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A imagem do pensamento em Proust e os signos
3.1
Nota inicial
A relao entre pensamento e literatura (e, de forma mais geral, entre
pensamento e arte) , sem dvida, uma questo maior no pensamento deleuziano.
Desde muito cedo em sua obra, Deleuze sensvel a uma determinada presena
do fazer literrio na montagem do pensamento filosfico (e, ainda, a uma
inevitvel e necessria renovao de nossa imagem do pensamento a partir do seu
entrecruzamento pela literatura e pela potica literria). A ocorrncia de situaes
em que surge ligado, explicitamente, o modo de produo de uma e outra,
literatura e filosofia, ento inesperadamente recorrente em seus textos. No se
trata de uma simples recepo das obras literrias, que aparecem to profusamente
nos textos de Deleuze, nem tampouco de se aproximar esteticamente de certas
obras a partir das categorias filosficas to conhecidas do Belo, do Sublime, etc,
seno de uma efetiva transposio, de aportar transversalmente procedimentos
eminentemente literrios para dentro do campo filosfico que permitissem
renov-lo em seu prprio funcionamento, de investir a filosofia de certos efeitos e
elementos caractersticos da produo literria e, com isso, estabelecer uma zona
de intercesso ou de confluncia que, a partir da filosofia, ensejasse um co-
funcionamento, uma co-dico com as artes.
Sucessivamente, vemos ento Deleuze moldar a sua concepo e o seu
procedimento filosfico atravs de termos essencialmente literrios, tais como
drama e dramatizao (mais especificamente, a concepo de um drama
conceitual ou de uma forma dramtica de estabelecer conceitos e de propor
questes em filosofia j na obra sobre Nietzsche, mas em outros textos
importantes, sobretudo a conferncia intitulada O mtodo de dramatizao); a
questo dacriao e mesmo doato de criao, qual o seu real estatuto e escopo
dentro do campo filosfico (problema originado nas artes, e certamente pensado
luz, sobretudo, do fazer literrio); a presena de uma concepo trgica do
pensamento que, sob inspirao nietzschiana, e desde Nietzsche, mostram-se uma
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alternativa possvel tanto para o rompimento com uma certa filosofia metafsica,
como tambm para uma orientao possvel do pensamento da diferena; toda a
questo doestilo em filosofia, e da sua relao essencial com os conceitos (como
Deleuze dir, em Pourparlers, o estilo o movimento do conceito. [...] O estilo
uma variao da lngua, uma modulao, e uma tenso de toda a linguagem emdireo a um fora; Deleuze, 1990, p. 192 e 223); e, enfim, j mais tardiamente,
ainda a noo fundamental depersonagem conceitual, apresentada emO que a
filosofia?
Mesmo no caso de um claro esforo de classificao dos modos de pensa-
mento, de uma separao taxonmica mais estrita entre os domnios do pensar e
da condio de especificidade e intransferibilidade de suas funes e atribuies,
como em O Que a filosofia?, mesmo ento a forma pela qual Deleuze apresenta
o conceito, definido pouco antes por ele como o tipo de produo caractersticada filosofia e intransfervel a qualquer outro campo, tem um carter literrio:O
batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosfico que procede com
violncia ou com insinuao, e que constitui na lngua uma lngua da filosofia,
no apenas um vocabulrio, mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande
beleza9.Em resumo, como dito na conferncia O que o ato de criao, a
filosofia conta histrias, e as conta atravs de conceitos...
Ou seja, trata-se de uma profunda inspirao recebida da atividade liter-
ria, dos processos de criao e da potica artstica, e em tudo a ligao do pensa-
mento deleuziano com a literatura difere de um uso meramente instrumental (ou
seja, de uma concepo ingnua de colocar a literatura a servio da filosofia, ou
de pens-la como um poder delegado da filosofia, como uma literatura de idei-
as, etc...), para, ao contrrio, a despeito da sua clara especificidade, fazer a filoso-
fia quase se confundir literatura ( ainda Dumouli quem observa: em mlti-
plos momentos, os mais sublimes de seu pensamento, parece que literatura e filo-
sofia se confundem; Dumouli, 2007, p. 126). Com isso, no parece ser o caso
de se tratar essa ligao sob a forma distanciada (e dicotmica) de uma crtica
9 Sobre esse trecho, conferir o comentrio de Camille Dumouli, em seu artigo La littraturecomme dlire et le philosophe borderline. Dumouli observa que essa descrio se funda na frasede Proust que parece definir a prpria idia de literatura para Deleuze, ou seja, a de se falar emsua prpria lngua uma lngua estrangeira. Mas ainda, e no sem surpresa, Dumouli no deixa denotar quo longe vai ento a ligao literria de Deleuze, tornando-se inclusive um critrio doprprio conceito: Nos espantamos que o critrio do conceito seja o sublime da sintaxe e dovocabulrio, at sua grande beleza (Dumouli, 2007, p. 126).
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literria (equvoco anlogo ao de se tomar Deleuze como simples comentador ou
historiador da filosofia).
Na verdade, o que, para Deleuze, liga a filosofia literatura e s artes a
perspectiva de uma relao de efetiva criao conceitual; ele encontra nas artes
um elemento constitutivo do pensamento. E uma vez que se considerar opensamento como algo a ser ativado, e ativado necessariamente de fora, ser
certamente o caso de se reconhecer a literatura como um verdadeiro operador
transcendental no pensamento, como um elemento transcendental que, de fora, a
seu modo, leva o pensamento a pensar e, em especial, o faz pensar
diferentemente, segundo toda uma nova imagem do que pensar.
Sobre toda essa importante relao, e especificamente sobre esse uso da
nomenclatura literria e sobre o funcionamento de tcnicas e procedimentos
literrios na obra deleuziana, parece-nos ainda faltar um estudo mais aprofundadoe sistematizado. E, infelizmente, tampouco nosso objetivo estabelec-lo aqui.
Mas a obra sobre Proust tem, em relao a esse sentido que descrevemos,
em relao a essa montagem coligada entre filosofia e literatura, um carter
fundamental: por um lado, ela inaugura essa relao essencial do pensamento
deleuziano com as artes e a literatura. Por outro, ela apresenta, de forma mais
geral, o sentido contido, para Deleuze, nessa ligao entre os dois planos, ou seja,
o de uma transformao transcendental por que passa o pensamento e que, dentre
outros movimentos, parece depender ainda, sobretudo nesse momento, da sua
ligao com a literatura e com a no filosofia.
essa, sim, a questo que nos interessa mais de perto nesse segundo
captulo de nosso trabalho. Sem dvida, a busca de uma redefinio do campo
transcendental do pensamento um dos problemas, seno o principal problema,
como j pudramos constatar em relao obra anterior sobre Nietzsche, a ocupar
Deleuze nesses anos, atDiferena e Repetio(e mesmoLgica do Sentido, que,
na verdade, j aponta para algumas das solues e caminhos a serem percorridos
nos anos e nos trabalhos seguintes). E a partir do livro sobre Proust, a literatura (e
em seguida o conjunto das artes) representar um papel decisivo nessa
redefinio. O esprito dessa ligao transcendental de Deleuze com a literatura
muito bem descrito por Herv Micolet:
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H na obra de Deleuze um fenmeno caracterstico de complicao. A noo decomplicao designa um estado (o estado complicado), sobretudo operaes eprocessos que suscitam todo um mundo de dificuldades. Segundo uma de suasacepes, a complicao pode ser compreendida como a complicaode termosdiferentes, que entram em relao em lugar de se exclurem ou de se justaporem.Nessa hiptese, sob dois termos genricos, ao menos, filosofia e literatura soimplicadas reciprocamente uma na outra, votadas uma outra, cada termo
complicando o outro. O fenmeno no se daria somente em certos pontos da obraonde se trata expressamente da literatura, mas no conjunto da obra considerada doponto de vista de sua gnese. esse ponto de vista gentico que importa aDeleuze, segundo uma concepo da filosofia como uso renovado da faculdadede pensar; essa concepo anunciada sob o registro de um empirismotranscendental (Micolet, 2007, p. 7, grifo nosso).
A partir disso, a questo que se impe responder, como observa Micolet,
a da forma como se entra em relao com o campo literrio: De que maneira o
campo literrio ento encontrado? Nas pginas que se seguem, tentamos
apresentar uma resposta possvel a tal questo.
Por fim, nesta Nota inicial, gostaramos de apontar as razes da escolha
interpretativa feita nesse captulo. O livro que Deleuze dedica a Proust, como se
sabe, tem vrias etapas de redao. Sua publicao original d-se em 1964, com o
ttuloMarcel Proust e les signes [Marcel Proust e os signos]. Ou seja,
imediatamente posterior aNietzsche et la philosophie[Nietzsche e a filosofia]de
1962, e La philosophie critique de Kant[A filosofia crtica de Kant],de 1963, a
cuja problemtica transcendental ele est, a nosso ver, diretamente ligado.
Mas,em 1970, o livro conhece nova edio, com uma significativa mudana, quando
lhe acrescida toda uma segunda parte, denominadaLa machine littraire [A
mquina literria]. E, dessa segunda parte, a concluso, intitulada Prsence et
fonction de la folie, l'Araigne [Presena e funo da loucura. A aranha], por
sua vez resultado do remanejamento de uma conferncia proferida na Itlia, e
inicialmente publicada naquele pas, numa coletnea de ensaios intitulada Saggi e
ricerche di Letteratura Francesa(Ed. Bulsoni, 1973), sendo acrescida apenas na
edio definitiva do livro, de 1976.
A leitura dessa segunda parte mostra que ela, de forma geral, desdobra (ou
mesmo redobra) vrios dos temas apresentados na primeira parte, denominada
Os signos. Entendemos que Deleuze, nesse novo material acrescentado, visa
especialmente a apresentar o problema da potica da obra proustiana, a sua
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condio de unidade, e, em relao a essa questo, a natureza do romance
proustiano eo funcionamento maqunico daRecherchee da obra de arte moderna.
Mas decidimos, por uma questo de estratgia interpretativa, no fazermos
maiores referncias a esses acrscimos posteriores da obra. Por algumas razes.
Em primeiro lugar, porque o tema da Imagem do pensamento no central nessa segunda parte do livro.
