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Reflexões sobre Homeopatia,
História e Epistemologia
Jorge Eduardo de Oliveira Storace
Dissertação apresentada em cumprimento parcial às exigências do Mestrado
Profissionalizante em Homeopatia da Faculdade de Ciências da Saúde /
Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos, para obtenção do grau de Mestre
Orientadora: Profa. Dra. Célia Maria Cabral Piva Senna
FACIS/IBEHE
São Paulo, 2001
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Banca Examinadora:
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
___________________________________________
Prof.(a) Dr.(a)
3
Este trabalho é dedicado à memória de minha avó Adalgisa e, em especial, meu
avô Lauro Jorge de Oliveira, homeopatista idealista, que manteve acesa e soube
transmitir a chama de fecundas idéias.
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... todos os gêneros de pensamento, inclusive o matemático, são abstrações que
não abarcam, e nem poderiam fazê-lo, a realidade inteira. Diferentes gêneros de
pensamento e abstração podem, juntos, dar-nos um melhor reflexo da realidade.
Cada um por si tem seus próprios limites, mas juntos podem levar o nosso
entendimento da realidade mais longe do que cada um isoladamente... Temos de
explorar de modo criativo uma nova noção de ciência, apropriada ao tempo
presente... O nosso objetivo é lançar um pouco de luz na natureza da criatividade
e sobre como podemos alimentá-la, não só na ciência, como na sociedade e na
vida de cada indivíduo.
David Bohm
5
Agradeço a meus pais Maria Luísa e Giorgio, e meus tios Lygia e Verany, pelo
suporte e carinho; a minha filha Fernanda pela paciência e atenção; aos amigos
José Bachur, José Romão, Jorge Gribov, Luís Salama e Marina Pedroso pelo
apoio e comentários; a Carlos Brunini e professores, especialmente Ana Maria
Martins e Marcelo Pustiglione, pelo incentivo e motivação; aos colegas de curso
pela alegria e companhia; e a Moacir Lacerda por seu engenho e arte.
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RESUMO
A presente dissertação investiga os fundamentos das críticas à cientificidade
da Homeopatia, utilizando para isso uma análise histórica, onde são revistas as
origens médicas, científicas e filosóficas dos conceitos homeopáticos; e uma
análise epistemológica, onde a Homeopatia é revista à luz da evolução da
Filosofia da Ciência, através de algumas de suas vertentes mais relevantes e
respectivos filósofos representativos (indutivismo e Bacon, convencionalismo e
Poincaré, positivismo e Russell, falsificacionismo e Popper, programas de
pesquisa científica e Lakatos, paradigmas e Kuhn, relativismo e Feyerabend,
complexidade e Morin).
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ABSTRACT
This study aims to investigate Homeopathy’s scientific matter, through a
Historical analysis, where the medical, scientific and philosofical origins of
homeopathic concepts are reviewed; and through an epistemological analysis,
where Homeopathy is reviewed compared to Philosophy of Science’s evolution by
means of it’s most considerable tendencies and respective philosophers
(inductivism and Bacon, conventionalism and Poincaré, positivism and Russell,
falsifiability and Popper, scientific research programmes and Lakatos, paradigm
and Kuhn, relativism and Feyerabend, complexity and Morin).
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LISTA DE FIGURAS
1. Organograma Histórico-Epistemológico..........................................................7 a 9
2. Caravaggio, Tomé, o Incrédulo, aprox. 1600 [GOMBRICH, 1985]......................22
3. Turner, Começo da Cor, 1819 [BOCKEMÜHL, 1993].........................................29
4. Mondrian, Composição com Vermelho, Amarelo, Azul e Preto, 1921
[DEICHER,1995]..................................................................................................35
5. Escher, Belveder, 1958 [ERNST, 1991]..............................................................39
6. Kandinsky, Riscas Pretas I, 1913 [DÜCHTING, 1992].. .....................................46
7. Magritte, Decalcomania, 1966 [PAQUET, 1995].................................................51
8. Lichtenstein, Paisagem com Figuras e Arco-íris, 1980
[HENDRICKSON, 1994]......................................................................................58
9. Miró, A Poetisa, 1940 [ERBEN, 1993].................................................................65
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SUMÁRIO
1. Introdução..............................................................................................................1
2. Homeopatia e História...........................................................................................5
2.1. Organograma Histórico-Epistemológico..........................................................7
2.2. Inserção Histórica da Homeopatia.................................................................10
3. Homeopatia e Epistemologia................................................................................19
3.1 Indutivismo – Bacon........................................................................................22
3.2 Convencionalismo – Poincaré.........................................................................29
3.3 Positivismo – Russell......................................................................................35
3.4 Falsificacionismo – Popper.............................................................................39
3.5 Programas de Pesquisa – Lakatos.................................................................46
3.6 Paradigmas – Kuhn........................................................................................51
3.7 Relativismo – Feyerabend..............................................................................58
3.8 Complexidade – Morin....................................................................................65
4. Conclusões...........................................................................................................71
5. Referências Bibliográficas....................................................................................75
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1. INTRODUÇÃO
A Homeopatia, originalmente desenvolvida no século XVIII na Alemanha por Samuel
Hahnemann (1755-1843) é hoje uma prática médica relativamente difundida no mundo,
não sem muitas polêmicas, disputas e críticas que a acompanham desde seu início. Ela
foi e é exercida por médicos, em alguns lugares por práticos, e utilizada pela população
de distintos países com diferentes culturas, como Inglaterra, EUA, França, Alemanha,
Índia, México, Argentina e Brasil, restringindo-se aos exemplos mais destacados.
Mais especificamente no Brasil1, sua história, desde a introdução no país no século
XIX através de Benoit Mure (1809-1958) até a atualidade, pode ser dividida em 6 fases:
implantação, expansão, resistência, áurea, decadência e retomada social [LUZ, 1996]. Ao
longo de todas essas fases, assim como desde sua origem européia, a Homeopatia
buscou sua legitimidade como saber, dos aspectos filosóficos até a busca por uma
institucionalização acadêmica. No período mais recente, desde a década de 1970 até a
atualidade, a Homeopatia ressurge no contexto das então chamadas “Medicinas
alternativas”, no curso de uma revolução contracultural política e social que diagnosticou
uma crise na Medicina “oficial”, manifestada pelos seus altos custos econômicos, grande
iatrogenia e baixa eficácia no atendimento à população sócio-economicamente menos
favorecida, representando o oposto destas características [LUZ, 1996].
1 Atualmente são 15000 médicos homeopatas (6,5% do total e médicos no país) contra 300 nadécada de 80, 1600 farmácias homeopáticas contra 10 na década de 70, 9 milhões de usuáriosestimados, dados da Associação Médica Homeopática Brasileira, 2001 [ORLANDI, 2001].
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Ainda assim, seu estatuto como saber é seguidamente questionado por parte da
Medicina e Ciência estabelecidas. O fato de atualizar-se sua descrição como uma
Medicina “não-convencional” ou “complementar” configura melhor a questão, uma vez que
a Homeopatia não é mais propriamente uma alternativa em um sentido contracultural,
pois além de uma prática oficializada (1980), é também uma especialidade oficial (1990)
[LUZ, 1996]. Torna-se explícito que a oposição se dá agora, como sempre se deu, entre
uma prática convencional e outra não-convencional. Definir-se então a antiga Medicina
“oficial” como convencional é bastante razoável. A Medicina convencional é também
descrita como “científica” ou, mais recentemente, “Medicina baseada em evidências”.
Estas três definições são usualmente tomadas como sinônimos, o que permite que se
reformule suas proposições da seguinte maneira: se a Medicina convencional é científica
porque baseada em evidências (científicas), uma Medicina não-convencional como a
Homeopatia não pode ser. Em outras palavras, a Ciência, tomada como sinônimo da
verdade, é baseada na assim chamada convenção científica, instância definidora do que
é ou não saber qualificado. Alguns exemplos tornam clara a questão: no primeiro deles,
uma análise histórica dialética em conjunto com uma análise epistemológica
bachelardiana levam R. L. Novaes, médico, a concluir pela
... não-cientificidade da proposição homeopática, por uma aparente ineficácia de
sua prática [NOVAES, 1989].
Apesar de conceder que seu estatuto de
... fato concreto e histórico... (torna-a) objeto de análise e conhecimento...
(sendo) sempre possível se considerar que a ausência de uma explicação
científica nem sempre e necessariamente anula de forma absoluta a positividade
de fenômenos decorrentes de uma intervenção [idem].
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Já M. Bunge, filósofo e epistemólogo contemporâneo, é eloqüente na sua definição de
pseudociência:
... é o caso da astrologia, homeopatia e outras pseudociências: é fácil refutá-las
empiricamente, mas não as consideramos científicas porque são incompatíveis
com o conhecimento científico [BUNGE, 1987].
Por último R. Sabatini, outro médico, aqui no papel de formador de opinião através da
mídia, pergunta e responde se
... A Homeopatia é Ciência? Ou é um culto? Uma seita?... a Medicina
homeopática anseia ser Ciência...então, se quer ser Ciência, procure seguir os
paradigmas da Ciência... existem alguns pontos na filosofia homeopática que
contradizem frontalmente o conhecimento científico vigente e até a lógica
[SABATINI, 1997].
Essa posição é bastante eficaz em descaracterizar o saber homeopático como válido,
já que o parâmetro científico é o que norteia quase que exclusivamente todas as questões
sobre a “verdade” no mundo contemporâneo. Tudo o que não é científico pertence
portanto ao mundo da lenda, da crença, da mistificação ou mesmo do charlatanismo, e,
no limite, da mentira e da falsidade.
Pretende-se analisar, no presente trabalho, a consistência dessa posição em relação
à Homeopatia dividindo-se a questão implícita “A Homeopatia é científica?”, que subjaz na
base das críticas citadas, em duas diferentes questões: “O que é a Homeopatia?” e “O
que é Ciência?”.
A primeira das questões propostas levará a uma análise histórica dos fundamentos do
saber homeopático em relação ao pano de fundo científico e filosófico em que surge,
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objeto da seção 2. A segunda questão levará à uma análise da evolução do conceito de
Ciência sob o ponto de vista epistemológico e suas conseqüências para a Homeopatia,
objeto da seção 3. A conclusão se dará no sentido de procurar avançar a suposta questão
da oposição entre Homeopatia e Ciência descrita anteriormente.
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2. HOMEOPATIA E HISTÓRIA
2.1 ORGANOGRAMA HISTÓRICO-EPISTEMOLÓGICO
O organograma apresentado a seguir visa facilitar uma apreensão geral e sintética:
- da evolução das principais correntes filosóficas ocidentais desde a antiguidade grega
até nossos dias2;
- da evolução da Ciência e da Medicina através da história, especialmente após o
Renascimento3;
- das possíveis, prováveis ou já constatadas relações históricas entre Ciência, filosofia e
Medicina4;
- da inserção da Homeopatia no contexto acima exposto.
Para isso, foi escolhido um determinado recorte baseado na:
- opção pela descrição dos indivíduos historicamente notáveis associada a uma sucinta
descrição da principal, ou principais, contribuições dos mesmos nos domínios elegidos
(Ciência e/ou Medicina e/ou filosofia);
- organização cronológica baseada na data de nascimento dos indivíduos escolhidos.
As cores tem por função destacar determinada característica considerada
relevante, a saber:
2 Baseado principalmente em [JACKSON, s/d; GOETZ, 1950; BULLOCK&STALLYBRASS, 1977;BUNGE, 1987; PESSANHA,1996; DURANT,1996; COMPTON, 1996].3 Seguindo a definição consagrada de Renascimento [in BURCKHARDT, 1991].4 Idem nota 1, além de [COULTER, 1981; GEHSPBM, 1986; NOVAES, 1989; BYNUM, 1995; LUZ,1996; FOUCAULT, 1998; ROSENBAUM, 2000; STORACE, 2001].
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- filósofos e personagens históricas da Grécia Antiga;
- filósofos e personagens históricas da Idade Média;
- cientistas (predominantemente), Idade Moderna e Contemporânea;
- médicos (predominantemente), Idade Moderna e Contemporânea;
- filósofos (predominantemente) empiricistas (“filosofia anglo-saxônica” 5);
- filósofos (predominantemente) racionalistas/idealistas (“filosofia continental”);
- ou ou outras, combinações de características anteriormente descritas
consideradas relevantes.
As linhas que ligam Hahnemann a outros filósofos, cientistas e médicos visam indicar
quais as principais e reconhecidas influências por ele sofridas na elaboração da
Homeopatia6.
5 É comum encontrar-se na literatura filosófica a descrição de uma epistemologia ligada aoempirismo descrita como “escola inglesa”, devido à preponderância de filósofos dessanacionalidade (Locke, Hume, Mill) mais ligados à essa linha considerada mais próxima de como seadmite o trabalho científico, em oposição aos filósofos do continente (europeu) como Descartes,Leibnitz ou Kant, mais próximos de um racionalismo especulativo [FERREIRA/XIMENEZ, 1998].
