Revista Linha Mestra Ano X. No. 30 (set.dez.2016) ISSN: 1980-9026
Arte
Ilustração: Marina Colasanti
Arte gráfica: Bia Porto – Artista visual | designer gráfica | designer de roupas infantis (JayKali)
www.biaporto.weebly.com | www.jaykali.weebly.com
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 II
SUMÁRIO
EXPEDIENTE ........................................................................................................................... 1
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................... 3
EDITORIAL ............................................................................................................................... 4
NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL ......................................................................................... 4
Davina Marques
Marcus Pereira Novaes
Adriana Lia Friszman de Laplane
ARTIGOS ................................................................................................................................... 6
A ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO E DO TEMPO CURRICULAR PARA O ENSINO DO
SISTEMA DE ESCRITA ALFABÉTICA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS
CONTRIBUIÇÕES DAS METODOLOGIAS DO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA ..... 6
Lucinalva Andrade Ataíde de Almeida
Maria Geiziane Bezerra Souza
Priscila Maria Vieira dos Santos Magalhães
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA ................ 11
Marco Antônio Franco do Amaral
Suellem Ferreira do Amaral Oliveira
Ana Lúcia Ribeiro Nascimento
PRÁTICAS DE LEITURA NO 1° CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO
DE CASO ................................................................................................................................. 16
Suellem Ferreira Amaral
Michelle Castro Lima
Ana Lúcia Ribeiro Nascimento
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE
APRENDIZAGEM: UMA ABORDAGEM À LUZ DAS VOZES DA ESCOLA E DA
FAMÍLIA ................................................................................................................................. 28
Maria Eurácia Barreto de Andrade
“LUGAR DE NUVEM É ESTAR EM CENA TAMBÉM NA AULA” ................................. 35
Tânia Villarroel Andrade
PROCESSO DE CRIAÇÃO: LEITURAS DO (IM)POSSÍVEL ............................................. 39
Tânia Villarroel Andrade
SUMÁRIO
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 III
BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO
EXPERIÊNCIAS NO DIÁLOGO ENTRE COLETIVOS DOCENTES ................................ 43
Mairce da Silva Araújo
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais
Ruttyê Silva de Abreu
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA ..................................... 49
Adriana Pastorello Buim Arena
O (IM)POSSÍVEL CHAMADO DO MONSTRO: ENTRE O HIPER-REALISMO E O
FANTÁSTICO/INSÓLITO ..................................................................................................... 55
Janaina Rosa Arruda
LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA, DE LEONARDO ARROYO (1968), E A
PRODUÇÃO BRASILEIRA SOBRE LITERATURA INFANTIL ........................................ 60
Viviane Bessão de Assis
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS ........ 65
Simone Machado de Athayde
DAS BORDAS (LITORÂNEAS) PARA O FLUXO DA PALAVRA: DIÁLOGOS COM O
GRUPO SARAU DAS OSTRAS ............................................................................................ 74
Eliane Aparecida Bacocina
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: ENTRE MEMÓRIAS E PRÁTICAS .................. 79
Alessandra Ribeiro Baptista
Magda Cristina Dias de Lucena
Amélia Escotto do Amaral Ribeiro
O REPENSAR A EDUCAÇÃO NA FAVELA: UMA DOBRA POSSÍVEL ......................... 84
Karen Cesar Baptista
Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
O ESTUDO DE NARRATIVAS TRADICIONAIS ARMÊNIAS NO ENSINO MÉDIO ............. 89
Dayse Oliveira Barbosa
A OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS ESTADUAIS PAULISTAS: O DISCURSO ESTUDANTIL
CONTRA A REORGANIZAÇÃO AVALIADO A PARTIR DA PRODUÇÃO DE UM
CORDEL COLETIVO ............................................................................................................. 94
Paulo Roxo Barja
Cláudia Regina Lemes
SUMÁRIO
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 IV
O DISCURSO JOVEM: CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA LITERATURA
DE CORDEL ............................................................................................................................ 99
Paulo Roxo Barja
Cláudia Regina Lemes
PRÁTICAS DE ALFABETIZADORAS EM FORMAÇÃO PELO PNAIC: USO DAS
OBRAS COMPLEMENTARES E/OU ALFABETIZAÇÃO NA IDADE CERTA ......... 105
Regiane Pradela da Silva Bastos
Cancionila Janzkovski Cardoso
PRÁTICAS DE LEITURA NO CONTEXTO DO PNAIC: CANTINHO DE LEITURA E
LEITURA DELEITE ............................................................................................................. 110
Regiane Pradela da Silva Bastos
Claudia Leite Brandão
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO DISCURSIVO
ORAL ..................................................................................................................................... 115
Fabrini Katrine da Silva Bilro
Débora Amorim Gomes da Costa-Maciel
CONTRIBUIÇÕES DA SALA DE RECURSOS MULTIFUNCIONAL PARA A
MELHORIA DOS PROCESSOS EDUCACIONAIS INCLUSIVOS ................................... 120
Caroline Elizabel Blaszko
Evelise Maria Labatut Portilho
Alessandra Weiss Ferraz de Oliveira
UMA REFLEXÃO ACERCA DO SER PROFESSOR NOS ANOS INICIAIS:
IDENTIDADE E PROFISSIONALIDADE .......................................................................... 125
Caroline Elizabel Blaszko
Nájela Tavares Ujiie
Evelise Maria Labatut Portilho
OS CÍRCULOS DE LEITURA NA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: UMA EXPERIÊNCIA
COM O PIBID ....................................................................................................................... 130
Carla Luzia Carneiro Borges
Sônia Moreira Coutinho
UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE REPRESENTAÇÕES DE LEITURA
COMPARTILHADAS ENTRE PROFESSORES DE LÍNGUA ESPANHOLA DO
INTERIOR PAULISTA ......................................................................................................... 135
Rafael Ribeiro dos Santos Borges
Luzmara Curcino
SUMÁRIO
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 V
UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO ....... 139
Claudia Leite Brandão
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues
BRINCANDO COM AS PALAVRAS: O POEMA EM SALA DE AULA ......................... 144
Regiane Meres Menezes Brites
Ana Lúcia Nunes da Cunha Vilela
A MÁQUINA DE ROSTIDADE E EDUCAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO .. 149
Maria dos Remédios de Brito
Helane Súzia Silva dos Santos
AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A APREENSÃO DO
CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO MUSICAL ............................................................... 153
Daniel Bortolotti Calipo
PARA QUE SE LÊ EM UM SEXTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL?
SISTEMATIZANDO ALGUNS ACHADOS DA PESQUISA ............................................. 158
Thiago Moura Camilo
Claudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
PERSPECTIVAS DE LEITURA, ESCRITA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INFANTIL:
AFINAL, O QUE QUEREM AS CRIANÇAS? .................................................................... 163
Maria Clara de Lima Santiago Camões
Cristiane Gomes de Oliveira
DAS (IM)POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO ORIENTADOR PEDAGÓGICO NO
COTIDIANO ESCOLAR: DOBRAS DA FORMAÇÃO DOCENTE ..................................... 168
Patrícia Regina Infanger Campos
“CUIDADO DE SI E A BELEZA EM GESTOS COTIDIANOS”: PARTILHANDO
SABERES SOBRE O CUIDADO COM O CORPO ............................................................. 171
Elisabete Cardieri
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA .............................. 175
Cíntia Maria Cardoso
DA LEITURA DE LITERATURA AO ENSINO DAS ESTRATÉGIAS DE
COMPREENSÃO LEITORA: DIÁLOGOS POSSÍVEIS E IMPRESCINDÍVEIS .............. 181
Neyse Siqueira Cardoso
Gildene Lima de Souza Fernandes
JUVENTUDE E CULTURA NO SÉCULO XXI: A LEITURA LITERÁRIA ..................... 187
Rosimeiri Darc Cardoso
SUMÁRIO
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 VI
ERA UMA VEZ... JOÃO E MARIA EM UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR ............ 192
Andréia Nascimento Carmo
POSSIBILIDADES DE LEITURA E ESCRITA A PARTIR DA MÚSICA ........................ 197
Agenor Francisco de Carvalho
CINEMA, FABULAÇÃO E EDUCAÇÃO INFANTIL ........................................................ 202
Janete Magalhães Carvalho
Sandra Kretli da Silva
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 1
Revista Linha Mestra – Ano X. No. 30 (set.dez.2016). ISSN: 1980-9026
Expediente
Editores
Alik Wunder
Marcus Novaes
Coordenação Geral do Comitê Científico
Adriana Laplane (Unicamp), Davina Marques (IFSP) e Marcus Novaes (Unicamp)
Comitê Científico e Avaliação
Adair Mendes Nacarato (USF)
Adilson Nascimento de Jesus (UNICAMP)
Adriana Varani (UNICAMP)
Adriane Teresinha Sartori (UFMG)
Alexandro Henrique Paixão (UNICAMP)
Ana Carolina Perussi Alves Brandão (UFPE)
Ana Cristina do Canto Lopes Bastos (Fundação CASA)
Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis (UNICAMP)
André Luiz Paulilo (UNICAMP)
Cândida Maria Santos Daltro Alves (UESC)
Carlos Eduardo Albuquerque Miranda (UNICAMP)
Cecília Maria Aldigueri Goulart (UFF)
Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto (UNICAMP)
Dagoberto Buim Arena (UNESP/Marília)
Denise Maria de Carvalho Lopes (UFRN)
Elenise Cristina Pires de Andrade (UEFS)
Eliana Kefalás Oliveira (UFAL )
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Érica Speglich (UNICAMP)
Filomena Elaine Paiva Assolini (USP)
Gabriela Domingues Coppola (ECC)
Gabriela Fiorin Rigotti (FIMI)
Gabriela Guarnieri de Campos Tebet (UNICAMP)
Giovana Scareli (UFSJ)
Guilherme do Val Toledo Prado (UNICAMP)
Heloísa Andréia de Matos Lins (UNICAMP)
Jackeline Rodrigues Mendes (UNICAMP)
José Fernando Teles da Rocha (FESB)
Lavínia Lopes Salomão Magiolino (UNICAMP)
Letícia Fonseca Richthofen de Freitas (UFPEL)
Lilian Lopes Martin da Silva (UNICAMP)
Luciane Moreira de Oliveira (PUCCAMP)
Maria da Penha Casado Alves (UFRN)
EXPEDIENTE
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 2
Maria das Graças Monteiro Castro (UFG)
Maria das Graças Sandi Magalhães (Anhanguera-FSJ)
Maria de Fátima Carvalho (USP)
Maria do Carmo Martins (UNICAMP)
Maria Inês Ghilardi Lucena (PUCCAMP)
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (UNESP)
Marly Amarilha (UNICAMP)
Mirian Lange Noal (UFMS)
Nélia Aparecida da Silva (UNICAMP)
Norma Sandra de Almeida Ferreira (UNICAMP)
Núbio Delanne Ferraz Mafra (UEL)
Raquel Salek Fiad (UNICAMP)
Rosa Maria Hessel Silveira (UFRGS)
Sara Mourão Monteiro (UFMG)
Sílvia Cordeiro Nassif (UNICAMP)
Telma Ferraz Leal (UFPE)
Wenceslao Machado de Oliveira Jr. (UNICAMP)
Zilda Maria Giosuelli (UNICAMP)
Secretaria
Lucy A. Rudék
Katya Marion Pereira
Maria José Duarte Marcussi
Editoração
Nelson Silva
Arte
Bia Porto
http://www.biaporto.weebly.com
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 3
APRESENTAÇÃO
Esta edição da Revista Linha Mestra reúne textos de participantes do 20° Congresso de
Leitura do Brasil (COLE) que teve como tema “Nas dobras do (im)possível”. O COLE foi
realizado entre os dias 11 e 15 de julho de 2016 na Universidade Estadual de Campinas e
organizado pela Associação de Leitura do Brasil (ALB), com apoio da Faculdade de Educação
da Unicamp.