Em segundo lugar, por uma razo de carter histrico: uma vez que
pretendemos dar conta do processo gentico de formao do conceito de Imagem
do pensamento nas obras anteriores a Diferena e Repetio, entendemos que os
possveis acrscimos a esse tema presentes nessa segunda parte do comentrio
dedicado a Proust, todos eles posteriores j publicao daquela obra, j se fariam
sob o efeito de resultados mais tardios da tematizao desse conceito, e, em
especial, sob influncia da elaborao fundamental de que ele objeto emDiferena e Repetio. , alis, o que se constata, de imediato, quando da leitura
dessa parte acrescentada. Vemos que temas como o da transversalidade, do corpo
sem rgos, do funcionamento maqunico da obra de arte se integram, ou mesmo
se sobrepem aos de essncia, diferena e inclusive ao de imagem do pensamento.
Finalmente, a temtica mais caracteristicamente literria que se apresenta
nessa segunda parte tambm j ela mesma reveladora de uma evoluo das
concepes deleuzianas sobre a arte e sobre o estatuto da sua relao com a
filosofia, cujo correto dimensionamento um dos temas a serem abordados neste
captulo de nosso trabalho e, como pretendemos mostrar, tambm recomendaria
tomar em separado uma e outra parte.
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A interpretao deleuziana de Proust: sentido transcendental da arte
[A arte] por isso, alm de real acima de todas as
coisas, a mais austera escola de vida, o verdadeiro
Juzo Final.(Proust, O Tempo redescoberto)
Toda filosofia uma pesquisa da verdade. Ou, mais exatamente, toda
pesquisa da verdade necessariamente filosfica. Mas o que a Verdade, e como
nos encontramos com ela, se ela no um elemento que preexista naturalmente,
de direito, no (ou para o) pensamento? Essa a tese desenvolvida j em Nietzsche
e a filosofia, e que ser estendida e aprofundada em Proust e os signos. Trata-se,
talvez, da questo mais fundamental para Deleuze nesse perodo, dada a completa
reverso de expectativas que ela de imediato estabelece em relao ao nosso
modelo tradicional de pensamento, diante dessa nova imagem do pensamento que
j suspeitamos se abrir com ela. Questo que, como vimos, se herda do
pensamento nietzschiano, num aprofundamento do problema transcendental
kantiano, e, portanto, por tudo isso, questo que j seria suficiente para fazer-nos
dimensionar esse ensaio sobre Proust como algo bem mais complexo do que um
livro sobre literatura, um ensaio esttico, ou uma simples aproximao
filosfica da literatura por parte de Deleuze (em todo caso, ainda um livro sobre
algum ou algum pensamento, sempre dentro da linha monogrfica adotada por
ele nessa primeira fase de sua filosofia).
Essa orientao talvez revele, na verdade, uma caracterstica mais geral do
pensamento deleuziano. Se, por um lado, Deleuze escreve com bastante
regularidade sobre a literatura e as outras artes (como j se pde apontar, mais de
um tero de sua obra dedicado aos estudos nesses campos10) por outro, seria
preciso conceder que ele, a rigor, jamais escreve nem sobreuma coisa, nem sobre
outra. O sentido do pensamento deleuziano sempre profundamente filosfico, na
10Conferir, por exemplo, Sauvagnargues, A. Deleuze et lart, em especial o captulo 1, p. 9-10.Nessa sua catalogao das obras de Deleuze, a autora considera apenas os livros estritamentededicados s artes, como Proust e os signos, os dois livros sobre cinema, e o que dedicado pintura de Francis Bacon. Se considerados tambm os textos esparsos, essa contagem seria semdvida ainda maior.
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direo de uma teoria (pura ou transcendental) do pensamento11. Filosofia, apenas
filosofia, talvez dissesse Deleuze: sempre disso que se trata... E tendo como seu
principal problema, seu problema mais geral, o problema do pensamento: do que
seja o pensar, de como se pensa, e de como se chegaa pensar. esse, em suma, o
problema transcendental que marca centralmente toda essa primeira fase dopensamento deleuziano atDiferena e Repetio.
Nesse sentido, poderamos dizer, ento, que no h propriamente jamais
uma teoria esttica em Deleuze12, ao menos no em um dos dois sentidos
consagrados desse termo, ou seja, de uma teoria da filosofia sobre a arte. Ao
contrrio, a partir da sua ligao com a literatura e as artes, na direo inversa e
num sentido at bastante inesperado, o que se tem antes uma (nova) teoria do
pensamento a partir da arte (talvez seja o caso de dizer, como veremos, que
Deleuze prope j um terceiro sentido para a esttica, resgatando-a da separaohistrica que a cindia desde Kant, por um lado, em uma teoria da sensibilidade e,
do outro, em uma teoria da arte nesse caso, a arte seria o elemento de uma
ativao especial da faculdade da sensibilidade, com um reflexo imediato sobre
o nosso processo de pensamento, sobre a nossa imagem do pensamento. Ou seja, a
esttica,refundida em seus dois sentidos, se definiria em Deleuze como a doutrina
(experimental) da ativao do pensamento (pelas foras, pelos signos, pela
prpria relao entre as faculdades).
Com efeito, a arte se mostrar para Deleuze sempre um instrumento privi-
legiado para a investigao do pensamento, do sentido e da orientao do pensa-
mento, e enfim, para uma determinada concepo de nossa imagem do pensamen-
to. E o livro mais importante a esse respeito , sem dvida, Proust e ossignos. Em
especial, porque ali parece ser determinado pela primeira vez o sentido a ser ex-
11Do pensamento, frise-se, e no do conhecimento, o que nos vai levar, como j pudemos ver nocaptulo anterior, a lugares e solues absolutamente inovadoras em relao quelas teorias quesimplesmente (e naturalmente) identificavam, ou ao menos ligavam, de forma co-extensiva,pensamento e conhecimento, em geral segundo uma extenso qualitativa que fazia do pensamento
a expresso preliminar e confusa da elaborao organizada que caracterizaria a obteno final doconhecimento.12Esse tema j foi levantado e desenvolvido anteriormente por autores como Jacques Rancire,que se pergunta se haveria de fato uma esttica no pensamento deleuziano (conferir, em especial,Existe uma esttica deleuziana?. In: Alliez, E. Deleuze uma vida filosfica; e a entrevistaDeleuze accomplit le destin de lesthtique, no nmero 406 do Magasine Littraire, de fevereirode 2002, edio especial Leffet Deleuze). No sentido contrrio, a presena e importncia de umaesttica em Deleuze tambm apontada por vrios autores, sob diversas acepes, com destaquepara M. Buydens, cujo livro, Sahara, foi um dos primeiros estudos sistemticos sobre opensamento de Deleuze (data de 1990), e que, justamente, tentava identificar o sentido e aorientao esttica presente no pensamento deleuziano.
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trado da arte no que concerne ao funcionamento transcendental do pensamento.
O papel que a arte ento exerce sobre o pensamento ser sempre o de um fora-
mento, a arteinvariavelmente deve forar o pensamento a pensar(como de resto
tambm a filosofia, e qualquer outra atividade espiritual digna desse nome).
Ao longo de Proust e os signos, Deleuze retoma e continua a responder a
alguns dos temas que se abriam j em Nietzsche e a Filosofia. O primeiro deles
diz respeito ao sentido da crtica no pensamento e das possibilidades da extenso
da concepo crtica no pensamento. Para Deleuze, como vimos, o pensamento se
confunde com a crtica; em sua atividade, ele essencialmente uma crtica. Tal
idia crtica como caracterstica central do pensamento claramente mantida aqui.
A literatura proustiana definida por Deleuze em essncia como uma crtica (e,
como veremos, uma crtica voltada contra a prpria filosofia).Deleuze parece, ento, nesse momento, querer j retomar e reler o
problema transcendental tal como ele fora posto em Nietzsche e a filosofia. De
algum modo, luz da obra de Proust, trata-se j de recensear e avaliar a prpria
configurao transcendental que emergira da crtica nietzschiana, qual a positivi-
dade dessa nova imagem do pensamento liberada por Nietzsche face a uma das
principais obras artsticas modernas que se seguem a ela, em um perodo histrico
imediatamente posterior quele em que a filosofia nietzschiana vem luz.
Nesse caso, no de se estranhar que o comentrio sobre Proust se desen-
volva em torno de questes caracteristicamente filosficas que, em boa medida, j
haviam orientado a obra anterior sobre Nietzsche, e que visam a demarcar de
direito o plano do pensamento. arte e s suas possibilidades que, nesse caso,
podemos sem dvida denominar de transcendentais, que todo um conjunto de
questes genticas ou genealgicas vem agora referido: Quem procura a verda-
de? E o que est querendo dizer aquele que diz eu quero a verdade? (Deleuze,
2006b, p. 14); O que quer aquele que diz eu quero a verdade? (2006b, p. 15);
Entretanto, o que existe alm do objeto e do sujeito? (2006b, p. 35); O que
uma essncia, tal como revelada na obra de arte? (2006b, p. 39); O que uma
diferena ltima absoluta? (2006b, p. 39); como explicar o mecanismo
complexo das reminiscncias? (2006b, p. 52); como resgatar para ns o
passado, tal como se conserva em si, tal como sobrevive em si? (2006b, p. 55),
etc. Trata-se de um conjunto de questes que, como se v, evocaria antes um
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tratado de metafsica do que a abordagem simplesmente esttica de uma obra
literria. Questes organizativas acima de tudo da prpria filosofia.
Ou seja, as questes lanadas obra proustiana e sua organizao so,
em larga medida, as mesmas questes que conduziam a pesquisa crtica e
genealgica do plano genuinamente filosfico nas obras anteriores de Deleuze (emesmo nas obras seguintes), e que referem a obra proustiana em definitivo ao
corao do pensamento filosfico, que revelam uma abordagem absolutamente
filosfica da obra proustiana por Deleuze. O livro sobre Proust ento, l-se assim
(como se leram os livros anteriores de Deleuze e devero ser lidos os seguintes):
como um livro filosfico, um livro sobre filosofia; um livro a partir da arte sobre a
filosofia, visando ao funcionamento da filosofia, antes que o contrrio. O objetivo
de Deleuze ento muito claro e trata-se sem dvida de um princpio
interpretativo absolutamente original. Como aponta ento Vronique Bergen,
ao mesmo ttulo que Proust nos diz que atravs da Recherche, os leitores noseriam seus leitores, mas os leitores de si mesmos, o autor fornecendo apenas alente de aumento a permitir-lhes encontrar seu mundo prprio, de se decifrar, afilosofia se leria ela mesma atravs da arte (Bergen, 2007, p. 31).
