UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
CIÊNCIAS SOCIAIS
ANTROPOLOGIA II
MARCELO COPETTI ENDRES
Resenha sobre o capítulo 9 de “A Interpretação das Culturas” de
Clifford Geertz.
PORTO ALEGRE
2013
“Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos Balinesa”.
Capítulo 9. “Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos
Balinesa”.
Escrito por Clifford Geertz e publicado em 1973 no livro “A Interpretação
das Culturas”, o texto, além de uma acurada descrição sobre a briga de galos
balinesa (e, por isso, do povo balinês), busca algo para além de leis universais
como ocorre nas ciências experimentais. Para isso, é colocada em prática uma
nova metodologia antropológica. Na qual a cultura passa a ser vista como uma
rede de significados e a sua análise como uma hermenêutica a procura desses
significados. Assim, passamos a ver cultura como um conjunto de textos que são
os “escritos” do imaginário de uma sociedade. Na briga de galos temos um
excelente exemplo dessa etnografia na prática.
A princípio, nos relata Geertz, ele e sua mulher eram tratados com uma
dura indiferença. Com exceção de seus hospedeiros e do chefe da aldeia, os
balineses agiam como se eles (os estrangeiros) não existissem. E isso é comum
em Bali. Os dois só passam a ser “reais” depois que experienciam uma fuga da
polícia em uma briga de galos abortada. E a sua aceitação é calorosa, repentina e
generalizada (o que também é comum em Bali). Na aldeia, eles eram agora o
centro das atenções. Houve certa identificação porque os dois também haviam
fugido da polícia ao invés de se apresentarem como “brancos”. E o episódio foi
importante porque colocou o antropólogo em contato com a explosão emocional
que é a briga de galos.
A briga de galos é parte do estilo de vida balinês. Elas representam, para
os homens, o que é ser um balinês. Mais do que uma briga de galos, há uma briga
entre homens. Existe uma enorme identificação psicológica entre os homens e
seus galos. Está claro que mulheres não participam e sequer assistem as brigas.
Além de figura da masculinidade, a palavra Sabung (galo) é usada para “herói”,
“homem de valor”, “candidato político”, “garanhão” e etc. Os homens despendem
muito tempo cuidando de seus galos e discutindo sobre eles. Os animais recebem
alimentação especial e até banhos cerimoniais.
Além da expressão personalista de seu dono, o galo representa parte do
instinto reprimido do balinês: a animalidade. Isto porque os balineses repudiam
qualquer comportamento semelhante ao bestial. Aos bebês, por exemplo, não se
lhes permite que engatinhem. O galo identifica para o homem aquilo que ele teme
e ao mesmo tempo tem admiração. O bestial é também o demoníaco. A briga de
galos é, também, um sacrifício de sangue oferecido para apaziguar os demônios e
a animalidade. O dono do galo vencedor ao recolher a carcaça do perdedor sente-
se ao mesmo tempo uma satisfação animal e um desconforto social.
Os embates duram entre três e quatro horas e envolvem dez ou nove
brigas. Ao redor dela junta-se uma multidão silenciosa (e extremamente
barulhenta no momento das apostas). O árbitro, que é cidadão extremamente
reputado, tem autoridade absoluta e sabe as regras que são escritas em folhas de
palmeira. Por muito tempo, levar o galo para a briga era exercício de cidadania. E
essa ligação com a vida coletiva, por mais discreta que seja, permanece intacta.
As apostas são ponto fundamental do jogo. Existem dois tipos: apostas
centrais e entre os espectadores. As apostas centrais são grandes e equiparadas
e coletivas (entre amigos, familiares e facções). As periféricas são de pequeno
valor, com vantagens do tipo (10-9, 7-6 ou 2-1) e individuais. As centrais são mais
“importantes” e envolvem um jogo psicológico de status e honra, enquanto as
periféricas se constituem de uma “ordem caótica” de gritos que se arranjam no
momento anterior à briga. O ambiente “absorvente” se dá porque os balineses
tentam fazer as maiores apostas possíveis, defrontar os galos que sejam mais
iguais para que a briga seja imprevisível. A busca pelo equilíbrio e reparação é
tanta que se um falo parece mais forte seus esporões são colocados em um
ângulo um pouco menos vantajoso.
Tem-se uma imagem artística: a aposta serve para tornar o ambiente mais
“absorvente” e não é seu motivo principal. O dinheiro é símbolo de importância
moral. Na verdade o que está em jogo mesmo é o status, apesar de que este não
se altera depois do jogo (só simbolicamente). Os que realmente apostam pelo
dinheiro (os viciados) são desprezados socialmente. O jogo é definido pelos
mesmos que “definem” a sociedade. Neste sentido o jogo “espelha” a hierarquia
social: A aldeia é organizada em torno de famílias, facções, subfacções, alianças,
assim como as brigas são confrontos e apostas entre esses mesmos grupos. Além
disso, a própria aldeia torna-se uma unidade quando confrontada com outras
aldeias. Homens tendem, como via de regra, a apoiar os membros de seu próprio
grupo, mesmo que ela seja mais fraco. Na verdade, a aposta contra o próprio
grupo é motivo de hostilidade generalizada. As brigas são como “brincar com o
fogo”. Elas incitam rivalidades e hostilidades, mas sem o risco de “se queimar”.
A briga nada muda em relação ao status. Ela torna a experiência cotidiana
compreensível como obra de arte. Ao assumir temas como a animalidade, a
morte, o orgulho e a masculinidade, ela expressa e escancara as relações sociais.
Uma grande metáfora que combina, num mesmo evento, o ódio bestial, a guerra
de egos e as tensões da hierarquia social. A briga não retrata como as relações
são literalmente, mas como elas são no imaginário popular. A briga é uma
“interpretação” balinesa da vida balinesa; uma história para eles mesmos.
Esse é ponto crucial para a antropologia contemporânea: As manifestações
culturais “dizem alguma coisa sobre algo”. O problema não é mecânico, mas, sim,
semântico. Vendo a briga como texto, percebe-se que há significados a serem
explorados pelos balineses através de emoções. Estas emoções são a aparência
dessa cultura. Todos os temas que tocam no âmago sentimental dos balineses
são trazidos a tona em um momento único. A “encenação a peça” permite ao
homem balinês apreender a sua própria subjetividade. Ele descobre a si mesmo e
o seu povo. E esta forma de ver a cultura permite uma análise que atenda a sua
substância (a de um emaranhado de significados) e não através de fórmulas
reducionistas. As sociedades tem interpretações.