FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICADepartamento de Endemias “Samuel Pessoa”
Grupo de Pesquisa “Educação, Saúde e Cidadania”
PROCESSOS EDUCATIVOS EM TRABALHOS DESENVOLVIDOSENTRE COMUNIDADES: PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO ENTRE
SABERES E SUJEITOS
Profa. Dra. Maria Waldenez de OliveiraUniversidade Federal de São Carlos
Departamento de Metodologia de EnsinoGrupo de Pesquisa “Práticas Sociais e
Processos Educativos”
Pesquisa realizada como parte dasatividades de pós-doutorado efetuadojunto a Fundação Oswaldo Cruz –FIOCRUZ, em colaboração com osProfessores Dr. Victor Vicente Valla e Dr.Eduardo Navarro Stotz, lideres do grupode pesquisa “Educação, saúde ecidadania”.
Rio de Janeiro, março de 2003
a
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ----------------------------------------------------------------------------- i
RESUMO---------------------------------------------------------------------------------------------- iii
À GUISA DE APRESENTAÇÃO ---------------------------------------------------------------- 1
A realização deste estudo no contexto de um pós-doutorado ------------------------------ 2
A BUSCA DO DIÁLOGO NOS TRABALHOS EDUCATIVOS ENTRE
COMUNIDADES ------------------------------------------------------------------------------------ 5
A CAMINHADA ------------------------------------------------------------------------------------ 13
Começando a caminhada ------------------------------------------------------------------------ 13
Chegando ao Rio,... --------------------------------------------------------------------------- 13
...e ao Grupo de Pesquisa-------------------------------------------------------------------- 13
O caminhar metodológico ---------------------------------------------------------------------- 14
Conversas e entrevistas ---------------------------------------------------------------------- 17
Participação em reuniões ------------------------------------------------------------------- 21
Exame de documentos ------------------------------------------------------------------------ 22
Avaliação do Relatório Final pelas pessoas entrevistadas e coordenadores -------- 23
APROXIMAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO ------------------------------------------------ 25
Aproximando-se ---------------------------------------------------------------------------------- 25
...ao ELOS...------------------------------------------------------------------------------------ 25
...ao CEPEL... --------------------------------------------------------------------------------- 26
...à Leopoldina : Complexo da Maré/Vila do João... ------------------------------------ 27
... à Leopoldina: Penha/Sementinha-------------------------------------------------------- 28
Os grupos com os quais conversei e convivi ------------------------------------------------- 32
Leopoldina: comunidade-favela-bairro --------------------------------------------------- 33
Favela, bairro, favela-bairro-------------------------------------------------------------- 33
Comunidade-------------------------------------------------------------------------------- 37
ELOS- Núcleo de Estudos Locais em Saúde , da FIOCRUZ --------------------------- 38
CEPEL – Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina ------------------------------ 45
b
Sementinha – Serviços Comunitários ------------------------------------------------------ 53
As pessoas que foram entrevistadas em cada grupo ---------------------------------------- 63
José Wellington de Araujo (ELOS) -------------------------------------------------------- 64
Carla Moura Pereira Lima (CEPEL) ----------------------------------------------------- 69
Creusa da Costa Verissimo (Sementinha) ------------------------------------------------ 73
PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO ENTRE SABERES E SUJEITOS ----------------------- 79
Buscando o diálogo ------------------------------------------------------------------------------ 79
O outro com o qual busco dialogar -------------------------------------------------------- 79
Acesso à escolaridade, saúde, nutrição, bens de consumo ----------------------------- 80
Dos lugares onde se vive, das vivências e das sobrevivências ------------------------ 82
O tempo e o destino --------------------------------------------------------------------------- 85
As igualdades nas diferenças --------------------------------------------------------------- 86
Caminhos cruzados -------------------------------------------------------------------------- 87
“Estou junto, estou me igualando”--------------------------------------------------------- 88
O que nos move ao diálogo --------------------------------------------------------------------- 89
O diálogo com o outro grupo --------------------------------------------------------------- 89
Do diálogo no meu grupo ------------------------------------------------------------------- 92
O que nos põe em diálogo ----------------------------------------------------------------------- 94
O convívio ------------------------------------------------------------------------------------- 94
Simpatia, confiança, humildade, sensibilidade, respeito - moedas para o
convívio ---------------------------------------------------------------------------------------- 95
O tempo do convívio ------------------------------------------------------------------------- 99
Compromisso ---------------------------------------------------------------------------------- 100
Fazendo o diálogo acontecer: metodologias ------------------------------------------------- 102
A participação: o que é , o que se ganha com ela e o que se perde sem ela --------- 103
Olhando nos olhos - o convívio metodológico ------------------------------------------- 106
Cuidar e cuidar-se --------------------------------------------------------------------------- 110
Retorno – ponto de partida e de chegada, compromisso ético e social de trabalhos
comunitários ---------------------------------------------------------------------------------- 113
Aprendizados a se destacar---------------------------------------------------------------------- 118
Com a palavra, Wellington ----------------------------------------------------------------- 118
Com a palavra, Dna Creusa ---------------------------------------------------------------- 118
c
EXPLICITANDO A ABERTURA DA OBRA: ALGUMAS PALAVRAS
INICIAIS --------------------------------------------------------------------------------------------- 120
FONTES BIBLIOGRÁFICAS -------------------------------------------------------------------- 125
ANEXO 1 – ROTEIROS DE ENTREVISTA --------------------------------------------------- 127
ANEXO 2 – BOLETIM “OBSERVATÓRIO DE SAÚDE” ---------------------------------- 136
ANEXO 3 – JORNAL “SE LIGA NO SINAL” ------------------------------------------------ 141
i
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal de São Carlos e aos colegas do Departamento de
Metodologia de Ensino da UFSCar por terem garantido as condições para que eu
pudesse me lançar nesta experiência de pós-doutorado.
Às amigas do Grupo de Pesquisa “Práticas Sociais e Processos Educativos”
pelo apoio e por terem me substituído em inúmeros compromissos durante meu
afastamento da UFSCar.
À FIOCRUZ, Departamento de Endemias, por ter me recebido
institucionalmente.
Aos professores doutores Victor Vicente Valla e Eduardo Navarro Stotz por
terem aceito compartilhar deste momento de reflexões, construção e descontrução de
saberes, por suas indicações e orientações.
Aos amigos e amigas do ELOS, por cada carinho, pelas conversas em torno do
café, do almoço e dos deliciosos e irresistíveis doces de final de tarde. Pela convivência
amorosa, pelo compartilhamento de informações, espaço, equipamentos, biblioteca e,
principalmente, idéias e por terem animadamente aceito participarem desta minha
aventura.
Aos membros do CEPEL, por terem acreditado na relevância desta pesquisa
para o seu trabalho, por todo material a mim disponibilizado e pelos debates e troca de
idéias.
Às integrantes do Sementinha pela recepção calorosa, pela confiança, pelo
compartilhamento dos momentos coletivos de confraternização e pelas consultas sobre
ervas medicinais.
A Dna Creuza, Carla e Wellington, pela paciência com meu roteiro, pelo
respeito às minhas questões e pela confiança neste trabalho.
Um agradecimento particular à Dna Creuza, pela companhia na incursão pela
Penha e Grotão e ao Eduardo, pelo carinho em mostrar-me um pouco do Rio que você
vê e vive(ncia).
À minha comadre Marília, pelo amor, atenção e cuidado com que me recebeu
em sua casa, pelo ombro/ouvido, pelas longas conversas, pelo apoio imensurável, pelos
conselhos providenciais, pelas lindas e profundas excursões pelo Rio, inclusive e
principalmente na deliciosa Vila Isabel e no vizinho terreno de samba da Unidos de Vila
Isabel, cujo samba enredo, vários sábados à noite, me serviu de canção de ninar.
ii
À querida Fanca, companheira diária de casa, pelo tempero mineiro, pelos
passeios de moto, pelos conselhos e avisos, pela ajuda com as agruras do dia-a-dia desta
migrante, pelo carinho de irmã.
À Estrela, a cujo olhar eu me rendia sem hesitação, pela recepção inigualável,
pela alegria indisfarçada ao me ver cada uma das inúmeras vezes em que eu retornava à
casa, pelas brincadeiras, pela paciência com meus abraços carentes e por me levar para
passear.
Ao Rio de Janeiro e aos cariocas, pela solidariedade. Tudo o mais é dela
decorrência.
À minha família...história que se repete em cada momento que meu
desassossego me lança em outros territórios: pelas orações e apoio.
À minha filha Érica, que do alto de seus 8 anos olhou com coragem nosso
afastamento, confiou-me suas inseguranças e apesar das incertezas e do
desentendimento do significado deste pós-doutorado, apoiou-me com carinho e
profundo amor.
iii
RESUMO
Este estudo buscou compreender os processos educativos presentes nas
relações que se estabelecem entre comunidades que têm processos históricos diferentes
de construção de saberes e práticas ao desenvolverem trabalhos conjuntos de
sobrevivência, de estratégias de vida e de transformação social. Foi realizado junto ao
ELOS- Núcleo de Estudos Locais em Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública
(ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), à Organização Não-Governamental
CEPEL - Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina e à Organização Não-
Governamental Sementinha – Serviços comunitários, entre os meses de outubro de 2002
e fevereiro de 2003. Caracterizou-se por um estudo de caráter exploratório, onde a
pesquisadora inseriu-se no campo de pesquisa realizando observações e conversas que
foram complementadas por entrevistas semi-estruturadas com membros do ELOS, da
ONG CEPEL e da ONG-Sementinha. Ancorou-se no referencial da Educação Popular.
A análise dos dados foi feita por meio de descrição compreensiva, utilizando de
recursos da análise de discurso e outros que permitiram apreender a diversidade de
culturas e de sentidos de vida presentes nesses processos educativos. Inicia-se este
relatório situando-se a investigação no contexto do pós-doutorado e apresentando-se o
referencial teórico e os caminhos metodológicos. Descreve-se, à seguir, o contexto onde
foi realizada a coleta de dados: Comunidade/ favela/ bairro da Leopoldina, ELOS,
CEPEL e Sementinha. Segue-se a apresentação de cada um dos entrevistados em seus
contextos pessoal, profissional e dentro da instituição/entidade apontando-se processos
educativos num âmbito mais particular a cada um deles. No capítulo seguinte
“Perspectivas de diálogo entre saberes e sujeitos”, a partir das experiências e reflexões
dos entrevistados sobre seu trabalho com o outro, examina-se processos educativos
presentes no âmbito dos trabalhos entre comunidades. Neste capítulo organizou-se os
dados tendo-se como eixo o diálogo entre saberes e sujeitos; descreve-se
especificamente: a busca do diálogo, o que move as pessoas ao diálogo, o que põe as
pessoas em diálogo e metodologias para que o diálogo aconteça. Ao final, aponta-se o
que se pode apreender nesta investigação, de modo geral, em relação aos processos
educativos que se estabelecem em trabalhos desenvolvidos entre comunidades
1
À GUISA DE APRESENTAÇÃO
Este estudo buscou compreender os processos educativos presentes nas
relações que se estabelecem entre comunidades que têm processos históricos diferentes
de construção de saberes e práticas ao desenvolverem trabalhos conjuntos de
sobrevivência, de estratégias de vida e de transformação social. Teve como finalidade
ampliar as compreensões a respeito do objeto de estudo, bem como vislumbrar
possibilidades teóricas para a investigação e compreensão de processos educativos
presentes em práticas sociais. Pretende contribuir na investigação e elaboração de
educação comunitária para saúde e transformação social e promoção dos direitos
humanos . O estudo ancora-se no referencial da Educação Popular.
Foi realizado junto ao ELOS- Núcleo de Estudos Locais em Saúde, da Escola
Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), à
Organização Não-Governamental CEPEL - Centro de Estudos e Pesquisas da
Leopoldina e à Organização Não-Governamental Sementinha – Serviços comunitários,
entre os meses de outubro de 2002 e fevereiro de 20031.
Metodologicamente, caracteriza-se por um estudo de caráter exploratório, onde
a pesquisadora inseriu-se no campo de pesquisa realizando observações e conversas que
foram complementadas por entrevistas semi-estruturadas com membros do ELOS, da
ONG CEPEL e da ONG-Sementinha. A análise dos dados foi feita por meio de
descrição compreensiva, utilizando de recursos da análise de discurso e outros que
permitiram apreender a diversidade de culturas e de sentidos de vida presentes nesses
processos educativos.
Um comentário antes que se inicie a leitura deste Relatório. Num relatório de
investigação, como este - páginas escritas sobre uma experiência, torna-se impossível
apreender tudo do que foi convivido, da experiência e do saber da experiência. Se perde
algo das vozes, dos olhares, dos gestos que, como diz Benjamim “sustentam de cem
maneiras o fluxo do que é dito”( Benjamim, 1993 p. 221). Apreende-se o que é dito,
sem contudo apreender-se a coordenação da alma, do olhar e da mão presentes nas
narrativas. Ao ler este Relatório o leitor está distante de mim. Na escrita, o
conhecimento distancia-se de quem o produz e se coloca a questão da verdade, é o que
nos lembra Souza e Gamba Jr, pois os sentidos não serão construídos no nosso diálogo
(Souza e Gamba Jr, 2003). Destes signos, o leitor irá extrair sentidos, sentidos que não
1 Sobre o ELOS, CEPEL e Sementinha se realizará uma descrição detalhada neste Relatório a partir dapágina 32.
2
são mais meus, mas, do leitor, mesmo que ainda sentidos humanos. Este relatório fala
de coisas que são vivas, no entanto a escrita permanecerá a mesma, impassível diante
das perguntas que o leitor venha a lhe fazer. De minha parte, conto ao leitor uma
história, desejosa de que ela enseje uma nova história. Porém, para que construamos
sentidos compartilhados há um segundo movimento necessário, o da leitura enquanto o
desafio de buscar neste texto a vida nessas histórias e a história de toda uma vida, que
está além da própria experiência do leitor; re-conhecer e reconhecer-se mesmo estando
diante de coisas que lhe são desconhecidas. Encontrar os ecos das vozes, imprimir aqui
sua marca , realizar essa magia no tempo que lhe é próprio. Tornar a leitura um ato
crítico e criativo, momento de humanização.
A realização deste estudo no contexto de um pós-doutorado
Desde minha graduação em Enfermagem (1977-1980), as questões educativas,
particularmente às voltadas à comunidades, são as que mais me atraem. Nessa direção,
optei pela Licenciatura, juntamente com o bacharelado, como intuito de aprofundar
meus conhecimentos sobre educação. No Mestrado em Educação Especial (1982-1986),
a Metodologia de Ensino foi o foco de minha dissertação. Buscar e compreender o
conhecimento do outro já aí despontava como um embrião do que seria, futuramente,
uma postura investigativa constante em minha carreira de pesquisadora. No Doutorado
em Educação (1990-1995) trabalhei junto à alunos/as e professoras de uma escola
municipal de Educação Infantil. O olhar, a palavra, o conhecimento do outro
mostravam-se mais uma vez o centro da linha metodológica.
Na docência, orientações e pesquisas na UFSCar, onde me encontro desde
1986, debrucei-me nos estudos sobre educação, processos educativos em práticas
sociais e a formação de educadores da comunidade. Tais experiências e estudos são uma
das bases do Grupo de Pesquisa “Práticas Sociais e Processos Educativos” e ancoram o
Programa de Extensão “Educação e Saúde” da UFSCar, por mim coordenado. A partir
de 1998, dois projetos marcaram especialmente a opção por “trabalhar com” (o outro e
seu conhecimento) e pela abordagem multidisciplinar das questões afetas à saúde. Num
deles, estamos implementando a formação de jovens para atuarem junto à outros jovens,
como agentes educacionais nas questões de direitos e saúde reprodutiva2. No outro, com
2 Por este trabalho, fomos laureadas, em 2000 com o prêmio “Presente do Futuro – Práticas Inovadoraspela Cidadania Juvenil Feminina”. Este concurso nacional, promovido pela ONG CEMINA (Rio deJaneiro), BID e Fundação Heinrich Boell, teve 15 premiados entre 300 candidatos.
3
profissionais do sexo, buscamos compreender, historicizar e contextualizar a realidade
do trabalho sexual.
O Grupo de pesquisa da UFSCar “Práticas sociais e processos educativos” é
coordenado pela Profa. Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e por mim, ambas do
Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Educação e Ciências Humanas
da UFSCar. Este grupo realiza pesquisas interdisciplinares3, congregando pesquisadores
em nível nacional e internacional. Tem desenvolvido pesquisas nas áreas da saúde, das
relações interétnicas, das relações de gênero e de direitos humanos, abrangendo
processos de ensino e de aprendizagem na formação de agentes sociais em comunidades
assim como, de professores. Na área de saúde tem enfocado, especialmente, a educação
comunitária em saúde, direitos humanos e reprodutivos, abordando processos de
formação de agentes educacionais comunitários e processos educativos para o
fortalecimento de comunidades.
Desde 2000, participo dos debates sobre educação popular e saúde da
REDEPOP: Alternativas de Educação e Saúde. A Redpopsaúde é uma rede virtual e
uma das ferramentas de um movimento mais amplo e mais antigo que é a Articulação
Nacional de Educação Popular em Saúde. Dessa rede participam Prof. Dr. Eduardo
Navarro Stotz e Prof. Dr. Victor Vicente Valla, da FIOCRUZ, cujos escritos já me eram
familiares antes mesmo de minha participação na Rede. Em agosto de 2001 participei,
em Brasília, do “II Seminário sobre Educação no Contexto da Promoção da Saúde:
sujeitos, espaços e abordagens” e do “II Encontro Nacional de Educação Popular e
Saúde”, promovidos pelo Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade de Brasília, pelo GT Educação Popular e Saúde da ABRASCO
(Associação Brasileira de Saúde Coletiva) e pela Rede de Educação Popular e Saúde.
Nessa ocasião, pude aprofundar as conversas com os professores Eduardo e Valla e
desde então temos trocado experiências e informações. Nessas conversas delineou-se a
idéia de realizarmos uma convivência mais intensa, idéia esta concretizada no meu
projeto de pós-doutorado.
Este estudo foi realizado em colaboração com os professores Eduardo e Valla.
O Prof Dr Eduardo Navarro Stotz é professor titular da FIOCRUZ, coordenador do
ELOS e membro da ONG CEPEL. O Prof. Dr. Victor Vicente Valla é professor titular
da ENSP / FIOCRUZ e professor adjunto da Universidade Federal Fluminense, assessor
do ELOS e membro da ONG CEPEL. Os professores são lideres do grupo de pesquisa
3 Conta com pesquisadores nas áreas de Pedagogia, Letras, Enfermagem, Ciências Sociais, Psicologia,Terapia Ocupacional, Artes, Estatística, Ciências da Informação e Ciências da Computação.
4
“Educação, saúde e cidadania”, que tem como objetivo examinar e compreender as
iniciativas das classes subalternas, institucionalizadas ou não que, na saúde, procuraram
responder à crise da provisão estatal de bens e serviços públicos em situações de ajuste
estrutural da economia. Participam do Grupo de Trabalho de Educação Popular da
ANPED e possuem intenso trabalho de pesquisa, consultoria, assessoria em educação e
saúde. Publicaram vários livros e artigos nessa área.
Os trabalhos e materiais do grupo do Rio de Janeiro têm sido utilizados em
nosso grupo de pesquisa, seja nos projetos que coordeno, seja nos mais amplos, do
grupo. As idéias e experiências do grupo da FIOCRUZ também têm sido objeto de
debate nas disciplinas de graduação e pós – graduação de responsabilidade das
professoras do grupo de pesquisa da UFSCar. O pós-doutorado se configurou na
possibilidade de uma aproximação e uma convivência mais detida junto aos trabalhos
que esse grupo realiza4. O diálogo fecundo que pude estabelecer nesta oportunidade de
pós-doutorado com as/os integrantes dos grupos da FIOCRUZ, do ELOS, das ONGs
CEPEL e Sementinha ampliou minha visão das intersecções entre educação popular e
saúde bem como do papel da saúde pública e coletiva e das políticas de saúde. Retorno
para São Carlos certa de que essa experiência propiciou-me uma melhor compreensão
dos processos educativos em trabalhos comunitários e auxiliará na elaboração de
estratégias locais de trabalhos para garantia do atendimento aos direitos humanos e à
saúde das comunidades com as quais nosso Grupo de Pesquisa da UFSCar trabalha.
Espera-se que contribua também com o grupo de pesquisa anfitrião, com o
ELOS, com a ONG CEPEL e com a ONG Sementinha, ao propiciar uma leitura de um
outro ponto de vista, outros olhares e significados e outras possibilidades de
compreensão sobre como se dá a educação no contexto dos direitos humanos e à saúde
em processos dialógicos de construção de sujeitos. Espera-se que este estudo se
constitua em campo fértil para reflexões, pronúncias do mundo e sua modificação.
4 Informações sobre o outras atividades desenvolvidas neste pós-doutorado, além deste estudo, podem serencontradas no Relatório de Atividades do Pós-Doutorado.
5
A BUSCA DO DIÁLOGO NOS TRABALHOS EDUCATIVOS ENTRE
COMUNIDADES.
O início do título desta sessão foi extraído de um artigo de Carlos Rodrigues
Brandão em que o autor trata da educação popular na área de saúde (Brandão, 2001). A
busca do diálogo, elemento tão caro à educação popular, é descrita pelo autor como
parte dessa aventura da educação, sendo, este, não uma simples metodologia de
trabalho mas “...o fim e o sentido de uma educação conscientizadora” (p.25). Um busca,
diz Brandão, “difícil e inalcançável” (p.25). Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do
Oprimido (1987), nos descreve e explica sobre a educação libertadora e o diálogo. As
colocações à seguir, sobre diálogo e conscientização, inspiraram-se nos escritos de
Freire presentes nesse livro e no livro Conscientização (1980).
O diálogo, e sua essência, ou como diz Freire, o diálogo mesmo – a palavra, só
é verdadeira enquanto práxis – reflexão-ação. Essa unidade dialética constitui, de
maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os seres
humanos. A ação de que se fala é, portanto, de transformação. A transformação da
realidade opressora, em que aos seres humanos é negada sua essência, sua historicidade,
seu poder criativo. Opressão que não suporta que seres humanos perguntem “ por que?”;
que imobiliza o homem que, consciente de sua incompletude urge estar em movimento.
Nessa imobilização, tem negada sua essência e, por isso, sofre. Ao se aperceber desse
sofrimento, inicia um movimento de rebeldia, que é sufocado com mais dominação e
violência para o reestabelecimento da ordem e da paz. Opressão que lança mão de uma
educação bancária para mudar a mentalidade dos oprimidos e não a situação que os
oprime, que anula o poder de criação, que estimula a ingenuidade e, não, a criticidade,
que aliena a ignorância, que nega a historicidade. Um processo de desumanização
gerando um ser-menos e distorcendo o ser-mais. Aos oprimidos, urge o direito de ser, e
aos opressores o de “ter”, inclusive o domínio do conhecimento.
O diálogo é humanismo, é a fé no ser humano e no seu poder de transformação
do ser humano, um ser inconcluso, em movimento de busca do ser-mais, em uma
realidade em transformação. Sem essa fé no ser humano, na sua condição humana e
humanizante, o diálogo se ressentirá, e será manipulação. No diálogo entre as visões de
mundo – um processo, portanto, conjunto- há a construção da consciência crítica.
Consciência de que existir humanamente é pronunciar o mundo e modificá-lo. Na
transformação da realidade objetiva os homens se tornam históricos. A consciência de
que se fala é, portanto, consciência histórica, implicando que os seres humanos
6
assumam o “ papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo” (Freire, 1980, p. 26). O
diálogo se dá no encontro entre seres humanos que pronunciam o mundo e o re-
pronunciam após problematizá-lo, um ato de criação e recriação. O diálogo surge do
mundo, pois a conscientização não está baseada sobre a consciência de um lado e o
mundo de outro. Mas, sim, o mundo pronunciado, a palavra dita por todos. A palavra,
diz Freire, é um direito primordial. Proibi-la é um assalto desumanizante. Mesmo
quando a realidade é de tal modo opressora, que o diálogo – e a práxis, ação consciente
sobre a realidade- torna-se impraticável, podemos dialogar sobre a ausência do diálogo.
E como se dá essa prática dialógica? Emergindo da realidade para nela inserir-
se criticamente. Afastar-se e ao mesmo tempo tomar posse da realidade. Desmitologiza-
la. Distanciar-se para melhor ad-mirar e, assim, poder agir conscientemente sobre a
realidade objetiva. Conscientização que significa passar “...da espera espontânea de
apreensão da realidade para chegarmos à esfera crítica, na qual a realidade se dá como
objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica [...] A
conscientização é, neste sentido, um teste de realidade.” (Freire, 1980, p. 26). Não
consiste em estar frente à realidade, mas nela estar, na práxis. Compreendê-la.
Denunciá-la. Mas também, anunciar. O ato de “ denunciar a estrutura desumanizante e
de anunciar a estrutura humanizante” (Freire, 1980, p. 27). Ou como diria o filósofo
argentino Cirigliano, citado por Freire (1987): da palavra consciência da opressão, à
palavra projeto de esperança. Ampliar a compreensão, na dimensão do diálogo é
pronunciar o mundo entre sujeitos. Portanto é reconhecer que o outro também é sujeito,
tem sua história, trajetória, valores. Sujeitos em construção, pois seres humanos. A
“nova” realidade, objeto de reflexão crítica, deve tornar-se como objeto de uma nova
reflexão crítica. “Considerar a nova realidade como algo que não possa ser tocado
representa uma atitude tão ingênua como afirmar que a antiga realidade é intocável”
(Freire, 1980, p. 27). Assim, a conscientização, como atitude crítica dos seres humanos
na história, não terminará jamais. Daí entendemos o que Brandão quis dizer com
“ inalcançável”, uma busca que não se encerra, mesmo quando o diálogo já acontece.
Diante desse universo em contradição, seres humanos tomam posições
contraditórias: alguns trabalham na manutenção das estruturas desumanizantes, outros
em sua mudança. Nesta segunda direção, vêm trabalhando as pessoas envolvidas com a
Educação Popular. Nos anos 60, pessoas que pensavam a cultura popular como um
momento de processo político, em sua dimensão objetiva e subjetiva, entre elas, Paulo
Freire, compartilhavam o que Brandão (2001) chama de “supostos”. O autor nos
apresenta dois deles. O primeiro, que a cultura se constrói na história e é obra humana
7
resultante de interações mediatizadas entre trabalho e a comunicação de consciências.
Outro suposto, complementar à esse, é que “...em sociedades desiguais, regidas por
interesses e conflitos de/entre classes sociais, culturas humanas são construções de
práticas da vida, de regras e códigos de relações e de sistemas de sentidos que obedecem
a tais interesses e procuram tornar ocultos ou desvelam as origens sociais das
desigualdades e as razões ideológicas e políticas dos conflitos” (p.22). Nesse sentido, a
cultura alienada se referia a realização simbólica dessa relação desigual, e a uma das
classes, a dos oprimidos. A educação popular, nessa época ainda não com este nome,
propunha processos intencionais e ordenados de uma educação libertadora, uma cultura
“verdadeiramente popular” (Brandão, 2001, p. 22). Para tornar efetiva essa educação
conscientizadora, entram em cena idéias, propostas e métodos de trabalho e
contribuições, tais como, a de pensadores do ensino centrado no aluno e da dinâmica de
grupos, são repensadas, recriadas, e não meramente adaptadas. São “...transformadas em
‘armas pedagógicas’ de franco valor de crescimento de posturas críticas e de motivações
a uma participação popular” (Brandão, 2001, p.25).
Brandão (2001) e Vasconcelos (2001) assinalam que, nos anos 70, esse diálogo
e essa educação foram postos em prática em outros campos ou práticas sociais para
além da educação escolar. Apesar de, nos anos 60, o Movimento de Educação de Base
ter se aproximado da medicina popular, ainda eram raras as atividades de “saúde
popular”, aqui, incorporando-se a educação popular. Após o corte brusco e violento
feito pelo golpe militar de 1964, há, nos anos 70, um renascimento dos programas de
educação popular com novos rostos e roupagens (Brandão, 2001). Nesse momento, são
os próprios movimentos sociais populares que convocam os educadores populares,
médicos, enfermeiros, assistentes sociais, artistas, cientistas sociais, entre outros. A
participação de profissionais de saúde em experiências de educação popular nos anos 70
é apontada por Vasconcelos (2001) como o marco de uma ruptura desses profissionais
com a tradição autoritária e normatizadora da Educação em Saúde, cuja “..racionalidade
interna reforça e recria, no nível das suas microrrelações, as estruturas de dominação da
sociedade” (p.13).
Na Saúde, o diálogo crítico e criativo sobre a vida e o mundo se dá por
intermédio do corpo e da saúde e as dimensões coletivas dos problemas de saúde são
incorporadas (Vasconcelos, 2001). Grande parte das experiências de educação popular e
saúde estão hoje voltadas para a “...superação do fosso cultural existente entre os
serviços de saúde, as organizações não-governamentais, o saber médico e mesmo as
entidades representativas dos movimentos sociais, de um lado e, de outro lado, a
8
dinâmica de adoecimento e de cura do mundo popular” ( Vasconcelos, 2001, p.16).
Nelas, articulam-se e confrontam-se, em amplos pactos, no movimento social pela
saúde, grupos de origens e classes distintas (Souza, 2001). Grupos que constróem
vínculos afetivos e políticos-ideológicos, que promovem “...a vivência coletiva em torno
de movimentos que levam à projetos de emancipação, libertação, autonomia,
solidariedade, justiça e eqüidade.”, voltada à construção de sujeitos sociais ( Pedrosa,
2001, p.33). Grupos compromissados não somente com a mudança de atitudes e
comportamentos, mas com a construção do sujeito-cidadão, num processo de interação
e de encontro e afirmação de sujeitos (Assis, 2001, Pedrosa, 2001). A dimensão
coletiva, criada a partir das condições de vida das pessoas, distingue claramente a
educação popular em saúde transformadora desses grupos, das propostas alternativas
individualizantes da classe média (Valla, 2001). Este ponto de partida requer uma
interpretação e uma compreensão não só das condições e experiências de vida e da ação
política da população, mas também, conjuntamente, uma clareza das representações e
visões de mundo dessa população (Valla, 1998). Trata-se de reconhecer que os saberes
são construídos diferentemente, e quando da interação entre sujeitos, estes possam ser
compartilhados, e não, hierarquizados (Carvalho, Acioli e Stotz, 2001).
Na comunidade acadêmica ou mesmo na comunidade de um bairro inserem-se
diferentes grupos sociais (Valla, 1998 e 1999). As comunidades que se encontram para
a interação e o diálogo não são homogêneas. Esses grupos podem circuncrever-se em
comunidades por uma ou mais que uma das dimensões a seguir: área geográfica (por
exemplo: bairro), ideais e objetivos comuns de luta (movimentos e ações sociais),
atividade (trabalho sexual, rapp), problemática comum (questões que impedem a saúde;
discriminações a que as pessoas são submetidas), outras condições específicas - faixa
etária, grupo de gênero, etnia. As comunidades se originam e mantêm “unidade
comum” em torno de objetivos, lutas que se desenvolvem em espaços físicos e sociais
(Oliveira e Silva, 1999). Porém, “ ‘El objetivo común de quién?’ Este interrogante
ilustra las difirentes interpretaciones posibles. La comunidad está integrada por gente
cuyos valores e intereses no necesariamente coinciden. Al contrario, a menudo hay
conflitos de intereses tanto al interior de la comunidad como fuera de ella” ( Lammerink
e Wolffers, 1994, p.13). Mas, mesmo presentes os conflitos de interesses, há valores
compartilhados.
O conhecimento, na perspectiva da educação popular, não é de domínio de
certo grupo ou classe e que , para ser acessível à população, precisa apenas ter sua
transmissão facilitada ou suas informações simplificadas (Carvalho, Acioli e Stotz,
9
2001). Conhecimento é construído no diálogo entre sujeitos, pois conhecimento aqui é
consciência da realidade e da condição humana. Se diálogo entre sujeitos, é educação
não alienada e não alienante. Mesmo algumas propostas de participação “popular”
podem partir de uma visão alienada ou no mínimo equivocada sobre onde reside o
motor das desigualdades. Valla (1998) nos alerta que o chamamento à participação de
grupos marginalizados por vezes parte do princípio de que a maioria da população
encontra-se fora da sociedade e que isso acontece devido à sua ignorância e passividade.
Para adentrar, precisariam ser animados, esclarecidos. Esses grupos, porém, não estão
fora mas, dentro da sociedade, uma sociedade desigual. Não há marginalização da
sociedade, mas há violência aos direitos desses seres humanos, dentro de uma ordem
onde certo modo de viver, pensar e ser é tido como natural, normal e vital para a
manutenção dessa mesma ordem opressora, e porisso, tornado hegemônico. A difícil
inserção das comunidades nos serviços públicos é diferente de sua participação, pois
além da sua capacidade de ação, esta participação supõe o envolvimento e o poder
dessas pessoas nas tomadas de decisões e na implementação de programa (Lammerink e
Wolffers, 1994; Valla, 1998).
Por inúmeras vezes presenciamos a culpabilização da vítima, acusando
determinados setores da população de desviar, não seguir, os procedimentos “normais”
de prevenção. Tal culpabilização é feita na tentativa de se eximir o Estado de sua
incompetência em lidar com problemas endêmicos e epidêmicos, como por exemplo, no
caso da epidemia de dengue ou cólera (Valla e Stoz, 1993). O desvio se dá pelas
condições precárias de moradia, pelo baixo salário, pelo nível de escolaridade.... Desvio
que tem caráter totalizador, que “contamina” todos os demais papéis sociais que essas
pessoas possam exercer (Gaspar, 1985). Assim, são, indiscriminadamente, considerados
e julgados como abrutalhados, sujos, desestruturados, ignorantes... A desqualificação do
saber do outro, especialmente dos “ desviantes”, promove o saber técnico (escolarizado)
como o qualificado para explicar, propor e promover as condições de saúde. A
marcação da diferença, enquanto desvio, se faz necessária para a manutenção da
hegemonia. O conceito de hegemonia aproxima-se, aqui, ao de normalização, como um
dos processos pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade (Silva, 2000).
Ser “natural” e única, confere invisibilidade à identidade hegemônica, assim “as outras”
são ao mesmo tempo a sombra que atormenta a hegemonia mas também a base sobre a
qual pode-se afirmar a normalidade, permitindo seu estabelecimento e referência a partir
da definição do anormal. Identidade aqui entendida num conceito de síntese, que
representa o processo pelo qual os indivíduos procuram, socialmente, integrar suas
10
experiências diversas, bem como seus vários status e papéis, ambos decorrentes de
regras e expectativas socialmente definidas (Silva, 2000). Neste sentido, o outro é uma
das dimensões constituintes da identidade. As identidades são relacionais, adquirem
sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos, são marcadas pela diferença5
e não são unificadas, podendo, assim, apresentar contradições em seu interior
(Woodward, 2000). A identidade e a diferença são marcadas também pela instabilidade
e incertezas (do processo de significação próprio) da linguagem , ou sendo mais
precisa, do signo 6 (Silva, 2000).
Nessas relações de poder, na assimetria entre identidade e diferença, no
hibridismo, na mobilidade, as zonas fronteiriças entre os territórios simbólicos das
identidades, como diz Silva (2000), situam-se como espaços onde a subversão da
identidade (hegemônica) torna-se possível, espaços onde não há a determinação
absoluta da hegemonia, mas seu questionamento, a partir da introdução da diferença.
Mesmo com as tensões sociais que atraem para “a” identidade, uma outra
perspectiva pode ser tomada. Não se trata de tomar a identidade hegemônica como
“modo de pensar” mas, sim, tomar as questões que elas nos suscita para partir de outras
perspectivas. No encontro de saberes e culturas, essa zona fronteiriça pode ser
estabelecida. Questionando-se a hegemonia do saber médico, por exemplo, questiona-se
os referenciais dessa hegemonia e buscam-se construir outros. Para se constituirem em
lugares de humanização, esses espaços fronteiriços devem firmar-se como espaços de
diversidade. A entrada das multiplicidades e de novas subjetividades são vistas também
por Rago (1998), como movimento que permitirá as negociações entre grupos sociais,
étnicos ou sexuais. Um processo de ressignificação, que quer ser de humanização,
interrompe, questiona e contesta a pronúncia de um mundo desumano. Nesse encontro
de saberes, de identidades, de sujeitos, abre-se a possibilidade de novas pronúncias do
mundo e sua re-criação. Não se trata de negar os saberes, ao contrário, trata-se de
encantar-se com a sua multiplicidade.
Com histórias de vida e condições materiais de existência diferentes, como
comunidades distintas poderiam compartilhar conhecimentos, estabelecer o diálogo e
transformar? Valla (1998) afirma que há a necessidade de um tipo de investigação “...a
envolver profissionais e classes populares, pois trata-se de descobrir a ‘ponte’ que
5 Mesmo que em determinados processos (por exemplo, ao se construir uma identidade “nacional”) haja oobscurecimento de algumas diferenças, outras diferenças são marcadas.6Não há, no signo, a presença intrínsica do referente, mas uma ilusão, ou um traço –não fixo- , de suapresença ( ou daquilo que ele substitui), daí que o processo de significação que o toma como base sejainstável e a linguagem seja “...uma estrutura que balança”, nas palavras de Silva (2000, p.80). Valedestacar que o signo também refere àquilo que não é, ou seja, diferencia.
11
permite chegar a construção desigual do conhecimento...” (p. 12). Pergunta o autor, o
que, por exemplo, cientistas precisam saber sobre como determinados setores da
população constróem seu conhecimento para, assim, poderem fazer uma seleção dos
conhecimentos com os quais trabalham e trabalharão com a população? “É necessário
completar uma equação capenga que, freqüentemente, inclui apenas uma das partes do
conhecimento, o mediador [...] Será que novos olhares sobre a mediação entre
profissionais e as classes populares incentivam novas buscas?” ( Valla, 1998, p.13). A
postura do profissional é essencial para esse diálogo, mais do que questões técnicas ou
de linguagem (Valla, 1998). Postura que pode ser determinada pela dificuldade em
aceitar que as classes populares, de que fala Valla, sejam sujeitos do conhecimento e
sujeitos de experiência (Bondia, 2001). Pela dificuldade em entender que o “povo”, o
outro, não é homogêneo. Ou dificuldade em perceber que a população também toma
suas inciativas, às vezes diferentes daquelas que o técnico recomendaria ou consideraria
mais adequada, mas que ela não é apática e não coloca, passivamente, sua vida, de seus
filhos, nas mãos de Deus. O apoio religioso e a sua crença na providência divina podem
ser elementos necessários, mesmo que não suficientes, para seu enfrentamento e
resistência cotidianos (Valla, 2001). Uma postura que propicie o diálogo pressupõe a
visão do outro como sujeito, a compreensão de que os saberes da população “...são
elaborados sobre experiência concreta, sobre vivências distintas daquelas do
profissional”, portanto saberes apenas diferentes mas, não, inferiores ( Valla, 1998, p.
14). Um diálogo igualitário considera as diferentes contribuições em função das
argumentações e não das posições de poder de quem as coloca (Flecha, 1997). Os
saberes podem se dar a ver de diversas formas, formas estas, muitas vezes diferentes das
de comunicação dos setores privilegiados. Mas, não por isso, são deficientes. “Todas las
personas tienes las mismas capacidades para participar en un diálogo igualitario, aunque
cada una puede demonstrarlas en ambientes distintos [...] El aprendizaje dialógico
requiere outro concepto más amplio, que contemple la pluralidad de dimensiones de la
interacción humana y se base en el diálogo igualitario” (Flecha, 1997, p.20).