Mas seria preciso contornar uma dificuldade interpretativa, nesse caso, e
que talvez evidenciasse aqui um outro prolongamento possvel das concluses do
comentrio anterior: se fora na arte que Nietzsche encontrara uma culminao
possvel para o pensamento filosfico, em que sentido Deleuze no estaria agora
simplesmente buscando aprofundar essa perspectiva, fazendo da filosofia um
modo de realizao da arte, uma atividade de criao, entre outras, submetida
ela mesma a um princpio artstico de funcionamento? Enfim, se a atividade
filosfica, segundo a nova imagem do pensamento traada por Nietzsche, se rede-
fine como uma atividade de criao, como negar a sua natural convergncia na
direo das artes? Em que a filosofia, radicalizadas as concepes nietzschianas,
no seria ela mesma j uma forma artstica, um tipo de obra de arte?Contudo, a nosso ver, no parece ser essa, exatamente, a questo a inspirar
o comentrio deleuziano ao romance proustiano. Deleuze no toma Proust como
filsofo, nem tampouco a arte como filosofia, ou vice-versa. E est a talvez uma
das principais originalidades presentes nessa nova monografia de Deleuze. Pois,
se mais uma vez trata-se de responder questo gentica da origem do pensamen-
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to, de encontrar os elementos que permitam pensar, que forcem a pensar, trata-se
de encontrar os elementos que nos apresentem uma nova imagem do pensamento,
elementos, enfim, que dizem respeito estritamente filosofia e ao exerccio do
pensamento, isso agora j no se d mais a partir da filosofia enquanto tal, e sim
de foradela. Nesse sentido, deve-se entender que o comentrio a Proust no pro-duz uma contra-prova, uma complementao ou uma confirmao, apenas, das
teses contidas na obra anterior, dedicada a Nietzsche, mas, como dizamos, ele pa-
rece querer propor, de fato, uma extenso do princpio crtico vislumbrado no pen-
samento nietzschiano. Insistamos nesse ponto fundamental: se consideramos que
um dos principais princpios modernos que Deleuze preserva em seu pensamento
o de se tomar a filosofia sempre segundo um modelo e uma concepo crticas,
uma questo de imediato se apresenta, e ela diz respeito s formas como a crtica
se manteria ou se prolongaria em seu pensamento, como possvel garantir-se eaprofundar esse sentido crtico legado inicialmente do kantismo, mas, sobretudo,
de um modo ainda muito mais rigoroso e efetivo, segundo a prpria interpretao
deleuziana, da filosofia de Nietzsche. Que atividade crtica seria ainda a sua, e co-
mo o prprio Deleuze a exerce? Em que direo ela se orienta? A nosso ver, nesse
caso, um problema se coloca a partir da prpria radicalidade crtica atribuda ao
pensamento de Nietzsche pela interpretao deleuziana. Se a crtica de Nietzsche
mostrara-se a mais radical, chegando a alterar, finalmente, a nossa prpria ima-
gem do pensamento, que possibilidades restariam ainda para o exerccio da crtica,
que funcionamento rigorosamente crtico ainda caberia filosofia, depois de
Nietzsche? Haveria alguma alternativa da simples assuno do nietzschesmo?
Mesmo que revelia, no estamos ns, ainda e sempre nietzschianos, forosamen-
te colocados sombra da sua radicalidade, condenados simplesmente a palmilhar
seus caminhos, restando-nos, afinal, apenas deslindar sua expressointempestiva
e aforstica? No seria apenas um dficit de entendimento da filosofia nietzschiana
o problema colocado, afinal, para toda a filosofia da diferena (problema de
explicao e de desenvolvimento de seus sentidos enrolados)?
Proust e os signosparece uma clara tentativa lanada na direo de uma
resposta a todas essas questes. Um livro em aparncia menos importante, menos
denso, filosoficamente falando, do que aqueles que o antecederam (em especial,
Empirismo e Subjetividadee, claro,Nietzsche e a filosofia), masque, num sentido
imediatamente muito evidente, rompe visivelmente com os cursos da obra
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deleuziana anterior, caracteristicamente inserida na histria do pensamento
filosfico, e dedicada a leituras monogrficas de autores do cnone filosfico.
diferena dessa orientao anterior, trata-se agora, ento, de um livro que se
desvia da filosofia. E que encontraria sua importncia primeira, portanto, nesse
aspecto mesmo: ele se desvia da filosofia. Por que? Nesse caso, talvez devamosconsiderar que a escolha de um autor literrio, ao mesmo tempo que indita, cons-
titui tambm, por isso mesmo, o trao diferencial inicial e o lance fundamental
que est em jogo nesta obra. Tal escolha certamente nada tem de gratuito: ela j
revela, da parte de Deleuze, o propsito deliberado de traar um caminho novo em
relao orientao anterior de seu trabalho. E essa nova orientao, de forma
inesperada, leva-o paraforado campo estritamente filosfico.
Mas o que significa esse novo movimento de se forar a crtica at um
autor no filosfico? Trata-se ento, possivelmente, nesse primeiro desdobramen-to da formulao do tema da imagem do pensamento, de avaliar criticamente a
prpria imagem crtica montada anteriormente, e, talvez, de faz-la avanar
conforme o mesmo princpio que, j em Nietzsche, se revelara como o mais
fundamental, ou seja, o daradicalizao da crtica como condio de evoluo do
pensamento filosfico, a experimentao como condio de renovao criativa e
criadora do fazer filosfico.
Nesse sentido, Proust e os signosparece, de algum modo, representar uma
tentativa de uma nova experimentao crticaj para alm da filosofia, estenden-
do, de algum modo, esse princpio de radicalizao. E valendo-nos da terminolo-
gia deleuziana que marcaraNietzsche e a filosofia, no se indicaria, assim, que em
Proust e os signos, se tenta de algum modo aprofundar a crtica j contra o prprio
sentido e valor da filosofia? Com efeito, no seria esse, afinal, o ltimo bastio
a ser alcanado pela atividade crtica filosfica, voltar-se a filosofia contra ela
mesma, ou mesmo sairda filosofia para enfim poder, de fora, realizar a sua crtica
mais efetiva?
Trata-se, j agora, de forar o pensamento filosfico at o seu lado de
fora, at a situao de uma apreciao crtica completamente exterior, de um fun-
cionamento crtico j no-filosfico. Parece-nos uma questo experimental acima
de tudo: e se pensssemos a filosofia no a partir dela, de suas foras e elementos
prprios, internos, mas sim de fora, a partir de conjunes inditas, e de inditas
possibilidades? E se a crtica que deve incidir sobre a filosofia j no se exercesse
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mais de dentro do seu prprio plano, no coincidisse mais com seus limites, com a
internalidade de seu territrio? Que aventuras transcendentais no estariam conti-
das, portanto, nessa nova possibilidade? Um novo possvel, um fora, uma nova
experimentao: so esses os elementos de fundo, a nosso ver j absolutamente
deleuzianos que, sem dvida, inspirados nos procedimentos e nos efeitos crticosque Deleuze percebera anteriormente na filosofia de Nietzsche, ele faz agora
variar, no sentido do seu aprofundamento e de uma nova radicalizao, elementos,
enfim, que conduzem a construo desse livro sobre aRechercheproustiana.
H, evidentemente, algo de muito importante a, nesse deslocamento de
domnios estabelecido por Deleuze, um deslocamento transcendental que visa a
determinar, a partir da literatura, novos princpios possveis para o exerccio do
pensamento, para a reviso da imagem clssica do pensamento. Uma reverso,
talvez, no s da concepo inicial da crtica, mas, atravs dela, dos prprioscaminhos do pensamento de Deleuze. Como observou Sousa Dias, num contexto
um pouco diverso, poderamos resumidamente indicar o que se passa a: no
mais a arte que depende da crtica, mas a crtica que ir, ento, passar a
depender da arte. No se abandona a condio crtica caracteristicamente
filosfica, por uma experincia ou uma nova condio artstica, mas redefine-se a
crtica a partir da arte, impe-se prpria crtica um novo foramento, tomando-se
a arte como um novo princpio transcendental. esse o exerccio inovador do
pensamento que Deleuze se impe nesse momento.
3.2.1Arte e crtica em Proust e os Signos
A filosofia de Deleuze caracteriza-se em essncia por um funcionamento
transversal, por uma transversalidade constitutiva (tema, alis, que marcar a
segunda parte desse livro sobre Proust), ou seja, por apresentar-se como um tipo
de saber cuja consistncia s se realiza por inteiro a partir da comunicao e da
interferncia com outros planos. A filosofia, por sua prpria natureza conceitual,
essencialmente multi-referencial, no-disciplinar, diferencial. Como o prprio
Deleuze apontar, mais tarde, em Imagem-tempo, sua concepo da atividade
filosfica eminentemente pluralista, sem uma distino disciplinar ou uma
clivagem qualitativa, ou hierrquica entre os diversos campos do saber:
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[...] a teoria filosfica uma prtica, tanto quanto seu objeto. uma prtica dosconceitos, e preciso julg-la em funo das outras prticas com as quais elainterfere. Uma teoria do cinema no sobre o cinema, mas sobre os conceitosque o cinema suscita, e que esto tambm em relao com outros conceitoscorrespondentes a outras prticas, a prtica dos conceitos em geral no tendonenhum privilgio sobre as outras, do mesmo modo que um objeto tambm notem sobre os outros. no nvel da interferncia de muitas prticas que as coisas
se fazem, os seres, as imagens, os conceitos, todos os tipos de acontecimentos(Deleuze, 1985, p. 365, grifo nosso).
ento a partir de Proust e os signos que essa orientao comea a se
determinar de modo mais efetivo. A partir dessa obra, as relaes entre filosofia e
no filosofiacomeam a se constituir num verdadeiro elemento formador para o
pensamento de Deleuze, para o exerccio de uma filosofia da diferena. Deleuze
buscar nas artes e na literatura, tanto uma nova possibilidade crtica para a filoso-
fia, visando ao aprofundamento da linha investigativa definida por Nietzsche, mas
ainda um princpio constitutivo original para o seu prprio projeto filosfico, pelo
qual a filosofia dever caracterizar-se, para alm da especificidade do seu domnio
disciplinar, por constituir (e constituir-se em) uma regio de intercesso, por uma
condio de estabelecer encontros e agenciamentos. Por ligar-se ao que Deleuze, a
partir de Blanchot e Foucault, chamar de Fora (tomadocomo elemento de reela-
boraodiferenciale reproblematizaodo pensamento)13. A partir de Proust e
os signos, a filosofia de Deleuze passar a ser sempre, a cada livro, a determi-
nao da conquista de um Fora, uma aventura no Fora. Ou seja, um programa deexperimentao em que a filosofia s pode de fato encontrar seu aprendizado
(ao mesmo tempo a sua condio crtica e a sua condio de criao) fora de si
mesma, saindo de si mesma, ainda que por seus prprios meios. Ou saindo talvez
em si mesma: sair da filosofia pela filosofia, como dir Deleuze mais tarde.
ento a partir desse momento que se d incio, mas j sob uma forma
desenvolvida, definitiva, ao processo disso que Deleuze chamar de intercesso,
de uma busca e de uma constituio dos intercessores, isso , essa tentativa de
13Arnaud Bouaniche um dos poucos comentadores de Deleuze a apontar tal condio especial daarte nesse momento do pensamento deleuziano. O livro sobre Proust, para ele, apresenta umasupremacia dos signos da arte [que] uma originalidade desse perodo da obra de Deleuze(Bouaniche, A., Gilles Deleuze une introduction, p. 70). Via de regra, os demais comentriosintegram Proust e os signos numa progresso uniforme da obra. Para ns, essa progresso evidente, mas ainda assim h uma importante especificidade dessa obra em relao s anteriores:rompendo com a orientao anterior das monografias deleuzianas, ela aborda um autor literrio, e,mais do que isso, ela promove uma crtica da prpria filosofia a partir desse autor.