6 Baseado especialmente em [COULTER, 1981; GEHSPBM, 1986; NOVAES, 1989; LUZ, 1996;CHIBENI, 1998; ROSENBAUM, 2000]
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Paracelso 1493-1541QuimiatriaLei das assinaturas
Ptolomeu séc. II d.C.Geocentrismo
T. Aquino 1225-1274Filosofia escolástica
Galeno séc. I d.C.Medicina humoral
Aristóteles 384-322 a.C.Silogismo, nominalismo,finalismo (enteléquia)
Sócrates 468-399 a.C.Monismo racionalistaMaiêutica (diálogo, ironia,reconhecimento, indução,definição)
Platão 427-347 a.C.Doutrina da Idéias, Utopia,realismo platônico
Hipócrates 460-370 a.C.Equilíbrio ou desequilíbriodos quatro humores geracrase ou discrase, curapelos semelhantes oucontrários
Leucipo V a.C. aprox.Demócrito 470-370 ac aprox.vazio (natureza contínua) eatomismo físico (átomosindivisíveis, móveis)physis independente damedida humana
Empédocles nasc. 490 a.C.aprox.aletheia proporcional à medidahumanaisonomia dos 4 elementos(fogo, água, terra, ar) regidospor fluídos-forças(príncípios, Philia e Neikos)
Heráclito viveu por volta de504 a.C.Logos-Fogo, fluxo universaltensão harmônica dos opostos
Monismos corporalistasTales, VII-VI a.C. aprox.- physis (água) – hilozoísmoAnaxímandro, VI ac aprox.Anaxímenes- arché – ápeiron – pneumon(ar)Pitágoras, VI a.C. aprox.- mímesis numérica, naturezadescontínua, discreta
Eleatismo (discussão lógica eontológica)Parmênides, VI-V a.C. aprox.aletheia divina única e imutávelZenão, V a.C. aprox.Aporias (paradoxos), crítica àmultiplicidade monista
Idade Antiga e Média
S. Agostinho 354-430Neoplatonismo cristão
Plotino 205-270Neoplatonismo
Zenon 335-265 a.C.Estoicismo (apatheia)
Epicuro 341-270 a.C.Epicurismo (ataraxia)
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Bacon 1561-1626Indutivismo ingênuo
Descartes 1596-1650Racionalismo dicotômico
Galileu 1564-1642Experimentalismo,observação natural
Spinoza 1632-1677Monismo imanente
Leibnitz 1646-1716 Monadismo
Stahl 1660-1734Animismo, teoriaflogística
Kant 1724-1804Transcendentalismo
Newton 1642-1727Leis da gravitaçãoSíntese da mecânica
Lineu 1707-1778Classificação botânica
Cullen 1710-1790Teoria das “Nevroses”
Priestley 1733-1804Oxigênio como flogisto
Lavoisier 1743-1794Oxigênio, Químicamoderna
Hahnemann1755-1843 Homeopatia
Dalton 1766-1844Atomismo moderno
Hegel 1770-1831Idealismo dialético
Schelling 1775-1854Filosofia Natural
Locke 1632-1704Empirismo
Hume 1711-1776Filosofia analítica
Faraday 1791-1867Campo eletromagnético
Bichat 1771-1802Histopatologia
Broussais 1772-1838Fisiologia inflamatória
Berkeley 1685-1753Idealismo “existencialista”
Comte 1798-1857Positivismo
Idade Moderna eContemporânea
Copérnico 1473-1543Heliocentrismo
Kepler 1571-1630Leis dos movimentosplanetários
Vesálio 1514-1564Anatomia
Harvey 1578-1657Circulação sanguínea
Sydenham 1614-1689“Medicina de espécies”
Morgagni 1682-1771Anatomia patológica
Brown 1735-1788Excitabilidade
Galvani 1737-1798Eletricidade animal
Carnot 1796-1832Termodinâmica
Magendie 1783-1855Fisiologia mecanicista
Ampére 1775-1836Eletricidade
Lamarck 1744-1829Evolução porcaracteres adquiridos
Barthez 1734-1806Vitalismo
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C. Bernard 1813-1878Medicina experimental
Pasteur 1822-1895Microbiologia
J. S. Mill 1806-1903Fenomenalismo
Poincaré 1854-1912Convencionalismo
Russell 1872-1970Positivismo atômico
Bergson 1859-1941 “Elán” vital
Maxwell 1831-1879Eletromagnetismo
Popper 1902-1994Falsificacionismo(C. Viena 1927-1938-Positivismo lógico)
Lakatos 1922-1974Programas de pesquisa
Kuhn 1922-1996Paradigmas
Feyerabend 1924-1994Relativismo
Prigogine 1917-Termodinâmicadissipativa
Morin 1921-Complexidade
Bunge 1919-Racionalismo sistêmico
Planck 1858-1947Teoria quântica
Einstein 1880-1955Relatividade
Darwin 1809-1882Evolucionismo
Crick 1916- ]Watson 1928- ] DNA
Maturana 1928-Varela 1949-Autopoiese
Mendel 1822-1884Genética
Virchow 1821-1902Patologia celular
Bohr 1885-1962Princípio dacomplementariedade
Boltzmann 1844-1906Mecânica estatística
Bertalanffy 1901-1972Teoria geral dossistemas
Heisenberg 1901-1976Princípio da incerteza
Bohm 1917-1992Holonomia
Lorenz 1917-Teoria do Caos
Freud 1856-1939Psicanálise
Shannon 1916-2001Teoria da informação
Hubble 1889-1953Expansão universal
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2.2 INSERÇÃO HISTÓRICA DA HOMEOPATIA
A escola do empirismo histórico britânico costuma entender a história como:
...uma Ciência, e a atividade do historiador como o de uma coleta de fatos
objetiva do que efetivamente aconteceu.
Já uma linha muitas vezes rotulada de relativista entende a história mais como uma
arte do que uma Ciência; então...
...os fatos de que realmente precisamos são somente aqueles que caracterizam
uma idéia ou marcam claramente uma época.
Afirma ainda que o estudo histórico tem um caráter distinto do estudo filosófico, uma
vez que
‘A história coordena, sendo, portanto, a-filosófica, ao passo que a filosofia
subordina, sendo, pois, a-histórica’. Em outras palavras, a história é
assistemática; os sistemas, a-históricos7.
Esta sub-seção será, então, elaborada sob um ponto de vista histórico, sem um rigor
filosófico, que será utilizado na próxima seção .
Tomando-se a obra magna de Hahnemann, Organon da Medicina Racional (na
primeira edição de 1810), mais tarde Organon da Arte de Curar (a partir da segunda
edição de 1819 e nas seguintes, em 1824, 1828, 1833, e na póstuma, em 1921), pode-se
dividir o conjunto das proposições homeopáticas em quatro pares de princípios ou
conceitos complementares entre si e globalmente interdependentes:
7 As três citações são de P. Burke [in BURCKHARDT,1991].
20
- semelhança / ação medicamentosa (primária) e reação orgânica (secundária);
- patogenesia / individualização;
- medicamento único / dinamização;
- vitalismo / miasmas.
O próprio título da obra remete sua origem remota a Aristóteles no século IV a.C.,
considerado o fundador da Ciência na Antiguidade, e seu Organon, ou órgão, instrumento
para o pensamento correto, nome dado ao conjunto de suas obras referentes à Lógica; e
ao Novum Organum (1608-1620) de Francis Bacon, obra que pretendia rescrever as
bases da Ciência moderna, com a proposição do método indutivo experimental
[DURANT,1996]. Mas especialmente Kant (1724-1804) e sua crítica transcendente aos
extremos materialistas de Hume (1711-1776) e metafísicos Berkeley (1685-1753) parece
ter exercido marcada influência na estrutura de pensamento hahnemanniana [GEHSPBM,
1986; MORRELL, 1998; ROSENBAUM, 2000]. Contemporâneo e correspondente de
Lavoisier (1743-1794) [MORRELL, 1998], Hahnemann acredita que:
Nas Ciências puramente experimentais, na Física, na Química e Medicina, a
razão puramente especulativa não pode, por conseguinte, ser ouvida
[Hahnemann in GEHSPBM, 1986]
Pode-se dizer de fato que Hahnemann procurou instaurar um novo “pensamento
correto” na Medicina, com base na crítica racional e no método empírico, experimental e
indutivo, em oposição à Medicina da época, escolástica, galênica, polifarmacista e
heróica, extremamente dogmática, iatrogênica e especulativa [GEHSPBM, 1986]. A
publicação em 1805 (antes portanto do Organon) de sua dedução de que as substâncias
medicamentosas provocam no homem sem sinais de doença os mesmos sintomas que é
capaz de curar em um homem doente, o que se dá após a tradução de uma obra de
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Cullen (1710-1790) descrevendo os efeitos da cinchona (Cortex peruvianis, de onde se
extrai o princípio ativo do quinino, origem da China homeopática), e somente após ter
testado e comprovado em si mesmo, já demonstram os três passos metodológicos
científicos descritos: observação empírica dos dados, experiência para confirmação e
indução de leis gerais, para posterior dedução nos casos particulares. Esta última retoma
o ciclo, ao partir de uma observação cuidadosa do indivíduo doente, a individualização,
uma anamnese (reminiscência) detalhada e abrangente guiada pela proposição empírico-
indutiva acima descrita.
No caso do princípio da semelhança, este já havia sido enunciado antes, praticamente
da mesma forma, por Hipócrates (460-370 a.C.) e, posteriormente, por Paracelso (1493-
1541) e sua Lei das Assinaturas, mas sem nenhuma proposição experimental-indutiva
como vista depois. E o conceito de ação e reação que Hahnemann sugere como estando
na base desse princípio revela a influência de Newton (1642-1727) e seu Principia
[GEHSPBM, 1986], apesar da remota influência novamente de Hipócrates e seu conceito
de Crase e Discrase (equilíbrio e desequilíbrio dos humores), como sugestão de um
princípio regulador no organismo.
Galileu (1564-1642), em sua cruzada anti-teológica e a favor de uma Ciência baseada
na observação e experimentação; Newton, que além de assentar as bases da gravitação
e da mecânica aperfeiçoa o método científico, e Descartes (1596-1650) separando alma
do corpo e determinado o espaço e o tempo (“coordenadas cartesianas”) do mundo dos
fenômenos como domínio científico completam, junto a Bacon, o conjunto dos pais
fundadores da Ciência que determinam o pano de fundo histórico sobre o qual
Hahnemann se assenta. Nesse sentido é correta a sugestão de que Hahnemann, e não
22
Claude Barnard, pode ser considerado o precursor de uma Medicina Experimental
[PUSTIGLIONE, 1987].
Hahnemann recebe, ainda por esse lado, a influência de Locke (1632-1704) e Hume
na defesa de uma fundamentação científica empírico-experimental aplicada à Medicina
[ROSENBAUM, 2000], e por outro lado toma de Sydenham (1614-1689) e Lineu (1707-
1778), ao mesmo tempo que modifica, uma concepção classificatória derivada da
botânica, na época um paradigma de sucesso científico, que origina a assim chamada
Medicina das espécies [FOUCAULT, 1998]:
No século XVIII, os conceitos médicos de saúde e doença estavam relacionados
à uma Medicina de espécies ou essencialista: derivados do impacto dos estudos
classificatórios botânicos, procurava-se catalogar as doenças de forma descritiva,
e para isso sintomas e sinais, tomados como equivalentes, eram o único guia. As
doenças eram consideradas “essências morbosas” que tomavam o organismo,
seja pelos maus hábitos de vida, morais, etc., seja pela contaminação por
miasmas emanados de situações ou pessoas insalubres, ou epidemias. A causa
original das doenças ou era considerada inconcebível em si mesma (destino) ou
irrelevante, já que o tratamento (mais “heróico”, galênico, ou mais “passivo”,
hipocrático) dependia exclusivamente da correta observação e classificação
(nominalismo) dos estados mórbidos. Era como Foucault denomina, uma
Medicina... bidimensional: a dimensão da profundidade (no sentido do interior do
corpo) era incognoscível, e o tempo não concorria em um sentido físio-
patológico, na forma de uma sucessão de eventos encadeados levando a
conseqüências determinadas, mas apenas indicava a evolução no sentido de um
ciclo natural. O conhecimento analógico dominava... [STORACE, 2000]
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Não estando ainda desenvolvidos, na época de Hahnemann, os conceitos de
Histopatologia e Fisiopatologia, e muito menos Evolucionismo, Genética, Patologia
Celular e Microbiologia, as doenças eram entendidas como espécies naturais, nascendo e
se desenvolvendo no terreno vivo como as espécies botânicas e animais na natureza. As
patogenesias podem ser entendidas, então, como uma espécie de “cultivo” ou “criação”
artificialmente controlada para melhor apreensão, uma espécie de “nosocultura” para uma
nova nosologia (estudo das doenças).
Fica mais claro, dado esse panorama, porque Hahnemann segue um estilo
classificatório descritivo (patogenesias, miasmas agudos, miasmas crônicos), pois é
dessa forma essencialista modificada e simplificada, o nome da doença individual
equivale ao do remédio que a cura, que passa a descrever e denominar os processos
mórbidos: uma doença é da espécie da Belladonna, outra do Aconitum, e assim por
diante [HAHNEMANN, 1962].
Há ainda a influência de Cullen e sua teoria da origem nervosa das doenças e de
Brown (1735-1788) e seu princípio da excitabilidade do organismo [BYNUM, 1995], bem
como das descobertas de Galvani (1737-1798) sobre a eletricidade animal, nas
conjecturas de Hahnemann a respeito da ação dos medicamentos homeopáticos sobre as
terminações nervosas do organismo [HAHNEMANN, 1962].
Mas o grande impacto da evolução de um pensamento científico derivado
remotamente dos eleáticos (séculos VI-V a.C.) e principalmente de Demócrito (470-370
a.C.) e seus “átomos no vácuo” e leis mecânicas universalmente independentes, aplicado
com sucesso na apreensão dos fenômenos naturais, ainda estava por se fazer sentir na
Física: Dalton (1766-1844) e o atomismo moderno, Ampére (1775-1836) e a eletricidade,
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Faraday (1791-1867) e o campo eletromagnético, Carnot (1796-1832) e a termodinâmica,
Maxwell (1831-1879) e o eletromagnetismo, e na Medicina com Bichat (1771-1802) e a
histopatologia, Magendie (1783-1855) e a fisiopatologia, Virchow (1821-1902) e a
patologia celular, Mendel (1822-1884) e a genética, Pasteur (1822-1895) e a
microbiologia.
