente – os hypomnemata –, mostra que a escrita de si, como o registro
da seleção e organização das coisas do mundo é, também, uma forma de
construção da própria identidade.
Em se tratando de um escritor, no entanto, o registro escrito de suas
questões pessoais não se restringia aos “diários”. Estendia-se também ao
espaço ficcional, através das temáticas que desenvolvia e das personagens que
construía. Para Guimarães:
Lúcio era considerado um homem misterioso, que falava pouco de si. (...) Uma das maneiras de Lúcio falar de si era quando falava do outro. (1998, p. 54) Em outro trecho do mesmo estudo, essa questão é mais bem explicada: Lúcio foi considerado pelo seu tempo um homem que fugia às normas sociais. (...) Assim, vai criando personagens onde alguns traços muitas vezes se misturam com seu próprio retrato. (Guimarães, 1998, p. 49)
Dessa forma, Guimarães observa que Lúcio Cardoso, além de escrever
sobre si explicitamente em seus diários, parecia fazê-lo também, de forma
implícita, no espaço ficcional.
Procurarei explorar mais essa questão, discutindo, a seguir, formas
literárias destinadas ao consumo por parte do público que apresentam,
implicitamente, registros de si em seus conteúdos.
45
2.3.4 A escrita de si implícita destinada a publicação: o romance ficcional como um espaço para a construção de si
“Quanto mais o homem fala de si mais deixa de ser ele mesmo. Mas deixe que se esconda por trás de uma máscara e então ele contará a verdade.” (Oscar Wilde, 2000, p. 515)
Em uma de suas histórias mais conhecidas, O retrato de Dorian Gray,
Oscar Wilde escreve sobre a relação entre o artista e sua obra, tendo como
cenário o universo das artes plásticas. Em um dos diálogos, o pintor Basil
Hallward expõe a Lord Henry sua decisão de não disponibilizar sua melhor obra
aos olhares do público, comentando: “Sei que vai rir de mim. Mas realmente não
exporei esse quadro. Pus nele muito do meu eu”. (Wilde, 2000, p. 20)
Em outro trecho, o pintor confirma sua posição, argumentando com o
amigo seus motivos para não enviar O retrato de Dorian Gray para a exposição
da Academia: (...) todo retrato pintado com sentimento retrata o artista e não o modelo. Este é apenas uma casualidade, o pretexto. Não é o modelo o que o artista revela; eu diria que o pintor, na sua tela, revela a si mesmo. O motivo por que não tenciono expor esse retrato é o receio de ter deixado nele o segredo de minha alma. (Wilde, 2000, p. 23) Por meio dessas palavras, o pintor revela sua relação com a obra que
acabara de finalizar. As reflexões do artista, que inspiram sua decisão de manter
o quadro longe do público, falam de duas questões sobre as quais pretendo aqui
discorrer. A primeira diz respeito à presença de elementos autobiográficos do
artista em sua obra e a segunda refere-se à atitude do artista em relação à
mesma quando se depara com estes elementos reveladores da sua intimidade.
Quanto à presença de elementos autobiográficos numa obra literária,
pode-se dizer que, embora comum, nem sempre é evidente. O crítico literário
Antonio Candido (1976) debate este ponto em seu artigo A personagem de
ficção, indicando como os elementos do “real” costumam ser utilizados por
aquele que escreve, “seja por acréscimo, seja por deformação de pequenas
sementes sugestivas”. Para ele, a íntima relação entre a personagem e o autor
se dá da seguinte forma:
Este (o autor) a tira de si (seja da sua zona má, da sua zona boa) como realização de virtualidades, que não são projeção de traços, mas sempre modificação, pois o romance transfigura a vida. (Candido, 1976, p. 67)
46
Tratando da construção das personagens de um romance, Candido
aponta os dois pólos desse processo no que se refere à sua relação com a
realidade: “uma transposição fiel de modelos, ou uma invenção totalmente
imaginária”. Entre esses extremos, estão as múltiplas combinações que
relacionam-se com o estilo de cada romancista e, sobretudo, com suas
intenções para cada obra.