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fazer a filosofia comunicar-se criativamente com a arte e a cincia14. Toda a teoria
dos intercessores tem incio a15e, doravante, essa operao de intercalao, de
ligao, de interpenetrao e de atravessamento da filosofia pelo no-filosfico
14Num certo sentido, no podemos ento concordar inteiramente com a tese de Roberto Machado,para quem a filosofia goza de uma prioridade sobre os demais domnios de pensamento: Arelao com a exterioridade ou com os outros saberes, embora constitutiva, no o aspectodeterminante dessa inter-relao conceitual. Mesmo que um conceito seja como um som ou umaimagem e que no haja superioridade de um sobre os outros, do ponto de vista da elaborao daproblemtica filosfica de Deleuze, ou de seu prprio exerccio de pensamento, h prioridade dafilosofia sobre os outros domnios. A razo que, sendo sua questo uma questo filosfica oque pensar? -, ou melhor, sendo seu objetivo principal produzir o conceito de exerccio dopensamento, o apelo aos saberes no filosficos funciona fundamentalmente como comprovaoou como confirmao de uma problemtica definida conceitualmente pela filosofia. O no-filosfico entra como elemento que vem alimentando um pensamento eminentemente voltado paraa filosofia e at mesmo para os conceitos tradicionais da filosofia. Se h, neste caso, prioridade dafilosofia, porque ela o regime dos conceitos, e, mesmo que os conceitos venham sempre defora, os conceitos suscitados pela exterioridade no conceitual esto, no pensamento de Deleuze,
subordinados aos conceitos oriundos da tradio filosfica, Machado, R.Deleuze e a filosofia, p.6 et. seq.). Mas com isso, a nosso ver, se pe a perder toda a concepo deleuziana daexperimentao no pensamento, que, dentre outras caractersticas bem definidas, guarda a dearrancar elementos no filosficos para a elaborao conceitual filosfica. Esse sentidoconstitutivo essencial para a filosofia deleuziana, condio ao mesmo tempo para um exerciodiferencial e superior da filosofia, e, para que ele tenha efetivo valor, fundamental que aconcepo da ligao da filosofia com a no filosofia seja em essncia no hierarquizante, que nocaiba a nenhum domnio envolvido uma legislao, ou mesmo um ponto de vista privilegiadoem relao aos outros. Na verdade, a nosso ver, no h hierarquia nem prioridade, porque no hpr-formao. Ao contrrio, a filosofia efetivamente se faz a partir desse contgio. Nesse sentido,o prprio Deleuze ir afirmar, em Pourparlers, que a filosofia, a arte e a cincia entram emrelaes de ressonncia mtua e em relaes de troca, mas a cada vez por razes intrnsecas. emfuno de sua evoluo prpria que elas percutem uma na outra. Nesse sentido, precisoconsiderar a filosofia, a arte e a cincia como espcies de linhas meldicas estrangeiras umas s
outras e que no cessam de interferir entre si. A filosofia no tem a nenhum pseudoprimado dereflexo, e por conseguinte nenhuma inferioridade de criao. [...] O que preciso ver que asinterferncias entre linhas no dependem da vigilncia ou da reflexo mtua. Uma disciplina quese desse por misso seguir um movimento criador vindo de outro lugar abandonaria ela mesmatodo papel criador. O importante nunca foi acompanhar o movimento do vizinho, mas fazer seuprprio movimento. Se nigum comea, ningum se mexe (Deleuze, G., Pourparlers, p. 170-171,grifo nosso). Assim, a nosso ver, como esse trecho mesmo nos permite depreender, deveramos naverdade considerar que h, a rigor, duas temticas diferentes a envolvidas, que, no fundo, em nadaso contraditrias. Por um lado, Deleuze defende a especificidade da filosofia e a sua independn-cia, que se revelam em inmeras teses por ele desenvolvidas; seja a da intransferibilidade dacondio de criao conceitual que cabe filosofia; seja a dos diferentes equvocos em tomar-se afilosofia como um reflexo sobre... ou como um tipo de saber acessrio, ligado instrumental-mente a outros, em especial s cincias (uma teoria geral das cincias, ou de qualquer outro campodo saber); seja, enfim, em sua ironia contra todos os diferentes pensadores que no param de cho-
rar a morte da filosofia ou o fim do pensamento. Nesses, e em diversos outros pontos de sua obra,revela-se uma mesma defesa da filosofia, a idia de uma coerncia prpria da filosofia, da suaparticular especificidade e autonomia, bem como da sua manuteno necessria (enquanto houvera necessidade de se pensar por conceitos, haver ento filosofia). Por outro lado, isso no desca-racteriza a importncia de uma concepo transversal do fazer filosfico: sem dvida, os proble-mas so pensados a partir do ponto de vista filosfico, no interesse da filosofia, mas so ilumina-dos de uma maneira inteiramente diversa pela no filosofia. E em grande medida a filosofia deDeleuze tem seu trao mais original na tentativa de se constituir como uma pesquisa da presena edo funcionamento dessas foras no filosficas no pensamento. A distino, portanto, a nosso ver, apenas de ponto de vista, a partir da especificidade (e no da prioridade) da filosofia.15Sobre a questo dos intercessores, conferir, em especial, Deleuze, G. Pourparlers, p. 165 et. seq.
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ser um procedimento criativo particularmente importante para Deleuze, e
caramente reivindicado por sua filosofia.
Sem dvida, trata-se de uma diferena marcante que faz de Proust e os
signos algo como o Mnonde Deleuze: assim como o Mnon, para Plato, vem
resolver a dificuldade aportica dos primeiros dilogos, descortinando todo umnovo domnio para o pensamento filosfico, em Proust e os signos, Deleuze
parece encontrar uma soluo definitiva para o problema transcendental tal como
ele o enunciara desde Nietzsche e a filosofia e que, em especial definira o
exerccio da filosofia como uma atividade de crtica e de criao. Mas numa
virada crtica e transcendental at certo ponto inesperada, na arte e na literatura
(ou, mais amplamente, na no filosofia) que Deleuze vislumbra e talvez em
definitivo encontre uma resposta para essa tarefa.
A nosso ver, a distino marcante entre a orientao de sua produo ante-rior com a imensa abertura efetivamente possibilitada agora, em que a filosofia li-
teralmente se abre para o no filosfico, tem um alcance to grande, em uma filo-
sofia da imanncia, quanto a revelao de um segundo mundo no pensamento
metafsico. Trata-se, a partir de ento, de palmilhar, de explorar, de experimentar
todas as suas possibilidades, e em boa medida poderamos dizer que a filosofia
deleuziana se constitui em uma filosofia transcendental da investigao filosfica
do no filosfico, da relao do no filosfico com a filosofia, e da implicao do
no filosfico sobre o funcionamento de uma nova imagem do pensamento (ou,
por outra, de um pensamento sem imagem). De toda sorte, ao menos potencial-
mente, lanam-se a as bases para uma forma filosfica significativamente distin-
ta. No caso, deveramos inclusive dizer que a ligao de Deleuze com Nietzsche
certamente mais fundamental do que a sua ligao com Proust, mas que a sua obra
sobre Proust, para o desenvolvimento de sua filosofia, para a evoluo de seu
pensamento, ainda mais fundamental do que a sua obra sobre Nietzsche.
Poderamos ento considerar uma evoluo em torno do tema da Imagem
do pensamento. Trs grandes desenvolvimentos iro se suceder na obra deleuzia-
na, tendo expresso distinta nesses trs momentos em que o tema desenvolvido:
Nietzsche e a filosofia, Proust e os signose Diferena e Repetio.EmNietzsche
e a filosofia, como vimos, trata-se de determinar a direo principal do pensa-
mento nietzschiano como promovendo uma reformulao da funo crtica na fi-
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losofia e as decorrentes implicaes dessa radicalizao sobre o pensamento. A
filosofia de Nietzsche procura levar a crtica at o fim do que ela pode, ou seja,
na direo dos valores mesmos que, ao longo do tempo, inspiraram a atividade do
pensamento e, por trs disso, o estabelecimento da sua imagem clssica. Ao
radicalizar a idia crtica filosfica, Nietzsche necessariamente investe e reverteessa antiga imagem. Em Proust e os signos,avanamos nessa empreitada crtica
at um segundo momento; foramos a filosofia at o seu fora, ou inversamente,
criticamos ainda mais radicalmente a filosofia, j a partir da exterioridade da no
filosofia. Mas, em especial, buscamos uma renovao da imagem do pensamento
atravs de uma composio da filosofia com estas foras. Diferena e Repetio,
enfim, anuncia como que uma sntese desse duplo movimento: apresenta-se a
formulao definitiva do tema daImagem do pensamento, em que o fora de algum
modo pensado no interior da prpria filosofia, atravs de uma nova doutrinadas faculdades: trata-se ento de determinar o funcionamento diferencial de cada
faculdade, e o elemento prprio a solicit-las. Em outras palavras, trata-se de sair
da filosofia pela filosofia... No h necessidade de se buscar em outras regies o
que o pensamento comporta nele mesmo: o fora est na prpria filosofia, como
sua condio de experimentao intrnseca. A essa condio, que define o seu
pensamento pelo menos at Diferena e Repetio, Deleuze denominar de
empirismo transcendental. A idia, fundamentalmente experimental, de sair da
filosofia pela filosofia o princpio mesmo contido nessa expresso.