O que pode ser considerado como o ápice do período “clássico” da Ciência, ou
Ciência Clássica, passa relativamente ao largo da Homeopatia. Hahnemann se liga à
corrente filosófica (e científica, na época) iniciada remotamente nos monistas pré-
socráticos (VII-VI a.C.), passando por Heráclito (VI a.C.), Empédocles (V a.C.) e
Hipócrates, vindo a influenciar inicialmente Spinosa (1632-1677) e seu monismo
panteísta, Leibnitz (1646-1716) e seu monadismo, Stahl (1660-1734) e os conceitos de
animismo e do flogisto, e finalmente Barthez (1734-1806), que vem a prevalecer na
grande característica fundamental da Homeopatia, seu vitalismo humanista, ou seja, de
que é no homem e através do homem, animado por esse princípio vital, e não somente
em suas características mecanomiméticas, que se acha a razão e o sentido de sua
Medicina [ROSENBAUM, 2000]. Dessa proposição vitalista é derivada a lógica de um
medicamento único para a totalidade do momento patológico, pois a afecção é originada
na própria vitalidade indivisível do ser, bem como da necessidade de que os
medicamentos sejam dinamizados (dynamis=força), isto é, da mesma natureza da força
vital. Esse aspecto é complementado pela característica empírico-indutiva do
procedimento homeopático, havendo desse lado uma simetria entre os conceitos de
patogenesia, individualização e medicamento único; além disso, a dinamização surge
também da mesma característica empírica e experimental, na medida em que foram
passos sucessivos empíricos-indutivos que levaram à formulação de medicamentos que
25
retivessem uma ação sobre o organismo ao mesmo tempo em que eram atenuadas suas
propriedades toxicológicas8.
São as características conjuntas de um modelo científico empírico-indutivo, associado
a uma compreensão vitalista analógica-essencialista que respondem sinteticamente à
questão do que é a Homeopatia, da mesma forma que a inserem clara e historicamente
na evolução da Ciência ocidental. Ao mesmo tempo, o corte epistemológico
[ROSENBAUM, 2000] produzido pela singularidade da proposição homeopática gera uma
dissociação do saber científico na sua principal corrente evolutiva posterior, que passa
então a qualificar a Homeopatia como um saber ultrapassado e, portanto, também clara e
historicamente pré-científico.
Essa mesma singularidade propicia sua readequação no cenário contemporâneo, na
medida em que as transformações exibidas pela Física posterior ao período científico
clássico, como em Einstein (1880-1955) e a relatividade, Planck (1858-1947), Bohr (1885-
1962) e Heisenberg (1901-1976) e a quântica, teoria da informação de Shannon (1916-
2001) e dos sistemas de Bertalanffy (1901-1972), temodinâmica dissipativa de Prigogine
(1917-), holonomia de Bohm (1917-1992), autopoiese de Maturana (1928-) e Varela
(1949-) e teoria do caos de Lorenz (1917-) passam a redefinir a Ciência [CAPRA, 1997],
cujos conceitos clássicos podem, a partir de então, ser chamados da mesma forma de
pré-científicos.
A Medicina convencional repousa sobre os parâmetros paradigmáticos clássicos: a
visão redutora mecânica de que a célula e o microorganismo são a base de sua
fisiopatologia é a contraparte médica do átomo clássico, apesar de fazer uso da
8 Demonstrado, pelas variações e evoluções metodológicas de Hahnemann [in BARTHEL, 1993].
26
tecnologia gerada modernamente (laser, ressonância magnética). Sobre ela passa então
também a recair o rótulo do pré-cientificismo, antes de tudo por força da mesma crise
político-social apontada no início, que denota os limites de sua visão. A Homeopatia, na
medida em que sai do gueto dogmático defensivo que a caracterizou na resistência à
crítica clássica, passa efetivamente a dialogar com as novas visões científicas
contemporâneas, ao ver reaparecerem seus conceitos paradigmáticos diferenciados
como vitalismo, individualização, dinamização, semelhança, na forma de novas
descrições da natureza: sistemas vivos como sistemas dissipativos caóticos
ecologicamente relacionados não descritos mecanicamente, importância da relação
observador-observado derivada da quântica, caos e matemática fractal na descrição de
padrões sistêmicos geradores de ultradiluições biologicamente ativas, princípio
holonômico do universo, respectivamente, possivelmente no contexto de um neovitalismo
já proposto9:
Fica clara a completa impossibilidade de continuar a esquivar-se de interagir com
as outras disciplinas e repartir esse legado (homeopático)... para tanto não basta
que uma epistemologia “emprestada” de outros saberes possa corrigir as
insufiCiências metodológico-conceituais... a construção científica é... um diálogo
referido a uma interlocução entre uma realidade eleita e uma mente disposta a
percebê-la... se o que se discute hoje dentro de modelos, tais como a teoria da
complexidade e a teoria do caos, obtém status epistemológico em Biologia... os
homeopatas devem perceber o valor e a fecundidade de sua efetiva e positiva
colaboração... (e) para isso não se pode abandonar as “especulações”
introduzidas por Hahnemann... a noção de força vital, a preocupação de
9 Por Paulo Rosenbaum [in ROSENBAUM, 2000].
27
retomada ontológica e antropológica para a Medicina, a idéia de totalidade e a
defesa da patogenesia como uma vivência “provocada” pelo estímulo
medicamentoso fazem parte do corpus (homeopático) e moldam suas feições
[ROSENBAUM, 2000].
A “construção científica” acima referida, sob um ponto de vista filosófico, sua
evolução e seu confronto com a Homeopatia, é o assunto da seção seguinte, bem como a
questão da dicotomia aparentemente irredutível entre a visão clássica-reducionista e a
visão (neo)vitalista-holista.
28
3. HOMEOPATIA E EPISTEMOLOGIA
A Epistemologia, ou Filosofia da Ciência, como entendida modernamente, feita por
filósofos profissionalmente dedicados à disciplina, surge há pouco mais de 70 anos; ela
... é o ramo da filosofia que estuda a investigação científica e seu produto, o
conhecimento científico... Até meio século atrás... não era mais que um capítulo
da teoria do conhecimento, ou gnosiologia... Durante esse período, que podemos
chamar de período clássico, que se estende nada menos que de Platão a
Russell, a Epistemologia era cultivada principalmente por cientistas e
matemáticos...ou por filósofos sem grande preparo científico... É preciso
reconhecer que esses pensadores escreveram livros mais interessantes e
duradouros, e também melhor escritos, que a maioria dos livros sobre
Epistemologia que se publicam hoje em dia. Um dos motivos é que eles se
ocuparam de problemas autênticos, originais e de envergadura... [BUNGE, 1987].
Alguns dos mais importantes epistemólogos clássicos são Auguste Comte, Adrien
Marie Ampére, Bernard Bolzano, Claude Bernard, Pierre Duhem, Henri Poincaré,
Friedrich Engels, Bertrand Russell, Alfred North Whitehead, Vladimir Illich Lênin, Ludwig
Boltzmann e Ernst Mach.
A fundação do Círculo de Viena em 1927 marca uma mudança radical rumo a uma
sistematização do pensamento epistemológico seguindo uma herança de Russell, através
de nomes como os de Moritz Schlick, Rudolf Carnap e, menos diretamente ligado, Karl
Popper [BUNGE, 1987].
29
A obra de Popper marca uma linha divisória importante: antes dele, a maioria ou
quase totalidade dos epistemólogos erige suas obras sob influência do modelo indutivista
proposto por Bacon, refinado pelo empíricos posteriores como Locke, Hume, Mill, pelos
positivistas como Comte, Russell e o próprio Círculo de Viena, ou pelos convencionalistas
como Poincaré. A partir de Popper, as inconsistências lógicas, teóricas e históricas desse
modelo são explicitadas, dando origem a propostas epistemológicas contemporâneas
como a do próprio Popper e de nomes como os de Imre Lakatos, Thomas Kuhn, Paul
Feyerabend e Edgar Morin.
Será apresentada a seguir uma classificação segundo determinada nomenclatura
[LAKATOS, 1998; CHALMERS, 2000] para análise das proposições teóricas de cada
modelo epistemológico e suas evoluções históricas e conceituais, em conjunto com a
análise de um autor representativo de cada modelo, além de suas repercussões para a
Homeopatia.
MODELO EPISTEMOLÓGICO – AUTOR REPRESENTATIVO:
3.1 Indutivismo – Bacon
3.2 Convencionalismo – Poincaré
3.3 Positivismo – Russell
3.4 Falsificacionismo – Popper
3.5 Programas de Pesquisa – Lakatos
3.6 Paradigmas – Kuhn
3.7 Relativismo – Feyerabend
3.8 Complexidade – Morin
30
As obras artísticas colocadas na abertura de cada sub-seção não foram escolhidas
ao acaso; foram dispostas deliberadamente, escolhidas por algumas características
pictóricas, simbólicas e históricas específicas para representar as relações complexas,
dinâmicas e sincrônicas das diversas manifestações da cultura:
- Caravaggio e a perspectiva realista opondo-se à arte sacra;
- Turner o os primórdios do impressionismo modificando a convenção realista;
- Mondrian e o abstracionismo geométrico na busca de uma estética matemática;
- Escher e as ilusões paradoxais do que parece ser “verdade” mas se revela “falso”;
- Kandinsky e o abstracionismo colorido coabitando e disputando a atenção;
- Magritte e o surrealismo irredutivelmente relativo;
- Lichtenstein e a cultura popular subvertendo a acadêmica e
- Miró e sua multiplicidade criativa, são possíveis símbolos representativos, aqui
extremamente reduzidos e destituídos de todo seu imenso impacto e valor, de cada uma
das proposições epistemológicas apresentadas.
31
3.1 INDUTIVISMO – FRANCIS BACON
Indução – em lógica, forma de pensar que usualmente envolve generalização,
isto é, a inferência de uma instância ou conjunto de características que o
conjunto obtém universalmente [BULLOCK/STALLYBRASS, 1977].
A forma mais acessível de reconhecimento do princípio da indução é uma estrutura
lógica do tipo:
“Para quaisquer A e B
Se todos os A conhecidos são B
Então todo A será B”
Portanto, a partir de certos dados (A e B), uma vez conhecida uma ou mais relações
entre um e outro, estas se aplicarão universalmente a todos os dados da mesma
categoria.
O indutivismo pressupõe que os dados dos sentidos, ou a observação empírica, é
totalmente fiável e anterior a qualquer pressuposição teórica, um conhecimento puro dos
32
fenômenos. A partir de um volume confiável de observações obtém-se as proposições
básicas; aplicando-se o princípio da indução obtém-se leis ou proposições universais, e
partir delas se propõe experimentos que a deduzam para casos particulares, confirmando-
a ou negando-a. A Ciência, assim, se erige paulatinamente em ciclos de:
observação empírica “pura” (proposições básicas) → indução → leis e teorias
(proposições universais) → experimentos → dedução no caso particular→ nova
observação.
Sua aparente simetria lógica está provavelmente na origem de que o senso comum
de como se dá o processo de conhecimento científico, dentre o público e principalmente
entre cientistas mesmo hoje em dia, costuma se assemelhar muito a esse modelo. Essa
simplificação didática é chamada de indutivismo ingênuo [CHALMERS, 2000], pois desde
sua origem foi progressivamente reformulado devido a inconsistências tanto lógicas como
empíricas, transformando-se em modelos mais críticos e refinados (empirismo,
fenomenalismo, positivismo).
Francis Bacon, nascido na Inglaterra, foi o proponente original desse modelo, através
do qual pretendia, e que de certa forma ocorreu, erigir uma nova Ciência e uma nova
Utopia livres da metafísica escolástica e dos antigos erros na observação dos fenômenos
e construção de leis:
“As Ciências encontram-se estacionárias, sem receber quaisquer incrementos
dignos da raça humana; e toda a tradição e sucessão de escolas ainda é uma
sucessão de mestres e estudiosos, não de inventores... no que agora é feito no
âmbito da Ciência existe apenas um rodopiar e uma agitação perpétua,
terminando onde começou”... Era um empreendimento grandioso e –à exceção
33
de Aristóteles– sem precedentes na história do pensamento. Iria diferir de todas
as outras filosofias por visar à prática e não à teoria, a bens concretos
específicos e não a uma simetria especulativa... ”estou trabalhando para lançar
as fundações não de qualquer seita ou doutrina, mas da utilidade e do poder”.
Aqui, pela primeira vez, estão a voz e o tom da Ciência moderna [DURANT,
1996].
A voz de Bacon continua a ecoar, senão nos ouvidos, ao menos no inconsciente
coletivo ocidental desde então. A Ciência não como uma tradição, mas como verdade e
tecnologia extraídas da natureza por força razão, da experiência e do engenho.
Não é difícil notar a semelhança entre esse novo espírito científico e o universo por
onde se movimenta Hahnemann mais de duzentos anos depois:
O observador sem preconceitos – sabendo da futilidade de argumentações
metafísicas, que a experiência não pode confirmar – nada percebe... senão
alterações reconhecíveis pelos sentidos... (Organon, § 6)
Toda experiência pura, contudo, e toda pesquisa perfeita nos convencem que
sintomas pertinazes de moléstias estão longe de serem removidos e eliminados
por sintomas opostos... (ibidem, § 23)
Contudo, em todos os ensaios cuidadosos, experiência pura (*), o único e
infalível oráculo da arte de curar...
(*) Não me refiro ao tipo de experiência de que se vangloriam os clínicos comuns
da velha escola... em inúmeras doenças que nunca investigaram
cuidadosamente... cinqüenta anos de experiência desse tipo correspondem a
34
cinqüenta anos olhando num caleidoscópio cheio de objetos coloridos
desconhecidos girando incessantemente... (ibidem, § 25 e respectiva nota)
Como essa lei natural de cura (semelhança) se manifesta em cada experiência
pura e em cada verdadeira observação no mundo, esse fato acha-se
consequentemente confirmado... (ibidem, § 28) [HAHNEMANN, 1962].
Os exemplos de como a visão hahnemanniana é, em parte, consistentemente
derivada de um indutivismo poderiam se estender por muitas páginas. Pode-se dizer que
a previsão baconiana de uma nova Ciência toma uma primeira forma definida, em
Medicina, com Hahnemann: experiência pura como dados empíricos confiáveis, pesquisa
perfeita, estudos com experimentos, para indução de leis gerais como a de semelhança.
E a crítica de Bacon ao rodopiar sem rumo da Ciência antiga é quase exatamente a
mesma de Hahnemann ao caleidoscópio colorido da Medicina antiga.