Em outro estudo, Antonio Candido (1999) já havia explorado este tema
através da análise da obra de Graciliano Ramos. Nos cinco artigos reunidos em
Ficção e confissão12, Candido examina como Graciliano, ao longo de seu
percurso como escritor, vai adquirindo um tom cada vez mais autobiográfico e
menos ficcional. Não é minha intenção aprofundar-me na obra do romancista
nordestino, mas registrar aqui alguns pontos de contato entre a escrita ficcional e
a escrita de si, que, no espaço literário público, costuma aparecer de forma
implícita.
Alguns dados referentes à obra de Graciliano Ramos apontam para esta
interseção: três de seus romances - Caetés, São Bernardo e Angústia - foram
escritos na primeira pessoa; duas de suas obras - Infância e Memórias do
Cárcere - são autobiográficas e, mesmo as histórias escritas na terceira pessoa,
Vidas Secas e Insônia, têm bastante presente a ótica do narrador. (Candido,
1999).
A respeito da narrativa em primeira pessoa, a teórica literária Käte
Hamburger (1986) comenta, em seu livro A Lógica da criação literária:
O conteúdo de uma narração em primeira pessoa – por mais sobrenatural que seja e sem correspondência alguma com a realidade empírica – não alcança a ficção, assim como nenhum enunciado de fantasia a alcançaria. É a forma do enunciado em primeira pessoa que permite mesmo ao enunciado irreal mais extremo o seu caráter de enunciado da realidade. (Hamburger, 1986, p. 236)
Para a autora, a narração em primeira pessoa fornece à obra um caráter
mais realista.
Percebendo o conjunto da obra de Graciliano Ramos, conforme analisado
por Antonio Candido, surge uma questão: não estaria o autor, desde os seus
primeiros escritos, inclinado a uma produção autobiográfica? Nas produções de
Graciliano anteriores a Memórias do Cárcere, registro do período em que esteve
preso, o tom autobiográfico já estava presente, através dos fragmentos de 12 Os artigos foram escritos na década de 1940, período em que Antonio Candido era crítico do Diário de São Paulo. A partir de 1955 passaram a fazer parte da introdução de Caetés e depois de São Bernardo, até 1974, quando então saíram de circulação. Em 1992, foram relançados pela Editora 34 como o ensaio Ficção e Confissão. A edição utilizada no presente estudo é a de 1999.
47
memórias pessoais e das concepções de mundo que relatam suas personagens.
Silviano Santiago descreve, no diário ficcional de G. Ramos, Em liberdade, o
mecanismo de criação que imagina ter sido o do escritor nordestino:
Pego, na minha lembrança, uma cena antiga, construída pelo meu cotidiano, e trabalho-a segundo minha intenção no romance. Como um bom cozinheiro, recheio a personagem com a minha pessoa, antes de assá-la no forno da imaginação poética. Transformo-a em personagem que pode apetecer os mais requintados gostos. Como bom copeiro, ponho a mesa, pratos e talheres para a situação banal do dia-a-dia, enriquecendo-a de detalhes acessórios e significativos. Gosto de tudo que signifique. Até uma vírgula. (Santiago, 1981, p. 87)
Mesmo em se tratando de diário ficcional, Santiago parece ter
conseguido captar e traduzir as características de Graciliano Ramos. A menção
feita à qualidade do prato, ou melhor, do texto, confirma tal impressão uma vez
que sua escrita cuidadosa foi uma das características que o consagrou como um
dos grandes nomes da Literatura Brasileira.
E, novamente Candido (1992), analisando a evocação autobiográfica
presente em Angústia, livro publicado em 1936, indaga a origem de tantos
detalhes da vida interior do protagonista da história, Luís da Silva, e reproduz um
depoimento de Graciliano Ramos no qual este se refere à sua relação com as
personagens criadas:
Nesta altura cabe uma interrogação: até que ponto há elementos da vida do romancista no material autobiográfico do personagem? “Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos” - disse ele no discurso em que agradeceu o jantar de cinqüentenário – “porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano”.13 O depoimento de Graciliano Ramos nega que as principais personagens
de três de suas histórias, São Bernardo, Angústia e Vidas Secas, sejam
autobiográficas. No entanto, em outra ocasião, Graciliano pronuncia-se a esse
respeito de forma diametralmente oposta da anterior, demonstrando a
complexidade desta relação. Tomemos a declaração dada a Homero Senna
quando este lhe indaga sobre o caráter autobiográfico de sua obra de ficção:
Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só. Em
13 “As várias faces secretas de Graciliano Ramos” Homenagem a Graciliano Ramos, Rio, 1943, p. 83. In CANDIDO, A., Ficção e Confissão, p. 40.