Complementando as dificuldades assinaladas no parágrafo anterior, acrescento
as relacionadas ao que Flecha (1997) denomina de “muros antidialógicos”, os quais são:
• Culturais: desqualificam a maioria da população, colocando-as como
incapaz de se comunicar com saberes dominantes. Uma minoria seleta construi teorias
dos déficits para dissuadir o conjunto da sociedade do intento de tomar em suas mãos o
protagonismo cultural;
12
• Sociais: excluem muitos grupos da avaliação e produção de
conhecimentos valoráveis. Classismo, sexismo, racismo e discriminação de geração
aprisionam determinadas experiências educativas dentro de alguns setores de posição
seja social, de gênero, etnia ou idade, deixando excluído o resto;
• Pessoais: excluem muitas pessoas de desfrutarem a riqueza cultural de
seu entorno. As histórias de vida de muitas pessoas e, principalmente, como se relatam a
si mesmas essas histórias, geram sua auto-exclusão de muitas práticas formativas.
A educação dialógica acontece no trabalho conjunto e no intercâmbio, em que
todos aceitam como valiosas as diferentes contribuições de cada um, embora oriundas
de diferentes bases (seja do conhecimento acadêmico, seja do conhecimento popular,
por exemplo). Combinando-se os conhecimentos, as opiniões, as reflexões, as visões de
mundo de todos, cada um se fortalece e também a comunidade, no sentido da
construção da cidadania (Valla e Stotz, 1993). Mesmo dentro da própria produção
intelectual há que se reconhecer os limites e limitações das especializações, evitando, ao
aproximarmo-nos da realidade, o reducionismo decorrente de nossa visão especialista,
daí o cuidado de se aproximar da realidade com um olhar, no mínimo, multidisciplinar.
A inserção de pessoas da academia em outras comunidades significa de um
lado, juntar-se à ela, tomar parte da sua vida e de outro, ser por ela admitido. Isto não
significa se deixar anular, desfigurando seu papel e sua identidade, mas os enriquecendo
e diversificando. Tanto a sociedade que as envia , como a comunidade que as acolhe - já
que trabalha com comunidades postas à margem dos direitos humanos- delas esperam
que trabalhem para a transformação social, onde seja resgatada a essência do ser
humano, que é sua historicidade, poder de criação. Isso só acontece quando as pessoas
da academia são acolhidas e se dispõe a serem acolhidas. Nesse ser e estar com, para e
na comunidade, essas pessoas se formam educadores, participando de processos
educativos mais complexos do que a mera multiplicação de informação, a que são
reduzidos muitos programas de formação dos chamados “multiplicadores” para
trabalhos comunitários (Oliveira e Silva, 1999).
13
A CAMINHADA
Começando a caminhada
Chegando ao Rio,....
Chegar ao Rio, foi sair de São Paulo e não apenas, fisicamente. Foi caminhar e
se distanciar, lembrar do que deixava e admirar a nova paisagem que surgia. Na divisa
com o Rio , uma placa sobre a Estrada “BEM VINDO AO RIO DE JANEIRO” com
dois símbolos, o de São Paulo à esquerda, um prédio, do Rio à direita, o Pão de Açúcar.
Símbolos. São Paulo, prédios, cinza... E Rio, montanha...natureza... Entrar na cidade e
errar, e tomar os retornos. “ Em São Paulo...”, disse o taxista, “ os retornos demoram
quilômetros”. Olhar e não perceber, não ver, o olhar que não sabe e não distingue as
marcas, que se perde, mas que auxiliado por quem conhece, se encontra. Na casa, re-
conhecer, nem tudo é diferente neste novo canto. Abraços, lambidas, comida caseira e
cama macia. Acolhimento.
...e ao Grupo de Pesquisa.
Chego a FIOCRUZ, pela avenida Brasil...A “avenida comprida”. Chego ao
Núcleo de Estudos - ELOS e Prof. Eduardo Navarro Stotz está lá7. Abraço caloroso.
Mostra o cantinho que preparou com uma escrivaninha, um armário e, na janela em
frente, o complexo da Maré se descortina para mim.
Sou apresentada à Ana, médica, paulistana, que é sua orientanda na
especialização. Ela me fala um pouco de como se sente no Rio: “O moço do guichê diz
bom dia. Em São Paulo não tem disso, é mais objetivo. Aqui as pessoas param para ver
o tempo, o mar, o céu. Tem outro ritmo.” Eduardo localizou-me os prédios,
restaurantes, livraria, biblioteca. Orienta-me sobre os procedimentos formais.
Olhamos a Maré, os bairros, os contornos, os limites de controle do Comando
Vermelho e do Terceiro Comando, o Castelinho da FIOCRUZ. O bairro e suas
dinâmicas determinando o horário em que as pessoas saem do ELOS, “não mais do que
6 horas da tarde, não é seguro”. Mais uma vez, a dinâmica do bairro está dentro da
FIOCRUZ.
7 Coordenador do ELOS, membro do CEPEL e co-lider do grupo de pesquisa.
14
Vou ao computador e a página do ELOS se abre. Coloco meu nome do disquete
“ Waldenez – ELOS”. A sensação de um novo pertencimento, mais um pedaço de
identidade que se constrói. Um pertencimento agradável, que não é apenas movimento
meu mas, que advém também do modo caloroso que fui recebida.
Meu primeiro encontro com Prof. Victor Vicente Valla8 se deu no Depto de
Endemias da FIOCRUZ, após sua aula. Conversamos em sua sala, onde generosamente,
falou sobre si mesmo e sobre o CEPEL e da importância dessa ONG em sua vida
profissional “o que escrevi é baseado na experiência do CEPEL” . Falou-me de sua
formação católica, de sua teoria, desenvolvida na década de 80- 90, de que não existia
um movimento popular em recuo. “Na nossa avaliação nunca as classes populares
deixaram de se organizar. Começamos a interpretar o movimento de defesa e de
solidariedade entre si. Começamos a dar importância aos movimentos religiosos” . Em
1995 e 1996 fez pós-doutorado na Califórnia para estudar mais a fundo a categoria de
“apoio social”, “ na medida que um determinado grupo de pessoas percebe que conta
com um apoio sistemático, essa percepção, do apoio, faz bem à saúde” . Quando voltou
do pós-doutorado começou a traduzir essa categoria para a religião, as igrejas estavam
dando esse apoio, especialmente as evangélicas e pentecostais.
Na reunião de fechamento do jornal “Se liga no Sinal” Valla apresentou uma
outra pesquisa que estava em andamento na ocasião deste estudo: um grupo de
pesquisadores da ENSP, que não são economistas, refletem e divulgam “o que é a crise
econômica?”. A idéia dessa pesquisa partiu do discurso predominante, especialmente de
economistas, de que o entendimento da crise econômica é complicado. Para essas
reflexões, os pesquisadores utilizam-se de suplementos de jornais do MST, do PT.
Segundo Valla, “os pesquisadores procuram compreender essa crise e qual a relação
desse problema com a pobreza e com a saúde. Não queremos economistas”. Há outros
trabalhos de Valla junto ao CEPEL que serão comentados quando da apresentação do
CEPEL.
O caminhar metodológico
Nesta pesquisa, o cuidado de que se fala em relação aos trabalhos educativos que
buscam o diálogo entre saberes e sujeitos, também foi posto em todo o caminhar
metodológico. Chauí (2001) nos alerta que o conhecimento científico deve ser
8 Membro do CEPEL e co-lider do grupo de pesquisa.
15
interpretado como uma representação social da realidade. Universalizar esse
conhecimento, através de um corpus de normas e representações, seria adotar esse
conhecimento como ideologia e, ao universalizá-lo, dissimular a diversidade, suprimir
imaginariamente a fragmentação social e produzir alienação. O conhecimento
acadêmico pode e deve ser colocado como mais um conhecimento, evitando-se revestí-
lo de autoridade (distante e próxima; racional, justa), pois daí haverá hierarquia e
ordem, certamente, a já estabelecida. Cuidar para não atuar como arautos de uma nova
consciência, esta, vindo de fora. “Desse mundo desencantado [burguês] os deuses se
exilaram, assim a Razão conserva todos os traços de uma teologia escondida: saber
transcendente e separado, exterior e anterior aos sujeitos sociais, reduzidos a condição
de objetos sociopolíticos manipuláveis [...] a racionalidade é o novo nome da
providência divina” ( Chauí, 2001, p. 182).
Este cuidado posto retomo a questão, ponto de partida, do estudo realizado
durante este estágio de pós-doutorado: quais os processos educativos presentes nas
relações que se estabelecem entre comunidades que têm processos históricos diferentes
de construção de saberes e práticas ao desenvolverem trabalhos conjuntos de
sobrevivência, de estratégias de vida e de transformação social?.
O caminhar metodológico para procurar compreender os processos educativos
presentes nessas relações, previa a inserção e observação no campo de pesquisa
complementadas por entrevistas semi-estruturadas com membros do grupo acadêmico
anfitrião, da ONG CEPEL e pessoas dos bairros onde essa ONG atua.
Não foram precisos muitos dias de observação e conversas para que eu
entendesse que a inserção no campo de pesquisa já estava se dando, pois que,
rotineiramente, onde eu me encontrasse, lá estava a comunidade de bairro e a
comunidade acadêmica e as relações entre elas.
Além do CEPEL, o grupo de pesquisa também desenvolvia suas atividades no
ELOS- Núcleo de Estudos Locais em Saúde, da FIOCRUZ, onde me vinculei e convivi
cotidianamente. Rotineiramente, no ELOS, eram desenvolvidos atividades, encontros e
estudos sobre as relações com a comunidade e sobre as várias compreensões acerca das
práticas, relações e movimentos sociais. Momentos de reflexão sobre as atividades
desenvolvidas ou a se desenvolver, sobre os acontecimentos, notícias, casos. O local e o
geral encontravam-se nestas conversas sobre tráfico, processos de adoecimento e cura,
políticas e responsabilidades públicas, papel político e social do ELOS. Assim,
conversávamos sobre a Vila do João e sobre a cidade do Rio de Janeiro, sobre o Estado
do Rio de Janeiro, sobre o Brasil, sobre as relações internacionais, nos tempos de agora
16
e nos tempos históricos. Após algumas semanas de convivência conversei com meus
colegas de pesquisa e concordamos que meu estudo não deveria compreender apenas o
CEPEL, mas também o ELOS devido as atividades que desenvolve na região da
Leopoldina e ao fato de seu quadro contar, notadamente, com pessoas da academia.
ELOS e CEPEL, separados por apenas uma divisória. No CEPEL, onde
participei de algumas reuniões, as relações com a comunidade eram conversa presente,
seja na preparação do Jornal, seja avaliando-se ou planejando-se as atividades. Nas
conversas, mesmo que rápidas ou aparentemente “apenas” operacionais com os
membros do CEPEL, lá estavam suas experiências, suas percepções e seus saberes.
E a comunidade? Uma das pessoas que fazem parte do “ Sementinha” – ONG
localizada na Leopoldina e que, posteriormente, seria uma de minhas entrevistadas,
participava de um projeto do ELOS (Crônicas Populares) e periodicamente comparecia
a sala do ELOS. Na região da Leopoldina, onde estão as pessoas da comunidade as
quais entrevistaria, insere-se o prédio do ELOS, onde me encontrava. Seus bairros e
favelas são visíveis da janela em frente à minha mesa de trabalho, especialmente os da
Vila do João. Visibilidade também social , pois nesta vila almoçávamos, por ela eu
passava em meu caminho de volta à casa, dela ouvíamos os sons das pessoas, dos
ônibus, dos carros, dos camelôs, dos rojões e das balas.
Não demorou muito a perceber que o diário de campo seria, neste caso,
precisamente o que diz o termo, “diário”. Compreender os processos educativos
presentes nas relações entre essas comunidades significou uma vivência diária, próxima,
afetiva e comprometida. Esta constatação só foi possível estando presente neste espaço
social de vivência e de estudos, pois que no projeto de pós-doutorado o significado de
CEPEL, ELOS e Região da Leopoldina advinha de palavras escritas: cartas, relatórios e
projetos de pesquisa. Muito está escrito, no entanto é impossível transmitir por essas
tantas palavras o que só se é percebido pela vivência das relações entre essas
comunidades, de suas histórias, seus desafios, seus saberes.
Longe de surpreender-me com tal constatação, aliviei-me com ela. Pois estava
mergulhada num processo vivo de educação, o qual me dispunha à compreender. Local
privilegiado. Em movimentos, ora suaves ora abruptos, ora lentos ora vertiginosos, ora
leves ora sufocantes, ora harmoniosos ora ensurdecedores, vidas, vivências, amizades,
sabores, cheiros, texturas, sons, palavras, cores, lágrimas e sorrisos teciam uma rede
que me embalava e em cada movimento seu me punha também em movimento, me
direcionava o olhar, mostrava-me, em novas perspectivas, o que se punha a ver. Assim,
17
pude ad-mirar o mundo no qual imergia, com vagar, de modo a se constituir
verdadeiramente em experiência.
Neste momento, em que elaboro o relatório, em que me debruço sobre meu
diário de campo, sobre as transcrições das entrevistas, sobre as leituras anotadas, num
esforço humano, criativo e crítico, busco emergir deste mundo e refletir sobre esta
experiência. Debruço-me na intenção de trazer contribuições aos que me acolheram e
aos que pensam e atuam na educação comunitária. Esforço-me pois, com eles, busco o
respeito às diferentes identidades e diferentes processos de construção de saberes e
experiências e a garantia dos direitos humanos.
Conversas e entrevistas9.
Como procedimento metodológico central deste estudo previa-se as entrevistas
semi-estruturadas com pessoas do Sementinha, ELOS e CEPEL. Porém, a convivência
propiciou vários outros momentos em que pude precisar minha questão de pesquisa,
contextualizar essas pessoas e seus grupos e construir o roteiro para essas entrevistas. O
diálogo e convivência com os grupos do ELOS e das ONGs complementou e
complexificou o diálogo com a literatura e permitiu a apreensão de experiências e
construções de significados de educação em trabalhos conjuntos entre comunidades. A
convivência, como diz Minayo (2000), propicia a busca e o encontro de referências de
lealdade, de compromisso.
Além disso, nesses momentos de convivência pude elaborar outros
questionamentos sobre o tema deste estudo e apreender conhecimentos e experiências
sobre os processos educativos presentes nas relações entre pessoas do ELOS, CEPEL e
Sementinha. Na convivência pude fazer minhas observações. A observação, diz Becker
(1999), leva à entabular conversação com alguns ou com todos participantes destas
situações e propicia descobrir as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos
que o pesquisador observa.
Nas conversas não havia um roteiro pré-determinado ou uma
questão/ponto/assunto central sobre a qual se conversaria. Essas conversas eram trocas.
Trocas de experiências, pontos de vista e percepções, aproximações entre pessoas e
entre saberes e experiências. Nelas, pude ampliar meu conhecimento sobre o tema desta
9 Todos os nomes são verdadeiros sob consentimento. Em casos de se tratar de figura pública tambémserá usado o nome verdadeiro. Em outros casos, serão utilizadas as iniciais.
18
investigação, ao colocar para o diálogo meus conhecimentos com os dos membros do
ELOS, do CEPEL e da comunidade. Nelas, pude obter informações preciosas que
auxiliaram, posteriormente, na construção do roteiro de entrevistas, na seleção das
observações a serem realizadas, das reuniões a participar e visitas a fazer. Vínculos
foram sendo construídos nesse conversar, gerando afetividade, acolhimento e
solidariedade no com-viver. Foram muitas e variadas conversas, com membros do
ELOS, CEPEL e Sementinha.
Algumas entrevistas abertas foram realizadas, das quais tomei notas. O objetivo
principal era apresentar-me ao ELOS no contexto da FIOCRUZ, às ONGs CEPEL e
Sementinha e à Região da Leopoldina. Essas entrevistas foram realizadas, em ordem
cronológica, com:
• Eduardo Stotz, lider do grupo de pesquisa, professor da FIOCRUZ
coordenador do ELOS e membro de CEPEL (24 de setembro),
• Carla Moura Pereira Lima, integrante do CEPEL, coordenadora adjunta
na pesquisa sobre religiosidade e assessora para lideranças populares da Leopoldina (25
de setembro),
• Victor Vicente Valla, líder do grupo de pesquisa, professor da
FIOCRUZ, membro do ELOS e do CEPEL (21 de outubro),
• Maria Eugênia Urrestarazu Silva – Kena, coordenadora do CEPEL (30
de outubro).
As anotações das entrevistas foram examinadas buscando-se destacar pontos
que fornecessem elementos para o roteiro de entrevistas e encaminhassem a outros
procedimentos como observações, estudos de textos, reuniões e visitas. Após esse
primeiro exame, levantei o que pareciam ser palavras-chave para o entrevistado e que
potencialmente se transformariam em temas da entrevista. Após esse exercício, levantei
questões que tanto poderiam ser incorporadas no roteiro de entrevistas como serem
postas diante das demais situações em que me encontraria posteriormente, como as
visitas, observações e reuniões. Questões estas que procurariam direcionar meu olhar na
busca de elementos adicionais que auxiliassem na compreensão das práticas dessas
entidades/instituição e dos processos educativos presentes em suas relações.
Além das entrevistas abertas, realizei entrevistas semi-estruturadas, gravadas e
transcritas, com um membro do ELOS, um do CEPEL e um do Sementinha10. A questão
de pesquisa foi o ponto de partida e a base da condução dessas entrevistas, a partir de
10 Na transcrição fui auxiliada por Mariluce Correa do Nascimento e Maíra Alves de Araújo, ambas doELOS.
19
um roteiro aberto, permitindo ao/à entrevistado/a definir o campo à explorar (Thiollent,
1987). A seleção dessas pessoas se deu conjuntamente com Eduardo Stotz e Victor
Valla. O critério utilizado para a seleção foi de que essas pessoas estivessem
historicamente presentes, de preferência, desde a criação, no ELOS, CEPEL ou
Sementinha. Desta forma, foram selecionados, respectivamente, José Wellington
Araújo, Carla Moura Pereira Lima e Creusa da Costa Verissimo. Para as entrevistas
utilizei roteiros que continham perguntas em comum e perguntas específicas para cada
uma das pessoas, estas últimas relacionadas a sua instituição/entidade. Os roteiros
podem ser encontrados no Anexo 1.
Para elaboração do roteiro vali-me da convivência, conversas, entrevistas
abertas, leituras de documentos e participação em reuniões (estes dois últimos serão
abordados posteriormente). O roteiro foi composto por focos:
a) a formação pessoal e do grupo;
b) as relações com pessoas de sua própria comunidade (academia e de bairro);
c) conceitos-chaves: visões de comunidade, diferenças;
d) relações comunidade/academia;
e) metodologias de trabalho com comunidades: geral, o cuidar e o cuidar-se;
retorno à comunidade;
f) pesquisa;
g) o que se aprende nas relações: fechamento.
Além das questões inseridas nesses focos, que eram comuns às pessoas do
CEPEL, Sementinha e ELOS, elaborei questões específicas para caracterizar as
instituição/entidades, como pode ser examinado no Roteiro (ANEXO 1).
A primeira entrevista, realizada com Wellington, propiciou um aperfeiçoamento
do roteiro. Após nossa primeira sessão de entrevista, o roteiro mostrou-se longo. Eu
sabia que a entrevista com Wellington seria uma aventura, pois ele é assim, conta casos
(experiências práticas) que fundamentam seus pensamentos (teorizações), e como bom
narrador que é, contextualiza , explica (foram quase 4 horas divididas em duas sessões).
À cada pergunta, casos e reflexões, aprendizados. Respostas longas à perguntas curtas,
mas nada simples. Ao elaborar perguntas o pesquisador as constrói num quadro de
conhecimento que dispõe. Houve perguntas para as quais eu esperava respostas simples
ou que iriam em uma certa direção. Porém, o que se mostrou é que suas respostas
pressupunham um conhecimento anterior, por exemplo, sobre epidemiologia. Neste
caso, primeiro Wellington apresentava essa explicação e durante ou depois da
explicação, a resposta. Percebi que o roteiro falhava em perguntas essenciais, por
20
exemplo, da história pessoal, da formação. Wellington começou a contar sobre sua
infância e de onde vinha sua experiência, o que me alertou para essa falha. Houve
perguntas que Wellington propôs, pois diziam respeito a assuntos que gostaria de falar.
Ou seja, o entrevistado colaborou diretamente no aperfeiçoamento do roteiro.
Wellington dedicou-se e muito em responder. Pacientemente me explicando
esses conhecimentos pressupostos, contextualizando. Preocupava-se em não divagar.
Falava várias vezes para que eu controlasse se ele estivesse divagando, controle este
solicitado por ele. Mas, em toda sua narrativa eu encontrava ligação com o roteiro, com
minhas preocupações de pesquisa. Como interromper aquelas histórias e reflexões que,
mesmo que não estivessem diretamente ligadas a curiosidade específica desta pesquisa,
traziam profundos ensinamentos de vida, éticos, políticos à esta pesquisadora? Assim, o
caráter utilitário da entrevista, do roteiro, deu lugar a que a entrevista fosse realmente
um momento educativo, como entendo que deva ser, ou seja: eu aprendi. Mais do que
apenas propiciar que o entrevistado refletisse sobre questões que eram por mim
colocadas, o entrevistado me fazia refletir. O mesmo aconteceu com as outras duas
entrevistas.
Após a entrevista com Wellington, avaliei o roteiro, pois foram duas horas de
entrevista e eu ainda não estava em sua metade. Olhei meu roteiro e as entrevistas a
serem realizadas e o objetivo deste estudo. Examinei as questões do roteiro buscando as
que trouxessem a tona as histórias das pessoas e dos grupos, as relações e os
aprendizados e que propiciassem caminhar dentro do tempo que me é disponível para
este estudo. Esse exame cuidadoso propiciou-me que algumas questões fossem
eliminadas e outras incorporaradas, reduzindo o roteiro . O roteiro final mostrou-se
adequado tanto na sessão seguinte com Wellington como nas entrevistas posteriores.
A entrevista com Carla foi realizada em apenas uma sessão e cumpriu
parcialmente o roteiro. Inicialmente marcada para uma manhã, foi necessário aguardar
os seus compromissos junto ao CEPEL para iniciá-la, o que nos deixou com apenas uma
hora de conversa. Interrompemos a entrevista quando nos encontrávamos na metade do
roteiro. Por ser final de ano, com todos os afazeres que Carla tinha, seja na ONG seja
em outros espaços de sua vida pessoal e profissional, não conseguimos marcar nova
entrevista em 2002. Ao retirar-me para as festas de Natal, combinamos que no início de
fevereiro, quando eu regressaria ao ELOS e ela das férias do CEPEL, agendaríamos
nova conversa. Nesse momento, os planos para as férias coletivas do CEPEL eram de
que se iniciariam em janeiro. Entretanto, ao retornar ao ELOS fui informada que essas
21
férias haviam se iniciado em fevereiro e que o CEPEL retornaria na última semana de
fevereiro, justamente na minha última semana no Rio.
As entrevistas foram transcritas e o texto analisado nos focos já apresentados.
Participação em reuniões.
Além das entrevistas, participei em reuniões de trabalho cujos objetivos eram
tanto de aprofundamento teórico quanto de elaboração de projetos, avaliação de
atividades e outros. As reuniões foram selecionadas de modo a propiciarem uma maior
apreensão do agir e do pensar do CEPEL, ELOS e Sementinha, bem como um
conhecimento das diversas experiências e saberes de seus membros. Participei, tomando
nota, das seguintes reuniões:
A- Observatório de Saúde:. 26 de setembro: análise dos acontecimentos na Vila do João e encaminhamentosdos trabalhos de campo..16 de outubro: Aprofundamento teórico sobre Narrativas;.29 de outubro: Projeto Obra Aberta;.5 de novembro: epidemia de dengue e ações locais conjuntas ELOS/Serviço deSaúde; Boletim do Observatório de Saúde número 3, novos projetos de CrônicasPopulares e de Obra Aberta.
B- ELOS com o IBICT11. Realizada em 22 de outubro: aprofundamento teórico sobre
Narrativas e debates sobre a relação narrador -ouvinte.
C- CEPEL:
.23 de outubro, manhã: Fechamento da pauta para o Jornal “O Sinal” número 53,
onde se debateu também os encaminhamentos da pesquisa sobre religiosidade
popular e saúde.
.23 de outubro, tarde: elaboração de projeto do CEPEL para 2003.
D- Departamento de Endemias. Realizada em 22 de novembro: apresentação do ELOS
aos professores do Departamento.
E- ELOS-CEPEL, reunião conjunta. .Em 08/11: com Prof. Dr. Guilherme Delgado
(IPEA) para aprofundamento teórico sobre a economia de subsistência e a questão
social no Brasil; .Em 06/12 : para troca de informações sobre as oficinas realizadas
durante a Conferência Latino –Americana de Saúde e Promoção da Saúde (realizada
em novembro em São Paulo) e encaminhamentos.
11 Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, da Escola de Comunicação daUniversidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ.
22
F- Com Dna. Creusa da Costa Verissimo, membro da ONG Sementinha. Realizadas
dias 7 e 21 de novembro. Nestas reuniões, em conjunto com membros do ELOS,
foram realizadas as entrevistas egravadas para o projeto “Crônicas Populares” do
ELOS, onde Dna. Creusa narrava suas experiências das condições nas quais vive.
G- Sementinha. Realizadas nos dias 13 de dezembro e 14 de fevereiro. Em dezembro a
ONG fez a avaliação de 2002 e levantou as expectativas para 2004. Em fevereiro,
debateu financiamento, as atividades da ONG, especialmente a horta e o preparo de
xaropes e o planejamento de palestras sobre Saúde a serem realizadas na sede.
H- Rede Local de Educação Popular e Saúde, coordenada pelo ELOS. Realizada em 11
de fevereiro, para apresentação dos membros da rede, recém criada, e das propostas
de projetos de Arte-Educação e Saúde a serem desenvolvidos pela rede junto à
população jovem da Maré.
Assim como nas entrevistas abertas, as anotações das reuniões foram
examinadas buscando-se destacar pontos que fornecessem elementos para o roteiro de
entrevistas e encaminhassem a outros procedimentos como observações, estudos de
textos e visitas. Procedi da mesma forma já indicada quando apresentei anteriormente
os procedimentos em relação as entrevistas abertas (p.19), ou seja, busca de palavras-
chave e levantamento de questões.
Exame de documentos.
Para propiciar uma ampliação do conhecimento sobre o Sementinha, ELOS e
CEPEL, bem como sobre a região da Leopoldina e para auxiliar na seleção dos
entrevistados e no preparo do roteiro das entrevistas examinei alguns documentos que
traziam dados, descreviam atividades, apresentavam análises sobre acontecimentos
entre outras finalidades. Os documentos examinados com este propósito foram:
A) ARAUJO, José Wellington. Indicadores de Saúde: Ilha do Governador e
Leopoldina. Rio de Janeiro:FIOCRUZ, 1998, 58p.
B) CEASM - CENTRO DE ESTUDOS E AÇÕES SOLIDÁRIAS DA MARÉ –
cliping
C) CEPEL - SE LIGA NO SINAL – Informativo do CEPEL números 50, 51 e
52. Ano de 2002.
23
D) CUNHA, Marize Bastos da Cunha; VALLA , Victor Vincent Valla (org) –
Conhecendo a Região da Leopoldina: algumas iniciativas sociais . Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/CEPEL, 1999.112p.
E) ELOS – Núcleo de Estudo Locais em Saúde. Investigação, Ensino, Serviços
de Saúde e Sociedade Civil: uma Proposta de Construção Compartilhada do
Conhecimento em Saúde no Nível Local - Relatório de Atividades. Biênio -
1995/1996. Rio de Janeiro, março de 1997
A seguir apresentarei como se deu minha aproximação ao ELOS, ao CEPEL e
à Região da Leopoldina (pois foi nesta ordem que os conheci) e o que pude apreender
nessas aproximações. Depois apresentarei brevemente ELOS, CEPEL e Sementinha
para então apresentar os entrevistados e a análise dos dados obtidos nas entrevistas.
Avaliação do Relatório Final pelas pessoas entrevistadas e coordenadores.12
Conforme compromisso firmado com os participantes, enviei cópias impressas
do Relatório Final desta investigação para leitura pelos entrevistados e coordenadores
do Sementinha, ELOS e CEPEL que, a seu critério também o passariam para leitura por
outros membros de seus grupos13. Isto foi feito assim que o terminei, em maio de 2003.
Juntamente com as cópias, enviei um envelope selado para a devolução do Relatório
com as anotações. Havia também uma carta de agradecimento, informando ser, aquela,
uma versão preliminar e solicitando tanto observações gerais, caso tivessem, quanto o
exame das informações específicas sobre sua entidade/instituição e sobre os
entrevistados. Solicitava aos entrevistados, em particular, que examinassem o que a eles
estava sendo referido à procura de equívocos de interpretação.
Recebi os exemplares anotados, por ordem cronológica, do Sementinha, ELOS e
CEPEL , tendo o último me chegado as mãos em janeiro de 2004. De modo geral, os
entrevistados fizeram anotações referentes a correções de nomes ou siglas, a
complementações e revisões de suas falas e a revisões de minhas interpretações. As
anotações variavam entre substituições, inclusões ou exclusões de palavras ou de frases,
tendo ocorrido uma exclusão de todo um parágrafo relacionado ao relato de um caso.
Não houve homogeneidade na quantidade de anotações ou mesmo no que a que elas se
12 O Relatório também foi avaliado pelos professores colaboradores, Victor Valla e Eduardo Stotz, esteúltimo também na condição de coordenador do ELOS, na ocasião.13 No consentimento assinado pelo CEPEL havia uma observação específica de que apenas após avaliaçãopelo CEPEL, o relatório poderia ser divulgado.
24
referiam de modo que as anotações feitas nos 3 exemplares, de certa forma, se
complementaram.
De posse dessas anotações, as segui inteiramente sendo este Relatório o
resultado final deste diálogo.
25
APROXIMAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
Aproximando-se
Na Introdução à Metodologia relatei como se deu minha aproximação ao Rio
de Janeiro e ao grupo de pesquisa. Nesta seção, especificarei a aproximação ao ELOS,
CEPEL, Região da Leopoldina e Grupo Sementinha, espaços e pessoas com os quais
convivi e que, nessa convivência, procurei compreender os processos educativos objeto
desta pesquisa.
...ao ELOS...
Meu primeiro encontro com as pessoas do ELOS, se deu com Eduardo Stotz no
meu primeiro dia de trabalho junto à FIOCRUZ. Conversei longamente com Eduardo
sobre o ELOS, a FIOCRUZ, as relações com as comunidades. Ele falou-me dos projetos
do ELOS, articulando “ensino, pesquisa e cooperação”: o observatório de saúde, a rede
de solidariedade da Leopoldina, o curso de especialização em Educação e Saúde, o
projeto integrado de Pesquisa. Falou que no plano mais amplo, trabalha a cultura, pois
“o terreno da cultura é a forma que se respira”.
Conheci a biblioteca e um quadro que está no centro de uma das paredes da sala
do ELOS. No quadro, com tinta à óleo foram pintadas casas do Maré e algumas
palavras. Esse quadro, que “pertence e é patrimônio” do ELOS, foi feito sobre o mapa
do Brasil, o qual foi totalmente recoberto dando assim o pano branco de fundo para esta
obra. Um outro mapa do Brasil feito sobre o mapa oficial do Brasil. Obra de Francisco
Romão. Eduardo e eu ficamos frente ao quadro conversando e olhando. As casas, as
palavras. Seriam palavras chave, reflexões sobre o trabalho de Arte Educação feito por
Francisco, na Maré? Eduardo diz que a arte pode lançar um olhar sobre o que tende a se
naturalizar, a se banalizar:
“A arte produz conhecimento, mas lida com outra forma de conhecimento.
Lida com o imaginário, sonho. Corresponde à essa apropriação. O quadro
é uma apropriação de um processo de interralação entre um grupo
acadêmico e um grupo popular. Expressa um conhecimento metafórico,
imaginário”
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As casas sobre as palavras, as palavras sobre as casas, um perspassando o outro.
Os signos das casas, os signos das palavras, as imagens, busco os significados.
Buscamos reconhecer algumas palavras ... Esse quadro está na publicação do ELOS
sobre a Leopoldina. As casas que ele representa estão na página de abertura do site do
ELOS. O bairro perspassando os trabalhos artísticas e acadêmicos. O bairro na sala do
ELOS. 14
No dias seguintes, fui apresentada para os demais, por Eduardo, que em tom de
brincadeira diz “ Waldenez está pesquisando o ELOS, nós somos os objetos de estudo
dela”. Encontrei pessoas do programa de vocação científica. Maira (psicologia) que
trabalha com Elaine (psicóloga) no grupo de mulheres da Maré. Fabiano (ciências
sociais) que trabalha com os serviços de saúde na Vila do João. Mariluci (história)
acompanha a Rede de Solidariedade da Vila Leopoldina. Wellington15, médico,
professor da FIOCRUZ, primeiro e próximo coordenador do ELOS.
...ao CEPEL...
Eduardo havia me falado sobre o CEPEL, que surgiu em 1988 com ele, Valla e
outras pessoas, com o objetivo de auxiliar os movimentos populares da região da
Leopoldina. Valla foi coordenador do CEPEL assim como o foi, sua esposa. A
coordenadora atual chama-se Maria Eugênia Urrestarazu Silva, a qual todos chamam de
“ Kena”, que veio ao Brasil na época do golpe militar do Chile. “as ONGs são expressão
de sua principal liderança” , diz ele.
A primeira pessoa que conheci no CEPEL foi Carla16, coordenadora adjunta na
pesquisa sobre religiosidade e assessora para lideranças populares da Leopoldina.
Reconhecemo-nos do Encontro da Rede de Educação Popular e Saúde, realizado em
2000, em Brasília. Valla havia falado de mim para ela. Conta-me que o CEPEL está
passando por uma reestruturação, tem uma equipe pequena que trabalha 20 horas por
semana, com pouco financiamento. O CEPEL trabalha com pessoas da comunidade e
tem um sonho “diminuir a exclusão e a pobreza da área da Leopoldina”.
Carla me fala sobre sua pesquisa sobre religiosidade. “Discutir a partir das
categorias massificação e alienação não ajuda a compreender como a população
14 Na revisão deste relatório, um dos entrevistados, Wellington, informou que as palavras são os objetivosdo ELOS sobre a pintura, escritos de forma bastante ilegível15 Wellington foi entrevistado e sobre ele se falará adiante, quando da apresentação dos entrevistados.16 Carla foi entrevistada e sobre ela também se falará adiante.
27
resiste e porque se converte e permanece na religião. Pessoas de esquerda,
principalmente, pensam que as pessoas se convertem e usam seu tempo para ir à
igreja”, como se a igreja tirasse essa pessoa de uma potencial militância. Carla acredita
que não é bem assim. Exemplifica, houve uma pessoa da comunidade que se converteu
e, a partir da conversão, passou a militar na associação de moradores.
Carla deu-me material, jornais e convidou-me para irmos juntas para um
encontro na comunidade, talvez para eu observar. Não me prometia que nesse encontro
eu poderia conversar pois “as coisas estão complicadas na Penha, com a morte do
Tim Lopes e a ação da polícia17” . Conheci a secretária do CEPEL e as pessoas que
realizam atualização do cadastro, serviços externos e atualização do CED-VIDA
(Centro de Documentação de Condições de Vida).
Dias mais tarde conheci Kena. Reconhecemo-nos também do encontro de
Brasília. Agendamos uma conversa mais demorada, o que não impediu que já
conversássemos, carinhosamente, sobre nós, sobre nossas filhas, as distâncias.
Adiantou-me que tem pensado sobre as relações entre pessoas da academia e pessoas de
comunidades, passando-me uma cópia de um texto seu sobre o tema. Ao final, para
responder à sua pergunta se eu faria a pesquisa no CEPEL, contei um pouco do projeto
pois, este ponto ainda estava incerto: em qual prática social me inseriria: CEPEL ou
ELOS? Despedimo-nos com uma longo e apertado abraço.
...à Leopoldina : Complexo da Maré/Vila do João...
Carla havia que contado sobre a região da Leopoldina, 10% da população do
Rio, entre favelas e bairros, seriam aproximadamente 700.000 pessoas num bolsão de
pobreza. Em 2002, talvez chegue à 100 favelas. Têm quatro grandes complexos de
favelas: Alemão, Maré, Manguinhos e Penha. Nessa região encontram-se os bairros de
Jardim América, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil, Braz de Pina, Penha
Circular, Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso e Manguinhos18. Sobre a Maré, Carla havia
me contado que a região havia sido uma baía, área de mangue. Era água em volta da
FIOCRUZ e, nesta, tudo chegava de barco, daí o nome “Maré”. Eduardo também já me
havia falado sobre este aspecto da região e que as pessoas vieram deslocadas das
17 Algumas semanas antes de minha chegada, foi encontrado, no Complexo do Alemão, o corpo dojornalista da rede Globo, Tim Lopes. O jornalista havia sido torturado e morto e seu corpo cremado numterreno dessa favela.
28
palafitas. Disse-me que o Complexo da Maré se estende até o Morro do Timbau, Nova
Holanda e Parque União.
Minha primeira incursão pela Maré foi num almoço na Vila do João com
Wellington e duas sanitaristas do posto de saúde da Vila. Chamou-me a atenção as
pessoas circulando na estreiteza das ruas e, principalmente, das calçadas. Adolescentes,
mulheres com carrinhos de bebê, mulheres sozinhas, crianças. Nas ruas, que acredito
sejam as centrais ou comerciais, as pessoas andam nas ruas dividindo-as com os carros,
poucos e que andam bem devagar. O calor de cidade de praia. Uma das sanitaristas me
diz que não há banco e sim uma lotérica onde é possível pagar algumas contas. Damos
um volta de carro e ela me mostra a escola, o posto policial com o carro na garagem , a
creche e o posto. Fala do posto com carinho. Wellington me mostra o Valão, uma
valeta que fica na entrada do bairro, onde se acumula água. Caminhões estacionados no
meio da rua. Percebo que nos lugares de estacionamento de carros estão os camelôs.
Nas suas barracas chamam-me a atenção as linhas geométricas em que,
caprichosamente, os ovos foram empilhados, os peixes enfileirados.
... à Leopoldina: Penha/Sementinha19.
Minha segunda incursão na Leopoldina foi até a Penha e ao Parque Proletário do
Grotão, onde funciona a sede do Sementinha. Para tanto, seguindo orientação de Dna
Creusa, tomei um ônibus urbano partindo ao lado da FIOCRUZ. Minha primeira viagem
de ônibus no Rio de Janeiro. Sentei-me logo atrás do motorista e peço-lhe para me
avisar quando chegássemos no Supermercado Sendas da Penha. O barulho do motor é
ensurdecedor, fica berrando, respondendo às marchas20.
O ônibus entra na Vila do João e atravessa entre pedestres, bicicletas e aqueles
caminhões que eu já havia visto, estacionados no meio da rua. Passa pela Vila e parece
entrar num outro bairro. Nele, vejo casas de madeira penduradas na beira do rio,
sustentadas por dois ou três longos e finos paus que se enfiam na beirada do rio. É tal a
tortuosidade desses apoios e é tão frágil sua aparência, que meu olhar fica pendendo
entre esses sustentáculos e aquilo que sustentam, tentando, em vão, resolver essa
18 Observe-se que alguns nomes de repetem pois, nesses locais há favelas e favela-bairro (sobre estasterminologias ver a partir da pág. 33).19 Sementinha: organização não governamental localizada na Penha (Região da Leopoldina), da qual fazparte Dna. Creusa, que foi entrevistada. Sobre Dna. Creusa também se falará adiante.20 Importante salientar que meu transporte pelo Rio era carro. Raramente andei de ônibus, daí minhasobservações e estranhamentos sobre este meio de transporte terem sido registrados nesta ida à Penha.