Seriam estas algumas das proposições básicas homeopáticas (derivadas de dados
observacionais):
- existência de uma força vital (Organon § 8);
- cura pela semelhança na natureza (idem, nota do § 26, §s 46, 50);
- efeito das ultradiluições (ibidem, nota do § 33).
E suas correspondentes proposições universais:
- vitalismo (ibidem, §s 11-16);
- lei de semelhança (ibidem, §s 51-53);
- dinamização (ibidem, § 68) [HAHNEMANN, 1962].
35
O fato da Homeopatia ter enfrentado tantas e tão contínuas oposições desde o seu
surgimento é mais um forte indício a favor da crítica epistemológica ao indutivismo como
modelo da Ciência. Se apenas a demonstração indutiva estivesse por trás do
conhecimento científico, Hahnemann seria considerado um paradigma científico, mas a
história nos mostra que não ocorreu dessa forma.
O modelo indutivista exige de seu proponente uma escolha, de fato, não-indutiva de
quais proposições são aceitas e quais são rejeitadas, na medida em que, ao aceitá-las,
estará aceitando literalmente o que entende por verdade:
...uma proposição deve ser ou comprovada a partir dos fatos, ou derivada... de
outras proposições já comprovadas... A crítica indutivista é essencialmente
cética: consiste em mostrar que (se) uma proposição não está comprovada... é
pseudocientífica... quando então é banida da história da Ciência e transferida
para a história da pseudociência, para a história das simples crenças...
[LAKATOS, 1998].
Isto é o que ocorre com as proposições homeopáticas, incompatíveis com as
proposições cientificamente aceitas. Mas
...o historiador indutivista não pode oferecer uma explicação... racional para o
motivo que conduz no caso presente a uma seleção preferencial de certos fatos
em detrimento de outros.... quando enfrenta o problema da enorme consideração
tida pela metafísica por alguns grandes cientistas e, na realidade, o motivo que
os levava a pensar que as suas descobertas eram importantes por razões que à
luz do indutivismo parecem muito estranhas... atribuirá estes problemas à
psicopatologia... [LAKATOS, 1998].
36
Um exemplo retirado de Newton10 vem a corroborar a limitação epistemológica do
indutivismo. Suas leis da gravitação reintroduziam um conceito, o de força, considerado
obscurantista e metafísico pelos cartesianos, que acreditavam apenas na ação por
contato entre os corpos na natureza. O modelo newtoniano permaneceu acuado por anos,
tendo Newton chegado a recuar e ceder às críticas racionalistas, incapaz de responder
consistentemente de forma indutiva. Mas manteve obstinadamente sua crença na
correção de seu modelo, até que corroborações da teoria feitas por previsões bem
sucedidas, como as de Halley (1656-1742) lhe deram um estatuto científico unânime
[KUHN, 1991; LAKATOS,1998].
Esses dois exemplos apontam a primeira e mais fundamental inconsistência do
indutivismo: a suposição de que uma observação é pura, que o dado empírico dos
sentidos corresponde a uma verdade, uma tábula rasa, é uma falsa suposição. Toda
observação pressupõe um conjunto de valores anteriores, culturais, semânticos ou
psicológicos, não havendo de forma nenhuma algo como um dado puro dos sentidos
(crítica exercida por Hume, para quem crenças em leis e teorias são hábitos psicológicos
adquiridos pela repetição de observações [CHALMERS, 2000]).
A segunda inconsistência deriva do questionamento de quantas observações de A
relacionadas a B seriam suficientes para permitir a indução, e isso não se daria de forma
10 Tendo o próprio Newton avançado o conceito indutivo de método científico em seus Principia:1) não se admite mais causas dos que as verdadeiras e suficientes para a explicação dofenômeno; 2) os mesmos efeitos naturais se relacionam com as mesmas causas; 3) as qualidadesdos corpos se estendem universalmente; e 4) as proposições serão consideradas acuradas atéque sejam contrariadas por outros fenômenos [WEISSTEIN, 2000].
37
lógica, mas por simples convenção (que influenciará a adoção de um modelo probabilista,
ou então convencionalista).
A terceira inconsistência é de natureza lógica: o pressuposto de que A é igual a B
afirma algo que pretende precisamente provar, o que gera uma assertiva que pretende
provar-se a si mesma e que se torna, portanto, insustentável (que levará a um
refinamento do modelo, como no positivismo lógico).
Uma evolução posterior do indutivismo é descrita como justificacionismo, o que seria a
delimitação das condições empíricas mínimas necessárias para que, apesar de não
logicamente justificável, o método indutivo permanecesse valoroso. Ainda assim,
Os filósofos John Locke e David Hume apontaram... que a justificação empírica
da indução envolve dificuldades insuperáveis... (levando, por um lado, a uma)
retomada da doutrinas racionalistas (Kant) e, por outro, a reformulação dos
objetivos empiristas... procurou-se, assim, determinar condições nas quais o salto
indutivo seja feito de maneira mais segura possível... [CHIBENI, 1998].
Dentre elas estariam a necessidade de um grande número de observações de um
fenômeno, a variação ampla das condições de reprodução dos mesmos e a ausência de
contra-evidências; mas a história demonstrou claramente que essas condições ideais de
produção do saber científico não foram cumpridas na grande maioria dos exemplos das
descobertas e da prática científica [CHIBENI, 1998]. Por esses motivos a epistemologia
abandonou gradativamente o modelo indutivista como explicativo do conhecimento
científico, evolução essa que será descrita a seguir.
38
3.2 CONVENCIONALISMO - POINCARÉ
O convencionalismo também é um modelo corrente na Ciência contemporânea.
Pressupõe que a escolha entre duas teorias rivais, competindo pela primazia da
explicação de uma verdade científica, depende menos de uma lógica estritamente
indutiva e mais de um acordo geral (convenção) no âmbito dos que fazem Ciência.
Essa convenção não é arbitrária, e de qualquer forma continua a levar em
consideração o método científico basicamente como colocado por Newton (vide nota 10,
pág. 27).
Portanto, os critérios são:
- a teoria que apresentar o menor número de causas para o maior número de
fenômenos explicados será preferida;
- desde que as mesmas causas levem aos mesmos efeitos;
- que os fenômenos sejam observados universalmente;
- e será considerada correta até que seja contrariada por fenômenos ou outras teorias
nas quais melhor se adequem.
39
Então, descrito de outra forma, o convencionalismo adota critérios que tendem à um
caráter, respectivamente:
- estético-metafísico, de preponderância da simplicidade teórica sobre a complexidade;
- também estético-metafísico, de preponderância da simetria sobre a assimetria;
- de validade do maior poder preditivo independente e universal;
- e de uma certa relativização instrumentalista11, pois, na medida em que pode ser
substituída por uma melhor, uma teoria já não carrega completamente a verdade em
si, mas antes a melhor descrição dela até dado momento.
Essa postura foi adotada por inúmeros cientistas ao longo da história. Um exemplo
é o do químico alemão Friederich Kekulé (1829-1896), descobridor da estrutura em
anéis fechados do benzeno (inspirado pelo sonho que teve de uma cobra mordendo o
próprio rabo). Acreditava ser tal estrutura uma descrição teórica fictícia; útil, mas não
necessariamente correspondente à verdadeira forma. Porém essa estrutura veio a ser
posteriormente confirmada pela microscopia eletrônica [CHALMERS, 2000].
O convencionalismo também pressupõe uma evolução ou sucessão contínua das
teorias científicas, uma melhor substituindo a outra menos precisa, sem rupturas12.
O convencionalismo não-instrumentalista (ou realista) de Henri Poincaré (1854-
1912), nascido na França, se apóia em quatro características igualmente importantes:
11 Nome dado para a proposição epistemológica que defende que, apesar de existir uma realidadeexterna ao observador, a teoria não é a descrição direta dela mas apenas uma aproximação útil,em oposição ao realismo científico que advoga que uma teoria corresponde à realidade em umcerto grau, ou à própria realidade [CHALMERS, 2000]. Para Lakatos [LAKATOS, 1998], oinstrumentalismo não é mais que uma versão degenerada do convencionalismo.12 Conceito que é contestado por epistemólogos com Thomas Kuhn, como será visto adiante.
40
- o fenomenismo: defendia que o que podemos apreender da natureza não é a
realidade em si, mas apenas os fenômenos e suas relações apresentadas por ela. A
realidade surge de uma aproximação entre o que carregamos de noções sobre o
mundo confrontadas com as verificações. De qualquer forma, essa não é uma posição
subjetivista (tal como não há uma realidade, apenas o que pensamos que ela seja),
mas apenas indica que as noções científicas falam minimamente sobre fragmentos da
realidade:
Freqüentemente se diz que as experiências devem ser realizadas sem idéias
preconcebidas. Isso não é possível; não somente seria tornar estéril toda
experiência, como também não o poderíamos fazer mesmo que quiséssemos.
Cada um carrega consigo a sua concepção de mundo da qual não se pode
desfazer assim tão facilmente... (então) precisamos tirar o melhor partido desse
pouco que podemos atingir diretamente. É preciso que cada experiência nos
possibilite o maior número possível de previsões e com o mais alto grau de
probabilidade que se possa alcançar [POINCARÉ, 1988].
- a hipótese e a generalização matemática: o que coordena um conjunto de
observações e o transforma de uma massa de dados em uma moção científica é uma
hipótese matematizável, em geral probabilística, passível de verificação. Sem a
hipótese não há organização, sem a verificação não há aproximação à verdade:
Assim, graças à generalização, cada fato observado nos faz prever um grande
número de outros; mas não devemos nos esquecer de que só o primeiro é
seguro, de que todos os outros são prováveis. Por mais sólida que nos possa
parecer uma previsão, não estamos, nunca, absolutamente seguros de que, se
41
nos propusermos a verificá-la, a experiência não venha a desmentir. Mas,
freqüentemente, a probabilidade de acerto é bastante grande para que possamos
nos sentir satisfeitos. Mais vale prever sem certeza do que absolutamente não
prever [POINCARÉ, 1988].
- a unidade e simplicidade da natureza: o fato de poder haver uma hipótese indica que
atrás de uma aparente complexidade, a natureza nos apresenta uma regularidade
tanto mais apreensível quanto mais simples, o que deve indicar essas duas
propriedades da mesma:
... toda generalização supõe, numa certa medida, a crença na unidade e na
simplicidade da natureza. Quanto à unidade... se as diversas partes do universo
não fossem como os órgãos de um mesmo corpo, elas não agiriam umas sobre
as outras... logo não temos que nos perguntar se a natureza é una, mas, sim,
como ela é una... (mas) não é seguro que a natureza seja simples... se nossos
meios de investigação se tornassem cada vez mais penetrantes, descobriríamos
o simples sob o complexo, depois, o complexo sob o simples... e assim por
diante... em algum momento, temos que parar e, para que a Ciência seja
possível, temos que parar quando encontramos simplicidade [POINCARÉ, 1988].
- a experiência crucial: seguindo Bacon, acredita que uma experiência bem conduzida
é mais válida na definição de um fenômeno do que centenas de experiências comuns
ou malfeitas:
Todos nós sabemos que existem experiências bem feitas e experiências
malfeitas. Estas últimas se acumularão em vão, quer sejam cem, quer sejam mil.
42
Um único trabalho de um verdadeiro mestre, de um Pasteur13, por exemplo, as
fará, todas, cair no esquecimento... O que é então uma boa experiência? É a que
nos desvenda algo além de um fato isolado; é a que nos permite prever, isto é, a
que nos permite generalizar [POINCARË, 1988].
Note-se que Poincaré pressupõe e admite uma metafísica (unidade e simplicidade do
universo), uma verdade relativa (provável), o valor de uma experiência singular (crucial)
na evolução da Ciência e o valor da hipótese (e não só das evidências), numa postura
mais flexível a aberta do que os indutivistas passados e presentes.
De um ponto de vista convencionalista, a Homeopatia é capaz de cumprir com vários
de seus critérios. O conjunto de hipóteses homeopáticas fundamentais (semelhança,
patogenesia, individualização, adequação farmacotécnica, Organon § 3 [HAHNEMANN,
1962]) pode ser considerado como mais simples e mais simétrica: um pequeno conjunto
de hipóteses dá melhor conta dos fenômenos da saúde e da doença do que um apanhado
de hipóteses muitas vezes conflitantes tais como genética, microbiologia, stress
imunológico, psicossomatismo; possui maior poder preditivo, tais como leis de cura,
prognóstico clínico dinâmico, miasmas entendidos como padrões evolutivos gerais, não
contemplados pela Medicina convencional; e dependendo da assim chamada escola
homeopática, entende o conjunto teórico como uma melhor aproximação à realidade do
indivíduo são/doente, e não a verdade médica última.
13 Parcialmente desmistificado pela historiografia mais recente, tendo manipulando experiências aseu favor com por exemplo a ocultação da morte de uma criança e de cães pela vacinação anti-rábica, apesar do inegável sucesso nas campanhas posteriores [SCLIAR, 1995].
43
Por outro lado, algumas escolas entendem que a Homeopatia descreve a realidade
médica de uma forma literal, o que pode se chocar com uma postura convencionalista.
Mas o principal é a crítica corrente por parte da Ciência, e que parece ter uma caráter
convencionalista, de que a Homeopatia não passou por uma generalização matemática, o
que em Medicina corresponde a trabalhos predominantemente clínicos ou laboratoriais
que apresentem resultados estatisticamente significativos, e, especialmente, não
apresentou uma experiência crucial no tocante a sua hipótese mais controversa, a da
ação de ultradiluições.
Apesar disso, esses critérios podem estar sendo cumpridos em nossos dias, em face
do aumento de volume e qualidade de trabalhos relativos à elucidação convencionalista
dessas questões14.
14 Estudo metanalítico de trabalhos clínicos homeopáticos nos últimos 25 anos demonstrou eficáciaem 81 dos 107 trabalhos analisados; dos 22 estudos de metodologia considerada ótima, 15apresentaram positividade [ULMANN, 1995]. Recentemente 4 laboratórios independentesconfirmaram os então controversos resultados positivos da degranulação de basófilos por altasdiluições obtidos em 1988 [BENVENISTE, 1988; BROWN&ENNIS, 2001; FISCHER, 2001;MILGROM, 2001].