48
determinadas ocasiões, procederia como esta ou aquela das minhas personagens. (Miranda, W. M., 1992, p.44) 14
O reconhecimento da presença de elementos pessoais em sua obra não
parece, entretanto, ter sido vivenciado com tranqüilidade por Graciliano Ramos.
Antonio Candido (1992) menciona, ainda em sua análise do conjunto da obra do
romancista nordestino, a preocupação do mesmo com a revisão de seus escritos
antes do envio para a editora15. Este cuidado intensificava-se justamente no
momento em que sua obra caminhava para a publicação. Além das questões
ortográficas, Candido menciona a hipótese de que tal comportamento devia-se
ao pudor do escritor em tornar públicas as suas histórias, recheadas por suas
questões pessoais.
É interessante perceber como a presença de conteúdos pessoais do
artista em sua obra pode transformar-se numa fonte de conflitos, conflitos estes
intensificados no momento da publicização da obra, fenômeno presente tanto no
caso da personagem de Oscar Wilde quanto no caso de Graciliano Ramos.
Esse conflito parece refletir não apenas as tensões entre os domínios
público e privado, mas também os limites que cada escritor de si – romancista ou
não – constrói para administrar a expressão de suas intimidades. Procurarei, a
partir deste momento, desenvolver, ainda que de forma breve, essa questão.
2.4 Onde andará a escrita de si? Localizando os auto-relatos nos espaços público e privado
Desde que o Ocidente converteu a individualidade em valor, a impaciência de viver se desdobrou na impaciência de contar. E a narrativa real ou fingida da própria vida se tornou como um tipo de história, mais confiável que o enredo de romances e novelas.. (Lima, 1986, p. 243)
Na maior parte dos exemplos de auto-relatos mencionados no decorrer
deste trabalho, buscou-se verificar os aspectos subjetivos envolvidos no
processo de escrever de si. Estes aspectos relacionam-se às funções que a
escrita de si pode desempenhar, aos destinos pretendidos pelos escritores de si
14 SENNA, Revisão do Modernismo, República das Letras: 20 Entrevistas com escritores, p. 238. 15Apesar desse cuidado por parte do escritor, alguns de seus livros foram publicados sem todas as revisões desejadas. Angústia foi publicado durante o período em que estava preso e Memórias do Cárcere foi lançado sem ter sido concluído pelo autor, que faleceu antes da revisão do mesmo.
49
para os seus próprios registros e, ainda, aos níveis de explicitação de si presente
na escrita. A respeito deste último aspecto discorrerei a seguir.
Em relação ao nível de explicitação de si na escrita, pode-se dizer que
está diretamente relacionado aos outros dois. Pensando no destino para o
próprio texto, o autor de si será mais ou menos explícito nos diversos assuntos
abordados e este fenômeno certamente evidenciará algumas funções dessa
escrita em detrimento de outras. Um exemplo é o Diário de Anne Frank, já citado
em outro momento deste estudo. Ao vislumbrar a possibilidade de tornar público
seu diário, escrito numa situação de confinamento, uma segunda versão de seus
escritos foi providenciada o que alterou, provavelmente, diversos conteúdos
originais. Porém, analisando outras formas de escrita de si pode-se afirmar que,
na maioria dos exemplos, está presente a tensão entre privatização e publicação
do relato escrito, ainda que de forma latente.
A formal epistolografia portuguesa do século XVIII, a discreta
correspondência das famílias burguesas, a linguagem cifrada no diário de
Samuel Pepys, a decisão de Anne Frank de publicar seu auto-relato e o pudor
de Graciliano Ramos ao publicar suas obras são alguns exemplos de tensões
entre ocultamento e revelação de si e das próprias questões íntimas, no território
da escrita de si.
Rosa Meire Carvalho, autora do artigo Diários íntimos na Era Digital:
diários públicos, mundos privados,16 discute as relações entre público e privado
na história do diarismo, definindo o privado como o terreno da intimidade. Nas
palavras da autora,
Entende-se, nesse contexto, o sentido de privado como aquele de natureza íntima, pessoal; e público, o de dar publicidade, conhecimento público por qualquer meio ou material.
