18-03-2018
ELEIÇÕES NA RÚSSIA
Putin criou esta Rússia e tornou--se o seu líder inevitávelHá 18 anos que Vladimir Putin está no topo do poder e o seu nome volta a estar hoje nos boletins de voto. Nos próximos anos joga-se a sucessão do obreiro da Rússia do século XXI
Nada impedirá a reeleição de
Vladimir Putin para mais
seis anos no poder. Para
os milhões de eleitores
que vão votar hoje, numa
altura em que a Rússia está
de costas voltadas para a Europa e
para os EUA, acusada de interferir
nas democracias ocidentais e de ter
assassinado um ex-espião em solo
estrangeiro, Putin já não é um
candidato como os outros. Ascendeu
a um patamar histórico, depois de
devolver o orgulho aos russos e de
lhes garantir estabilidade, mesmo à
custa da reputação internacional.
Por causa das suspeitas de que a
ordem para assassinar Sergei Skripal
terão vindo do Kremlin, o Reino Uni-
do e a Rússia anunciaram a expulsão
de 23 diplomatas colocados nos dois
países. Mas isso não afecta Putin,
que após 18 anos no Kremlin, será
reconduzido para um quarto man-
João Ruela Ribeirodato, durante o qual irá tornar-se no
líder russo com mais longevidade no
poder desde Estaline.
A reeleição abre o debate sobre
o que se irá seguir à era de Putin,
mas para a perceber é preciso voltar
atrás no tempo.
Putin revelou um dos pilares que
sustentaram a sua governação nos
últimos 18 anos, em duas respostas
aparentemente caricatas, na fase fi -
nal da campanha. Numa entrevista,
o líder russo falava dos anos 1990,
um período marcado pela “terapia
de choque” a que a economia russa
foi sujeita após a queda da União So-
viética, ao mesmo tempo que o caos
e a desordem tomavam conta das
ruas, dominadas por guerras de gan-
gues ao serviço de oligarcas rivais.
Memória dos anos 1990“Na minha casa de campo, tinha de
ter uma caçadeira ao lado da cama”,
contou Putin. Por essa altura, o fu-
turo Presidente russo estava sem
trabalho, depois de ter saído da Câ-
mara Municipal de São Petersburgo.
“Pensei que talvez pudesse procurar
trabalho como taxista nocturno”,
afi rmou Putin na entrevista.
Ao partilhar a sua experiência
pessoal neste período, Putin pôs-se
no lugar de milhões de russos que se
recordam da infl ação galopante, da
falta de bens de primeira necessida-
de, do desemprego e da insegurança
que fazia parte do seu dia-a-dia. “É a
memória dos anos 1990 que explica
a ascensão de Putin”, diz ao PÚBLI-
CO Bernardo Pires de Lima, inves-
tigador do Instituto Português de
Relações Internacionais.
Em quase duas décadas, Putin
construiu um sistema altamente
centralizado baseado na lealdade e
nas relações pessoais que o acom-
panhavam desde os tempos como
coronel do KGB. Quando foi catapul-
tado para o Kremlin por um Boris
Ieltsin já em estado de coma políti-
co, Putin era uma “marca branca”
que personalidades mais poderosas
da elite económica e governamental
A Rússia de Vladimir Putin
Fontes: Banco Mundial, Rosstat – Serviço Federal de Estatísticas da Federação Russa
Total países Total países
12
8
4
0
-4
-8
-12
Evolução do PIBEm %
Liberdade de Imprensa(Repórteres sem Fronteiras)
1999 2004 2008 2012 2017
30
25
20
15
10
5
0
Taxa de pobrezaEm % da população
13,5%12,5
29
2000 2005 2010 2015 2016
Menos livre Mais livre139Em 2002
Menos livre Mais livre179Em 2011
Menos livre Mais livre180Em 2017
121
142
148
Corrupção(Transparência internacional)
Mais corrupto Menos corrupto90Em 2000
Mais corrupto Menos corrupto178Em 2011
Mais corrupto Menos corrupto180Em 2017
82
154
135
10
1,5%
-7,8
2000 2008
PresidentePrimeiro-ministro primeiro-ministro
PÚBLICO
Esperança de vidaAnos80
70
60
66 65,05
70,9
1999 2004 2008 2012 2015
20
10
15
5
0
Riqueza obtida a partir dos recursos naturaisEm % do PIB
2000 2004 2008 2012 2015
11,410,3%
21,7
2012 2018
Presidente
YURI KOCHETKOV/EPAO futuro do Kremlin vai começar a ser pensado amanhã, depois da consagração de Putin
pensavam poder manipular a seu
bel-prazer. Apareceu como um ho-
mem sem história ou sem presença
mediática, um desconhecido em que
cada um podia ver o que quisesse.