44
3.3 POSITIVISMO – RUSSELL
O positivismo, nomeado por Auguste Comte (1798-1857) como o princípio
fundamental de sua filosofia,
É a visão de que todo o conhecimento verdadeiro é científico, no sentido da
descrição e sucessão dos fenômenos observáveis. A palavra é agora comumente
usada como abreviação de Positivismo Lógico... e relaciona-se proximamente
ao... reducionismo... que pode ser contrastado com o holismo... e negado pelo
vitalismo... [BULLOCK&STALLYBRASS, 1977].
Chega-se aqui ao extremo do espectro epistemológico em relação às proposições
homeopáticas. A noção de que sistemas biológicos podem ser reduzidos aos sistemas
físico-químicos, e de que os processos anímicos ou mentais podem ser reduzidos aos
processos fisiológicos, físicos e químicos encontra aqui sua maior antinomia em relação à
Homeopatia. No entanto, esse é o panorama dominante na Ciência no que se refere à
Medicina convencional, descontando-se o fator da crise apontada no início do trabalho. É
contra essa visão que a Homeopatia surge como uma das possibilidades de resposta às
inquietudes surgidas nas últimas décadas. Portanto, pode-se dizer que o modelo
45
homeopático e o modelo positivista são irredutíveis: não se comunicam, a não ser para se
anular mutuamente. O positivismo, na sua formulação comteana, praticamente (e
paradoxalmente, em se tratando de Ciência) eleva o indutivismo a condição de doutrina; a
história da humanidade é uma progressão do pensamento mágico à Ciência, ápice da
capacidade civilizatória; o saber é hierárquico, das Ciências mais “simples” (matemática,
Física) às mais “complexas” (Medicina, sociologia), o saber das mais simples necessário
e condicionante absoluto para a compreensão das complexas; o mundo deve ser
conhecido em sua essência (suas leis) através do raciocínio e observação, e não
meramente do conhecimento empírico [SIGOLO, 1999].
Surpreendentemente, o Brasil presenciou, no início do século XX, uma insuspeita e
documentada ligação entre a Homeopatia e o positivismo de Comte, que havia
conquistado grande penetração especialmente entre militares, políticos e médicos,
inclusive homeopatas históricos. Hahnemann é apresentado como um gênio da reforma
positiva, por, muito antes de Comte ter nascido, ter transformado o pensamento médico
metafísico em Ciência racional; o anímico é entendido como uma propriedade mais
fisiológica cerebral do que espiritual; a ação dos medicamentos, próxima aos conceitos de
Broussais sobre a deficiência ou excitação dos tecidos; a força vital, considerada
metafísica, passa a receber um adjetivo físico: energia. Entretanto,
Uma vez que a Homeopatia não continha, em sua origem, elementos da filosofia
positivista, e nem esta a via como Ciência positiva –pelo contrário, taxava-a de
prática metafísica– por que a homeopatia, num momento de sua história,
contempla a possibilidade de construir seu discurso tendo como alicerce o
pensamento de Auguste Comte?... Pertencer ao campo da Medicina e não à
“crendice popular” requeria a adaptação e a reinterpretação, por parte dos
46
médicos homeopatas, de alguns pontos de sua teoria para que ela pudesse ser
reconhecida enquanto Ciência. O positivismo ofereceu, por seu aparato teórico e
aceitação na sociedade brasileira, as condições necessárias para sustentar o
discurso homeopático enquanto científico [SIGOLO, 1999].
De qualquer forma, o positivismo comteano é muito diferente daquele que vai inspirar
a profissionalização da filosofia da Ciência. O mais elaborado representante dessa
formulação é Bertrand Russell (1872-1970), britânico, que avança as proposições básicas
do positivismo ao mesmo tempo que inspira a construção do Positivismo Lógico do
Círculo e Viena.
Russell, antes de filósofo, é um matemático-filósofo, que chama seu modelo
epistemológico de atomismo lógico, busca de “partículas” lógico-matemáticas universais:
O objetivo da filosofia (russelliana) deveria se igualar à perfeição da matemática
ao limitar-se a declarações similarmente exatas e similarmente verdadeiras antes
de toda a experiência. ”As proposições filosóficas... devem ser a priori”...
(gerando) um impiedoso ataque à irracionalidade do misticismo, seguido de tal
glorificação do método científico, que nos faz pensar no misticismo da lógica...
(no entanto) Russell despejou na sua filosofia social o misticismo e o sentimento
que ele havia reprimido de maneira tão resoluta na sua atitude para com a
metafísica e a religião. [DURANT, 1996].
Filósofo rigoroso, e humanista libertário, Russell encerra as contradições e limites do
sonho indutivista. Ao mesmo tempo, simboliza a iluminação e a limitação da Ciência
baconiana. Por um lado, concorda com o convencionalismo de Poincaré na medida em
47
que considera os dados dos sentidos como uma aproximação à realidade, sem que seja a
apreensão direta da mesma. Combate a metafísica e o racionalismo idealista, na medida
em que propõe que se abandone as visões unificadoras do mundo ou teorias gerais em
troca de análises parciais da questões, apesar de conceber que a crença ocupa um lugar
básico instintivo no processo do conhecimento. Como há diferentes graus de crença,
como há de conhecimento, a tarefa filosófica é apontar o seu mais alto grau de verdade,
mostrando que a questão que verdadeira e realmente preocupa a filosofia não é a de
saber se o termo verdade está sendo corretamente utilizado, mas sim que frases, crenças
ou juízos são verdadeiros ou falsos. Por outro lado, o trabalho epistemológico se traduz
na tarefa de
conferir unidade e organização aos conhecimentos... (que são) “contaminados de
dúvida em certo grau”... assim quer a verdade, quer a falsidade são relações
externas das proposições e das crenças... o erro só surge quando ultrapassamos
o dado sensível [FERREIRA&XIMENEZ, 1998].
Neopitagórico e empírico, politicamente arrojado e cientificamente convencional,
rigoroso e fluído simultaneamente, Russell atinge um ponto de bifurcações que após o
esforço do Círculo de Viena, descendente direto de suas idéias, permite que se abram os
questionamentos da Epistemologia mais recente.
48
3.4 FALSIFICACIONISMO - POPPER
Karl Popper (1902-1994), nascido na Áustria e naturalizado britânico, tendo
tangenciado o Círculo de Viena, foi o epistemólogo de maior repercussão na crítica e
desconstrução dos modelos de Ciência vistos anteriormente. Além disso, todos os
epistemólogos posteriores construíram suas obras a partir de um frutífero diálogo direto
ou indireto com suas proposições.
Para Popper, o fato da postura realista por ele adotada sofrer a crítica de pertencer à
ordem da metafísica não é relevante, já que é o realismo que autoriza o “jogo” científico:
segundo algum idealismo existencialista, se tudo não passa de um “sonho da mente” não
há sentido em fazer Ciência; já considerar que há um observador independente da
realidade e vice-versa, além de ser de “bom senso” (metafísico) é um postulado básico
para que haja Ciência. Popper valoriza a metafísica:
Sob uma perspectiva histórica, a metafísica pode ser vista como a fonte de que
brotam as teorias das Ciências empíricas [POPPER, 1972].
E adota a de maior valor, sob seu ponto de vista, para a Ciência: o realismo. A Ciência
seria orientada por uma
49
Fé não científica, metafísica (ainda que biologicamente explicável) em leis,
regularidades que podemos desvelar, descobrir... (uma) irracional fé na razão.
[POPPER, 1972].
Considera a mentalidade científica moderna como
Um dos mais importantes elementos de nossa civilização ocidental (na forma de
uma) tradição racionalista que nós herdamos dos gregos... (o que implica em
uma) atividade intelectual mas também a observação e a experimentação... (cuja
grande função é) sua influência liberalizadora – como uma das maiores forças
que contribuem para a liberdade humana [POPPER, 1994].
A partir disso, para Popper a Ciência surge de um consenso, isto é, um acordo entre
os investigadores a respeito dos valores e objetivos comuns que partilham, dentre eles:
- universalização - os enunciados são científicos se valerem independentes de critérios
pessoais;
- “comunismo” - as descobertas e pesquisas não se restringem a quem faz, mas valem
na medida em que são divulgadas;
- desinteresse - a Ciência não é interessada no sentido de obter um resultado que
deseja; é objetiva, rigorosa e comprometida com a ausência de fraudes;
- ceticismo organizado - ninguém ou nenhum grupo isoladamente pode dizer o que é a
“verdade”; deve haver um permanente teste intersubjetivo [PEREIRA, 1993].
Da parte de quem faz Ciência, estes cientistas devem possuir um espírito crítico e um
“dogmatismo revolucionário”, no sentido de quem preserva a tradição e ao mesmo tempo
busca o aprimoramento. Até aqui, Popper parece quase indistinguível de uma posição
50
convencionalista e às vezes até mesmo instrumentalista, se não fosse pelo critério de
demarcação científica que propõe, a fundamental e principal marca de seu trabalho:
Todos os procedimentos metodológicos devem ser conduzidos de tal forma a
facultar o falseamento das hipóteses. [PEREIRA, 1993].
Popper evita o conceito absoluto de verdadeiro e falso em Ciência; uma teoria, uma
vez aceita em lugar de outra, não significa que diga como a realidade é verdadeiramente,
mas sim que descreve uma melhor aproximação dos fatos. Portanto, a evolução da
Ciência se dá com base a uma aproximação cada vez maior e melhor, sem nunca se
chegar a uma verdade absoluta, que, se existir, é incognoscível. Com isso, uma teoria
pode ser melhor quanto mais, em termos lógicos, possa ser refutada; se não houver
possibilidade de refutação, não é uma teoria e sim um dogma, e, portanto, não pode ser
científica. Falseabilidade então torna-se equivalente a possibilidade de refutação, e isto
torna a falseabilidade o mais importante critério de demarcação entre Ciência e
pseudociência para Popper.
A partir daí, uma teoria X se torna melhor que uma Y se:
1) X faz afirmações mais precisas que Y;
2) X explica mais fatos que Y;
3) X resiste aos testes que refutam Y;
4) X permite testes que nem eram sugeridos por Y;
5) X contextualiza problemas que antes dela pareciam isolados;
6) Se as duas se equivalem, a mais simples prevalece [PEREIRA, 1993].
51
Aplicando-se os conceitos anteriores ao modelo homeopático, inicialmente com
relação aos primeiros tópicos citados (consenso):
- os enunciados homeopáticos são supostamente universais, mas em várias questões
(como potência, posologia e até mesmo critério de semelhança) são submetidos a
critérios excessivamente individuais ou grupais;
- em geral, pode-se dizer que há ampla comunicação de idéias, mas muitas se
caracterizam por baixa objetividade e personalismo;
- a disputa de correntes ou escolas denota um forte componente de interesse no
sentido de que se ratifique que seu resultado é mais valoroso que outro;
- novamente aqui se disputa a “verdade” na ausência de critérios objetivos e
intersubjetivos claros, universais.
Deve-se notar que ainda faltaria à Homeopatia, segundo estes critérios, o denominado
consenso científico, tanto “interno” quanto em relação à Ciência em geral. Com relação à
teoria propriamente dita, tome-se hipoteticamente o seguinte enunciado (bastante
esquemático) como “teoria homeopática”: “a doença equivale a um desequilíbrio
dinâmico da totalidade psicofísica, que pode ser auxiliado na sua correção pela utilização
de medicamentos previamente experimentados, em doses mínimas, aplicados por
provocarem uma síndrome semelhante no organismo, contra a qual este reage
simultaneamente à condição inicial, atingindo assim a cura”. Agora, confronte-se com o da
Medicina convencional: “a doença resulta fundamentalmente de condições genéticas e
microbiológicas, contra as quais utilizam-se fármacos em doses ponderais no sentido de
paliar, suprimir, compensar ou eliminar os sintomas ou condições fisiopatológicas, o que
resulta na cura”. Ressalvando-se o caráter genérico, impreciso e superficial das
52
definições, pode-se proceder ao exercício de submetê-las aos critérios antes
mencionados (X = Homeopatia; Y = Medicina convencional):
1) segundo relatos (portanto, ainda dados não-científicos, já que não satisfazem as
condições gerais15) X pode ser mais precisa em certas condições (por exemplo,
doenças psicossomáticas e crônicas) que Y, e o inverso pode se dar em outras
condições (por exemplo, doenças agudas graves ou com muita lesão);
2) semelhante à anterior;
3) não é possível responder à esta condição, já que X não passou ainda pelo mesmo
volume de testes que Y;
4) semelhante à anterior;
5) parece (mesma condição que itens 1 e 2) que X contextualiza melhor problemas antes
isolados por Y.
Pode-se ainda supor como desnecessária a superação do item 6, considerando-se as
2 teorias como equivalentes (em relevância), e ambas adequadamente “simples”, dada a
complexidade do objetivo proposto (saúde/doença).
Quanto ao aspecto da faseabilidade da teoria homeopática, é possível proceder-se a
uma análise por partes Por exemplo:
- a hipótese da ação biológica de ultradiluições: é falseável, já que pode ser refutada ou
confirmada mediante experimentos, e portanto é uma hipótese científica, ao menos sob o
ponto de vista epistemológico popperiano;
15 Aqui valem as mesmas observações referidas na nota 14 (pág. 34), na medida em que os dadoshomeopáticos passam a satisfazer as condições gerais e se tornam, portanto, dados científicos.
53
- a hipótese da força vital: não é refutável a não ser que seja trocada por uma hipótese
refutável como a de “propriedades emergentes de sistemas” ou algo assim, já que uma
força (fisicamente) imaterial não pode ser negada nem confirmada, tornando-se então
uma hipótese pseudocientífica.