A revista reúne 291 artigos referentes às comunicações orais e mesas-redondas do evento.
Estes artigos são o resultado parcial das 15 mesas-redondas e 79 sessões de comunicação do
evento, que totalizaram 461 trabalhos aprovados.
Mais informações sobre o evento encontram-se no site do COLE: http://www.cole-
alb.com.br/.
A ALB e o Comitê Científico do 20° COLE tem a alegria de compartilhar aqui, o material
apresentado no congresso.
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 4
EDITORIAL
NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL
Davina Marques
Marcus Pereira Novaes
Adriana Lia Friszman de Laplane
A difusa fronteira que separa o sonho e a realidade é
um chão fértil...
José Eduardo Agualusa
O 20º Congresso de Leitura do Brasil (COLE), com o tema nas dobras do (im)possível,
propôs pensarmos a leitura como abertura a infinitas possibilidades de compreensão e
intervenção no mundo. Nas dobras, algo desperta e surge como um cintilante brilho, algo se
projeta como um desdobramento de algo vivido, algo entre sentir e experimentar.
Desejante de socializar sonhos, de in-ventar ideias, de pensar-se para além do possível, a
diretoria da ALB apresentou aos conferencistas esta nova edição do congresso. Com a epígrafe
do angolano José Eduardo Agualusa, destacamos a difusa fronteira existente entre o sonho e a
realidade, lembrando, com o autor, que esse chão é fértil. Nas nossas tantas tarefas cotidianas,
nem sempre reservamos o tempo necessário para re-inventar nossas vidas, re-ver práticas. Em
outros momentos, é exatamente isso que nos move.
Promovemos o encontro com autor@s, pesquisador@s e artistas. Lembramos outro
escritor angolano, Ondjaki, com suas bicicletas de bigodes, suas escuridões bonitas, suas
meninas de tantas tranças, suas poetagens e suas escrituras, para lembrar o que ainda não foi
contado, explorando o universo da leitura a partir de um olhar atravessado pelo sonho, pela
criação, pelo irreal, pela possilibidade de alcance daquilo que ainda não é, daquilo que está em
potência, ainda perdido na densidade poética da nuvem – nas palavras desse prosador-poeta.
Consuelo de Paula nos dá a pista: mesmo mar, olhos iguais, um olho só, um grande cais.
Para inspirar as dobras dos nossos (im)possíveis, desejamos promover potentes encontros com
a poesia, o pensamento acadêmico e produções literárias indígenas e afro-brasileiras em nossas
conferências e mesas, pensamentos para além do já instituído na linguagem. Ou, de outro modo,
o COLE buscou proporcionar experiências em que a linguagem pudesse ser, de certo modo,
desobedecida. Se a linguagem não desobedecesse e se não fosse desobedecida não haveria
filosofia, nem arte, nem amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada, lembra-nos Carlos Skliar.
Que encontro melhor poderia haver do que este da experimentação com as palavras nas suas
camadas que constroem e apagam significados e lançam a língua a cintilar em movimentos de
criações enunciando mundos em que as diferenças possam coexistir?
O nosso cotidiano de amantes da leitura tem sido marcado por atravessamentos nem
sempre tão potentes. Gostaríamos que a leitura e literatura pudessem funcionar como uma
flecha e atingir o coração e a cabeça das pessoas, com Daniel Munduruku, e assim pudessem
reverter um pouco o olhar sobre situações de exclusões e sobre a retirada do direito da fala de
minorias, pois muitas coisas ainda precisam mudar e o horizonte, neste momento, parece
obscuro e temeroso.
Os caminhos precisam ser outros, [...] a prática de leitura [...] precisa ocorrer num espaço
de maior liberdade possível, lembramos com Marisa Lajolo. É preciso deixar registrado o
compromisso da Associação de Leitura do Brasil com movimentos de resistência aos rumos
que interesses contrários à democracia e à soberania do voto popular promoveram no país neste
EDITORIAL
LINHA MESTRA, N.30, P.4-5, SET.DEZ.2016 5
ano de 2016. O efeito desses interesses pode ser sentido nas ameaças recentes às políticas
públicas de saúde e de educação, na previdência social e na legislação trabalhista. Essas
ameaças recaem, principalmente, nos setores mais vulneráveis da sociedade. As reações a essas
investidas contra direitos que sequer chegaram a consolidar-se na nossa desigual sociedade são
muitas e diversas. Estudantes e professor@s resistem, assim como trabalhador@s de diferentes
setores e movimentos sociais. Apesar de cortes nos financiamentos e das políticas que exigem
cada vez mais produções d@s pesquisador@s e educador@s, também resistimos. Fomos
obrigados, por diversos motivos, a reavaliar o tamanho do congresso. Mesmo com essa redução,
o evento recebeu quatro conferências, 15 mesas-redondas e 79 sessões de comunicação com
461 trabalhos aprovados pelo nosso grupo de avaliadores, representando a produção de quase
mil congressistas. Além disso, nas sessões especiais tivemos as Perspectivas da Leitura no
Brasil e a Sessão Especial Comemorativa 20° COLE. O congresso trouxe ainda a oferta de 22
minicursos aos seus participantes, exposições e a Mostra Kino de Cinema.
Os participantes com trabalhos aprovados e apresentados no 20º COLE submeteram seus
textos a publicação neste número da Revista Linha Mestra, que temos o prazer de aqui
apresentar.
Desejamos boa leitura e que juntos inventemos nossos tempos possíveis!
LINHA MESTRA, N.30, P.6-10, SET.DEZ.2016 6
ARTIGOS
A ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO E DO TEMPO CURRICULAR PARA O
ENSINO DO SISTEMA DE ESCRITA ALFABÉTICA: UMA ANÁLISE A
PARTIR DAS CONTRIBUIÇÕES DAS METODOLOGIAS DO ENSINO DA
LÍNGUA PORTUGUESA
Lucinalva Andrade Ataíde de Almeida1
Maria Geiziane Bezerra Souza2
Priscila Maria Vieira dos Santos Magalhães3
Introdução
O presente trabalho se inscreve no campo das discussões contemporâneas acerca do
currículo e das práticas de ensino do sistema de escrita alfabética (SEA), e é fruto de uma
pesquisa de campo desenvolvido em uma escola pública do agreste pernambucano. Nesse
sentido, tivemos como objetivo analisar as contribuições das Metodologias do Ensino de Língua
Portuguesa (MELP’s) do curso de Pedagogia para a organização do currículo e do tempo
curricular no ensino do Sistema de Escrita Alfabética no primeiro ciclo do ensino fundamental.
Partimos da compreensão de que as práticas de ensino do SEA, objeto deste estudo,
consistem nas ações desenvolvidas pelos professores em sua prática docente, tendo em vista a
concretização do processo de ensino. Desta feita, mediante as diversas transformações que tais
práticas passaram ao longo dos tempos, a exemplo dos estudos desenvolvidos a partir da década
de 1970 por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, isto é, da Teoria da Psicogênese da Escrita, passa-
se a considerar a escrita como sistema notacional e não como um código.
