UNI V E RSID A D E F E D E R A L F L U M IN E NSE INST I T U T O D E EST UD OS EST R A T G I C OS
PR O G R A M A D E PS-G R A DU A O E M EST UD OS EST R A T G I C OS D A D E F ESA E SE G UR A N A
R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E
D E IN T E R V E N O M I L I T A R?
G R A Z I E N E C A RN E IR O D E SO U Z A
N I T E R I , R I O D E JA N E IR O 2012
G R A Z I E N E C A RN E IR O D E SO U Z A
R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E
D E IN T E R V E N O M I L I T A R?
Dissertao apresentada Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno de grau de Mestre em Estudos Estratgicos. Orientador: Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues.
N I T E R I 2012
F O L H A D E APR O V A O
GRAZIENE CARNEIRO DE SOUZA
R ESPO NSA BI L ID A D E D E PR O T E G E R E SU A RESPONSABILIDADEDE REAGIR:N O V A M O D A L ID A D E
D E IN T E R V E N O M I L I T A R?
Dissertao apresentada Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno de grau de Mestre em Estudos Estratgicos.
Banca Examinadora
Data: 5 de Junho de 2012
____________________________________ Prof. Dr. Thiago Moreira de Souza Rodrigues
Orientador - UFF
______________________________________ Prof. Dr. Vgner Camilo Alves
Programa de Ps-Graduao em Estudos Estratgicos UFF
_______________________________________ Prof. Dr. Gilberto M. A. Rodrigues
Universidade Catlica de Santos
Dedico esta dissertao,
A Deus que agraciou e me agracia para seguir nos momentos difceis, preenchendo e iluminando meu ser com entusiasmo, fora e luz.
minha famlia que me apoiou e incentivou em todo o percurso do mestrado.
minha me que meu exemplo e orgulho, agradeo pela incansvel disposio em me guiar onde quer que eu fosse.
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A G R A D E C I M E N T OS
Agradeo primeiramente a CAPES que possibilitou a realizao do meu mestrado por meio do
programa de bolsas REUNI.
Ao meu professor e orientador Dr. Thiago Rodrigues que dedicou seu tempo e ateno para me
guiar no ltimo ano de mestrado.
Ao Departamento de Operaes de Paz das Naes Unidas que me propiciou conhecimento real
do papel da ONU nas operaes de paz.
Tambm agradeo aos meus professores da Universidade Federal Fluminense, os quais me
instigaram a conhecer e debater diversificados temas.
Aos meus amigos que me incentivaram a seguir em frente nas horas que mais precisei.
Finalmente, agradeo em especial a turma do PPGEST 2010, que mais do que colegas se
tornaram amigos. A cada um, agradeo com carinho e gratido por todos os momentos
partilhados e divididos.
Muito Obrigada!
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R ESU M O
DE SOUZA, Graziene Carneiro. ResponsabilidadedeProtegere suaResponsabilidade de
Reagir:novamodalidadedeintervenomilitar?; Orientador: Prof. Dr. Thiago Rodrigues;
Niteri; Universidade Federal Fluminense UFF, 2012, 159 fl.
O moderno sistema de Estados marcado por intervenes militares. Ao longo de sua histria a compreenso de onde, como, quem e por quais valores intervir variou de acordo com a concepo do Estado e de suas responsabilidades. O uso da fora contra um membro da Sociedade Internacional, subordinado s regras e normas formuladas principalmente pelas unidades mais poderosas, esteve vinculado ao contexto normativo de cada ordem internacional. A interveno militar humanitria, aplicada principalmente desde o fim da Guerra Fria, um exemplo dessas variaes. Atualmente, o prprio entendimento sobre interveno militar humanitria encontra-se em transformao. Novos valores relacionados a princpios fundamentais do sistema internacional, como o de soberania, deparam-se com novos deveres do Estado, como a garantia da segurana humana. A Responsabilidade de Proteger o resultado desta inovada compreenso. Formulada a partir da polmica interveno do Kosovo em 1999, a Responsabilidade de Proteger deixa brecha para intervenes de novo tipo que no excluem aes militares. A presente dissertao busca analisar se, no caso de ser incorporada pelo direito internacional, a RtoP significaria uma nova modalidade de interveno diplomtico-militar baseada nas recentes transformaes de conceitos como soberania e segurana humana, tendo um dos seus aspectos a interveno militar como uma atualizao da guerra legtima, compreendida como ato coletivo em nome de uma ordem e valores supostamente universais. Palavras chaves: Responsabilidade de Proteger, interveno militar humanitria, soberania, direito internacional, segurana humana. Abstract: The modern states system is shaped by military interventions. Over its history the debate among states about whether, when, who and how to intervene, and what social values to secure, have changed according to the concept of states duty. The use of force against aninternationalsocietysmember,subordinated to rulesandnormsformulatedbypowerfulunits, was linked to the normative context of each international order. Humanitarian military intervention, applied mainly since the end of the Cold War, is an example of this type of conjuncture. Today, the comprehension regarding international military intervention has been modified. New values related to fundamental principles of the international system, such as sovereignty,facenewstatesduties,suchashumansecurity.TheResponsibilitytoProtect isaresult of this innovated understanding. Formulate from the controversial intervention in Kosovo in 1999, the Responsibility to Protect opens a gap for a new type of intervention that do not exclude military action. This dissertation aims to analyze if the RtoP would become a norm in International Law, it would be possible to take it as a new justification and modality of military intervention based on a revised definition of sovereignty and human security. Key words: Responsibility to Protect, humanitarian military intervention, sovereignty, international law, human security.
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L IST A D E A BR E V I A T UR AS E SI G L AS
A-10 A/OA-10 Thunderbolt II AC 130 Lockheed AC-130 gunship ALI/ILA Associao da Lei Internacional AMIS Operaes de paz da Unio Africana no Sudo AMISOM African Union Mission in Somalia ANSA/ASEAN Associao de Naes do Sudeste Asitico ARI Antiga Repblica da Iugoslvia ASEAN Association of Southeast Asian Nations BICC Bonn International Center for Convertio BRICS Brasil, Rssia, China e frica do Sul CDS Conselho de Defesa Sul-Americano CEEOA/ ECOWAS Comisso Econmica dos Estados do Ocidente da frica CIA Central Intelligence Agency CSCAP Conselho para Segurana e Cooperao na sia Pacfica DDR Desarmamento, Desmobilizao e Reintegrao EUA Estados Unidos da Amrica EU Unio Europia FYROM Yugoslav Republic of Macedonia ICISS International Commission on Intervention and State Sovereignty IHL International Humanitarian Law INEF Instituto de Desenvolvimento e Paz JNA Exrcito Popular Iugoslavo KFOR Fora no Kosovo LEA / LAS Liga dos Estados rabes LDK Liga Democrtica do Kosovo PNUD/UNDP Programa de Desenvolvimento das Naes Unidas RDC Repblica Democrtica do Congo TCC Troop Contributing Countries TIAR Acordo Inter-Americano de Assistncia Recproca OEA Organizao dos Estados Americanos ONG Organizao No-Governamental ONU/UN Organizao das Naes Unidas OTAN/NATO Organizao do Tratado do Atlntico Norte OSCE Organizao de Segurana e Cooperao da Europa UNC United Nations Cluster UNOMIL Misso de Observao das Naes Unidas na Libria PoC Protection of Civilians RtoP Responsibility to Protect RwP Responsibility while Protecting R2P Responsibility to Protect BICC Bonn International Center for Convertion UA/AU Unio Africana UAV Predator Unmanned Aerial Vehicle UNAMIR United Nations Assistance Mission for Rwanda
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=3&ved=0CFAQFjAC&url=http%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FCentral_Intelligence_Agency&ei=1MyaT4rgGIiFtgeGwsmnBA&usg=AFQjCNGjwegTyv3P2HRUYkNTWk9qLEOIJQ&sig2=2NlsF-tJtFqJJE2Oo_T_KQhttp://en.wikipedia.org/wiki/Gunshiphttp://pt.wikipedia.org/wiki/Associa%C3%A7%C3%A3o_de_Na%C3%A7%C3%B5es_do_Sudeste_Asi%C3%A1ticohttp://en.wikipedia.org/wiki/Association_of_Southeast_Asian_Nations
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UNASUL Unio de Naes Sul-Americanas URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas
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SU M RI O IN T R O DU C O ------------------------------------------------------------------------------------------- 10 C AP T U L O 1 Intervenes militares: da Guer ra F ria criao do Princpio da Responsabilidade de Proteger . ------------------------------------------------------------------------- 16 1.1 Interveno militar: definio e contexto normativo. ------------------------------------------- 161.2 Interveno humanitria: conceito e principais debates. --------------------------------------- 23 1.3 Intervenes militares humanitrias durante e no ps - Guerra Fria. ------------------------- 29 1.4 A interveno do Kosovo: o incio de um novo modelo de interveno militar humanitria. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 40