3.2.2
Filosofia e arte: o estatuto do pensamento em Proust e os signos
Em Proust e os signos, vemos determinar-se, portanto, esse segundo
momento do conceito, em que a filosofia entra em dilogo, ou faz intercesso com
a obra de arte. E, com isso, como veremos, por mais que alguns temas paream se
repetir em relao a Nietzsche e a Filosofia, algumas diferenas quanto aos seus
efeitos, j nessa nova interpretao, destacam-se de modo muito evidente.
Primeiramente, ao contrrio do lugar que lhe fora concedido na obra dedi-
cada a Nietzsche, o problema da imagem do pensamentotem agora uma centrali-
dade mais evidente: em lugar de aparecer apenas como uma seo integrando um
captulo, ele agora nomeia e merece um captulo prprio, a ele inteiramente dedi-
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cado. Mais at, na verso original do livro, datada de 1964, esse captulo era o de
concluso do trabalho. Com as mudanas efetuadas por Deleuze nas edies que
se seguiram, ele torna-se a ltima seo do primeiro captulo, o elemento de liga-
o entre a primeira e a segunda parte do livro, intitulada A mquina literria.
O ttulo da obra, Proust e os signos, e o da primeira parte, intituladasimplesmente Os signos, evidenciam ainda outra transformao fundamental. A
nosso ver, Deleuze parece j buscar ressaltar, atravs dessa terminologia, a
centralidade do problema tratado. Toda essa distino concedida ao problema dos
signos indica a importncia (agora ainda maior do que antes) com a qual o
problema transcendental abordado. Como veremos, em Proust, para Deleuze, os
signos tomaro o lugar que assumiam as foras em Nietzsche, como o elemento
de foramento do pensamento, como elemento transcendental com valor de
princpio, que fora o pensamento a pensar. Com isso, j desde o seu ttulo a obrarevela qual a questo tratada, a qual problema ela visa fundamentalmente. No se
trata mais da ligao genrica de um filsofo com o conjunto histrico da
filosofia, mas a abordagem especfica do problema transcendental no pensamento,
do problema do pensamento em seu puro funcionamento.
Uma terceira diferena que agora, ao contrrio da forma empregada em
Nietzsche e a filosofia, no se qualifica j a Imagem do pensamento como nova.
Por que razes? Possivelmente, por Deleuze tomar esse tema como um passo da-
do, um elemento adquirido na sua prpria montagem transcendental, a concepo
de uma nova imagem do pensamento, a partir de agora, devendo ser apenas me-
lhor determinada, explicada. De toda sorte, isso certamente no se deve a algu-
ma limitao do pensamento de Proust em relao ao de Nietzsche, ao contrrio.
A imagem do pensamento que se decalca do funcionamento da obra proustiana
to ou mais novaque aquela que fora analisada em relao obra nietzschiana.
Por outro lado, isso talvez revele uma certa prudncia por parte de
Deleuze. Uma vez identificada a novidade transcendental apresentada pela
filosofia de Nietzsche, que possibilidades se verificam a partir dela? Os elementos
e princpios que se pudera decalcar do pensamento nietzschiano j seriam inteira-
mente suficientes para pavimentar o funcionamento de uma nova filosofia? Mas
estaria a prpria filosofia habilitada a faz-lo (ou desejaria efetivamente faz-lo),
aps mais de dois mil anos fixada a uma mesma imagem dogmtica, agora afinal
criticada? Seria a filosofia a instncia mais indicada a promover a sua prpria
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renovao? No haveria ainda a um mesmo conflito entre o crtico e o criticado
que evocaria a crtica nietzschiana a Kant quanto ao mal fundado da sua crtica?
Nesse sentido, Deleuze, atravs de Proust, parece se dar conta, e ressalta
esse tema por diversas vezes, de uma certa ingenuidade prpria filosofia em
relao qual ele parece agora querer contrapor-se. preciso lembrar que h todoum tema da inocncia dentro do pensamento deleuziano: na obra mesmo sobre
Nietzsche ressalta-se mais de uma vez a sua importncia, identificando um carter
notadamente afirmativo, vitalista e, sobretudo, irreligioso na inocncia. O prprio
Deleuze refere-se sua possvel ingenuidade filosfica, ao procurar explicar a
clebre expresso com que Foucault o distingue: Um dia, talvez, o sculo ser
deleuziano. Assim diz ele, Foucault talvez tenha querido dizer, justamente, no
exatamente que ele fosse o melhor, porm o mais ingnuo, uma espcie de arte
bruta, por assim dizer; no o mais profundo, porm o mais inocente (o maisdesprovido de culpa por fazer filosofia) (Deleuze, 1990, p. 122). Mas agora,
no. Em Proust e os signos, a inocncia filosfica parece revestir-se aqui de um
carter negativo, sendo entendida, aparentemente, como o principal sintoma de
uma coonestao do pensamento com um conjunto de pressupostos, com um fun-
do de boa vontade, ou, mais geralmente, da ausncia de uma crtica filosfica
rigorosa, a prova de que a filosofia, diferena, possivelmente da arte, se ancora
ainda em postulados demais, condies pr-definidas no criticadas. Aqui, tal
inocncia indicar, por excelncia, um trao da insuficincia crtica filosfica.
Nesse caso, deve-se insistir na originalidade dessa escolha da literatura, e
da literatura de Proust, em particular, como eixo central da pesquisa. Isso indica,
de imediato, como dizamos, um importante contraste com as obras anteriores, em
que o problema da arte por vezes colocado, e mesmo com um carter
fundamental, como emNietzsche e a filosofia, mas nas quais, caracteristicamente,
so muito esparsas as referncias a obras literrias, ou a obras no filosficas.
Esse contraste no deve passar desapercebido. Passa-se de uma ausncia quase
completa da tematizao da produo no filosfica, ou ao menos da ausncia de
uma abordagem direta da obra de arte e da no filosofia para um novo
desenvolvimento em que uma obra de arte, o conjunto dos romances proustiano
assume um papel central para a pesquisa do pensamento.
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3.2.3
Superioridade da literatura e da arte sobre a filosofia
De forma caracterstica, antes de Proust e os signos, pensa-se a filosofia
sempre a partir da prpria filosofia, jamais da no filosofia; a filosofia reverberainternamente seus problemas, a partir de uma economia interna do pensamento
filosfico que os problemas se determinam e avanamos nas suas solues. As
obras no filosficas so raramente mencionadas e quando isso ocorre
invariavelmente do ponto de vista da filosofia e no interesse da determinao de
algum tema essencialmente filosfico. Via de regra, as poucas ocorrncias de
citaes de no filsofos tendem, inclusive, a diminu-los em face de uma
construo filosfica superior. assim, por exemplo, em Nietzsche e a filosofia,
ao menos por duas vezes, e em situaes envolvendo temas de especialimportncia: o da definio do problema do acaso (que, por sua vez, est ligado
formulao do problema do lance de dados), e em seguida, quando se formula
uma teoria do inconsciente em Nietzsche.
Em relao primeira, toma-se, para efeito de comparao com as teses
nietzchianas, a concepo do lance de dados de Mallarm. Para Deleuze, esse
tema fundamental nietzschiano surge deformado na concepo malarmaica,
identificada por Deleuze ao velho pensamento metafsico de uma dualidade de
mundos. Seu efeito , na verdade, o de abolir a concepo de acaso. Para
Deleuze, as teses do acaso como lance de dados s so ento verdadeiramente
formuladas por Nietzsche, com Mallarm colocando-se numa posio antpoda.
Em Mallarm, para Deleuze,
o acaso como a existncia que deve ser negada, a necessidade como o carterda idia pura ou da essncia eterna; de tal modo, que a ltima esperana do lancede dados encontrar seu modelo inteligvel no outro mundo, [...] onde o acasono exista.
Portanto, a poesia de Mallarm apresenta a hiptese do lance de dados
segundo um ponto de vista j revisto pelo niilismo, interpretado em perspectivas
da m conscincia e do ressentimento (Deleuze, 1976, p. 27-28).
Da mesma forma, em um desenvolvimento seguinte, no qual se imagina
uma possvel crtica de Nietzsche teoria do inconsciente freudiana. Mais uma
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vez, a ocorrncia de uma formulao no filosfica se mostra insuficiente face a
uma formulao filosfica prxima (e essa parece ser uma estratgia interpretativa
habitual nessa primeira fase deleuziana, de uma dualidade interpretativa que ao
mesmo tempo assume a filosofia como um padro rigoroso, e a partir disso
compara-a a outras formulaes antipdicas, em geral menos consistentes16
):
Pode-se imaginar o que Nietzsche teria pensado de Freud: a ainda, ele teriadenunciado uma concepo muito reativa da vida psquica, uma ignorncia daverdadeira atividade, uma impotncia em conceber e em provocar a verdadeiratransmutao. Isso pode ser imaginado com mais verossimilhana visto queFreud teve entre seus discpulos um nietzschiano autntico. Otto Rankdevia tercriticado em Freud a idia inspida e terna de sublimao. Ele reprovava Freudpor no ter sabido liberar a vontade da m conscincia ou da culpabilidade.Queria apoiar-se nas foras ativas do inconsciente, desconhecidas para ofreudismo e substituir a sublimao por uma vontade criadora e artista. Isso olevava a dizer: sou para Freud o que Nietzsche era para Schopenhauer (Deleuze,
1976, p. 95, nota 6).
At Proust e os signos, portanto, parece incontestvel uma certa
superioridade dos estudos filosficos. Em especial, e o que aqui nos interessa mais
de perto, a crtica parece exercer-se sempre a partir da filosofia. a filosofia o
grande paradigma e a escala definitiva verdadeira pedra-de-toque - para a
medida do valor de toda obra de pensamento. No comentrio a Proust, porm, h
essa sbita mudana. A adoo de um literato como objeto de comentrio indica
uma clara mudana de rumos em relao forma interpretativa habitual, umareverso, at, da orientao filosfica anterior.
Em contraste com esses desenvolvimentos anteriores, ao longo de Proust e
os signos, vemos a filosofia ser ento repetidas vezes denunciada em sua
insuficincia. Ela colocada em questo em seu conjunto, em seu direito. Uma
inferioridade da filosofia em relao arte inclusive um dos leitmotive da
anlise deleuziana daRecherche, sendo ressaltada em diversos momentos:
Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosfica, porque o que est envol-vido no signo [interpretado pela arte] mais profundo que todas as significaes
16 Talvez devssemos ver a um exemplo do dualismo interpretativo deleuziano apontado porRoberto Machado, e que caracteriza, em diversos momentos, a forma de exposio deleuziana emfilosofia. Com efeito, os elementos da no filosofia aportados para dentro de seus comentrios,esto, nesse momento, invariavelmente, nas antpodas das formulaes filosficas. ConferirMachado, R.Deleuze e a filosofia, A geografia do pensamento.