“Mesmo em Abril de 2000, quan-
do já tinha sido eleito Presidente,
dois terços da população russa di-
ziam saber muito pouco sobre Putin,
apesar da sua presença constante
nos ecrãs de televisão. Podiam-lhe
ser atribuídas quaisquer qualidades.
Putin era um homem sem caracterís-
ticas especiais, um espião perfeito”,
escreve o jornalista Arkadi Ostrovski
em A Invenção da Nova Rússia (Clube
do Autor).
Por outro lado, Putin não podia
ser mais diferente de Ieltsin. En-
quanto um era jovem, forte, confi an-
te e discreto, o outro estava velho,
cansado, e era o rosto de um líder
humilhado, que era encontrado a
vaguear de madrugada pelos relva-
dos da Casa Branca de Moscovo em
circunstâncias pouco dignas.
Putin chegou ao Kremlin na al-
vorada do novo milénio para pôr
fi m à desordem dos anos 1990 e
assegurar uma vida estável aos rus-
sos. Para isso, começou logo por
pôr a comunicação social — que
tinha gozado de uma liberdade
inédita na história do país, apesar
de dependente do dinheiro dos
oligarcas — ao serviço do Kremlin.
Putin apareceu sem outra ide-
ologia que não uma negação dos
anos anteriores, da “terapia de cho-
que”, da desordem e da humilha-
ção internacional. “Ele veio trazer
ordem, prestígio, ambição, fi m da
corrupção”, diz Bernardo Pires de
Lima, autor de Putinlândia (Tinta
da China). “É claro que tudo isto é
substituído por outra roupagem,
outra corrupção, outra desordem”,
acrescenta.
Ao longo dos últimos 18 anos, as
grandes decisões políticas do Kre-
mlin foram tomadas face às opor-
tunidades que foram aparecendo. O
primeiro grande desafi o foi a guerra
na Tchetchénia, o palco perfeito pa-
ra Putin, vindo do mundo dos servi-
ços de segurança, mostrar a sua pos-
tura dura e agressiva — projectando
logo de início a sua popularidade
para índices que Ieltsin poderia ape-
nas sonhar.
Seguiu-se o ataque de 11 de Setem-
bro de 2001 contra as Torres Géme-
as, em Nova Iorque, em que Putin
fez questão de ser o primeiro chefe
de Estado a telefonar ao Presiden-
te George W. Bush para assegurar a
unidade na luta contra o terrorismo,
de que a Rússia também era alvo.
Ao contrário da época de Ieltsin, a
Rússia não se subjugava ao Ociden-
te, mas antes era um parceiro com
os mesmos objectivos.
Colisão com o OcidenteEm contraciclo com a crise fi nancei-
ra que deixou a Europa e os EUA em
recessão, a Rússia atravessava um
período de prosperidade impulsio-
nada pela subida recorde do preço
do petróleo. Menos de duas déca-
das após a queda da União Soviética,
eram criados multimilionários a um
ritmo quase diário. A única condi-
ção: enriqueçam, mas mantenham-
se fora da política. Ao mesmo tem-
po, o Kremlin consolidava-se como
uma máquina de distribuição de
recursos em circuito fechado e to-
das as suas políticas eram guiadas
por esse objectivo. “O dinheiro era
a única ideologia que o Kremlin pro-
fessava”, escreve Ostrovski.
Por esta altura, Putin atingiu o li-
mite constitucional de dois manda-
tos e cedeu a presidência a Dmitri
Medvedev, passando a ocupar o car-
go de primeiro-ministro. As relações
com o Ocidente mantinham-se cor-
teses, mas de Moscovo vinham avi-
sos. Em 2008, a adesão da Ucrânia e
da Geórgia à NATO estava iminente,
para ser travada no último minuto
durante a cimeira de Bucareste,
com o objectivo claro de evitar um
confl ito com a Rússia. Enquanto de-
corre esse debate, as tropas russas
intervêm militarmente na Geórgia,
surpreendendo um mundo que já
não esperava ver tanques a rolar em
solo europeu.
