A HISTORIADE QUEMA ESCREVE
Foi correspondente em Sofia, Havana e Madrid, sempreem momentos decisivos. E, durante semanas, foi o único
repórter do Leste a cobrir a Revolução dos Cravos.40 anos depois, Miroslaw Ikonowicz voltou a Lisboa
para homenagear o seu amigo Ryszard KapuscinskiTEXTO DE LUCIANA LEIDERFARB FOTOGRAFIA DE NUNO BOTELHO
Quando, a 26 de abril de 1974, Miroslaw Ikono-
wicz atravessou a fronteira portuguesa rumo a
Lisboa, sentiu que estava prestes a escrever
uma pequeníssima parte da crónica do mundo.
Chegara ao posto fronteiriço horas antes graças
a um palpite, uma dessas intuições infalíveis de
repórter habituado a antecipar a História, vin-
do de Madrid, onde era há um ano correspon-dente da Agência Polaca de Imprensa (PAP) e
onde viveria até 1980. Ele conta como aconte-
ceu: "Estava a fazer a barba no meu apartamen-to de Madrid e ouvi no rádio canções populares,
emitidas umas atrás das outras, sem qualquer
texto a acompanhar. Liguei para o consulado de
Portugal e percebi que o cônsul-geral estava a
ouvir o mesmo que eu. Perguntei-lhe o que se
passava em Lisboa, ao que ele respondeu, taxati-
vo: 'Não há nenhuma revolução.' Claro que era
exatamente o contrário."
Trinta e oito anos depois, o destino quis
que Miroslaw Ikonowicz relatasse este episódio
no mesmo local lisboeta onde pernoitou naque-les dias "únicos" de abril, o Hotel Altis, onde de
resto a maioria dos correspondentes estrangei-
ros e vários embaixadores na altura se instala-
ram. Com um chá fumegante à sua frente, o jor-nalista polaco lembra, por exemplo, que se
apressou a telefonar ao amigo e corresponden-
te do "Allgemeine Zeitung", Walter Haubrich, e
a Volkhart Muller, do "Der Spiegel", tal como ele
radicados em Madrid. Que se puseram os três a
caminho, mas, chegados à fronteira, os alemães
cruzaram-na sem problemas enquanto um
agente da PIDE o impediu de continuar, sob
o vaticínio: "Você é do outro lado da Cortina
de Ferro, Jamais vai entrar em Portugal."
Que esperou unias horas, no carro, até apare-cer um elemento dos Comandos que lhe pas-sou um visto à mão, ditado pelo próprio Mi-roslaw. Chegou a Lisboa na manhã do dia 26
e foi, durante semanas, o único jornalista do
bloco de Leste a cobrir a revolução,
Porém, o seu regresso nada deve a tais
memórias. O que o fez voar de Varsóvia foi a
sua amizade de décadas com o jornalista e
escritor Ryszard Kapuscinski, cujo 80° aniver-
sário está a ser evocado numa exposição na
Sociedade Portuguesa de Autores. É dele queIkonowicz veio falar na inauguração, ainda
que a cidade também se tenha intrometido
na história de ambos. Era novembro de 75, e
Ikonowicz, que estava em Lisboa, teve de re-
gressar subitamente à capital espanhola paiadocumentar a morte de Franco. Foi substituí-
do pelo amigo, recém-chegado de Luanda.
Ao longo de duas semanas. Kapuscinski escre-
veu sobre a realidade portuguesa do pós-25de abril. "Ele vinha de Angola, magro, esfo-
meado, muito debilitado. E ficou maravilhado
com o que cá encontrou. Tudo o que tinha a
ver com a Revolução dos Cravos intrigava-o.Dizia: Tantas guerras e aqui fazem uma revo-
lução sem derramarem uma gota de sangue.'
Esteve hospedado no meu pequeno escritó-
rio de Lisboa, de 30 metros quadrados, na
Rua Columbano Bordalo Pinheiro", recorda.
COM O JORNALISMO NO SANGUE
Kapuscinski retornará várias vezes à conver-
sa. Circularmente, ciclicamente, as vidas de
ambos os repórteres estiveram ligadas. E se-
rá difícil que Ikonowicz se abstraia de reme-ter cada fase do seu percurso para aquele
que considera o seu "mestre", o fundador de
uma escola em vias de extinção, à qual se
orgulha de pertencer. Este homem alto, de
olhos azuis e 81 anos, ainda está no ativo.
Duas vezes por semana marca presença na
PAP, tal como começou a fazê-lo a tempointeiro há seis décadas, por puro gosto, pornão se imaginar a fazer outra coisa. Era umestudante de 16 anos quando mandou os pri-meiros artigos a lornais, sem revelar a idade.