C AP T U L O 2: Responsabilidade de Proteger : entre a teoria e a prtica da interveno militar no novo milnio. --------------------------------------------------------------------------------- 54 2.1 A criao do princpio da Responsabilidade de Proteger. -------------------------------------- 54 2.1.1 A responsabilidade de prevenir. ----------------------------------------------------------- 61 2.1.2 A responsabilidade de reagir. -------------------------------------------------------------- 62 2.1.3 A responsabilidade de reconstruir. -------------------------------------------------------- 67 2.2 Responsabilidade de Proteger: conceito, princpio ou norma? -------------------------------- 69 2.3 O Documento Resultante da Cpula Mundial de 2005: adaptao e implementao. ----- 72 2.4 Segurana Humana, Soberania, No-interveno e Estados Falidos: as principais crticas Responsabilidade de Proteger. ---------------------------------------------------------------------------- 79 C AP T U L O 3: Responsabilidade de Proteger e suaResponsabilidadeemReagir:novamodalidade de interveno militar? ------------------------------------------------------------------ 93 3.1 As Naes Unidas e as Organizaes Regionais: dificuldades de implementao das operaes de paz. ------------------------------------------------------------------------------------------- 93 3.2 A doutrina legitimando a prtica: a efetivao da interveno militar justificada na Proteo de Civis e na Responsabilidade de Proteger. ---------------------------------------------------------- 105 3.2.1 O caso da Lbia. -------------------------------------------------------------------------- 115 3.3 Rompimentos e Continuidades da Responsabilidade de Proteger a Responsabilidade ao Proteger. ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 126 C O NSID E R A ES F IN A IS ------------------------------------------------------------------------- 137 BIB L I O G R A F I A ---------------------------------------------------------------------------------------- 143 A N E X OS -------------------------------------------------------------------------------------------------- 152
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IN T R O DU O
A justificativa sobre a interveno humanitria est presente desde o fim da Guerra Fria,
apesar de sua reflexo incluir direitos fundamentais do Estado, discutidos desde o sculo XV. Da
mesma forma, o debate sobre o que justo e moral nas relaes internacionais e no Direito
Internacional, se iniciou sculos atrs com o debate em torno do direito da guerra.1
A primeira Conveno de Genebra, de 1863, tida como marco inicial do Direito
Humanitrio moderno, quando foram assinados 291 acordos internacionais para proteger a vida
dos combatentes feridos. A expanso da proteo dos direitos humanos durante as guerras
alcanou, adicionalmente, os conflitos armados sem carter internacional (art. 3 das
Convenes de Genebra de 1949 e art. 1 do Protocolo II de 1977) e as guerras de libertao
nacional (art. 1, 4 doProtocolo I de 1977). 2 Assim, a partir dos anos 1970, o direito da
guerra, antes restritos ao enfrentamento interestatal, passou a tratar no apenas dos conflitos
armados internacionais, mas tambm da guerra civil, na qual os combatentes no so
propriamente dotados de personalidade jurdica internacional enquanto unidades polticas, mas
sim enquanto sujeitos passveis de proteo na condio de seres humanos, conforme estipulou a
Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
O direito de guerra historicamente constitudo distingue o jus ad bellum do jus in bello. O
primeiro significa o direito guerra, ou seja, o direito de fazer guerra. Depois que os Estados
nacionais se consolidaram juridicamente em tempos da Paz de Westflia em 1648, este direito
passou a ser exclusivo do Estado. J o jus in bel lo a regulamentao da guerra: asnormas
aplicveis aos beligerantes eaquelasobrigaesdecorrentesdoestadodeguerra, 3 na qual est
inserido o Direito Humanitrio. Embora o direito guerra e sua regulamentao existam
1Legnano De bello (1360), Gorco De bello justo (1420), Martn de Lodi De bello (sculo XV), Wilhelmus Mathiae Libellus de bello iustitia iniustitiave (1533), A. Guerrero Tratactus de bello justo et injusto (1543), Francisco de Vitria De jure belli (1557), F. Martini De bello et duello (1589), Balthasar de Ayala De jure et officiis bellicis et disciplina militari (1582), P. Belli De re militari et bello (1558), Alberico Gentili De jure belli (1598) e Hugo Grcio De jure belli ac pacis (1625). In MELLO, Celso D. de Albuquerque. Guerra Interna e Direito Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1985. p. 41. 2 Maiores informaes ver BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011.3 Idem.
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
11
historicamente, a guerra de agresso tornou-se ilegal aps o Pacto de Paris, ou Pacto Briand-
Kellogg, de 1928.
Depois da assinatura da Carta de So Francisco, que originou a Organizao das Naes
Unidas em 1945, esta proibio foi reafirmada e ampliada com a consolidao do sistema da
segurana coletiva, j esboado no Pacto da Liga das Naes, de 1919, e que proscreve o uso da
fora deixando espao para apenas trs excees: a legtima defesa, as lutas pela
autodeterminao dos povos e os casos em que o Conselho de Segurana, para situaes
especficas, empreende o recurso fora por julg-lo compatvelcomospropsitosdaONU.4
Posteriormente criao da Organizao das Naes Unidas, os casos de disputas
territoriais ou qualquer situao especfica de discrdia entre Estados passaram majoritariamente
a serem designados como litgios jurdicos sujeitos Corte Internacional de Justia, a fim de
efetivar o princpio da soluo pacfica de conflitos internacionais. A "Declarao relativa aos
princpios de direito internacional no que respeita s relaes amigveis e cooperao entre
Estados," votada pela Assemblia das Naes Unidas a 24 de Outubro de 1970, estabeleceu que
"todos os Estados devem solucionar os seus conflitos internacionais com os outros Estados por
meios pacficos de tal modo que a paz e a segurana internacionais, assim como a justia no
sejam postas em perigo".5
Entretanto, de acordo com Paulo Emlio Macedo, impossvel racionalmente tentar
substituiraguerraporlitgiosjurdicos,osquaissopautadospornormasdedireitoobjetivo.6
Segundoesteautor,aguerraumconflito de poderes, no um conflito de interesses e, portanto,
transcende o Direito, para o qual s h controvrsias estticas e atuais, rigorosamente
circunscritas e previstas. J para Scheler, a guerra realizada para o futuro, em nome do
advento de um novo rearranjo de poderes, ou seja, uma nova ordem. Desse modo, ela cria novas
realidades histricas e se torna fonte de todo o Direito e de toda a moral.7
4 Ver Carta da ONU. Captulo VII, Artigo 38-51. 5 Protocolo I Adicional s Convenes de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo Proteo das Vtimas dos Conflitos Armados Internacionais. NEEP-DH. Ncleo de Estudos de Polticas Pblicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida. Disponvel em http://www.nepp-dh.ufrj.br/onu2-11-5.html. Acesso em 25 de Abril de 2012. 6 MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011. 7 SCHELER, Max. O Gnio da Guerra e a Guerra Alem. In ORTEGA Y GASSET, Jos. El Espectador. Madrid: Biblioteca Edaf, 1998. p.163.
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugrhttp://www.nepp-dh.ufrj.br/onu2-11-5.html
12
A proibio da guerra de agresso como recurso legtimo na poltica exterior dos Estados
foi um novo captulo numa antiga histria de reflexo e produo doutrinria sobre o que a
guerra e como ela pode ser justificada. Essa tradio remonta a Santo Ambrsio (333-397) e
Santo Agostinho (354-430), passando por Francisco de Vitoria (1483-1546), Francisco Suarez
(1548-1617) e Hugo Grotius (1583-1645) e chegando a autores contemporneos da guerra
justa,comoMichaelWalzer (1935- ). Uma das procedncias mais significativas do conceito de
guerra justa encontrado em Santo Toms de Aquino (1225-1274) que estabeleceu trs critrios
de avaliao: a guerra seria justa se declarada pelo prncipe, uma vez que ele a autoridade
pblica competente; se tivesseumacausajusta,ouseja,umdireitovioladoe se a inteno dos
beligerantesfossereta,devendovisarapromoodeumbemouevitarummal.8
MichaelWalzerafirmaqueateoriadaguerrajusta rechaa o absolutismo moral (...) que
condena todas as guerras, como o relativismo tico do realismo poltico, o qual, em nome da
defesa do Estado, aceita a matana de civis e de inocentes como natural, e qualquer guerra para
expandiropodercomonecessria.Paraosadeptosdas teses da guerra justa, existem razes que
so suficientes para se fazer guerra. Da mesma forma, h coisas que so moralmente
inaceitveisdesefazeraoinimigoParaesteautor,aguerrajustatrata-sedeumateoriade
justiacomparativaquepossibilitaaanlisedasaeshumanasemtemposdecriseeconflito
haja vista que no considera toda a guerra como o malogro do Direito e da Moral, ela
permanece como um parmetro de julgamento vlido. 9
SegundoEdwardCarr,amoralinternacionalolugarmaisobscuroedifcildetodoo
campo dos estudos internacionais. Para este autor, no se pode identificar a obrigao do
Estado com a obrigao de qualquer indivduo, ou indivduos; e as obrigaes dos Estados que
soosujeitodamoralinternacional.10 A personificao da unidade poltica o que estabelece
que os Estados estabeleam e conduzam o ordenamento das relaes internacionais. A crena de
que os Estados possuem deveres morais entre si e uma reputao a ser mantida cumprindo esses
deveres o que manteria, para Carr, a ordem da sociedade internacional. O comportamento dos
governantes na forma como conduzem os assuntos internacionais o que torna real as obrigaes
estatais.
8 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direitos Humanos e Conflitos Armados. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 99. 9 WALZER, Michael. Arguing about War. New Haven & London: Yale University Press, 2004. p. 14. 10CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p. 206.
13
Ainda segundo Carr, as teorias da moral internacional tendem a formar duas categorias.11
As realistas, para as quais as relaes entre Estados so governadas apenas pelo poder, no
influenciadas pela moral; as utpicas, que renegam a guerra como um todo, reiterando que o
mesmo cdigo de moral aplicvel tanto aos indivduos quanto aos Estados. Entretanto, para
John Bright, "a lei moral no foi escrita apenas para os homens em seu carter individual, mas
tambmfoiescritaparaasnaes.12 Todavia, para Carr, nem a viso realista de que nenhuma
obrigao moral prende os Estados, to pouco, a viso utpica de que os Estados esto sujeitos s
mesmas obrigaes morais dos indivduos, correspondem aos pressupostos do homem comum
acerca da moral internacional.