Anos depois, a deposição do Pre-
sidente ucraniano Viktor Ianukovi-
tch após meses de protestos contra a
aproximação da sua Administração
a Moscovo, abre uma janela de opor-
tunidade, mas também de muitos
riscos: a península da Crimeia é ocu-
pada por forças militares pró-russas
que organizam um referendo não re-
conhecido internacionalmente para
consagrar a anexação à Rússia.
Para Bruxelas e Washington es-
tava violado o statu quo que gover-
nou as relações internacionais na
Europa do pós-Guerra Fria e com
a Rússia nada poderia voltar a ser
como dantes; em Moscovo, cele-
brava-se efusivamente o regresso
da cidade heróica de Sebastopol à
mãe Rússia, o orgulho ferido estava
fi nalmente sarado.
O “momento Crimeia” deu a Pu-
tin um crédito de popularidade
quase sem tecto — nunca mais os
seus índices baixaram dos 80%,
sobrevivendo ao isolamento inter-
nacional, às sanções e à quebra da
economia por causa da descida do
preço do petróleo.
Maioria pós-CrimeiaAs eleições de hoje representam
o momento para Putin legitimar
toda esta conduta, especialmen-
te a anexação da Crimeia — não
é à toa que a data escolhida para
as eleições coincide com o quarto
aniversário da passagem do territó-
rio para a Rússia. “Estas não serão
eleições no verdadeiro sentido da
palavra”, escreve o especialista do
Centro Carnegie de Moscovo, An-
drei Kolesnikov, “mas sim uma es-
pécie de celebração da identidade
da maioria pós-Crimeia”.
Hoje, os dois fantasmas que
assombravam os russos órfãos da
União Soviética — a instabilidade e a
humilhação — parecem ter sido do-
mados por Putin. O que se segue?
A Constituição obriga a que Putin
deixe a presidência no fi nal deste
mandato, e o próprio já afastou a
hipótese de a alterar. Assim, a pers-
pectiva da saída de Putin passa a ser
o principal facto político que deve-
rá dominar a Rússia nos próximos
anos. “Após as eleições, o compor-
tamento dos principais actores po-
líticos e económicos russos irá ser
defi nido não pela presença de Putin
no sistema, mas pela expectativa da
sua partida”, escrevem os analistas
Ivan Krastev e Gleb Pavlovski, num
artigo publicado pelo European
Council on Foreign Relations.
Porém, a saída de cena de Putin
não signifi ca necessariamente uma
mudança de regime. Pires de Lima
diz que “as condições económicas
e a coesão do núcleo duro” vão de-
terminar a possibilidade de que a
sucessão seja feita em circuito fe-
chado. “Com um prenúncio de su-
cessão daqui a seis anos, poderão
surgir muitas clivagens. É aí que
pode estar uma oportunidade pa-
ra algumas pessoas com coragem
capitalizarem com o descontenta-
mento gerado pela economia e falta
de liberdades”, afi rma. Apenas o
tempo dirá se o putinismo irá so-
breviver a Putin.
Após as eleições, o comportamento dos principais actores políticos e económicos russos irá ser definido não pela presença de Putin no sistema, mas pela expectativa da sua partidaIvan Krastev e Gleb PavlovskiEuropean Council on Foreign Relations [email protected]
ELEIÇÕES NA RÚSSIA
MAXIM SHEMETOV/REUTERS
As presidenciais russas de
hoje despertam escassa
curiosidade. Mas abrem
uma discussão fascinante.
A sucessão de Vladimir
Putin, em 2024, é um tabu,
mas também causa de nervosismo
na chamada elite. “O problema do
Kremlin não é a vitória eleitoral,
mas o que acontecerá a seguir — o
desenvolvimento da agenda pós-
eleitoral”, resume a analista russa
Lilia Shevtsova.
“À medida que 2024 se
aproxima, a questão de quem
ou daquilo que substituirá Putin
vai tornar-se cada vez mais
relevante. Há o sentimento de que
a Rússia está a entrar na era pós-
Putin”, afi rma Sir Andrew Wood,
antigo embaixador britânico em
Moscovo. A razão é simples: a
sucessão põe a nu as fraquezas do
“Estado forte” de Vladimir Putin.