A definição do espaço privado como sendo o da intimidade aparece não
apenas na prática do diarismo – tradicional – mas também em várias outras
atividades humanas difundidas na Modernidade. Neste período, em que se
testemunhou o nascimento da noção de sujeito e o fortalecimento do
individualismo, diversas atividades em desenvolvimento contribuíram para definir
com maior precisão as fronteiras entre o espaço público e o espaço privado.
Apontarei, a seguir, alguns elementos desse processo.
16 CARVALHO, R. M. Diários íntimos na era digital: diários públicos, mundos privados. In http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/txt_ros1.htm, acesso em 26 agosto 2002.
50
2.4.1 A construção do sujeito moderno e a privatização da intimidade
Desde a Revolução Industrial e o conseqüente crescimento dos centros
urbanos, novos modos de vida foram criados e, com eles, novas concepções de
homem, de grupo e também de relações humanas. Os modos de vida surgidos
nesse período contribuiram para a valorização da esfera psíquica individual e o
ser humano passou a ser reconhecido como dotado de emoções, sentimentos e
anseios. O individualismo se fortalece e o reconhecimento da esfera subjetiva se
impõe, sendo o surgimento da Psicanálise, ao final do século XIX, o evento que
melhor representou essas transformações.17
Valorizada como nunca, a intimidade e todos os assuntos a ela
atribuídos, tais como os cuidados de si, os desejos sexuais, os sentimentos e
também as questões afetivas passam a reinvidicar um espaço próprio, marcando
as diferenças individuais ou mesmo as singularidades de um grupo. Este é o
espaço da privacidade, ou, o espaço do privado.
Essa definição - mais precisa - do espaço privado causou, entretanto,
certo estranhamento às pessoas da época. Para ilustrar, cito um trecho do
estudo de Keith Thomas, reproduzido no livro Atos de Significação, de Jerome
Bruner. O historiador inglês descreve as primeiras impressões e reações
causadas pela busca de privacidade, que começava a se manifestar de forma
intensa neste período:
Em períodos relativamente recentes da história européia, a privacidade era igualada a sigilo, ocultação e a um desejo vergonhoso de refugiar-se do olhar da comunidade. Como coloca um pregador no século XVII, “O assassino e o adúltero desejam igualmente a privacidade”. No século XVIII, Denis Diderot viu a proliferação de mobiliário contendo compartimentos secretos como um sinal de deterioração moral da era. (Bruner, 1997, p. 114) 18
Tal exemplo mostra a intensificação da busca de privacidade e, também,
alguns dos seus impactos. Assim, ao final do século XIX, já se reconhecia, de
forma mais definida do que em períodos anteriores, a diferenciação entre os
espaços público e privado. Ao mesmo tempo em que este reconhecimento se
17 A esse respeito, ver FIGUEIREDO, L. C. A invenção do psicológico, quatro séculos de subjetivação e NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Revoluções tecnológicas e transformações subjetivas Psicologia: Teoria e Pesquisa Mai-Ago 2002, vol 18 n. 2, pp. 193-202 18 Thomas, Keith, revisão de Roger Chartier (Ed.), Annales, A History of Private Life, v. 3, New York Review of Books, nov. 1989, p. 15.
51
intensificava passavam a ser estabelecidos, ainda, os tratamentos adequados às
questões subjetivas dentro de cada um desses espaços.
Outros autores discutem este processo. Philippe Ariès (1997), em sua
apresentação ao terceiro volume de História da Vida Privada, analisa as
transformações ocorridas entre o final da Idade Média e o século XIX apontando
suas causas e seus efeitos. Áriès (1997) define seis categorias de dados
importantes como os indicativos dessas transformações:
- o advento da literatura da civilidade repleto de códigos de polidez que
definem as expressões e os gestos mais adequados para cada situação,
- a difusão da literatura autógrafa,
- o gosto da solidão,
- a amizade, como uma relação de partilha,
- a valorização do “gosto” e das atividades de decoração,
- as transformações na arquitetura das casas, incluindo a diminuição dos
cômodos e a criação de espaços de comunicação – corredores, halls e
escadas privadas, por exemplo.
Dentre essas categorias de elementos, uma relaciona-se diretamente
com o objeto desse estudo - a difusão da literatura autógrafa - e procurarei
expor, a seguir, os apontamentos do autor para esta categoria.