De uma forma geral, a Homeopatia submetida à uma análise falsificacionista perderia
a identidade dada por seu conjunto ao mesmo tempo que ganharia uma consistência em
suas partes assim desmembradas, transformando-se em algo como uma “homeologia” ou
próximo a isso. A postura epistemológica falsificacionista é bastante corrente na Ciência,
coexistindo de alguma forma no conjunto de valores científicos atuais ao lado de um
indutivismo sofisticado e de um convencionalismo. Mas já sofreu críticas e comentários
epistemológicos suficientemente elaborados que apontam suas inconsistências:
... a revolução Copernicana não ocorreu a partir da queda de um ou dois chapéus
da Torre de Pisa... nem os indutivistas nem os falsificacionistas dão um relato da
Ciência compatível (historicamente) com ela. Os novos conceitos de força e
inércia não surgiram como resultado de observação e experimentação
cuidadosa. Tampouco surgiram através da falsificação de conjeturas audaciosas
e da substituição contínua de uma conjetura audaciosa por outra. As formulações
iniciais da nova teoria, envolvendo concepções novas incompletamente
formuladas, foram mantidas com perseverança e desenvolvidas a despeito de
aparentes falsificações Apenas depois de um novo sistema de Física ter sido
projetado –processo que envolveu o trabalho intelectual de muitos cientistas por
vários séculos– é que a nova teoria pôde ser comparada com sucesso aos
resultados da observação e do experimento de forma detalhada. Nenhuma
54
explicação da Ciência pode ser aceita como suficiente a menos que possa
acomodar fatores como estes [CHALMERS, 2000].
A partir de análise, críticas e intenso diálogo, novas formulações epistemológicas
foram sendo propostas, indo além da proposição popperiana em diversas direções, e
serão objeto das seções seguintes.
55
3.5 PROGRAMAS DE PESQUISA – LAKATOS
Devido às inconsistências das propostas indutivista, convencionalista e
falsificacionista sobre o processo de produção do conhecimento científico, Imre Lakatos
(1922-1974), nascido na Hungria, propõe uma interessante e inovadora forma de
concebê-lo, entendendo que a evolução da teoria e da prática em Ciência se dá na forma
de programas de pesquisa.
Este seria constituído de uma série de proposições centrais e definidoras de uma
teoria, que formariam o seu núcleo irrefutável, o “coração” de determinado programa. Por
convenção, esse núcleo não seria mudado apesar de provas em contrário, mas antes ele
seria cercado de uma série de idéias ou hipóteses secundárias, que formariam um
cinturão protetor em torno do mesmo16. Estes sofreriam, enquanto necessário, mudanças
significativas em função da confirmação ou refutação dos fatos ou experimentos, o que
16 A irrefutabilidade convencionada do núcleo corresponderia ao que Lakatos denomina deheurística (método que consiste no procedimento de busca de um objetivo desconhecido com baseem critérios conhecidos [BULLOCK/STALLYBRASS,1977]) negativa; as progressões e regressõesdo cinturão, variáveis em cada programa são chamadas de heurística positiva [CHALMERS, 2000].
56
não traria nenhum ônus para o núcleo em si. Abandonar as idéias nucleares significa
abandonar o programa [LAKATOS, 1998].
Lakatos descreve que existiriam programas rivais, em determinados momentos
históricos, competindo entre si. Na medida em que um deles ascende em importância,
consistência e capacidade preditiva, é considerado progressivo em relação a seu rival,
que, em oposição, passa a ser considerado degenerativo. A progressividade ou
degenerescência de um programa não indicam cabalmente sua adoção total ou abandono
imediato respectivamente, mas apenas um relativo grau de sucesso do mesmo em dado
momento histórico. Somente a posteriori, através da retrospectiva histórica, é que se
pode afirmar mais decididamente sobre a preponderância de um determinado programa.
Lakatos defende a idéia de programa baseando-se nos exemplos históricos como o
de Newton, já citado anteriormente17: o programa “gravitacional”, cujo núcleo irrefutável
seria constituído pelas leis da gravitação mais o conceito de força gravitacional, foi
mantido apesar das críticas e evidências em contrário: as equações, de início, só eram
corretas se o Sol fosse considerado um ponto e não esférico, por exemplo. As evoluções
no tratamento matemático, o uso de telescópios mais sofisticados, o aprimoramento das
leis de refração adequados a estes, foram processos de adaptação no cinturão que
finalmente levaram à comprovação do núcleo. Portanto, a idéia de programas se
adequaria melhor aos exemplos históricos bem como seria um modelo epistemológico
17 página 27.
57
mais produtivo para as pesquisas atuais, já que não exige que programas rivais se
anulem um ao outro, favorecendo uma evolução mais “harmoniosa” da Ciência.
S. Chibeni faz, em seu estudo18, uma detalhada descrição de como a Homeopatia
pode ser encarada como um programa de pesquisa. Seu núcleo irredutível ou rígido,
baseado em Hahnemann, seria constituído por:
- lei da semelhança;
- totalidade dos sintomas;
- experimentação no homem são.
O cinturão protetor seria composto por uma série de outras características
homeopáticas como: dinamização, unicidade dos remédios, individuação, teoria das
doenças crônicas, importância dos sintomas peculiares, proeminência dos sintomas
psíquicos, agravação, dentre as mais destacadas, que poderiam ser refutados sem
comprometimento do núcleo.
Além disso, Chibeni argumenta consistentemente a favor de uma análise da
Homeopatia com base na discriminação entre seus componentes construtivos e
fenomenológicos. O vitalismo pertenceria à categoria das teorias construtivas, que
...envolvem proposições referentes a entidades e processos inacessíveis à
observação direta... postulados por sua “construção” a partir dessa suposta
estrutura fundamental subjacente [CHIBENI, 1998],
18 “A Questão da Cientificidade da Homeopatia” [in CHIBENI, 1998].
58
enquanto todas as características anteriores, descritas como núcleo e cinturão, fariam
parte de uma teoria fenomenológica,
... cujas proposições se refiram exclusivamente a propriedades e relações
empiricamente acessíveis entre os fenômenos... essas proposições descrevem,
conectam e integram os fenômenos, permitindo a dedução de conseqüências
empiricamente observáveis... é importante observar que essas duas categorias
de teoria não são conflitantes, no sentido que um mesmo conjunto de fenômenos
seja tratado por duas teorias, uma fenomenológica e outra construtiva; nesse
caso, a última vai além da primeira no nível explicativo, desse modo
complementando-a [CHIBENI, 1998].
Há a possibilidade dessa descrição explicar o surgimento das diferentes “escolas”
homeopáticas, umas privilegiando o componente fenomenológico da Homeopatia, como a
francesa, e outras o componente construtivo, como algumas argentinas; de qualquer
forma, por adotarem o mesmo núcleo, estariam trabalhando sempre dentro do mesmo
programa. A tendência da comunidade científica, dependendo, principalmente, se o
enfoque é mais realista ou mais instrumentalista, é considerar de mais alto valor uma
teoria fenomenológica em relação a uma teoria construtiva ou vice-versa, o que pode,
eventualmente, resultar numa maior valoração de certas características homeopáticas em
detrimento de outras. Isto possibilitaria novamente, como comentado sobre o
falsificacionismo, um desmembramento de sua concepção original, desejável para uns e
condenável para outros.
Considerada dessa forma, dentro da epistemologia lakatosiana, a Homeopatia deixa
de ser uma pseudociência e passa a adquirir caráter científico, como um programa rival
59
da Medicina convencional. De qualquer forma, segue-se uma reflexão: se o programa
não-convencional homeopático é rival do convencional médico, um deles é degenerativo
enquanto o outro progride. A resposta para a pergunta sobre qual cumpre qual descrição
é impossível dentro do modelo, e isso é admitido por Lakatos a respeito de sua proposta,
já que só a História pode responder a essa questão, em um momento e tempo
imprevisíveis. Do ponto de vista de cada programa, o seu é progressivo em relação ao
outro: para a Medicina convencional, a Homeopatia já teria degenerado há muito tempo, e
no entanto sua prática o nega, e até afirma o contrário; o inverso é algumas vezes
profetizado por homeopatas. E mesmo um programa que tenha se degenerado a ponto de
ter sido completamente abandonado, pode vir a ressurgir novamente de forma
imprevisível em um tempo futuro, como atestado novamente por Newton e seu conceito
de força, abandonado no curso da História e depois retomado de forma bem sucedida, ou
o conceito de éter que parece ressurgir modernamente, transformado na hipótese da
“matéria escura”, procurada hoje em dia por astrofísicos para melhor “acomodar” a
relação entre massa/taxa de expansão do Universo.
Por esse motivo, o modelo de programas de pesquisa é algumas vezes considerado
como insuficiente enquanto uma epistemologia prospectiva, sendo mais uma descrição
historicamente consistente da evolução da Ciência.
60
3.6 PARADIGMAS - KUHN
A visão epistemológica do americano Thomas Kuhn (1922-1996) é, involuntariamente
talvez, menos conhecida em seu conjunto do que pela introdução do conceito de
paradigma19, sendo tão indiscriminadamente utilizado na atualidade que corre o risco de
ter seu sentido esvaziado antes de ser plenamente compreendido.
Até aqui, todos os modelos epistemológicos analisados procuram uma explicação
para a evolução do conhecimento científico apoiando-se mais em uma história interna,
supondo-se uma lógica e um conjunto de características próprias e exclusivas da Ciência,
do que em uma história externa, interpretada ora como história geral, ora como sociologia,
ora como psicologia, ou combinações das mesmas, apoiando-se nesta última em maior
ou menor grau para corroborar seus modelos, mas procurando independer-se dela na
busca de seus sentidos próprios.
19 Do grego para=proximidade e deikmen=mostrar, modelo, exemplo [WEBSTER, 1951;JACKSON, s/d].
61
De forma diversa, Kuhn passa a integrar com muito maior intensidade elementos da
história externa como determinantes na construção da Ciência. Nesse sentido entra a
conceituação de paradigma,
Sistema de pressuposições, estrutura absoluta de pressupostos que alicerça uma
comunidade (científica, na proposta kuhniana estrita) [KUHN, 1991].
O conceito pode ser desdobrado em vários sentidos:
- sociológico, onde alicerça o conjunto de valores, normas, técnicas e crenças
partilhados pela comunidade científica;
- epistemológico, onde representa o esquema de pensamento para a explicação e
compreensão da realidade;
- metafísico, onde representa uma determinação mais ampla e mais difusa que a teoria,
ou seja, não é uma teoria e pode funcionar sem ela, sendo nessa caso mais extenso
que a teoria [TEIXEIRA, 1995].
Portanto, a noção de paradigma, em maior ou menor grau, implica em uma noção
mais fundamental no sentido literal, já que indica que os aspectos filosóficos,
sociológicos e mesmo psicológicos de uma comunidade e de uma cultura constituem
os próprios fundamentos que norteiam e delimitam os pressupostos científicos de uma
época. Para Kuhn, há um caráter evolutivo, porém não necessariamente progressivo,
já que uma etapa não sucede à outra por ser melhor per se, mas por trazer melhores
respostas para um determinado momento histórico-cultural. Além do mais, as
sucessões não se dão tranqüilamente, mas na forma de revoluções.
62
Kuhn entende que, na medida que um paradigma se estabelece, é constituída a
fase da denominada Ciência normal; onde todo o esforço da comunidade científica
está organizado e dirigido em um determinado sentido, pois todos concordam quanto
capacidade resolutiva daquele determinado paradigma. É uma fase de forte
elaboração matemática, da formalização e normalização dos experimentos e
condutas. Anomalias e possíveis refutações são consideradas secundárias ou
temporárias, pois há a certeza implícita de que, na medida que progride a exploração
daquele modelo, elas serão elucidadas.
No momento em que as anomalias se avolumam e o modelo parece dar mostras
de esgotar sua capacidade explicativa, isto é, dar respostas de acordo com as
necessidades históricas, sociais e culturais de determinada em determinado momento,
sobrevirá a crise, onde o paradigma passa a ser contestado, e diversos membros da
comunidade científica passarão a buscar novos modelos. É uma fase onde predomina
a incerteza, a intuição e a criatividade mais “artística” do que propriamente o rigor
formal e a matematização plena. Novas visões, regularidades, padrões e noções
passam a surgir, e, invariavelmente, o novo paradigma surgirá em oposição ao antigo:
são irredutíveis, isto é, um não pode ser explicado pelo outro, pois muitas vezes suas
visões são diametralmente opostas. A historiografia e os manuais científicos, guiados
por pressupostos de simetria e normalidade, se encarregariam de, passada a crise,
reescrever a história como uma sucessão contínua e suave de progressão rumo
sempre a uma maior e melhor Ciência.
Resgatando elementos perdidos nessa mesma história, Kuhn sugere que a
evolução se dá através de saltos descontínuos, ainda que discretos. Há aqui, nos
63
próprios termos escolhidos, um paralelismo entre a visão clássica, de tempo e espaço
contínuos e átomos indivisíveis da mecânica clássica e o salto para o espaço-tempo
relativístico e o átomo quântico descontínuo:
...consideramos revoluções científicas aqueles episódios de desenvolvimento
não-cumulativo nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente
substituído por um novo, incompatível com o anterior... de forma muito
semelhante às revoluções políticas, as revoluções científicas iniciam-se com um
sentimento crescente... de que o paradigma existente deixou de funcionar
adequadamente na exploração de um aspecto da natureza... o sentimento de
funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a
revolução... o historiador da Ciência que examina as pesquisas do passado...
pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda
com ele o próprio mundo... os cientistas adotam novos instrumentos e orientam
seu olhar em novas direções. E o que é mais importante: durante as revoluções,
os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos
familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente... as bem
conhecidas demonstrações relativas a uma mudança na forma (Gestalt) visual
demonstram ser muito sugestivas, como protótipos elementares para essas
transformações [KUHN, 1991].
Ampliando a noção de paradigma para grandes períodos históricos e integrando
diversas áreas da cultura e atividade humanas, pode-se dizer que antes do Renascimento
um paradigma regia sob os seguintes signos sintéticos:
- primazia da natureza sobre o homem;
- raciocínio analógico;
64
- holismo, integração do todo às partes, animismo, vitalismo;
- espaço fechado e integrado;
- tempo como eterna sucessão de ciclos ;
- regimes tribais, monárquicos, teocráticos;
- economia de subsistência, agrícola, artesanal;
- matriz energética humana, animal, vegetal;
- música modal (ragas indianas, cânticos tibetano, canto gregoriano);
- arte sacra, à serviço da relação com o espiritual/divino.