Não está em causa uma
mudança de regime. Mas o
regime vai começar “a mudar”,
escrevem os analistas Ivan Krastev
e Gleb Pavlosvky, num estudo
do European Council on Foreign
Relations. “A eleição presidencial
marcará a chegada da Rússia pós-
Putin, independentemente de
Putin permanecer na chefi a do
Estado nos próximos seis ou 16
anos. Porque, a seguir ao voto,
o comportamento dos grandes
actores políticos e económicos não
se defi nirão pela presença de Putin
no poder mas pela expectativa da
sua partida.” Um prolongamento
do mandato presidencial para
lá de 2024 apenas agravaria o
problema. A verdadeira questão
não é tanto quem poderia ser
o sucessor e o modo como
ascenderia ao “trono”, mas
aquilo que o novo líder poderá
fazer uma vez lá chegado, num
sistema concebido à medida da
personalidade de Putin.
Saberá a Rússia gerir o momento
crítico da substituição do líder? A
Rússia não tem instituições fortes.
O regime não tem mecanismos
institucionais para fazer a
passagem do poder.
O “árbitro-chefe”Putin dirige a Rússia há 18 anos,
dos quais 14 como Presidente,
com o mesmo “círculo de
amigos”, onde prevalecem
oligarcas e os siloviki, homens dos
aparelhos de força — militares,
forças de segurança e serviços
secretos.
Foi o fundador do Estado russo
pós-soviético. O “putinismo”
assenta na concepção do “Estado
forte”, ultracentralizado, baseado
na “vertical do poder” e em
que o arbítrio é designado por
“ditadura da lei”. O FSB, sucessor
do KGB, em que Putin começou
a sua carreira, está instalado
no “coração do sistema”. Trata-
se de um regime largamente
desinstitucionalizado, de uma
estrutura de poder opaca que
roda em torno da única instituição
funcional, a Presidência, e dotado
de uma administração inefi caz
e corrupta. Putin não funciona
como ditador: é sobretudo o
“árbitro-chefe” dos interesses
e das facções da elite, que
frequentemente se digladiam.
Os oligarcas têm a sua riqueza
protegida desde que apoiem o
Presidente e não tenham ambições
políticas. Os recalcitrantes acabam
na prisão.
A grande interrogação é: sem
Vladimir Putin, como funcionará
o “putinismo”? O Presidente
levanta um sério problema à
sobrevivência política do “círculo
interno”, que não existe sem ele.
O primeiro objectivo da elite é
conservar o seu próprio poder
e este depende da presença de
Vladimir Putin.
“A diferença em relação a
antes é que Putin se tornou um
obstáculo ao processo, não um
facilitador, porque ninguém pode
assumir o papel [de sucessor] sem
minar a sua autoridade”, escreve
Pavlovsky no Moscow Times. “A via
de acesso à hierarquia do poder
na Rússia signifi ca que a procura
do próximo Presidente é uma
anedota. Todos percebem que,
enquanto Putin tiver o controlo
dos códigos nucleares, não
abdicará do seu papel de árbitro-
chefe.”
A elite tem a noção de que o
Presidente vai estar concentrado
no desenho da “Rússia pós-
Putin”, frisam Krastev e Pavlovsky.
Começou a promover uma nova
geração de jovens tecnocratas
a posições de poder. “Tem a
convicção de que a Rússia não
necessita de um simples sucessor
— como ele o foi de Boris Ieltsin —
mas de uma “geração sucessora”.
Haveria uma transferência de
poder da actual elite para a
“geração Putin”. Como?
Putin parece hoje muito mais
ocupado com a política externa do
que com a doméstica. “A Rússia
moderna não é um império mas o
seu regime político tem aspirações
imperiais”, que se traduzem
num virulento nacionalismo e
numa política de confronto com
o Ocidente, resume o analista
Andrei Kolesnikov. O desígnio
de transformar a Rússia numa
grande potência é um dos grandes
esteios do poder pessoal e da
popularidade do Presidente. Nada
indica que nos próximos seis anos,
e depois deles, haja qualquer
infl exão nesta política.
Krastev e Pavlovsky exprimem
uma derradeira dúvida: “Mas
sem [Putin] a Rússia será
provavelmente um actor
internacional mais fraco: foi Putin,
mais do que o Estado russo, que
reconquistou o estatuto de grande
potência.”
Começa amanhã a era pós-Putin
Ponto de VistaJorge Almeida Fernandes
A elite do poder teme o fim do último mandato do Presidente. Sem Vladimir Putin, como funcionará o “putinismo”? É um regime sem mecanismos para organizar a sucessão
ELEIÇÕES NA RÚSSIATHIERRY ROGE/REUTERS
Será difícil quebrar o actual
ciclo de más relações do
Ocidente com a Rússia,
diz Maria Raquel Freire,
investigadora do Centro
de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra, que se
centra nos estudos para a paz, a
Rússia e no espaço pós-soviético.