Assim, como expõe Morais (2005), para dominar um sistema notacional a criança precisa
desenvolver representações adequadas sobre o funcionamento do mesmo, sobre suas
propriedades. De tal modo, não basta que os discentes conheçam as letras que compõem o
alfabeto e seus respectivos sons e formas, é necessário que passem a compreender tal sistema.
Logo, quando se considera tais práticas como decifrado e cópia, se faz com que, muitas
vezes, elas apareçam desgarradas dos propósitos que lhes conferem sentido no meio social
(LERNER, 2002), de modo que, tendem a se apresentar quase sempre como práticas que pouco
ou nada tem contribuído com o processo significativo de apropriação e utilização da escrita.
Nessa perspectiva, considera-se que ao professor alfabetizador não é interessante assumir
o papel de transmissor de conteúdo como se os estudantes nada soubessem a respeito do sistema
de escrita. Tampouco contribuiria ao se distanciar nesse processo, como se a apropriação e
consolidação do SEA devesse ocorrer sem sua intervenção. Entende-se que cabe-lhe assumir
uma postura intermediária (SEBER, 2009), de mediador entre as crianças e o conhecimento da
escrita, de modo a criar condições propícias para a aprendizagem das crianças.
Desse modo, é necessário considerar, como afirma Coutinho (2005), os alunos não se
lançarão ao desafio de escrever se houver a expectativa de que produzam textos escritos de
forma totalmente convencional. De tal modo, o professor também pode não contribuir se
1 Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste, Caruaru, Pernambuco, Brasil. E-mail:
[email protected]. 2 Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste, Caruaru, Pernambuco, Brasil. E-mail:
[email protected]. 3 Universidade Federal de Pernambuco/Centro Acadêmico do Agreste, Caruaru, Pernambuco, Brasil. E-mail:
A ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO E DO TEMPO CURRICULAR PARA O ENSINO DO SISTEMA DE...
LINHA MESTRA, N.30, P.6-10, SET.DEZ.2016 7
maneira significativa com a aprendizagem da escrita se não permitir que as crianças escrevam
livremente a fim de manifestarem suas concepções acerca da escrita, criando obstáculos para
que os discentes elaborem suas hipóteses sobre o sistema notacional.
Nessa perspectiva, a prática de ensino do sistema de escrita alfabética está diretamente
relacionada à organização do currículo e do tempo curricular, os quais se desenvolvem no
âmbito da prática curricular, sendo estas compreendidas como um “conjunto de atividades que
os sujeitos envolvidos no processo escolar desenvolvem ao conformarem e materializarem a
experiência de ensinar e educar” (MOREIRA, 2001, p. 72).
Vislumbramos, assim, que as práticas de ensino do SEA se materializam mediante a
organização curricular, assim, sendo esta “um dispositivo conceitual, racionalizador dos saberes
escolares no quadro de um modelo institucional e organizacional da escola” (PINHO;
CORREIA, 2012, p. 03), depreendemos que no âmbito da sala de aula os professores organizam
o currículo de Língua Portuguesa para além daquilo que está expresso nos documentos oficiais,
o que significa dizer que tais profissionais selecionam os conteúdos, os procedimentos
metodológicos e avaliativos, as atividades e os recursos que melhor dialoguem com o contexto
em que estão inseridas.
Além da organização curricular, as práticas de ensino do SEA são basiladas também pelo
tempo curricular, sendo este compreendido como uma situação real, concreta, regularizada,
institucionalizada, com suas especificidades em que se estabelecem as relações político-
pedagógicas (SÉRGIO, 2008).
Nesta direção, no que tange ao nosso percurso teórico-metodológico, os sujeitos da pesquisa
foram selecionados mediante aplicação de questionários com as turmas do 1º ao 9º período do curso
de Pedagogia de uma universidade pública do agreste pernambucano, e para coleta dos dados
realizamos entrevista semiestruturadas e observação das práticas curriculares dos sujeitos, as quais
foram tratadas a partir da Análise do Discurso na perspectiva de Orlandi (2010).
Desenvolvimento
Percebemos mediante a observação das práticas das alunas-professoras, que as MELP’s
contribuíram para o desenvolvimento de conhecimentos de natureza teórica para embasar a prática
das professoras, de modo a subsidiar suas ações no cotidiano da sala de aula do ensino fundamental,
o que pode ser evidenciado quando passam a fazer uso dos conhecimentos adquiridos para
identificar as hipóteses de escrita das crianças por meio das atividades realizadas.
Nessa direção, percebemos que os referidos componentes curriculares contribuíram para
que alunas-professoras assumissem a postura intermediária, defendida por Seber (2009), no
ensino do sistema notacional, criando condições propícias para a aprendizagem através da
compreensão das intenções de escrita.
Notamos ainda, que as alunas-professoras propunham a realização de leituras silenciosas e
em voz alta e principalmente individuais, tanto nas aulas de Língua Portuguesa quanto nas aulas
dos demais componentes curriculares, ensinando o SEA de forma sistemática e interdisciplinar.
Entretanto é preciso destacar que a utilização que elas fazem desses conhecimentos não
corresponde a uma transposição didática direta, já que não reproduzem os conteúdos em suas
aulas “tal qual” foram trabalhados nas MELP’s, antes fazem as adaptações que julgam
necessárias para o processo de ensino-aprendizagem.
Evidenciamos que a AP2 destaca a contribuição dos referidos componentes para uma
organização curricular que contemple a contação de histórias de forma mais dinâmica,
envolvendo a participação dos discentes e o trabalho com diversos gêneros textuais, o que pode
ser percebido quando ela diz: “Então, o trabalho com gêneros textuais tomou outro... outra ótica
A ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO E DO TEMPO CURRICULAR PARA O ENSINO DO SISTEMA DE...
LINHA MESTRA, N.30, P.6-10, SET.DEZ.2016 8
no sentido de perceber de outras formas os gêneros... muitas coisas que ele falou sobre as
fábulas, os contos, a forma de incentivar o aluno a ele, continuar a história”.
Identificamos os discursos de todas as professoras fazem menção à contribuição das
MELP’s para a organização curricular no que se refere à identificação das necessidades da
turma para a realização de um processo de ensino-aprendizagem do SEA mais significativo,
isto é, em que se trabalhem conteúdos relacionados à realidade dos alunos. Exemplo disso é o
discurso de AP1 quando diz: “a gente busca introduzir outras atividades que possam também
ver o contexto deles, e o que a gente vê nas disciplinas de Português”. Assim, observamos que
elas faziam as adaptações necessárias daquilo que se expressava no livro didático, a fim de
atender as peculiaridades dos alunos.
Isto nos leva a considerar que os referidos componentes curriculares têm contribuído para
que as alunas-professoras tenham um olhar mais crítico em relação o livro didático, cooperando
para que não sejam apenas reprodutoras do currículo pensado para os anos iniciais do ensino
fundamental expresso nesse material.
Os discursos das alunas-professoras apontam ainda a seleção e utilização de jogos e
atividades inovadoras como sendo uma das contribuições das MELP’s pra sua organização
curricular com vista no ensino do SEA, o que pode ser evidenciado no enunciado de AP1
quando diz: “eu percebi alguns jogos, algumas atividades que não eram tão tradicionais como
eu via no livro didático”.
O exposto se configura como uma contribuição relevante para a prática de ensino do
sistema notacional, pois como afirma Morais (2012, p. 118) “o trabalho com palavras estáveis,
como o nome próprio, e a prática de montagem e desmontagem de palavras, com o alfabeto
móvel, têm se revelado boas alternativas para auxiliar as crianças a avançarem na apropriação
do SEA”. De tal modo, percebemos que as MELP’s têm sua importância revelada no que
concernente à utilização de jogos e atividades que fujam da perspectiva tradicionalista com as
quais as professoras lidavam e as quais eram veiculadas pelo livro didático.
Com vista na organização do currículo de Língua Portuguesa para o ensino da escrita, as
alunas-professoras necessitam levar em conta um elemento fundamental em sua prática, qual
seja o tempo curricular, uma vez que ambos encontram-se imbricados de tal modo, que no
cotidiano da sala de aula um confere sentido e razão de ser ao outro, visto que ele se configura
enquanto o lastro onde se desenvolve todo o trabalho docente (SANTIAGO, 1990).
A esse respeito os discursos das professoras evidenciam que as mesmas concebem a
organização do tempo no que diz respeito à realização das atividades, de acordo com o tempo
cronológico de cada aula, isto é, com base no tempo estabelecido pelo sistema de ensino, mas
não se restringindo a ele. Nessa direção, as alunas-professoras 1 e 2 afirmam, respectivamente:
“a gente recebe um cronograma do ano todo, aí vem a data, já vem a atividade e a aula que é
dada em cada aula. Então, todo mundo que é do Se Liga tem que estar dentro do fluxo”; “Esse
ano teve um aumento em Português e Matemática e uma diminuição das outras. Seis de
Português. Seis aulas né? Cada uma assim, de cinquenta minutos”.
Percebemos que mesmo havendo uma exigência por parte do sistema de ensino no sentido
de que a organização do tempo curricular se dê de maneira uniforme em todas as turmas, a fim
de que todos os discentes que compõe as classes de Se liga da escola estejam aprendendo os
mesmos conteúdos com base em uma situação regularizada institucionalmente, os discursos
revelam que a maneira como fazem esta organização não se limita as imposições, uma vez que
as MELP’s contribuíram para que realizem as adaptações necessárias do tempo em sala de aula.
O exposto pode ser evidenciado no enunciado de AP quando diz: “Tem sempre essa cobrança,
mas quando não dá a gente faz mesmo, porque acho que uma coisa que não é levado conta
dentro desse projeto é o tempo do aluno”.