29
equação arquitetônica. Nessas casas, paredes e, nas paredes, espaços, nos quais tento
reconhecer janelas e portas, mas fico longe de poder precisar por onde se entra e se sai.
Vejo outras casas. Nelas, seriam paredes aquilo que reconheço como cercas? Num
parquinho infantil, entre balanços e um escorregador, pastam cavalos e um potro. Sob o
viaduto, uma oficina mecânica repleta de carros desmontados, peças à venda, estofados.
Numa das paradas do ônibus entram pela porta da frente cerca de 5 garotos, sem
uniforme, sem camisa, sem carteirinha21, um deles com uma bandeja com doces,
dispostos e protegidos de tal modo que me dão a impressão que estavam à venda. Era o
único menino que vestia uma camisa. Os meninos são barulhentos, falam alto, vão para
o fundo do ônibus. Ouço um deles falar, “joga ele para fora, vai tomar no cú”. Sinto
um pouco de medo, penso na câmera fotográfica na bolsa. Mas, ninguém no ônibus
parece se assustar. O motorista continua seu caminho, o cobrador em seu trabalho. Essa
reação me tranquiliza. Observo que as pessoas estão apenas com sacolinhas e eu com a
pasta-bolsa de pesquisadora. Passamos por guardas e os meninos silenciam, trocando
olhares e sorrisos. Os meninos vêm mais para frente e descem, agradecendo ao “tio”.
O ônibus percorre as ruas tortas, ora estreitas, ora largas. Faz tantas curvas que
nem sei mais para onde vai. Tendo passado muito tempo me pergunto se o motorista
não se esqueceu de mim. Sento-me mais à frente. Ele olha para mim e minha suspeita se
confirma “passamos pelo ponto e eu me esqueci da senhora” . Penso em Dna. Creusa
me esperando no supermercado. Ele fica pensativo, visivelmente chateado. Diz que vai
me deixar num outro ponto e que vai me por em outro ônibus. “Passamos pelo ponto ”,
ele diz novamente, “e eu me esqueci da senhora” . “Não tem importância” finalmente
consigo falar. “Não serve outro supermercado? É que tem outro logo alí.” . Respondo
que há uma pessoa me esperando. Silêncio. “ Agora é ‘Bon marchè’. Não é mais
‘Sendas’” . Eu aceno afirmativamente. O motorista para, chama uma pessoa de
uniforme da empresa e me mostra o ponto “ele vai por a senhora no ônibus e vai passar
em frente. Olha, se ele esquecer, a senhora vai ver ‘Bon Marchè’” . Atravesso a rua
estreita, movimentada. O outro motorista é avisado e entro no segundo ônibus. Antes
do ônibus partir ainda há tempo de ouvir o primeiro motorista gritar “É para deixar
ela no Sendas da Penha” .
Vou-me embora, num longo caminho de volta. Chegando no Sendas, lá está
Dna. Creusa, pacientemente me esperando com um atraso de 45 minutos. Vamos na
Kombi. Mais um transporte até o Bairro do Caracol. Mulheres com filhos, senhoras com
21 Camisa da escola e carteirinha de estudante normalmente identificavam a categoria de estudante, a qualestava autorizada à entrar pela porta da frente sem pagar.
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compras, uma com o ar muito cansado. Apertamos 4 pessoas e uma criança em cada
banco, as compras no bagageiro e seguimos. As conversas se entrecruzam, o assunto
que uma começa, a outra continua. Aqui desce uma, ali desce outra. E a Kombi começa
a subir e entrar em ruas cada vez mais estreitas, vasos sanguíneos que desembocam em
capilares, capilares urbanos, calçadas mínimas. E sobe... e curva... e sobe. Para, torce,
passa um carro na outra direção. Para, torce, sobe na calçada para dar passagem ao outro
carro que vem. Curvas acentuadas...buzina em cada curva.
Chegamos ao Sementinha. Após uma muretinha com grades entro numa sala
onde mulheres com sorrisos abertos e olhos brilhantes se sentam em cadeirinhas de
crianças. Dna Creusa me apresenta dizendo “esta é a menina”. Um bebê está num
carrinho. Oferecem-me uma das cadeirinhas, a reunião começou. Na lousa estão
afixados papéis grandes com perguntas, frases. Começam a se apresentar. Dna. Creusa
dá as coordenadas, eu seria a última. Nas apresentações, uma diz há quanto tempo está
no Sementinha, outra diz a vila onde mora, outra o que faz, outra o endereço (rua e
número), outra diz isso tudo. Lá estão Maria Catarina, Antonia, Maria de Lourdes,
Monique, Tatiana, Solange, Salete, Berenice, Neusa, Dna. Creusa e Alexandra.
Apresento-me, falo da pesquisa e das minhas questões. “Quantas perguntas!”,
comenta uma delas. Perguntam-me se estou falando de preconceito, quando falo das
relações entre universidade e comunidade. Digo que pode ser isso ou não, que eu
esperava descobrir. Falo que eu espero que minha pesquisa não fique na prateleira. E,
mesmo sendo uma pesquisa pequena, que eu pudesse levar para a Universidade um
pouco sobre como poderiam ser as relações da universidade com comunidades de modo
que as coisas melhorassem para todos. Agradeci o convite para estar na reunião e a
confiança. Chega o presidente da associação de bairro.
O primeiro tema é a relação como CEPEL, e prefiro não fazer anotações pois
elas irão conversar com o CEPEL sobre os resultados da reunião.
O segundo ponto é como o presidente espera contribuir com o Sementinha. Ele
fala que as coisas do Bairro não podem morrer. Que ele tem que fazer um relatório
sobre a história do Bairro, das organizações e que ele não gostaria de colocar “existiu
Sementinha” , mas “existe Sementinha” e que é necessário vender a idéia. A Associação
de Bairro irá colaborar financeiramente, pediu que fizessem uma lista do que a escola
precisa , já doou 10 camisas. “Tem que fazer um projeto” , continua ele, falando que
tem conversado com algumas pessoas, “ vocês fazem xarope que curou muita gente
aqui, meu pai inclusive. Vamos divulgar, quanto custa fazer o xarope? Vocês tem que
por isso no papel e eu verei o que posso conseguir” . Elas falam sobre as condições das
31
cadeiras, com remendos e consertos. “Cadeiras? Talvez. Tem daquelas do posto, mas
posso tentar conseguir para as crianças”. O presidente sai pois vai viajar.
O terceiro ponto é a escola, o que foi desenvolvido. A professora coloca os
problemas. A professora fala que precisa de livros, de receber informações sobre
eventos, cursos, para se atualizar. Fala em pintar a escola e que ela e a outra professora
viram uma lata de tinta por 20 reais, que elas iriam dividir o custo e pintar a escola,
afinal, disse ela, “é daqui que tiro meu dinheiro, mas queria discutir isso com as outras.
Eu tento enfeitar mais, preciso pintar, isto não parece uma escolinha de criança”. As
mulheres passam ,então, a conversar sobre a pintura e várias tiram dinheiro do bolso, 1
real, 2 reais. Dna. Creusa diz “quem puder colaborar com 1, colabora, quem puder com
5, ou até com 10” . Percebi que, mesmo não olhando para mim, era para mim que se
dirigia. Perguntei se poderia colaborar, ela disse que sim e doei 10 reais; “eu disse quem
poderia com 10...” , finaliza Dna Creusa.
Ao final da conversa foram colocados os pontos positivos e negativos de 2002.
Chegaram os salgadinhos fritos na hora, refrigerante, vinho, sorteio de um brinde para
cada uma. Muita conversa e risos. A criança, filha de uma das professoras, passa por
alguns colos, até que adormece no colo da outra professora. Tiro fotos, me despeço,
pego a Kombi com Dna. Creusa, descemos e nos despedimos.
Ônibus de volta, o motor berrando no ouvido do motorista. Lembra-me Simone
Weil e suas reflexões sobre a britadeira que sacode o corpo do trabalhador (Weil, 1979).
O barulho ensurdece, as marchas ruidosas, enfurecidas, o acelerador ameaçando seguir,
as curvas chacoalhando. O trânsito que congestiona, são 17:00hs. Não ouço conversas
no ônibus. Só ruídos, barulhos, o motor do ônibus e as buzinas das Kombis avisando os
passageiros por recolher. Kombis que à minha frente formam um mar ondulante, que
bate na praia da calçada e voltam para a rua , dezenas de tetos brancos que, parando o
trânsito , vão colhendo e deixando passageiros. Olho para a feição do motorista
imaginado sua impotência diante daquela lentidão, o congestionamento. Ele mais se
apoia do que toma a direção do ônibus, debruça-se sobre ela, e olha, apenas olha, com o
olhar de quem conhece, re-conhece , aquele mar de ônibus, de Kombis, entremeado por
semáforos vermelhos, incrivelmente vermelhos.
Vou me aproximando da FIOCRUZ, reconheço a Vila do João. Desço cansada,
com calor, desgastada pela viagem de volta. Entro no prédio, no ELOS, no ar
condicionado e o calor de onde eu vinha me volta a mente.
32
Os grupos com os quais conversei e convivi
Tendo apresentado meus primeiros olhares sobre os grupos e sobre a Região da
Leopoldina ao relatar minhas primeiras aproximações, pretendo, nesta seção, aprofundar
e ampliar as informações sobre cada um dos grupos com os quais conversei sobre os
processos educativos presentes em trabalhos entre comunidades. Para tanto, valer-me-ei
dos dados obtidos através dos procedimentos já relatados na Metodologia sendo que,
para cada grupo, especificarei as fontes dos dados. Com estes grupos convivi em
diferentes oportunidades e intensidades. Com o grupo do ELOS, a convivência foi diária
até porque se tratava do espaço no qual, cotidianamente, eu desenvolvia meus estudos.
Com os grupos do CEPEL e do Sementinha, participei de algumas reuniões e fiz
entrevistas, como já relatado na Metodologia. Pretendo, ao apresentar o grupo, percorrer
sua história; descrever, mesmo que sucintamente, suas atividades; caminhar por entre
seus sonhos e por à vista os desafios a que se lançam. Ao apresentar os grupos, é
inevitável que também se apresentem Wellington, Carla e Dna Creusa, pois as histórias
dos grupos são também suas histórias nos grupos. Este foi o principal critério para sua
seleção como entrevistados. Mesmo assim, preferi reservar a seção seguinte à esta para
uma apresentação especial de cada um deles, pois há histórias anteriores ao grupo, há
histórias da esfera pessoal, que não serão contempladas nesta atual seção. Acredito que
assim ordenadas todas as apresentações, o lugar de onde fala cada entrevistado vai, aos
poucos, se descortinando. Este processo, espero, propiciará, pari-passo, uma
compreensão mais contextualizada dos dados que foram e serão apresentados bem como
das aproximações que esta pesquisadora arriscará em relação ao objeto de estudo.
Antes, porém, da apresentação dos grupos faz-se necessário uma outra
contextualização, que é a de “sobre que comunidade estas pessoas estarão falando”.
Algo que vai além e em torno da caracterização especifica de seus próprios grupos, que
será feita a seguir. Na seção anterior, apresentei minha aproximação à região da
Leopoldina. Porém há uma questão não apenas conceitual, mas também e
anteriormente, cultural, que requer algumas reflexões, especialmente em um trabalho
que objetiva analisar relações. Trata-se da terminologia favela, bairro, comunidade, que
obviamente, como toda linguagem, é carregada de significados. Esta terminologia bem
como de onde adveio a necessidade de esclarecê-la, são os pontos que abordarei à seguir
para , logo após, apresentar especificamente cada grupo.
33
Leopoldina: comunidade-favela-bairro22.
No projeto deste estudo apresentava-se como objetivo compreender os processos
educativos presentes nas relações entre comunidade acadêmica e grupos organizados de
bairros. Na ocasião da elaboração do projeto quis deixar claro que falava das relações
entre duas comunidades: a acadêmica e a organizada de bairro. Não me agradava
chamar apenas uma delas de “comunidade” – a das favelas e bairros da região da
Leopoldina - como se a acadêmica também não o fosse. No entanto, percebi que a
palavra “bairro” não era utilizada pelas pessoas com as quais eu convivia. Após uma
rápida conversa com a sanitarista do Posto da Vila do João sobre esse tema, entendi, que
ao falar de comunidade, estávamos falando daqueles bairros e favelas da região da
Leopoldina. Assim, o que meu imaginário projetivo não contava era que, de saída, havia
uma questão não apenas conceitual no projeto, mas de visão de mundo e de
conhecimento de realidade, que obviamente direcionam a escolha de conceitos. Quando
eu imaginava que encontraria as pessoas do ELOS e CEPEL se relacionando com
grupos e bairros, os encontrei se relacionando com comunidades, que não
necessariamente de bairros. Comunidade, vim a entender depois, até poderia ser bairro,
mas não bairro de classe média. Poderia ser também, favela. Poderia ainda se situar num
espaço desse continuum que leva uma favela a ser bairro. Para contextualizar essa
geografia social e cultural, pois meu estudo pretendeu exatamente analisar as relações
entre pessoas de academia e pessoas dessas comunidades, uma das primeiras perguntas
específicas de meu roteiro foi exatamente sobre os conceitos de favela, bairro e
comunidade. Com maiores ou menores detalhes na caracterização das diferenças
conceituais, os 3 entrevistados concordaram em que elas existem, seja no âmbito
concreto das infraestruturas urbanas seja no âmbito cultural. Assim, não só as questões
urbanas, administrativas e de infraestrutura definem o que é e que não é bairro, favela e
comunidade mas também há as questões do pertencimento e de “onde se olha”, ou seja,
qual é o parâmetro cultural para definição dos atributos sócio-culturais que
diferenciariam bairro, favela, comunidade, o “eu” do “outro”.
Favela; bairro, favela-bairro:
Sem desconsiderar as questões culturais, para Wellington a diferenciação entre
favela e bairro é, de início, administrativa, uma vez que a Prefeitura define o que é
22Os dados para esta análise foram obtidos através das entrevistas semi-estruturadas.
34
bairro. Ele lembra que há cidades do Nordeste em que certos bairros se encontram em
piores condições que as favelas do Rio e, no entanto, a prefeitura daquelas cidades os
definem como “bairros”. Sobre infraestrutura, Carla e Dna. Creusa destacam que no
bairro há uma maior presença do poder público e dos serviços sociais e de
infraestrutura. No bairro tem coleta de lixo regular, serviço de correio, segurança,
banco, escola, creche credenciada pela Prefeitura, água encanada, esgoto, posto de
saúde, organização de ruas e das casas nessas ruas, o bairro é bem-tratado. A Prefeitura
tem obrigatoriedade para com os bairros, lembra Dna. Creusa, pois quando uma favela
passa a ser bairro, a Prefeitura deve providenciar o saneamento básico, exemplifica. A
favela é quase que definida pela negação, ou pela ausência daquilo que tem no bairro;
por exemplo, enquanto não é bairro, a prefeitura “não tem tanto cuidado com a gente”
(Dna Creusa).
“Vou te dar um exemplo: nos bairros têm coleta de lixo regular, nas favelas
não. [...]na cidade do Rio de Janeiro a COMLURB repassa pro presidente
da Associação de Moradores, pro gestor local uma pequena verba, e criou
a figura do gari comunitário. Mas também é uma coisa irrisória. Você tem
assim, dois garis comunitários, isso sem material pra trabalhar, sem roupa
adequada que os garis comuns têm, né, bota, luva, caminhão, não tem nada
disso. No máximo eles têm uma vassoura, uma pá, no máximo. Um
carrinho, no máximo, e uma camisetinha, e não têm roupa pra trabalhar.
Eu fiz dois encontros com eles, esse semestre e a situação deles é muito
difícil. Então, têm dois garis pra limparem vinte ruas e trinta becos, para
darem conta de uma população de 10.000 pessoas, 15.000 pessoas. Sem
equipamento, sem moto, sem trator, sem carro, sem nada, sem bota, sem
luva, sem nada. Então, se criou essa história do gari comunitário, mas é um
remendo [...]. Eles não dão conta, são muito sobrecarregados. [...]. Bairro
tem serviço de correios e telégrafos [...] Nas comunidades23 [...] da
Leopoldina, que são a minha especialidade, [...] em geral as cartas vão pra
Associação de Moradores que tem uma caixinha de sapato, com o nome da
rua, o morador vai até a Associação de Moradores, pega aquela caixa, e
procura a sua correspondência ali. O carteiro não vai à porta de ninguém.
Antigamente não tinha luz [...] agora já tem, de uns vinte anos pra
cá”. (Carla)
23 Os entrevistados denominam “favela” também como “comunidade”.
35
As favelas foram abandonadas pelo poder público também devido a questão do
narcotráfico, lembra Carla. A polícia não oferece para as pessoas da favela a mesma
proteção e segurança que oferece as pessoas dos bairros em relação ao banditismo do
narcotráfico, até porque há acordos. As ruas de algumas favelas foram asfaltadas,
porém, Carla lembra que é necessário manutenção, e esta não é feita. Lembra também
que em algumas favelas há postos de saúde, porém, postinhos “de candidatos que
conseguem algum trabalho, Mas, também são poucas as comunidades que têm postos
de saúde, do poder público”.
As favelas, caracteriza Dna Creusa “não tem organização direito, [...], tem
gente de toda a espécie, barraco para tudo quanto era lado [...] barraco de todo jeito”
e esses barracos não estão, necessariamente, organizados em ruas.
Entre a favela e o bairro, há a favela-bairro, as favelas que foram alçadas à
condição administrativa de bairro, porém, que apenas aos poucos, a Prefeitura vai se
fazendo presente
“quando ele passa a ser favela-bairro, então a prefeitura é obrigada a
botar o saneamento certo, bota as coisas boa, as escola, por que toda a
comunidade que transforma em bairro, tem creche credenciada pela
prefeitura. Tem as coisas tudo direitinho. Tem as escolas ali naquele bairro
, bem tratado, do que as favela mesmo” (Dna. Creusa)
Na Maré, segundo Wellington, é possível constatar algumas dessas melhorias,
como água encanada e esgoto, não que estejam à contento. Na sua percepção a Maré
continua sendo uma favela, mesmo que não mais como antigamente. Ele alerta que,
apesar de num determinado momento, a Prefeitura iniciar a atuação administrativa,
antes deste, as pessoas do bairro já trabalhavam na sua melhoria. Exemplifica com
Manguinhos:
“quando eu comecei a trabalhar nessas comunidades [...], comecei em
Manguinhos, mas também vi a Maré. E o que existia na Maré eram
palafitas. Em Manguinhos eram, salvo um ou outro conjuntinho feito pelos
governos antigos para albergar os removidos da Favela do Pinto e das
favelas da Zona Sul, salvo um ou outro desses conjuntos eram tudo aqueles
barracos de zinco, sem telhado, ou de papelão, aqueles barracos feitos com
36
pedaços de tábua, de lata, e tal. Nada disso aqui é mais assim. É exceção.
No Complexo de Manguinhos ou no Complexo da Maré, e quando eu digo
complexo está subtendido, complexo de favelas de Manguinhos e
Complexos de favelas da Maré. Isso não existe mais, nem palafitas na
Maré, porque agora está tudo aterrado, nem em Manguinhos existem mais
aqueles barracos. Não existe mais. O que aconteceu? O governo com
melhorias? Os programas? Nada disso. É a poupança do trabalhador.
Existe uma poupança muito grande no Brasil que não se fala dela, que é a
poupança do trabalhador. Como é que o trabalhador assalariado poupa?
No banco? Não. Ele poupa assim: toda vez que ele receber uma graninha
que sobre do regime dele mensal ele compra ali 100 tijolos, ele compra ali
meia saca de cimento, que eles vendem inclusive dessa forma; ele compra
ali umas telhinhas e ele vai sempre melhorando o barraco dele. A própria
Vila do João foi construída através de um programa governamental mas é
bom saber que todo o aterro ou praticamente todo o aterro já estava feito
pelas próprias pessoas. Então veja que, a partir de um mangue, e eu não
vou falar da questão ecológica, porque... A Maré é maré, e o mangue não é
mais um mangue, agora é um bairro, acabou-se . Então agora vamos falar
do que já está lá. Então é assim, quando você tem seu casebre num terreno
alagado é uma coisa, se o próprio dono vai jogando entulho, entulho e ele
termina aterrando um pouco aquilo, aquilo passa a ter mais valor, inclusive
imobiliário, aquilo ali valoriza, e mesmo que seja um barraco ele já vale
mais, porque não está mais no alagado. E assim foi nos outros lugares que
foram ou não conjunto habitacionais, aconteceu a mesma coisa, os
trabalhadores pouco a pouco foram construindo as suas casinhas de
alvenaria, e tal, e tal, de concreto e por mais que aquilo seja quente”.
Wellington diz que nesses locais, favelas, favelas-bairro, acontece
“...aquela coisa diferente dos ambientes urbanos de classe média por que
você vê claramente as redes sociais acontecendo . Você vê concretamente,
visualmente, você vê o contato das pessoas , você vê as pessoas se
encontrando, você vê as crianças brincando juntas na rua. A arquitetura
facilita isso.”
37
Comunidade:
“Comunidade”, todos concordam, foi uma invenção, segundo Dna. Creusa das
“pessoas, conforme prefeito e coisa, eles acharam que era melhor tratar de
‘comunidade’ do que de ‘favela’, porque eles achavam que quando diz ‘vai numa
favela’ fica tudo já com medo. Eles mesmo deram o nome de ‘comunidade’” . Um nome
que foi sendo apropriado pelas pessoas que moravam nas favelas. Porém, ela destaca, as
pessoas que moram no morro, continuam a dizer que moram no morro. A comunidade,
diz ela, já tem alguma organização, como associação de moradores. Sendo comunidade
organizada é reconhecida por que “tem aquela multidão de pessoa que mora naquele
local e está necessitado” e reivindica junto à Prefeitura de modo organizado. Ou seja,
há favelas que ainda não são “comunidades”. Para Wellington o termo “comunidade”
tem sido usado para favelas que estão se tornando bairros.
Enquanto favela e bairro são termos de cunho administrativos, comunidade não
o é, Wellington acrescenta, e nem sequer depende de questões administrativas. Ele
lembra que o termo advém de outras culturas que não a brasileira e que, no Brasil, este
aparece com as comunidades eclesiais de base, disseminando-se mais no final da década
de 60, início da década de 70. Para ele, essa importação deve ser vista com cuidado,
assim como toda análise e uso do termo “comunidade”, “a linguagem tem que ser
sempre explícita” e que “conceituar é sempre relativo do lugar de onde se veio ou da
experiência anterior que teve”. Carla lembra que antes de ser apenas “comunidade”,
passou de favela para “comunidade carente”. Houve uma crítica ao termo “carente” – de
que?, quem não o é?- e ele foi retirado.
A questão cultural que levou à essa necessidade de trocar o termo favela por
comunidade, todos concordam, é a da discriminação e segregação advindas do
preconceito em relação à favela à qual determinados atributos sociais negativos são
atribuídos. Houve um determinado momento na história, lembra Carla, em que:
“...as pessoas que moram no asfalto passaram a discriminar as pessoas que
moram nas favelas. Então, o que aconteceu? Ser favelado passou a ser um
peso muito grande. A partir do momento que as favelas foram crescendo e a
criminalidade aumentando, ser favelado passou a gerar muito preconceito.
E as pessoas têm dificuldade, de determinado tempo pra cá, de conseguir
emprego quando o contratador percebe que a pessoa mora em favela. Acha
que sempre tá misturado com bandido, e que vai roubar, e que vai não sei
38
quê. Por causa disso, se criou, se importou o termo comunidade pra ser
sinônimo de favela. Eu, particularmente não tenho nenhum problema com
favela, acho favela uma palavra mais bonita do que comunidade, inclusive,
aberta, ‘favela’”.
O termo comunidade passou a ser usado pelos próprios morados das
comunidades, não sem crítica, diz Wellington. Esses moradores, segundo Carla,
solicitam às pessoas que com eles trabalhem que também usem o termo “comunidade”
ao se referirem às favelas ou favelas- bairros onde moram.
Comunidade, diz Wellington, é um termo que foi cunhado pelas pessoas para
“valorizar mais seu espaço”, e “...na medida que se sentem pertencendo à um lugar se
sentem legitimados a dizer: minha comunidade” . Um “jeito carinhoso” de se referir à
onde mora, como disse Dna. Creusa.
No entanto, mesmo com a terminologia de comunidade, referindo-se à favelas
ou favelas-bairro, ou mesmo que uma favela se transforme em bairro, pode não ocorrer
a troca da denominação “favela”. Como diz Wellington “há um componente inercial
dentro da cultura” , especialmente no imaginário das pessoas de classe média, para
quem aquele espaço é favela e continuará sendo favela pois nele há atributos de favela,
mesmo que haja outros de bairro: “uma vez favela, sempre favela” . Quais atributos?
São lugares que “ por melhor que sejam [...], predominam trabalhadores assalariados,
trabalhadores manuais [...]” (Wellington).
Uma vez apresentada a terminologia que diferencia favela, bairro, favela-bairro e
comunidade passarei, a seguir, a apresentar os grupos.
ELOS- Núcleo de Estudos Locais em Saúde , da FIOCRUZ24 .
O ELOS - Núcleo de Estudos Locais em Saúde, é uma instância
interdepartamental da Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP, unidade técnico-
científica da Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ25. Participam pesquisadores,
docentes, estagiários, bolsistas e pessoal de apoio técnico, com diversas formações
24 As fontes para os dados sobre o ELOS foram: a Home Page do ELOS (http://www.ead.fiocruz.br/elos ),o Relatório de Atividades de 1995-1996 (ELOS, 1997) , a seção de “Apresentação” dos “Indicadores deSaúde: Ilha do governador e Leopoldina” ( Araujo, 1998), minhas anotações das reuniões do ELOS e asentrevistas.25 A FIOCRUZ agrega 11 unidades técnico-científicas, entre elas a ENSP.
39
profissionais e interesses temáticos específicos. Três Departamentos participam mais de
perto do ELOS: Depto. Endemias Samuel Pessoa (Sub área “Endemias, ambiente e
sociedade”), Depto. de Epidemiologia (área “Metodologias quantitativas em saúde”) e
Depto. de Ciências Sociais.
São objetivos gerais do ELOS:
• desenvolvimento de modelo operacional e técnico-metodológico em saúde,
através da articulação entre academia, serviços e sociedade civil, dirigidas à
implementação e gestão de distrito sanitário em área urbana complexa;
• desenvolvimento didático-pedagógico para formação e aperfeiçoamento de
recursos humanos para a saúde, orientado à aprendizagem em cenários da
vida real;
• facilitação do envolvimento e participação da população na gestão da sua
realidade de saúde.
É também, o ELOS, um esforço para tornar simultâneos no tempo e no espaço e
igualmente priorizados, a assessoria ao movimento comunitário, a pesquisa operacional,
a reorganização dos serviços, o ensino e a formação de recursos humanos para a saúde.
Ou como disse Eduardo “articula ensino, pesquisa e cooperação” , nesta última
prestando consultoria, assessoria e extensão. As comunidades com as quais o ELOS
trabalha localizam-se na região da Leopoldina e na região da Ilha do Governador26.
Quanto ao nome “ELOS”, conta Weelington:
“Nós demoramos um tempo, nós fundamos esse núcleo e nós não tínhamos
ainda uma sigla boa para ele. E nós acabamos por encontrar uma sigla
ótima, por que os elos dizem respeito a tudo. Aos elos entre os pares
acadêmicos, entre os parceiros, entre os simpatizantes, entre os diversos
saberes, entre as diversas disciplinas, e elos entre disciplinas e
indisciplinas.”
Em relação as instituições acadêmicas, o ELOS participa de projeto integrado de
pesquisa coordenado por Profa. Dra. Regina Maria Marteleto, da UJRJ27 e do curso de
Especialização “Educação e Saúde”, da ENSP. Já as relações com a ONG CEPEL se
davam através da Rede de Solidariedade da Leopoldina, que na época desta pesquisa
26 Na Ilha do Governador localizam-se os bairros da Ilha do Fundão, Galeão, Portuguesa, JardimGuanabara, Moneró, Tauá, Jardim Carioca, Cacuia, Bancários, Freguesia, Cocotá, Praia da Bandeira,Pitangueiras, Zumbi e Ribeira.27 Do IBICT - Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, da Escola de Comunicação daUniversidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Projeto: “Gestão do Conhecimento e da Informação naintervenção social – as redes de movimentos sociais no campo da educação popular e saúde ”
40
encontrava-se, nas palavras de Eduardo, “em fase terminal”. Deste modo, as formas
como se dão as relações com o CEPEL possivelmente iriam ser replanejadas.
A criação do ELOS em 1995 propiciou um novo espaço na Escola Nacional de
Saúde Pública (ENSP) capaz de reunir docentes e pesquisadores envolvidos com o
ensino e a investigação sobre os serviços e a sua relação com a população usuária no
nível local. Além disso prevê um amplo esquema de parcerias, mas com o intuito
deliberado de testar hipóteses de trabalho, buscando experimentos possíveis de serem
replicados em outras instituições. Esta experiência ofereceu ao Programa de Residência
em Saúde Pública da ENSP e à Secretaria Municipal de Saúde do município do Rio de
Janeiro, a oportunidade da organização de um sistema de informação em saúde de
características democráticas na região, constituída pela região de Leopoldina e da Ilha
do Governador.
Esse programa de residência em Medicina Preventiva e Social (que funcionou de
1979 a 1996/97) forneceu uma experiência importante para a criação do ELOS,
conforme conta Wellington, o primeiro coordenador do Núcleo:
“O que existia era um programa de residência que era um programa de
extensão também, porque ele lidava com comunidades e com serviços de
saúde [...]. Um programa multidisciplinar que era muito interessante
porque os alunos se inseriam no serviço de saúde [...] E principalmente
não estudar esse serviço, empinar o nariz e cair fora dizendo ‘não presta’,
mas estudar esse serviço e qualquer que fosse o resultado meter a mão na
massa, procurando interagir com os profissionais de saúde no
encaminhamento dos problemas detectados.”
Inicialmente, o Elos foi financiado pela Fundação Kellog, na época em que essa
Fundação vinha financiando o Programa de Apoio à Reforma Sanitária (PARES) para a
ENSP (década de 90). Ao terminar esse programa e o financiamento, um crédito
remanescente pode ser utilizado desde que apresentado um novo projeto, que não nos
moldes do PARES. O então chefe do Departamento de Endemias convidou Wellington
a enviar seu projeto, como ele conta:
“...eu coordenei durante alguns anos esse programa de residência [...]
Desde que eu entrei na Oswaldo Cruz, eu trabalhava antes do lado de lá,
em Manguinhos, hoje Comando Vermelho e depois vim trabalhar na Maré,
41
hoje Terceiro Comando. Quer dizer, já trabalhei na área dos dois
comandos, né? É que essa coisa dos comandos é muito forte [...] eu tinha
algumas coisas escritas, um tanto meio programáticas e que se
relacionavam com trabalhar com a população, com quem eu sempre
trabalhei.[...] não era um projeto acabado, era um meio-projeto... Eram
idéias que estavam no papel relativas a repensar um pouco a epidemiologia
voltada para os serviços de saúde, para população, ou seja, epidemiologia
no nível local.”
O projeto do ELOS foi apresentado e sua instalação financiada pela Kellog.
Na linha pedagógica, são as características principais do entendimento do ELOS
sobre educação e saúde e a sua conseqüente atuação nessa linha: a simultaneidade do
ensino, investigação e extensão; a ambientação pedagógica em cenários concretos; o
reconhecimento de um saber popular em saúde. Essa proposta proporciona uma
vivenciação do aprendizado que extrapola a mera relação professor –aluno, escola-aluno
e conteúdo programáticos. Proporciona, além da quebra de hierarquias, um ambiente
humano saudável, um compromisso com o produto e um produto comprometido. Não
só alunos da ENSP participam do ELOS, mas também pessoas de outras instituições
como o CEPEL, ou do Distrito Sanitário. As idéias para o trabalho com profissionais de
saúde da região também surgiram a partir da experiência com a residência em Medicina
Preventiva e Social, como conta Wellington:
“Então a gente começou a pensar assim, a gente que eu digo sou eu e
alguns outros poucos, a gente começou a pensar assim: Ora, se os serviços
de saúde da Leopoldina são muito bons para formar esses nossos
residentes28, porque eles não se prestariam para formar, de forma
continuada, os próprios profissionais que lá trabalham? Era uma idéia
muito simples, e continua sendo uma idéia muito simples. A dificuldade
maior é você vencer a pedreira, que é o serviço de saúde, a rotina de um
serviço de saúde é uma pedreira, mas tem que quebrar, tem que romper
com a idéia de pedreira. Mas tem que fazer de outra forma essa cois. Tem
que haver reflexão relacionada ao nível local. Na verdade isso tudo tem a
ver com a descentralização do serviço de saúde, a tomada de decisão no
nível local e com a participação popular [...] pegar ao pé da letra o SUS.”
28 Pois o programa de residência referenciava-se no conceito de ambientação pedagógica.
42
Na linha de difusão de informações, o ELOS desenvolveu um programa
radiofônico na rádio comunitária da Maré com participação de lideranças, tendo sido
levado ao ar de maio de 1995 à dezembro de 1996. Produz o Boletim periódico (Anexo
2), o Observatório de Saúde (na home page do ELOS) e tem se valido de outros meios
de difusão como o jornal do CEPEL, (Se liga no Sinal, no Anexo 3). Recentemente
iniciou outros dois projetos, Crônicas Populares e Obra Aberta.
O “Observatório de Saúde” iniciou-se em meados do ano 2000. É um sistema de
informações organizado sobre os problemas de saúde da população dos bairros da
região da Leopoldina e da Ilha do Governador. A característica desse sistema é definida
pelo olhar e preocupações das pessoas atuantes nos movimentos, grupos e entidades
sociais da região. As questões de saúde identificadas falam da luta da população pela
saúde enquanto conhecimento, recurso, serviço e direito. O processo de construção de
conhecimento em saúde no Observatório é compartilhada por pessoas atuantes nos
movimentos e grupos sociais, nos serviços e nas instituições de ensino e pesquisa. As
pessoas procuram, através deste processo, compreender as razões dos problemas de
saúde e apontar soluções alternativas para a atuação dos serviços, o funcionamento do
sistema e a orientação das políticas públicas de saúde no nível local.
O ELOS procura ser uma janela aberta entre a sociedade civil e o Estado do
ponto de vista das pessoas, ativistas, lideranças, técnicos, educadores que têm a
experiência das condições nas quais vive a maioria da população. Nesse sentido, o
projeto “Crônicas Populares”, apresenta-se contra o desperdício das experiências que
fazem parte de um conhecimento espontâneo, construído ao longo das vidas. Através do
“Crônicas Populares”, numa verdadeira polifonia de vozes, aparecem as narrativas
destas experiências.
Quanto à “Obra Aberta”, parte do pressuposto de que conhecer é fazer parte de
um processo coletivo. Sem conhecimento a vida social seria impossível. A apresentação
deste projeto lembra que o conhecimento é parte de um tesouro mais amplo, o da
cultura, legado por gerações dentro de diversos modos de vida, de civilizações. E há
mais de um tipo de conhecimento: científico, artístico, religioso, filosófico e comum,
este último a síntese espontânea de todos os anteriores. Através de Obra Aberta, o
ELOS pretende resgatar o sentido social da produção do conhecimento, criando um
espaço onde os elos desse processo coletivo possam ser estabelecidos. Em uma obra
aberta a profusão dos sentidos vem do seu não acabamento essencial. O ponto de partida
para este projeto são os comentários que os grafiteiros estão fazendo nos muros da
43
Maré: da sacralidade da vida à glória da morte. O mote é o grafite, o Elos fotografa o
grafite e coloca na página: o ponto de vista da população como uma janela sobre saúde.
Não se está dando apenas um tratamento acadêmico às temáticas, por exemplo,
violência, pois na Obra Aberta cada um pode compartilhar seu conhecimento dessa
temática a partir de um determinado lugar. Nas discussões sobre como operacionalizar a
Obra Aberta, estava claro para os membros do ELOS que tecnologia alguma vai ter
resultado se não houver organização e que para ver além daquilo que é feito é preciso
ter uma consciência política do que é feito. Que era necessário construir essa “rede”, dar
os primeiros passos e ir expandindo. Pois o que se quer aqui é uma produção intelectual
coletiva a partir de uma cultura comum, já que no entendimento do ELOS, o
conhecimento dever ser apropriado pelas pessoas e ser difundido. A tecnologia a ser
usada neste projeto deve ser adequada ao ritmo daqueles que o produzem já que,
produção, aqui , tem um sentido social.
Na linha de alternativas operacionais para a gestão do distrito sanitário,
estabeleceu parcerias com o Conselho Distrital e Secretaria Municipal de Saúde. Em
parceria com o CEPEL e com o Conselho Distrital produziu, em dezembro de 1996, a
Oficina “Controle Público do SUS: informação e participação popular”, com
participação de alunos da ENSP e profissionais de saúde e moradores da área. No
período do pós-doutorado pude acompanhar a participação do ELOS na organização e
implementação de atividades da área distrital, em relação ao combate à dengue, com a
participação de professores e alunos da ENSP e profissionais de saúde da área, incluídos
mais de 200 agentes comunitários de saúde. O projeto que hora está sendo gestado sob
coordenação do ELOS, prevê o trabalho de arte educação com jovens da Maré
envolvendo, além de outros grupos da FIOCRUZ, as associações e o Posto de Saúde
dessa região. É também produto do ELOS os “Indicadores de Saúde: Ilha do
Governador e Leopoldina” 29, que apresenta uma série de dados sobre essa região, tais
como serviços públicos, saneamento básico, indicadores de mortalidade e natalidade
entre outros.
O quadro específico do ELOS, vinculado à ENSP, não é grande, desde o seu
início, como conta Weelington:
“...mesmo na Escola de Saúde Pública eram poucos; tanto é, que aqui no
Elos nós sempre tivemos dificuldade com equipe. Dos próprios quadros da
29 ARAUJO (1998).
44
fundação nós éramos muito poucos. Temos atualmente, no Elos, duas
pessoas do quadro da Fundação30, direto no Elos e indiretamente nós temos
umas quatro pessoas, inclusive os nossos conselheiros.”.
Uma das características que mais me chamou a atenção no ELOS é a capacidade
de gerar idéias, projetos, metodologias e parcerias. Nesse sentido, Wellington vê um
constante desafio para o ELOS, descobrir uma linguagem que deixe claro outras formas
de olhar e conhecer o mundo assim como a necessidade do compromisso social nos
trabalhos acadêmicos em saúde. Esse desafio coloca o trabalho do Núcleo no “campo da
invenção”:
“Eu acredito que a gente possa superar, mesmo dentro da academia, esse
período que estamos vivendo. É um período em que não só há um
afastamento da preocupação com o social como há também,
concomitantemente, um colonialismo intelectual muito grande das pessoas
da academia,[...]. Não quero dizer que a gente jogue pro alto tudo o que é
desenvolvido no Canadá, nos Estados Unidos e na Europa, eu quero dizer
que nós temos que pegar todas as referências e criticamente ver o que se
adequa à nossa situação.[...] Talvez nós não tenhamos conseguido a
palavra certa pra divulgar, pra tornar visível essa coisa. Eu creio que em
parte é isso. Nós temos necessidade de descobrir a linguagem acertada,
veemente mas não agressiva, e que deixe muito claro toda essa situação que
se está vivendo, porque na medida em que o pensamento hegemônico está
colonizado (eu insisto nessa imagem), então as pessoas não percebem, se
você usar a linguagem que normalmente se usa, mesmo a linguagem crítica.