O Direito Internacional contemporneo estabelece obrigaes do Estado para com e entre
os indivduos, assim como obrigaes dos Estados para com outros Estados. Neste sentido, o
princpio da igualdade soberana entre os Estados um dos pilares jurdicos do Sistema
Internacional. De acordo com este princpio, todos os Estados so iguais e soberanos, dispondo
do mesmo reconhecimento enquanto unidade poltica. Edward Carr, entretanto, argumenta a
dificuldadedesedefiniromesmoprincpiodentrodeumacomunidade.Segundoesteautor,a
igualdade no jamais absoluta e pode s vezes ser definida como uma ausncia de
discriminao por motivos entendidos como irrelevantes. 13 Para ele, a discriminao no sistema
internacional endmica, uma vez que a desigualdade entre Estados em relao ao poder
flagrante.14 Apesar de iguais juridicamente, ou seja, possurem igualdade de status com
igualdade de direitos, oportunidades ou de posses, na prtica a relao entre osEstados
proporcional,enoabsoluta.Carrjustificaestaafirmaodestacandoaconstanteintromisso,
ouintromissoempotencialdaspotncias,quetornaquasesemsentidoqualquerconcepode
igualdade entre os membros da comunidade internacional.15
A origem da Responsabilidade de Proteger insere-se nessa longa tradio e continuado
debate sobre o que justo e moral nas relaes internacionais na medida em que impe uma
11MACEDO, Paulo Emlio Vauthier Borges de. A ingerncia Humanitria e a Guerra Justa. Revista de Direito da UNIGRANRIO. Disponvel em http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr. Acesso em 07 de Outubro de 2011.12John Bright, Speccbes on Quution of Public Policy1858, pg. 479. In CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p.198. 13CARR, Eduard. Vinte anos de Crise 1919-1939. Uma introduo aos estudos de Relaes Internacionais. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1981. p. 209.14 Idem. p. 209. 15 Ibidem. p. 213.
http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/rdugr
14
nova forma de enquadrar os indivduos que sofrem violaes extremas de seus direitos. Portanto,
esta pesquisa tem o objetivo de esclarecer o debate acerca do contexto normativo da interveno
militar humanitria a partir dos anos 1990, tendo como foco o surgimento, o desenvolvimento e
as controvrsias do princpio da Responsabilidade de Proteger, com ateno especial a um dos
seus elementos a previso do uso da fora militar no cenrio internacional justificada por
argumentos humanitrios.
No primeiro captulo, explanarei a conceituao da interveno e a relao do uso da
fora entre Estados para ilustrar a origem do conceito de interveno humanitria e suas
influncias nas relaes internacionais. Desta forma, mostrarei que a evoluo normativa dos
conflitos e da violncia no ps-Guerra Fria estabeleceu um novo conceito de guerra e fez
prevalecer as atenes voltadas aos conflitos intraestatais. Este captulo tem o propsito de
explicar conceitos e definies que se relacionam com a doutrina da interveno humanitria no
Direito Internacional, principalmente na Carta das Naes Unidas, explanando as discusses
sobre sua moralidade e justificativa.
O segundo captulo busca mostrar que o alcance do debate sobre no-interveno,
soberania e segurana humana resultou na criao do novo conceito da Responsabilidade de
Proteger. A preocupao da comunidade internacional em proteger os direitos humanos e a nova
interpretao da soberania enquanto responsabilidade fez com que o amadurecimento da
discusso sobre a interveno humanitria resultasse na implementao da Responsabilidade de
Proteger. Primeiramente, definirei a Responsabilidade de Proteger, seus embasamentos e
principais influncias na doutrina da interveno humanitria. Posteriormente, mostrarei suas
fundamentais dificuldades e obstrues para implementao bem sucedida, focando nas crticas
relacionadas aos conceitos da segurana humana, soberania, no-interveno e Estados Falidos.
O terceiro captulo aborda os problemas das Naes Unidas para efetivar operaes de
paz, principalmente as operaes conjuntas com as organizaes regionais. Destacarei os
variados tipos das operaes multidimensionais, focando nas misses de imposio da paz sob o
captulo VII da Carta da ONU. Portanto, abordarei as diferenas entre operaes justificadas na
Responsabilidade de Proteger e na Proteo de Civis e da forma como ambas doutrinas se
envolvem no processo de reconstruo dos Estados Falidos. As crticas centrais implementao
destes conceitos na Lbia sero levantadas a fim de explicitar suas influncias no
desenvolvimento e evoluo do contexto normativo das relaes internacionais.
15
Procurarei apresentar posicionamento de autores diversos, e, por isso, nos limitaremos a
exp-los sem expressar ou tomar partido de uma nica viso. Esse esforo de apresentao dos
argumentos fez com que a pesquisa se baseasse no levantamento, leitura e sistematizao de
literatura sobre a Responsabilidade de Proteger, intervenes humanitrias, teorias de Relaes
Internacionais e debates sobre a guerra justa e o direito de guerra; e na leitura e anlise de fontes
primrias, especialmente, dos documentos da ONU produzidos por seus secretrios gerais e pelo
Conselho de Segurana.
Nas Consideraes Finais, a retomada de cada movimento da dissertao procurar no
chegar a concluses definitivas, mas, ao contrrio, buscar defender a pertinncia do estudo da
Responsabilidade de Proteger como elemento importante para a anlise das relaes
internacionais contemporneas no que diz respeitos s centrais questes da guerra e da paz.
16
C AP T U L O 1
Intervenes militares: da Guer ra F ria cr iao do Princpio da Responsabilidade de Proteger .
Oprincpiofundamentaldo Direito Internacional, como direito universal que deve valer em si e por si entre os Estados, diferena do contedo particular dos tratados positivos, que os tratados, enquanto sobre eles repousam as obrigaes dos Estados uns para com os outros, devem ser respeitados. Mas porque as relaes entre eles tm por princpio a sua soberania, eles esto uns para com os outros, nessa medida, no Estado de natureza, e os seus direitos tm a sua realidade efetiva no numa vontade universal constituda em poder acima deles, mas na sua vontade particular. Aquela determinao universal permanece, por isso, no dever-ser, e a situao torna-se uma alternncia entre as relaes conforme aos tratados e a supresso dessas relaes.
G.W.F. Hegel
1.1 Interveno Militar : definio e contexto normativo
A interveno militar uma problemtica do sistema moderno de Estados. Seus analistas
procuram explic-la, na tentativa de compreender o poder e a relao de dominao e fora deste
Sistema. O mesmo, tambm chamado pela escola inglesa de sociedade internacional1, est
configurado pelo uso da fora, monopolizada pelo Estado,2 domstica e exteriormente. A
estrutura do sistema, particularmente o nmero de atores (os Estados) e as suas respectivas
capacidades, determinam os padres de interao que buscam desenvolver uns com os outros,
constituindo alianas e formando balana de poder, sendo passvel de modificaes atravs de
alteraes na distribuio de poder entre as unidades.3 Este sistema, marcado pela falta de
1 Andrew Hurrell, autor da escola inglesa, analisa a Sociedade Internacional em uma de suas obras a partir de algumasidias:first, the view that and lasting influence: international society has to be understood in terms of both power and the operation of legal and moral normswhat Butterfi eld andWight spoke of as the principles ofprudence and moral obligation which have held together the international society of states throughout its history, and stillholdittogether.Second,theviewthatthatinternationalsocietycanbeproperlydescribedonlyinhistorical andsociologicaldepth.Andthird,theargumentthatastates-system will not come into being without a degree of cultural unity amongst its members, or, more strongly, that a states-system presupposes a common culture.HURRELL, Andrew. One world? Many worlds? The place of regions in the study of international society. International Affairs: Moscou, 2007. pp. 127, 143. http://www.mwmt.co.uk/documents/MWML2006_Hurrell.pdf. Acesso em 17 de setembro de 2011. 2O uso da fora por atores no estatais ilegtima no Sistema de Estado, e aqueles que a utilizam so caados pelos Estados, freqentemente agindo em nome da comunidade internacional.Traduo minha. Ver FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 1. 3WALTZ, Kenneth N. O homem o Estado e a guerra. Uma anlise terica. So Paulo: Ed. Martins Fontes. 2004.
http://www.mwmt.co.uk/documents/MWML2006_Hurrell.pdf
17
autoridade poltica supranacional, constitui-se de Estados movidos por interesses e pela
capacidade em garantir sua soberania. 4
Em conseqncia da assimetria de poder entre as unidades, o uso da violncia entre os
membros da sociedade internacional talvez a forma mais visvel e pragmtica de endossar
condutas, apesar de mais custosa. Neste sentido, a deciso de intervir remete ao exaustivo debate
de onde, como, quando, quem vai intervir e quais valores sociais garantir. Ao longo da histria, a
razo para intervir remete a reivindicaes comuns de que o Estado alvo representa uma
ameaa para outro Estado; condio sobre a qual se acrescentou a partir do sculo XX, a de que
um Estado, por sua conduta agressiva, seria uma ameaa paz e a ordem internacional. 5
Adeptos da Realpolitik defendem que os Estados fortes majoritariamente intervm nos
Estados fracos quando ela serve aos seus interesses geopolticos e ou econmicos. Autores
adeptos da escola liberal afirmam a possibilidade da interveno em defesa dos direitos
humanos, como no caso da interveno militar humanitria.6
O uso da fora entendido por Thierry Thardy como, ousodemedidascoercitivaspara
coagir um ator a fazer alguma coisa que em outras circunstncias no faria ou para previnir um
ator de fazer alguma coisa. Esta definio inclui, mas no est limitada noo de guerra.7
Melo argumenta que a interveno pode ser traduzida em intromisso, o que significa a
interferncia, por um ou mais Estados, nos assuntos internos ou externos de outro Estado
soberano sem o seu consentimento, tendo como fim alterar determinado estado de coisas. 8
Finnemore, por sua vez, define interveno militar como adisposiodaformaodecombate
de pessoal militar dentro de limites reconhecidos com o propsito de determinar a estrutura da
4De acordo com a Teoria do Realismo Sistmico ou Estrutural proposta por Kenneth Waltz, a distribuio de poder nesse sistema anrquico determinada pela capacidade de cada Estado influenciar, militar, poltica ou economicamente a ordem internacional. Ver WALTZ, Kenneth N. O homem o Estado e a guerra. Uma anlise terica. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 2004. 5FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 2.6WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 27. 7 The use of coercive measures to constrain an actor to do something it would not otherwise do or to prevent an actor fromdoingsomething.Thisdefinition includes,but isnot limited to, thenotionofwar Tradues minhas.THARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Switzerland: Security Dialogue, 2007. Geneva Centre for Security Policy (GCSP). pp. 38, 49. 8MELLO, Celso C. de A.. Curso de Direito Internacional Pblico. Rio de Janeiro: Renovar, 1992. p. 238.