É autora do livro A Rússia de Putin
— Vectores Estruturantes de Política
Externa (2012, Edições Almedina).
Mas há alguns bons exemplos de
como se poderia fazer o degelo.
Por que é que a Rússia nunca foi capaz de se “desdiabolizar” aos olhos do Ocidente?A lógica do inimigo mútuo tem que
ver com a forma como as relações
entre os dois blocos evoluíram nas
décadas após o fi m da Guerra Fria
e, nomeadamente, com o processo
de construção da segurança
europeia. A preservação da NATO
foi mal acolhida por Moscovo e
esteve na origem da manutenção
do clima de desconfi ança mútua.
Desde essa altura que no discurso
político russo tem estado muito
presente a ideia de que os aliados
excluíram o país do processo
securitário europeu. Essa lógica de
exclusão levou a Rússia a criticar e
A modernização da NATO foi mal feita e manteve a desconfi ança
Maria Raquel Freire explica que Moscovo se sentiu excluída do processo securitário europeu e procurou responder à letra. Não há uma saída fácil desta situação tensa
EntrevistaAntónio Saraiva Lima
demonizar o Ocidente, que por sua
vez passou a encarar um discurso
russo como uma imagem em
espelho.
Até que ponto é que, entre o fi nal da Guerra Fria e meados dos anos 2000, o Ocidente não confundiu um rival com um inimigo e o tratou como tal?A relação foi sempre difícil. Essa
confusão foi-se fazendo desde o
fi m da Guerra Fria, mas deixou
de se fazer com a anexação da
Crimeia (2014). Ainda assim,
houve vários momentos em que
as relações avançaram. Basta-
nos relembrar, por exemplo, a
parceria entre a Rússia e a UE para
a modernização, em 2010. Foi um
momento importante, porque
surgiu após um período de enorme
tensão, gerado pelos planos da
Administração Bush em instalar
um escudo de defesa antimíssil
na Europa, pela discussão sobre o
alargamento da NATO à Ucrânia e
à Geórgia e pela própria guerra na
Geórgia (2008).
A percepção ocidental da Rússia como um inimigo agravou-se com as intervenções militares na Ucrânia e na Síria?Sim, claramente. A anexação da
Crimeia marca de forma muito
negativa as relações entre Ocidente
e Rússia. A partir do momento
em que se dá uma ingerência nos
assuntos internos de um Estado,
e se leva a cabo uma violação
de fronteiras, assiste-se a uma
mudança na leitura da segurança
internacional e da segurança do
ponto de vista europeu. Desde
então a confi ança é coisa que
não existe. As relações estão a
atravessar o pior momento de
sempre. Sempre me pareceu
exagerado quando em 2008 e 2012
se falava no regresso da Guerra
Fria. Mas admito que estamos
numa situação muito próxima
daquele estado de grande tensão
entre o Ocidente e a Rússia. Neste
momento não há altos e baixos,
só baixos. Não vislumbro grandes
oportunidades de melhoria e é
difícil de ver como se pode quebrar
o actual ciclo. Quando lemos que
Putin está a testar novos mísseis
que não são interceptáveis e que
Donald Trump está a desenvolver
armas nucleares mais pequenas,
é porque estamos perante uma
escalada militarista. E embora
nenhuma das partes tenha
interesse numa guerra directa,
podemos afi rmar que ela já está a
ser travada na Síria.
Os líderes políticos, comunicação social e opinião pública ocidentais também contribuem para a diabolização da Rússia?Contribuem bastante. Notícias
relacionadas, por exemplo, com
a capacidade de ingerência russa
nos recentes processos eleitorais
ocidentais contribuem para isso,
uma vez que reforçam a leitura
que fazemos do poder da Rússia
no sistema internacional. Quando
dizemos que a Rússia sobrevoa
os espaços aéreos de outros
países, que tem submarinos aqui
e ali, que interfere nas eleições
norte-americanas, francesas ou
no referendo catalão, estamos a
atribuir-lhe um estatuto.
Apesar de ser um pouco crítica da
forma como se publicita a política
russa na Europa, penso que, ainda
assim, é importante ter a noção de
que a Rússia tem sido, de facto, um
actor muito activo na infl uência
das redes sociais e na difusão de
propaganda e de desinformação.