Então uma das necessidades atuais é a gente descobrir a forma adequada, a
palavra certa. Aí se tá no campo da invenção, pra que de forma simpática e
sem agredir as pessoas, mas dizendo as coisas como elas são, você possa
mostrar que existem outras formas de olhar pro mundo que não essa de
fazer o que é determinado externamente, embora com um discurso...
apropriado da esquerda, né. Que é muito como a gente vê hoje, as práticas
mais conservadoras adotando o discurso da esquerda, ou supostamente de
esquerda”.
30 FIOCRUZ
45
CEPEL – Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina31.
O CEPEL é uma organização não governamental, entidade sem fins lucrativos,
suprapartidária, suprareligiosa, de utilidade pública estadual, foi fundado em 1988 com
o objetivo de fornecer subsídios para a população da Região da Leopoldina e em
particular, para os movimentos organizados desta mesma região que procuram melhorar
suas condições de vida. Diz Valla “ O CEPEL, quem fundou foi Eduardo e eu, eramos
do Depto de Ciências Sociais da FIOCRUZ. Houve muitos conflitos, oposições ào
CEPEL e foi por isso que tentei colocar o CEPEL fora da FIOCRUZ. O primeiro
escritório foi no bairro de Olaria, onde ficou muitos anos”. Está hoje localizado em
Manguinhos, num prédio da FIOCRUZ, como conta Valla: “quando o CEPEL decidiu
vir para cá, tomamos emprestada uma sala do ELOS, que tinha muito espaço. [...]
Transferindo o CEPEL para cá, ganhava tempo, pois é só atravessar a Avenida
Brasil32. A ida para a Leopoldina33 demorava meia hora.” .
Em torno de 1989/1990, o CEPEL se envolve com o problema da falta de dados
sobre a epidemia da dengue e o confronto entre os dados governamentais (da prefeitura
do Rio de Janeiro), negando a epidemia, e os da população, que contabilizavam os
casos. Os dados da população pressionaram o governo a reconhecer, publicamente, a
epidemia. Sobre este trabalho inicial, diz Valla:
“O CEPEL nasce na primeira epidemia de dengue, 1989, 1990, quando o
CEPEL faz parte de um movimento que foi criado dentro da ENSP, uma
oficina. Antes de existir o CEPEL, existia um movimento e o ‘Núcleo de
Educação e Cidadania’, coordenado por Eduardo e eu. Eu coordenava
oficinas com a presença da comunidade e de profissionais. Foi onde nasceu
a idéia de construção do conhecimento. Nasceu o termo ‘Se liga,
Leopoldina’ a partir da idéia do Betinho ‘Se liga no Rio’. O termo ‘SINAL’
significa Sistema de Informação à Nível Local. O movimento chegou a
prefeitura que teve que reconhecer a epidemia da dengue”
31 As informações sobre o CEPEL foram obtidas da home page do ELOS,de exemplares do jornal “Seliga no Sinal” (especialmente os números 50 e 51), do livro “Conhecendo a região da Leopoldina:algumas iniciativas sociais” (Cunha e Valla, 1999), das anotações da reunião do CEPEL para ofechamento do “Se liga no Sinal” e das entrevistas.32 O Depto de Endemias fica no campus central da FIOCRUZ e o CEPEL no prédio de expansão dessecampus, ambos na avenida Brasil, em frente um para o outro.
46
Esse movimento em torno da dengue foi base para a proposta e a execução de “
A primeira pesquisa importante [...] sobre a água: distribuição das águas nas favelas
da Leopoldina.” (Valla).
Valla conta que as atividades do CEPEL aconteciam no bairro da Penha
“ Escolhemos a Penha de propósito, não queria me envolver com bairros próximos da
FIOCRUZ”. Essa escolha significava deslocamentos, já que Valla também trabalhava
no campus da FIOCRUZ, localizado no bairro de Manguinhos ou seja “ ... correndo de
carro por toda a Leopoldina...a noite , fim de semana. Não sei de onde tirei tanta
energia” .
Assim, de uma proposta de acompanhar de forma permanente os caminhos das
classes populares da região da Leopoldina, foi fundado o CEPEL, por profissionais da
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/ Fiocruz), juntamente com lideranças
populares da região da Leopoldina. “No início do CEPEL todo mundo era militante e
havia pouca academia. Cada vez que a academia se torna mais forte, há mais
problemas no CEPEL”, analisa Valla. Houve uma fase inicial, nos primeiros anos , em
que todos eram militantes e voluntários. Depois começou o que Valla denomina como
sendo “a época de salários do CEPEL” , pois foi necessário começar a remunerar as
pessoas para que pudesse haver a continuidade dos trabalhos. Mesmo não sendo
formado, majoritariamente por pessoas com vínculos em instituições acadêmicas, Kena
analisa que o CEPEL “não deixa de ser academia, na medida que trabalha com
conhecimento intelectualizado, que passa por levantamento de hipóteses, informações
para as hipóteses, mesmo que não esteja num marco de pesquisa o tempo todo” e nesse
sentido o CEPEL está em constante relação com outros meios através dos quais as
pessoas constróem conhecimento.
O CEPEL foi fundado na perspectiva de oferecer sistematicamente subsídios
técnicos para os grupos populares organizados, na busca por pressionar os governantes a
gastar dinheiro público prioritariamente em torno das necessidades básicas (saneamento,
assistência médica, escola pública de qualidade, por exemplo) da maioria da população,
isto é, das classes populares. Os técnicos do CEPEL tentam fazer uma triagem e uma
combinação dos dados gerados pelo governo, modulados pela grande imprensa, e
aqueles produzidos pela academia (universidades, centros de pesquisa e centros de
informação) acrescidos das informações da população, engengradas pela experiência de
vida das comunidades, em forma de relatos, opiniões e entrevistas. A conjunção dessas
três fontes permite criar uma idéia mais clara da realidade, que a do próprio governo ou
33 Onde funcionava a antiga sede do CEPEL.
47
da própria universidade. Foi assim que o CEPEL surgiu, na primeira epidemia da
dengue.
Recebe apoio da DKA – Juventude Católica Austríaca/ KFS, FASE, Fundação
Kellog e da ENSP/FIOCRUZ. Atualmente é coordenado por Kena. O CEPEL tem hoje
vínculo com mais de 20 grupos populares da Leopoldina tendo, no momento, como diz
Carla, que redimensionar suas ativividades pois “é muita demanda e pouca gente,
poucos recursos. E a Leopoldina explodindo em carências de tudo” . Quanto à
constituição, o CEPEL, diz Kena, pode ser observado como um “conjunto de
individualidades que estabelecem acordos no nível intelectual, teórico” . No entanto, há
algo anterior aos acordos teóricos e intelectuais, que se refere a construção histórica
desses indivíduos, diz ela. Quando as relações entre essas pessoas e com a comunidade
acontecem na prática, podem desvelar-se contradições entre essa prática e os princípios
acordados, como por exemplo, relações paternalistas ou de competição; “cada um de
nós tem bagagens diferentes, as relações que se estabelecem dependem muito de como
cada indivíduo vai se colocar nessa situação” , diz Kena. Especialmente a partir de
2000, quando entram no CEPEL, Carla e Kena, e esta assume a coordenação, a ONG
vem passando por um processo de constituir-se enquanto grupo. Carla conta que o
CEPEL
“... caminha para se constituir como um grupo, porque o CEPEL é muito
pequeno. Tem uma coordenação, que é a Kena, que é coordenação
gerência, tem a F. que é a pessoa do administrativo, é a secretária [...],
tem o G., que é mais dedicado a documentação e agora eu, que permaneço,
estou desde 2000, no CEPEL, e duas pessoas novas, que entraram no lugar
de outras que saíram. Que entraram em setembro e que nós estamos em
dezembro, as pessoas estão tomando pé ainda, das coisa, né. Conhecendo o
CEPEL, conhecendo as pessoas que estão. E dois, uma auxiliar de pesquisa
que é a G., que está atualizando o nosso cadastro e o P., que é um office
boy, que a gente está esperando que ele se prepare para assumir o Centro
de Documentação, depois. É um menino que já trabalhou no Museu da
Vida, já fez estágio lá. Então, a gente espera que ele fique na equipe,
porque o G. deve sair [...]. Então, assim, eu acho que o CEPEL começa a se
constituir como um grupo. Mas nós não tivemos nem um ano de experiência
de trabalho, todos juntos, nem seis meses. E eu, particularmente, tenho uma
defazagem com relação à essas pessoas que chegaram porque, logo quando
48
elas chegaram eu fiquei doente, e eu tinha 20 dias de férias pra tirar, eu
tirei. Então, eu continuei indo até os grupos e tal, mas aqui, preferi me
desligar um pouco do escritório, eu estava muito estressada. Eu não tenho
ainda muita experiência do CEPEL, como esse grupo novo. Eu acho que o
CEPEL tende a se constituir como um grupo, mas por enquanto, tem visões
diferenciadas e tem inserções diferenciadas, militâncias diferenciadas,
conversões diferenciadas à causa do pobre e a causa do trabalho com os
grupos, a causa da pobreza. Isso é mais ou menos o que eu posso visualizar,
mas eu não tenho idéia do CEPEL como grupo, ainda. Tinha, até o último,
que saiu, saiu o F., eu tinha uma idéia, mas agora é tudo muito novo. Até
mesmo o P. e a G., os dois mais novinhos, estão há pouco tempo. A gente
está se reorganizando.”
As atividades principais do CEPEL são:
• Pesquisa: levantamento de dados e pesquisas sobre as condições de vida e as
experiências de grupos populares nos bairros e comunidades da Leopoldina;
• Cadastramento de documentos, organização, manutenção e divulgação do CED-
VIDA - Centro de Documentação sobre as condições de vida da Leopoldina;
• Atualização permanente do cadastro de entidades e grupos que atuam na área de
educação popular e saúde na Leopoldina;
• Produção e distribuição do um jornal tablóide trimestral: "Se liga no sinal" e do
encarte temático "Caderno S";
• Formação de parcerias com grupos organizados através de assessoria e apoio
técnico;
• Assento no Conselho distrital da Saúde da AP 3.1 (que engloba a região de
Leopoldina e da Ilha do Governador);
• Participação da Rede de Educação Popular e Saúde (REDPOP) como uma das
entidades organizadoras.
O Jornal “Se liga no Sinal”, que pode ser encontrado Anexo 3, trabalha assuntos
que, embora locais (região da Leopoldina) se conectam e se identificam com os da
cidade do Rio de Janeiro e além. É um informativo voltado para a divulgação de
informações sobre a região, sobre as experiências de grupos populares e discussão de
problemas relativos a região e ao município. O Jornal fornecesse subsídios e apoio para
grupos da região, tanto para reinvidicações quanto para estudos ou pesquisas. O jornal
também é uma forma do CEPEL devolver os dados e informações que são coletados
49
assim como divulgar o trabalho dos grupos organizados da região. No jornal há um
caderno temático (“Caderno S”), que desenvolve artigos a partir de um tema gerador,
coordenado por pessoas de fora do CEPEL. Na sessão “Fique por dentro” o tema é “o
que aconteceu, está acontecendo ou acontecerá na região da Leopoldina”. Além desse
tema a sessão se propõe a selecionar da grande imprensa temas que o CEPEL considera
importante divulgar e que têm relação com a vida das pessoas da região, como por
exemplo, o que está acontecendo em relação ao salário mínimo ou renda familiar.
O trabalho de levantamento na região e de divulgação dos grupos e iniciativas
também teve como produto o livro “Conhecendo a região da Leopoldina: algumas
iniciativas sociais” 34 , editado como sendo uma primeira tentativa de rastrear e divulgar
as muitas iniciativas sociais da região. Além desse livro, o CEPEL também publicou:
• “Participação popular e saúde”, com apoio do CDDH de Petrópolis, 1989;
• “Saúde da mulher: salvação da vida”, com apoio do CDDH de Petrópolis, 1990;
• “Conhecendo a Região da Leopoldina: informações básicas”, com o apoio da
Escola Nacional de Saúde Pública /Fiocruz, 1995;
• “Conversando sobre AIDS em família: manual de informações básicas, com o
apoio do Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde, 1997;
• “Guia do bem-estar: um trabalho de esperança”, com apoio da ENSP-FIOCRUZ,
1998.
Em face do aumento do desemprego e da pobreza e diante do investimento
governamental insuficiente para a solução de problemas básicos que afligem as classes
populares, a equipe do CEPEL vem dirigindo sua atenção de forma a compreender
como os grupos populares da Leopoldina, em face da crise, vêm se defendendo e
buscando a sua sobrevivência. Para executar seus trabalhos, um dos principais
procedimentos que o que o CEPEL utiliza é a participação sistemática nas reuniões que
acontecem na Leopoldina a fim de verificar quem está se reunindo e o que está
propondo, assumindo também um papel de articulador. Esse procedimento, que foi por
algum tempo deixado de lado, está sendo retomado no CEPEL, no que Valla chama de
“volta às origens”.
“A característica da gente é estar presente no meio da população de forma
sistemática. A própria idéia de projetos de pesquisa vem do encontrar-se de
forma sistemática com a comunidade. Talvez a gente tivesse uma certa
característica de basismo, que eu não vejo como termo pejorativo. Eu trago
50
isto è proposta de trabalho com a população [...] você só vai saber o que a
população pensa se estiver junto com ela, se reunindo.”
O conhecimento e o entendimento da população a respeito das questões sobre as
quais se debruça o CEPEL é parte fundamental da produção de seu próprio
conhecimento. Por exemplo, na reunião de fechamento do “Se liga no Sinal”, ao
discutir-se a matéria sobre opções de lazer na Leopoldina, os membros da ONG
destacaram que a matéria não deveria partir apenas da concepção de lazer da classe
média (citou-se “ cinema-pizzaria”). Reafirmaram a importância da matéria contemplar a
concepção de lazer da população da Leopoldina. Perguntava-se “como as pessoas que
moram na Leopoldina usam seu tempo livre?” e alertava-se que a matéria deveria ser
também expressão dessa idéia de lazer.
No início, o trabalho do CEPEL, no que se refere à pesquisa, relacionava-se mais
à indicadores, devolvendo as informações através de seu jornal, livros etc. Não
deixando este aspecto de lado, mas a ele acrescentando, Kena conta que o CEPEL, a
partir de 2000 “...começou um novo projeto de dar mais apoio , [...] assessoria e
análise institucional [...] contempla um corpo à corpo mais constante , havendo pelo
menos uma reunião mensal com cada grupo que no início eram 3, e hoje são 8”. Nesse
processo
“o CEPEL foi mudando de perfil, é novo mas está correspondendo ao
princípio da articulação, fazer pontes de forma mais exaustiva do que antes,
utilizando-se para isso não apenas do Jornal ou do Caderno, mas também
Seminários e Oficinas sobre o que os grupos estão precisando discutir e
não só aquilo que a pesquisa precisa discutir. São momentos distintos que
conservam princípios e linhas de trabalho”.
Reunir-se com os “grupos”, pois, entende o CEPEL, que os grupos estão
formando ações de solidariedade para resgate da ética e dos valores. O que os grupos
estão fazendo é mais do que um fórum, rede; é aliança, compromisso, pacto.
Do trabalho de compreensão dos movimentos das classes populares, faz parte a
pesquisa “Religiosidade popular e saúde”, numa tentativa de observar e discutir o
movimento da população em direção aos centros religiosos, principalmente as igrejas
pentecostais e neopentecostais. A pesquisa pretende também discutir o apoio social
34 Cunha e Valla, 1999.
51
oferecido pelos centros religiosos à população. Essa pesquisa interessou à Carla que já
havia participado do CEPEL em seu início, como voluntária.
Em relação a novos trabalhos, no momento em que realizava este estudo, estava
sendo gestado o projeto para 2003. Na reunião em que este foi discutido, resgatou-se a
participação mais próxima com os grupos, o retorno às origens. Tratou-se também que o
CEPEL poderia ter como objetivo do trabalho, a qualidade de vida. Entendeu-se nessa
reunião que o conceito de “qualidade de vida” daria a amplitude suficiente para
contemplar todos os projetos. Qualidade não é só acesso à educação, saúde, mas ao tipo
de relação que se estabelece com os outros, e aí estamos no campo dos direitos. Quando
se fala em qualidade de vida, fala-se em ecologia, em conflitos sócio-ambientais. Fala-
se de apoio social, já que este pode estar presente nas situações de conflitos sócio-
ambientais. Nesse sentido, o CEPEL poderia trabalhar como o apoio pode se dar,
através da visão da educação popular e da construção compartilhada do conhecimento.
“Como, no meio dos conflitos que é a Leopoldina, podemos elevar e garantir a
qualidade de vida das pessoas?” 35. Esse era, naquele momento da reunião, o desafio a
ser respondido no projeto para 2003.
Em termos projetivos, o CEPEL também analisa a proposta de Valla de a ONG
fazer parte de uma coordenação da Leopoldina na questão da fome. Na reunião de
fechamento do jornal “Se liga no Sinal”, Valla expôs com detalhes sua proposta. O
CEPEL proporia para a Leopoldina pensar, em conjunto com o CEPEL e com algumas
pessoas da FIOCRUZ, uma reedição da campanha contra a fome e a favor da vida,
contra a miséria. A FIOCRUZ já tem uma experiência na campanha contra a fome e há
anos atrás o CEPEL foi aglutinador da campanha. Nesta reedição, a ONG convidaria os
grupos populares pois, a maior parte já está envolvida (Igrejas, por exemplo). Para este
projeto, Valla propôs uma “...Aliança Solidária da Leopoldina, que não viria em
substituição a outros espaços do CEPEL na Leopoldina, de caráter prático, orgânico”. O
trabalho do CEPEL aqui, seria procurar dar uma forma mais coletiva aos trabalhos que
os grupos já realizam em torno da gravidade da pobreza na região, potencializando esses
trabalhos. Seria uma atuação da ONG de forma concreta, de intervenção. Porém, ao
lado do trabalho de articulação seria também de pesquisa, pois “quem trabalha contra a
fome já tem uma discussão sobre Nutrição, Relação cidade-campo, meio ambiente”. A
questão de pesquisa passaria pela descoberta desse conhecimento. A primeira linha seria
“fazer e articular”. Porém se a ONG ficar só nisso, alerta Valla, ficará basista e não
35 Infelizmente não tive a rapidez necessária para fazer as anotações e registrar também todos os autoresde todas as falas.
52
estará produzindo reflexões sobre os problemas da região. É necessário transformar em
pesquisa, pois esta é fundamental “para ver os caminhos que são apontados pela própria
prática”.
Um outro projeto é um Caderno, que vem sendo construído há 3 anos, sobre os
grupos populares da região. Inicialmente seria um caderno de atividades, no entanto,
está sendo elaborado para ser mais do que isso, um caderno em que conste também a
história como grupo.
A preocupação do resgate da história se mostra nas outras atividades do CEPEL
como na reunião de fechamento do jornal da qual participei. Nessa ocasião, discutia-se
uma matéria sobre Lazer e os membros do CEPEL alertavam para a necessidade da
matéria não se esgotar num mapeamento do que existe hoje nesse tema, na Leopoldina,
mas usar uma matéria já feita anos atrás e “confrontar historicamente”. Essa
preocupação esta aliada à de ter, a ONG, um caráter prático e orgânico, de auxiliar na
luta dos grupos locais, como conta Carla:
“Eu penso assim. O CEPEL é um Centro de Estudos e Pesquisa de uma
região chamada Leopoldina, que é um bolsão de pobreza, na cidade do Rio
de Janeiro. Então, a gente sabe que essa questão... que a Leopoldina tem
um Centro de Estudos e Pesquisa, somos nós. E que eu entendo,
particularmente, que esse é um dos nossos maiores desafios, que é manter
um pouco da história do lugar, vivo. Por que as pessoas estão no seu dia-a-
dia tentando sobreviver, não tem tanto tempo para se ocupar disso. E como
a gente sonha em contribuir para construção do novo, você não constrói o
novo sem o velho. A gente não tem esperança de grandes rupturas, nem
nada, a gente vai começando a gestar o novo, dentro do velho, do histórico,
do que já está consolidado, da maneira que as coisas funcionam. Então,
essa preocupação com a história é porque eu acho que um Centro de
estudos é isso também, é um pouco o resgate da história e que como o
CEPEL é um núcleo de resistência disso, porque ele já tem mais de uma
década e vem sistematicamente publicando o jornalzinho e tal, ele acaba
tendo um certo domínio privilegiado na região, da história do local, mesmo.
Então, a gente já tem uma matéria feita há nove anos atrás, sobre lazer e a
gente teve governo arrecadando impostos. Entra um, sai o outro e o que que
fez por essa região? o que que investiu de verba pública para melhorar essa
região? Então, a gente está sempre atento a esse tipo de coisa, porque
53
precisa ter alguém de fora pensando um pouco isso, porque a população em
si vai levando o seu dia-a-dia, vai vivendo do jeito que dá. E os próprios
grupos se apropriando dessa informação que a gente vai sistematizando,
vai lembrando de colocar no jornal, eles vão fazendo uma leitura, eu acho
que até mais completa, da realidade da sua região, e vão vendo como é que
podem ir melhorando. Nossa função também é essa. Instrumentalizar a luta,
ajudar nisso, nesses grupos”.
Sementinha – Serviços Comunitários36.
Foi fundada em 1987, a partir de um trabalho de iniciativa de padres da Igreja
Católica que aglutinaram pessoas da comunidade que já realizavam atividades em saúde
(por exemplo, na Pastoral da Saúde). Esse trabalho iniciou-se com Padre Carlos, que
reunia as pessoas da comunidade para discutir os seus problemas, como relata Dna
Creusa:
“a gente não tinha nada porque a gente não sabia fazer nada, não sabia
fazer... por onde procurar. E ele foi... Começou por ele. Era 3 padres.
O padre de São Geraldo, lá de Olaria e era o pe. Inácio quem comandava
nesse negócio de favela. Aí veio o Pe. Carlos, foi pra nossa comunidade, e
reunia a comunidade toda pra ir em outra comunidade pra falar sobre
aquela situação, que não tinha água, não tinha luz e vamos correr atrás,
vamos fazer uma associação. E aí fez uma associação na nossa comunidade
só de mulher. Diretora, presidente, tudo era só mulher. Aí ele comprou
uma casa e fez a associação da Merendiba, onde eu moro. E aí começou, a
gente procurava, já andava, vendo a necessidade do povo e quando ele
chegou ele ensinou como a gente botava pra frente. Foi quando o Beno veio
depois e foi morar dentro da comunidade lá no Grotão”
“nós começamos a descobrir tantas necessidades que era muito precária, a
nossa comunidade. As comunidades da Penha era uma coisa terrível. Não
tinha água, não tinha esgoto, não tinha nada. Não tendo água não tem
36Os dados sobre o Sementinha foram obtidos da crônica de Creusa da Costa Verissimo “Quem tem saúdeé rico” (das “Crônicas Populares” do ELOS: www.ead.fiocruz/elos), de entrevista por ela concedida àequipe do Elos dentro do projeto “Crônicas Populares” (crônica ainda em fase de edição), do livro
54
saúde. Como é que poderia ter saúde sem ter água? Não tinha luz , era tudo
na vela , no lampião. “O grupo Sementinha começou pela necessidade das
pessoas que moram no Complexo da Penha. O Complexo da Penha é seis
favelas que agora eles chamam de comunidade, deixaram de chamar de
favela e chamam comunidade. E essas comunidades eram muito carentes,
tinha muita doença, tinha muita coisa ruim, tinha muito lixo, muito rato por
causa do lixo”
“ Então, começou a manifestação começou da Igreja. A igreja, começou os
padres a ajudar a comunidade”
“Formando esse grupo mesmo que nós trabalha, o grupo Sementinha, foi
formado pelas necessidades da comunidade por que nós levava o padre
para visitar por que ele era um padre de comunidade37. Ele visitava e via as
necessidade do povo. Então, ele combinou de fazer, resolveu fazer esse
grupo. Então formou esse grupo em 85, nós começamos a trabalhar com
Saúde Pública. Então ele formou pra nós ser agente comunitária e cada
comunidade ter duas... duas agentes. Então foi formada as doze e nós
fizemos o curso no Posto 11 e nós tinha assistência também da Dra. Mery
Baran, do Fernando Willian, que era... nesse tempo ele era diretor de lá...
do Posto 11. Então, nós trabalhava visitando o Hospital Getúlio Vargas,
era como... eles chamavam... era Pastoral da Saúde. Nós saía da Igreja
Bom Jesus e ia visitar o Hospital e chegava lá, tinha aquelas pessoas
internada que não tinha quem cuidasse. Nós dava comida pra eles, cuidava
deles, ajudava a cuidar. Mas isso era só no sábado, que a Pastoral ia
celebrar a missa e a gente ia pra fazer esse serviço. [...] no primeiro
trabalho que nós fizemos, foi o mutirão de limpeza. Nós convidamos a
Comlurb e fomos limpar aqueles... aqueles lugar que tinha muito lixo.
Então, pra limpar o lixo, tinha que ter também a desratização pra matar os
ratos, porque ia entrar nas casas da gente tudo. Aí veio a Comlurb e fez o
tratamento e limpou os terreno, isso foi o primeiro mutirão. O segundo
mutirão, começamos... tinha muita criação de porcos e por causa dos
porcos tinha muita doença. E aí nós começamos a trabalhar, andar de casa
em casa, ver as pessoa que criava porcos e aconselhar, e Deus ajudou que
nós combatemos a criação de porcos.”
“Conhecendo a região da Leopoldina: algumas iniciativas sociais” (Cunha e Valla, 1999), das anotaçõesde minha participação nas reuniões do Sementinha e das entrevistas realizadas para este estudo.
55
“[...] Agora nós estamos, tem na nossa comunidade, tem gari comunitário,
já cuida da comunidade. Nós já ausente dessas doenças assim, por causa do
lixo, e tudo quanto o padre almejou fazer com o grupo a gente tem feito. No
início do grupo , em 85, foi muito difícil . [...] Então depois que nós
começamos a trabalhar com as comunidades, nós achamos diferença, por
que nós procurava saber o que estava se passando na comunidade, levava
para o posto de saúde que apoiava a gente também é nós fomos se
organizando”
Quanto ao nome “ Sementinha”, Dna Creusa conta que
“Quem botou esse nome foi o grupo mesmo [...],porque nós ia plantar.
[...]... era uma semente que a gente tava plantando, e até hoje é só semente,
tamo plantando e colhendo, e não passa disso mesmo... porque nunca saiu a
semente, porque o nome dele é isso mesmo, Sementinha, serviço
comunitário... de saúde.”
O Sementinha funciona no Parque Proletário do Grotão, no bairro da Penha. Atua
nas comunidades do Complexo de favelas da Penha: Merendiba, Parque Proletário da
Penha, Parque Proletário do Grotão e Caracol. Desde o início de suas atividades, faz
parcerias com Valla e Eduardo. Dna Creuza conta que estes sempre olharam para as
necessidades da comunidade e apoiaram o grupo. Quanto a parceria com o CEPEL,
“...O CEPEL veio depois, 5 anos depois é que veio o CEPEL, o grupo do
CEPEL, que foi quando o prof. Valla achou necessário fazer essa
organização [...]Por que quando a gente precisa de alguma coisa o CEPEL
ajuda. Não ajuda muito por que também não pode. Assim, vale-transporte
para a gente poder visitar os doente, para a gente poder visitar as
comunidade fora , eles dão o vale-transporte. E quando assim precisa de
uma ajuda para a horta, alguma coisa eles ajuda . Eles só não pode ajudar
com ajuda de custo para nós por que eles não tem possibilidade, não tem
posso ainda de ajudar.”
“...eles tem competência para nos ajudar a levar a tarefa da vida. Por que
nós trabalhamos e nosso trabalho é um trabalho de esperança. Esperando
37 Padre Beno.
56
que aconteça alguma coisa. E eles também precisam saber alguma coisa de
nós. Nós saber deles e eles saber de nós . Nós vivemos em união. Eu acho
que o trabalho do CEPEL é um trabalho de pesquisa. Ele pesquisa e fica
sabendo; pesquisando, fica conhecendo a Leopoldina, o nosso bairro , onde
nós moramos. Então, o ELOS também trabalha com saúde. É um grupo
executivo, é um grupo de saúde. Ele também... nós trabalhamos com a
saúde popular, que é muito precária. A saúde popular é uma saúde muito
necessária”.
Até 1996 o Sementinha contou com um pequeno financiamento de uma entidade
alemã, repassado através do Campo (Centro de Assessoria ao Movimento Popular)
como diz Dna. Creusa: “Nove anos a gente foi ajudada pela Alemanha. Tem 8 anos que
acabou. Mas, assim mesmo sem ajuda de custo a gente vai levando o barco.” Outra
ajuda recebida foi do Canadá, por intermédio do CEPEL, parcelada em dois anos (2001
e 2002) e que auxiliou na melhoria da infraestrutura do Sementinha, como lembra Dna.
Creusa:
“[...] Nós tivemos uma ajuda grande, muito grande mesmo que veio do Canadá;
Por isso que eu acho muito bom estar unido. Você já pensou se o grupo não fosse
unido assim com o CEPEL, a gente ia perder essa oportunidade desse donativo
que eles deram. Por intermédio da ajuda do prof. Valla nós tivemos a ajuda de 9
mil reais. E essa ajuda ajudou muito, nós comprou aparelho de pressão,
compramos nebulizador. Tudo que é para nosso trabalho, Compramos também
uma máquina de costura para fazer o saquinho para colocar as ervas. [...]
reformamos a sede. Por que a cozinha da sede não tinha competência da gente
fazer o trabalho que nós faz, por que nós faz xarope, nós faz pomada. As pomada
não tem tanta coisa, nem o sabão, mas o xarope tem muita cosa a ver por que é
para consumo. Então a pessoa usa oral e precisa limpeza. E, finalmente, toda
saúde vem da limpeza, Sem limpeza não tem saúde.[...] E eu também tenho
esperança que de aparecer mais outras ajuda. Se aparecer, para nós é uma boa,
por que ajuda a comunidade. Nós temos uma escolinha, nosso grupo, que precisa
muito de ajuda. Então, talvez, agora em 2003 apareça alguma ajuda para aquela
escolinha.”
57
As próprias atividades do grupo também são fonte de renda, como conta Dna.
Creusa:
“quando a gente tinha uma caixinha, e aquela caixinha vendia o sabão,
vendia o xarope, a pomada, as coisas e ia juntando um dinheirinho pro final
do ano E [...] a gente emprestava com acréscimo de 20 % e fazia um
dinheiro. Quando era no final do ano nós dividia, mas esse ano não teve
nem isso. Por que a Catarina não aceitou fazer mais caixinha, ai ficou sem
caixa, só tem o dinheirinho agora no final do ano. Nós vamos prestar conta,
no dia 3, que vamos dividir esse dinheiro do sabão, das coisas que a gente
vendeu, que nós vendemos, pra ter alguma coisa agora, no final do ano. E o
lucro é esse, que o nosso grupo não é lucrativo. O nosso grupo não é pra
lucrar, mas que desse pelo menos... que desse pra ajudar, né. Dá trabalho...
mas com o trabalho a gente não arranja nada, mas é que... precisa de
comprar e agora tá ficando caro”.
Sobre a composição do grupo, Dna. Creusa conta que inicialmente, Padre Beno
chamou Rosângela, que também freqüentava a Igreja, para coordenar o grupo. Para cada
comunidade Padre Beno convidada duas pessoas. Rosângela foi à Merendiba e
convidou Luisinha e Dna. Creusa, pois “viu competência na gente” . Depois foi ao
Parque Proletário e convidou Dna Antonia e outra moradora que ficou doente e precisou
sair. Posteriormente, desse Parque, entrou Dna. Catarina, como secretária do grupo.
Inicialmente o grupo era formado por 14 pessoas:
“... aí foram saindo por necessidade mesmo. Acabou a ajuda de custo e as
pessoas não tinha nenhum meio para se manter, foram saindo . Nós que
tinha, e mesmo a vontade, a minha vontade e acho que das outras também,
era continuar o grupo, por que se o grupo fosse se desfazendo ia terminar
em nada, por que duas pessoas é um grupo, só não pode ser uma pessoa só.
Aí ficou nós 5, estamos levando, empurrando com a barriga e vamos indo.
[...] nós ficamos por que o nosso interesse é o interesse de ajuda, de ajudar
as pessoas que estão necessitadas , ainda nós, 5 pessoas no grupo, ainda
faz trabalho que a comunidade fica satisfeita. Agora, tinha a escolinha, que
também faz parte que era 14 pessoas , com a escolinha. 12 era agente de
saúde, umas morreram, outras se mudaram , foram para São Paulo. Tinha
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a Maria José que era muito competente, foi para São Paulo; a Elza que é
da Caixa d’ água, também ficou viúva e não pode ficar com a gente. Tudo
teve um motivo. E o nosso motivo de estar junto até hoje é a união da gente.
Nós estamos unidas, as 5 pessoas que está , que continua, agora já tem mais
pessoa, entrou mais 5 pessoa. Mas, essas pessoa são novas, não sabem do
trabalho, a gente tem que ensinar para elas. Elas são agentes de saúde
comunitária mas é pela prefeitura não é dessa saúde alternativa. Por que a
nossa saúde é alternativa, por que nós trabalha com ervas. E elas não
sabem do trabalho da gente ainda., Então elas se incorporaram com a
gente e vão aprender. E isso é que vai fazer crescer o grupo.”
Para Dna. Creusa outras pessoas não se juntam ao grupo pois ou acham que o
que é feito não é bom ou não se interessam, estes últimos “Não é por que não gosta de
nosso trabalho, é por que eles gostam de comer sentado. Gosta de ficar acomodado, ele
se acomoda, não se interessa. Por que a juventude, mesmo, não vai se interessar de
querer trabalhar. As pessoas já de idade que não tem vocação, nem tem princípio”,
também.
Sobre as atividades do Sementinha, como diz Dna Creusa:
“A necessidade do grupo é a necessidade do povo. Por que o nosso grupo
trabalha com a comunidade, É interessado na saúde da comunidade, do
povo. Na necessidade das pessoas, do povo. Então, nosso interesse é que
todas as pessoas viva bem. [...] Se as pessoas tá precisando, nós tamos
fazendo”
Sinteticamente, as seguintes atividades são realizadas pelas agentes do
Sementinha:
1- Saúde: prevenção e cuidados básicos:
• Verificação de pressão arterial e temperatura corporal. Acompanhamento de
hipertensos;
• Aplicação de injeção, curativos, vacina e insulina e outros cuidados;
• Acompanhamento de gestantes e recém-nascidos;
• Visitas domiciliares e hospitalares;
• Encaminhamento a hospital e ambulatório;
• Acompanhamento de idosos.
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2 - Medicina Popular e rezas:
• Manutenção de duas hortas comunitárias (Parque Proletário do Grotão e
Merendiba);
• Distribuição de ervas e chás;
• Produção de xaropes, remédios, pomadas e sabão medicinal;
• Rezas.
3 - Educação: creche que atende crianças de 3 a 5 anos, contando com duas
professoras pagas pelos responsáveis pelas crianças.
A escola “ Sementinha” mantém-se com o apoio de pais e responsáveis. Sobre a
escola, na reunião do Sementinha, da qual participei, uma das professoras contou que as
crianças estão saindo. “Mesmo que tenha só duas”, disse Dna Creusa, “já seria
importante funcionar” . Cobra-se 30 reais por mês. A professora conta o caso de uma
das mães “veio me dizer que iria tirar um dos filhos. Mas só falta pouco para terminar
o ano, deixa os dois , eu disse. Ele gosta de vir à escola, a mãe disse” . O município
abriu uma creche para crianças de 4 anos, por esse motivo, também, que algumas mães
saíram do Sementinha.
As demais atividades são exercidas voluntariamente pelas agentes. O trabalho
voluntário, diz Dna. Creusa, exige muita garra, por que apenas alguns reconhecem o
valor. Além disso nem todos podem faze-lo devido a outros compromissos, “como é
que eles vão viver?” , pergunta Dna Creusa, que também é voluntária do Sementinha.
Ela descreve os efeitos dessas características do voluntariado na ONG:
“E se as pessoas pensassem [...] não pensar em ter olho grande no
dinheiro. Mas eles trabalham voluntário esperando que...Mas, tem muitos
voluntários que não podem ser voluntários, a gente vê mesmo. Então por
isso é que tá assim, o grupo diminuiu, agora aumentou, entrou mais
quatro, mas todas as quatro que estão lá trabalham, são agentes de saúde,
mas da prefeitura, só aparecem nas reuniões, e isso não é do nosso
trabalho...eu fico só olhando assim, eu sei que não tá certo. A gente
precisa das pessoas que andem, que façam as coisas que a gente precisa
fazer... Mas aí agora eu não sei...Vamos ver se conserva, porque a gente
já está ficando...Na terceira idade eu já estou, pode ser que eu vá até a
quarta...”
60
Sobre as atividades do grupo, em relação à promoção de saúde Dna Creusa, ao
falar do combate à criação de porcos , conta que :
“... se era pra evitar doença, nós aconselhamos, conversamos, que foi uma
batalha muito grande que o grupo teve pra poder combater os porcos, os
criador de porcos. Aí, conseguimos. Ficamos visitando, de casa em casa
vendo as doença, nós não trabalhava com saúde curativa, a gente
trabalhava evitando as doenças entra nas pessoas. Quando encontrava
doente, a gente levava pro hospital. Quando não tinha, quando as pessoas
tinha a possibilidade de vir, a gente via algum erro naquela casa, que dá
pra formar a doença, aí a gente já evitava.”
Esse trabalho preventivo continuou nos anos seguintes, tendo um papel
significativo por ocasião da epidemia da dengue, quando vários grupos se aliaram no
combate à epidemia:
“Então, aí nós fomos trabalhar na... com a Dengue. Aí juntou o grupo, que
é duas agentes em cada comunidade, aí se juntaram o grupo todo pra ir
trabalhar numa comunidade, depois ia na outra comunidade e assim nós
fizemos um trabalho bom. Aí veio o mutirão de saúde que a gente fazia nos
sábados. Fizemos na Santa Edivirges e foi um trabalho muito bom, nós
verificamos bastante pressão do pessoal que foi pro mutirão e todas as
doenças que pudessem atingir aquela comunidade... e as comunidades.
Fizeram panfleto e entregaram, fizeram um rebuliço muito grande. E foi
melhorando, as coisas foram melhorando, porque a gente tava cuidando
mesmo da saúde do povo”
De 1995 à 1997 o grupo trabalhou na prevenção de DST/aids. Para tanto fizeram
um curso no CEPEL que as convidou a realizarem o trabalho e intermediou uma
remuneração pelo período de um ano.