18
autoridade poltica no Estado alvo. 9 Entretanto, a autora concorda que esta definio s se
encaixa no perodo da Guerra Fria, quando se entendia a interveno como mudana de
autoridade poltica.
Segundo Finnemore, h trs requisitos para que uma ao seja qualificada como
interveno: primeiramente, Estados tm de usar o termo descrevendo a atividade. Aqueles
envolvidos tm de entender que estavam engajados em uma interveno e usar o mesmo termo
quando escrever ou dialogar com outras autoridades estrangeiras; segundo, ao militar tem de
estar presente. O uso de outra forma de sanes, como econmica ou diplomtica, no
qualificam a ao como interveno; terceiro, a fora militar tem de encontrar oposio durante a
ao.10
A interveno militar o termo usado para explicar o uso da fora, na atualidade, para
esclarecer a violao do compromisso da soberania e autodeterminao. Estes dois conceitos
foram desenvolvidos para regular as relaes entre Estados. De acordo com Bellamy, soberania
refere-se ao direito que estatos possuem em relao a integridade territorial, independncia
polticaenointerveno.Autodeterminao refere-se ao direito dos povos de se autogovernar,
ou seja, o direito de livremente determinar seu status poltico. 11 Nessa linha, Brownlie afirma
que a soberania e a igualdade de Estados representam as leis bsicas entre as naes com
personalidade jurdica. 12
A compreenso de interveno, entretanto, esteve vinculada a ordem internacional de
cada perodo da histria do sistema de Estados. Cada ordem est respaldada por um diferente
contexto normativo, na relao entre o direito de intervir e a interpretao do princpio da
soberania.
Nos limites da poca do absolutismo, a soberania da sociedade de Estados estava
relacionada ao fato dos Estados agiremcomoquiserdentrodesuasjurisdies. 13 No sculo
9 Thedeploymentofmilitarypersonnelacrossrecognizedboundariesforthepurposeofdeterminingthepoliticalauthority structure in the target state. Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p.9. 10 Ibidem. p. 11.11BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 8. 12 Refers to the rights that states enjoy to territorial integrity, political independence and non-intervention. Tradues minhas. BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. p. 289. 13Acthowevertheypleasewithintheirownjurisditions.Tradues minhas. BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 8.
19
XIX, a construo e definio de interveno em si mesmo, como categoria de ao militar
separada da guerra, estava relacionada s mudanas polticas e ao comportamento militar. Interveno, como uma prtica do sculo XIX na Europa, tinha efeito relacionado ao governo e no ao territrio, e por isso, promovia condies para causar mudanas polticas sem modificar os limites de Viena e acordos territoriais que determinaram a ordem europia do perodo. 14
No momento anterior ao Pacto da Liga das Naes, de 1919, celebrao do tratado
Briand-Kellogg de proscrio da guerra de agresso, em 1928, e da prpria carta das Naes
Unidas, de 1945, a soberania era a prtica na qual os Estados possuiamodireitode iniciar a
guerrabaseada na realpolitik.15 J no perodo ps-colonial ps-1945 a soberania passou a ter
uma relao direta com a declarao de que todos os povos tinham o direito autodeterminao,
direito de decidir seu status poltico e seu desenvolvimento econmico, social e cultural, o que
significava que nenhuma potncia podia deliberadamente intervir em um Estado considerado
mais fraco. Esta compreenso de soberania era uma tentativa de se evitar a re-ermegncia do
colonialismo.
Assim, desde a criao das Naes Unidas em 1945, a compreenso sobre a interveno
militar est resguardada em sua carta. Para Tardy, a carta das Naes Unidas o documento mais
detalhado para a regulao do uso da fora no sistema moderno de Estados. O autor afirma que
depois de algumas tentativas no concludas, como o Tratado de Versales instituindo a Liga das
Naes em 1919 e o Pacto Briand-Kellogg em 1928, a Carta das Naes Unidas deu luz a mais
detalhadaconjunturarelacionadaaousodafora16
A carta das Naes Unidas define em seu captulo primeiro as regras sobre intervenes
de um Estado membro em outro igual: Cap.1.Art.2.4. Todososmembrosdeveroevitarem suas relaes internacionaisaameaa ou o uso da fora contra a integridade territorial ou a independncia poltica de qualquer Estado, ou qualquer outra nao incompatvel com os Propsitos das Naes Unidas.
14 Intervention,asanineteenth-century practice within Europe, was understood to be aimed at governments rather than territory and so provided a way of bringing about political change without disturbing the Vienna boundaries and territorial settlement that underpinned the entire European order of the period. Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 11.15 Enjoyedarighttogotowar. Ibidem. p. 12. 16 Afterafewinconclusiveattempts,suchastheTreatyofVersaillesinstitutingtheLeagueofNations(1919)andthe KelloggBriand Pact(1928),theUNCharterputforththemostdetailedframeworkregardingtheuseofforce.Tradues minhas. TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007.
20
Cap. 1 Art.2.7.NenhumdispositivodapresenteCartaautorizarasNaesUnidasaintervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdio de qualquer Estado ou obrigar os Membros a submeterem tais assuntos a uma soluo, nos termos da presente Carta; este princpio, porm, no prejudicar a aplicao das medidas coercitivas constantes do Captulo VII. 17
Brownlie destaca os contextos legais nos quais, contemporaneamente (e abrindo
controvrsia com os princpios expressos nos artigos acima da Carta da ONU), o uso da fora
pode ocorrer. Eles so:18
Crescente nmero de casos em que aes ilegais substituem responsabilidades
estatais ou omisso da obrigao do Estado de prover reparao;
Responsabilidade criminal de indivduos por atos de agresso;
Aplicaes de rgos das Naes Unidas, principalmente o Conselho Segurana
sob competncia do captulo VII, no que se trata da ameaa paz, quebra da paz
ou ato de agresso;
Emprego de decises tomadas por convenes multilaterais em relao ao uso da
defesa coletiva ou operaes regionais de manuteno da paz;
Proviso de tratados bilaterais ou assistncia mtua, comrcio ou navegao,
provisionados por clusulas jurisdicionais da Corte Internacional de Justia.
O Artigo 2(4) da Carta das Naes Unidas possibilita um dos principais debates sobre a
proibio da ameaa ou do uso da fora. Inclusive a Corte Internacional de Justia em
AtividadesArmadasnoTerritriodoCongode 2000, proclamou que o Artigo 2(4) consiste
emumproblemana carta da ONU. 19
A Corte Internacional de Justia classificou o uso da fora no caso da Nicargua,
discutindo se a sua proibio representa o direito internacional consuetudinrio: 20 No de se esperar que na prtica dos Estados a aplicao das regras em questo deveria ter sido perfeita, no sentido de que os Estados devem se abster, com total coerncia, a partir do uso da fora ou de interveno em cada um dos assuntos internos de
17 Carta das Naes Unidas. Disponvel em http://www.un.org/en/documents/charter/. Acesso em 18 de setembro de 2011. 18BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. New York: Oxford, 2008. p. 747.19 Armed Activities on the Territory of Congo. GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. Foundations of Public International Law. Nova York: Oxford, 2008. p. 30. 20O direito consuetudinrio diferente dos tratados assinados porque ele no criado em acordos escritos entre os Estados que planejam e regulam suas aes em reas especficas. Ver AREND, A. C. BECK, R. J. International Law and the Use of Force: Beyond the UN Charter Paradigm. London: Routledge, 1993. p. 6.
http://www.un.org/en/documents/charter/
21
outros. O Tribunal no considera que, para que uma regra possa ser estabelecida como costume, a prtica deve ser feita em conformidade absolutamente rigorosa com essa regra. Para deduzir a existncia de normas consuetudinrias, o Tribunal considera suficiente que a conduta dos Estados devem, em geral, ser coerente com tais regras, que os casos em que os Estados possuem conduta inconsistente com uma determinada regra deveria ser, em geral, tratada como violao dessa regra, no como indicaes do reconhecimento de uma nova regra. Se um Estado age de forma incompatvel com uma regra reconhecida, mas defende a sua conduta, apelando para excees ou justificativas contidas dentro da prpria regra, ento, o no comportamento do Estado de fato justificvel, o significado que a atitude confirmaaoinvsdeenfraqueceraregra. 21
A insistncia do uso da fora, entretanto, no fortalece normas, ao contrrio, retira sua
plausibilidade. Apesar disso, Estados constantemente tentam justificar aes que desafiam as
normas existentes, defendendo que sua atuao est em conformidade com o discurso legtimo e
dominante. As regras impostas pelo Direito Internacional no determinam exclusivamente o
comportamento do Estado, elas influenciam o processo de tomada de deciso interno, mas
tambm so influenciadas pela conjuntura do Sistema.
O uso da fora contra um membro da Sociedade Internacional, subordinado s regras e
normas formuladas principalmente pelas unidades mais poderosas, est vinculado ao contexto
normativo de cada ordem internacional de acordo com a interpretao da concepo do Estado
de dever estatal. No plano comportamental, aes de execuo estabelecem as regras bsicas do
sistema sobre quais aes so permitidas e os limites da soberania, e no nvel cognitivo e
normativo, este debate estabelece a autoridade e a legitimidade das regras.22 Entretanto, a histria
tem demonstrado que o princpio da soberania freqentemente manipulado pelas grandes
potncias. 23
Os argumentos dominantes junto s transformaes normativas remetem a fatores como
as alteraes no equilbrio de poder ou na balana ofensiva-defensiva (offense-defense 21 It is not to be expected that in the practice of States the application of the rules in question should have been perfect, in the sense that States should have refrained, with complete consistency, from the use of force or from intervention in each others internal affairs. The Court does not consider that, for a rule to be established as customary, the corresponding practice must be in absolutely rigorous conformity with such rule. In order to deduce the existence of customary rules, the Court deems it sufficient that the conduct of States should, in general, be consistent with such rules, and that instances of States conduct inconsistent with a given rule should be generally be treated as breaches of that rule, not as indications of the recognition of a new rule. If a State acts in a way prima facie incompatible with a recognized rule, but defends its conduct by appealing to exceptions or justifications contained within the rule itself, then whether or not the States conduct is in fact justifiable on that basis, thesignificance of that attitude is to confirm rather than to weaken the rule. Tradues minhas. Nicaragua Case. International Court of Justice Reports (1986). Pargrafo 186. 22FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 2. 23David B. Halmo. Humanitarian Intervention: Ideas in Action. Arab Studies Quarterly (ASQ). Book Reviews: Vol. 30, N. 1, 1 de Janeiro de 2008. p. 77.