"Passados uns meses fui apresentar-me e fi-
caram surpreendidos por encontrar um ra-
paz." Pouco depois, em 1952, conheceria Ka-
puscinski na Universidade de Varsóvia, on-
de ambos se formaram em História. Mas os
dois eram outsiders na capital polaca.Miroslaw Ikonowicz nasceu em Vilnius.
na atual Lituânia. Ali estava em 1939, no eclo-
dir da II Guerra Mundial. A chegada do Exér-
cito soviético empurrou a família para a Poló-
nia, para a região da Pomerânia, pois "os rus-
sos enviavam os intelectuais para os gulcig".
Por sua parte, Ryszard Kapuscinski nasceu
em Pinsk, hoje na Bielorrússia, de pais profes-
sores. "Ele chegou à Polónia em condições
muito mais dramáticas do que eu. Porém,
ambos crescemos num ambiente multicultu-
ral, entre pessoas humildes. Falava-se bielor-
russo, ídiche, polaco, muitas línguas à mistu-
ra. Sofremos a guerra e o êxodo", diz Ikono-
wicz. A Varsóvia do pós-guerra deixou-lhe a
imagem de uma reconstrução penosa e de-
morada, mas entusiasta: "O que recordo da
Varsóvia daquele tempo? Escombros. Havia
tudo por fazer. As minhas primeiras reporta-
gens foram sobre a reconstrução do gueto.Tudo se fazia sem meios, de forma primitiva,
as pessoas carregando tijolos nas costas. Os
que queriam voltar à cidade não tinham on-
de viver, só barracas sobre ruínas."
A CENSURA COMO DESAFIO
Haveria de passar algum tempo antes de os
dois jornalistas se tornarem colegas na Agên-cia Polaca Ikonowicz para lá entrou em 53,
enquanto Kapuscinski trabalhava no "Sztan-
dar Mlodych", ou "Bandeira dos Jovens".
Mais uma vez, Ikonowicz detém-se na bio-
grafia do amigo: "Numa oportunidade, foi en-
viado a Nowa Huta, um complexo siderúrgi-co perto de Cracóvia que era uma das gran-des bandeiras do socialismo polaco, mas, na
realidade, as condições dos operários eramhorríveis e faltavam produtos básicos. Ele tor-
nou-se voluntário, trabalhou ao lado daque-les operários e ficou a conhecer muito bem a
sua situação. E escreveu uma reportagem,
que intitulou 'Isto Também É Nowa Huta 1
. O
escândalo foi tal que teve de se esconder, pa-ra não ser detido. Porém, as autoridades con
cluíram que ele tinha razão e condecoraram
-no." A história não acabou por aqui, pois
proibiram Kapuscinski de assinar os seus ar-
tigos. Foi desta forma que ingressou na PAP,
onde tal pormenor era irrelevante.
Também Miroslaw Ikonowicz teve um
começo de carreira marcado pela incompati-bilidade entre a verdade e a censura. Em
1956, a sua primeira saída como correspon-dente — a Sofia, na Bulgária, onde era supos-to permanecer quatro anos — mostrou-lhe
até que ponto "a Polónia era um lugar sui ge-
neris no campo do socialismo real". Enquantoo seu país vivia uma espécie de "primavera",
na capital da Bulgária tinham expulso da uni-
versidade 400 estudantes simpatizantes de
Gomulka — líder do Partido Comunista e de-
fensor da democratização. Ikonowicz descre-
veu estes acontecimentos, e o seu texto, "O
Tardio Estalinismo Búlgaro", foi publicado
em vários jornais, incluindo o "Le Monde". As
consequências não se fizeram esperar: "Man-
daram-me embora formalmente, como perso-
na non grata, dois anos antes do previsto.""Nos estados autoritários, a censura
proíbe-nos de contar a realidade, mas consti-
tui um desafio. Se há esse muro, há que salta -
-10. Escrever nas entrelinhas era um despor-
to nacional, e a censura ou não percebia ou
percebia e deixava passar", explica Miroslaw
Ikonowicz. Muitas vezes não deixava Numa
delas, o seu longo braço foi buscá-lo a Cuba,
mais exatamente à casa de uma das figuras
da revolução e colaborador direto do Che
Guevara. Correspondente em Havana entre
1963 e 1969, Miroslaw tornara-se amigo des-
te homem, Enrique Oltusky, de origem pola-
ca, e as famílias de ambos costumavam parti-
lhar fins de semana. "Uma noite desci por-
que tinha sede e encontrei o meu amigo
com o frigorifico aberto, a comer desenfrea-
damente. Ao ver-me, sentiu-se envergonha-
do, mas explicou: 'Tenho fome porque na
cantina do Ministério serviram só meia do-
se, por faltarem os produtos.' Quando, nos
anos 70, relatei isto no meu livro 'A Ilha da
Esperança', ligaram-me da censura polaca a
questionar: 'Na Polónia também temos difi-
culdades de aprovisionamento. Você insi-
nua que o companheiro Oltusky tinha de ter
o frigorifico vazio?' O meu livro saiu, mas
sem essa parte", refere Ikonowicz.