Sobre o trabalho com a horta, Dna Creusa conta que este iniciou-se a partir dos
aconselhamentos que eram dados à população sobre o uso de ervas medicinais. Padre
Beno sugeriu a horta para que dela fossem tiradas as ervas necessárias ao trabalho das
agentes. Foram formadas duas hortas: no Merendiba (maior) e no Grotão. A horta teve
grande demanda da comunidade, o que requereu uma organização do atendimento:
61
“Aí começaram, ‘horta comunitária’, aí a comunidade, sabendo que era
comunitária começou a procurar, e procurar e procurar e era muita gente
procurando. Aí, a Tonha, que era minha auxiliar, que trabalhava comigo,
se propôs a tomar conta da horta. Eu só ajudava ela, ela era mais
profissional da horta era ela. Ela atendia aquele povo todo aí eu disse:
‘Não, você deve fazer o seguinte, bota uma lei... bota uma ordem... que só
vai tirar planta até meio-dia. Depois de meio-dia cê não vai mais cortar
não que as planta não vai gostar disso. Ela sofre também conforme nós
sofre.’ Aí ela começou... botou um regime, o pessoal não gostaram, que
queriam toda hora, todo tempo. Aí, explicava, o Getúlio Vargas38 ele é um
órgão que é público, mas eu tenho direito de ir no Getúlio Vargas mas eu
num vou chegar lá no Getúlio Vargas e meter as caras e entrar lá dentro e
dizer: ‘Não, porque é público eu tenho que entrar.’ Não, tem que ter uma
pessoa pra coordenar. Então, você que tá tomando conta da horta, você vai
coordenando. Não é assim. Não pode invadir nem pode tirar fora da hora.
Aí eu sei que as pessoas se acostumaram. Ficou... ela trabalhou... tem dois
anos que ela deixou trabalho, porque se aborreceu lá com os rapazes, que
fez uma puxada lá na horta, tirou a ventilação da horta, e ela não aceitou,
não gostou e discutiram e ela saiu. Aí eu fiquei só, tomando conta sozinha.”
No momento, o grupo aguarda algum financiamento para poder renovar a terra da
horta. Quando receberam o financiamento do Canadá, compraram alguns caminhões de
terra, “uma terra maldita ”, pois foi imprópria para o cultivo. O grupo enviou o terra
para análise pela ENSP na tentativa de conseguir argumentos para devolver a terra,
acionando o PROCON. No entanto, essa análise não foi concluída, o que inviabilizou a
devolução. A horta do Grotão, que conheci, ainda produz ervas, e recebe os cuidados de
Dna. Tonha. Porém, elas ponderam que poderia produzir mais e ter um cuidado mais
facilitado se a terra fosse melhor.
O grupo trabalha com o uso de ervas, um conhecimento, diz Dna. Creusa, que
vem de família e é complementado com os cursos que as mulheres do Sementinha
fazem. Um conhecimento que as novas agentes de saúde não tem. Mas, ao se
incorporarem ao grupo, irão aprender.
38 Hospital Público “ Getúlio Vargas”
62
O grupo também trabalhava com aplicação de curativos. No entanto, a atividade
foi temporariamente interrompida, como conta Dna. Creusa:
“a Elza, que era uma pessoa que trabalhava bem mesmo, que era da Caixa
D’água, mas essa daí também recebeu muita... muita opressão das
pessoas... do... das pessoas que a gente não pode nem, se brincar, falar o
nome deles. Das pessoas desocupadas, das pessoas que não têm ocupação
boa. Então essas pessoas começaram... a gente trabalhava com... fazendo
curativos e as pessoas baleadas procuraram a gente também. E eu nunca
dei confiança de aceitar eles. Porque ia ficar muito ruim pra nós se nós
aceitasse. Mas a Elza lá, que é um morro mais perigoso, Morro da Caixa
D’água, eles fazia ela... procurava ela já com aquela intenção de... até bala
ser extraída por ela. Então nós [...] não fizemos mais curativos em ninguém,
por causa disso. A Neuza também foi uma das que teve pressão pra fazer
um curativo, que ela desmaiou na hora. Então não deu mais pra gente
trabalhar com curativo. Nós deixamos o curativo”
Hoje o grupo ainda trabalha com curativos mas, “Os curativos que nós faz é só
pras pessoas sem complicação”, por exemplo, o de queimaduras, nos quais as agentes
aplicam sumo de maracujá.
Em relação às visitas na comunidade, Dna. Creusa diz que depende da ocasião. Se
há algum surto, o grupo visita todas as casas. Como por exemplo, na época deste estudo
(verão, 2002) era a época das visitas relacionadas à dengue.
Para 2003, segundo Dna. Creusa, há uma proposta do CEPEL para que o grupo
analise a possibilidade de se transformar em uma cooperativa. O que Dna. Creusa vê
com certa reserva, pois acredita que dará muito trabalho e que a vocação do grupo,
pequeno como é, não é para grande produção de xaropes ou de sabão, “é um trabalho
de esperança, não é um trabalho de vender”.
Finalizando a apresentação do Sementinha, posso sintetizar o trabalho do grupo
como o sintetiza Dna. Creusa, ou seja, um “ trabalho de esperança”, uma esperança cada
vez mais distante:
“a gente tem que ter esperança nas coisas que a gente tá fazendo. Um dia
as coisas tá ruim, outro dia pode ser que melhore. É um trabalho de
esperança, a gente tá esperando que um dia melhore [...]Então a gente vê
63
tanta gente nervosa, a gente chega nas casas deles que eles tão nervoso, por
causa da situação mesmo do mundo, que a situação tá muito ruim. Então a
pessoa fica... a violência, falta de dinheiro, desempregado, não trabalha,
fica estressada e a cabeça fica ruim. A pior doença que tem é fome e
estresse, porque a fome faz a pessoa se estressar, ficar doente, ficar
pensando, o que é que eu vou fazer pra almoçar? Já acostumado, sendo
pobre, mas fazer comida pra comer e hoje não tão achando pra fazer. Fica
nos lixão catando Tão mais necessitada por causa dessa violência que tá no
mundo. Então o nosso grupo, nós não tem quase nada pra fazer mais, pra
benefício das pessoas, porque nós, quando nós começamos, nós conversava
com eles e eles se convenciam. Mas agora, a situação tá tão ruim que a
gente não pode mas nem enganar eles, porque é enganar[...]. Eles não
gostam de ser enganado. A gente começa a dizer que vai melhorar, talvez,
que agora com o Lula, a gente tem uma conversinha melhor pra eles, né.
Vamos ver em janeiro, de janeiro em diante como é que vai ser, porque as
pessoas tão muito desiludidas, demais...” 39
As pessoas que foram entrevistadas em cada grupo
“Gravador que estás gravando/ aqui no
nosso ambiente/ tu gravas a nossa voz/ meu
verso, meu repente./Mas, gravador, tu não
gravas/ a dor que meu peito sente”
(Patativa do Assaré, recitado por
Wellington.)
Uma das perguntas do roteiro das entrevistas semi-estruturadas referia-se a
história de vida relacionada a trabalhos com comunidades, outra aos sonhos para esses
trabalhos. A partir dessas perguntas, ouvi histórias de infância, de lutas, de trabalho, de
migrações, de deslocamentos; histórias e lições de vida. As entrevistas foram momentos
de aprendizagem e de emoção, de identificação, de construção de minhas identidades
advinda do fluxo vivo entre “narrador e ouvinte” e da rede na qual nossas histórias se
39 Entrevista concedida em dezembro de 2002, após os resultados das eleições presidenciais que levaramLuís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência da República em 2003
64
constituem40. Exímios na arte de contar, as reminiscências relampejam, as brasas do
passado se reavivam. Como nos lembra Walter Benjamim, o ato de narrar e ouvir é para
o narrador mais do que falar, e para o ouvinte mais do que ouvir: é experiência.
Passados estes momentos, está posto o desafio para esta pesquisadora : tentar aproximar
este texto da experiência de narrativa pela qual passou ou seja, tentar conservar o poder
das reflexões desses narradores não no tempo, mas no leitor.
José Wellington de Araujo (ELOS).
Na metodologia já tive oportunidade de relatar a aventura que foi entrevistar
Wellington e de como este entrevistado auxiliou no aprimoramento do roteiro de
entrevistas. Tive a oportunidade de conviver com Wellington em diversas
oportunidades, e a lembrança mais forte que tenho dele é do seu aguçado espírito
crítico, freqüentemente bem-humorado, em relação aos acontecimentos cotidianos
aliado a sua perspicácia de observador desses acontecimentos. Ele me dizia que gosta de
pegar o ônibus e ouvir-olhar o que as pessoas dizem-fazem. Às vezes faz que está lendo
um livro, mas está ouvindo, observando.
Wellington nasceu no Piauí onde passou boa parte de sua vida. Sua história é
uma história de presença forte do coletivo, de estar na e com a comunidade. Uma
característica que remonta sua infância na zona rural do Piauí, numa região de pequenas
propriedades familiares onde a “própria família trabalhava na terra com um ou outro,
chamava de agregados[...]no sistema de meia, terça de terra” . Sobre esse fazer
coletivo, Weelington conta que :
“... a minha infância foi no trabalho coletivo. A minha infância foi sempre
junto, sempre observando e até participando como criança nos trabalhos
coletivos do interior do Nordeste, na fabricação da rapadura, na fabricação
de farinha, na roça, na matança de formiga...eram todos trabalhos
coletivos, as crianças estudavam, tinham carinho, tinham afeto, tinham
harmonia, mas também aprendiam.”
40 Tomo aqui emprestadas as reflexões de Walter Benjamim sobre narrativas, especialmente as do livro“Magia e técnica: arte e política, obras escolhidas”.
65
Além da base familiar, era comum o sistema de mutirão, por exemplo, na
produção de rapadura. Essa experiência da infância calou forte na personalidade e nos
valores de Wellington:
“Eu me criei aí, esses valores ficaram fundo pra mim [...]Eu tenho uma
memória muito forte, uma imagem muito forte de solidariedade que nunca
me saiu, eu ainda sinto o cheiro dela... Eu, criança, tava na casa do meu
tio e gostava de levar as comidas dos trabalhadores pra roça, porque eu
sabia que na hora que eu apontava na porteira da roça com o alguidar na
cabeça, então era aquela festa, e eu era uma criança e os adultos faziam a
maior festa pra mim, eu me sentia importante, talvez fosse isso... E meu tio
cortava umas palmas de coqueiro e fazia aquela cama, aquela mesa no
chão, fresquinha numa sombra e todo mundo comia no mesmo alguidá,
cada um com a sua colher comendo no mesmo prato, fazendo uma
verdadeira comunhão.”
O idealismo de Wellington vem dessa experiência da infância, porém à ela foi se
acrescentando outras, como o contato com as ciências e com a simplicidade dos
considerados “gênios da ciência”, como ele relata:
“...Eu sempre fui muito fascinado pela coisa científica. No meu curso
secundário, quando meu professor falava de eletrólito da água, a
possibilidade de você, de forma simples, decompor a água nos seus
componentes hidrogênio e oxigênio, eu ficava louco para aula acabar
porque eu queria chegar em casa, botar os dois fios na tomada e lá era 220,
em Teresina a voltagem é 220, não sei como eu não fui eletrocutado ali...
pra botar na água com sal, e decompor de um lado hidrogênio, do outro
lado oxigênio e tal...[...] Eu gostei muito de ler a biografia da vida dos
santos, quando eu era religioso, católico. Mas eu gostava também, sempre
gostei e ainda gosto muito, das biografias dos caras considerados gênios,
dos gênios das ciências. E o que sempre me atraiu muito nessa coisa, nos
gênios das ciências, foi a simplicidade da vida desses caras, a simplicidade
dos seus pensamentos.”
66
A junção dessas duas experiências propiciou à Wellington conjugar saber
popular e saber científico:
“Eu comecei a misturar isso de uma forma um tanto intuitiva, porque eu
gostava de uma e da outra, eu gostava tanto do saber popular, que eu tinha
aprendido nas feiras do Nordeste, nas grandes feiras de sábado lá da minha
cidade do interior, na cultura dos cantadores, de repentes de viola, de
ciganos, de tudo, de cantoria, coisas de feira nordestina. E na minha
maturidade eu fui [...] tomando gosto pela possibilidade mesmo de fazer
esse diálogo, essa mistura entre a coisa científica e o saber popular não
mais de uma forma intuitiva, mas [...] por dentro, criticando, criticamente,
sistematizando”.
Uma experiência, relacionada ao aleitamento materno, foi marcante dessa
“mistura”. Ocorreu em Jaguaruna, no interior do Ceará, na década de 70, num distrito
rural onde foi trabalhar após formado em Medicina. Na ocasião, também era professor
voluntário no ginásio (hoje, de 5ª à 8a séries do ensino fundamental) e trabalhava no
Hospital Maternidade do Município. Nessa época, dois fatos lhe chamaram a atenção: o
alto índice de laqueadura entre as mulheres atendidas no ambulatório e de abandono, na
comunidade, do aleitamento materno em troca do leite em pó. Em relação à este
segundo fato, pediu aos seus alunos da disciplina “Programas de saúde” do ginásio
fossem no distrito rural para fazer um levantamento dos hábitos alimentares das crianças
até um ano. O resultado foi cerca de 80% em desmame total e 20% com algum tipo de
aleitamento materno (parcial, total). A leitura de seus livros de cabeceira, especialmente
“ Nêmesis da medicina” (Ivan Ilitch) lhe faziam concluir que esse fato se devia a
iatrogenia médica, ou seja, os médicos orientados pelos laboratórios, receitavam leite
em pó para as mães. Além disso, percebeu que as mães diluíam o leite mais do que o
recomendado, acrescentando Arrozina ou Maizena para conseguir uma aspecto mais
denso. Para este fato, levantou a hipótese de que faltava às mães o conhecimento sobre
as diferentes funções de proteinas e carboidratos, pois se via diante de um quadro de
(potencial) desnutrição, especialmente, proteica (devido à diluição). Diante desses fatos
e de suas hipóteses, organizou uma reunião com as mães daquele distrito. No dia da
reunião, não só estas compareceram como também os pais e os avós. A partir de sua
explicação sobre nutrição, imediatamente as mães se deram conta de que ali havia um
problema. Então aconteceu sua primeira surpresa:
67
“... as mães depois de se preocuparem me disseram ‘doutor, isto está certo
mas tem um problema’. Antigamente quando se amamentava até um ano,
dois anos, as mulheres trabalhavam em casa e perto do domicílio, nos
afazeres perto da casa. Uma ou outra mulher ia para a roça, mas não era
serviço de mulher ir para a roça, era serviço para homem. E a situação
mudou no campo, já naquela época, na década de 70 [...] Tudo aquilo, que
eu tinha falado anteriormente, a propriedade rural familiar, tudo aquilo
acabou [...] O capital entrou no campo, mudou as relações de trabalho. E
as mães me disseram ‘ agora nós temos que ir para a roça junto com o
marido. O marido sozinho não dá mais conta. Nós temos que ir e, então nós
não podemos mais amamentar’. E aí me caiu a ficha e isso que quero dizer,
como eu aprendi com isso. Não negava minha hipótese, iatrogenia, mas
comecei a perceber outras questões. Aí elas disseram esse arrazoado,
discutimos aquilo e, de fato, não havia como negar essa situação. Aí as
avós entraram na conversa e disseram [...] ‘Isso tá certo, vocês tem que ir
para a roça. Mas não é só isso. É porque, desde que botaram essa televisão
aqui na pracinha (e , nesse tempo o bom prefeito era aquele que botava a
televisão na pracinha de distrito rural) desde que botaram aqui essa
televisão, vocês, mulher-nova, só querem aparecer como essas artistas de
televisão e vocês não dão mais de mamar que é para não amolecer os peito,
também’.”
Assim, de uma hipótese explicativa inicial, Wellington ganhou mais duas “da
melhor qualidade” , explicações epidemiológicas que não negavam a primeira, mas
permitiram uma compreensão mais ampla do problema, ou seja:
“de um esquema explicativo muito reduzido e simples, que era o meu
inicial, eu ganhei, depois de conversar com essas pessoas, uma explicação
muito mais rica e foram elas que me disseram. Cinco anos depois, ou dez
anos depois, essas hipóteses explicativas talvez estivessem nos compêndios,
talvez já tivessem sido estudadas mas, não naquela época”
Com essa experiência, Wellington percebeu a incompletude de seu
conhecimento técnico-científico e que se conversasse com a população “voltaria
68
sabendo mais”, inclusive técnico-cientificamente. E esse conhecimento é diferente do
conhecimento que os livros possam dar, pois depois de ter experimentado aquilo que os
livros lhe diziam, entre eles os de Paulo Freire:
“Aí você não tem mais dúvidas, aí não é mais um arranjo, uma
possibilidade construtiva apenas. É concretude das coisas no cotidiano.
Pode qualquer um, mesmo os que não acreditem, podem ir lá fazer, que vão
sair convictos dessa possibilidade. Se não souber , passa aqui no Elos que a
gente dá dica de como é que faz”.
A prática do diálogo entre conhecimentos tornou-se parte de seu cotidiano. Mas,
teve seu momento de “crise de crenças”, como ele o define, durante o qual desacreditou
no mundo, na política. Um período que durou 5 anos: “Foram os cinco piores anos da
minha vida. E eu retornei, digamos assim, a estar bem com o mundo e com a minha
vida quando eu retornei a fazer esse tipo de coisa”. A própria prática do diálogo, agora
retomada, lhe propiciava o “estar bem no mundo”, ao mesmo tempo que esse “estar
bem” também lhe propiciava a postura e a prática do diálogo.
Toda essa experiência de vida foi o ponto forte para seu pensamento
crítico em relação à epidemiologia e a educação e saúde.
“Eu diria que, no campo existencial, as minhas experiências fundamentais
são aquelas que eu falei: da roça, da feira, do mutirão, da festa no
trabalho. Porque sempre, no Nordeste, trabalho é festa e festa é trabalho.
[...] Do ponto de vista do meu trabalho profissional, técnico científico e tal,
a minha experiência fundamental pode ser ilustrada com essa que eu falei
em Jaguaruna”
Wellington está na FIOCRUZ desde 1977. No primeiro ano, como estudante
mas, já trabalhava nas enquetes na comunidade de Manguinhos. E, como já foi dito na
história do ELOS, Wellington passou pela coordenação do programa de residência em
Medicina Preventiva e Social da ENSP e foi responsável pela primeira coordenação do
ELOS. Desde 1978 é professor da ENSP – Departamento de Epidemiologia e faz seu
doutorado nessa Escola no Programa de Doutorado em Saúde Pública, área de
Epidemiologia e Políticas Públicas. Sua tese tem como tema “ Epidemiologia, Senso
Comum e Saúde Pública: O Caso das Meningites”.
69
Antes de falar de seus sonhos, Wellington fez questão de destacar que estes se
baseiam na sua fé nas pessoas, que o faz crer também na possibilidade de mudança:
“...eu tenho uma fé assim... ferrenha. Muito grande. Eu não acredito em
outra coisa a não ser na fé das pessoas, e na força das pessoas, a minha fé
vai por aí [...]Ou seja, eu acredito numa força muito grande do povo
brasileiro, eu acredito numa força extrema do povo brasileiro, sempre
acreditei [...] e na possibilidade de mudança da vida das pessoas. Eu
acho que as pessoas não merecem aquilo que elas estão vivendo não só por
uma questão de justiça transcendental, de justiça essa ou aquela... Mas
porque o potencial criativo das pessoas é enorme”.
Sobre seus sonhos, diz que gosta de pensar neles se completar a idéia de “sonho”
com a de “pé firme no chão”, “o sonho com a vontade de fazer” , especialmente se essa
vontade não é de fazer sozinho. A vontade a que se refere é uma vontade política
associada a opção existencial. Sonhar é acreditar que as coisas vão acontecer. Sonhar
resgastando as experiências passadas, mas sem saudosismo.
Carla Moura Pereira Lima (CEPEL).
A entrevista com Carla não foi completa, como já adiantado na Metodologia.
Independente do tempo em que conversamos, nossa conversa foi repleta de histórias de
vida e de aprendizados, trajetórias diversas, auto-conhecimento e uma profunda
sensibilidade para o conhecimento e as necessidades da comunidade, advinda
especialmente de sua densa história pessoal e suas inquietações como pesquisadora.
Sua história de vida é fortemente marcada pela Penha. Carla nasceu na Vila da
Penha, ao lado da Penha, onde era localizada a Escola pública Normal ( de formação
para o Magistério) que freqüentou. Seu estágio de magistério foi realizado na Vila
Cruzeiro, uma comunidade da Penha.
A sensibilidade e a procura de novos conhecimentos e novas opções
profissionais, Carla credita particularmente à sua história de obesidade:
“O que há e que eu acho que me dá uma sensibilidade maior pra trabalhar
com essas pessoas, um desejo mesmo de continuar nesse trabalho, eu acho
70
que tem a ver um pouco com a minha história de vida. Por que assim... eu
sempre fui obesa, desde bebê. Então, eu acho que essa... esse processo de
discriminação, que hoje em dia é muito pior, mas quando eu era criança já
acontecia. E... isso eu acho que é uma questão que me sensibilizou muito
pra dor e sofrimento do outro. Essa questão da exclusão social, né, da
rotulação. Eu acho que isso é o fio condutor pras minhas opções
profissionais. Por que ao mesmo tempo que isso me gerou uma certa
sensibilidade, também me gerou uma série de necessidades de buscas, pra
me curar. E aí eu fui procurando conhecer coisas, pra me curar”
Daí que, paralelamente ao estudos escolares, estudou terapias naturais, o que lhe
conferiu uma “formação híbrida” :
“Fiz Escola Normal e paralelamente fiz uma outra que foi de terapias
naturais, porque desde bebê eu tentava a alopatia, desde o pediatra. E dieta
e alopatia não tinha resultado satisfatório. E como eu não gostava de
malhar, fazer academia, essas coisas, eu fui tentar ioga, alimentação
natural, outras coisas pra resolver meu problema.[...] Tenho uma relação
muito esquisita, com essas coisas que, a medida que eu vou conhecendo
uma abordagem qualquer e vou gostando, acabo estudando aquilo. Que eu
tenho uma relação um pouco racional, eu preciso entender porque que as
coisas acontecem... Aí acabo meio que me profissionalizando. E, assim, eu
fui construindo a minha trajetória de formação. Eu sou uma pessoa de
formação híbrida, não tenho uma identidade profissional clara”.
Essa diversidade se manteve presente também em sua experiência no estágio de
Magistério. Pelo fato da escola em que estagiou ser muito carente de funcionários, Carla
se viu como uma espécie de “faz-tudo”, durante um ano. Voltou à essa escola após se
formar, quando tinha por volta de 18 anos, e ali permaneceu durante alguns anos. A
partir de seu entendimento, comungado pela diretora da escola, de que o projeto
pedagógico deve ser co-gestado entre técnicos, pais, comunidades e lideranças surgiram
seus aprendizados sobre o poder do narcotráfico, além de suas relações com os grupos
comunitários, entre eles, o Sementinha.
71
“não tem como você trabalhar numa favela, prestando qualquer tipo de
serviço, mesmo sendo serviço público, sem reconhecer determinados
poderes. Rapidinho eu aprendi isso, quando eu via coisas do tipo assim:
‘Tia, fecha tudo e manda todo mundo pra casa que vai ter tiroteio. Nós
vamos esperar vocês saírem pra gente começar. Tá todo mundo correndo
risco. Tia, fecha tudo’. Então, quando eu percebi que era, que existia um
poder, que era forte, e que até mesmo o serviço público ali, estava
subordinado à ele, [...] A gente começou a trazer cada vez mais a
comunidade pra escola, e a gestão era muito interessante, era muito
interessante. Aí fui indo, na escola, fui ficando, acabei dirigindo essa
escola, uma escola de 1.050 alunos. Ainda fazendo faculdade. Eu me
estressei muito e... mas tinha uma coisa que eu gostava muito de fazer. Toda
sexta-feira, às duas horas, eu tinha uma encarregada de secretaria [...] que
era da Pastoral de Favela. Embora eu fosse Hindu, já era, eu sempre tive
uma afinidade muito grande com a teologia da libertação. E essa menina
falou: ‘Carla, você não quer ser voluntária da aula de ioga pras agentes de
saúde. Por que a gente não sabe bem como trabalhar corpo, essas coisas?’
Eu falei: Quero. Aí, o grupo era o Sementinha...”
Apesar do curso ter sido solicitado apenas para as agentes, Carla, ao ver o
tamanho do salão onde este seria realizado, abriu-o para quem quisesse freqüentar,
contando, alguns dias, com mais de 50 pessoas. Após as aulas, Carla, à convite,
permanecia nas reuniões onde podia assessorar os grupos dentro dos conhecimentos que
tinha, especialmente da alimentação natural e do uso de ervas. Foi a partir dessa
participação aliada ao seu descontentamento e stress na direção da escola que se
encaminhou o seu trabalho seguinte, de assessoria à grupos comunitários. Sua amiga,
encarregada da secretaria da escola, iria se afastar do cargo de assessora e convidou
Carla para substituí-la.
“Eu já estava... eu já tinha me aborrecido demais no município, na época
do Marcelo Alencar, era muito difícil trabalhar. Eram ordens absurdas, eu
dirigindo escola, enfim, me estressei demais. Não era aquilo que eu queria
da minha vida. Foi, com 19 anos [...] eu nunca deveria ter aceito essas
coisas. Mas eu tenho um envolvimento com o trabalho, tão doentio que eu
acabei entrando nessa. Quando acordei eu já estava na direção da escola,
72
uma escola com 1.050 alunos na Vila Cruzeiro. Já estava nessa situação. E
aí não dei conta, não dei conta, uma loucura. [...] Abandonei as duas
matrículas e fui trabalhar em ONG, uma Fundação chamada Fé Alegria,
que assessora creches, grupos... só tinha esse grupo de agentes de saúde e
casa de acolhidas de meninos e meninas de rua. Fui pra esse trabalho.
Fiquei no lugar dela e fui ser assessora do grupo Sementinha, oficial, já
estava assessorando eles, fui ser assessora oficial. E fiquei assim mais uns 5
anos talvez, assessorando o Sementinha, assessorando a Pastoral da Saúde,
a Pastoral da Criança do município de Itaguaí. Aquela questão da
alimentação alternativa, dos farelos e tal. Essa era muito a minha onda. A
Pastoral estava começando esse trabalho. Eu fui dar uma força aos grupos
de lá. Assessorava... fazia interface Educação Saúde em algumas casas de
acolhida, pela Baixada, de meninos de rua. E assessorava o núcleo de
creches da Baixada, também. Creches comunitárias”.
Nessa trajetória profissional, Carla também voltava seu tempo para os estudos
superiores. Terminado o magistério, iniciou o curso de pintura na Escola de Belas Artes
da UFRJ, pretendendo depois completar com a habilitação em Educação Artística pois
queria ser pintora e professora de Artes. No entanto, por ser, o curso, em tempo integral,
incompatível com o trabalho, saiu da UFRJ e fez o curso de Letras em uma faculdade
particular, à noite. Continuando sua formação, fez especialização em Desenvolvimento
e Aprendizagem – enfocando especialmente crianças de 0 à 3 anos. Paralelamente, fez
diversos cursos na área de terapias naturais, principalmente as de toque, , o que lhe deu
os conhecimentos necessários a começar a realizar massagens e as introduzir, assim
como as terapias de toque, nas assessorias que prestava. Ao mesmo tempo, continuava
sua formação na área das terapias naturais, das terapias de toque. Em meados de 1993,
1994 “quando, novamente, os rumos que Fundação tomou não me agradaram de forma
nenhuma e eu saí. E fui viver de terapias naturais.”
Nessa atividade permaneceu por 7 anos. Quando nela estava há 3 anos, com
consultório estruturado e grupos de alunos, começou a articular com as associações de
moradores para que seus alunos dessem atendimento nas comunidades bem como
cursos livres de cromoterapia, de harmonização de chacras, massagens. Fez acordos
com as associações de moradores atendendo Chapéu Mangueira, Casa Branca, Formiga,
Boréu, próximos a onde era seu consultório, na Tijuca. Nessa época também estava
caminhando para uma opção religiosa na Igreja Pentecostal. Foi quando teve contato
73
com a pesquisa sobre religiosidade do CEPEL -onde já havia atuado como voluntária-
através de Valla e de sua esposa, clientes de seu consultório.
“Numa época em que tinha a ver com o momento que eu estava vivendo, de
mudança de paradigma religioso, mudanças profundas na minha vida e o
Valla me falou que estava estudando... E eu estava saindo de uma
perspectiva religiosa elitista, porque eu estava dando cursos, formando
tarólogo, formando terapeutas, estava dando consultas de tarô e dando
consultas de terapias naturais. [...] Hindu, era tudo... quer dizer, pra classe
média, muito charmoso, tudo isso é muito atrativo, né. Indo pra uma opção
na Pentecostal, popular, no subúrbio e tal. Eu não estava entendendo nada,
enfim, mas são coisas de Deus, não estava entendendo nada, e o Valla [...]
falou. Eu achei ótimo, vou ser voluntária lá, vou estudar isso com vocês
[...]. Novamente, pelo meu temperamento, entrei no CEPEL, já tinha
participado do CEPEL no seu início, também como voluntária, mas o fato
de ter saído da Fundação e me dedicado as terapias naturais, eu tive que
trabalhar muito pra sobreviver mesmo. Voltei pro CEPEL, vi o CEPEL
numa situação meio complicada, comecei a ajudar e fui me desinteressando
pela classe média, pelos alunos, pelos clientes, fui me desinteressando. Aí,
pronto, acabei ficando no CEPEL e retomei um pouco o contato com o
Sementinha e trouxe outros grupos, que eu acabei tendo contato por outras
coisas e hoje a gente tá no CEPEL”.
Creusa da Costa Verissimo (Sementinha).
As entrevistas com Dna Creusa foram 3. As duas que primeiramente foram
realizadas, o foram por ocasião do projeto “Crônicas Populares” do ELOS, coordenadas
por Eduardo (a primeira) e por Wellington (a segunda), ambas com minha participação
e de Mariluce (que também realizou a gravação e transcreveu as entrevistas
conjuntamente com Maíra). A terceira entrevista foi feita por mim , para este estudo.
Dna. Creusa tem uma trajetória de luta e trabalho permeada profundamente por sua
crença em Deus e por sua religiosidade. Suas palavras tem o peso e a autoridade da
experiência.
74
Dna Creusa é migrante do Nordeste, Paraíba, Campina Grande. Perdeu o pai
quando tinha 6 anos. A mãe casou-se 4 vezes e dos dois primeiros casamentos nasceram
os 11 filhos “ e foi criado porque Deus ajudou a criar, porque a gente na roça, a
criação é diferente” . Na roça, onde foi criada, aos 4, 5 anos as crianças iam para o
trabalho e não havia estudos. No Nordeste “eu sofri muito e não quis, não quero nem
desejo voltar nunca. É minha terra Natal, onde eu nasci e me criei, mas onde eu sofri
muito”.
Quando veio ao Rio, tinha 21 anos de idade, em 1947, “já podia comprar
passagem , e vim”. Destaca a diferença de ganhos de sua cidade Natal e do Rio “Lá eu
passava o mês todo pra ganhar cinco mil réis, eu aqui fui ganhar 200. Fui trabalhar na
casa de um italino e ele contratou comigo 400 [...] cruzeiros. Mas, eu fazia tudo com
aqueles 200, e a minha mãe fazia tudo com aqueles 200”.
Sobre o seu casamento conta que se casou aos 23 anos com um migrante da
Paraíba “ e desde que me casei eu encontrei o meu lugar. Tinha a minha casa, como
pobre, com salário”. Inicialmente, o casal morou na favela do Esqueleto41 mas, devido
à violência mudou-se para a Penha, na Merendiba, onde compraram um barraco
“Barraco mesmo, porque naquela época era tudo de madeira [...] de pegar
fogo. Depois é que veio a melhora [...] todos os barracos fizeram de
alvenaria [...] Quando a gente foi morar nesse lugar [...] só tinha o
matagal, não tinha quase ninguém, era bom à beça. Não tinha luz não tinha
água, não tinha nada, mas depois foi chegando”.
Quando se mudou para Merendiba Dna creusa não sabia que não encontraria
água ou luz. Para pegar água era necessário levar latas, andar muito e ficar na fila.
Mudou-se num Sábado e nesse dia e no Domingo ficou o dia todo na fila. Na Segunda
entrou na fila com duas latas, às 3 da tarde, e às 8 da noite ainda não havia saído.
“tinha uma novela chamada ‘Cana Brava’ e eu doida para ver [...] enchi as
duas, deixei uma pessoa olhando e levei as outras cheias...quando cheguei
lá tava aquele cigarro aceso. Era a luz, igual tocha de cigarro aceso e eu
digo : ‘ué, isso é luz?’ Aí acendi o rádio e nada, não deu nada. Aí eu voltei
triste e fui pra fila buscar a lata que eu tinha deixado lá e quando cheguei
na fila nem lata, nem água, nem coisíssima nenhuma. Eles apanharam e aí
41 Situada na área onde hoje se localizam os prédios da UERJ, entre Maracanã e Vila Isabel.
75
voltei para casa triste sem água. Mas, depois a gente foi se acostumando.
[...] Por que hoje em dia [...] quase todo mundo que mora no morro mora
bem [...] Tem 22 anos que foi feito minha casa de alvenaria”.
O marido de Dna. Creusa não permitia que ela trabalhasse fora. Então, ela
começou um negócio de revenda de gás,
“porque eu via que era necessário. Nessa época o botijão de gás era muito
barato mas, tornava-se caro porque se ganhava pouco. Aí eu comecei a
encher o botijão de gás das pessoas e quando eles vinham pra mim apanhar
eu dizia ‘ olha, eu comprei por 50, e você vai me dar 70, porque eu estou
esperando você ter os 70. E isso era 70 centavos, por que os cruzeiros
daquele tempo se dissolveu em nada. [...]se ele vai receber o final 7, é
Segunda –feira, mas aí acabou o gás hoje [...] tem que ter uma pessoa pra
financiar pra eles. Mas agora essas pessoas que eu financio são
displicentes, só lembram de me pagar se sobrar [....] se não sobrar eu tenho
que esperar mais tempo. E assim vou esperando. Graças a Deus, nem eu
sofro, nem eu quero que ninguém sofra”.
Sem poder trabalhar fora, Dna Creusa visitava os doentes. Por 12 anos cuidou
de uma senhora idosa, levando-a para o hospital, fazendo comida. Dessa atividade, Dna
Creusa recebia um salário “150 todo mês. Não é todo dinheiro do mundo, mas ajuda”.
Antes de falecer, essa senhora “passou o barraco que ela tinha no meu nome [...] as
coisinhas todas que tinham ela passou pra mim. Eu não fiz questão, não pedi”
Um outro trabalho realizado por Dna Creusa foi junto à prefeitura, na área de
saúde, em meados de 1987. Um trabalho de 13 meses, com carteira assinada, que
encerrou-se devido a brigas políticas, sem indenização.
Seu marido faleceu há 4 anos, vítima de atropelamento. Uma morte sem
sofrimento, diz ela. Dele guarda lembranças, saudades, mas não, tristezas.
“Nessa tendência de ajudar ” foi que conheceu Padre Beno e foi convidada a
participar do Sementinha.
Há mais de 30 anos, Dna Creusa realiza trabalhos na comunidade, ou seja,
mesmo antes do Sementinha iniciar-se como ONG, como já foi relatado na história do
Sementinha anteriormente. Dna Creusa trabalhou na Igreja de Bom-Jesus, na Pastoral
de Saúde, visitando o Hospital Getúlio Vargas e realizando cuidados com as pessoas
76
internadas. Participou com o Sementinha dos dois mutirões, o de limpeza e resratização
e o de criação dos porcos. Também participou da campanha da dengue, da aids /IST e
dos demais trabalhos do Sementinha. A horta de Merendiba fica ao lado de sua casa.
Preocupa-se com as pessoas que a procuram, dando palavras de esperança e cuidados.
“Eu ontem fui dormir, já era 1:10, e eu esperando a moça pra mim aplicar
a injeção porque ela tinha que tá lá pra tomar a injeção meia-noite, mas
não chegou meia-noite, eu fiquei esperando. Depois vi que ela não ia, aí
soltei o cachorro e fui dormir. Não sei o que foi que aconteceu, se ela
piorou. Eu saí de manhã cedo de casa e fui no médico, fui lá no Posto de
Ramos. Não tive conversa com ela, mas eu me preocupo, fico preocupada, o
que é que acontece com as pessoas”.
Sobre sua disposição para continuar neste trabalho diz:
“eu, se for pra viver mais assim, com vigor , eu vou até os cem, vou e não
rejeito. Trabalho para mim, eu abençôo quem fez o trabalho porque é
trabalhando que a gente adquire alguma coisa [...] é trabalhando que a
gente pode reconhecer as coisas. Reconhece. Eu reconheço muito bem o
que você passa se eu passo também. Agora, se eu não faço nada pra
progredir...”
A sua vida, como ela diz, “é uma vida cheia de confusão, de conversa , de
história...[...] mas deu tudo certo, tá tudo certo” . Uma vida da qual está
“satisfeitíssima [...]Sou feliz, graças a Deus, já vivi até demais: 75 anos de
vida, graças a Deus, por que ele me sustenta. Se ele não me sustentasse eu
não estava viva. E eu creio. E a gente crê. E quando a gente crê, a gente
apresenta a fé que a gente tem, em Deus. E se a gente tem fé em Deus, não
precisa mais de nada”.
Uma de suas convicções é que todas as pessoas deveriam receber, no mínimo,
um salário-mínimo, inclusive os desempregados pois “ o que eu ganho ninguém
precisava deles[...] 1 kg. de feijão meu” . Um aumento “insignificante” não resolve a
situação. O salário, segundo ela, é o que resolve. Ela se revolta com o Natal sem fome,
pois Natal é um dia só, “deveria ter o Ano sem Fome, arranjado para eles não ter fome,
77
dando salário”. As desigualdades sociais, a pobreza no mundo, o “não ter onde morar”
é uma tristeza para Dna. Creusa; o que é de Deus deveria ser repartido:
“E as pessoas cheio de terra, cheio de casa, cheio de...tem tantas pessoas
que tem não sei quantos edifícios. Para que? Vai deixar tudo, não vai levar
nada. Por que essas pessoas não pensa que Deus foi que criou todas as
coisas, e que se ele tem aquelas coisas que ele tem é por que Deus consentiu
que ele tivesse. Reparte com as outras pessoas. Ninguém reparte, é difícil,
porisso que tem essa pobreza aí no mundo. Falta de solidariedade. As
pessoas, só em palavras é que são solidários. O resto, são é nada. Nós tem
uma vida tranqüila, quando a gente tem Deus na nossa vida. Sem Deus,
nada pode acontecer.”
Sobre seus sonhos, Dna. Creusa retoma a palavra “esperança”, que move todo o
trabalho do grupo Sementinha.
“A esperança. O que me move e me comove é uma esperança que a gente
tem. O nosso grupo tem uma esperança de um dia haver concluído alguma
coisa que nós tem em sonho. Nosso sonho é que toda a comunidade, as
comunidade toda tenha saúde, tenha paz, tenha alegria, viva bem. Então,
nas minhas andanças para cá eu sempre estou com a esperança que vai
aparecer alguma coisa que vai melhorar nosso grupo, que vai melhorar
nossa comunidade. Por que não é só a comunidade da Penha. Tem tantas
comunidades carentes que precisa de haver quem se movimente sobre ela.
Então , as vezes, nas conversas , as pessoas podem descobrir. Tenho
esperança de que vai ser descoberta alguma coisa para nós. A esperança é
a última que morre. Não tem, assim, a gente tem um desejo, mas tem a
esperança de que um dia aquele desejo se cumpra”
Sobre os seus desafios, o maior é justamente o de levar a esperança para aqueles
que já esmoreceram, uma esperança que ela própria não abandona, “a gente tem que
buscar” :
“Meu erro maior é que não consigo fazer as pessoas verem. Porque eu
também sofri para poder ser o que eu sou. Mas, tem pessoas que parece que
78
não tem fé, não acreditam, ficam tudo esmorecidas mesmo, a gente chega
nas casas, começa a querer animar as pessoas, mas as pessoas são tudo de
baixo astral, e não adianta que a gente não levanta de jeito nenhum, mas
tem muitas pessoas que se acomodam, que ficam sofrendo porque se
acomodam mesmo. Não tem capacidade, qualquer coisa eles caem. Tá
duro, tá ruim, tá difícil, mas a gente tem que buscar...Procura. Quem
procura, acha. E assim a vida continua”.