Tanto é assim que a UE criou
o StratCom — um gabinete de
contra-informação que trabalha
a tempo inteiro no combate à
desinformação e às notícias falsas.
É possível dissociar a liderança de Putin desta realidade?Não. É importante enquadrar esta
narrativa com o discurso patriótico
russo e com a promoção da Rússia
como uma grande potência,
seguida pelo seu Presidente. É
interessante verifi car que nestas
eleições Putin recandidata-
se como independente e não
como candidato do partido
Rússia Unida. Claramente quer
distanciar-se de algumas políticas
internas menos bem-sucedidas
e quer ser reconhecido como
o líder patriótico e a fi gura
histórica que trouxe a Rússia
de volta à cena internacional.
Olhando para a anexação da
Crimeia e para a intervenção
na Síria, estamos perante uma
série de acções de Putin que
apontam ao entendimento e
ao reconhecimento da Rússia
enquanto grande potência. E que
acabam por contribuir também
para o seu isolamento.
A lógica do inimigo mútuo só se poderá alterar sem Putin?Eventualmente. Se analisarmos a
situação interna e pensarmos no
quanto a Rússia tem a ganhar com
uma normalização com o Ocidente
e, particularmente, com a União
Europeia, há muitas vantagens.
Ultrapassando a questão das
sanções, retomando as políticas
de modernização e a colaboração
no investimento estratégico ou
tecnológico, é possível criar
sinergias. Alguns exemplos podem
dar esperança, como o acordo de
cooperação que a UE assinou com
a Arménia (2017) sem a obrigar a
ter de optar por um ou por outro
gigante. Um modelo diferente do
que foi proposto à Ucrânia.
Estamos nas margens do
rio Moscovo e quem olhar
para a estátua de Pedro,
o Grande instalada no
vértice de uma das suas
ilhotas pode perceber mais
facilmente a natureza imperial da
ancestral “Mãe Rússia”. A estátua,
inaugurada em 1997 para celebrar
os três séculos da Marinha russa,
é descomunal, erguendo-se 97
metros acima do nível das águas,
com um pedestal de pequenos
galeões a sustentarem o galeão
principal no qual emerge a
gigantesca fi gura do imperador.
Um século depois da revolução
que depôs os Romanov, que
dominaram a Rússia ao longo de
mais de 300 anos, Pedro, o Grande
continua a merecer uma devoção
especial. Porque foi a sua ousadia e
abertura às ideias modernizadoras
da Europa que transformaram
um gigante distante e adormecido
numa potência europeia de
primeira grandeza.
A Rússia provou então as
delícias do poder e jamais deixou
de subordinar a sua natureza, a
sua essência, a essa experiência
e condição. O “urso”, animal que
a caricatura ocidental associa a
esse poder, derrotaria depois o
grande exército de Napoleão e,
já no século XX foi o principal
responsável pela destruição da
força nazi que ameaçava devorar a
Europa — e é por isso que o regime
de Putin e a Rússia contemporânea
concedem a Estaline um
tratamento de excepção na aversão
aos soviéticos. Hoje, a Rússia é um
actor de segundo plano em termos
económicos — o seu produto é
metade do da França ou do da
Califórnia e muito baseado nas
matérias-primas. A sua demografi a,
que à custa dos generosos apoios
do Estado voltou a recuperar, está
longe de se comparar com os pesos-
pesados do planeta — os Estados
Unidos, a União Europeia ou a
China. Mas, ainda assim, a Rússia
voltou a ser uma potência temida.
É importante notar que
essa recuperação de um papel
de primeiro plano na cena
internacional nasce dos escombros
do fi m da União Soviética. As
experiências de liberalização
económica conformes ao
receituário ocidental foram uma
tragédia para os russos. A economia
colapsou, a pobreza alastrou, o
Estado foi tomado de assalto por
oligarcas e pela corrupção, e essa
experiência foi vivida pelos russos
como mais uma prova de que o
Ocidente jamais perderá uma
oportunidade para os vexar. Putin
respondeu a esse sentimento de
forma exemplar. Um império que
vai da vizinhança da velha Europa
de herança austro-húngara aos
Urais, à Sibéria e ao mar do Japão
tinha de recuperar a sua maneira
de ser, autocrática e sustentada na
tese do “nós contra o mundo”. A
humilhação dos tempos de Ieltsin
tinha de ser vencida pelo regresso
ao glorioso passado imperial.