22
balance). Mas, segundo Martha Finnemore, as mudanas no alteram o fato dos Estados fortes
continuarem a intervir em Estados fracos quando isto os interessa.
Para Finnemore, o processo normativo da poltica internacional est diretamente ligado s
intervenes militares, uma vez que as normas internacionais no esto divorciadas do poder e
do interesse estatal. Ao contrrio, () regras sobre interveno so fortemente se no
inteiramente determinadas por aes de Estados potncias que realmente possuem capacidade de
intervir (...). 24 De acordo com a autora, constantes alteraes no contexto normativo significam,
portanto, modificaes nas intervenes militares.
A criao de novas normas no Sistema Internacional o resultado da mutao do
comportamento do Estado em relao soberania, ao indivduo, ou ao direito de fazer a guerra.
Sikkink e Finnemore definem como normcascade, o processo em que um grupo de Estados
adota uma nova norma como padro apropriado de comportamento, no qual se substitui a
prtica anteriormente aceita. Os autores afirmam que esta ao sempre contestada pelos
adeptos da antiga norma, os quais persistem em resistir legitimidade do regulamento recm-
cunhado. 25
A evoluo normativa uma racionalizao legal da estrutura do sistema. Desde o sculo
XIX, cada vez mais, o reconhecimento destas regras tem sido codificado no direito internacional,
nos regimes internacionais, e nos mandatos oficiais das organizaes internacionais. Todavia,
normas que resguardam a igualdade soberana entre as unidades estatais tornaram-se mais
poderosas a partir do sculo XVII, aps a Paz de Westflia (1648). Restringindo a noo legal de
interveno, a igualdade de soberania tornou-se universal sob a jurisdio do direito
internacional, como pode ser visto na carta das Naes Unidas.
A evoluo das normas sobre o uso da fora tambm atingiu a interpretao do
compromisso do Estado de garantir segurana aos indivduos. No final do sculo XX, a noo de
autodeterminao foi relativizada idia humanitria. Ao longo dos ltimos dois sculos, normas
queresguardamigualdadehumanaedireitoshumanostemsetornadocadavezmaisinfluentes
24 (...)rulesaboutinterventionarestronglyifnotentirelyshapedbyactionsofpowerful states that actually have thecapacitytointervene.(...). Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 5. 25FINNEMORE, M. SIKKINK, K. International Norm Dynamics and Political Change. International Organization: 2/4, 1998. pp. 895, 905.
23
as reas da poltica internacional, causando profundos impactos, inclusive sobre a interveno
militar. 26 Finnemore observa que: "Novas crenas sobre quem humano fornecem razes para intervir e fazer a interveno possvel de maneira que no era anteriormente. Com a criao de novas realidades sociais, novas normas sobre interveno, nova desirata de pblicos e tomadores de deciso, novas crenas criam novas opes de poltica, imperativos at mesmo sobre polticas para interveno". 27
A compreenso de ser humano no final do sculo XX modificou a justificativa para
interveno, da mesma forma como alterou o debate sobre onde e como intervir. A ordem
internacional estabelecida nos anos 1990, aps a Guerra Fria, trouxe a questo da segurana dos
indivduos e no s a do Estado como ente soberano colocando a obrigao do Estado de
garantir a segurana de seus cidados.28 Esta nova interpretao sobre o dever estatal fez com
que outras normas fossem adicionadas ao Direito Internacional Pblico, colocando em debate
aquilo que passou a ser conhecido como interveno humanitria.29
1.2 Interveno Humanitria: conceito e principais debates
Apesar de utilizada como justificativa para a interveno somente aps a Guerra Fria, a
idia de interveno humanitria remonta os direitos fundamentais do Estado, discutidos desde o
sculo XV. Adriana Ramos ressalta que, Este instituto foi defendido por Francisco de Vitria (1480-1546), Francisco Suares (1548-1617), Luis Molina (1535-1601), Vattel (1714-1767), que defendem o direito natural falando de um direito comumda humanidade, onde a barbrie era proibida e havia a possibilidade de interveno em um territrio onde houvesse a violao desse direito.HugoGrocionasuaobraDeiureBelliacPacis, de 1625, presume um direito de interveno em relao ao Estado que maltrate os seus prprios cidados, sendo a sua
26FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 20. 27 New beliefs about who is human provide reasons to intervene and make intervention possible in ways it was not previously. By creating new social realities, new norms about intervention, new desirata of publics and decision makers, new beliefs create new policy choices,evenpolicyimperativesforinterventions. Tradues minhas. Idem p. 15. 28HOFFMANN, Florian. Mudana de paradigm? Sobre direitos humanos e segurana humana no mundo ps-11 de setembro In: HERZ, Monica; AMARAL, Arthur B. (orgs.). Terrorismo e Relaes Internacionais: perspectivas e desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro/So Paulo: Editora PUC-Rio/Edies Loyola, 2010. pp. 247, 275. 29 RICOBOM, Gisele. Interveno humanitria: a guerra em nome dos direitos humanos. Belo Horizonte: Editora Frum, 2010.
24
raiz a teoria clssica da guerra justa, conceito desenvolvido por Santo Agostinho, So Ambrosio, So Tomas de Aquino dentre outros pensadores da Idade Mdia.30
O conceito de interveno humanitria tem diversas interpretaes. Ele definido por
Finnemore como a ao de dispor em formao de combate fora militar fora das fronteiras
comopropsitodeprotegernacionaisestrangeirosdaviolnciafeitaporhomens.31 Holzgrefe
vai alm, afirmando que a interveno humanitria a ameaa ou uso da fora fora das
fronteiras do Estado por um Estado ou grupo de Estados, a fim de previnir ou por fim a
difundidas e graves violaes de direitos humanos fundamentais de indivduos outros que seus
prprios cidados, sem a permisso do Estado possedor do territrioemqueaforaaplicada. 32 Murphy, por sua vez, adiciona sua concluso as organizaes internacionais, definindo-a
como aameaaouusodaforaporumEstado,grupo de Estados, ou organizao internacional,
primeiramente com o propsito de proteger os nacionais do Estado alvo de depravaes
difundidasdosdireitoshumanos internacionalmente reconhecidos. 33 Bhiklu Pareth ressalta o
sentimento de humanidade: aes inteiramente ou primariamente guiadas pelo sentimento de
humanidadecompaixoousentimentosaproximados.34
Embora admita diferentes compreenses, a idia principal da interveno humanitria
compreende o uso da fora com o propsito de proteger ou salvar indivduos de violaes dos
direitos humanos, limpeza tnica, genocdio e crimes contra a humanidade. Entende-se como
30 RAMOS, Adriana. Interveno Humanitria. Disponvel em http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10010.pdf. Acesso em 08 de maio de 2010. 31Deploying military force across borders for the purpose of protecting foreign nationals from man made violence.Tradues minhas. FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 53. 32 The treat or use of force across state borders by a state or group of states aimed at preventing or ending widespread and grave violations of the fundamental human rights of individuals other than its own citizens, without the permission of the state within whose territory force is applied, Tradues minhas. Holzgrefe, J. L. TheHumanitarianInterventionDebate, in HOLZGREFE. J. L. KEOHANE, Robert. et an. Humanitarian Intervention: Ethical, Legal, and Political Dilemmas. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 18. 33 Thethreatoruseofforcebyastate,groupofstates,orinternationalorganizationprimarilyforthepurposeofprotecting the nationals of the target state from widespread deprivations of internationally recognized human rights.Tradues minhas. MURPHY, Sean D. Humanitarian Intervention: The United Nations in an Evolving World Order. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1996. p. 11, 12. 34 action wholly or primarily guided by the sentiment of humanity, compassion or fellow-felling. Tradues minhas. Pareth, B. Rethinking Humanitarian Intervention. In PARETH, B. The Dilemmas of Humanitarian Intervention. Edio especial da International Political Science Review. Vol. 18, N. 1, 1997. p. 54.