A ORGANIZAÇÃO DO CURRÍCULO E DO TEMPO CURRICULAR PARA O ENSINO DO SISTEMA DE...
LINHA MESTRA, N.30, P.6-10, SET.DEZ.2016 9
Nesse sentido, apreendemos que essa adequação ocorre na medida em que elas procuram
fazer a organização do tempo curricular conforme o tempo de desenvolvimento dos alunos, ou
seja, tal organização passa a contemplar além das exigências do sistema, as necessidades, as
peculiaridades e os ritmos de aprendizagem dos discentes em relação aos SEA.
Destarte, os enunciados das alunas-professoras evidenciam as contribuições das MELP’s
para a flexibilização do tempo curricular conforme as necessidades que vão se apresentando no
cotidiano para o aprofundamento dos conteúdos e para a realização do trabalho interdisciplinar. Isto
exige em muitos momentos que reelaboram os conhecimentos que foram vivenciados na formação,
fazendo as adequações necessárias, por meio da mobilização de saberes para que possibilitassem a
organização do tempo conforme seu contexto e de modo a responder as múltiplas conjunturas que
vão se configurando mediante a materialização de sua prática de ensino.
Conclusões
Tendo em vista que objetivamos analisar as contribuições das Metodologias do Ensino
de Língua Portuguesa do curso de Pedagogia para a organização do currículo e do tempo
curricular para o ensino do sistema de escrita alfabética no primeiro ciclo do ensino
fundamental, os dados analisados nos levaram a depreender que tais componentes contribuem
para a organização curricular que as professoras fazem para o ensino do sistema notacional, em
um movimento que as leva a contemplar conteúdos que foram trabalhados no âmbito da
formação. Mas isso não ocorre de maneira uniforme, pois existem elementos trabalhados nas
MELP’s que as mesmas não contemplam, ou que recontextualizam cotidianamente.
Já a contribuição para a organização do tempo curricular caminha no sentido de levar as
alunas-professoras a tecerem tal organização de acordo com o tempo instituído pelo sistema de
ensino, mas não se restringindo ao mesmo, visto que passam a considerar variáveis como o
ritmo de desenvolvimento dos alunos, os quais nem sempre dialoga com o tempo oficial, haja
vista as subjetividades.
Referências
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Tradução Diana Myriam
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LINHA MESTRA, N.30, P.6-10, SET.DEZ.2016 10
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LINHA MESTRA, N.30, P.11-15, SET.DEZ.2016 11
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA
Marco Antônio Franco do Amaral1
Suellem Ferreira do Amaral Oliveira2
Ana Lúcia Ribeiro Nascimento3
A educação de jovens e adultos, no cenário educacional brasileiro da última década,
segundo dados do Censo de 2013, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), vem se destacando como uma resposta a uma demanda de mais de 13 milhões de
pessoas maiores de 15 anos que não sabem ler e escrever, o que equivale a 8,5 % dessa
população. Em 2000, o número de analfabetos ultrapassava 16 milhões de brasileiros. Apesar
da diminuição numérica, ainda existe um número significativo da população jovem e adulta,
excluída do sistema escolar regular, sem condições de acesso à educação.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino complexa
envolvendo dimensões educacionais que ultrapassam a prática escolar. Durante muitos anos
essa educação resumia a alfabetização de adultos no Brasil como um processo voltado apenas
para o aprendizado da leitura e da escrita. Este objetivo, contudo, carecia de estratégias
pedagógicas voltadas para as reais necessidades desse público. O próprio aluno, ao se matricular
na EJA, busca na escola uma possibilidade de integração à sociedade letrada, uma vez que é
constantemente excluído por não dominar a leitura e a escrita.
Conceitualmente, a Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade específica da
Educação Básica que se dedica a atender a um público através de um processo de aprendizagem,
formal ou não, de modo a possibilitar que esses sujeitos enriqueçam os seus conhecimentos
e/ou melhorem suas qualificações profissionais e técnicas.
Para Di Pierro e Haddad (1999), a Educação de Jovens e Adultos é percebida como
um campo de práticas e reflexão que inevitavelmente transborda os limites da
escolarização em sentido estrito. Primeiramente porque abarca processos
formativos diversos, onde podem ser incluídas iniciativas visando à
qualificação profissional, o desenvolvimento comunitário, a formação política
e um sem número de questões culturais pautadas em outros espaços que não
o escolar (DI PIERRO; HADDAD, 1999, p. 132).
Segundo a Declaração de Hamburgo:
Por educação de adultos entende-se o conjunto de processos de aprendizagem,
formais ou não formais, graças aos quais as pessoas, cujo entorno social as
considera adultos, desenvolvem suas capacidades, enriquecem seus
conhecimentos, e melhoram suas competências técnicas ou profissionais ou
as reorientam a fim de atender suas próprias necessidades e as da sociedade.
A educação de adultos compreende a educação formal e permanente, a
educação não formal e toda gama de oportunidades de educação informal e
ocasional existentes em uma sociedade educativa e multicultural, na qual se
reconhecem os enfoques teóricos e baseados na prática. (Art. 3 da Declaração
de Hamburgo sobre Educação de Adultos, 1997).
1 Instituto Federal Goiano, Morrinhos, Goiás, Brasil. E-mail: mailto:[email protected]. 2 Instituto Federal Goiano, Morrinhos, Goiás, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Instituto Federal Goiano, Morrinhos, Goiás, Brasil. E-mail: [email protected].
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA
LINHA MESTRA, N.30, P.11-15, SET.DEZ.2016 12
A denominação “Educação de Jovens e Adultos” substitui o termo Ensino Supletivo da
Lei nº 5.692/71. Esta lei atualmente compreende o processo de alfabetização, cursos e exames
supletivos no ensino fundamental e médio. Assim, a educação de Jovens e Adultos é
considerada mais do que um direito para os cidadãos brasileiros, ela é a chave que abrirá as
portas para o seu pleno exercício da cidadania.
No inciso VII do Artigo 4ª da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)
podemos observar a reafirmação do dever do Estado de garantir o oferecimento da EJA: "a
oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades
adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores
as condições de acesso e permanência na escola". (BRASIL, 1996).
A EJA tem sido tema de políticas públicas com relação ao acesso, a permanência e ao
atendimento, principalmente nas últimas décadas, em virtude do avanço da expansão do ensino
básico no país. Contudo, apesar de observarmos diversas tentativas e iniciativas políticas e
sociais de minimizar o problema, a educação brasileira de jovens e adultos ainda tem um longo
caminho a percorrer para que possa decisivamente garantir uma educação de qualidade. Os
dados divulgados pelo IBGE, em 2013, demonstram um cenário alarmante. A meta programada
de extinção do analfabetismo não se concretizou, pois, na realidade, temos um índice de 8,5 %
de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade.
Metodologia
O presente estudo teve como objetivo compreender como se estabeleciam os processos
de leitura e escrita na Educação de Jovens e Adultos no primeiro segmento do Ensino
Fundamental I na cidade de Morrinhos-GO. A pesquisa realizada teve uma abordagem
qualitativa de caráter exploratório. Utilizou-se o cruzamento de fontes orais (história oral) e
impressas (bibliográficas) com observações realizadas no contexto da pesquisa. Na coleta de
dados foram realizadas técnicas de observação em sala de aula e entrevistas semiestruturadas
com os docentes e com os alunos como forma de identificar práticas de leitura e escrita na EJA
em Morrinhos-GO.
Processos de leitura e escrita
Partindo da premissa de que a leitura e a escrita são invenções sociais utilizadas para se
comunicar por intermédio do tempo e espaço e a necessidade de ser “compreendido por outros
é universal” (GOODMAN, 1987, p. 14) verificamos que estas são demasiadamente importantes
para nosso convívio em sociedade. Independente da língua, os processos de leitura e escrita se
dão de maneira similar entre os povos. A diferença reside em como se utiliza estes processos.
A escrita é a representação gráfica da fala e do pensamento e, segundo pesquisas
realizadas por Ferreiro e Teberosky (1999), a mesma é determinada por cinco níveis até que o
aluno alcance o patamar alfabético. Assim, este processo de delineia: a) pré-silábico que é
subdividido em dois níveis nos quais o aluno não consegue relacionar as diferentes letras aos
sons, b) silábico no qual cada aluno interpreta à sua maneira e atribui valores às sílabas, c)
silábico-alfabético no qual o aluno intercala lógica do nível anterior identificando as sílabas e
d) alfabético em que o aluno domina valores das sílabas.
A escrita tem como objetivo a leitura que por sua vez é a interpretação da mesma. De
acordo com Cagliari,
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA
LINHA MESTRA, N.30, P.11-15, SET.DEZ.2016 13
A escrita deve ter como objetivo essencial o fato de alguém ler o que está
escrito. Ler é um ato linguístico diferente da produção espontânea de fala
sobre um assunto qualquer. Ler é condicionado pela escrita, mesmo que a
restrição seja somente semântica. É exprimir um pensamento estruturado por
outra pessoa, não pelo leitor falante. (CAGLIARI, 2009, p. 89).
Muitas escolas ainda praticam formas mecanizadas para o ensino da leitura e escrita, não
considerando o contexto em que os alunos estão inseridos. Este aprendizado precisa ocorrer de
forma natural e o aluno necessita encontrar sentido neste valioso aprendizado.
Leitura e escrita no contexto da pesquisa
As práticas de leitura e escrita no primeiro segmento do Ensino Fundamental da Educação
de Jovens e Adultos (EJA) na cidade de Morrinhos-Go carecem de uma reorganização. A
abordagem comumente aplicada em turmas da EJA se destaca na proposta pedagógica utilizada.