Outro indício de uma vontade mais ou menos consciente, às vezes obstinada, de se isolar, de se conhecer melhor através da escrita, sem necessariamente comunicar esse conhecimento a outros, exceto aos próprios filhos para que o guardem na memória, e muitas vezes mantendo as confidências em segredo e exigindo que os herdeiros as destruam: são o diário íntimo, as cartas, as confissões de modo geral, a literatura autógrafa que atesta os progressos da alfabetização e uma relação estabelecida entre leitura, escrita e autoconhecimento. (Ariès, 1997, p. 11)
Esta citação mostra como claramente a relação entre o surgimento do
sujeito moderno e a difusão da literatura autógrafa, questão central deste estudo.
Não sendo meu objetivo aqui aprofundar-me no processo de surgimento do
sujeito moderno19 encaminho-me, neste momento, para uma reflexão acerca dos
relatos de si conforme se desenvolvem nos dias atuais. Procurarei, para isso,
19 A esse respeito o leitor poderá encontrar um estudo detalhado em A invenção do psicológico, de Luís Cláudio Figueiredo,
52
basear-me em alguns pontos da análise que o autor Anthony Giddens
desenvolve sobre o assunto.
2.4.2 Os projetos autoreflexivos na contemporaneidade: Anthony Giddens e a democratização da intimidade
Os auto-relatos parecem ter estado sempre presentes na história da
humanidade. Embora sempre presentes, vêm se transformando ao longo dos
tempos, refletindo, assim, as mudanças sociais, tecnológicas e subjetivas
ocorridas. A questão para a qual me encaminho, neste momento, é entender
como se desenvolvem esses auto-relatos nos dias atuais.
Um autor que vem estudando este assunto de forma sistemática é
Anthony Giddens (1992, 2002). Em duas de suas obras, A transformação da
Intimidade e Modernidade e Identidade, o sociólogo inglês analisa as
configurações subjetivas da Modernidade e da contemporaneidade,
relacionando-as às questões políticas, econômicas e sociais do mundo em que
vivemos e, ainda, situando os auto-relatos no seio dessas configurações.
Procurarei, neste momento, comentar a respeito de algumas de suas reflexões,
assinalando aquelas que mais contribuirão para este estudo.
Em um de seus livros, A transformação da intimidade, Giddens (1992)
discute a noção de intimidade, conforme experimentada na modernidade e nos
dias atuais. Para isso Giddens analisa algumas das formas de relacionamento
criadas na modernidade, baseadas no amor romântico. Giddens (1992) propõe
que o amor romântico provocou uma autêntica revolução no terreno da
intimidade, a partir do final do século XVIII. Uma das categorias que o autor
desenvolve para o entendimento das transformações ocasionadas pelo advento
do amor romântico é a análise das formas de narrativa individuais surgidas
nesse período. A esse respeito, o autor comenta:
O amor romântico introduziu a idéia de uma narrativa para uma vida individual – fórmula que estendeu radicalmente a reflexividade do amor sublime. Contar uma história é um dos sentidos do “romance”, mas esta história tornava-se agora individualizada, inserindo o eu e o outro em uma narrativa pessoal, sem ligação particular com os processos sociais mais amplos. O início do amor romântico coincidiu mais ou menos com a emergência da novela: a conexão era a forma narrativa recém-descoberta. (Giddens, 1992, p. 50)
53
O autor sugere, por meio deste trecho, uma ligação entre as narrativas de
si e as transformações na intimidade. O espaço que vão adquirindo essas novas
formas de narrativa de si reflete, na opinião de Giddens, uma ampla
transformação social em curso.
Em outro de seus livros Modernidade e Identidade, Giddens (2002)
retoma o estudo das questões subjetivas, entre elas a noção de identidade,
conforme experimentadas na modernidade e na contemporaneidade - chamada
por ele de modernidade tardia. Nesta obra, Giddens menciona também a
questão dos auto-relatos, discutindo o tema a partir da análise do livro
Autoterapia, de Janette Rainwater20. No livro a autora recomenda a escrita de
um diário para as pessoas que desejam pensar a própria vida. Giddens refere-se
a esta atividade como diretamente ligada ao que ele chama de “pensamento
autobiográfico” e revela, no trecho que se segue, a importância que vê nesse
tipo de atividade, situada por ele como uma atuação do que chama de
“pensamento autobiográfico”:
Quer o diário tenha ou não a forma explícita de autobiografia, o “pensamento autobiográfico” é um elemento central da autoterapia. Pois o desenvolvimento de um sentido coerente de nossa história de vida é um meio fundamental de escapar à escravidão do passado e abrir-se para o futuro. (Giddens, 2002, p. 71)
O autor vê nesses auto-relatos formas de se pensar sobre a própria vida.