79
PERSPECTIVAS DE DIÁLOGO ENTRE SABERES E SUJEITOS
Buscando o diálogo
Esta seção tem a busca do diálogo como tema em dupla perspectiva: primeira, de
busca do diálogo entre as falas das pessoas entrevistadas e, segunda, de expressão da
busca de diálogo entre essas pessoas, instituições, entidades...entre saberes e sujeitos.
Diálogo aqui entendido na perspectiva Freireana, portanto, diálogo entre sujeitos,
constituindo-se ao mesmo tempo busca e processo de humanização, denúncia e anúncio.
Para esta seção utilizar-se-á das entrevistas semi-estruturadas feitas especialmente para
este estudo, conforme roteiro já apresentado na Metodologia (e no Anexo 1). De cada
entrevistado buscou-se encontrar elementos comuns aos demais sem que, no entanto, se
encobrisse a diversidade e particularidade de cada um.
Procurou-se, na análise dos dados, apreender a interpretação de mundo feita por
estes sujeitos-no-mundo de modo a aproximar-se dos processos educativos presentes no
educar-se - no mundo e entre si- e compreender como as diferentes visões de mundo e
de conhecimento se cruzam, entrecruzam, recriam e criam outras. Os dados serão
apresentados dentro dos focos utilizados para as entrevistas (ver p.19).
O outro com o qual busco dialogar.
Para esta seção, buscou-se o que os entrevistados consideravam como diferenças
e semelhanças entre seus grupos, seja em atuação, formas de ver o mundo ou nele estar
e formas de construir conhecimento. A pergunta sobre se haveria diferenças foi feita de
forma explícita, no caso, por exemplo, de construção de conhecimento, onde os
entrevistados foram convidados a conversar a partir de uma hipótese da entrevistadora:
de que os grupos constróem o conhecimento de mundo a partir de referenciais
diferentes. Checar essa hipótese e buscar entender as raízes de sua confirmação ou não
estava no cerne e na superfície das perguntas. Complementarmente, busquei também
nas falas algo que não tivesse sido posto tão claramente por mim na questão, mas que
estivesse nas respostas que os entrevistados davam à outras questões e que permitisse
minha interpretação sobre as diferenças entre os grupos. Digo diferenças, pois, nessa
busca poderia se dar a ver tanto essas diferenças quanto sua inexistência, ou ambas, num
processo não ambíguo mas, simultâneo, talvez.
80
Antes, faz-se necessária uma observação quanto à fala dos entrevistados neste
foco de análise. Estes, cuidadosamente, colocaram que o outro não é um bloco
homogêneo assim como não é o seu próprio grupo. Relativizações sobre seu grupo e o
outro foram feitas diversas vezes, assim, a academia da qual falam, não é homogênea,
nem os movimentos sociais, as ONGs, as favelas, etc e muito menos as pessoas que
atuam nesses espaços, que ao fim, são as que lhes configuram socialmente. A
contextualização anteriormente feita sobre os grupos e os entrevistados poderá ser
particularmente útil aqui onde “de onde se fala e quem fala” dá o tom dessa diversidade.
Acesso à escolaridade, saúde, nutrição, bens de consumo:
Quem sabe da vida é quem a vive, é o que se conclui das reflexões de
Wellington sobre o que as falas das pessoas da comunidade revelam. A fala da
população, de um lado “porque eles sabiam o que estavam fazendo, eles sabiam da vida
deles, eu estava falando da vida deles, e eles sabiam da vida deles”. De outro, a sua
fala, a fala do técnico, que é um saber também de vida, mas recortado pela técnica, pela
ciência, pela escolaridade.
Uma distinção que, acredito, concordaria Carla, pois ao discutir escolaridade,
Carla reflete que esta gera um distanciamento simbólico entre as pessoas da academia e
as comunidades. Diz Carla, “As pessoas têm muito pouco acesso ao estudo. [...] As
pessoas que têm acesso, tiveram acesso à coisas que a maioria das pessoas, a grande
maioria da população não teve”.
As diferenças de classe são sentidas quando se discute o acesso à saúde. As
pessoas do Centro, diz Dna Creusa também são diferentes pois podem pagar a
complementação e até a substituição de um ineficaz serviço público de saúde. Isto evita
problemas que usualmente acontecem com as pessoas da periferia.
“É diferente, muito. [...] As vezes tem uma dificuldade grande mas, eles tem
aquele cuidado de pagar o Plano de Saúde. E nós, que só espera pelos
hospitais , as pessoa fica doente que nem pode ficar doente, por que quando
a gente ..qualquer doencinha não leva a gente para o hospital não. Só se for
uma coisa muito , uma infecção muito grande que precise mesmo do
médico.”
81
Dentro dessa situação precária, o trabalho do Sementinha é apontado como
vital, pois entra com o seu diagnóstico e os tratamentos com ervas antes que a pessoa
fique em um estado mais grave. Em alguns casos, esses diagnóstico e tratamento são
complementados pelo Serviço de Saúde, como exemplificado, por Dna Creusa, no caso
de tuberculose:
“Aí nós tem, nós sabemos que se uma pessoa fica tuberculoso , a gente
sabe que ele tá, tá com aquela dor nas costa, com aquela febre contínua e
tal. Vai lá para testificar se é mesmo tuberculose. Que a tuberculose só
testifica não é pelo RX. RX não dá tuberculose em ninguém, por que é pelo
escarro. Se a pessoa fez o escarro e deu tuberculose, tem que tratar. E, aí,
nós nem trata lá no posto. Nós tem assa-peixe e saião, que é o maior
remédio para essas coisas, então a gente trata. Toma o remédio do posto,
por que é 6 mês de tratamento, que é para evitar de passar para as pessoa
de pegar a doença. Por que o vírus da tuberculose ele transmite para as
pessoa. E dele estando em tratamento não tem perigo, pode comer até com
a colher que ele comeu. Não tem esse negócio.”
Na alimentação, outra diferença, pois as pessoas do Centro, segundo Dna
Creusa “comem mas , não se alimenta” . Nutrir-se e como nutrir-se é outra diferença
“...se você sabe criar seu filho bem criado , e não tem dinheiro, mesmo nos
final de feira você compra bastante legume e leva verdura e nutre seu filho.
Se você é rico e só come bobeira, por que essas coisinhas de caviar essas
coisas assim, isso não é coisa de alimento, isso é coisa de vaidade. Então, a
pessoa, tem pessoas pobres que são mais alimentadas do que rico que tem
dinheiro. Por que eles não comem o necessário para alimentar, para ter
saúde no sangue. Tem pessoa que é rico e tá anêmico, por causa do que se
alimenta.”
Outra diferença apontada por Carla é a relação com o consumo, o consumo
simbólico. As pessoas da classe média tem a perspectiva de fazer economia para, por
exemplo, comprar um carro.
82
“Como a população sabe que nunca vai comprar um carro, então, troca de
televisão toda hora. Tem duas, três televisões em casa. Compra um
aparelho qualquer. Troca um móvel por um de qualidade inferior, mas
porque aquele já estava feio, velho. A gente restaura, eu particularmente
restauro tudo, reformo, reciclo, reutilizo. Mas eles não, eles compram o
inferior, mas é aquela coisa do novo. Essa mesa é nova, essa cadeira é
nova. Eu percebo a relação com o dinheiro, com o consumo, é uma relação
diferente também. Dessa coisa mesmo introjetada, do capitalismo, eu tô
podendo comprar. Eu não posso sair daqui e ter uma casa melhor, eu não
posso ter um carro, mas posso ter um ventilador, mesmo que eu não precise
muito. Trocar a televisão mesmo que eu já tenha uma. Eu vejo as pessoas
de fora também, escandalizadas com isso: ‘Não entendendo porque que é
pobre e ainda comprou, mas não precisa tanto, podia poupar’. Mas as
pessoas não têm a perspectiva de comprar uma casa. Não tem, sabe que é
dificílimo poder sair dali um dia. Elas ganham hoje, gastam hoje, e amanhã
se viram. É diferente também, eu percebo.”
A diferença de classe e de consumo também é apontada por Dna Creusa
“Quem mora nas comunidade carente até pode possuir carro, mas não tem nem onde
guardar o carro. Tem que pagar para guardar. Então é preferível ele andar mesmo de
ônibus.”
Dos lugares onde se vive, das vivências e das sobrevivências:
Nos lugares onde se vive, há também as diferenças, aqui relacionadas à classe
social. Wellington se refere à arquitetura da classe média, “uma concepção que em
algum momento deverá ser execrada por que é uma arquitetura que supõe uma
sociedade absolutamente fragmentada e que ninguém tem nada a ver com ninguém
[...] E mais, em princípio o seu vizinho é seu adversário” . Já nas comunidades, é
possível ver as pessoas se encontrando, “a vida acontecendo ali, de fato, as pessoas se
encontrando em redes sociais. Inexoráveis. Não dá para não ver [...]. Afinal, é um
mundo diferente do meu” , conclui .
Diferenças de classe que produzem diferentes estruturas básicas de
sobrevivência. Estas também são diferenças entre as pessoas do CEPEL e do ELOS, de
classe média, e as pessoas da comunidade, de classe popular. Carla cita Valla que diz
83
“Eu sei que eu vou jantar hoje, amanhã eu também sei que vou jantar, e no final do mês
tem o meu salário, então, a princípio eu vou jantar todas as noites”. Essa estrutura gera
tranqüilidade, a qual as pessoas das comunidades não tem. Como diz Carla : “o almoço
e depois a janta, amanhã será que vai ter comida, será que vai ter trabalho, será que
vai ter dinheiro, como que eu vou fazer? É tudo pensado meio que assim. Será que eu tô
vivo?”
É dessa vivência diária com as necessidades que a pessoa da comunidade tira
uma forte motivação para a busca de informação, diz Wellington. Para ele, as pessoas
da academia e da classe média criam as suas necessidades , porém “as necessidades lá
são materiais [...] a necessidade é o principal parâmetro” . Cita uma pessoa da
comunidade com a qual trabalhou nos tempos do programa de rádio , que dizia “A
necessidade é minha principal fonte de informação” ( Zé Carlos, da ONG Maré Limpa).
Essa vivência, esse modo de se viver, essa vida de quem mora no Centro e de
quem mora na periferia, também é apontada por Dna Creusa como outra diferença pois
“As pessoas que moram no centro , eles podem até estar num mês, mas no outro já
estão empregados. Mas, quem mora nas periferia, nos bairro, é difícil de arrumar
trabalho”. Essa situação de vida leva a diferentes modos de ver os problemas “ A pessoa
está desempregada, não tem um dinheiro para nada. Ele vai encarar um problema que
deu na sua casa? Um vazamento, uma coisa. Não tem com quê. Ele tem que sair
procurando recursos com as pessoas”.
Na diferença de classes também está uma base para a diferença de
conhecimento, porque, como diz Dna. Creusa, “eles têm um conhecimento do dinheiro
da riqueza. E a pobreza é outra coisa.” . A pobreza dá outro conhecimento, a pobreza
aqui referida, como sendo a de poder aquisitivo. Porém, acrescenta Dna Creusa, há
pobres que são ricos e ricos que são pobres, e o diferencial aqui é não é o poder
aquisitivo, mas, solidariedade:
“Pobreza, gente, tem muitos tipo de pobreza. Existe muitos tipo de pobreza.
Tem pessoa que é cheio do dinheiro e é pobre, não tem nada, não tem nada
de si. Tem dinheiro , mas é avarento, só se pensa naquele dinheiro que tem.
E tem pessoa que é do salário mínimo e se considera rico. Eu não sou
pobre. Eu tenho convivido com os pobre de espírito. Pessoa que tem
dinheiro e faz daquele dinheiro o seu deus. Nem gastar para se alimentar,
gasta. Então esse é um pobre , o mais pobre que existe. O que está com
dinheiro e nem pensa de gastar ele. Se apega. Faz daquele dinheiro, um
84
Deus. Quer dizer que ele está idolatrando. Trabalhou, trabalhou, trabalhou,
juntou, morreu e deixou tudo, para quem? Então, é um insensato. Por que a
pior pobreza que pode ter é de espírito. Por que a pessoa não pensa nem no
outro que está passando fome.”
Após essa fala, Dna Creusa deu um exemplo de como essa pobreza de espírito
também pode estar entre os pobres, economicamente falando. Assim, a solidariedade é
um diferencial entre pessoas e não, necessariamente, entre pessoas de classes sociais
diferentes.
As formas de expressar os conflitos e a linguagem nessas ocasiões também são
diferentes entre pessoas das comunidades e pessoas do CEPEL e do ELOS. Nas pessoas
da comunidade, diz Carla,
“é um nível de agressividade muito maior. Essa delicadeza que a classe
média, né, as altas camadas têm, no trato. Têm uma rudeza que as vezes nos
choca, nos espanta. Vou te dar um exemplo: eu assessoro um coletivo de
mulheres e estava num encontro e fui cedo pra ajudar a limpar o chão...
tava lá muito cedo, e sabia que havia conflitos entre os grupos, sabia o
porque dos conflitos e tinha pedido pras pessoas ficarem calmas, que
depois a gente avaliava na próxima reunião, mas que ali a gente precisava
fazer o encontro acontecer, né. E aí eu estava apavorada como é que uma
mandava a outra tomar no cú várias vezes e ‘não fode’, que não sei que. E
muitas vezes, a outra pessoa [...]... não levava isso tão a mal, que entendia
que a outra estava nervosa, a linguagem é muito diferente. Não acho que
hoje em dia falte tanto vocabulário pra essas pessoas, como faltava
antigamente. Não sei se é a televisão, o acesso às informações aumentou, o
vocabulário não é tão restrito como era, mas a rudeza no trato e a
incorporação de palavras violentas e métodos violentos na lida com o
outro, eu vejo mesmo nos grupos organizados, mesmo com orientação
religiosa forte, a violência, ela é muito mais presente no cotidiano dessas
pessoas, nas relações do que pra gente. Tipo assim: as pessoas estão
discutindo em uma reunião, uma sai e diz assim: ‘Eu vou pegar de pau, vou
chamar os meninos que vão dar uma surra, vou mandar matar ela, se ela
continuar assim eu mando matar’. Você fica assim, mas como que vai matar
porque... porque discutiu numa reunião, sabe como é que é? Umas coisas
85
assim... a violência é muito mais presente. A gente não tem noção de como
as relações estão violentas. Como as pessoas estão embrutecidas, como é
que a vida vale cada vez menos. Eu percebo também, com a exacerbação da
violência urbana, mas no interior das comunidades, a tolerância e o
diálogo estão ficando cada vez mais difíceis. Ou você faz o que eu quero e
me obedece ou então...”
No entanto, nas relações com o CEPEL, Carla diz que não há agressividade,
pois o CEPEL traz a perspectiva do diálogo, a perspectiva de que podem se acalmar, as
coisas podem ser resolvidas de uma outra forma.
O tempo e o destino:
A relação com o tempo é diferente, diz Carla, “A relação deles com o tempo é
muito mais imediatista do que nós, por exemplo. A gente é capaz de começar a pensar
uma reunião, meses antes [...]... ‘semana que vem já é muito longe, mês que vem então,
eu não sei se eu tô vivo’”. Ela aponta que o tempo é um parâmetro que pode vir a ser
modificado nas relações da comunidade com o CEPEL:
“A gente até traz uma outra noção de tempo: Esse ano não deu mas ano
que vem vai dar, nós temos o ano que vem ainda. Pra eles não é fácil
pensar daqui há um ano, daqui há dois, eles querem pra amanhã, pra
ontem. Por que tem a fome, tem uma série de coisas. A campanha da fome:
‘Quem tem fome, tem pressa’. A gente traz esse olhar de processo, que
muitas vezes eles não conseguem ter em função da emergência da sua
situação.”
Wellington levantou a hipótese de que “a questão do destino” , a supra
determinação dos fenômenos, pode também ser entendida diferentemente entre as
pessoas da academia e as pessoas da comunidade. Exemplifica um entendimento
acadêmico baseado na teoria newtoniana,
“se em algum momento você souber a direção e a força, a intensidade de
todas as forças que atuam no universo, então você saberá o passado e o
86
futuro de todo o universo, de todo o cosmos de toda a humanidade. Então,
essa também é uma idéia de destino”.
Essa é uma idéia da ciência de que o homem pode conhecer o seu destino mas,
não tem controle sobre ele. No entanto, esse não-controle, longe de ser consensual
constitui-se em um grande embate científico, qual seja: as coisas estão pré-determinadas
ou não estão? Conclui que,
“Também no pensamento comum há pessoas que acreditam no destino e
outras não. O determinismo científico ou o destino, ambos têm origem nos
mitos ancestrais, e não são diferentes. Particularmente, não tenho esse tipo
de fé, sou indeterminista, acredito na ação. Acredito na fé que move as
pessoas.”
As igualdades nas diferenças:
Para Dna Creusa ELOS e CEPEL são iguais, no que diz respeito ao objeto de
trabalho, já que os dois trabalham com saúde. Os diferencia das pessoas de sua
comunidade, pois as pessoas do ELOS e do CEPEL tem “cultura ”.
“Tem até médico. Tem até pessoas que estudou medicina [...] a diferença
entre nós da comunidade , comunidade carente, para eles que trabalha é
muito grande, por que eles tem cultura. As pessoas não tem cultura. Tem
sabedoria também , muita gente das comunidade tem sabedoria, mas não
tem cultura. Às vezes fala palavra que nem sabe o que que está falando, aí
conversa ...mas as pessoas que tem cultura sabem discernir, sabe
diferenciar. Então a diferença que eu acho entre nós, acho muita diferença
mesmo”.
Na sua relação com o CEPEL, diz Dna Creusa, uma outra diferença é que o
Sementinha procura recursos no CEPEL e não o contrário. “A diferença que têm de nós
para eles é procurar recursos neles. Se lá na comunidade, as 6 comunidade que faz
parte do grupo Sementinha precisar de alguma coisa, a gente vem aqui falar, no
CEPEL”.
87
Caminhos cruzados:
Para Wellington, há uma tendência, inexorável, em “ a ciência virar senso-
comum” . Aqui, explica que:
“a gente fala senso comum ,a gente fala representação social , e a gente
fala saber popular ou cultura popular. Esses termos são termos correlatos,
embora não sejam, sinônimo. A diferença é a referência em disciplinas
diferentes. Então quando a gente diz representações sociais, estamos no
campo da sociologia.”
A tendência, da qual fala, deve-se ao fato de cada vez mais um número maior
de pessoas tem acesso ao conhecimento científico, dentro de uma cultura geral. Esse
conhecimento é uma das principais fontes que conformam atualmente o senso comum,
direta ou indiretamente.
“O pensamento comum é perspassado enormemente, mais do que se pensa,
pelo pensamento científico, pela racionalidade científica. Seja através do
interesse cada vez maior na mídia , por periódicos, páginas especializadas,
na divulgação científica. Há todo um investimento atualmente, diretamente
relacionado, investimentos que eu digo, inclusive de pesquisa nas
academias, relacionados, com a divulgação científica. Mas esse acesso é
determinado por classe social.”
É necessário estar atento a este processo de incorporação, atento para “de que
ciência falamos?”, pois essa ciência pode ser a “ ciência-mito”, uma nova religião. Aqui,
Wellington se refere especialmente a lei das probabilidades, dentro de uma certa
epidemiologia, com a qual, mesmo tendo o pesquisador feito pesquisa de campo, ao
voltar ao gabinete referencia seus dados por uma população teórica. Sem descartar essa
teoria, que segundo ele é útil dentro de seu contexto quantificável, Wellington teme que
essa ciência, distante da população real, seja a que esta sendo ou possa ser incorporada
pelo senso comum. Ele exemplifica:
“A idéia de ‘risco’ referente a um atributo de conjunto, uma qualidade do
coletivo, mas tende a ser interpretado como um atributo individual e a
88
conseqüente culpabilização dos indivíduos pelos seus ‘desvios’ de conduta.
O mito transfigura-se em ideologia”.
“Estou junto, estou me igualando”:
Diferenças, algumas que calam mais fundo. Diferenças que a (con) vivência se
encarrega de aparar, conclui Dna Creusa, e até de igualar. Os diferentes continuam
diferentes, mas iguais:
“A vivência é diferente mas, é quase igual. Eu acho que a vivência com o
pessoal, quando a gente começa a conviver, fica tudo igual, Tanto faz ser
da comunidade como ser da instituição. Por que nós tem um pensamento
diferente, lá. O pensamento da gente na comunidade é diferente com as
pessoas mas, quando a gente começa a lidar com eles, se junta, começa a
trabalhar junto termina ficando tudo igual., os pensamento. Se entrosa,
tanto no trabalho não tem desconfiança deles, por que a gente tá junto com
eles, está aprendendo a ser...igual, viver igual. Tanto faz ser da comunidade
como ser da. Não tem diferença muito, não. Eles aprende lá com a gente a
vivência, e a gente com eles também, é a mesma coisa. Conforme eles vive a
gente se acostuma a viver junto. Eu não acho diferença de eu chegar aqui e
o Eduardo estar lá junto numa reunião com outras pessoas. Eu não acho
diferente, muito não. Já estou acostumada , para mim tanto faz eu ser de
uma comunidade como não ser [...] eu acho a igualdade a coisa mais... Se
igualar. Eu me igualei com eles, embora que eles não seja igual à mim, mas
eu tou igual , eu estou junto, eu estou me igualando”.
Igualdade, diz ela, que está no fato de todos serem seres humanos, igualdade
que basta querer para ser resgatada:
“...Eu tenho a impressão que tanto faz as pessoas de lá da comunidade,
quanto as pessoas daqui. É só eles querer ser igual, a igualdade. Por que
eles podem ser desigual em pobreza, eles ser mais rico, mas em pessoa
somos tudo igual, todo mundo vai morrer. Ninguém é diferente de ninguém.
Não tem branco, não tem preto, não tem amarelo, não tem estrangeiro, não
tem brasileiro. Tudo é pessoa, criaturas de Deus.”
89
O que nos move ao diálogo.
O diálogo com o outro grupo:
O que move as pessoas com as quais conversei à buscar o diálogo é
principalmente os seus sonhos, aqui já relatados. No entanto, fiz mais algumas
perguntas para investigar se haveria algo mais que poderiam apresentar como sendo
motivações para um trabalho dialógico com outros grupos.
Wellington diz que no seu caso particular houve circunstâncias, aqui já
relatadas, que o motivaram para o trabalho coletivo, a busca do conhecimento do outro.
No entanto, acredita que não é necessário que as pessoas tenham “...nascido, se criado
na roça do Piauí pra fazer essas coisas...” . A história pode ser um facilitador, como a
sua o é. Porém, acrescenta, mesmo pessoas que estiveram na militância por causas
sociais, hoje estão voltados para sua própria causa. Essas pessoas procuraram esse
caminho. A história de cada um pode ter fatos semelhantes à história de outros, mas
nada garante os mesmos desfechos.
Reportando-se especificamente a pessoas da academia, Wellington diz que há
quem se satisfaça com sua produção científica, com quanto sua produtividade poderá
reverter em benefício do seu currículo, “É aquilo que as satisfaz, inclusive
existencialmente. Então não há como querer essas pessoas fazendo esse outro tipo de
coisa. Eu só posso fazer uma crítica geral a academia. Eu acho que ficou muito
exagerada essa tendência” . Wellington faz a ressalva de que há alguns tipos de
pesquisa, como certas pesquisas básicas em certas áreas do conhecimento, que não há
como o pesquisador ir à comunidade. Porém em sua área, a epidemiologia, ele deixa
claro seu ponto de vista, ou seja, mesmo na pesquisa básica há questões que dizem
respeito à vida das pessoas, de modo que, mesmo aí, o pesquisador deveria se
referenciar no que ele chama de população real. Porém, alerta, há uma tendência
exagerada, na academia, em fazer pesquisas de gabinete, mesmo quando se fala de
comunidades.
Por outro lado, Carla afirma que a auto-promoção pode ser o motor não do
isolamento em relação à comunidade, como exemplificou Wellington em relação à
academia, mas exatamente o contrário, da busca da comunidade. Para Carla há, em
90
certas áreas, uma valorização cultural e até econômica se o trabalho é feito envolvendo-
se pessoas da comunidade. No entanto, ela questiona:
“...eu tô a serviço de quem? Da minha publicação? Da minha carreira? Ou
estou a serviço do meu desejo de ser eleita nas próximas eleições? Ou seja
lá por que. Não é só academia e as ONGs, também são os políticos, é tanta
gente que vai pra comunidade pra se promover. Em função dos seus
objetivos, e é por isso que a vida das pessoas continua do jeito que tá. Tem
a interlocução com atores externos, tem sempre interlocução. Mas
interlocuções com finalidades egoísticas.”
Quando perguntado sobre o que motiva as pessoas à busca do diálogo,
Wellington diz que as motivações são diversas, mas “...qualquer boa causa tem que ser
uma boa causa política e uma boa causa existencial” , o acreditar que “você tá fazendo
um pouquinho, que você tá colocando uma sementezinha”. Do ponto de vista
existencial, é um trabalho em que faz bem a quem o faz, mesmo se não se sabe ao certo
quão bem ele faz ao outro e quais serão as conseqüências históricas desse trabalho. “...o
que eu posso dizer é que isso me satisfaz e muito. Do ponto de vista existencial nosso,
só conseguiríamos viver dessa forma” .É o que diz Dna Creusa ao afirmar que o
trabalho com comunidade é um trabalho “... por vocação, é por amor”.
Gostar de estar alí, em meio às redes sociais, em meio à comunidade, é também
apontado como sendo um motivador para o trabalho com comunidades, é o que diz
Wellington:
“...você tem que gostar de estar lá , entendeu? [...] gostar de estar ali é
gostar daquele fruzuê, é gostar daquela vida , por isso chama de
comunidade, é gostar daquela coisa diferente dos ambientes urbanos de
classe média por que você vê claramente as redes sociais acontecendo [...]a
gente olha assim, aquela confusão, aquela coisa aparentemente caótica,
aquilo são redes sociais, né? Não são caóticas, não são [...] Eu gosto desse
clima. É a coisa mais gostosa, você vê a vida, você vê o gosto pela vida.”
A relação afetiva também move ao trabalho com o outro, diz Carla “...eu vou
por que vou encontrar o fulano, e eu gosto dele [...] vou por que aquela pessoa me
convidou”.
91
Um outro aspecto, colocado por Dna Creusa é a confiança depositada no outro.
Ao exemplificar com sua relação com CEPEL e ELOS, diz que essa confiança “...vem
do meu coração. Por que eu sinto alguma coisa boa que tem neles. Por que se nós tem
um sentimento, nosso coração, mesmo quando se abre para ajudar, para fazer alguma
coisa, a gente também sente no coração do outro que foi também aberto[...]se a gente
procura é por que confia ”. Segundo ela, essa confiança é a base sobre a qual se
construirá o conhecimento compartilhado, pois um confia no que o outro diz. Dá como
exemplo o seu próprio conhecimento sobre o Nordeste, com o qual já contribuiu em
estudos acadêmicos sobre essa região “... eu tenho um conhecimento do Nordeste
porque eu vim de lá, e as pessoas daqui não conhece nada de Norte, eles tem que
confiar em mim, no que eu falei. Então, se eu falei para eles e eles confiaram, e foi
verdade o que eu falei, eles vão encontrar”.
Carla acrescenta que algumas pessoas da comunidade procuram participar de
trabalhos com o CEPEL e ELOS pois acham importante serem ouvidas além do seu
meio. Exemplifica com Dna. Creusa “que é uma pessoa que vocês conhecem”, ela “
...está nas reuniões, está falando da sua realidade, de como ela percebe as coisas. Pra
ela isso é muito importante, pra ela isso deve ser terapêutico em si, portanto é
suficiente”.
Uma postura, que claramente incomoda Wellington, é a importação de idéias e
tecnologia, sem crítica, sem adequações, ao que ele chama de colonização. Diria que,
para Wellington, esse modo de pensar a pesquisa e a tecnologia tanto desmotivaria o
diálogo quanto obstruiria o seu caminho. Neste ponto, chama a atenção para o fato de
que pessoas que acreditam que as respostas às suas dúvidas científicas está nos países
do Norte, “...passam a não ver mais as coisas como elas estão acontecendo por aqui e
aí nós passamos a importar modelos e tecnologias geralmente inadequadas à nossa
situação quando nós poderíamos estar desenvolvendo a nossa tecnologia, os nossos
métodos, os nossos modelos”. Ele chama a atenção para a questão da autonomia e da
soberania nacional, ambas em risco nessas importações acríticas. Ressalva que não quer
que se “...jogue pro alto tudo o que é desenvolvido no Canadá, nos Estados Unidos e
na Europa [...] É claro que a gente tem que ter a referência de tudo o que se faz no
mundo [...] eu quero dizer que nós temos que pegar todas as referências e criticamente
ver o que se adequa à nossa situação” .
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Do diálogo no meu grupo:
Todos os entrevistados trabalham em equipe. Muito já foi falado anteriormente,
ao se apresentar o ELOS, CEPEL e Sementinha, sobre o seus trabalhos em grupo, suas
dinâmicas, resultados, dificuldades, peculiariedades. Apesar de não haver uma pergunta
específica sobre se haveria relação entre trabalho dialógico e trabalho em equipe, todos
fizeram considerações sobre a importância do trabalho em equipe, de haver um grupo
com o qual conversar sobre as angústias, as dúvidas, os sonhos. Para esta seção tentei
buscar essas considerações mais gerais, na tentativa de identificar o que pode mover as
pessoas a procurarem o trabalho em equipe e que conselhos dariam, os entrevistados,
tanto para que esse diálogo entre os do seu grupo ocorresse de fato quanto para sua
avaliação.
Wellington começa por dizer que “...não existe vôo solo em quase nada.
Talvez alguns tenham ilusão que estão fazendo vôo solo”. Para ele também é uma ilusão
achar que alguma idéia é só sua, e que ela não será entendida, compartilhada ou mesmo
que já não tivesse sido anteriormente pensada por outro:
“... se você tem uma boa idéia e você pensa que só você pensou isso, então
você tá ferrado, você está sozinho no mundo, você não tem ninguém junto
com você, então [...] vá publicar, vá fazer seu currículo, vá fazer esse tipo
de coisa, se dedique a esse tipo de coisa. Agora, se você pensa uma idéia
que você acha que é nova, - Ôpa! Pensei uma coisa legal, uma coisa nova..
E ao mesmo tempo você pensa assim, ora, se eu pude pensar isso, se me foi
dado culturalmente, socialmente, historicamente, academicamente até, se
me foi dado pensar isso, isso foi dado pra outros pensarem também, então
não tô só. Na medida em que... quando eu penso uma coisa que eu acho
que é boa, imediatamente me vem é o seguinte: quantos mais estarão
pensando isso?”
Essa certeza de não estar só é que dá a força de prosseguir, acreditar e sonhar,
diz ele. O trabalho em equipe dá o referencial do “chão”, do qual ele falava ao dizer de
seus sonhos (sonhar com os pés no chão), pois trabalhando em equipe “v ocê tem
permissão para voar”. Os outros do grupo podem ajudar a avaliar as idéias que cada um
tem:
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“...porque você pode ter uma ótima idéia numa noite de insônia, mas até
você conversar com outro você não vai saber se aquilo é uma besteira ou
não é. Você, na sua empolgação pode ser que é uma coisa muito grandiosa
e é uma grande besteira e você pra não se deixar enganar, claro, você tem
que conversar com os outros.”
Para Dna Creusa, só se tem força para o trabalho quando se está unido. A
certeza dessa força, da união, faz com que nas reuniões haja mais aceitação e conversa,
e “...mesmo quando as pessoas não quer se unir, a gente faz jeito de se unir [...] a gente
se entende” . Para essa união, ela diz ser necessário:
“...ter paz, procurar relevar as coisas. Por que a gente sabe que cada
cabeça tem um pensamento, é tudo diferente, cada pessoa pensa diferente.
Mas, aí a gente vamo entendendo o outro. O negócio é ter união e
compreensão. Saber perdoar, por que se não souber perdoar, não tem nada
que vai para frente. Por que o perdão é tudo. Hoje a gente está achando
diferença numa pessoa, por que cada dia é um dia. Aí a gente acha
diferença, e se a gente for ficar também todo torto para o lado dele. Não, a
gente tem que fazer jeito de saber o que que é que tá acontecendo com a
pessoa pra a gente poder ter uma solução. E assim, nós tamos vivendo, tem
união, nós não somos desunido.”
A primeira identificação para a formação de um grupo, é política, diz
Wellington, há que se ter um acordo político. Tendo-se essa identificação, depois pode-
se conversar sobre discordâncias e consensos. Partindo-se da identificação política, a
diversidade é bem vinda, é a riqueza e o ideal “...desde que todos estejam dispostos a
praticar um pouco de democracia” . O acreditar no seu trabalho e o desejo que ele
continue mantém o grupo, pois “...se o grupo fosse se desfazendo ia terminar em nada,
por que duas pessoas é um grupo, só não pode ser uma pessoa só” ( dna Creusa).
Pessoas que trabalham em equipe também tem outro tipo de identificação além
da política, que é dada pelo convívio, diz Wellington, pois é nesse convívio entre
pessoas e idéias, que estas são discutidas e, eventualmente, modificadas. O convívio
implica em “gostar um dos outros. Se não tiver afetividade não anda, não anda. Não
existe equipe sem afetividade”. Um bom indicador para medir essa afetividade é se o
grupo almoça junto. “...se não encontra tempo pra almoçar junto, desconfie, porque a
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gente não faz mais, como se pensava antigamente, abdicar da vida pra se dedicar a
uma causa, e tal... Não existe isso.” No convívio, diz Dna Creusa, as pessoas aprendem,
e o aprendizado “faz o grupo crescer” .
O que nos põe em diálogo.
Neste ponto perguntei aos entrevistados, dentro de suas experiências e reflexões,
o que apontariam como facilitador e/ou dificultador do diálogo. Além de haver essa
pergunta específica, em outros momentos, por exemplo, ao falarem de suas
experiências, os entrevistados também apontaram posturas e procedimentos, tanto
pessoais quanto institucionais, que, no seu entender, propiciaram ou dificultaram o
diálogo com o outro naquelas ocasiões. Nessa diversidade de experiências procurei
indícios do que essas pessoas poderiam nos dizer sobre como se por em diálogo.
O convívio:
“Convívio”, essa é a palavra chave para ao diálogo. Sem ele não há diálogo. O
convívio é tão vital que Wellington alerta que ele deve ser introduzido e explicitado na
Metodologia do trabalho. Deste modo, diz ele, o convívio “...passa a ser não apenas
um dado da existência de quem faz a pesquisa, do pesquisador” , mas sim, o cerne do
“fazer”, explicitado, experimentado, avaliado. Conviver é estar junto, olhar nos olhos,
conversar frente à frente, como diz Dna Creusa:
“ Por que não tem coisa melhor...a gente pode até ser, atender o telefone,
conversar pelo telefone mas, é muito dificil conversar pelo telefone e a
gente ficar satisfeita , por que a gente olhando para a pessoa , a gente tem
aquele prazer. Tem prazer de estar junto. Tem pessoa que não, um alô e já
está satisfeito”.
O convívio é a arte de se relacionar, diz Wellington, dá intensidade à relação,
sabor ao fazer e gera afetividade e saber:
“Eu sabia que eu ficaria muito querido delas e eu também teria muita
querência por elas. E isso, além do gosto. Então eu quero dizer que então
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não é que a gente ‘ah, eu vou fazer isso, eu vou conviver, vou ter amor
pelas pessoas para eu me aproveitar’ [...] Não, não é bem assim. É saber e
sabor. É sabor e saber. O tempo todo.”
Essa convivência, diz Wellington, é também
“... paisagística, mesmo que não tenha muita gente na rua passando, as
coisas foram feitas pelas pessoas, então eu estou passando pela pessoa
nesse sentido. E a poética. Você vai entendendo a poética da vida e das
pessoas. Você vai entendendo que há uma poesia não escrita sobre as
ruínas, como falou uma vez , como tem um livro que foi arranjado,
mimeografado por uma pessoa moradora da vila do João . Ela falou
‘poesia sobre ruínas’, no duplo sentido: poesia sobreposta às ruínas e à
respeito das ruínas.”
Simpatia, confiança, humildade, sensibilidade, respeito - moedas para o
convívio:
Para que aconteça o convívio, há algumas condições. No nível pessoal, todos
concordam com a simpatia – aquela que nos põe em sintonia com o outro – e a
sensibilidade, para que os outros gostem de estar junto, de estar por perto, de conversar.
Para tanto, como já foi dito acima, é necessário gostar de estar lá, de conhecer pessoas,
um gostar autêntico que coloca as pessoas em uma relação de confiança. Saber-se
depositário dessa confiança, por sua vez, alimenta o “gostar”, diz Wellington “...quem
lida com pessoas diferentes, quem lida com a público é você ..uma satisfação muito
grande é saber que naquele momento a pessoa está confiando em você” . A confiança,
segundo Wellington, é “a moeda do convívio”.
Falando sobre a confiança, Dna Creusa traz algumas reflexões sobre a falsidade
e a mentira. Quem mente, diz ela, rouba a consciência do outro:
“ele mentiu para a pessoa, [...] e quem é mentiroso é ladrão , ladrão de si
próprio. Porque ele rouba a fidelidade dele na mentira. Por que eu posso
dizer para você que eu faço tudo e não faço nada. Você não viu, você
confiou em mim. O negócio é ter confiança na pessoa, e a pessoa ser de
confiança para trabalhar junto. Tem que ter confiança e ter fidelidade.”
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É na convivência, diz ela, que se descobre em quem confiar e, na convivência, é
possível verificar “... se aquela pessoa é sincera. Por que você procurou uma pessoa do
movimento, mas no meio daquele mesmo você descobre que ele não era certo para
aquilo que você estava querendo [...] Então, tem que estar no meio deles para você
descobrir e ver que não é de confiança. Só na convivência a gente vai descobrindo.”
Na convivência é possível detectar a falsidade, diz ela. Perguntada sobre como
se detecta a falsidade, responde “Não tem pessoa que não conheça a falsidade. Todo
mundo conhece quando a pessoa é falsa”. É no estar juntos, “olhando para o olho do
outro” que o principal sinal aparece “Não encara com a gente de jeito nenhum” . A
mentira, diz ela, tem perna curta “ Por que a gente pode até dizer que está correndo
tudo bem. Mas de uma hora para outra aparece lá, o que é que deu? Não estou vendo
nada. Então, a mentira tem perna curta, não adianta mentir não”. As pessoas do
CEPEL e do ELOS, diz ela, “eles encara com a gente, eles não tem falso. Eles fazem a
coisa certa” . Falando de Kena, Dna Creusa diz que “nesse negócio de olhar para a
gente, eu acho que Kena ela tem muita capacidade assim de ... ela lê o letreiro das
pessoas, ela sabe quando [...] o trabalho não tá rendendo”.
Dna Creusa acrescenta à confiança, a simplicidade que nos põe como iguais, a
partir da aceitação das diferenças. Que faz com que todos se sentem e tenham espaço
para falar e para ouvir. Sua ausência, diz Dna Creusa, põe as pessoas falando sem
sequer notar a presença do outro. Simplicidade não é uma pseudo-aceitação, muitas
vezes contidas em falsas manifestações de apreço no encontro oportunista entre pessoas.