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explcitas [conhecidas pela filosofia]; o que nos violenta mais rico do que todosos frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importantedo que o pensamento aquilo que faz pensar (Deleuze, 2006b, p. 29).
Como aponta Bouaniche, a arte se v investida, em Proust e os signos,
de uma potncia de revelao ontolgica, ao mesmo tempo em que a filosofia sev criticada como pesquisa da verdade (Bouaniche, 2007, p. 70). Ou antes, o tipo
de verdade proporcionada pela filosofia, como veremos mais detidamente mais
adiante, um tipo de verdade inferior ao revelado pela arte. arte que caber
a realizao de um tipo superior de pesquisa da verdade. Trata-se, a, de uma
formulao fundamental. Arte e filosofia no difeririam fundamentalmente quanto
aos seus objetivos, seno por conta da forma ou dos instrumentos empregados
para a consecuo de suas respectivas pesquisas da verdade. Mas, em princpio,
ambas so expresso de uma pesquisa da verdade e do pensamento. Deleuzeinsiste nesse ponto, de qualificar a obra proustiana como uma efetiva pesquisa da
verdade. Para ele, esse, na verdade, o sentido profundo daRecherche:
Na realidade, aRecherche du temps perdu uma busca/pesquisa17da verdade. Seela se chama busca do tempo perdido apenas porque a verdade tem uma relaoessencial com o tempo. Tanto no amor, como na natureza ou na arte, no se tratade prazer, mas de verdade. Ou melhor, s usufrumos os prazeres e as alegriasque correspondem descoberta da verdade(Deleuze, 2006b, p. 14).O essencial da Recherche no est na madeleine nem no calamento. Por umlado, a Recherche, a busca, no simplesmente um esforo de recordao, umaexplorao da memria: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como naexpresso busca da verdade (Deleuze, 2006b, p. 3).
No h, portanto, nenhum privilgio da pesquisa filosfica em relao a
outras tantas. Deleuze assinala a diferena e a pluralidade dos diversos tipos de
pesquisa da verdade (em lugar de uma talvez esperada unidade ou convergncia
de toda pesquisa da verdade). Nesse caso, o logos apenas um regime de
pensamento entre outros. Com Bouaniche, poderamos dizer, ento, que
a filosofia designa, com efeito, menos o exerccio real do pensamento, que umacerta forma desse exerccio, historicamente surgida com os gregos, e dominadapelos universais de comunicao: amizade, dilogo, consenso, etc, que
17Recherche conserva em francs o duplo sentido que talvez nem sempre seja evocado no portu-gus, de busca e de pesquisa. Traduzimos o termo ora por uma, ora por outra dessas duas a-cepes, mas deve-se ter sempre em vista tal polissemia, cujo sentido esclarecedor da concepoproustiana de seu romance, ao mesmo tempo uma buscae umapesquisado tempo perdido.
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constituem o que Deleuze chama de logos, e a que ele ope o pathos comoencontro fortuito com os signos (Bouaniche, 2007, p. 70).
Nesse caso, como aponta Deleuze, a interpretao da Rechercheenvolve,
antes de tudo entender como Proust define sua prpria pesquisa da verdade,
como a contrape a outras pesquisas, cientficas ou filosficas (Deleuze, 2006b,
p. 14). Ou, mais do que isso, entender que a concepo proustiana da recherchese
contrape definitivamente pesquisa filosfica, que ambas efetivamente
rivalizam e, nesse caso, que se assenta em tal rivalidade o prprio carter
filosfico do romance trata-se de pensar, de algum modo, contra ou para alm
da prpria filosofia (A Recherche, antes de tudo, uma busca da verdade, em
que se manifesta toda a dimenso filosfica da obra de Proust em rivalidade com
a filosofia; Deleuze, 2006b, p. 88, grifo nosso). Mais exatamente, no setrata na
verdade de considerar que a arte dever suplantar a filosofia, mas sim que, por sob
essa rivalidade, a arte apresenta elementos especficos irredutveis simples
assimilao filosfica, elementos, contudo, que ao mesmo tempo evocam,
solicitam, investem a filosofia. nesse sentido, justamente, que se poder dizer
que a arte fora o pensamento filosfico.
Mas a idia de uma rivalidade do romance proustiano com a filosofia deve
ser melhor precisada. O que torna Proust um rivalda filosofia? Sobretudo o seu
combate aos pressupostos, o modo como ele se afasta dos pressupostos clssicos
que organizavam a pesquisa filosfica: Proust constri uma imagem do pensa-
mento que se ope da filosofia, combatendo o que h de mais essencial numa
filosofia clssica de tipo racionalista: seus pressupostos (Deleuze, 2006b, p. 88).
a exposio dos modos pelos quais Proust se afasta de tais pressupostos
clssicos da filosofia e, portanto, da filosofia enquanto tal, que guia a exposio
deleuziana da suapesquisa.
Vemos que as razes do mal sucedido da filosofia se explicaro, em
especial, pela crena em um conjunto de elementos que so por ela tomados como
seus pressupostos necessrios (ou naturais). Dentre eles, em primeiro lugar,
estaria a concepo de um exerccio do pensamento fundado no princpio de uma
boa vontade. Ao mesmo tempo, a boa vontade do pensador, que impe a si de
forma voluntria e natural a atividade do pensamento, bem como o seu corolrio
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necessrio, de uma concordia universalis que, em ltima anlise, o ambiente
veraz (de boa vontade) em que o pensamento pode ser produzido e o
conhecimento obtido e comunicado (alm de universalmente reconhecido). Em
contraste com a arte, esse seria um dos principais equvocos da filosofia, o de
pressupor a naturalidade do pensamento e a sua inclinao natural para a verdade.Pensar, para a filosofia, tradicionalmente predispor-se ao verdadeiro, colocar-se
a caminho da verdade: o erro da filosofia pressupor em ns uma boa vontade
de pensar, um desejo, um natural amor pela verdade (Deleuze, 2006b, p. 15). Um
pressuposto que marca, portanto, com um carter distintivo, a forma mesma da
pesquisa filosfica, e que permite estabelecer, para o pensamento filosfico, a
concepo de um exerccio sempre voluntrio e premeditado pelo qual
chegaremos a determinar a ordem e o contedo das significaes objetivas
(Deleuze, 2006b, p. 28). essa concepo voluntria do pensamento, em especial,o pressuposto de fundo de todo o pensamento filosfico clssico a possibilidade
de pensar natural. Basta querer para efetivamente comearmos a pensar...
Para Proust, ao contrrio, o pensamento ser sempre uma aventura no
involuntrio, - a busca da verdade a aventura prpria do involuntrio
(Deleuze, 2006b, p. 89) - e a arte, sem dvida, a sua grande expresso18. Ao
contrrio da filosofia, a arte maneja matrias livres, e libera, portanto, essncias
18Ao comentar o processo da interpretao proustiana dos signos, Deleuze cita um longo trecho do
Tempo Redescoberto, onde o prprio Proust reflete sobre a forma involuntria como os signos seapresentam ao narrador e impem a sua interpretao: Porque as verdades direta e claramenteapreendidas pela inteligncia no mundo da plena luz so de qualquer modo mais superficiais doque as que a vida nos comunica nossa revelia, numa impresso fsica, j que entrou pelossentidos, mas da qual podemos extrair o esprito. [...] Era mister tentar interpretar as sensaescomo signosde outras tantas leis e idias, procurando pensar, isto , fazendo sair da penumbra oque sentira, convert-lo em seu equivalente espiritual. [...] Pois reminiscncias como o rudo dogarfo e o sabor da madeleine, ou verdades escritas por figuras cujo sentido eu buscava em minhacabea, onde campanrios, plantas sem nome, compunham um alfarrbio complicado e florido,todas, logo de incio, privavam-me da liberdadede escolher entre elas, obrigavam-me a aceit-lastal como me vinham. E via nisso a marca da sua autenticidade. No procurara as duas pedras docalamento em que tropeara no ptio. Mas o modo fortuito, inevitvel, por que surgira a sensao,constitua justamente uma prova da verdade do passado que ressuscitava das imagens quedesencadeava, pois percebemos seu esforo para aflorar luz, sentimos a alegria do real capturado.
[...] Do livro subjetivo composto por esses sinais desconhecidos (sinais em relevo, dir-se-ia, queminha ateno procurava, roava, contornava como um mergulhador em suas sondagens) ningumme poderia, com regra alguma, facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que no admitenem suplentes nem colaboradores... Por possurem apenas uma verdade lgica, uma verdadepossvel, as idias selecionadas pela inteligncia pura so selecionadas arbitrariamente. O livro decaracteres figurados, no traados por ns, o nosso nico livro. No que as idias por nselaboradas no possam ser logicamente certas, mas no sabemos se so verdadeiras. S aimpresso, por mofina que lhe parea a matria e inverossmeis as pegadas, um critrio deverdade e como tal deve ser exclusivamente apreendida pelo esprito, sendo, se ele lhe souberextrair a verdade, a nica apta a conduzi-lo perfeio e ench-lo da mais pura alegria, Proust,M. OTempo redescoberto, apudDELEUZE, G. Proust e os signos, p. 90.
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involuntrias (cujas snteses so definidas a partir do contgio pela experincia
real, e no por categorias a priorido entendimento).
Mas o que se quer dizer com essa idia? O pensamento, se no pensa vo-
luntariamente, como afinal chega a pensar? Para Proust, o pensamento encontra-se
em dependncia de uma violncia inicial. por fora de um embarao, de umaexperincia constrangedora, sob a imposio violenta, enfim, de alguma
sensao, que somos levados a pensar, que o pensamento brota em ns como uma
exigncia, verdadeiramente exigido: a essa sensao que fora o despertar de
nosso pensamento, Proust chama de signo. Pensamos, inapelavelmente, sob o
efeito dos signos. S e somente sob a sua violncia. Como considera Deleuze, h
sempre a violncia de um signo que nos fora a procurar, que nos rouba a paz;
ns s procuramos a verdade quando estamos determinados a faz-lo em funo
de uma situao concreta, quando sofremos uma espcie de violncia que nos levaa essa busca (Deleuze, 2006b, p. 14-15). Em tudo isso, evidente, estamos muito
longe do regime da boa vontade filosfica: A verdade no descoberta por afi-
nidade, ela se trai por signos involuntrios, ela depende de que os signos impo-
nham-se com violnciasobre o nosso pensamento. Nesse caso, quem para Proust
ser por excelncia o grande pesquisador da verdade? Ironicamente, Deleuze di-
r: antes de todos, o ciumento, pois a ele impem-se sempre os signos mentirosos
do amor, a presso das mentiras do ser amado (Deleuze, 2006b, p. 14).