http://www.viannajr.edu.br/revista/dir/doc/art_10010.pdf
25
direitos humanos todos os direitos inerentes e inalienveis do ser humano contidos na Declarao
Universal dos Direitos do Homem, de 1948, como: igualdade, dignidade, liberdade e justia.35
So crimes contra a humanidade os atos de violao dos direitos humanos ocorridos de
forma trgica rotineiramente ou os atos extraordinrios de matana e brutalidade.36 Limpeza
tnica a ao em larga escala de massacre ou extermnio contra um grupo especfico,
identificado pela raa e/ou etnia.De acordo com o relatrio do Conselho e Comisso Econmica
e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos, genocdio omaisaltocrimeeamais
grave violaodos direitos humanos que possvel cometer. (...) A comisso enfatiza que o
genocdio uma prtica do Estado contra sua populao e afirma que ele no o resultado da
guerra internacional,masumclculodapolticadoEstadosobreassassinatoem massa que tem
sido nomeada como umadestruioestruturale sistemticadepessoas inocentespeloaparato
burocrtico de um Estado.37
Segundo Wheeler, so requisitos mnimos para que uma interveno seja considerada
legitimamente humanitria: (1) emergncia humanitria suprema demandando o uso do ltimo
recurso possvel para estanc-la, ou seja, a fora; (2) requisito de proporcionalidade, ou seja, o
uso da fora deve ser proporcional ao dano humanitrio que se deseja prevenir ou cessar; e (3)
resultado humanitrio positivo.38 Wheeler aponta as dificuldades de avaliar estes requerimentos
uma vez que no so sempre evidentes.Paraoautornohdefinioobjetivaparaemergncia
35 Whereasrecognition of the inherent dignity and of the equal and inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world, Whereas disregard and contempt for human rights have resulted in barbarous acts which have outraged the conscience of mankind, and the advent of a world in which human beings shall enjoy freedom of speech and belief and freedom from fear and want has been proclaimed as the highest aspiration of the common people, Whereas it is essential, if man is not to be compelled to have recourse, as a last resort, to rebellion against tyranny and oppression, that human rights should be protected by the rule of law, Whereas it is essential to promote the development of friendly relations between nations, Whereas the peoples of the United Nations have in the Charter reaffirmed their faith in fundamental human rights, in the dignity and worth of the human person and in the equal rights of men and women and have determined to promote social progress and better standards of life in larger freedom, Whereas Member States have pledged themselves to achieve, in co-operation with the United Nations, the promotion of universal respect for and observance of human rights and fundamental freedoms, Whereas a common understanding of these rights and freedoms is of the greatest importance for the full realization of this pledge (). Declarao Universal dos Direitos Humanos. Disponvel em http://www.un.org/en/documents/udhr/. Acesso em 21 de Setembro de 2011. 36WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 34. 37 Statepoliticalpolicyofmassmurderthathasbeentermedastructuralandsystematicdestructionofinnocent peoplebyaStatebureaucraticapparatus." Tradues minhas. Pargrafo 22 doRelatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos. Disponvel em http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/.Acesso em 21 de setembro de 2011. 38 WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 34.
http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/http://www.un.org/en/documents/udhr/
26
humanitria suprema, alm disso, proporcionalidade, resultado positivo e ltimo recurso
exigem uma avaliao profunda e difcil de ser estabelecida para cada caso em que se levanta a
possibilidade de usar a fora. Alguns autores observam a impossibilidade de se prever o
resultado da ao, o que torna este requisito abstruso de qualificao.
Devido vaga doutrina da poca, ocorreram vrias interpretaes sobre este exemplo de
interveno. Autores divergiam enquanto a causa das aes, alguns as explicando como ao de
libertao da nao oprimida por outro pas, outros considerando como tentativa de acabar com
crimes, alguns referiam-se, ainda, tirania, crueldade ou perseguio religiosa, outros aludiam a
interveno legal em casos de governos fracos ou governos a caminho da anarquia.
Brownlie aponta como exemplo o episdio da invaso de Cuba pelos Estados Unidos da Amrica
em 1898, a ttulo de apoiar o movimento de independncia cubano com relao Espanha. Para
o autor, esta doutrina de interveno humanitria chegou ao fim em 1919.
O segundo modelo, colocado em prtica um sculo depois, est vinculado ao bombardeio
da OTAN contra a Iugoslvia durante 78 dias, iniciado em 24 de maro de 1999. De acordo com
Brownlie, h grande dificuldade em classificar a ao, devido s alegaes de estados membros
da ONU e especialistas em direito internacional e humanitrio, como mostraremos
posteriormente, de que as aes no tiveram motivos humanitrios. O autor lembra que no
comeo de outubro de 1998, a ameaa da fora estava ligada diretamente a agenda poltica
colateral, umadelas, a aceitao da Iugoslvia de vrias demandas polticas em relao ao
status do Kosovo; justificativa que foi apresentada como prenncio a campanha de bombardeio
macio.
As divergncias a respeito do caso do Kosovo giram em torno da legalidade e
legitimidade das aes da OTAN. O dilema de rotulao enfatizado devido ambigidade do
conceito e de normas da interveno humanitria.
A impreciso em torno deste conceito est principalmente no campo do direito
internacional, que sustenta que nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir
direta ou indiretamente, por razo alguma, em assuntos internos e externos de outro Estado,
sendo, portanto, a interveno humanitria uma violao do direito internacional.39 Bellamy
adere afirmao, lembrando queoCap.VIInacartadasNaesUnidasalegaaprevalnciada
39 Declarao dos Princpios da Lei Internacional da Assemblia Geral em 1970 in BELLAMY, Alex J. Responsibility to Protect: the global effort to end mass atrocities. Malden: Ed. Polity, 2009. p. 16.
27
soberaniasobreosdireitosdohomem.Paraoautor,nenhumEstadoougrupodeEstadostemo
direito de intervir, pois, a interveno armada e todas as formas de interveno ou ameaa contra
a personalidade legal de um Estado podem ser consideradas violaes do Direito Internacional.
Para Thardy, as operaes de paz das Naes Unidas so a principal ambigidade
conceitual na relao do uso da fora e a sua carta.40 A confirmao da ambigidade do Direito
Internacional pode ser identificada na dicotomia de alguns documentos da ONU, como por
exemplo, a Declarao dos Princpios da Lei Internacional da Assemblia Geral em 1970 e o
Relatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos
Humanos. " Ao nos termos da Carta das Naes Unidas de fato especificamente autorizada pela Conveno sobre a Preveno e Proteco do Crime de Genocdio, e poderia ser apropriadamente dirigida por exemplo, para a introduo de tutela das Naes Unidas. Os Estados tm a obrigao de, alm de no cometer genocdio, e tambm de prevenir e punir as violaes do crime por outros, e em casos de falha tambm a este respeito, a Conveno de 1948 reconhece que a interveno pode ser justificada para prevenir ou reprimir tais atos e para punir os responsveis "sejam eles governantes, funcionrios pblicosouparticulares. 41
O debate sobre a legalidade e legitimidade da interveno humanitria obscuro.
Macklem enfatiza que ambas esto entrelaadas, lembrando que a legalidade est ligada
necessidade de autorizao do Conselho de Segurana das Naes Unidas e a legitimidade
questo poltica, da obrigao de natureza tica entre os Estados, sem implicar a aprovao do
Conselho.42
A discusso tambm est em torno da sua justificativa. Bull critica o lado moral da
interveno enfatizando que a ordem internacional dependente das condies de proteo e
promoo do bem-estar individual. Para o autor a no-interveno a regra bsica do que
filsofos chamam rule consequentialism. Bull defende que o bem-estar dos indivduos
40 TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 41 Action under the Charter of the United Nations is indeed specifically authorized by the Convention on the Prevention and Protection of the Crime of Genocide, and might as appropriate be directed for example to the introduction of United Nations trusteeship. States have an obligation, besides not to commit genocide, in addition to prevent and punish violations of the crime by others; and in cases of failure in this respect too, the 1948 Convention recognizes that intervention may be justified to prevent or suppress such acts and to punish those responsible "whether they are constitutionally responsible rulers, public officials or private individuals " . Tradues minhas.Pargrafo 18 do Relatrio do Conselho e Comisso Econmica e Social das Naes Unidas sobre Direitos Humanos. Disponvel em http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/. Acesso em 21 de setembro de 2011. 42 MACKLEM, Patrick. Humanitarian Intervention and the Distribution of Sovereignty in International Law. Ethics and International Affairs: Vol. 22, N. 4, Winter 2008. p. 369.
http://www.preventgenocide.org/prevent/UNdocs/whitaker/
28
melhor garantido pelas normas legais do que pelas intervenes humanitrias que permitem a
ausncia de princpios sobre este direito, e enfatiza que permitir as intervenes aceitar que
elasestosemprebaseadasnasprediesculturaisdaquelesquepossuempoder.43
Tericos da Guerra Justa como Michael Walzer argumentam que a interveno
humanitria, se requerida em resposta a massacre, estupro, limpeza tnica e terrorismo de Estado
moralmente justificada. Walzer reconhece que este tipo de interveno contrria ao conceito
de anti-imperialismo e autodeterminao, porm, ressalta que ela "moralmente necessria
quando a crueldade e o sofrimento so extremos e no h foras locais capazes de por fim a
eles." A presuno contra a interveno forte, ns ( esquerda, especialmente) temos razes
para isso, que derivam de nossa oposio poltica imperial e nosso compromisso com a auto-
determinao, mesmo quando o processo de auto-determinao algo menos do que pacfica e
democrtica.44
Walzer afirma que a mesma no pode ser moralmente usada para promover "democracia,
justia econmica ou outras prticas e arranjos " que existem em outros pases. Na viso do autor
a interveno humanitria limitada a exterminar condutas que chocam a conscincia do ser
humano.45
Thomas M. Frank, especialista em Direito Internacional, contribui com uma acepo
legal. O jurista demarca que a interveno militar humanitria justificada se a ao que o
estado acusado perpetrou dentro do seu territrio contra parte de sua populao um tipo
especificamente proibido por acordos internacionais 46 como a Conveno para Preveno e
Punio do Crime contra o Genocdio de 1948, ameaa em relao discriminao racial,
tortura, direitos da mulher e da criana representados na Conveno Internacional de Civis e
Direitos Polticos de 1966, e acordos da lei humanitria internacional aplicados ao conflito civil.
O debate acerca da interveno militar humanitria uma resposta s diversas aes
internacionais, multilaterais e unilaterais ocorridas ao longo da histria do sistema de Estados
43Bull, H. Intervention in World Politics in WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press. 2000. p. 29. 44 Thepresumptionagainstinterventionisstrongwe(ontheleftespecially)havereasonsforit,whichderivefromour opposition to imperial politics and our commitment to self-determination, even when the process of self-determinationissomethinglessthanpeacefulanddemocratic.Tradues minhas. WALZER, Michael. Arguing About War. New Haven, CT: Yale University Press, 2004. pp. 68, 9. 45 Idem. p. 68. 46Thomas M. Frank in RICE, Daniel. DEHN, John. Armed Humanitarian Intervention and International Law: A Primer for Military Professionals. Military Review: 11 de janeiro de 2007.