A um ocidental custa a perceber
como é que os russos cultos,
cosmopolitas, que conhecem
os sistemas constitucionais e de
governo da Alemanha ou do Reino
Unido, que bebem champanhe
e ouvem o rock produzido em
Londres, se deixam seduzir pela
mensagem de Putin. A verdade é
que, na Rússia actual, é frequente a
opinião, mesmo entre intelectuais,
de que a Rússia é uma potência
eternamente acossada pelo
Ocidente. O discurso autocrático e
militarista de Putin é por eles visto
como a única forma de a Rússia
manter a sua dignidade nacional
e o estatuto internacional a que
tem direito. As forças armadas são
objecto de uma devoção para nós
doentia, mas para os russos são um
instrumento de dissuasão de que
não podem prescindir. A Rússia
vive uma espécie de complexo de
perseguição.
Opinião Manuel Carvalho
O “urso” quer continuar a ser “urso”O Ocidente, que se retirou de
armas e bagagens deixando a
Rússia lamber as feridas da sua
fracassada liberalização, ajudou
na germinação desta mentalidade.
Depois, querer levar a NATO
até às fronteiras da Rússia, na
Geórgia ou na Ucrânia, foi uma
forma de legitimar o discurso
de Putin sobre a perseguição
externa. O limes funciona como
uma zona de protecção desde os
tempos da Roma imperial e nada
parece ter mudado desde então.
Deu no que deu: a Rússia jamais
tolerará o Ocidente à porta. A
Geórgia foi devastada e a Crimeia
conquistada. A intervenção na
Síria mostra o renascimento
do poder da Rússia em dar
cartas no exterior e os ataques
informáticos — ou as operações
de envenenamento de “espiões
traidores” — são, para os russos,
pura e legítima defesa.
Os russos da era de Putin
condescendem com tudo — até
com os caminhos perigosos de
um regime iliberal, no limiar da
ditadura —, porque é assim que se
sentem defendidos e protegidos da
permanente ameaça da Europa.
Os chineses ganham espaço na
fronteira do Amur e tomaram conta
das riquezas da Mongólia, mas não
é aí que se joga o destino na Mãe
Rússia. É na relação de forças com
alemães, franceses ou americanos.
Se nos tempos das velhas alianças
europeias a Rússia ora estava com
as monarquias conservadoras,
ora com a França progressista
para criar os grandes blocos que
devastaram o continente em
guerras sucessivas, hoje sabe que
(pelo menos por agora) tem à sua
frente uma Europa unida para lhe
fazer frente.
Putin é para os russos o homem
providencial para se impor nesta
conjuntura. A nós, ocidentais, custa
a entender o preço que se paga
por essa quimera imperial. A eles,
russos, esta é a melhor forma de se
sentirem seguros e de viverem sem
medo da rapacidade do Ocidente.
ALEXANDER NATRUSKIN/REUTERS
É importante ter a noção de que a Rússia tem sido um actor muito activo na influência das redes sociais e na difusão de propagandaMaria Raquel FreireInvestigadora universitária
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Família Há cada vez mais homens a cuidar sozinhos dos fi lhosOs agregados monoparentais continuam a crescer muito e com eles o número de homens que tomam conta dos fi lhos: são já 53 mil que ajudam a mudar a ideia tradicional de ser pai Sociedade, 10/11
Reabilitação do espaço da Universidade demorou cinco anos e custou dois milhões de euros p12/13
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Eleições na Rússia Putin arranca para mais seis anos no poder em plena guerra fria com o Ocidente Opinião de Jorge Almeida Fernandes e Manuel Carvalho
Destaque, 2 a 7
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Edição Lisboa • Ano XXIX • n.º 10.193 • 1,70€ • Domingo, 18 de Março de 2018 • Director: David Dinis Adjuntos: Diogo Queiroz de Andrade, Tiago Luz Pedro, Vítor Costa Directora de Arte: Sónia Matos
Dona do barco que vai fazer furo em Aljezur para a Eni/Galp tem uma subsidiária na zona franca da Madeira, que tem benefícios fi scais desde 2010 Economia, 14/15 e Editorial
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ISNN-0872-1548
Ex-líder do PSD regressa com críticas no dia em que Barreiras Duarte deve sair da secretaria-geral p8/9
Luís Filipe Menezes diz que Rio quer ser “vice” de Costa
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