A simplicidade autêntica permeia o fazer de quem a tem, uma simplicidade histórica,
que antecede o encontro e, após ele, se mantém:
“É, a melhor coisa que existe nas pessoas é a simplicidade, ser simples. Se
a pessoa se apresenta com simplicidade, a gente conhece. Por que tem
pessoas que se apresenta e nem é aquilo que ele se apresentou e ... com
aquele orgulho, pessoas orgulhosas . Eles acha ‘eles são de comunidade, eu
sou do centro, sou maior’. Mas, eles não podem , lá não tem maior, nem
menor, as pessoas tem que se igualar, se igualar às pessoas. As pessoas
podem ser o que for, mas ele aceitando as pessoas conforme eles são , eles
também vão ser aceitos, por que tem pessoas que passam pelas
comunidades, se apresentam numa comunidade e em vez de deixar
saudades, as pessoas fica é com raiva deles. Por que foi muito orgulhoso,
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teve muita, foi muito , não se igualou. Mesmo que ele seja até... quando as
pessoas vai nas comunidade, se ele for prefeito, se ele for governador , se
ele for secretario, quando eles chega nas comunidade, ele se faz do nosso,
ele se apresenta nós como se ele não tivesse cargo nenhum . O secretário
Fernando William, quando ele vai na nossa comunidade, por que ele foi da
nossa comunidade, já foi médico de lá. Quando ele vai lá, a
simplicidade...Mas, a gente sabe que ele é Secretario. Mas, ele vai com a
maior simplicidade. Ele é bem aceito por nós todos. Aí quando aparece,
assim, no final quando tem eleição, que eles aparecem lá conforme teve um
tempo que o Marcelo Alencar apareceu lá abraçando todo mundo, o
coração dele estava fechado para nós”
Após as eleições, conta Dna Creusa, o candidato não voltou mais à comunidade
e cancelou programas sociais. Wellington também alerta para os oportunismos que
levam a certas pesquisas nas quais o pesquisador se apresenta como alguém disposto ao
diálogo. Porém, ao término da coleta de dados, o diálogo se vai juntamente com o
pesquisador. Ele faz questão de frisar, que há pesquisadores que realmente são simples,
sensíveis, mas se inserem em pesquisas que, metodologicamente, o “diálogo” termina
com a coleta de dados “...essa pesquisa, e não essa pessoa, essa pesquisa que ele está
pode ser simplesmente uma pesquisa que vai lá pegou os dados e tchau e benção” .
Sensibilidade para as dinâmicas da comunidade, sensibilidade para ver, sentir a
paisagem mas também enquanto desejo de entendê-la; um entendimento que vem ao
longo do tempo, na convivência. A sensibilidade, diz Wellington
“...leva você a entender coisas que você não entende num primeiro
momento e jamais entenderia perguntando. Por exemplo, Na Vila do João
que eram todas casas meia-água, casas térreas, de meia-água, o conjunto
original , e hoje em dia você encontra raras dessas casas originais, todas
elas foram aumentadas, quase todas são pelo menos, dois andares. Então
ao longo do tempo você fica se perguntando ‘com é que foi isso, por que
que foi isso’, isso ao longo dos tempos, você olhando a paisagem , sentindo
a paisagem , você vai percebendo por exemplo, que aquilo ali é o processo
de acumulação, de poupança do trabalhadora, e você vê claramente que o
trabalhador, ele poupa, ele vai aumentando o seu patrimônio, pouco à
pouco, pouco à pouco. Qualquer coisinha que sobre do salário dele, ele vai
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ali e compra vinte tijolos, meio saquinho de cimento e acrescenta mais um
pouco de parede e vai fazendo vai fazendo e assim a paisagem vai
mudando”.
A sensibilidade, diz ele, “... não é um dom. É um aprendizado da vida” . É
necessário estar sempre atento pois, assim como se perde inteligência também se perde
sensibilidade. “São coisas que dependem de estar na luta , de estar na ativa, de estar,
vamos dizer, exercitando” . Assim, concluo que a sensibilidade não está dada, portanto,
é um processo de aprendizagem que está sendo sempre aguçado. É na convivência que
se constrói esse processo, esse desejo de entender. E as coisas vão se explicando ao
longo do tempo, na medida das convivências.
Sensibilidade aliada à simplicidade coloca a pessoa em sintonia com a
necessidade do outro e mais do que isso, muitas vezes coloca a sua própria necessidade
sob avaliação e/ou em compasso de espera, como relata Carla:
“...eu estou ajudando num encontro e eu cheguei na hora da organização e
a demanda era lavar o chão, eu fui lavar o chão. Os meus amigos dizem:
‘Eu não acredito’. ‘Gente, tá imundo. O encontro tem que acontecer e o
chão tá sujo. Cadê o rodo, a vassoura, o sabão?’. Então, é isso, é isso. Me
interessam as informações que eles têm, as condições de vida deles. Me
interessa pra gente pesquisar e juntar dados e publicar, tudo isso interessa.
Mas naquele momento o chão estava sujo, você tá entendendo? Vamos
limpar. Então, é essa sensibilidade e essa coisa de estar a serviço mesmo”.
Além da sensibilidade aos problemas do outro, Carla aponta o respeito
“ pelo saber do outro [...] pela necessidade do outro [...]. Volto aquela
questão da reunião de seis meses, que nós estamos preparando com a
população, e as pessoas dos grupos trazem outras coisas. Estão com fome, e
a bandidagem.... ‘Não, mas e a reunião que vai ser em julho do ano que
vem, vamos ver a pauta?’. Isso não diz respeito. Você não está ouvindo.
Você quer preparar a sua reunião e quer a ajuda deles. Mas o que eles
trazem não interessa. Você entende? Esse tipo de postura não forma
vínculo, ela não faz estabelecer um vínculo. Por que é assim: é a população
a serviço da ONG ou da academia ou de quem quer que seja...”.
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O tempo do convívio:
O convívio requer flexibilidade de tempo. Wellington fala da flexibilidade para
conviver com as pessoas da comunidade:
“Para conviver eu tenho que ter flexibilidade, por que as pessoas convivem
principalmente no final de semana. Toda pessoa que está no mercado
formal. E quando eu penso em comunidade, eu tenho que pensar nas
pessoas que moram naquela comunidade, que dormem naquela
comunidade. Há muita gente que fica, convive na comunidade, mas todo
pessoal que está no mercado formal está fora da comunidade. Usar um
versinho de uma letra de uma música de um amigo meu: no insano horário
comercial. Então se você introduz o convívio você tem que ter flexibilidade,
você tem que estar disponível sábado e domingo, à noite. A minha história
de convívio é nesses horários: sábado, domingo, à noite. Quando as
pessoas tem disponibilidade para conviver. Eu já fiz muita coisa durante
muitos anos, queimando sábado, queimando domingo e à noite também.
Sempre com muito prazer.”
O tempo, o respeito pelo tempo do outro. Reconhecer as diferenças culturais,
sociais e institucionais; conversar sobre os horários, fazer acordos. Caso contrário, as
diferenças na forma de organizar o tempo pode dificultar ou até impedir o convívio,
como alerta Carla:
“...é muito fácil você fazer uma assessoria de gabinete: ‘Não, eu estou aqui
aberto, venham e se reunam comigo. Agora, eu trabalho de nove às cinco,
cheguem às dez e quatro e meia nós temos que sair por que afinal de contas
eu tenho outros compromissos, já estou saindo.’ Justamente no horário em
que as pessoas que precisam sobreviver estão trabalhando. Tão produzindo.
E cinco horas estão trabalhando ainda. Contribuir com a população assim,
é um pouco complicado. Nem todo mundo vem, nem todo mundo pode”.
Um tempo no qual também é organizado o serviço de saúde, que “...em geral
funciona no mesmo horário de trabalho de quem está no mercado formal” . A
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organização do serviço é uma pedreira a ser quebrada, diz Wellington, para que se possa
fazer um trabalho de participação popular.
Porém, reorganizar o tempo para que o convívio se realize, ser flexível, é uma
atitude que não é reconhecida institucionalmente, diz Wellington , referindo-se a
instituição acadêmica.
“A instituição não reconhece. Se alguma coisa me acontecer em
conseqüência do meu trabalho, como eu já fiz aqui na Vila do João,
noturno, dando aula de matemática em curso de alfabetização de adultos
mas, procurando entender o imaginário dessas pessoas em relação à uma
série de questões. Então, eu estava lá, convivendo, é o meu gosto, mas
estava lá à trabalho. Se alguma coisa me acontece nesse horário que possa
ser conseqüência desse trabalho , se eu me acidento por exemplo, a
instituição não reconhece, claro que não. Que eu estou fora do meu
expediente.”
Assim, o que seria uma opção profissional, além de pessoal, é vista como
exclusivamente pessoal, já que
“ninguém me obriga à fazer isso. Durante um ano e meio fizemos um
programa de rádio aqui na Maré que era aos sábados à tarde. Eram duas
horas de sábado à tarde. Então me pegava o sábado, estava, em termos de
lazer, de classe média e tal, estava prejudicado”.
O que não quer dizer que não tinha lazer, frisa Wellington, mas outro lazer,
agora com a aquela comunidade.
Compromisso:
Falando sobre o tempo, diz Dna Creusa “tempo é preferência”. Conversar
sobre o tempo sempre é possível “Não é por causa do horário. Por que quando o
horário não está bom a gente pode marcar horário”. O que falta, diz ela, é
compromisso “Se eu tenho compromisso, se eu marquei , eu não sou obrigada de
marcar, mas sou obrigada de cumprir o que eu marquei. Então, quando a pessoa não
tem compromisso, não tem fidelidade, então vem as dificuldades.” O tempo, diz ela,
101
não atrapalha, o que atrapalha é a pessoa concordar com os horários dos encontros, e
depois não cumprir.
“... não tem nada de atrapalho. É conforme eu falei, é do compromisso da
pessoa, se a pessoa tem compromisso... Então, a gente marcamo uma
reunião geral do ano inteiro que era para prestamento de contas, foi
semana passada, mas aí quando chegou no horário da reunião, só tinha eu
e a Catarina. [...]É falta de responsabilidade [...] Então, não atrapalha
não. As pessoas não vem por que não quer.”
Carla aponta que trabalhos coletivos exigem tempo para reuniões e
participação nas atividades e, às vezes, exigem também recursos, como por exemplo,
para o deslocamento. Assim, tempo e recursos em certos casos, seriam também alguns
dos fatores que poderiam propiciar ou não a participação. Dna Creusa pondera, neste
ponto, que ressarcir as despesas com o deslocamente pode facilitar. Mas, novamente,
diz ela, o ponto central é o compromisso. Referindo-se à localização do CEPEL, ela diz
que atualmente ele esta localizado mais centralmente para as pessoas de sua
comunidade. No entanto,
“...de primeiro a gente se reunia e eles iam para a nossa comunidade.
Quando não era na comunidade era lá mesmo. Tinha o CEPEL lá em
Olaria. Aí nós se deslocava para Olaria, mas nós vinha de pé mesmo. Nem
de condução. Depois que eles vieram para cá, eles dão o dinheiro da
condução para nós vim. Então não tem atrapalho, é central. A gente pega o
ônibus na Penha e salta aqui, pega aqui salta na Penha. Não tem
dificuldade por causa disso. Nem por causa do dinheiro, por que eles dão
aquele vale-transporte”.
Compromisso que pode levar a continuidade ou não de projetos, diz ela,
referindo-se à Rede Local de Saúde, um projeto conjunto com o ELOS. Se as pessoas
têm compromissos assumidos mutualmente, devem expor quando acreditam que novos
rumos devem ser tomados. Senão, os projetos simplesmente se esvaziam, às vezes sem
se descobrir exatamente a razão.
102
“ Por que as coisas para começar é difícil, mas para terminar é num
instante termina. Essa rede estava sendo bem observada, estava
caminhando bem mesmo, se desfez de repente. Até julho foi a maior
decepção, por que nós estava caminhando todo mês, tinha reunião da rede,
tudo as comunidade vinha e foram deixando, foram deixando. Não sei se a
rede não satisfez e não tiveram capacidade de cobrar. Por que tinha o
direito de falar na reunião ‘eu não estou gostando desta rede por que
assim, assim, assim’. Mas não falaram nada e aí teve um Seminário sobre
renda mínima. Eu gostei tanto do Seminário, eu me empenhei tanto para
esse Seminário sair, trabalhemo nesse seminário mais de ano. E quando foi
no dia do Seminário, foi a maior decepção.”
Justamente nesse conjunto de posturas e valores, mais pessoais do que
institucionais, reside um dos principais motivadores à participação sobre a qual
abordarei na seção a seguir. Esses aspectos, diz Carla, é que fazem a referência para a
participação em outros grupos, é esse “gostar do outro (que me valoriza)”, que leva à
participação,
“ ‘Eu vou porque eu vou encontrar fulano e eu gosto dele. Eu gosto dele
porque ele dá valor a gente, eu gosto dele porque ele ajuda a gente... Eu
vou por causa dele.’ As pessoas não têm muita noção das instituições, não
conseguem ver assim. Como ele me disse: ‘Carla, eu vou, mas vou por
você’”.
Fazendo o diálogo acontecer: metodologias.
Este foco foi um dos mais difíceis de se analisar, pois que quase tudo o que se
falou até aqui trata também do “como fazer acontecer o diálogo”. No entanto, na
tentativa de, ao realizar análises, contribuir ao “fazer” da educação popular, procurei
separar um pouco os enfoques e para esta seção, tomar das falas dos entrevistados
conselhos e experiências voltados à efetivação da participação, dos ganhos que se
acrescentaria aos trabalhos que a tomassem como referência e alguns cuidados quando
com ela se trabalha. Também aqui eles falam de metodologias para o convívio, espaço
social onde ocorre a participação. Busquei ir além do que eles já nos falaram sobre o
103
convívio, de suas moedas, do tempo do convívio, do compromisso necessário para que
ocorra. Busquei, em suas experiências, como eles o fazem ocorrer e como –
metodologias - buscam, nesse convívio, o conhecimento necessário ao seu trabalho.
A participação: o que é , o que se ganha com ela e o que se perde sem ela:
Este subtítulo já mostra uma posição clara dos entrevistados, pois não há o que
se possa perder quando o trabalho baseia-se na participação da qual eles falam.
Wellington pontua que a Saúde Pública sempre supôs um tipo de participação popular.
Atualmente, a participação tem sido enfatizada, sendo o grande divisor de águas no
sistema de saúde, o que não quer dizer, necessariamente, que ocorra uma participação
legítima da população. Diz ele que a leitura que se faça dessa participação, presente em
vários documentos, pode ser a da participação passiva, tradicional, ou ativa, de sujeitos
“...senhores e senhoras da sua situação de saúde e da sua participação” .
A participação passiva ocorre, por exemplo, quando os conselhos distritais de
saúde chamam as pessoas das comunidades para legitimar políticas. Concretamente,
esta prática pode ser vista na generalização do “ ad referendum”. Algumas decisões
tomadas nas secretarias de saúde deveriam, por regulamenteo, passar antes pelos
Conselhos de Saúde. No entanto, devido ao tempo da burocracia apela-se ao “ ad
referendum”, ou seja, a Secretaria de Saúde toma a decisão e posteriormente o Conselho
a referenda “...as vezes, esse tempo da burocracia tem que cumprir porque não depende
do burocrata aqui da secretaria, depende do burocrata da instituição que financia,
então o burocrata que é financiado não pode recusar e ele tem que dizer ‘ad
referendum’”. Esse tempo da burocracia, diz ele, é tão diferente do tempo da
participação, que às vezes chegam a serem incompatíveis.
No âmbito das pesquisas, o pesquisador pode ser sensível, como se disse
acima, ir à casa das pessoas, se dar bem com elas, e estas ainda serem objetos em sua
pesquisa, pois “... há muitas formas de se estar interessado no saber popular, inclusive
para manipulá-lo”. Porém, diz Wellington, a prática de ir à comunidade, mesmo que
num primeiro momento seja uma prática objetificante, também pode trazer ao
pesquisador um “ insight” de “...algo mais que pode ser pesquisado , algo mais que as
pessoas possam dizer, além de uma ...um contato meramente [...] objetificante” . Por
outro lado, pode ocorrer do pesquisador ir à comunidade numa perspectiva dialógica,
crítica a esse atuar “ objetificante” e , mesmo assim, como ele diz “...pisar na bola
[...]dizer que está fazendo uma coisa e estar fazendo outra ”. Mesmo pessoas que, de
104
antemão, têm consciência dessa possibilidade, correm esse risco. Constantes reflexões e
críticas ao que foi feito podem diminuí-lo, aconselha.
Carla critica o pesquisador que realiza seus estudos sobre comunidades sem ter
estado lá ouvindo, observando e compreendendo as necessidades concretas das pessoas.
“ Eu não posso ter respeito, só porque a pessoa tem uma capacidade
enorme de síntese, absorver muita bibliografia e publicar, é complicado. É
complicado porque, talvez por eu estar tão envolvida na base, eu não tenho
muita paciência, tendo nas costas a visão da necessidade das pessoas,
entendeu? Necessidade mesmo, concreta, das pessoas, de tudo, não só de
comida, de trabalho, mas também de serem ouvidas, de terem gente perto
pra tá conversando, pra estar tentando contribuir de alguma forma.”
Conversar diretamente com a população pode ser a oportunidade de reafirmar a
distinção entre a população real e a população teórica em epidemiologia, diz
Weelington, citando a teoria das probabilidades, onde os elementos constitutivos de um
conjunto de pessoas são teoricamente homogêneos e independentes uns dos outros, não
há interferência No entanto, diz ele, mesmo que se utilize dessa teoria, “num segundo
momento, eu tenho que pegar meus resultados e refletí-los numa população de fato,
concreta, que tem afetos, que tem política e que tem vida de relação, que se comunica,
que não são homogêneas e nem são independentes umas das outras” . A técnica de
pesquisa, no primeiro caso, é reducionista, reduz a compreensão da totalidade. A
epidemiologia, diz ele “...deveria refletir mais sobre as populações concretas e não se
contentar com o modelo abstrato. Essa é uma questão muito séria”.
Wellington dá como exemplo do que ele chamou de “segundo momento”, uma
monografia em que uma estudante do ELOS calculou as taxas descritivas de um
determinado assunto e depois foi conversar com as pessoas a quem esse assunto dizia
respeito.
“Na mesma tabela, no corpo da tabela, que contém os números, ela
encompridou a tabela para o lado, e acrescentou algumas falas mais
representativas de pessoas que viviam aquela situação. Ficou uma tabela
interessantíssima. E aquilo que as pessoas dizem, da forma como elas
dizem, tem mais força de expressão do que o que você diz. Veja então como
é outro tipo de ganho, tá? Mas, existem outros, são muitos outros ganhos.”
105
Trabalhar para além das estatísticas homogeinizantes acrescenta sentidos
inesperados e eloqüência aos resultados numéricos. Nessa direção a fala popular pode
complementar ou mesmo contestar os dados estatísticos. Neste último caso, Wellington
cita a pesquisa feita por ocasião da epidemia da dengue. Naquela ocasião as estatísticas
diziam que
“...95% de determinadas comunidades tinham água encanada. Então,
quando se pegou essas estatísticas e se foi conversar com as pessoas, as
pessoas diziam ‘sim, o cano tem, mas a água não’. Então veja, eu tinha uma
estatística oficial e quando se foi conversar com as pessoas, você
acrescenta outras informações negando, inclusive, o dado oficial. Então,
pode contradizer, tem o encanamento mas a água só chega no final de
semana, na madrugada do Sábado. Então tem que ver isso.”
Como diz Dna Creusa, mesmo que as pessoas acreditem já conhecer a
comunidade, tem que ir até lá para comprovar ou não. Pode chegar lá e achar “muita
diferença. Nem tudo o que reluz é ouro. A pessoa vendo é o que ele vai comprovar”.
Segundo ela, só estando junto, fisicamente presente é possível saber, de forma
satisfatória, o que se passou na comunidade.
“Estar junto”, uma experiência vital, para quem faz pesquisa sobre e/ou com
comunidades, diz Carla. Ela cita uma conversa com uma pesquisadora que estava
fazendo um trabalho de avaliação de um determinado processo nas favelas da
Leopoldina e que não havia previsto essa experiência:
“ ... estávamos num seminário, e na hora do almoço, ingenuamente,
perguntei à ela, mas você já foi lá? Ela disse, ‘eu vi do alto’. Do alto de
onde? ‘Não, do prédio. Eu dei uma olhada, eu vi do alto, de cima, eu nunca
fui lá.’ Aí eu mudei de assunto mas ela virou minha inimiga, com toda
razão, né, como é que eu pergunto isso pra uma pessoa dessas? Não, o seu
departamento tá levando um dinheiro expressivo pra avaliar o trabalho
feito nessas comunidades e ela nunca tinha ido. Aí, depois, ela deve ter se
tocado, combinaram duas caminhadas, fizeram duas caminhadas de uma
hora cada...durante dois anos, duas caminhadas, de reconhecimento, assim,
por baixo, indo pelas ruas mesmo, e é assim que as coisas funcionam. As
106
pessoas acham que é normal. Normal, fazer isso, sem nunca ter ido.
Belíssimas publicações. São pessoas que têm publicado muito a respeito
disso, aí fui cair na besteira de perguntar à dona se ela já tinha ido. E ela
teve que me dizer que não. E como é uma região que eu conheço como a
palma da minha mão, se ela dissesse sim, eu poderia enveredar por outras
conversas. Como ela disse que não, então, pra mim ela teve que dizer que
não. Ela me conhece. São umas coisas assim que, pelo amor de Deus”.
Um outro ganho que Wellington acrescenta é que, a partir da experiência das
pessoas com as enfermidades, pode-se deslocar núcleos conceituais anteriormente
estabelecidos. Como exemplo ele cita uma conversa com pessoas ativistas da reforma
manicomial, usuárias de um serviço psiquiátrico. Portanto, pessoas que tinham a
experiência da enfermidade, do sofrimento, da loucura ao mesmo tempo que tinham as
informações sobre a psiquiatria que se tinha e a que se desejava. Nessa posição, as
pessoas podem elaborar conceitos de outra ordem, diz ele. Uma dessas pessoas, que
atuava junto à TV Pinel, estava sendo entrevistada no programa de rádio do ELOS.
Conversavam sobre o conceito técnico de loucura, um conceito que, para Wellington,
sempre deixou à desejar. Na entrevista foi perguntado sobre a loucura ao que ela
respondeu “nascemos todos loucos, a gente vai crescendo e aprendendo a controlar essa
loucura que é a nossa fantasia. E , em alguns momentos da vida, por certas
circunstâncias a gente perde esse controle. Isso é a loucura”. Wellington analisa que,
“Ora, a loucura, dentro da psiquiatria clássica, é um desvio bioquímico.
Dentro da psicologia clássica, é um desvio comportamental. E, essa
senhora, M., ela desloca todo esse mundo conceitual para a vivência.
Então, a loucura é a nossa fantasia, e nós vamos aprendendo a controlar
essa fantasia, que é a nossa loucura, na medida em que vivemos e vamos
aprendendo socialmente, a controlar essa loucura. Então, veja que há um
deslocamento radical do núcleo conceitual, então veja também que todas
essas possibilidades são plausíveis.”
Olhando nos olhos - o convívio metodológico:
A participação de que falam os entrevistados é aquela dada pela convivência,
aqui já referida. O convívio possibilita aprendizagens mútuas, como diz Dna Creusa:
107
“ Eu acho que é necessário nós estar junto , por que nós sabemos de
alguma coisa e eles sabem de muita coisa que pode passar para nós. Então,
eles tem competência para nos ajudar a levar a tarefa da vida [...] eles
também precisam saber alguma coisa de nós. Nós saber deles e eles saber
de nós.”
Muitas pessoas das comunidades gostam de receber a visita do pesquisador,
assim, o contato pode não ser difícil. No entanto, ir à campo apenas para obter dados,
diz Wellington, “ não é convívio, é uma visita” . O convívio pode trazer aos que nele se
encontram uma visão mais clara do outro, pois é nesse convívio que as pessoas se
posicionam politicamente. As pessoas, diz ele,
“...se colocam sempre – não de forma mentirosa ou querendo enganar os
outros e isso é um dado da realidade, da realidade política – de acordo
com o lugar e com quem se fala, todos nós nos colocamos de maneira
diferente [...] Se você [...]está pesquisando pessoas da população [...] a
pessoa pode estar sabendo do seu assunto e pode responder para você de
acordo com o que você queira escutar.”
Ou “...se ela não tiver simpatia pelo pesquisador, ela pode responder
exatamente o oposto” . Houve a conversa, mas uma conversa sem convívio, ou como ele
disse, a conversa que foi “uma rápida visita ”. “O convívio enquanto categoria
metodológica, introduzido na metodologia” pode dar ao pesquisador uma maior clareza
e até um certo controle sobre os posicionamentos políticos. O convívio não apenas
como dado mas, enquanto metodologia, pode ser extremamente rico. Nele, as pessoas se
colocam abertamente e o conhecimento é mais autêntico. Como diz Wellington, do
ponto de vista do pesquisador, o convívio permite “observar de camarote [...] por que
estou ali, e elas estão abertas para mim, como eu estou aberto para elas. Então eu vou
aprender muita coisa”.
Nem sempre o convívio acontece circunscrito exclusivamente aquele trabalho
particular que está sendo desenvolvido. Há outros espaços e ocasiões de convívio, como
por exemplo, o curso de alfabetização de que Wellington participou na Vila do João. Na
ocasião, a equipe do ELOS desenvolvia um trabalho na comunidade , de intervenção e
pesquisa em saúde. Nas conversas durante o trabalho, surgiu na comunidade a demanda
108
pelo curso. Wellington respondeu à essa demanda pois estar no curso também
significaria um convívio mais intenso, geração de afeto e vínculos. Sempre tendo em
mente o “ saber-sabor / sabor-saber”, ele conclui que esse convívio além de atender à
demanda e propiciar que ele ficasse “...muito querido delas e eu também teria muita
querência por elas. E isso, além do gosto de estar ali.”, também permitiu ampliar sua
compreensão sobre aquela comunidade inclusive para o trabalho sobre saúde que estava
desenvolvendo. Ao final do curso os alunos escreveram uma carta de agradecimento “...
uma coisa muita bonita para mim, e assinaram. E eu guardo isso junto com o meu
diploma de graduação. Com licença, mas eu dou muito valor à esse diploma e a essa
carta”.
Para ter a vivência da e na comunidade, não sendo da comunidade, diz Dna
Creusa, é necessário penetrar na comunidade, pesquisar, estar lá pessoalmente. Não
basta, diz ela, mandar alguém pesquisar, por exemplo - seus alunos, até por que “se o
aluno dele viesse com uma coisa diferente” , o pesquisador saberia “ por que ele foi lá e
ele sabe e o negócio não é a pessoa ficar de longe, é ficar perto [...] para conhecer,
para ver o que está precisando lá”. Estando perto, somente assim, diz ela, é possível
“pesquisar o olhar” do outro, conhecê-lo. Com ela, concorda Wellington,
“Hoje em dia, o pesquisador-mor manda o pesquisador encarregado, que
manda seus auxiliares para campo e o pesquisador-mor, afinal, pega os
dados pelo computador e vai fazer epidemiologia. Aí eu acho que se perde
muita coisa. Se perde a paisagem, se perde o saber das pessoas. Se perde
muita, muita coisa. Nem sabe o que se perde. Eles nem sabem. Além do
prazer de fazer a coisa em campo, por que aí justamente, se volta a
encontrar aquela historinha da palavra grega: saber, sabor, quer dizer,
com o convívio você tem mais saber e tem o sabor. E uma coisa potencializa
a outra, saboreia a outra ou sabe mais a outra”.
Carla concorda, acrescenta que “estar junto com a população” permite pensar
políticas públicas condizentes com o que cotidianamente aflige as pessoas e exemplifica
com o que Valla, entre outros acadêmicos, faz:
“Alguns acadêmicos, como o Valla, por exemplo, têm a noção da sua
responsabilidade e fazem pesquisas que dizem respeito a vida da
109
população, porque Saúde, a área da Educação, Ciência Social, enfim, é o
cotidiano, é a vida, é o que aflige as pessoas. E se pensar em termos de
soluções, políticas públicas e de outras soluções alternativas pra que esses
aspectos da nossa vida, da vida do nosso país, do nosso mundo, melhorem.
Então, ele teve essa disposição de estar indo diretamente, já que pesquisa
saúde e pobreza, diretamente, ver como é que as pessoas vivem e ouvir
como é que é a vida dessas pessoas, suas opiniões sobre isso.”
Observar e conversar, duas atitudes preciosas para o aprendizado sobre o outro
e que só podem ser desenvolvidas, segundo Dna Creusa, praticando-as.
“Observa, tem pessoa que de longe já está vendo as coisas. Está
observando, tá vendo. Ninguém nasceu aprendido, sabendo, a gente
aprendeu depois, com a vida mesmo. A gente só anda, andando, aprende a
andar, andando. Aprende a falar , falando. E aprende a observar... [...]
Então, a pessoa que vai na comunidade não precisa nem da gente ensinar,
eles estão vendo, eles estão aprendendo por eles mesmos”.
A observação propicia ver, diz ela. Porém, para que algumas coisas sejam vistas
é necessário lançar mão de outro olhar, o olhar espiritual. Este exige, muitas vezes, que
aquele olhar, físico, seja posto de lado.
“Para que ele possa acontecer, as vezes é preciso fechar olho, por que
espiritualmente se a gente tem que fechar o olho para a gente poder ver,
por que físico a gente só vê com os olhos abertos mas, espiritual tem que
fechar. Por que as vezes você está numa reunião, está concentrada ali e
está vendo tudo e as vezes você está com os olhos abertos e não está vendo
nada”.
Aqui, não é na aparência e, sim, na vivência que se vê aquilo que se está
buscando ver, diz ela.
A partir da observação, feita na vivência, vêm os estranhamentos, os
questionamentos, as perguntas, as quais devem sempre ser postas, diz ela,
110
“Então a pessoa observa e aí, as vezes a gente observa uma coisa, pensou
uma coisa errada, então vai e pergunta, ‘isso é assim e assim?’. Não custa
nada . Não custa nada a pessoa querer saber [...] Por que as vezes...cada
cabeça tem um pensamento. E o meu pensamento não é o seu. O seu
pensamento é outro. Mas, quando você pergunta, aí pode ser que os seus
pensamentos se encaixe com o da pessoa ,com a resposta que a pessoa vai
te dar. É bom. É procurando as coisas que a gente encontra.”
À quem perguntar? Novamente é na convivência que vem as respostas, pois,
diz ela, a pergunta deve ser posta à quem é do lugar. Mesmo que haja discordâncias
quanto ao trabalho que está sendo realizado, é na conversa que elas aparecem. Sem as
conversas corre-se o risco do trabalho esvanecer-se sem que se saiba por que. Mas, as
discordâncias devem ser avaliadas com cuidado pois “no meio de muitos, tem alguns
que não estão com o pensamento bom” .
Assim como as perguntas, a curiosidade deve ser explicitada, ser posta à vista,
a curiosidade que vem do interesse em aprender, “o G. está muito interessado de ver a
gente fazer lá o trabalho manual da gente, fazer o sabão, fazer o xarope. Ele quer ver,
ele quer aprender como é que faz, ele tem curiosidade de ver. Tem outras pessoas que
não tem muita curiosidade. Mas eu vejo que ele é curioso, com uma vontade de que
chegue o dia de fazer e que a gente vá convidar eles”.
Finalmente, Carla nos alerta que conviver, conversar, reunir-se pode não ser
visto por todos os que participam como uma contribuição à solução dos problemas
daquela comunidade
“nem todo mundo quer e respeita esse tipo de contribuição. Tem muitas
pessoas que me dizem: ‘Ah, Carla, blá blá blá. O que, mais reunião? O
quê? Vou perder meu tempo, vou lá, reunião de novo? Não acontece nada.
A gente volta pra casa e está tudo do mesmo jeito. Pra que tanta reunião?
Reunião pra quê? Pra eles fazerem relatório, pra publicar livro? Não, tô
fora.’”.
Cuidar e cuidar-se:
Estar junto significa, muitas vezes, deslocar-se socialmente, geograficamente,
de um lugar conhecido para um outro desconhecido ou pouco conhecido. Deve-se
caminhar com cuidado neste novo terreno e aos poucos ir conhecendo suas nuances e
111
contornos ao mesmo tempo em que se faz conhecer aos que nele estão, é o que
aconselham os entrevistados. Este conhecimento inicial não se dá numa única ida, diz
Dna Creusa, é necessário “pelo menos, umas 3 vez já ter ido lá” para que se possa
perceber aonde e como ir. Depois de algum tempo pode ser que não se conheça muitas
pessoas , mas possivelmente, diz Wellington, muitas te conhecem “Eu não conheço os
‘meninos’ (bandidos), mas é possível que eles me conheçam, é muito possível que eles
me conheçam. Eu já cruzei com eles muitas vezes” .
A caminhada por um novo lugar deve ser iniciada em companhia de alguém de
lá “ Por que as pessoa conhece todas as coisas que se passa na comunidade.” diz Dna
Creusa. Ela mesma nos diz quem da comunidade deve ser essa companhia: pessoas...
“Do movimento [...]. Se você vai na minha casa, na minha comunidade e
me conhece eu que tenho que ir com você, por que você me conhece. Ou se
você conhece o presidente, o vice-presidente, ou qualquer pessoa da
associação, aí, você vai com aquelas pessoa, mas se você vai por
intermédio, se você for na comunidade da Catarina, você vai com ela , por
que lá conhece ela. Se você vai na minha, é comigo. Vai lá encima no
Caracol, aí já é com a Neusa ou com a Lourdes; lá na Chatuba, que é o
Grotão, com a Tonha que já é de lá, aí já é com ela.”
Esses cuidados se fazem necessários tanto para que a participação se efetive
quanto para garantir a segurança, até física, daquele que vai à uma comunidade. Na
comunidade pode haver , por exemplo, outros poderes como o relacionado ao tráfico de
drogas e armas. Indo sozinha, sem conhecer a comunidade, a pessoa não se aperceberá
dos riscos. Como diz Dna Creusa, as pessoas da comunidade conhecem os movimentos
do tráfico e são deles conhecidas, daí também a importância de estar acompanhado de
alguém da comunidade. Outras pessoas podem gerar desconfiança do tráfico;
“...estando acompanhada eles não faz nada, mas se for sozinho eles fica pensando que
pode espiar eles, que pode fazer alguma coisa contra eles” . Assim, ela reforça o
conselho de ir com alguém da comunidade pois pessoas de fora “...não conhece nada de
lá do risco. Aí entra mesmo na boca do lobo. Tem que, a pessoa, estar informado. Tem
que ter pessoas da comunidade para esperar as pessoa”.
Estando na comunidade, diz Wellington, você se depara com pessoas ligadas
ao tráfico, “Já cruzei muito com eles. Nunca conversei particularmente com nenhum
mas, já passei, por muitas ocasiões, em bares, antigamente [...] quando estava
112
começando a violência. Numa ocasião estava num bar com uns amigos e um cidadão
puxou uma pistola enorme, prateada e botou no ouvido do outro”.
Wellington aconselha a deixar claro para esses poderes a que veio, sendo que a
melhor forma de seguir esse conselho é simplesmente fazer o seu trabalho às claras.
Para ilustrar, conta um episódio, ocorrido em 1996, quando a municipalidade havia
fechado o posto de saúde da Vila do João. Ele se encontrava nas dependências do posto
reunido com um grupo que lutava pela sua reabertura...
“... pra justamente puxar essa organização, para pressionar a prefeitura
para reabrir o posto de saúde . Exatamente eu estava falando quando o
bandido entrou, olhando e tal e todo mundo parou e tem aquele clima, todo
mundo para, aquele negócio. Eu, confesso que falando eu estava e falando
fiquei. Por que na mesma hora eu não fiquei com medo, eu vi que ele entrou
e que as pessoas pararam e eu olhei para a porta e ele estava entrando,
armado, a arma um pouco escondida mas dava pra ver. Então,
imediatamente, eu pensei o seguinte: é melhor ele saber o que eu estou
fazendo aqui. E, falando eu estava, falando eu fiquei. E ele deu aquela
rodada assim, rodeando as pessoas todas, todo o grupo, meio ameaçador,
mas completando a volta, já viu uma mocinha bonita ali, já esqueceu um
pouco o assunto e foi conversar com a moça e a reunião continuou em paz e
daqui a pouco ele foi embora.”
Este cuidado, de deixar claro a que veio, não significa estar solicitando
autorização desses poderes para o que irá fazer, diz Wellington, especialmente se este
“fazer” estiver sendo acompanhado por uma pessoa da comunidade. Conselho este, que
ele próprio recebeu de uma pessoa da comunidade da Maré, quando de uma conversa
sobre tirar fotos da comunidade. Conta ele, que perguntou ao morador se para tirar fotos
deveria pedir autorização às pessoas do tráfico. Ao que o morador respondeu
“‘Não, você não tem que pedir nunca nada para eles. Se você chegar para
eles [...] e falar assim - posso bater uma foto? aí ele vai dizer assim –pode,
mas não agora , só daqui a pouco - [...] Quer dizer, ele permitiu mas,
impôs um pouco do seu poder, e depois ele vai impor mais e vai impor mais.
Essa é idéia. Então, o J.C. falou assim, ‘então, se ele vier dizer que você
não pode bater foto, então, você tem que dizer para ele assim: olha, é
113
melhor você sair do meio senão você vai sair na foto’ . J. C. dizia isso em
relação aos bandidos. Ele é de lá. Ele era de lá. Uma liderança de lá. É
claro que isso não vale para uma pessoa de fora. Uma pessoa de fora não
vai mesmo bater foto sozinho, por que não dá certo. Mas, nós já batemos
muitas fotos, acompanhados de pessoas conhecidas de lá.”
Sobre a necessidade de sempre estar acompanhado por alguém do lugar,
Wellington diz que, após um certo tempo de trabalho na comunidade, deve-se avaliar
essa necessidade a partir da
“...intuição que você tem que você é conhecido. Depois, você, por exemplo,
você se sente mais, eu acho que dá uma certa segurança se você pensar que
os caras já lhe conhecem. Já lhe conhecem ,assim, sabem qual é o assunto.”
Retorno – ponto de partida e de chegada, compromisso ético e social detrabalhos comunitários:
Ao comentar sobre os resultados sociais de trabalhos realizados no âmbito
acadêmico, Carla fala sobre ética e tece sua crítica aos trabalhos que
“...tem recursos, grandes gastos, pra produção de trabalhos que seis, sete
pessoas vão ler, e vão ficar lá, por exemplo, né? E a gente muitas vezes não
consegue ver a ponte daquele trabalho todo - as vezes envolveu
laboratórios... muitas coisas - com a vida das pessoas, a melhoria da vida
das pessoas nesse momento. Por que, na verdade, você tem gente dedicada
ao estudo e à pesquisa e deveria ser pra servir à nós mesmos e não pra
servir à carreira da própria pessoa só, é muito pouco. É muito tempo e
muito recurso que foi... que a própria pessoa despende e a academia
também.”
É o que também afirma Dna Creusa, ao referir-se que “...tem coisas que fica
tudo engavetado para lá, não sai nada, fizeram a pesquisa não saiu, ninguém soube por
que foi que fizeram aquela pesquisa” . Para Carla há uma “...cisão entre a construção
de conhecimento da Universidade com a sua aplicação pra melhorar efetivamente a
qualidade de vida das pessoas, muito grande”. De modo que, o retorno de que fala não
se trata apenas de um compartilhamento dos resultados da pesquisa, mas sim, de uma
114
efetiva contribuição social. Neste ponto, Carla faz uma ressalva, “ a gente não tem a
academia como uma coisa única” e lembra, por exemplo, o trabalho de Valla, onde não
há essa cisão.