Não se observa uma ação recíproca entre os conteúdos, o ensino e a aprendizagem - elementos
centrais e indissolúveis no processo didático. O processo de leitura se dá de modo mecânico
sem nenhuma reflexão daquilo que os alunos estão lendo. A escrita é, na maioria das vezes,
uma cópia do texto escrito no quadro pela professora.
A proposta utilizada na EJA em Morrinhos - Ensino Fundamental I - reforça a reprodução
de técnicas puramente mecanizadas com a memorização dos conteúdos, a leitura e a escrita de
palavras presentes nas cartilhas ou nos livros, sem que haja relação alguma entre o que está
escrito e o contexto no qual o aluno está inserido. Os alunos não são convidados a conhecer, a
compartilhar experiências anteriores. Tal abordagem, amplamente utilizada na EJA, é
conhecida por Paulo Freire como “concepção bancária”. Nesta perspectiva da educação
o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.
Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da
opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de
alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,
invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os
que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento
como processos de busca. (FREIRE, 1987, p. 33-34).
Com a concepção bancária no ambiente educacional da EJA, Ensino Fundamental I, na
cidade de Morrinhos(GO), observamos uma dissonância entre o que a escola propõe e as
expectativas dos alunos. Assim,
Os altos índices de evasão e repetência nos programas de educação de jovens
e adultos indicam falta de sintonia entre essa escola e os alunos que dela se
servem, embora não possamos desconsiderar, a esse respeito, fatores de ordem
socioeconômica que acabam por impedir que os alunos se dediquem
plenamente a seu projeto pessoal de envolvimento nesses programas.
(OLIVEIRA, 1999, p. 62).
As dificuldades particulares do aluno na EJA interferem em seu aprendizado. Muitos
alunos são trabalhadores e possuem pouco tempo para se dedicarem aos estudos fora do
ambiente escolar. Além disso, o cansaço e os compromissos particulares também corroboram
para um baixo rendimento do aluno nas atividades desenvolvidas na sala de aula.
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA
LINHA MESTRA, N.30, P.11-15, SET.DEZ.2016 14
Observamos, em entrevistas com os professores da EJA em Morrinhos, que há um
preconceito sobre as concepções do aluno na EJA as quais dificultam ainda mais o processo de
aprendizagem. Ele, o aluno, é visto e se vê como alguém que ‘perdeu tempo’; aquele que não
aprendeu no momento “certo” e que, hoje, possui dificuldades para estar envolto em novos
processos de formação. Outro elemento, que merece evidência na atual proposta pedagógica na
EJA, é a escolha dos conteúdos e do material didático a serem trabalhados na sala de aula.
O educador, nesta proposta pedagógica, vai sendo impossibilitado de refletir sobre suas
ações, de construir conhecimento coletivamente, de aproveitar e observar a riqueza das
experiências trazidas por seus alunos. Os professores se posicionam em uma condição inflexível
através da qual supõe possuir todo o conhecimento. Os alunos são observados como
desprovidos de saberes e experiências que poderiam contribuir com o processo de aprendizado;
eles não são convidados a conhecer, a experimentar e a compartilhar, apenas memorizam
mecanicamente, recebem o conteúdo - sem interligações - de modo unilateral e vertical.
Considerações finais
Alfabetizar é tornar o indivíduo capaz de ler e escrever, mas envolve também a
capacidade de o mesmo interpretar e compreender o que lê e escreve. O conceito de letramento
é o processo de desenvolvimento da leitura e escrita em práticas sociais. Alfabetização e
Letramento mesmo que distintos são indissociáveis e interdependentes, “a alfabetização só tem
sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio
dessas práticas”. (SOARES, 2004, p. 97).
Na prática pedagógica, alguns professores atuam com atividades presentes em livros
didáticos do 1° ao 5° anos, oferecem aos alunos literatura infantil e concentram as atividades
docentes e discentes apenas na oralidade. Assim, não há um entrelaçamento entre a leitura e a
escrita - elemento necessário e intrínseco no processo de alfabetização.
Ademais, no método predominantemente utilizado são desconsideradas a realidade social
e cultural do aluno e, em muitos casos, demostram uma transposição para a EJA de elementos
presentes nas cartilhas da pré-escola utilizadas pelas crianças.
A necessidade de formação de leitores e escritores autônomos deve ir muito além do que
tem sido observado em muitas práticas de Educação de Jovens e Adultos. Uma proposta
pedagógica efetiva e voltada para os novos desafios deve assegurar aos jovens e adultos que
conhecimentos diversos lhes sejam transmitidos, não só para a decodificação do código
linguístico, mas também aos saberes da cidadania, da sociedade, da tecnologia e de tudo o que
se torna fundamental no bom desenvolvimento social, político e econômico dos indivíduos.
Referências
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jovens e adultos no Brasil: contribuições para uma avaliação da década da Educação para
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PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NO ENSINO FUNDAMENTAL DA EJA
LINHA MESTRA, N.30, P.11-15, SET.DEZ.2016 15
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Médicas, 1987. Cap. 1. p. 11-22.
OLIVEIRA, M. de. Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem. Revista
Brasileira de Educação, n. 12, set./dez. 1999.
SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação,
n. 25, jan./abr. 2004.
LINHA MESTRA, N.30, P.16-19, SET.DEZ.2016 16
PRÁTICAS DE LEITURA NO 1° CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM
ESTUDO DE CASO
Suellem Ferreira Amaral1
Michelle Castro Lima2
Ana Lúcia Ribeiro Nascimento3
Esta pesquisa teve início a partir da convicção de que a leitura é um dos momentos mais
importantes da criança em sala de aula. Além disso, entendemos também que um dos maiores
desafios de quem leciona nos primeiros anos do ensino fundamental é compatibilizar as
inúmeras responsabilidades com a necessidade de alfabetizar as crianças.
Atualmente, estudos e pesquisas sobre a alfabetização e seu contexto educacional no
ensino vêm se tornando uma tendência. Com o passar dos anos, as pesquisas realizadas no
Brasil registram elevados índices de fracasso escolar, e evidencia-se essa situação em
praticamente todos os estados da federação.
Perguntas relativas sobre como os alunos chegam, cada vez mais, aos anos finais do
ensino fundamental, ao ensino médio e até mesmo à universidade com grandes dificuldades
para interpretar textos e contextos, articular ideias e escrever são cada vez mais frequentes, pois
ocorrências deste tipo têm sido recorrentes em vários ambientes do mundo, principalmente em
ambientes educacionais.
Assim, em virtude de críticas sobre a problemática que se encontra no âmbito da
alfabetização de crianças, bem como a dificuldade de inserção no mundo da escrita, verifica-se
no contexto escolar uma necessidade de se averiguar os processos utilizados e os resultados
alcançados na alfabetização de crianças.
Com base na metodologia qualitativa, realizou-se uma pesquisa em uma escola municipal
localizada no município de Morrinhos – Goiás, que prepara seus alunos para a Alfabetização.
A referida escola atende alunos do 1º ao 5º ano, sendo que para esta pesquisa escolhemos
as professoras de 1º a 3°ano dos turnos matutino e vespertino, séries que compõem o ciclo de
alfabetização segundo o Ministério da Educação.
A realização desta pesquisa não ofereceu desconforto aos professores, já que foi realizada
no ambiente escolar e os dados obtidos na mesma só foram utilizados para fins acadêmicos,
garantindo a confidencialidade e preservação da identidade dos sujeitos investigados.
Metodologicamente, a pesquisa realizada teve uma abordagem qualitativa, de caráter
exploratório. Utilizou-se o cruzamento de fontes orais, (história oral) e impressas
(bibliográfica), e para a coleta de dados, técnicas de observação em sala de aula e entrevistas
semiestruturadas com as docentes, como forma de identificação da prática das alfabetizadoras.
Este estudo propõe-se conhecer e compreender mais detalhadamente o modo como os
professores trabalham obras literárias e livros didáticos de língua portuguesa em sala de aula,
constatando suas contribuições e implicações na prática docente, de modo a entendermos se
realmente estes são trabalhados de forma que ajude as crianças na aprendizagem do código
alfabético e a compreenderem os usos sociais da leitura e da escrita.
1 Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Goiano – Campus Morrinhos, GO, Brasil. E-mail:
[email protected]. 2 Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Goiano – Campus Morrinhos, GO, Brasil. E-mail:
[email protected]. 3 Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Goiano – Campus Morrinhos, GO, Brasil. E-mail:
PRÁTICAS DE LEITURA NO 1° CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
LINHA MESTRA, N.30, P.16-19, SET.DEZ.2016 17
Os reexames das teorias e práticas atuais de alfabetização tornam-se necessários na
tentativa de descobrir o caminho que está sendo percorrido no intuito de atualizar e reconfigurar
os paradigmas da alfabetização, que consistem nas concepções e práticas de métodos, na
natureza dos materiais didáticos e ainda nas estratégias e utilização desses materiais pelos
alfabetizadores. Como afirma Machado e Rocha (2011, p. 39), “é muito importante que a leitura
dada para as crianças pequenas seja bem rica - no sentido de fazer referência a muitas coisas,
de sair dos assuntos mais comuns, mais piegas e mais óbvios para assuntos diferentes, ou que
explorem aspectos inusitados do trivial”.