Violncia = coao+ acaso; acaso dos encontros, presso das coaes
(Deleuze, 2006b, p. 15). A grande equao da violncia dos signos une a imposi-
o de sua decifrao, de sua explicao, intempestividade, imprevisibilidade
de sua irrupo. por fora de um encontro fortuito, de uma alegria inesperada
que o signo se revela. A verdade depende desse encontro, de um encontro com
alguma coisa que nos fora a pensar e a procurar o que verdadeiro. [...] [E]
precisamente o signo que objeto de um encontro e ele que exerce sobre ns a
violncia (Deleuze, 2006b, p. 15). Diante da imagem piedosa e moral de uma
boa vontade como ambiente veraz do pensamento, o que de pior do que ser
surpreendido?
Tal afirmao investe ainda, muito claramente, contra a concepo do me-
todo filosfico, contra a possibilidade de um efetivo controle pr-definido sobre o
desenvolvimento de nosso pensamento.A idia filosfica de mtodo, que assegu-
raria ao pensamento manter-se no reto caminho da verdade (ou evitar desviar-se
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dele), parece a Proust uma impossibilidade, uma arbitrariedade, seno mesmo
simplesmente uma tolice. A tal idia filosfica de mtodo, ele ento opor o
par violncia-encontro, a dupla idia de coao e de acaso, como os dois
temas fundamentais de uma nova pesquisa da verdade (Deleuze, 2006b, p. 15).
Mas h a um aparente paradoxo. O pensamento depende de um encontroe, no entanto, para Proust, so as verdades filosficas voluntrias que se mostram
arbitrrias e contingentes. Como se explica isso? Ocorre que, para Proust, o crit-
rio do verdadeiro o da autenticidade e da necessidade. Ao formar, do pensamen-
to, uma imagem voluntria, a filosofia se move ento em outro territrio: o do
possvel. As verdades da filosofia, obtidas voluntariamente, so por isso mesmo
apenas possveis. Elas podem ou no ser pensadas, podem ou no serem conheci-
das, mas nada garante que elas o sero (Um trabalho empreendido pelo esforo
da vontade no nada; em literatura ele s nos pode levar a essas verdades dainteligncia, s quais falta a marca da necessidade, e das quais se tem a impresso
de elas teriam podido ser outras e ditas de forma diferente; Deleuze, 2006b, p.
20). So, portanto, o que Deleuze denomina de um produto abstrato do pensa-
mento. Sua existncia fortuita, contingente, e, para ns, num sentido prtico, a
rigor, indiferente: podemos viver muito bem sem elas. Dependem, em ltima
anlise, de um ato de vontade do pensador. As verdades da filosofia so ditas
ento gratuitas, convencionais. E, por serem gratuitas, ou seja, por estarem de
todo desligadas da condio de uma experincia real, as verdades obtidas pela
investigao filosfica carecem de autenticidade, de necessidade ([...] o que diz
um homem profundo e inteligente vale por seu contedo manifesto, por sua
significao explcita, objetiva e elaborada; tiraremos pouca coisa disso, apenas
possibilidades abstratas, se no soubermos chegar a outras verdades por meio de
outras vias, que so precisamente as do signo (Deleuze, 2006b, p. 20); s
verdades da filosofia faltam a necessidade e a marca da necessidade. De fato, a
verdade no se d, se trai; no se comunica, se interpreta; no voluntria,
involuntria (Deleuze, 2006b, p. 89)). Desdobrando, ento, a tese proustiana do
Tempo redescoberto de que As idias formadas pela inteligncia pura s
possuindo uma verdade lgica, uma verdade possvel, sua seleo torna-se
arbitrria, Deleuze pode ento afirmar que tais ideias so contingentes, porque
gratuitas, porque nascidas da inteligncia, que somente lhes confere uma possibi-
lidade, e no de um encontro ou de uma violncia, que lhes garantiria a autentici-
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dade. As idias da inteligncia s valem por sua significao explcita, portanto
convencional (Deleuze, 2006b, p. 15). Deleuze, com efeito, insiste nesse ponto:
A filosofia atinge apenas verdades abstratas que no comprometem, nem
perturbam (Deleuze, 2006b, p. 15); As idias da inteligncia s valem por sua
significao explcita, portanto convencional. Ou ainda:
[...] Sob todas as formas, a inteligncia s alcana por si prpria, e s nos fazatingir as verdades abstratas e convencionais, que no tm outro valor alm dopossvel. De que valem essas verdades objetivas que resultam de uma combina-o de trabalho, inteligncia e boa vontade, mas que se comunicam na medida emque so encontradas e so encontradas na medida em que so recebidas?(Deleuze, 2006b, p. 29)
Boa vontade, mtodo, pressupostos no criticados se implicam,
evidenciando o convencionalismo dogmtico sobre o qual se assenta a filosofia. Acondio pressuposta de um acordo prvio, de uma comunho espiritual, de
uma convergncia natural para a verdade, faz de algum modo, da filosofia, um
tipo de saber convencionado, convencional. Por um lado, ela depende de certos
pressupostos comuns, de uma linguagem convergente, de certas condies ou
postulados reconhecidos universalmente. Por outro, sua atividade extravia-se da
possibilidade do inesperado, da situao de surpresa, de uma condio de efetiva
experimentao. Deleuze insiste nesse trao da imagem dogmtica: ela elide
necessariamente o involuntrio, ela exorciza todo processo inconsciente...No por outra razo, talvez, que a filosofia encontre sua raiz ainda na
amizade grega (fato notado pelo prprio Proust em sua crtica natureza do
pensamento filosfico). Ao contrrio do amor, as formas da amizade so,
necessariamente explcitas, convencionadas. So ainda, por isso mesmo, a
inspirao original e fundamental para o exerccio da filosofia. Proust parece
elenc-las todas em sua crtica: o acordo tcito, a respeitabilidade s convenes,
a boa vontade comum, a comunho de certos valores, de certos sentidos
convencionados; trata-se, no fundo, no plano filosfico, do mesmo princpio deuma ao entre amigos.
Insistindo nessa comunho original entre amizade e filosofia, na
determinao original da filosofia como uma das formas da amizade, Deleuze
mais uma vez ressalta esse pressuposto de boa vontade que parece inspirar
ingenuamente o pensamento, que, como na unio entre dois amigos, faz a amizade
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nascer segundo uma boa vontade comum, faz por outro lado do filsofo,
imagem daqueles, o amigo natural da verdade, o fiel depositrio de uma natural
boa vontade de pensar, e da boa vontade da verdade para com o pensamento:
Na palavra filsofo existe amigo. [...] Os amigos so, um em relao ao outro,como que espritos de boa vontade que sempre coincidam a respeito da signifi-cao das coisas e das palavras, comunicando-se sob o efeito de uma boa vontadecomum. A filosofia como a expresso de um Esprito universal que concordaconsigo mesmo para determinar significaes explcitas e comunicveis(Deleuze, 2006b, p. 88-89).
Mas com isso, a crtica da filosofia, em Proust, far-se- sempre em
paralelo com a crtica da amizade, uma evocando necessariamente a outra:
muito significativo que Proust dirija a mesma crtica filosofia e amizade.[...] A crtica de Proust toca no essencial: as verdades permanecem arbitrrias eabstratas enquanto se fundam na boa vontade de pensar. Apenas o convencional explcito. Razo pela qual a filosofia, assim como a amizade, ignora as zonasobscuras em que so elaboradas as foras efetivas que agem sobre o pensamento,as determinaes que nos foram a pensar. No basta uma boa vontade nem ummtodo bem elaborado para ensinar a pensar, como no basta um amigo paraaproximarmo-nos do verdadeiro. Os espritos s se comunicam no convencional;o esprito s engendra o possvel (Deleuze, 2006b, p. 88-89);Devemos reter esse ponto essencial: a amizade e a filosofia so passveis damesma crtica. Segundo Proust, os amigos so como espritos de boa vontade queesto explicitamente de acordo sobre a significao das coisas, das palavras e dasidias; mas o filsofo tambm um pensador que pressupe em si mesmo a boa
vontade de pensar, que atribui ao pensamento o amor natural do verdadeiro e verdade a determinao explcita daquilo que naturalmente pensado. Por estarazo, ao duo tradicional da amizade e da filosofia Proust opor um duo maisobscuro formado pelo amor e a arte (Deleuze, 2006b, p. 28-29).
Assim, diz Deleuze, refora-se claramente a separao e a distncia entre
arte e filosofia, entre as suas respectivas concepes epistmicas, ou o modo co-
mo, ao mesmo tempo, concebem o pensamento e a maneira pela qual se relacio-
nam com ele, e dele se fazem instrumentos de expresso. E, comparativamente, a
filosofia se v diminuda diante da arte. Nesse sentido, Proust poder dizer, como
nota Deleuze, que Victor Hugo faz filosofia em seus primeiros poemas, porque
ele ainda pensa, em vez de contentar-se, como a natureza, em dar que pensar.
Mas o poeta aprende que o essencial est fora do pensamento, naquilo que fora a
pensar (Deleuze, 2006b, p. 89). Desse modo diremos que mais importante do
que o pensamento o que d que pensar; mais importante do que o filsofo o
poeta (Deleuze, 2006b, p. 89).
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Enfim, nesse momento, afirmada uma crtica severa contra o conjunto do
pensamento filosfico, o que, por outro lado, faz supor a arte como o poder mais
habilitado a empreender a redefinio da imagem do pensamento postulada por
Deleuze: A filosofia, com todo o seu mtodo e a sua boa vontade, nada significa
diante das presses secretas da obra de arte (Deleuze, 2006b, p. 91).
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3.3Os signos
Para Deleuze, o principal trao comum dessa nova imagem do pensamento
liberada tanto por Proust quanto por Nietzsche, o de que pensar no um ato
natural ao pensamento. Na verdade, sem que se exera sobre ele uma presso
inicial, o pensamento no vence a sua inrcia natural, o seu estado de torpor
intrnseco (seu estado de btise). sempre mais fcil no pensar, e no h ento
por que supor que o pensamento se produza espontaneamente. O tema a definir a
pesquisa transcendental deleuziana nesse momento , com efeito, o de como
pensar se impe ao pensamento, como pensar se engendra no pensamento?. E
essa questo de gnese envolve a idia de que o pensamento deve ento ser
considerado do ponto de vista de uma gnese interna que o engendra atravs das
foras que dele se apoderam e que o fazem pensar (Bouaniche, 2007, p. 68).