29
moderno. No entanto, as mudanas nas intervenes, ocorridas durante a Guerra Fria e no ps-
Guerra Fria, e as suas respectivas influncias nas aes internacionais fizeram com que a
discusso a respeito do tema se ampliasse. Compreender estas mudanas uma necessidade para
avaliar o atual contexto normativo em que se direcionam as intervenes militares humanitrias.
1.3 Intervenes humanitrias durante a Guer ra F ria e no ps-Guer ra F ria.
Umas das reivindicaes mais freqentes da interveno militar entre Estados a
promoo ou proteo da ordem internacional. O argumento realista de que intervenes
militares atendem a interesses geoestratgicos est relacionado ao fato de que superpotncias
esto sempre dispostas a manter a ordem e o status quo que as interessam. Para os autores desta
vertente das Relaes Internacionais, a lgica que orientaria a ao dos Estados nas ordens
internacionais durante e depois da Guerra Fria no seria diferente.
A ordem internacional47 durante a Guerra Fria estava configurada em esferas de
influncias, dividas entre os Estados Unidos da Amrica (EUA) e a Unio das Repblicas
SocialistasSoviticas(URSS).DeacordocomLeffler,estesistemafoioresultadodafusoda
competio ideolgica com ameaa geoestratgica.48 Entretanto, para Finnemore, somente
ideologia no era suficiente para criar o sistema de esfera de influncia da Guerra Fria. A autora
afirma que a Guerra Fria comeou quando a URSS expandiu sua capacidade material e o
exrcito sovitico estava em posio de influenciar a poltica no ps II Guerra Mundial, tanto na
Europa como na sia.49
A busca pela hegemonia fez com que a bipolaridade ideolgica dividisse o mundo em
duas esferas de influncias, as quais cada potncia organizava poltica e economicamente de
acordo com sua ideologia. No ocidente, os EUA coordenavam a economia capitalista de acordo
com seus interesses e regras, enquanto nas regies influenciadas pela URSS a economia estava
aparelhada de maneira conveniente ao centro sovitico. As reas de influncia significavam um 47 A compreenso de ordem internacional neste trabalho se limita aos padres de regularizao do comportamento dos Estados, ou mesmo a estrutura do Sistema ou regras do sistema. Ver VICENT, R. J. Nonintervention and International Order. Princeton: Princeton University Press, 1974. pp. 328, 33. 48Melvyn P. Leffler. The Specter of Communism. In FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 124.49 Ibidem.
30
contexto importante para a conduta das intervenes da poca. A tenso entre ameaa ideolgica
e a norma de autodeterminao conformava o padro de interveno da Guerra Fria, tanto as
aes das superpotncias quanto a de outros Estados interventores.
Devido ao processo de descolonizao, a interpretao de soberania tinha forte vnculo
territorial, considerando o Estado como territrio. 50 Outras normas relacionadas soberania
moldavam o poder, mas elas eram muito mais contestadas e condicionais, como as regras sobre
nacionalidade tnica, as quais mobilizavam povos para guerras de libertao e autodeterminao.
A noo de autodeterminao restringia a interveno, devendo ocorrer somente aps
consentimento do governo alvo. Esta idia desempenhou importante papel na agilizao do
processo de descolonizao, criando mais unidades soberanas a partir dos anos 1950.
A ameaa da dominao ideolgica dentro das esferas era a ameaa mais comum, e
suficiente para as potncias justificarem intervenes. As aes baseadas nestas perspectivas no
eram decises coletivas. Ambas as superpotncias interrompiam revolues ou configuraes
polticas locais utilizando intervenes unilaterais com o intuito de preservar o controle poltico e
econmico, como no caso da Zmbia, Zaire e Lbano nos anos 1970 e 1980 para os Estados
Unidos, e da Hungria e a Tchecolosvquia, nos anos 1950 e 1960, para a URSS.51 A
possibilidade de interferncia em rea de influncia alheia era ilegtima, significando motivo
para uma guerra maior.
A interveno tambm era vista como tentativa de agregar regies no-alinhadas no
Oriente Mdio e na sia, conseqentemente, desestabilizando governos na tentativa de prevenir
a autonomia ou a inclinao para a potncia adversria. A causa territorial no era exatamente a
principal razo para interveno, afora os casos do Tibete e Kuait em 1973, e mesmo nestas
ocasies as aes foram universalmente condenadas como ilegtimas. 52 Interesses comerciais
tambm raramente levavam ao uso da fora, com ressalva no caso do Panam e do canal de
Suez, os quais envolveram significantes interesses de segurana geoestratgica e
autodeterminao.53 A defesa dos direitos humanos tambm no era justificativa para
interveno. Aes contra governos violadores, como nos casos de Idi Amim (em Uganda, entre 50Entre 1648 e 1945, o percentual de conflitos no qual o territrio foi redistribudo de 77% e 82%. Entre 1945 e 1996, isto chega a 23%. Idem. p. 126.51 Ver Anexo 1, Quadro 1. 52 Segundo Finnemore, a interveno do Tibete e Kwait em 1973, tiveram ambas razes territoriais. Maiores informaes ver FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 129. 53 Ver Anexo 1, Quadro 1.
31
1971 e 1979) e Pol Pot (em Camboja, entre 1975 e 1979) eram condenadas sob a alegao de que
a soberania era superior aos direitos humanos.
Durante a Guerra Fria, as previses da Carta das Naes Unidas sobre o uso da fora
mantiveram-se secundrias, apesar dos princpios de soberania e no-interveno serem aceitos
pela comunidade de Estados.54 A oposio das duas superpotncias no Conselho de Segurana
paralisou seu sistema e levantou questes sobre sua natureza e funcionalidade. Exceto nos dois
casos da Rodsia em 1972 e da frica do Sul em 1977, o Conselho de Segurana nunca recorreu
ao Captulo VII. 55
At o fim da Guerra Fria a interveno humanitria no era aceita como doutrina legal
pelos Estados. A ao indiana em Bangladesh em 1970,56 a atuao da Tanznia em Uganda em
1979,57 e a interveno do Vietn no Camboja em 1978 58 no foram justificadas pela ndia,
Tanznia e Vietn como humanitrias. Os Estados usaram a fora focando principalmente em
sua defesa prpria. 59
Porm, nos anos 1990, a percepo de interveno humanitria assumiu outros padres.
A nova ordem internacional configurada pela hegemonia dos Estados Unidos da Amrica
distinguiu-se pelo discurso neoliberal.60 A regulao da segurana coletiva foi restabelecida, com
maior preocupao para os conflitos intraestatais, uma vez que a guerra interestatal tornou-se
exceo.61
Apesar da natureza da ordem internacional depois da Guerra Fria ainda estar em processo
de conformao, de acordo com Finnemore, os padres de interveno naquele sistema possuam
caractersticas diferentes da ordem precedente. O comunismo no era mais considerado uma
ameaa ao sistema capitalista, da mesma forma que as esferas de influncia e os blocos
ideolgicos haviam desaparecido. O fim da Guerra Fria provocou algumas modificaes no
sistema internacional e confrontou o estabelecido na carta das Naes Unidas. As
54 TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 55 Ver Anexo 1, Quadro 1. 56 A atuao indiana ajudou o povo a garantir a independncia do Paquisto e colocar fim a represso, 57 A ao da Tanznia resultou na derrubada de Idi Amin do poder. 58 A interveno retirou Pol Pot do poder.59GRAY, Christine. International Law and the Use of Force. New York: Oxford University Press, 2008. p. 33.60 O discurso neoliberal est relacionado a preponderncia do capitalismo aps a Guerra Fria. 61MINEAR, Larry. The Humanitarian Enterprise. Dilemas e Discoveries. Connecticut: Ed. Kumarian. 2002. p. 3.
32
transformaes podem ser resumidas em: tipos de conflito, eroso do conceito de soberania
relacionado a fatores tnicos, e a revitalizao da ONU.
A evoluo dos conflitos e da violncia estabeleceu um novo conceito de guerra e fez
prevalecer as atenes voltadas aos conflitos intraestatais (ou guerras civis). Finnemore afirma
que importante notar a relutncia dos novos Estados interventores (os da OTAN, por exemplo,
no caso do Kosovo, em 1999) em declarar guerra aos Estados alvos, preferindo definir suas
aes como interveno, operao, ou qualquer outra denominao para a ao militar.62 O
aumento dos conflitos intraestatais neste perodo levou o secretrio geral das Naes Unidas,
Boutros-Ghali, a argumentar sobre a necessidade de implementao do Artigo 43 da carta da
ONU, introduzindo a idia de imposio da paz na sua AgendaparaaPaz.63
Os Estados passaram a encarar o comportamento interno de seus semelhantes como fator
da poltica externa. Isto significa que Estados que sistematicamente violavam os direitos
humanos de sua populao passaram a ser considerados ameaas a segurana internacional,
devido possibilidade de gerarem fluxos de refugiados, desestabilizao poltica, tenses sociais
nos pases vizinhos e capacidade de agressividade externa. Esse novo padro do comportamento
estatal modificou a compreenso sobre soberania e autodeterminao.
As novas perspectivas oferecidas pela nova ordem revigoraram as Naes Unidas. O
papel da carta da ONU como documento regulador do recurso a fora foi restabelecido. O
Conselho de Segurana redescobriu suas prerrogativas e se reafirmou como ator essencial nas
decises sobre a segurana internacional, oscilando suas capacidades como regulador, agente e
instrumento.64
Roberts afirma que na dcada de 1990 os problemas humanitrios assumiram um papel
historicamente indito na poltica internacional. 65 As Naes Unidas propagaram um novo
contexto normativo, formulando justificativas para intervenes baseadas em razes
humanitrias. O caso da interveno na Somlia, em 1992, representou uma nova era. Foi a
primeira vez que o Conselho de Segurana das Naes Unidas autorizou uma interveno sob o
62FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 134.63 BOUTROS, Boutros-Ghali. An Agenda for Peace: Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping, Relatrio da Secretaria Geral das Naes Unidas. A/47/277, S/24111, 17 de Junho de 1992. 64 FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 134.65 ROBERTS, Adam. The Role of Humanitarian Issues in International Politics in the 1990s. International Review of the Red Cross: Vol.81(833). 1999. pp. 19, 44.