Podemos inferir, a partir da realização desse estudo, que é preciso superar a concepção
sobre aprendizado inicial da leitura, pois em todas as entrevistas constata-se que para as
professoras ler é simplesmente decodificar os códigos linguísticos, sendo a compreensão uma
consequência natural no processo. Segundo Rojo (2009):
No desenvolvimento das pesquisas e estudos sobre o ato de ler, ao longo
desses cinquentas anos, muitas outras capacidades nele envolvidas foram
sendo apontadas e desveladas: capacidades de ativação, reconhecimento e
resgate de conhecimento armazenado na memória, capacidades lógicas,
capacidades de interação social etc. A leitura passa, primeiro, a ser enfocada
não apenas como um ato de decodificação, de transposição de um código
(escrita) a outro (oral), mas como um ato de cognição, de compreensão, que
envolve conhecimento de mundo, conhecimento de práticas sociais e
conhecimentos linguísticos, muito além dos fonemas e grafemas. (ROJO,
2009, p. 76-77).
A visão das professoras sobre o ato de ler continua presa aos conceitos tradicionais e elas
ainda usam o livro didático como material central para o desenvolvimento das atividades no
ciclo de alfabetização. O livro didático, muitas vezes, apresenta algumas implicações na sua
utilização, sendo empregado como o único recurso na prática docente, mesmo tendo em vista
que este não supre as especificidades, a diversidade e as características de cada turma. As obras
literárias são expostas em um canto da sala denominado “cantinho da leitura”, os quais são
utilizados apenas ao término de alguma atividade presente nos livros didáticos.
Durante os momentos de observação em sala de aula, verificamos que não existe
revezamento de livros, ou seja, o aluno lê um livro por inúmeras vezes, e quando realiza esta
atividade a faz apenas para passar o tempo sem qualquer atividade posterior de reflexão.
A influência da leitura na alfabetização
Ler é descobrir, é conhecer um mundo novo. A leitura é uma atividade determinante na
formação das crianças. Esta leitura aqui referida é “pois, uma decifração e uma decodificação”
(CAGLIARI, 2009, p. 133). A leitura sendo o objetivo da escrita torna-se demasiadamente
importante no processo de alfabetização, mais importante que escrever é necessário saber ler.
Neste sentido, a escola precisa agir de modo a prestigiar a leitura, não a deixando como
uma atividade secundária, pois lendo se aprende a escrever. É comum ler artigos que tratam de
alunos que estão em cursos superiores e não conseguem interpretar os textos acadêmicos. Tal
fato pode ter sido causado por deficiência na alfabetização.
Em diversos momentos presenciamos em sala de aula que professores alfabetizadores
priorizam a escrita e não desenvolvem a leitura de maneira a levar o aluno a perceber uma nova
história. “Além de ter um valor técnico para a alfabetização, a leitura é ainda uma fonte de
PRÁTICAS DE LEITURA NO 1° CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
LINHA MESTRA, N.30, P.16-19, SET.DEZ.2016 18
prazer, de satisfação pessoal, de conquista, de realização, que serve de grande estímulo e
motivação para que a criança goste da escola e de estudar” (CAGLIARI, 2009, p. 148).
Familiarizar à criança com a leitura é permitir que ela descubra novos conhecimentos,
desse modo,
o livro deixa de ser apenas um meio para exercer uma competência
anteriormente adquirida: ele, em si mesmo, transforma a aprendizagem.
Quando colocadas desde muito cedo em contato com o livro, as crianças
descobre o funcionamento da escrita bem antes da alfabetização (BAJARD,
2014, p. 299).
Uma vez que a literatura infantil é bem trabalhada em sala de aula, favorece e facilita a
aprendizagem, haja vista que a mesma é um recurso pedagógico fundamental na alfabetização.
Buscamos apresentar a importância de se trabalhar diferentes gêneros textuais durante o
processo de alfabetização, pois acreditamos, assim como Soares (2014), que o processo de
alfabetização não pode ser separado do processo de Letramento. Precisamos ensinar as crianças
a lerem e escreverem, bem como compreenderem os textos. Ao final do ciclo de alfabetização,
é necessário que o nosso aluno compreenda e saiba fazer o uso social da leitura e da escrita.
Propostas para o ensino de leitura
A criança ao ingressar na escola começa a ter contato com atos de leitura, seja por meio
de imagens ou através da leitura oral realizada pela professora. Os textos lidos precisam ser de
interesse da criança para que ela possa buscar sentido nos mesmos.
É preciso que os alunos tenham contato direto com obras literárias. Assim, eles aprendem
a manusear o livro e reconhecer suas formas. Com o intuito de formar leitores, os professores
precisam organizar espaço, tempo e acervo para que as crianças tenham contato com este
universo.
Em nossas observações, percebemos que existe um espaço na sala de aula chamado
“Cantinhos da Leitura”, porém algumas obras encontradas estão danificadas e o acervo é
limitado. Além disso, a leitura é praticada nos momentos em que se termina alguma atividade,
sem qualquer planejamento pedagógico ou em aulas de português utilizando o livro didático.
Acreditamos que para se formar leitores na escola, os alfabetizadores precisam dispor de
um tempo diário para momentos de leitura e esta necessita ser interessante para os alunos, além
de fazerem parte de sua realidade.
Segundo Aguiar,
O primeiro passo para a formação do hábito de leitura é a oferta de livros
próximos a realidade do leitor, que levantem questões significativas para ele.
A literatura brasileira e a literatura infanto-juvenil nacional vêm preencher
estes quesitos ao fornecerem textos diante dos quais o aluno facilmente se
situa, pela linguagem, pelo ambiente, pelos caracteres das personagens, pelos
problemas colocados. A familiaridade do leitor com a obra gera predisposição
para a leitura e o consequente desencadeamento do ato de ler (AGUIAR, 1993,
p. 18).
Nos momentos de leitura é importante que o professor ofereça aos alunos meios de
interpretação a fim de garantir-lhes diferentes observações acerca do material que está sendo
utilizado. Uma prática constante de leitura, com intervenção dos alfabetizadores, ainda que os
PRÁTICAS DE LEITURA NO 1° CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
LINHA MESTRA, N.30, P.16-19, SET.DEZ.2016 19
alunos não consigam decifrar totalmente os códigos da escrita, possibilita às crianças maior
aprendizado, favorecendo a criatividade.
Considerações finais
Durante o desenvolvimento dessa pesquisa observamos a prática das professoras
alfabetizadoras e através das entrevistas identificamos os conceitos de leitura, escrita e
alfabetização defendidos pelas mesmas. Há, contudo, uma preocupação como se pensa a
alfabetização desvinculada do letramento e, como isso, tem influenciado o desenvolvimento
dessas crianças na sua vida acadêmica e social. Na escola, lócus dessa pesquisa, as professoras
acreditam que é possível formar leitores e cidadãos críticos ensinando-os apenas a codificar e
decodificar.
Acreditamos que para alcançar um processo de alfabetização pleno no qual os alunos
saibam codificar, decodificar, compreender os textos e conhecer, bem como saber usar a leitura
e a escrita dentro da sociedade que estão inseridos é necessário trabalhar com diferentes gêneros
textuais e com textos que apresentem a realidade que não se pareçam com os chamados textos
“cartilhescos” (textos artificiais, linguisticamente pobres).
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LINHA MESTRA, N.30, P.20-27, SET.DEZ.2016 20
PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO NA DÉCADA DE 1960: NARRATIVAS
DAS TRAJETÓRIAS VIVIDAS POR PROFESSORES LEIGOS EM UMA
ESCOLA DO CAMPO NO SERTÃO DA BAHIA
Maria Eurácia Barreto de Andrade1
Abordagem introdutória
O presente artigo objetiva apresentar os resultados de uma pesquisa que buscou descrever
as práticas alfabetizadoras vivenciadas por professores leigos de uma escola pública do campo,
inserida no sertão da Bahia, na década de 1960. Para tanto, procura evidenciar o processo
formativo dos professores, as exigências para a admissão na docência, às práticas pedagógicas
para o ensino da leitura e da escrita e as concepções destes professores sobre alfabetização e o
processo de aquisição da leitura e da escrita.
Os caminhos metodológicos adotados foram pautados na pesquisa qualitativa, ancorada nos
pressupostos da abordagem (auto)biográfica, utilizando como instrumentos de recolha de dados as
entrevistas narrativas e análise de documentos, apoiado nas ideias de Bosi (1994), Chizzotti (1991),
dentre outros pesquisadores que se abastecem nas memórias (auto)biográficas.
Para tanto, buscou-se desenvolver uma análise cuidadosa e exaustiva dos processos
pedagógicos vivenciados naquele período, tendo os próprios professores alunos como
interlocutores diretos da pesquisa.
Enquanto uma abordagem que se insere no campo da etnometodologia, originária do
campo da fenomenologia, este tipo de pesquisa vêm, ao longo dos anos, ganhando respeito no
cenário acadêmico por reconhecer sua importância para o conhecimento do ponto de vista do
imaginário social e das atribuições de sentido à escola e as metodologias adotadas.