Em outro trecho o autor coloca:
Pensar sobre o tempo de maneira positiva –como algo que permite que a vida seja vivida em vez de algo que constitui uma quantidade finita que escoa – permite que evitemos uma atitude “desvalida, desesperada”. O tempo que nos transporta implica uma concepção de sina como a que se encontra em muitas culturas tradicionais, onde as pessoas são prisioneiras dos acontecimentos e situações pré-construídas ao invés de serem capazes de submeter suas vidas aos impulsos de sua própria autocompreensão. (Giddens, 2002, p. 72) Giddens vê no livro de Rainwater um instrumento de apoio para que os
sujeitos contemporâneos desenvolvam o que ele chama de projeto reflexivo do
eu. A esse respeito o autor comenta:
A reflexividade da modernidade se estende ao núcleo do eu. Posto de outra maneira, no contexto de uma ordem pós-tradicional, o eu se torna um projeto reflexivo.Transições na vida dos indivíduos sempre demandaram a reorganização psíquica, algo que era freqüentemente ritualizado nas culturas tradicionais na forma de ritos de passagem. Mas em tais culturas, nas quais as coisas permaneciam mais ou menos no nível da coletividade, geração após
20 RAINWATER, J. Self-Therapy. Londres, Crucible, 1989.
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geração a mudança de identidade era claramente indicada – como quando um indivíduo saía da adolescência para a vida adulta. Nos ambientes da modernidade, por contraste, o eu alterado tem que ser explorado e construído como parte de um projeto reflexivo de conectar mudança pessoal e social. (Giddens, 2002, p. 37).
O projeto reflexivo, conforme proposto por Giddens, representa uma
forma dos indivíduos se posicionarem na “corrente dos acontecimentos” –
mencionada por Brunner (1995) – e diluírem, assim, os impactos negativos
provocados pelos sucessivos processos de descontinuidades vividos na
atualidade.
Na opinião de Giddens, este projeto reflexivo do eu proporcionaria ao
indivíduo ainda a sensação de domínio sobre a própria vida diluíndo, ao mesmo
tempo, a sensação de aprisionamento frente aos acontecimentos, bem como a
passividade que esta sensação costuma gerar. O pensamento autobiográfico,
um dos elementos do projeto mencionado pelo autor, serve a esse propósito na
medida que cada pessoa, situando seu momento presente entre o passado e o
futuro, como numa linha de vida, possa traçar um plano de desenvolvimento
pessoal baseado na auto-reflexão. A escrita de um diário seria, assim, uma das
atividades que busca exercitar o pensamento autobiográfico.
Analisando as contribuições de Giddens (1992, 2002) para o presente
estudo, lanço uma questão: até que ponto outras das formas de auto-relatos
encontradas na contemporaneidade, além do diário proposto por Rainwater,
podem estar atreladas à idéia do projeto reflexivo do eu, conforme sugerido por
Giddens?
Lanço essa questão ao constatar, nos dias atuais, a rápida difusão de
uma nova forma de auto-relato. Refiro-me aos blogs, uma nova forma de auto-
relato escrito que tem, no ambiente virtual, seu espaço de criação e atualização.
Pelas características que apresentam e, ainda, pelo modo como vêm se
tornando, cada dia, mais populares, reconheço serem os blogs merecedores de
um estudo cuidadoso que forneça, ainda que de forma breve, um entendimento
mais aprofundado dos significados que vêm assumindo para seus autores. Esta
é a tarefa a que me proponho neste trabalho.
Para realizar esta tarefa, dirijo-me à segunda parte deste estudo, na qual
procurarei melhor explicar o que são os blogs, bem como apresentar a pesquisa
realizada com os mesmos. Essa pesquisa teve como principal objetivo, como já
foi mencionado, investigar o que vêm representando os blogs para seus autores.
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Estarei, no próximo capítulo expondo os caminhos escolhidos para a realização
desta pesquisa e, no capítulo posterior, discutindo os resultados da mesma.