Após o Renascimento, as mudanças se deram de:
- primazia do homem sobre a natureza;
- raciocínio analítico;
- materialismo, mecanicismo, reducionismo;
- espaço aberto e infinito;
- tempo contínuo e progressivo;
- regimes nacionalistas, republicanos;
- economia de massa, tecnológica, industrial;
- matriz energética petrolífera, elétrica, nuclear;
- música tonal (polifonia medieval, classicismo e romantismo sinfônicos);
- arte profana, à serviço da representação da realidade objetiva [STORACE, 1999].
A Medicina convencional encontra-se, portanto, ligada ao paradigma clássico,
enquanto a Homeopatia tem raízes em ambos, antigo e clássico, lembrando, por
outra via, a superposição de teorias fenomenológica e construtiva já citada. Essa
65
situação “híbrida”, motivo de crítica “convencional”, passa a ser fonte inspiradora
“não-convencional” em momentos críticos:
Cabe, aqui, um critério de distinção que KUHN aplica entre Ciência e arte, para
em seguida derivá-lo à Medicina. Para KUHN, resumidamente, a Ciência se
serve da estética para resolver problemas técnicos, enquanto a arte se serve da
técnica para resolver problemas estéticos. Além disso, na Ciência a adoção de
um novo paradigma implica na desconsideração de um anterior, enquanto que na
arte, embora se busque o novo, um paradigma antigo ainda é uma fonte viva de
inspiração. Por último, a Ciência (básica), na busca de um valor científico, não se
dirige a não ser a si mesma (comunidade científica), enquanto que na arte,
buscando-se expressar um valor individual, dirige-se a uma audiência mais
coletiva.
Tecendo um paralelo com a Medicina, nota-se que o componente “Ciência” que
ela carrega é apenas uma parte de uma questão mais complexa. A Medicina é
Ciência na medida em que se baseia na Biologia (que por sua vez se baseia na
Química orgânica, e esta na Química e Física gerais). Mas a Biologia humana se
difere em muitos graus da de uma bactéria, mesmo assemelhando-se em
questões gerais como a genética ou metabolismo celular. A Medicina é também
permeada por questões referentes à Psicologia, Antropologia e Sociologia. E,
além do mais, à semelhança da Arte, se dirige a uma audiência mais ampla, e
sua busca não é somente a científica, estética ou metafísica (das quais se
utiliza), mas uma ainda mais complexa e simultaneamente pragmática
[STORACE, 2000].
66
Kuhn, na medida em que relativiza sua análise epistemológica (apesar de não ter se
considerado um relativista, era muitas vezes assim caracterizado), abre definitivamente as
portas para que se trate a Ciência e suas relações com todas as outras áreas da cultura
humana de uma forma mais criativa e produtiva.
67
3.7 RELATIVISMO – FEYERABEND
Uma boa definição sintética da obra de Paul Feyerabend, austríaco, (1924-1994)
consta da contracapa de sua obra Adeus à Razão, onde é dito que faz
... uma crítica acerada à racionalidade ocidental e à concepção objetivista da
Ciência. Esta crítica, porém, está aliada a um profundo respeito pelos saberes e
tradições de outras civilizações e culturas. Mais do que um iconoclasta da
Ciência, Paul Feyerabend é um democrata radical do saber [FEYERABEND,
1991].
“Anarquista epistemológico” e proponente de um “vale tudo” científico também foram
características à ele atribuídas, mas que não fazem jus à profundidade e extensão de sua
obra. Seu trabalho é mais crítico do que construtivo, já que não se dispõe a substituir uma
filosofia de Ciência por outra melhor, mas sim explicitar os limites e deficiências de
qualquer epistemologia, bem como, e principalmente, tornar claro o uso ideológico que é
feito da Ciência no mundo contemporâneo.
68
Feyerabend aponta que uma discussão epistemológica que se pretenda isenta de
elementos de uma “história externa” é uma discussão artificial, pretensiosamente
desobrigada e desvinculada das raízes e conseqüências reais e concretas da Ciência em
relação à cultura e a sociedade que a geram. Nesse sentido, alia-se a Kuhn, mas vai mais
além: não existe nenhuma história “interna” ou “externa”. Considera que esse
“descolamento” abstrato, cuja justificativa filosófica consciente ou inconsciente, remonta
aos pré-socráticos, tem por objetivo legitimar a Ciência como um saber detentor de uma
“verdade” superior e portanto inquestionável a não ser por quem a faz, trazendo como
seus piores resultados um alheamento artificial entre sujeito/sociedade, ser
humano/cultura, mente/corpo, observador/objeto, e assim por diante. Isto é responsável
direto por uma democracia e humanitarismo de “fachada” que esconde de fato uma
postura autoritária, totalitária e destrutiva sob os pontos de vista ético, político e social,
característicos da atual civilização ocidental. Isso é corroborado na visão de outros
filósofos pela observação de que é necessário:
... combater aquilo que pode ser chamado de ideologia da Ciência, tal como
funciona em nossa sociedade. Essa ideologia envolve o conceito dúbio de
Ciência e o conceito igualmente dúbio de verdade, freqüentemente associado a
ele, geralmente na defesa de posições conservadoras... como deverá estar claro,
meu próprio ponto de vista é de que não existe um conceito universal e
atemporal de Ciência ou de método científico que possa servir aos propósitos
exemplificados... não temos recursos para chegar a tais noções e defendê-las.
Não podemos defender ou rejeitar legitimamente itens de conhecimento por eles
se conformarem ou não a algum critério pronto e acabado de cientificidade
[CHALMERS, 2000].
69
Para Feyerabend, nenhum saber tem uma ascendência e um conteúdo de “verdade”
superior a qualquer outro; Ciência, religião, os saberes e práticas das diferentes culturas e
povos são equivalentes em importância e relevância em um plano geral, ganhando
importância em relação às escolhas e opções de cada povo, daí o relativismo do título.
Essa escolha não deve ser imposta ou “vendida”, podendo ser no máximo argumentada
ou discutida, respeitando-se o direito de escolha de cada cultura. Recomenda que esse
processo deve se dar por uma verdadeira escolha democrática, a melhor das formas
existentes de decisão coletiva.
Além do relativismo ser sua proposta epistemológica explícita para uma sociedade,
Feyerabend defende que a própria noção de Ciência, como sinônimo de saber ou
“verdade”, é intrinsecamente relativa, regional e dependente, em última análise, da visão
de mundo de uma cultura, e esta por sua vez está ancorada no conjunto das
experiências históricas bio-psico-sociais, conscientes ou inconscientes, de um povo, não
havendo, portanto, nada como “leis universais absolutas”. Portanto, apesar de concordar
com o realismo, isto é, com a existência de um mundo real que se dá a conhecer pelos
sentidos, as noções daí derivadas não podem ser generalizadas, por ser impossível fugir
de um enquadramento cultural sempre pré-existente, sendo sempre respostas parciais e
validamente regionais a respeito do mundo.
Critica fundamentalmente, então, o uso ideológico da Ciência como saber supremo e
a própria noção da Ciência sobre si mesma de que é a única ou melhor forma de
descrever e entender o universo. Alinhado com a epistemologia de Ernst Mach (1838-
1916), físico nascido na antiga Tchecoslováquia (atual Morávia), que defende o uso de
um instinto criativo aliado à investigação científica (rejeitando, portanto, as propostas
70
indutivista, positivista ou falsificacionista estritas), não é, portanto, contrário à Ciência
como uma legítima e até mesmo refinada busca do saber, mas se posiciona contra a idéia
de que a objetividade da Ciência é a “virtude” que a permite superar as demais visões;
relativiza essa posição como uma dentre muitas igualmente possíveis, e concorda que
essa é a opção preponderante da cultura ocidental na escolha de como prefere e
pretende se situar perante as questões que o mundo coloca.
Nesse sentido, aponta que as soluções ou visões holísticas não são nada mais do que
pseudo-relativas: pretendem compreender e respeitar as diferentes formas e noções
sobre o mundo, para novamente tentar integrá-las e subjugá-las sob novas visões
totalizantes e totalitárias, cometendo a mesmo erro epistemológico apontado
anteriormente. Esta questão resulta numa importante advertência a alguma consideração
homeopática que, por reconhecer-se holística e, portanto, detentora de um saber de
alguma forma melhorado, pretenda transformar-se numa novo e próxima noção absoluta
de verdade médica.
Pode-se dizer que para Feyerabend não há uma noção de pseudociência, pois não há
um parâmetro absoluto, ou, mais tecnicamente, não há uma demarcação absoluta entre
Ciência ou não-Ciência que se possa fazer. A demarcação, se houver, se dá de forma
relativa na medida que uma cultura ou população se considera “bem”: melhor, mais feliz
ou mais adaptada ao mundo com determinada escolha, e que isto não é subjetivo, apesar
de difícil objetivação, mas concreta, individual e coletivamente, e historicamente
determinado. Introduz noções qualitativas deliberadamente, apontando que a predileção
técnica da Ciência por parâmetros sempre quantitativos é uma distorção que afasta o
valor qualitativo que o ser humano atribui às coisas como irrelevante ou de menor
71
importância, sendo que em sua epistemologia, de raiz declaradamente protagórica (de
Protágoras, 485-411 a. C., filósofo grego, autor da frase “O Homem é a medida de todas
as coisas”, base da proposição de número cinco de Feyerabend), é a noção a que deve
se atribuir maior consideração.
Sustenta, além da já citada, mais 10 proposições chamadas de relativísticas, das
quais se destacam:
– indivíduos, grupos, civilizações inteiras podem se beneficiar com o estudo de
culturas, instituições, idéias estranhas (por muito fortes que sejam as tradições
que sustentam as sua próprias opiniões) Por exemplo... médicos (podem se
beneficiar) com um estudo do I Ching ou com um encontro com curandeiros
africanos... cientistas,... com um estudo de métodos e pontos de vista não
científicos... Registre-se que não se recomenda... e muito menos se transforme
semelhante estudo num requisito metodológico... apenas... que pode ter efeitos
considerados benéficos...
– as sociedades dedicadas à liberdade e à democracia deveriam ser construídas
de molde a dar a todas as tradições igualdade de oportunidades (e de direitos)...
a Ciência deve ser tratada como uma tradição entre tantas e não como um
parâmetro de avaliação do que é ou não é, do que pode ou não pode ser aceito.
– os cidadãos, e não grupos especiais, têm a última palavra na decisão do que é
verdadeiro ou falso, útil ou inútil para sua sociedade.
– o mundo, tal como é descrito pelos cientistas e antropólogos, consiste em
regiões (sociais e Físicas) com leis e concepções específicas da realidade...
temos diferentes pontos de vista, válidos em diferentes áreas, mas inaplicáveis
no exterior... alguns desses pontos de vista são mais pormenorizados –
72
constituem as nossas teorias científicas... a tentativa de fazer prevalecer uma
verdade universal (uma maneira universal de descobrir a verdade) tem dado
origem à catástrofes no domínio social e a formalismos sem conteúdo
combinados com promessas no campo das Ciências naturais que nunca virão a
ser cumpridas.
– a noção de uma verdade objetiva ou de uma realidade objetiva que seja
independente da vontade humana, mas que possa ser descoberta através do
esforço humano, faz parte de uma tradição especial que, avaliada pelos seus
próprios membros, acumula tanto êxitos como insucessos... foi sempre
acompanhada, e freqüentemente misturada, com tradições mais práticas
(empíricas, “subjetivas”) e deve ser combinada com essas tradições a fim de
conduzir a resultados práticos.
– para cada afirmação, teoria, ponto de vista acreditado (como verdadeiro) com
bons motivos, existem argumentos reveladores de uma alternativa antagônica
pelo menos tão boa ou melhor ainda [FEYERABEND, 1991].
Nesse sentido, o relativismo se mostra amplamente favorável à Homeopatia, no
sentido de um saber, no seu conjunto, válido, criativo e eficiente nas respostas que dá à
suas questões: é fruto de uma intuição criativa (semelhança, ultradiluições), submetida
mas não subordinada à uma investigação empírico-experimental, cujos parâmetros
qualitativos (patogenesia, individualização) são de maior valor sobre os quantitativos,
respondendo “regionalmente” (do ponto de vista ocidental) com uma prática relevante ao
“bem-estar” (médico, “saúde”) dos indivíduos e população, de forma significativa20. Mas
20 Vide nota 1 (pág. 1).
73
não é exclusivo: todas as Medicinas não-convencionais adotadas no Ocidente, e
especialmente no presente caso, 3o Mundo, Brasil, consideração importante em se
tratando desta epistemologia, e inclusive a Medicina convencional também são
igualmente consideradas, e qualquer sinal discursivo ou factual de uma suposta
preponderância a priori de qualquer uma delas sobre outra, no sentido de uma maior
validade absoluta de sua visão, deve ser claramente rejeitado.
A epistemologia de Feyerabend parece se restringir a mostrar como não se deve
considerar os modelos da Ciência; mas como, então, se deve considerá-los numa
proposta relativística é deixado em aberto. Uma possível resposta à esta questão será
contemplada a seguir.
74
3.8 COMPLEXIDADE – MORIN
O universo é extremamente complexo, e, dentre essa complexidade, os seres
vivos apresentam-na da forma mais elaborada; todos os átomos de tudo o que existe
foram forjados a partir da singularidade inicial, e os átomos que formam os sistemas vivos
o foram, particularmente, nas fornalhas estelares há bilhões de anos [REEVES, 1995].