Em Cuba, acumulou um acervo de memó-
rias que envolvem nomes como o de Ernesto
Guevara: "Estava a entrevistá-lo e um empre-
gado interrompeu-nos: 'Há três dias que não
nos entregam o leite.' O Ché telefonou à mu-
lher e disse-lhe: 'A partir de hoje não aceites o
leite, porque ninguém tem na cidade.'"
VIVER A GUERRA PARA CONTÁ-LA
África também esteve no seu horizonte. Teste-
munho da descolonização portuguesa, assis-
tiu à independência da Guiné-Bissau — em 74,
foi portador do último visto emitido pelas au-
toridades portuguesas — e de Moçambique.Esteve em Angola em várias ocasiões, mas a
primeira vez que pisou Luanda a UNITA não o
queria deixar sair do aeroporto. Só com a aju-da de colegas é que conseguiu entrar em Luan-
da, e o que viu foi uma cidade às escuras, ape-nas clareada pelos disparos das balas nas peri-ferias. "Naquela época os soldados do MPLA
diziam camarada' e os da UNITA 'irmão'.
Quando uma patrulha te parava na rua e te
perguntava quem és, se dissesses 'sou camara-
da' e fosse da UNITA matava-te. Não sei a ra-
zão, mas sempre respondi certo", recorda Mi-
roslaw. Mais tarde, no livro "Mais Um Dia de
Vida", o seu amigo Kapuscinski viria a escre-
ver sobre a "cidade de madeira", sobre as enor-
mes caixas que continham a vida e os haveres
dos portugueses que retornavam, ou sobre o
êxodo dos cães de Luanda. "Ryszard conse-
guia fazer telexes — por natureza textos conci-
sos, breves e precisos — que eram uma obra-
-prima. Por exemplo, num que enviou sobre a
independência de Angola, em duas frases dis-
se tudo: ele estava na receção que se organi-
zou no palácio presidencial, havia assado, ca-
viar, mas os convidados só queriam água, pois
os canhões tinham destruído os reservatórios.
Um detalhe faz uma reportagem."
Em 2008, aos 77 anos, Miroslaw Ikono-
wicz cobriu a guerra russo-georgiana, a últi-
ma da sua carreira. "Foi uma guerra curta,
de seis dias, na qual morreram quatro Jorna-
listas e 12 ficaram feridos ". nota. Ele foi até
onde o deixaram — até onde se encontrava
o Exército russo —,
correndo risco de vida.
Ao chegai' ao Hotel Marriot, em Tbilisi, vin-
do da frente de batalha, não quis acreditar
no que os seus olhos viam: "Havia 120 jorna-listas a tomar café. cerveja e aperitivos, senta-
dos com os seus respetivos computadores,
que assistiam ao conflito pela internet e as-
sim documentavam os acontecimentos." Os
únicos testemunhos oculares dessa guerra,
observa, eram os operadores de câmara, ra-
zão pela qual "as televisões mostravam su-
cessões de imagens desprovidas de qualquer
background, sem uma explicação sobre o que
se passou ou como é que se passou".
Para Miroslaw — que não recusa o pro-
gresso técnico mas não se revê no "jornalista
que vive tudo através do computador" —,
"de um lado está a palha quotidiana que in-
forma pouco ou que não vai ao fundo, que
não ajuda a perceber o mundo", do outro "os
títulos importantes que escapam a esta ten-
dência, que são elitistas mas têm leitores,
porque são lidos pelas pessoas que lêem". A
balança pende claramente para estes últi-
mos: "Creio que os desafios do mundo de ho-
je e os vários movimentos de indignação,
que são constituídos por pessoas que não en-
contram o seu lugar na atual situação econó-
mica e social, vão criar um mercado de leito-
res que querem entender o que se passa.
Quem não escrever para eles, irá perdê-los."
A tarde já vai longa. Não é primaveril,como as que Ikonowicz se lembra de ter ex-
perienciado em Lisboa há quase quatro déca-
das, mas outonal e agreste, tempestuosa. To-
davia, sente-se comovido por pisar de novo
este chão: foi aqui que teve a impressão de
"estar a escrever uma pequeníssima parte da
crónica do mundo". Não era a primeira vez,
nem seria a última. Cada um dos seus livros
— "Espanha sem Castanholas", sobre o ester-
tor do franquismo, "A Ilha da Esperança", so-
bre Cuba, "Angola Express", sobre a guerra
na Guiné-Bissau e em Angola, e "Homem Ka-
puscinski", sobre o seu mestre e amigo, entre
outros — documenta um instante decisivo,
um desses minutos cósmicos que mudam pa-
ra sempre uma realidade. Afinal, hoje como
ontem, a velha máxima mantém-se: "Um
bom jornalista sabe estar no momentu certo
e no lugar onde se faz a história", O
UeiderfarbSexpresso. impresa.pt