Carla também comenta sobre a forma como está organizado o trabalho
desenvolvido nas Universidades, mesmo ponderando que não é pessoa que trabalha na
academia e que portanto, “...não tenho muito noção da dinâmica de trabalho deles” .
Avalia que essa organização, inclusive estrutural, provoca um “...distanciamento da
vida das pessoas, do cotidiano das pessoas.” A academia, ela diz “...acabou virando
um pouco isso, o que alguns estudiosos chamam de simulação, simulação com pouca
aplicação no cotidiano”.
Resultados sociais é do que fala Dna Creusa, ao ponderar que o retorno só
acontece se quem realiza o trabalho está com a intenção de ajudar. Nesse caso não há o
que ocultar e as informações deveriam ser compartilhadas. Apresentar o que fez é,
inclusive, um indicador dessa intenção, como ela diz “E eu sei que se a pessoa
apresenta o que fez, tudo bem”. Se a pessoa não dá retorno é sinal de que está
trabalhando para seu próprio interesse apenas “...tem pessoa que faz pesquisa na
comunidade. Mas é só para eles. Lá na ENSP mesmo, teve pessoas que foi fazer
pesquisa com a gente e nunca deu notícia do que foi feito daquilo, não teve respaldo de
nada”. Não dar o retorno pode também ser sinal de que há algo a ser ocultado. Neste
caso, essa pessoa está se aproveitando da “ palavra do outro para fazer o trabalho
oculto para eles lá sozinho. À Deus pertence , não posso fazer nada , ele é assim, eu dei
a dica. O que ele queria saber eu ensinei, eu disse. Se ele quiser fazer errado, problema
é dele”. Diferentemente do que acontece nas pesquisas realizadas pelo ELOS e CEPEL,
diz ela, “...a pesquisa aqui é diferente, eles faz e eles apresentam”. Para ela se
“... eles pesquisar e não mostrar o que que eles vão fazer, nada. Por que
quando eles pesquisa e acha, eles fazem que eles quer trabalhar com aquilo
ali, eles apresenta. Não foi só da água como foi muitas outras pesquisas que
ele fez sobre doença, sobre essas coisas todas que foi feita e nós tudo sabe”.
Sobre ética também fala Wellington ao afirmar que se não fosse uma questão
metodológica, o retorno é uma questão ética. Comenta sobre os protocolos de pesquisa,
avaliando que está havendo uma burocratização da ética “...Há todo um protocolo
quando você quer fazer pesquisa, para saber se sua pesquisa respeita ou não as
pessoas. Mas, esses protocolos não incluem, por exemplo, a obrigatoriedade, e eu acho
115
que deveria ter ,de o pesquisador fazer alguma ação, algum retorno que seja, uma
palestra . Vá lá na escola e dê um retorno”.
Wellington afirma que o retorno é necessário e sempre possível em algum nível
“ Mesmo que o pesquisador voltasse lá para agradecer as pessoas. Convocasse as
pessoas, fizesse um aviso , vou estar em tal lugar e vou falar com vocês a respeito do
assunto pesquisado” . Porém, pondera “...se poderia fazer muito mais do que isso”.
Como ele diz, “É uma questão de respeito com as pessoas. Então, mande, se você
publicou um negócio, mande para cada uma das pessoas. Distribua de alguma forma,
dê alguma satisfação”.
Para Wellington, o retorno deve estar previsto na Metodologia. No caso do
ELOS, diz ele, o retorno é um princípio geral e é previsto metodologicamente nos
trabalhos realizados a partir de demandas da comunidade onde
“Nós não vamos fazer nada que já não esteja acontecendo e que não tenhamos
sido chamados. Nós não vamos levar nenhum programa, nenhum pesquisa extra
[...] então o retorno já está dado aí. Ou seja, se nós somos chamados à uma
assessoria à um determinado assunto, nós vamos lá e fazemos aquela assessoria.
Então , o nosso retorno já é a resposta. Por que estamos lidando com demanda”.
Exemplifica com o curso de alfabetização já mencionado onde “...eu estava lá
todas as quartas-feiras, trabalhando com eles, e o nosso retorno era diário, era no
cotidiano, ríamos muito e tínhamos muita satisfação de estarmos juntos. Então, no
convívio, o retorno é direto e constante” .
À vezes, para se ter a colaboração da população o retorno é previsto, prometido
mas, não é cumprido. Este modo de agir coloca, especialmente as pessoas da
comunidade com as quais se fez os contatos com a população, em situação delicada e
desgastante. Wellington ilustra com uma pesquisa que foi realizada em Manguinhos
com o objetivo de introduzir uma nova vacina contra a meningite. Pesquisava-se a
eficácia vacinal, a viragem sorológica. Previa-se a coleta de sangue de 1000 crianças de
1 a 5 anos que seriam vacinadas no posto de saúde da Escola de Saúde Pública da
FIOCRUZ.
“Era uma dificuldade muito grande de convencer as mães a tirar sangue de
crianças pequenas . As vezes você não consegue pegar uma veia no braço,
as vezes tem que pegar uma veia na testa , machuca, as crianças
116
esperneiam ,choram e tal . Então era o seguinte, aquilo ali, aquela coleta de
sangue era para estudos [...] se o sistema imunológico reagia àquela
vacina, chamava-se viragem sorológica. Do ponto de vista dessas pesquisas
epidemiológicas, isso não interessa para a população, isso não interessa
para a pessoa. Então é mais difícil ainda. Nessa ocasião as mães disseram
‘não, nós queremos saber’. Aí foi dito para elas ‘de que adianta vocês
saberem? Isso não vai adiantar nada para vocês. Isso aqui interessa o
resultado coletivo. Individualmente não serve para nada’. Mas as mães
disseram ‘mas, nós queremos’. Bom, então a gente foi dizer para a
organização da pesquisa ‘olha, as pessoas dizem que só topam se depois
souberem os resultados dos exames’. Então o chefe da pesquisa achou um
absurdo ‘isso não interessa para eles, para que que eles querem saber disso
e tal. [...] Mas, se as crianças serão sangradas se depois fornecidos os
resultados para as mães, então tá bom. A gente vai dar o resultado para
elas’. Resultado esse que nunca saiu. O sangue foi todo congelado. Não
houve retorno para a população. Quem intermediava essa população de
mães era o programa de agentes de saúde da Unidade Sanitária da Escola
de Saúde Pública e com isso o programa, como não houve retorno, como
nunca saiu esse retorno, o programa de agentes comunitários de saúde
começou a se desgastar e terminou acabando.”
Clareza sobre as reais possibilidades de retorno e sobre as expectativas em
torno tanto dos resultados do trabalho quanto desse próprio retorno é necessária para
que ocorra a participação e se estabeleça a credibilidade dos grupos. Para Dna Creusa o
ELOS e CEPEL não ficam só na palavra
“ Quem é rico com promessa foi os pessoal lá da irmandade da Penha. É
tudo rico com promessa. Mas, eles [ELOS E CEPEL], eles não promete
não. Eles quando eles podem fazer, eles fazem. Quer dizer, eles são
solidários. Não tanto conforme devia, podia ser. Devia ser, mas eles não
tem posse para ser solidário. Por que é muita comunidade com que eles
trabalham, com bastante grupo. Aí não pode, tem que ter limite. E nós
entende o limite deles”
117
O retorno pode vir na forma de financiamento, diz Dna Creusa, e quando não
for assim possível, pode vir na forma de orientação sobre como obter tal financiamento,
“Se eu chego aqui no CEPEL e preciso de alguma coisas além de 500 reais,
eu tenho certeza de que eles não vão poder. Por que se eles fizerem para
mim, tem os outros também para fazer. Mas, de 100 reais, de 200 reais, eles
tem a capacidade de fazer. E mesmo quando eles não tem capacidade, eles
orientam as pessoas. Eu sei que eles são solidários no trabalho com
qualquer grupo. E quando os grupos são mais interessados, mas interesse
eles tem”.
O retorno de que se fala não é unilateral, uma vez que nos trabalhos conjuntos
entre diferentes grupos, todos tem os seus ganhos , como diz Dna Creusa:
“ Por que também ajuda eles. Por que conforme o trabalho dos grupos, é
disso que eles vive. Por que se eles não tiver nada para mandar para o
exterior, para lá para eles receber, por que conforme eles ajudam aqui, eles
são ajudados. Eles não dão porque eles tem para dar. Eles dão por que eles
fazem esforço para a verba vir de fora. E se eles não tiver nada pra
apresentar, como é que eles vão mandar? [...] Por que quando vem esse
dinheiro das ajuda de fora eles são obrigados à ajudar, por que quando
sobra tem que devolver. É uma coisa de muita burocracia. Ninguém faz o
que quer com o dinheiro dos outros. Eu sei. Se eu precisar de 200 reais eu
trago a conta certinho, gastei com isso aqui. Por que eles vão prestar a
conta para eles lá. Mas no nosso grupo mesmo, tem pessoas que acham que
eles estão se fazendo e nós que podia dar muita coisa para nós. Mas, isso é
só pensamento das pessoas.”
Outro exemplo dessa reciprocidade, já foi mencionado aqui, é o curso de
alfabetização que atendeu a demanda da comunidade porém, ao mesmo tempo,
proporcionou ao pesquisador, Wellington, estreitar laços e ampliar seu conhecimento
sobre saúde daquela comunidade.
Finalizando, Dna Creusa pondera que o retorno também tem que ser buscado
por quem o deseja, “ ... também tem que procurar senão eles não vão saber. Eu quero
118
saber, foi feita a pesquisa, saiu no livro , escrito, foi lançado teve o lançamento mas eu
vou para mim ver se está certo. Então eu me interesso e vou lá e fico sabendo” .
Aprendizados a se destacar.
Todos os focos de análise deste estudo procuraram alcançar o objetivo de
compreender os processos educativos entre essas comunidades. Porém, ao final do
roteiro de entrevista pedi aos entrevistados que fechassem me dizendo, em algumas
palavras, o que aprenderam nessas suas trajetórias de convívio com o outro. Para
Wellington, perguntei especificamente o que aprendeu nos trabalhos desenvolvidos com
comunidades e para Dna Creusa, com grupos acadêmicos.
De suas falas, que apresentarei à seguir, retirei algumas informações que já
foram anteriormente dadas.
Com a palavra, Wellington:
“Além de aprender sobre eu mesmo, a aprender a gostar da vida, por que a
gente tem que aprender todo dia a gostar da vida , a cada dia é uma vida
nova. Então, isso daí é o mais importante para mim , em termos dos mais
gerais. Agora, além disso, do ponto de vista duro, hard, metodológico ,
acadêmico e tal. No começo desta entrevista eu citei um dos meus primeiros
trabalhos como médico, recém-formado , no interior do Nordeste e tal. Em
que eu tive, eu tinha uma questão e eu tinha uma hipótese sobre ela que
era: o desmame sendo substituído pelo leite em pó [...] Depois de conversar
com as pessoas, saí com outras hipóteses. Então, você ganha
concretamente, em termos de conhecimento, como pesquisador, ganha
como pessoa, ganha quando você gosta disso. Você ganha, o conhecimento
acresce. [...] E veja que aquela pesquisa antiga ainda hoje me serve.”
Com a palavra, Dna Creusa:
“Sempre tem alguma coisa que se aprende e que se ensina. Agora, se eu
tenho ensinado, eles é que sabe. Se eu ensinei. Agora que eu tenho
aprendido bastante.
119
Eu tenho aprendido bastante. A vivência é diferente mas, é quase igual, Eu
acho que a vivência com o pessoal, quando a gente começa a conviver, fica
tudo igual, Tanto faz ser da comunidade como ser da instituição.
Waldenez: O melhor aprendizado é aprender a ser igual , né Dna. Creusa?
É, eu acho a igualdade a coisa mais... Se igualar”
120
EXPLICITANDO A ABERTURA DA OBRA: ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS
Termino este trabalho mas não o encerro, seja no sentido de acabamento final
seja no sentido de abarcamento final. Síntese é mais que um resumo e diante do tempo e
da intensidade desta experiência não me arrisco a apresentar uma síntese. Fiz um estudo
exploratório e como exploradora que fui das possibilidades de se pesquisar processos
educativos presentes nas relações que se estabelecem entre comunidades que têm
processos históricos diferentes de construção de saberes e práticas, ao desenvolverem
trabalhos conjuntos de sobrevivência, de estratégias de vida e de transformação social,
apresento a seguir alguns sentidos desta, que procurei fosse uma história que conto ao
leitor. Não há um sentido único, uma explicação definitiva mas, sim, um movimento de
busca na experiência científica. Da profusão dos sentidos que a ela se possa dar, das
interpretações que advirem da sua leitura, essa experiência vivida – particular e privada
– poderá se aproximar de uma comunidade de experiência onde o leitor passa a ser
colaborador e conselheiro, já que, como Benjamim, acredito que o conselho não
consiste em intervir do exterior na vida de outrem, mas em “fazer uma sugestão sobre a
continuação de uma história que está sendo narrada”.
Wellington, Carla, Dna Creusa, ELOS, CEPEL, Sementinha. Nas nossas
convivências muitos foram os aprendizados e os ensinamentos; o maior deles, o próprio
“viver com”. Relendo o que escrevi sobre esta experiência e reavivando-a em minha
memória percebo alguns sentidos possíveis desses processos educativos.
Primeiramente sobre o referencial. Ancorar-se teoricamente na educação
popular é para mim um encontro de teorias: as da educação popular e as minhas.
Considerando-se teorias como compreensões de mundo. Um encontro refrescante, pois
na educação popular percebo as possibilidades de um outro encontro: pesquisa e
militância, que me tira da camisa de força da falsa neutralidade ou afastamento político
do pesquisador. Longe de considerar a pesquisa como um momento apenas de construir
um certo conhecimento sobre um mundo distante do pesquisador, ela se torna um estar
no mundo, coletivamente, como seres humanos, numa clara intencionalidade de
conscientização e transformação. A educação popular está claramente presente na
questão de pesquisa. A compreensão de educação como um processo social, histórico,
permite entender com clareza que as práticas sociais estão ininterruptamente permeadas
por processos educativos. Mais do que isso, permite entender que, historicamente,
outros processos, humanizantes, são possíveis e portanto a pesquisa pode (e deve)
contribuir para se pensar essas possibilidades. O referencial da educação popular, como
121
referencial de partida, exigiu a escolha de um caminhar metodológico onde a pesquisa,
enquanto também uma prática social, se desenvolvesse num diálogo entre sujeitos. Daí
as necessárias aproximação, convivência e conversas. Um processo educativo facilitado
pelo movimento recíproco para o diálogo, da pesquisadora e dos demais colaboradores
deste estudo.
Na direção dos sentidos possíveis que este estudo pôde trazer sobre a busca do
diálogo e dos processos educativos nele presentes, percebo que os grupos com os quais
conversei e convivi estão constantemente nessa busca.
O ELOS, desde sua criação é uma fonte inesgotável de experiências sobre
metodologias que permitam o compartilhamento do conhecimento e sua construção
compartilhada. Experiências contextualizadas especialmente nas necessidades das
comunidades que estão em seu entorno; um laboratório crítico, social. Novos sentidos
são acrescentados, novas necessidades são percebidas, novos projetos são lançados e
experimentados: movimento constante do ELOS. O CEPEL, com olhos, coração e alma
envolvidos com a história da Leopoldina, se articulando, articulando grupos, buscando
formas de fortalecer os grupos organizados da Leopoldina, de divulgar informações que
permitam um olhar crítico sobre os acontecimentos de hoje e ontem. Pesquisa e atuação
inseparáveis, uma fonte e inspiração da outra. O Sementinha, no seu trabalho de
esperança, de um lugar privilegiado e de uma percepção política de saúde, ao realizar
suas atividades levando à população ervas e palavras, transforma o processo de curar-se
num processo crítico e conscientizador. A palavra aqui é a palavra que Paulo Freire
denomina como “verdadeira”, que pronuncia o estar no mundo, um estar consciente de
sua humanidade, da igualdade inerente à condição de seres humanos.
Das pessoas mergulhadas nas atividades desses grupos, uma de cada um ,
aquelas que estão presentes nas histórias destes grupos foram selecionadas para irem às
entrevistas. A “instituição” é social e, claramente, esta condição se apresenta ao se
conhecer essas pessoas, pois suas histórias mostram seu protagonismo na construção da
trajetória desses grupos. Todas têm em suas histórias um “olhar voltado ao outro”, uma
compreensão crítica do mundo e do seu “estar no mundo”. Um movimentar-se
constante, mas não em qualquer direção ou na busca de um conforto advindo de quem
busca o que melhor justifica sua prévia visão. Seu movimentar-se parece-me típico
daqueles que estão dispostos a deslocar-se para lugares de onde possam melhor mirar a
desumanização em curso e, ao encontrarem seus sinais, ao contrário de deles desviarem
o seu olhar, neles o detém, checando, procurando mais indícios, mais detalhes, mais
122
aprendizados. E mais que isso, é exatamente nesses lugares sociais que eles se inserem e
trabalham com a intencionalidade da humanização.
Dessas pessoas recebi lições de vida e de trabalho. Pessoas que percebem com
clareza as diferenças dadas pelas questões econômicas e sociais e também pelas de
escolaridade. Essas diferenças aparecem nas percepções de tempo e de espaço, nas
percepções de mundo e dos modos de nele viver e sobreviver. Nas suas relações os
caminhos se cruzam, conhecimentos construídos em trajetórias diversas se encontram, e
a convivência política propicia que os espaços fronteiriços entre eles não apenas se
constituam em espaços de igualdades na diversidade mas, também, que sejam espaços
flexíveis que, em cada movimento para o outro, se alarguem e onde a igualdade no “ser
humano” e a humanidade sejam resgatadas.
Na sua experiência mostram que, para que o diálogo ocorra, são necessárias
motivações políticas e existenciais, afetividade, gostar de estar na comunidade. Alertam
que a auto-promoção também pode estar na motivação das pessoas que vão realizar
trabalhos com comunidade, sejam políticos, acadêmicos e outros. Para dialogar com
outro grupo, os entrevistados trabalham em equipe, pessoas com as quais se identificam
politicamente e afetivamente e que não só acreditam nos trabalhos que realizam como
também desejam que estes continuem. Uma forma de trabalhar que ao mesmo tempo
que dá o chão aos sonhos, permite os vôos. Nos seus grupos encontram pessoas com
quem podem, conjuntamente, avaliar as idéias e os trabalhos. Para se trabalhar em
equipe, aconselham, é preciso paz, união, compreensão, perdão e convívio. É no
convívio que se aprende e nesse aprendizado, o grupo cresce.
O convívio também é a palavra-chave para o diálogo com o outro grupo. Para
além das circunstâncias que, em suas histórias pessoais, os põem em diálogo com o
outro, eles nos dizem que aprenderam que essa arte de se relacionar chamada
“convívio” – o estar junto, o olhar nos olhos, conversar frente-à-frente - é vital para que
o diálogo ocorra. Conviver se aprende convivendo e para essa convivência há algumas
moedas: simpatia, confiança, humildade, sensibilidade, respeito. Conviver requer
também flexibilidade em relação aos tempos, uma das diferenças apontadas acima;
tempo do convívio, por exemplo, é diferente do tempo da burocracia. A partir da
sensibilidade para essa diferença cultural, social e institucional, é preciso conversar
sobre horários, fazer acordos, dar ao tempo o tempo preciso para que o diálogo ocorra.
Tempos que são organizados a partir dos compromissos que cada um e todos assumem
em relação ao que está sendo realizado e à sua participação.
123
Participar, na perspectiva dialógica, não é fazer o que outros decidem que cabe
a mim, e muito menos responder burocraticamente ou apenas formalmente pela
participação. É ser sujeito dessa participação. Ir para comunidades nesta perspectiva
pode trazer ganhos coletivos e aprendizagens mútuas. Para o pesquisador, uma
ampliação da compreensão da realidade, dando à sua pesquisa novos sentidos e a
eloqüência de quem viveu os frios números das estatísticas. Os dados obtidos na
participação podem, inclusive, contestar essas estatísticas e mesmo os conceitos
anteriormente adotados no trabalho. A participação é dada pela convivência e deve ser
prevista nas metodologias dos trabalhos com comunidades. Conviver é mais do que
visitar e não é algo que possa ser delegado, requer um envolvimento pessoal,
observando, perguntando e conversando. Essa convivência pode trazer maior
confiabilidade a pesquisa pois é nela que os posicionamentos políticos se clarificarão e
as pessoas poderão se colocar abertamente. Apenas olhando para ao outro e com ele
convivendo é que se pode detectar as posições políticas que atravessam os depoimentos,
as conversas e as informações sobre dada realidade. A convivência permitirá perceber o
que cotidianamente aflige as pessoas repensando o trabalho coletivo e pensando
políticas públicas mais condizentes com a concretude do cotidiano. Consciente das
diferenças, o início do convívio – que não se dá numa primeira ida ao outro lugar - deve
se cercar de alguns cuidados. O principal deles, de caminhar em companhia de alguém
desse lugar. E, aos poucos, conhecer e se fazer conhecer.
Ponto de partida e de chegada de trabalhos comunitários é o compromisso ético
e social. Um compromisso que leva a pensar os trabalhos na perspectiva de melhoria da
qualidade de vida das pessoas. Assim, o retorno à comunidade dos ganhos ou resultados
do trabalho não se dá exclusivamente no terreno do compartilhamento de informações.
Antes e além disso, se dá na efetiva contribuição social. Essa contribuição não deve ser
prevista apenas na justificativa do trabalho, mas também na sua metodologia.
Contribuição que deve ser posta com clareza para os grupos com os quais se trabalha e
que não é unilateral - todo mundo ensina e todo mundo aprende: é recíproca.
Quando se realiza trabalhos na busca do diálogo com o outro aprende-se a
convivência e com ela, aprende-se sobre o outro e sobre mim, a gostar de si e da vida.
Aprende-se pessoalmente e profissionalmente, com isto ganha a pessoa que convive e
ganha o conhecimento que se produz. Aprende-se, essencialmente, sobre humanidade e
que, como seres humanos, somos ricamente diversos e iguais.
124
Nesta convivência com o Rio de Janeiro, com o ELOS e nos contatos com o
CEPEL e Sementinha, também aprendi, não só pessoalmente como profissionalmente.
O deslocamento exige postura de aprendizado, a maleabilidade de que aqui se falou ,
para os movimentos do novo lugar, no desejo de entender. Constato, no fechamento
deste trabalho, que o que aqui se disse sobre o que os entrevistados aprenderam e
ensinaram nessas relações dialógicas entre seres humanos, também cabe nesta minha
vivência de pós-doutorado construída no fértil terreno do acolhimento, acolhimento este
que esteve presente desde minha chegada ao Rio. O desejo de conviver, compartilhado.
As moedas do conviver, apresentadas. O maior aprendizado – se igualar.
“Se vai te ajudar nas minhas respostas isso aí é que eu ... a minha intenção
que Deus me ajudasse. E ele me ajudou . Se é pra te ajudar ,tu também vai
ser ajudada. Se vai servir para você pegar um trabalho numa comunidade ,
que Deus te abençoe e que você seja feliz no seu trabalho.” ( dna Creusa).
Rio de Janeiro/São Carlos, março de 2003.
Profa. Dra. Maria Waldenez de Oliveira
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ANEXO 1 – ROTEIROS DE ENTREVISTA
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ROTEIRO DE ENTREVISTA COM PESSOAS DA ACADEMIA:
1- A partir das conversas com Eduardo, Carla , Valla , Kena e participação em reuniõesdo ELOS e do CEPEL
2- A partir da primeira entrevista com Weelington
Pesquisadora: Maria Waldenez de Oliveira.
Transcrição: Mariluce Correa do Nascimento
Maíra Alves Araújo
Data das entrevistas: Wellington: 12/12/02 (de 14:00 ás 16:30) e 16/12/02.
Carla: 13/12/02.
A. A FORMAÇÃO PESSOAL E DO GRUPO (ACADÊMICO) (3, 4 e 5 juntas):
1) Que fato (s) / experiência (s) você apontaria na sua história que te levaram a buscaresta sua prática de trabalhos com comunidades?
2) Que sonhos movem o acadêmico a buscar a comunidade?
3) Conceito de conversação pressupõe um consenso em algumas coisas. Comoestabelecer esse consenso? Ou o grupo se reúne por que primeiramente tem oconsenso. Como se formou este grupo para trabalho em comunidades? Quais são ospressupostos comuns – consensos?
4) Conversação inclui linguagem e emoção. Compartilhadas ou de que se dispõe aconversar. Que linguagem? Que emoções propiciam e dificultam a conversa entre oseu grupo.
5) Que “grupo” : um conjunto de individualidades? Onde há acordos no nívelintelectual, teórico? E em relação à prática?
B) AS RELAÇÕES COM A ACADEMIA:
1) Não conseguiu envolver os colegas da ENSP no CEPEL e no ELOS? Apontoualgumas características; basista, horário das reuniões. Apontaria outras? E nasrelações com o ELOS – há envolvimento?
C) CONCEITOS CHAVES:
C.a)VISÕES DE COMUNIDADE (fazer juntas):
1) Comunidade: o que é?
2) Comunidade tem sido usado como referência as favelas mas, é igual á favela?
3) A comunidade não é bairro, pois não tem coisas que o bairro tem (calçamento, .... oque mais?) .
4) que a comunidade / favela tem que o bairro não tem?
5) que a/o identifica com as pessoas da comunidade, com a favela? O que o diferencia?
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C.b)DIFERENÇAS (fazer juntas):
1) As pessoas (da academia , da comunidade) constróem conhecimento com outrosparâmetros? Quais as diferenças entre esses parâmetros? Por exemplo: aescolaridade – que instrumentos usa para conhecer? A “classe média” – queparâmetros traz essa classe?
2) Esses diferentes parâmetros podem trazer que tipo de leitura? Que tipo de relação?
D) RELAÇÕES COM A COMUNIDADE:
1) Por que algumas pessoas da comunidade trabalham com a academia e outras não?
2) O que, na organização de uma IES, facilita ou dificulta o convívio e as relaçõesentre pessoas da academia e pessoas da comunidade (horário das reuniões, detrabalho, localização, deslocamento etc)
3) Conversação inclui linguagem e emoção. Compartilhadas ou de quem se dispõe aconversar. Que linguagem? Que emoções propiciam e dificultam a conversa com acomunidade.
4) No trabalho com os grupos tem que haver uma sensibilidade para os problemas aserem enfrentados para que esse trabalho aconteça. Por ex: a fome. “não dá paratrabalhar com os grupos quando as pessoas do próprio grupo estão passando fome” .Que outros problemas podem se apresentar (ou características ou dimensões dessetrabalho) que as pessoas que não são da comunidade deveriam ser sensíveis eenfrentarem as vezes até antes de começar um determinado trabalho?
F)METODOLOGIAS DE TRABALHO COM COMUNIDADES:
F.a)GERAL (fazer 1,2 e 3 juntas):
1) Como é definido o grupo com o qual o CEPEL/ELOS atuará.?
2) Por que o CEPEL/ELOS escolhe aquela comunidade?
3) Como se determina quem fará o que (da academia e da comunidade)
4) “Ficava só no papo” : foi apontado como problema da rede de Solidariedade. PareceTer sido apontado a necessidade de ter objetividade. O que é “ficar só no papo”? Oque é haver objetividade? Como ser objetivo nos trabalhos com a comunidade?
F.b) CUIDAR E CUIDAR-SE (fazer 2, 3 e 4 juntas):
1) Há riscos em trabalhos na comunidade?
2) Sobre academia: como interpreta os acontecimentos para concluir sobre o risco? Atéonde ir? (de quais riscos estamos falando?)
3) Quais as diferenças e quais as semelhanças entre a percepção de risco pelacomunidade e pela academia?
4) Que estratégias a criminalidade usa para disfarçar o crime? Essas estratégiasconfundem a academia na análise do risco?
5) Como avalia quem tem informação segura?
6) Fala-se sobre os riscos com a comunidade?
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7) Há alguns cuidados a serem tomados a serem tomados nas idas à comunidade, porexemplo “segurança” (cuidados com a câmara, onde e do que tirar fotos). Comosaber quais cuidados? Que outros cuidados haveriam (não apenas com segurança)?
F.c) RETORNO À COMUNIDADE:
1) As pessoas dos movimentos sociais tem bronca de pessoas que vão até lá, tiramtudo, se promovem as custas e não dão retorno. Como você analisa esta situação?
2) Que retorno considera necessário? E possível?
G) PESQUISA:
1) Há uma metodologia de pesquisa que possa melhor corresponder aos desejos departicipação? Como se dão as pesquisas?
2) Há relações entre a pesquisa e os trabalhos em comunidades ?
H) RELAÇÕES : O QUE APRENDE:
1) “Corpo à corpo”: reunião mensal com cada grupo (são 8 grupos). Por que éimportante estar lá. O que é o corpo a corpo? O que se aprende e se vê nessasreuniões? (“vai construindo a postura – vai se vendo a si mesma?). Por que ir nacomunidade é importante, o que se aprende indo lá.
2) Que outros aprendizados você teve nas relações com a comunidade nos trabalhosdesenvolvidos junto ao ELOS/CEPEL?
K) CEPEL:
K.a) CARACTERIZAÇÃO:
1) CEPEL é também academia, conhecimentos intelectualizados? O que caracteriza oCEPEL neste aspecto acadêmico/científico?
2) Caderno de atividades: mudou para história dos grupos. Por que a história éimportante? A perspectiva histórica parece importante para o CEPEL, apontarevoluções, confrontar historicamente. Qual o papel dessa consciência da história?Por que resgatar a história?
3) CEPEL tem vários espaços de atuação na Leopoldina: de caráter mais prático eorgânico. Quais seriam esses espaços? Quais seriam os outros espaços?
4) CEPEL articula, faz pontes, entre o que?
K.b)PROCEDIMENTOS:
1) Reuniões: O que é encontrar-se de forma sistemática com a comunidade? Do que setrata essa “sistemática”: freqüência? Espaços? Os dois? Por que a metodologia(CEPEL) de participar de reuniões como forma de buscar as informações do “pé” nacomunidade e não outras? Como selecionar que tipo de reunião deve ser assistida?A “volta as origens” teria também um retorno ao espaço físico da comunidade?Como vê isso?
2) O jornal como mediador entre os grupos. Explicar um pouco mais como isso se deu.
131
3) Faz oficinas com os grupos que estão precisando discutir (como saber que estãoprecisando discutir?) e não só aquilo que a pesquisa precisa discutir. Comoselecionar o que discutir.
K.c) RELAÇÕES COM A ACADEMIA (fazer todas juntas):
1) CEPEL nasceu na ENSP (oficinas), a partir de atividades que aconteciam no Núcleode Educação e Cidadania. Parece que uma das motivações para criar o CEPEL foisair da ENSP? Essa percepção é correta? Por que sair da ENSP? (sairinstitucionalmente e fisicamente – inclusive, não trabalhar com bairros próximos aENSP.)
2) que a ENSP tinha ou não tinha que tornou necessária a criação de uma ONG?
3) que o Núcleo não era suficiente e não comportava de modo que se tornou necessáriocriar a ONG (explorar aqui pessoas da academia e pessoas da comunidade e pessoasna academia e pessoas da comunidade).
4) “Cada vez que a academia fica mais forte há mais problemas no CEPEL” O que é“+ forte”, que tipo de problemas?
K.d) PESQUISA (fazer todas juntas):
1) Fazer e articular é uma linha de trabalho do CEPEL. Pesquisar é outra linha. E essapesquisa é fundamental para ver e pensar os caminhos que são apontados pelaprópria prática. Poderia explorar um pouco mais essas duas linhas, separadamente –o que “fazer e articular” o que é “pesquisar” . Explorar, em seguida as relações entreelas.
2) Os papéis no CEPEL: há relações entre a pesquisadora e a assessora? Como apesquisa e a assessoria se relacionam? Como elas se definem entre si, como umainfluencia a decisão da outra? Como é a Carla pesquisadora e a Carla assessora?
L) ELOS:
L.a) RELAÇÕES COM COMUNIDADE:
Ver ELOS: sugeriu que eu fosse pesquisar junto ao CEPEL pois lá eles estão mais emcontato com a comunidade. E o ELOS como são os contatos com as comunidades, elessão definidores das pesquisas, e do ensino?
L.b)COM A FIOCRUZ:
Quando o chefe de Endemias (Prof. Sabroza) convidou Valla e Eduardo para o Depto. :qual a motivação da chefia e do Depto? Que características teriam essa chefia e esseDepto para receber esses dois professores que trabalham com comunidades, construçãocompartilhada do conhecimento, que compartilham visões sobre comunidade econhecimento popular? Que características teriam esses professores que tantomotivaram o convite pelo Depto de Endemias quanto o aceite do convite
Como se vê enquanto instituição – Estado, ENSP, FIOCRUZ.
Como são as relações deste grupo com as demais da FIOCRUZ (Biotecnologia, porexemplo).
132
FOCOS:
− A academia dentro da (s) academia (s): a dialética do possível, desejável, necessário.
− Comunidade, bairro, favela: o ter e o ser.
− Os barcos que navegam pelo mangue: o que se busca, o que se leva, o que se traz (asrelações).
− A pergunta pelo outro, o outro na educação.
− O “corpo a corpo”.
133
ROTEIRO DE ENTREVISTA COM PESSOAS DA COMUNIDADE:
3- A partir das conversas com Eduardo, Carla , Valla , Kena e participação em reuniõesdo ELOS e do CEPEL
4- A partir da primeira entrevista com Weelington
Pesquisadora: Maria Waldenez de Oliveira.
Data das entrevistas: Dna. Creusa 16/12/02.
B. A FORMAÇÃO PESSOAL E DO GRUPO SEMENTINHA (3, 4 e 5 juntas):
6) Que fato (s) / experiência (s) você apontaria na sua história que te levaram a buscaresta sua prática de trabalhos com pessoas da academia?
7) Que sonhos movem uma pessoa da comunidade a buscar pessoas da academia?
8) Conceito de conversação pressupõe um consenso ou acordo em algumas coisas.Como estabelecer esse consenso? Ou o grupo se reúne por que primeiramente tem oconsenso. Como se formou este grupo para trabalho em comunidades? Quais são ospressupostos comuns – consensos?
9) Conversação inclui linguagem e emoção. Compartilhadas ou de que se dispõe aconversar. Que linguagem? Que emoções propiciam e dificultam a conversa entre oseu grupo.
10) Que “grupo” : um conjunto de individualidades? Onde há acordos no nívelintelectual, teórico? E em relação à prática?
B) AS RELAÇÕES COM A COMUNIDADE:
2) Não conseguiu envolver outras pessoas da comunidade no Grupo Sementinha? Porquê?
C) CONCEITOS CHAVES:
C.a)VISÕES DE COMUNIDADE (fazer juntas):
6) Comunidade: o que é?
7) Comunidade tem sido usado como referência as favelas mas, é igual á favela?
8) A comunidade não é bairro, pois não tem coisas que o bairro tem (calçamento, .... oque mais?) .
9) que a comunidade / favela tem que o bairro não tem?
10) que a/o identifica com as pessoas da comunidade, com a favela? O que o diferencia?
C.b)DIFERENÇAS (fazer juntas):
3) As pessoas (da academia , da comunidade) constróem conhecimento com outrosparâmetros? Quais as diferenças entre esses parâmetros? Por exemplo: a
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escolaridade – que instrumentos usa para conhecer? A “classe média” – queparâmetros traz essa classe?
4) Esses diferentes parâmetros podem trazer que tipo de leitura? Que tipo de relação?
D) RELAÇÕES COM A COMUNIDADE:
5) Por que algumas pessoas da comunidade trabalham com a academia e outras não?Por que algumas pessoas da academia trabalham com a comunidade e outras não?
6) O que, na organização de uma IES, facilita ou dificulta o convívio e as relaçõesentre pessoas da academia e pessoas da comunidade (horário das reuniões, detrabalho, localização, deslocamento etc)
7) Conversação inclui linguagem e emoção. Compartilhadas ou de quem se dispõe aconversar. Que linguagem? Que emoções propiciam e dificultam a conversa entreacademia e comunidade.
8) No trabalho com os grupos tem que haver uma sensibilidade para os problemas aserem enfrentados para que esse trabalho aconteça. Por ex: a fome. “não dá paratrabalhar com os grupos quando as pessoas do próprio grupo estão passando fome” .Que outros problemas podem se apresentar (ou características ou dimensões dessetrabalho) que as pessoas que não são da comunidade deveriam ser sensíveis eenfrentarem as vezes até antes de começar um determinado trabalho? E queproblemas as pessoas da comunidade deveriam estar sensíveis antes de começar umdeterminado trabalho com pessoas da academia?
F)METODOLOGIAS DE TRABALHO COM COMUNIDADES:
F.a)GERAL (fazer 1,2 e 3 juntas):
5) Como é definido com quem de uma determinada Universidade ou ONG com o qualo Sementinha irá trabalhar?
6) Por que o Sementinha escolhe aquela grupo?
7) Como se determina quem fará o que (da academia e da comunidade)
8) “Ficava só no papo” : foi apontado como problema da rede de Solidariedade. PareceTer sido apontado a necessidade de ter objetividade. O que é “ficar só no papo”? Oque é haver objetividade? Como ser objetivo nos trabalhos com a comunidade?
F.b) CUIDAR E CUIDAR-SE (fazer 2, 3 e 4 juntas):
8) Há riscos em trabalhos na comunidade? Há riscos no trabalho com Universidades eONGs?
9) Quais as diferenças e quais as semelhanças entre a percepção de risco pelacomunidade e pela academia?
10) Que estratégias a criminalidade usa para disfarçar o crime? Essas estratégiasconfundem a academia na análise do risco? Estas estratégias confundem pessoas dascomunidades, ou elas conhecem essas estratégias?
11) Quem, na comunidade teria informação segura sobre os riscos sobre quando ostrabalhos conjunto com a academia na comunidade poderiam ocorrer (reuniões,mutirões etc ) e quando não poderiam acontecer?
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12) Fala-se sobre os riscos com a academia?
13) Há alguns cuidados a serem tomados nas idas à comunidade, por exemplo“segurança” (cuidados com a câmara, onde e do que tirar fotos). Como saber quaiscuidados? Que outros cuidados haveriam (não apenas com segurança)?
14) Há cuidados a serem tomados nas idas ao ELOS e ao CEPEL? Quais seriam?
F.c) RETORNO À COMUNIDADE:
3) As pessoas dos movimentos sociais tem bronca de pessoas que vão até lá, tiramtudo, se promovem as custas e não dão retorno. Como você analisa esta situação?
4) Que retorno considera necessário? E possível?
G) PESQUISA:
3) Como os pesquisadores deveriam planejar e fazer suas pesquisas sobre saúde dacomunidade de modo que haja participação dessas pessoas da comunidade?
H) RELAÇÕES : O QUE APRENDE (fazer 1 e 2 juntas):
3) “Corpo à corpo”: reunião com pessoas da academia na comunidade? O que seaprende e se vê nessas reuniões?
4) Ir em reuniões no ELOS e no CEPEL é importante? Por que? O que se aprende indolá.
5) Que outros aprendizados você teve nas relações com o ELOS/CEPEL?
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ANEXO 2
BOLETIM “OBSERVATÓRIO DE SAÚDE”
(em cópia xerox)
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ANEXO 3
JORNAL “SE LIGA NO SINAL”
(em cópia xerox)