Portanto, são feitos literalmente de matéria cósmica ancestral. As moléculas que
informam as estruturas das espécies vêm se perpetuando há milhões de anos de
evolução no planeta, em estreita simbiose, e no entanto, em cada ser vivo, os átomos que
o compõem são rápida e periodicamente reciclados: o que se mantém é uma informação
auto-organizadora [MATURANA&VARELA, 1995]. A vida se estabelece como um fluxo de
matéria e energia que altera local e temporalmente a entropia cósmica
[PRIGOGINE&STENGERS, 1990], por um período determinado mas dificilmente
determinável, sustentando-se, num aparente paradoxo, entre o “cristal e a fumaça”
[ATLAN, 1992], em um universo cuja microestrutura parece se revelar de forma
holonômica [BOHM, 1989]. O ser humano individual, inserido e originado deste fluxo
75
aparentemente caótico [LORENZ, 1993], processa a informação, inconscientemente
desde sua concepção, e em parte conscientemente depois, na forma de intuição,
sensação, sentimento, pensamento, razão, em padrões ainda mais complexos de
organização social e cultura, e com isso passa o olhar reflexivamente para todo o
processo.
A descrição anterior é apenas uma dentre muitas possíveis já concebidas pelas
inúmeras culturas que habitaram e habitam o planeta. Particularmente, a civilização
ocidental passou por concepções cosmo-teo-gônicas holísticas ancestrais e ainda
presentes, para cosmologias científicas de diversos matizes, em geral mecânicas e
redutoras, para tentar responder às questões e problemas que o mundo apresenta.
O evento da “globalização”, se por um lado uniformiza e destrói, por outro permite o
diálogo e a relativização dos conceitos totalizadores ocidentais. De qualquer forma, e
dentro de uma perspectiva relativizante, a busca ocidental é marcada desde os primórdios
pré-socráticos pela busca racional de uma Ciência que gira continuamente entre o
fenômeno e a teoria. O possível esgotamento da razão totalizante não nega sua
importância, mas antes aponta para uma necessidade da cultura ocidental, em particular,
respeitando sua escolha relativa e coletiva, buscar novas formas de compreensão e
vivência dos aparentes antagonismos entre o todo e a parte, o coletivo e o individual, o
geral o local, o regular e o irregular, o quantitativo e o qualitativo, as irredutibilidades e o
acaso, o “acaso e a necessidade” [MONOD, 1971], o egóico e o ecológico planetário
[LOVELOCK, 1991].
76
Uma dessas possibilidades é a proposta de Edgar Morin (1921-), francês, que pode
ser designada como o de uma epistemologia da complexidade. Obviamente, é uma
proposta crítica de qualquer reducionismo ou simplificação, que gera:
... um enclausuramento ou fragmentação do saber... o ponto de vista das
Ciências da natureza exclui o espírito e a cultura que produzem estas mesmas
Ciências, e não chegamos a pensar o estatuto social e histórico das Ciências
naturais. Do ponto de vista das Ciências do homem, somos incapazes de nos
pensarmos a nós, seres humanos dotados de espírito e consciência, enquanto
seres vivos biologicamente constituídos... assim, o pensamento redutor atribui a
“verdadeira” realidade, não às totalidades, mas aos elementos; não às
qualidades, mas às medidas; não aos seres e aos entes, mas aos enunciados
formalizáveis e matematizáveis... comandado por disjunção e redução, o
pensamento simplificador não pode escapar à alternativa mutilante quando
considera a relação entre Física e Biologia, Biologia e antropologia: ou bem
disjunta, e foi o caso do “vitalismo”, que se recusava a considerar a organização
físico-química do ser vivo... ou bem reduz a complexidade viva à simplicidade
das interações físico-químicas... [MORIN, 1990].
Portanto, fica claro que para Morin o vitalismo ou qualquer outro tipo de holismo é
uma alternativa oposta, simetricamente redutora e parcial, ao materialismo, nenhuma nem
outra sendo capaz de dar conta da complexidade, como deixa claro a seguir comentando
sobre a teoria dos sistemas:
...tudo aquilo que era matéria no século passado tornou-se sistema (o átomo, a
molécula, o astro), tudo aquilo que era substância vital tornou-se sistema vivo;
tudo aquilo que é social foi sempre concebido como sistema... (mas isso)
77
resolveu aparentemente o problema... o princípio novo (subjacente) é o holismo,
que procura a explicação ao nível da totalidade, e se opões ao paradigma
reducionista, que procura a explicação ao nível dos elementos de base. Ora, eu
quereria demonstrar que o holismo depende do mesmo princípio simplificador
que o reducionismo ao qual se opõe (idéia simplificada do todo e redução do
todo)... (é necessário postular-se) um novo princípio de conhecimento que não é
o holismo... (como o da maneira já proposta por Pascal – físico e filósofo francês,
1623-1662 – de que) “ considero impossível conhecer as partes sem conhecer o
todo, como conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes”... [MORIN,
1990].
Como adequar-se a essa questão sem cair no paradoxo da irredutibilidade de dois
conceitos opostos e complementares (reducionismo e holismo) é a tarefa que se impõe
Morin, resultando em seus mandamentos da complexidade, dos quais se destacam:
- princípio da universalidade científica (leis e conceitos gerais) válido porém
insuficiente, devendo ser complementado e articulado com a percepção da
singularidade local;
- necessidade de inclusão de uma história, em seu sentido lato, bem como no sentido
físico (irreversibilidade entrópica) e quando for o caso, biológica (ontogenia, filogenia)
para compreensão dos fenômenos;
- conceituação de uma causalidade complexa, que envolve, nos seres vivos, a questão
da auto-organização associada a noção do acaso, do erro e do aleatório como co-
determinantes dos processos;
- distinção mas não disjunção entre observador e objeto, objeto e ambiente, ser vivo e
ecossistema, ser humano e cultura;
78
- pensamento baseado em uma dialógica (uma ou mais lógicas), nas noções
complementares e eventualmente antagônicas, descrito, então, como um pensamento
complexo.
Uma reflexão de Morin, sociólogo, sobre “duas sociologias” que vê em curso pode
muito bem ser adaptada para a Medicina. Há uma Medicina (convencional) que se
pretende científica, que se serve das noções mecânicas e energéticas para eliminar a
idéia de um sujeito individual que se enferma em troca de uma enfermidade que o
acomete, privando-se no processo, da noção de vida. E há uma Medicina (não
convencional) que resiste a esta cientificação, que fala de um sujeito vital essencial no
processo, cuja consideração acaba por supervalorizar a vitalidade, presumindo-a como
único parâmetro digno de consideração.
De um ponto de vista médico convencional, algo como a complexidade é quase uma
necessidade evolutiva. Do ponto de vista homeopático, o pensamento complexo pode ter
várias contribuições possíveis. O princípio universal e simultaneamente local é algo bem
familiar à Homeopatia, com a semelhança, a patogenesia e a posologia peculiar tendo
sido originalmente concebidas como princípios gerais válidos somente se submetidos à
realidade do indivíduo. Quanto à história, a biopatografia, ampliação da anamnese para
uma biografia que relacione os eventos e autopercepções do indivíduo aos padrões
históricos patológicos, já é bem integrada à realidade homeopática; falta ainda uma
melhor inclusão das noções das psicologias analíticas, bem como uma reformulação da
idéia de uma “narrativa pura” em troca das auto-hetero-percepções na relação
indissociável médico-paciente durante o percurso terapêutico. Um neovitalismo deve
passar pela reflexão da causalidade complexa, das questões da autoorganização
79
biológica e da neotermodinâmica caótica, dentre outras, para, no sentido da epistemologia
de Morin, deixar para trás a disjunção holística e superar um pensamento ainda
simplificador.
De qualquer forma, fica aqui a possibilidade de uma noção que respeite a
complexidade da vida e do mundo, ao mesmo tempo que respeita a relatividade do
conteúdo de verdade de qualquer noção, sintetizada, mas não simplificada, na idéia de
que
... hoje diríamos aos vitalistas: têm razão em insistir no aspecto maravilhoso da
vida. Mas é necessário alargá-lo a toda a matéria. Aos mecanicistas diremos: têm
razão em insistir na continuidade entre a matéria e o ser vivo, mas nem um nem
outro se reduzem a uma mecânica cega [REEVES, 1995].
80
4. CONCLUSÕES
O presente estudo, antes de fechar qualquer proposição totalizadora e assertiva,
pretendeu abrir-se para as múltiplas possibilidades de interpretação que se apresentam
tanto de um ponto de vista histórico quanto epistemológico, e sua conclusão procura
subordinar-se a essa orientação.
Do ponto de vista histórico, a resposta para “O que é Homeopatia” pode ser
evidentemente situada dentro das principais correntes filosóficas que regeram a evolução
do moderno projeto científico ocidental. Seu cientificismo é confirmado pela história de
que é feita. Seu pré-cientificismo só é caracterizado historicamente na medida em que os
aspectos clássicos da Ciência também são, no curso de sua evolução, considerados pré-
científicos, e então essa categoria passa a ser igualmente estendida à toda Medicina
ocidental, convencional ou não, que se enquadre nesses termos.
Portanto, a partir da leitura histórica proposta, a Homeopatia não pode ser designada
de nenhuma forma como um culto ou uma seita dogmática. Seus estatutos e proposições
não são de natureza religiosa, pelo menos não mais do que os estatutos e proposições
originais da Ciência. Nesse sentido, o caráter histórico científico da Homeopatia deve ser
enfaticamente destacado: a Homeopatia nasce e se desenvolve em sua maior parte
dentro do modelo indutivo-experimental que caracteriza o nascimento da Ciência
ocidental. Apenas depois de bem estabelecido esse panorama pode-se passar ao longo
momento histórico posterior, em que a norma científica determina a inflexão na direção
positivista, durante a qual quanto mais os saberes se afastavam do rigor matemático,
81
tanto mais eram considerados não-científicos. A seguir, essa norma passa a ser
insuficiente como demarcação estrita do que pode ou não ser considerado Ciência, como
visto na seção seguinte. A partir da evolução histórica-epistemológica posterior, a própria
crítica de um pseudo-cientificismo pode ser aplicada a toda postura baseada na
convenção clássica.
Do ponto de vista epistemológico, as mudanças e transformações sobre como se dá o
processo de conhecimento científico mostram variados procedimentos internos na busca
de modelos sobre a realidade, característicos e exclusivos do fazer e devir da Ciência, ao
mesmo tempo que se mostram mais dependentes da cultura e sociedade em que está
inserida do que se supunha tempos atrás, dessa forma procurando responder a “O que é
Ciência”: uma busca de um novo saber rigoroso e totalizante, que passa a excluir de sua
esfera tudo o que não pode ser reduzido às suas normas, para então mais recentemente
flexibilizar-se na relativização de seus conceitos em face da complexidade de seus
objetivos.
Portanto, a Homeopatia pode ser analisada de diferentes formas quando confrontada
à evolução do pensamento epistemológico. Surge orientada pelo pensamento indutivo,
apresenta dificuldades ainda não superadas pela convenção clássica e tem seu caráter
científico positivo negado. Algumas de suas proposições falseáveis passam a poder ser
consideradas científicas, uma vez desmembradas de seu conjunto, conjunto esse que
aponta para um novo paradigma e que pode ser considerado legitimamente um programa
de pesquisa científico. Uma vez restituído seu papel científico dentro desses critérios,
uma crítica relativa o situa como um dos possíveis saberes (médicos) social-comunal-
82
culturalmente relevantes para que se obtenha uma nova noção complexa de Ciência e do
mundo.
História e Epistemologia, da forma como apresentadas, respondem múltipla e
complexamente à pergunta inicial sobre se “A Homeopatia é científica”: afirmativamente,
com relação às suas origens histórico-epistemológicas; variavelmente, ao longo da
evolução da Ciência. Surge então que o diálogo crítico e democrático entre os diferentes
discursos epistemológicos e o discurso homeopático pode ser produtivo para ambos os
lados, historicamente ligados, uma vez que não haja submissão ideológica ou
desqualificação apriorística.
O caráter evolutivo e até certo ponto aberto da Ciência é sua principal e grande
vantagem, a flexibilidade e possibilidade de diálogo democrático, quando presentes, suas
melhores características relativas que a tem tornado uma melhor opção de visão de
mundo. Seu caráter ideológico é idêntico a quaisquer ideologias de cunho filosófico e/ou
político e/ou religioso que pretenderam ou pretendam circunscrever o mundo dentro de
sua visão. Já suas verdades são relativas à escolha que uma comunidade faz, consciente
e inconscientemente, de seus valores materiais, éticos e espirituais.
A Homeopatia e a Medicina convencional, sob certos aspectos, são como os dois
lados da mesma moeda do remoto projeto baconiano, na Medicina: ambas inspiradas
pelo sonho de substituição do obscurantismo metafísico pelas luzes da razão esclarecida,
trocando a reverência totalitária perante o divino pela admiração totalizante da simetria
natural. Uma face da moeda onde números são talhados, revelando as características
mais técnicas ou tecnológicas, a tendência reducionista de explicar o todo pelas partes;
83
outra face onde se vê um rosto humano, como a representar a medida humana, a
tendência a explicar as partes pelo todo. Fadadas a não se olharem face a face, a via de
comunicação possível é por meio da própria matéria de que são feitas. Essa eterna
tensão dialética lembra as mitologias maniqueístas a respeito de uma gemelaridade
antagônica originada de um mesmo princípio. Nem apenas reducionismo, nem apenas
holismo, aspectos opostos e espelhados de um mesmo olhar, um dentre muitos.
Talvez o futuro aponte uma possibilidade de superação pela aceitação de que a
complexidade do mundo não se pode reduzir ou integrar a um sistema somente pela
simplicidade e simetria. Talvez uma sociedade que consiga enxergar o belo também na
irregularidade, na assimetria e no acaso venha a se tornar uma sociedade menos sectária
e menos egoísta, mais tolerante e mais justa, mais equilibrada nos seus muitos e
necessários desequilíbrios. Tal sociedade engendrará uma Ciência que compreenda os
paradigmas que a geram, que se percebe como programas históricos em
desenvolvimento, e que se norteará por pressupostos relativísticos na busca de uma
apreensão complexa da natureza. Uma Ciência em que a Medicina convencional e uma
Medicina não-convencional como a Homeopatia estarão lado a lado, de fato e de direito,
à serviço do ser humano.
84
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