Narrativas de professores alfabetizadores: um olhar sobre o processo formativo e a
prática pedagógica
Apenas dois professores foram tomados como referência para o nosso trabalho. Ambos
nos revelaram, nas entrevistas narrativas, que o processo de admissão à docência se deu por
indicação dos representantes políticos da época, porém para garantir a permanência, era
necessária a participação efetiva no processo de aperfeiçoamento e aprovação no teste final,
contemplando questões da gramática e conhecimentos gerais acerca do processo docente
(imagens1e 2). Para eles foi muito interessante poder participar de um curso tão rico, oferecido
por profissionais da Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural da Bahia
(ANCARBA). No referido curso de aperfeiçoamento, foram trabalhados os conhecimentos
necessários para a inserção na docência no contexto das escolas do campo, contemplando o
antigo ensino primário2, além de discussões sobre conhecimentos gerais. As narrativas dos
professores são bastante elucidativas ao revelarem:
[...] meu eu pai era vereador e me indicou para eu ensinar lá no Pontal3. Aí,
seu Manezinho4, na hora, disse que eu podia ir ensinar, mas tinha que
1 Professora Doutora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), com atuação no Centro de Formação
de Professores (CFP). E-mail: [email protected]. 2 Correspondente aos anos Iniciais do Ensino Fundamental. 3 Comunidade rural inserida no município do sertão da Bahia. 4 Prefeito municipal que atuou até os primeiros anos da década de 1970.
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participar de um curso, se passasse, tudo bem, se não passasse, não tinha jeito.
Eu tinha que me esforçar pra participar e depois passar no teste. [...] Foi um
curso muito bom. Os professores ensinavam como a gente devia ensinar os
meninos, o que podia e o que não podia e também ensinava outras coisas que
a gente sempre precisa na nossa vida na roça [...] e eu aprendi tudo. Foi muito
bom. No final do curso, aí nos deram dois testes pra testar mesmo se a gente
tinha aprendido a lição. Quem aprendeu ficou e quem não aprendeu não
recebeu o diploma. Eu mesmo passei com uma boa nota. Quer ver a minha
prova5? Até hoje eu tenho tudo guardadinho [...] E tenho até o diploma6, viu?
(O. B. Interlocutor da pesquisa)
Foi meu tio quem deu meu nome pra seu Manezinho. Ele botou na lista e disse
pra eu ir fazer o curso. No dia cheguei logo cedo. Tinha muita vontade de
ensinar os meninos de lá da comunidade, porque tava precisano mesmo de
escola. Lá era quase tudo analfabeto e eu podia ajudar aquele povo sofrido,
pelo menos fazer o nome, fazer conta, fazer uma carta. [...] A gente precisa
aprender, né? Todo mundo precisa. Eu sei que eu fiz o curso, prestei muita
atenção e tirei uma boa nota pra receber meu diploma de professor. Fiquei tão
feliz que quase chorei [...] (M. Z. Interlocutor da pesquisa)
As narrativas dos professores deixam claro como de fato se deu o processo de admissão,
porém é importante analisarmos os documentos referenciados para que possamos ter uma maior
compreensão do processo. O interlocutor O. B. socializou o certificado de frequência na
formação, bem como o teste aplicado no final do processo formativo, com a correção realizada
pelos formadores da instituição promotora. As imagens 1, 2 e 3 a seguir são bastante reveladoras
para as nossas reflexões.
Imagem 1: Teste de Conhecimentos Gerais – Fonte:
arquivo da pesquisadora
Imagem 2: Teste de Gramática – Fonte: arquivo da
pesquisadora
5 Teste aplicado (figuras 1 e 2) depois do processo formativo para garantir a permanência na docência 6 Certificado de participação no curso de “aperfeiçoamento”.
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Imagem 3: Certificado de Frequência no curso de aperfeiçoamento – Fonte: Arquivo da pesquisadora
As imagens 1 e 2 revelam que o processo formativo contemplou além das questões
didáticas da docência, conteúdos relacionados às atividades rurais, e os conhecimentos gerais
envolvendo as áreas do conhecimento. Elucidam um processo formativo com uma concepção
cartesiana, valorizando questões pontuais sem contextualização, reflexividade crítica e
politização, o que Freire (1987; 1998; 2000) tanto criticou.
Para Freire (1987; 1998; 2000), o ato de educar é essencialmente político e implica em
um amplo processo de emancipação dos sujeitos inseridos. Decorar datas, leis, nomes e
responder certo ou errado em questões simplórias, não contribuem para o processo de
empoderamento, nem tampouco possibilitam a politização dos sujeitos inseridos.
Percebe-se, tanto nas imagens quanto nas narrativas dos professores pesquisados, uma
concepção de educação bastante limitada, voltada, sobretudo, para a memorização. Em uma
análise focada nas práticas pedagógicas alfabetizadoras dos professores naquele momento
histórico, foi possível perceber nas narrativas e nos documentos consultados, a presença dos
métodos tradicionais de alfabetização, com viés para os métodos sintéticos7, partindo das
unidades menores até chegar as palavras e textos. Nas palavras dos professores O. B. e M. Z. o
trabalho junto as crianças acontecia da seguinte forma:
[...] primeiro a gente ensinava o ABC8: ler e escrever [...] eles devem primeiro
aprender cada letra e também escrever. Tudo começa com o ABC, depois que
eles aprenderem vai para as famílias silábicas, o BA, BE, Bi, BO, BU, para
depois eles aprenderem juntar e formar as palavras BALA, BOLA, CAMA
[...]. Depois que eles já tiverem formando palavras, faz ditado para eles
escreverem [...]. (O. B. Interlocutor da pesquisa)
Eu ensinava assim: começava com o ABC. Ensinava as letras (do A ao Z),
uma de cada vez, porque se não for assim os meninos atrapalham tudo e não
dá certo. Depois que eles já sabiam o ABC (e não era de carreirinha não, era
direto e depois salteado pra saber se eles sabiam mesmo ou se só tinha
7 Segundo Micotti (1996) os métodos sintéticos pautam-se em dois princípios básicos: partir do simples até chegar
ao complexo e adquirir automatismo por associações repetidas. Fazem parte desse grupo o método alfabético, cujo
ponto de partida são as letras, o método silábico, que inicia o processo de alfabetização pelas sílabas e o método
fônico, que parte dos sons das letras. 8 Livreto sem autor com a apresentação das letras do alfabeto, sílabas e pequenas palavras, muito utilizado até a
década de 90 para iniciar o processo de alfabetização.
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gravado). Aí partia pra o BA, BE, BI, BO, BU, juntando as vogais e as
consoantes. Só depois deles aprenderem todas as famílias é que começavam
juntar para formar palavras. Em pouco tempo eles já começavam a ler e
escrever os textos da cartilha9 [...] Eu lembro até hoje dos textos das cartilhas.
Primeiro eles faziam cópia, eu tomava a lição10 todo dia (e marcava a parte
para eles estudarem em casa (eles tinham um medo danado de não acertarem
a lição, porque se não, não passava para a página seguinte e o que eles mais
queriam era terminar as lições para depois recordar) [...] E depois que eles
copiavam muito, eu fazia o ditado dos textos (primeiro era ditado de palavras
e só quando eles tavam mais treinados é que eu fazia ditado de texto). Era
assim [...] eles aprendiam ligeirinho [...] alfabetizei muitas crianças [...] (M.
Z. Interlocutor da pesquisa)
Inicialmente os alunos aprendiam na sequência alfabética, conforme apresentava no livreto
do ABC e como ele escrevia no quadro negro, mas depois ele ampliava o grau de dificuldade para
que as crianças não apenas decorassem a sequência. Todos os dias tomava a lição, ou seja: pegava
o ABC, lia várias vezes, memorizava as letras em ordem alfabética e alternadamente. Em seguida
chamava à mesa para - estudante por estudante, antes de ir embora – descobrir quem ainda precisava
ficar na primeira página ou poderia avançar para a próxima. Conta que um pequeno pedaço de papel
branco com um furo no centro, o ABC, a palmatória e a tabuada eram os seus principais
instrumentos de trabalho no início do processo de alfabetização. Utilizando-se do pedaço de papel
branco com um pequeno orifício no centro, ele colocava-o sobre as letras do alfabeto e obrigava
aos alunos a identificá-las (uma por uma), quem não identificasse, ficava na mesma lição/página.
Nas suas narrativas o interlocutor O. B. revela:
Eu chegava na sala, fazia o dever pra eles cobrirem as letras e eles cobriam. Pedia
pra eles estudarem a lição e eles estudavam até aprender de cor. Tudo que eu
ensinava eles aprendiam, ninguém queria ficar na mesma lição (risos). O ABC
eles aprenderam de frente pra traz e de traz pra frente, eu botava o papel furado
em qualquer letra e eles sabiam as letras (risos) [...]. Em pouco tempo todo mundo
já sabia fazer o nome, ler e escrever as letras e até formar nomes: bola, mala, cama
[...] eles aprendiam ligeiro [...] (O. B. Interlocutor da pesquisa)
As narrativas acima podem ser reafirmadas com as imagens 4, 5 e 6 a seguir,
contemplando atividades de estudantes de um dos sujeitos da pesquisa. Elas revelam uma
prática voltada para os métodos tradicionais de alfabetização, que são duramente criticados por
diversos pesquisadores contemporâneos da área, dentre os quis destacamos Carvalho (2005),
Silva, Barreto e Muniz (2010) e Ribeiro (2011).
9 Segundo o dicionário Houaiss a palavra cartilha designa um pequeno caderno que contém as letras do alfabeto e
os rudimentos para aprender a fazer a carta do ABC. 10 Expressão usada para a leitura que o professor tomava com os textos do livro didático/cartilha. Quando o
estudante lia o fragmento do texto corretamente o professor marcava com um “X” a nova lição, quando não
acertava assoletrar e ler o texto ficava na mesma lição anteriormente marcada.