33
Cap. VII sem o consentimento do governo soberano, por razes explicitamente humanitrias.66
Desde o fim da Guerra Fria, as Naes Unidas empreenderam 47 operaes de paz. Em 2006, os
pases contribuintes para o corpo das misses chegaram a 15 e o nmero coletivo de tropas em
diferentes operaes atingiu 80.000. No mesmo ano, o oramento das intervenes de
manuteno de paz alcanou aproximadamente US$ 5 bilhes.67
As mudanas aps a Guerra Fria afetaram no s as intervenes militares, as quais
passaram a ser genuinamente mais multilaterais e com coalizes multinacionais intensivamente
equipadas. Elas atingiram duas outras formas de coero: a sano econmica e os processos
criminais internacionais. David Cortright e George Lopez rotularam a dcada de 1990 como a
dcada de sanes, devido s 12 sanes impostas pelo Conselho de Segurana.68 As sanes
econmicas foram criticadas por muitos observadores, devido sua suposta ineficincia poltica
e pelas conseqncias humanitrias de sua imposio. Os processos criminais internacionais
eram outro tipo de sano, implantados pela primeira vez desde o fim da II Guerra Mundial para
levar justia a aqueles que cometeram crimes contra a humanidade.
As razes para interveno assumiram outra direo nesta nova ordem. Conforme
Finnemore, trs tipos de ameaa tornaram-se capazes de provocar interveno: a violao de
fronteiras territoriais, conflitos civis envolvendo catstrofes humanitrias e ataques terroristas em
grande escala. De fato, as causas citadas justificaram, na primeira, as aes no Iraque e do Kuait
em 1990, na segunda, as intervenes da Somlia e da Bsnia em 1992 e do Haiti em 1994, e na
terceira, a operao no Afeganisto em 2001.69 A autora ainda acrescenta a possibilidade de uma
quarta, relacionada proliferao das armas de destruio em massa.70
Na dcada de 1990, o entendimento de que a violao dos direitos humanos poderia
causar ameaa a paz e a segurana regional foi institucionalizado nas instituies internacionais,
principalmente nas Naes Unidas, e vrias potncias incluram em sua poltica externa a mesma
percepo. Esta variao ocorreu devido nova compreenso sobre a violao dos direitos
66WHEELER, Nicholas J. Saving strangers: humanitarian intervention in International Society. New York: Oxford University Press, 2000. p. 172. 67 Press Release. GA/ 10356. Fifty-Ninth General Assembly Plenary. Disponvel em http://www.un.org/News/Press/docs/2005/ga10356.doc.htm. Acesso em 18 de maio de 2012. 68 David Cortright e George Lopez in WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. p. 39. 69 Ver Anexo 2, Quadro 2. 70FINNEMORE, Martha. The purpose of intervention: changing beliefs about the use of force. New York: Cornell University Press, 2004. p. 129.
http://www.un.org/News/Press/docs/2005/ga10356.doc.htm
34
humanos como agresso paz e ordem internacional, considerada anteriormente na
configurao da Guerra Fria, como simples atrocidade. Para Tardy, isso significa a formulao
de uma nova concepo de segurana internacional. O autor afirma que a prpria noo de
segurana internacional est sendo redefinida com a mudana em direo segurana humana,
na qual torna o indivduo um objeto referente de segurana.71
Devido a estas mutaes, a interveno deixou de ser vista como simples ao para
interromper massacres, como na dcada de 1960 no Lbano, passando a ser considerada misso
de reconstruo do Estado ou da sociedade (state-bulding). As novas formas de interveno no
so simples intervenes militares com o intuito de desarmar os assassinos e alterar o governo.
Finnemore alega que na tentativa de alinhar a sociedade alvo preferencialmente ao modelo
normativo liberal democrtico, as intervenes do ps Guerra Fria envolveram uma complexa
estrutura de componentes humanitrios, abrangendo reconstruo e servio social providos por
organizaes internacionais em articulao com organizaes no-governamentais.
O comportamento dos Estados em relao a este modelo de interveno o resultado da
configurao da ordem internacional contempornea, que abrange conceitos de segurana
pautados na concepo de que o ser humano o alvo a ser protegido. Contudo, o debate sobre a
proteo dos direitos humanos controverso, uma vez que nenhuma das quatro organizaes
alm da ONU que so capazes de oferecer interveno militar OTAN, Unio Europia,
Unio Africana e a Comisso Econmica dos Estados do Oeste Africano ou ECOWAS na sigla
em ingls tem um conceito identificado de operao para proteo civil.72
Os conflitos intraestatais passaram a emergir devido a problemas internos dos Estados.
Apesar de j existentes no perodo da Guerra Fria, estas crises passaram a apresentar no ps-
Guerra Fria no apenas elementos tidos como tnicos,mas tambm, tenses polticas entre
governos e atores privados operando em ambientes permissivos, falncia do aparato estatal,
ditaduras que violam constantemente os direitos humanos, guerras civis, entre outras
caractersticas. A partir dos anos 1990, guerras civis ocorreram no oeste da frica, concentradas
primeiramente na Repblica Democrtica do Congo, Ruanda, Burundi e Sudo e posteriormente
em pases como a Nigria, Libria, Serra Leoa e Costa do Marfim. Conflitos ocasionados pela 71 Theverynotionofinternationalsecurityisbeingredefined,withtheshift towardshumansecuritymakingtheindividualareferentobjectofsecurity. Tradues minhas. TARDY, Thierry. The UN and the Use of Force: A Marriage Against Nature. Security Dialogue: Vol. 38, N. 49, 2007. 72WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. p. 51.
35
fragmentao da sociedade ou do governo eclodiram, tambm, na sia central, particularmente
no Afeganisto, Cucaso e Caxemira, alm de continuarem, redimensionadas, na Amrica do Sul
em pases como Colmbia, Peru e Bolvia.73
Na dcada de 1990, guerras caracterizadas como civis representavam 94% dos conflitos
com mais de 1000 mortes relacionadas ao campo de batalha.74 Estas crises foram assinaladas por
grande derramamento de sangue e de refugiados, doenas, desnutrio e fome. Os dados a seguir
so oferecidos por Weiss. 75 No caso da Repblica Democrtica do Congo, o nmero estimado de
mortos chegou a 4 milhes; em Darfur, houve 400.000 mortes; e em Ruanda, este nmero
alcanou 800.000. Na Bsnia-Hezergovina houve 250.000 mortes, entre 20.000 e 50.000
estupros e 2,7 milhes de refugiados. Na Somlia, 4.5 milhes de pessoas necessitaram de
assistncia, e entre 200.000 e 350.000 morreram de fome. Hoje, na Repblica Democrtica do
Congo, entre 30.000 e 40.000 pessoas morrem mensalmente devido a doenas e desnutrio
relacionadas ao conflito, e em Uganda, 2 milhes de deslocados vivem em 200 campos de
refugiados De acordo com Marshall, na era ps Guerra Fria (1989-1999), em geral, guerras
principalmente as civis, mas algumas interestatais, mataram mais de 1.5 milhes de pessoas.76
As crises tnicas, assim como guerras civis, e a instabilidade poltica ocorrida nos pases
doterceiromundosoresultadodoprocessodedescolonizaoedainflunciadaspotncias
nas ditaduras militares durante a Guerra Fria. Entretanto, com o fim da era bipolar, as influncias
mudaram. Atualmente, estes pases so influenciados por atores no estatais com importante
papel e poder nas economias financiadas pelas crescentes atividades ilcitas, alm da presena
cada vez maior da China, tanto na sia quanto na frica.
As novas formas de conflito armado apresentam-se em pases que possuem reas
territoriais fragmentadas e sem nenhuma autoridade. Estes conflitos, ocasionados pela crise ou
falncia estatal, so lutados por beligerantes com poderes mnimos, freqentemente pelos
mltiplos movimentos de oposies armadas a nvel interno que ignoram as delimitaes das
73 Idem. p.61. 74 O campo de batalha das guerras intraestatais no so convencionais como das guerras inter-estatais, caracterizados por linhas de frentes. Eles apresentam violncia que gravita em relao aos recursos e ao trfico, para os quais fronteiras no tem nenhum significado. WEISS, Thomas G. Humanitarian Intervention: War and Conflict in the Modern World. Cambridge: Polity, 2009. pp. 61, 62. 75Idem. pp. 51, 53. 76 Dados retirados de Monty G. Marshall, Center for Systemic Peace. MajorEpisodesofPoliticalViolence,1946-2008. Disponvel em http://www.systemicpeace.org/inscr/MEPVcodebook2008.pdf. Acesso 02 de outubro de 2011.
http://www.systemicpeace.org/inscr/MEPVcodebook2008.pdf
36
fronteiras reconhecidas internacionalmente. Em vrios pases os governos centrais possuem
autoridade somente enquanto membro das Naes Unidas, na capital nacional e sobre as
principais indstrias de exportao. Segundo Weiss, eles se diferem de Estados soberanos
convencionais em termos de controle autoritrio sobre as populaes e recursos. A nvel
territorial, eles sofrem de uma 'separao', uma negao de sua autoridade exclusiva como
Estado ".77
DefinidoscomoEstadosFracassadosouEstadosFalidosestespasesrepresentamos
lugares aonde as intervenes militares ocorreram ou possuem caractersticas para sua
implementao. Estado Fracassado descreve Estados fora dos modelos ocidentais enquanto
unidade nacional, prestgio poltico, riqueza e poder militar. Tambm no possuem capacidade
de buscar por interesse nacional devido falta de recursos financeiros, tecnologia e recursos
humanos. O termo Estado Falido foi cunhado por Gerald Helman e Steven Rather aps a
imploso da Somlia em 1992