J fora esse um dos temas que orientara a investigao deleuziana do
pensamento de Nietzsche e que revelara, afinal, o surgimento de uma nova ima-
gem do pensamento. Mas antes, em Nietzsche, como vimos, o que desencadeava e
provocava o pensamento eram as forase a relao entre as foras. Ao retomar a
pesquisa da imagem do pensamento, j agora face ao romance proustiano, Deleuze
descarta essa originariedade das foras em prol de um novo elemento: o signo.
So os signos e a pluralidade de seus tipos e mundos que constituem um novofor-
amentoa pensar. Deleuze insiste repetidas vezes sobre essa concepo da nossa
atividade de pensar presente naRecherche: Em primeiro lugar, preciso sentir o
efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que forado a procurar
o sentido do signo (Deleuze, 2006b, p. 22). Ou ainda:
O que quer aquele que diz eu quero a verdade? Ele s a quer coagido e forado.S a quer sob o imprio de um encontro, em relao a determinado signo. [...]Procurar a verdade interpretar decifrar, explicar, mas esta explicao se confun-de com o desenvolvimento do signo em si mesmo (Deleuze, 2006b, p. 15-16).
O problema dos signos naRechercheenvolve, notadamente, o seu sentido
e o seu funcionamento (Em Proust no a memria que explorada, so todas as
espcies de signos, dos quais preciso descobrir a natureza de acordo com os
meios, o modo de emisso, a matria, o regime. Em busca do tempo perdido
uma semiologia geral, uma sintomatologia dos mundos; Deleuze, 1990, p. 195).
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Caber aos signos o papel de ativar o pensamento, so eles os elementos da
experincia real que, afetando diretamente o pensamento, tiram-no de seu torpor,
foram a sua atividade. Mas, com isso, uma primeira pergunta diz respeito s
razes da substituio das foras pelos signos.
Em larga medida, a concepo do signo parece estar ainda essencialmenteligada noo de fora nietzschiana. Em especial, como dissemos, a idia de um
necessrio foramento ao pensamento marca de maneira central tambm a
atividade do signo na Recherche. Em Proust e os signos, Deleuze acentua por
diversas vezes tal proximidade e, para ele, a questo principal da obra de Proust ,
ainda, a das foras, dos vrios foramentos: O leitmotivdo Tempo redescoberto
a palavraforar: impresses que nos foram a olhar, encontros que nos foram a
interpretar, expresses que nos foram a pensar (Deleuze, 2006b, p. 89). Desse
modo, signo e fora funcionalmente desempenham um mesmo papel original deativar o pensamento.
Um aspecto, no entanto, parece conferir aos signos algum privilgio em re-
lao s foras, e envolve a reconfigurao transcendental exigida particularmen-
te pela pesquisa dos signos. Esse aparente privilgio se deveria, com efeito, ao fa-
to dos signos forarem o pensamento a uma nova condio, a uma condio de a-
prendizado: o signo fora o pensamento no apenas a pensar, mas tambm a a-
prender. Ou a pensar enquanto aprender(em lugar de apenas refletir, representar
ou comunicar). O signo parece lanar o pensamento em um regime transcendental
inteiramente novo. E se em Nietzsche o jogo de foras solicitava uma redefinio
de nossa imagem do pensamento que apontava, em especial, na direo da vonta-
de e da sua ressignificao transcendental, na direo, em todo caso, de uma cen-
tralidade da vontade de poder entendida como o ncleo efetivo a conduzir o pro-
cesso do pensamento, aqui parece haver uma complexificao ainda maior, que na
verdade, antecipando os desenvolvimentos bem mais profundos de Diferena e
Repetio, exigir j toda a elaborao de uma nova doutrina das faculdades19.
A pesquisa dos signos realizada atravs da longa srie do romance
proustiano enseja, ento, a Deleuze todo um desenvolvimento fundamental que
implica o conjunto de sua filosofia nesse momento. Como observa Bouaniche,
19A esse respeito, conferir, em especial, Deleuze, G. Proust e os signos, p. 92 et. seq., e o verbeteEmpirismo transcendental do Vocabulaire de Deleuze, de Franois Zourabichvili.
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a partir dessa matria literria que Deleuze vai construir uma concepo dosigno, cuja importncia vai muito alm de uma interpretao de Proust e concernetoda a sua obra, a ponto que ele chegar a declarar, em 1988, que, de uma certamaneira, tudo o que ele escreveu constitui uma teoria dos signos (Bouaniche,2007, p. 68)20.
Com efeito, como o prprio Deleuze o reconhece mais de uma vez, ateoria dos signos , em boa medida, uma das vias pela qual se define seu
pensamento, o ndice do seu prprio pluralismo, enfim, um dos elementos de
montagem da sua prpria Imagem do pensamento. Ao definir sua filosofia, em
uma entrevista sobre o primeiro dos seus livros sobre cinema, ele indica essa
importncia dos signos de forma muito explcita:
No se trata de imaginrio. um regime de signos, eu espero, em favor de outrosmais. A classificao dos signos infinita, antes de mais nada porque h umainfinidade de classificaes. O que me interessa uma disciplina um poucoparticular, a taxonomia, uma classificao de classificaes, que, contrariamente lingstica, no pode prescindir da noo de signo (Deleuze, 1990, p. 95-96,grifo nosso).
A teoria dos signos proustiana articular, ento, elementos importantes, j
presentes ou no na reflexo anterior sobre Nietzsche, que tem, para alm da
elucidao da atividade dos signos e da sua decifrao, um valor constitutivo para
o prprio pensamento de Deleuze. Nela reconhecemos, em especial, conforme a
interpretao deleuziana da Recherche, a concepo e o funcionamento de umpluralismono pensamento, marcado por trs grandes caractersticas: a tentativa
de se estabelecer as condies de ligao do pensamento a uma experincia real ,
e no apenas possvel, abstrata, entendida como algo que provoca e enseja o pen-
samento, atravs de um constrangimento no qual o pensamento encontrar sua ge-
nese verdadeira e necessria (ainda que involuntria); uma condio aberta, ou
experimental, do pensamento, que, a rigor, no antecedido, lgica ou psicologi-
camente, por nenhuma categorizao preliminar, por um conjunto de categorias
que, de fato e de direito presidiriam o seu curso, nem tampouco por uma teleolo-gia qualquer, por aspiraes finalistas que definem antecipadamente o seu desen-
volvimento: esse, precisamente o sentido transcendental da experimentao a
que nos fora a experincia dos signos. Como ressalta Deleuze, a experincia dos
signos intempestiva, abrupta, surpreendente: No incio, nem mesmo podemos
20Conferir ainda Deleuze, G. Pourparlers, p. 194-196.
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dizer de que lado vem o signo. E assim, sem saber de incio a que faculdade ele
solicita A qualidade se dirige imaginao ou, simplesmente memria? -,
preciso tudo experimentar para descobrir a faculdade que nos dar o sentido ade-
quado; e, quando fracassamos, no podemos saber se o sentido que nos ficou vela-
do era uma figura de sonho ou uma lembrana dissimulada na memria involun-tria (Deleuze, 2006b, p. 50-51). Trata-se, como afirma Deleuze, sempre de um
encontro: encontramo-nos com signos que nos desconcertam, que nos arrebatam e
nos colocam no trabalho da interpretao; por essa razo mesma, tampouco se
poderia controlar esse desenvolvimento por um mtodo. Ao contrrio, como se
ver, a experincia violenta dos signos no requer um mtodo, mas sim um
aprendizado, que levar, enfim, ao reconhecimento, a partir da interpretao
artstica final, do funcionamentode uma nova imagem do pensamento.
3.3.1
O problema dos signos
Mas ainda que d inclusive ttulo obra sobre Proust, no h, da parte de
Deleuze, uma exposio mais desenvolvida sobre os signos ao longo do livro. Ou
ao menos uma definio, um desenvolvimento que esclarea por completo o seu
sentido. Na verdade, preocupado em definir os seus conceitos antes por seu
funcionamento do que pela sua essncia, antes o que eles fazem do que o
que so, Deleuze privilegia em geral uma exposio que leva em conta a forma de
atividade e os efeitos de determinada coisa. Em Proust e os signos, no
diferente. Entendemos perfeitamente como os signos funcionam sobre o
pensamento; mas talvez no consigamos entender to claramente o que eles so.
A concepo de signo desenvolvida em Proust e os signosna verdade pa-
rece pouco dever s teorias correntes do signo e da significao. Ela no se apre-
senta nem se confunde, ao menos inicialmente, com nossas concepes habituais
da semiticaou da semiologia, no provm da lingustica ou da comunicao. Ao
contrrio, em uma das breves referncias que faz s concepes lingsticas em
Proust e os signos, Deleuze lamenta o equvoco fundamental destas. Equvoco
que est em tomarem-se como algo diferente de uma fsica, em entender a lingua-
gem como algo diferente do corpo. O signo sempre o sinal de um corpo; na ver-
dade, mais do que isso, ele mesmo um corpo, uma fora ou uma potncia de afe-
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tar. Dessa forma, para Deleuze, as palavras e os signos, na condio de corpos,
agem sobre ns de forma diversa da de uma relao simplesmente linguageira.
No se trata simplesmente, em relao aos signos, do processo da sua recepo,
mas da sua interpretao e elucidao. Em Deleuze, e isso j desde Nietzsche e a
filosofia, a interpretao entendida em um sentidocomplexo, que a define emespecial como uma sintomatologia. Assim, diz ele, criticando a concepo semi-
tica ou semiolgica lingstica, os lingistas teriam razo se soubessem que a lin-
guagem sempre a dos corpos. Todo sintoma uma palavra, mas, antes de tudo,
todas as palavras so sintomas (Deleuze, 2006b, p. 86). Os signos, nesse sentido,
evocaro antes um tempo primitivo, pr-lingustico, em que os hierglifos
substituam as letras (Deleuze, 2006b, p. 20).
Por outro lado, tampouco os signos parecem ser, simplesmente, da ordem
dos processos comunicacionais. Por definio, os signos no se comunicam(quele que os recebe), nem comunicam nada. Deleuze d como exemplo uma
mulher que se ama: mesmo que de condio muito simples, mesmo, ento, no
nos comunicando nada, ainda assim ela no deixa de produzir signos que
devem ser decifrados (Deleuze, 2006b, p. 20).
A definio deleuziana dos signos parece ser, ento, nesse sentido, estri-
tamente descritiva; s