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Imagem 4: Atividade de escrita do alfabeto – Fonte:
arquivo da pesquisadora
Imagem 5: Atividade de escrita dos numerais –
Fonte: arquivo da pesquisadora
Imagem 6: Atividade de cópia de frase descontextualizada – Fonte: arquivo da pesquisadora
Diante das imagens 4, 5 e 6 apresentadas, somadas com as narrativas dos professores, fica
clara a adoção do método sintético de alfabetização. Sobre tal reflexão, Carvalho (2005), Silva,
Barreto e Muniz (2010) e Ribeiro (2011) contribuem revelando que o princípio de ordem
sintética imprime um processo alfabetizador isolado do contexto real, fazendo uso de palavras
e frases soltas e sem sentido para a criança. Para Silva, Barreto e Nuniz (2010, p. 68), o referido
método prioriza “[...] o treino, a repetição e a leitura mecânica, independente, portanto da
compreensão”. Complementando a discussão, Abreu (2000, p. 39) avalia:
[...] o processo de ensino é caracterizado por um investimento na cópia, na
escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória
de curto prazo para reconhecimento das famílias silábicas [...]. Essa forma de
trabalhar está relacionada à crença de que primeiro os alunos têm de aprender
a ler e escrever dentro do sistema alfabético.
Tal discussão revela que a escrita alfabética é um código, ou seja, ler é decodificar e
escrever é codificar. Como um código, aprende-se repetindo, memorizando e associando. Nessa
concepção, o aluno aprende, recebendo e memorizando informações já prontas sobre letras e
sons. Há uma grande ênfase nos aspectos gráficos, psicomotores e na prontidão.
Barbosa (1994) critica as metodologias alfabetizadoras tradicionais para o momento atual
por não contemplarem as demandas apresentadas nos diversos espaços e eventos sociais, pela
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concepção de língua escrita que permeia tais métodos e, principalmente, pela valorização
exacerbada no processo de ensino sem, tampouco, levar em conta o processo de aprendizagem.
Na sua reflexão revela:
[...] a ênfase recai no ensino; a aprendizagem é então concebida como a
resposta da criança a um determinado estímulo proporcionado pelo ensino, e
a criança, concebida como uma espécie de caixa de ressonância passiva,
acionada quando estimulada por um agente externo, a criança repete e
memoriza (BARBOSA, 1994, p. 72-73).
Vygotsky (2003) apresenta uma grande crítica aos métodos, principalmente, pelo lugar
restrito que a escrita ocupa em detrimento a mecânica do ato de ler e de escrever. Para o autor, a
linguagem escrita que tem papel fundamental no desenvolvimento da criança é descontextualizada
e descaracterizada pelos métodos tradicionais de alfabetização. Em suas palavras, denuncia:
[...] a escrita ocupa um lugar muito estrito na prática escolar, em relação ao
papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da
criança. Ensina-se às crianças a desenhar letras e construir palavras com elas,
mas não ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de
ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal
(VYGOTSKY, 2003, p. 139).
Assim como Vygotsky (2003), Soares (2000; 2003), Tfouni (2005), Kleiman (2006),
Mortatti (2004; 2011), Andrade (2011), também denunciam a impossibilidade da formação dos
sujeitos autônomos, criativos e participativos tendo como suporte do trabalho as sílabas
desconectas, palavras sem significação ou frases sem nenhuma relevância e sentido para a
criança. Defendem o trabalho articulado com a vida e com os interesses dos sujeitos e convidam
todos a considerarem no processo educativo a formação do sujeito leitor e participativo nos
eventos letrados.
Considerações finais
Diante da investigação, foi revelada uma prática pedagógica com ênfase apenas no processo
de codificação e decodificação da língua escrita, através de atividades mecânicas, repetitivas e sem
sentido para os estudantes, além disso, um processo marcado pela valorização exacerbada da figura
do professor, práticas duramente denunciadas pelas pesquisas atuais, tomando como exemplo
Soares (2000; 2003), Tfouni (2005), Kleiman (2006), Mortatti (2004; 2011), Andrade (2011),
dentre outros que discutem sobre as concepções e práticas para o ensino da leitura e da escrita.
Apesar dessas considerações observadas, mesmo diante das novas discussões em torno
da alfabetização e do letramento, as quais representam um novo momento e um novo paradigma
para a inserção das práticas sociais no processo alfabetizador, as concepções alfabetizadoras e
os métodos adotados por estes professores foram fundamentais para o processo de construção
da leitura e da escrita de muitas crianças naquele momento histórico, mas no contexto atual não
atendem as exigências de uma sociedade letrada e com demandas cada vez mais diversas.
Assim, evidencia-se que, com a possibilidade de um mergulho na produção/análise de
relatos autobiográficos, a partir do imaginário social, é, sem dúvida, uma importante
contribuição para a história da alfabetização que está sendo escrita cotidianamente por
diferentes sujeitos. Acreditamos, que com a singularidade das narrativas dos interlocutores
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desta pesquisa, contribuímos com a diversidade de olhares ao processo de alfabetização em sua
história em construção.
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VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO
PROCESSO DE APRENDIZAGEM: UMA ABORDAGEM À LUZ DAS VOZES
DA ESCOLA E DA FAMÍLIA
Maria Eurácia Barreto de Andrade1
Abordagem introdutória
O presente artigo discute sobre o processo de alfabetização e letramento(s) no contexto
da escola, da família e da vida cotidiana, buscando discussões críticas acerca das interações e
práticas de letramentos(s) vivenciados pelos estudantes no seio familiar e a influencia no
processo de aquisição e apropriação da leitura e da escrita no cenário escolar. Para tanto foi
necessário um levantamento de pesquisas atuais com viés no espaço escolar e familiar, as
práticas pedagógicas e os diversos sujeitos inseridos.
Depois dessa revisão, observou-se que o processo de alfabetização e letramento implica
em considerar as práticas sociais e familiares vivenciadas pelos sujeitos inseridos; contudo,
ainda são insipientes as investigações que buscam revelar o retrato de letramento das famílias
e as implicações no processo de aprendizagem dos estudantes. Foi pensando em contribuir com
a ampliação das discussões sobre a temática em pauta que a pesquisa foi realizada, a fim de
provocar um amplo debate sobre a influência dos eventos e práticas sociais vivenciados pelas
famílias no contexto escolar e no processo de aquisição da leitura e da escrita.
Esta discussão implica em um encontro da leitura e da escrita considerando os contextos
da família, da escola e da vida social. Para tanto, algumas questões são tomadas como referência
de reflexão ao longo da obra, destacando principalmente a seguinte indagação: até que ponto o
acompanhamento dos pais ou responsáveis e as práticas e eventos de letramento(s) vivenciados
pelos estudantes no contexto familiar influenciam no processo de aquisição e apropriação da
leitura e da escrita?
Vivências de letramento na família e impactos no processo de aprendizagem
Trazer à tona a discussão sobre as interações de letramento na família e a influencia no
processo de aprendizagem da leitura e da escrita no contexto escolar precisa de uma retomada
a um dos primeiros estudos voltados para a aprendizagem do uso da língua por crianças em
casa e na escola em diferentes comunidades. Esse estudo realizado por Shirley Brice Heath há
três décadas, representa o resultado de uma longa pesquisa qualitativa, analisando as diferenças
no uso e exposição da língua escrita, comparando as experiências nas salas de aula, a fim de
observar as diferenças que impactam as crianças durante a escolaridade.
Heath (1982, 1983), ao tentar compreender o porquê de algumas crianças fracassarem na
escola, pesquisou três comunidades letradas com costumes e orientações diferentes, analisando
os eventos de letramento peculiares a cada uma delas e os impactos no desempenho escolar.
Sobre tal pesquisa Terzy (1995, 2004) discute muito bem e traz algumas considerações.
Reafirma que das comunidades pesquisadas a única que as crianças não fracassaram foi a de
classe média, constituída por pessoas com alto nível de letramento e que valorizava a língua
escrita. Os pais buscavam o desenvolvimento dos filhos, nos hábitos e valores inerentes a uma
sociedade letrada. Nas palavras de Terzy (2004, p. 9), “[...] os pais liam com as crianças em
1 Professora Doutora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), com atuação no Centro de
Formação de Professores (CFP). E-mail: [email protected].
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
LINHA MESTRA, N.30, P.28-34, SET.DEZ.2016 29
casa, as crianças discutiam as historinhas com os pais, e eles chamavam a atenção para a escrita
do que estava no ambiente”.
Assim, as crianças aprendiam no contexto familiar muito além de fazer sentido dos
livros, mas também a falar sobre esse sentido, o que aproxima muito das interações que são
estabelecidas no contexto da sala de aula. Quando chegavam à escola estas eram bem
sucedidas, “[...] sabiam ouvir uma história, tinham o comportamento de leitor, de quem está
acostumado a ouvir histórias em casa. Elas sabiam responder perguntas orais do texto,
discutiam a história” (TERZY, 2004, p. 9). Foi através destas observações e descobertas
que Heath percebeu que as crianças dessa comunidade tinham muito sucesso na escola,
justamente porque funcionava como uma continuidade do trabalho de vivência e exposição
à escrita que estas crianças tinham no cotidiano doméstico. Sobre a pesquisa de Heath
(1882), Terzy (2004, p. 10) revela:
Quando a escola é uma continuação da exposição que a criança tem à escrita,
ela simplesmente continua. Mas, quando a criança vem de um meio onde não
vê o pai lendo jornal, a mãe não lê histórias, ela não vê os usos da escrita e
não sabe para que serve. Ela vem de uma família em que a escrita não faz parte
do cotidiano. Então, quando chega à escola, alguém tem que ensinar isso.
Alguém tem que mostrar isso para ela. Se a escola já parte do princípio que
esta criança sabe isso, ela vai fracassar e vai sair da escola.
A partir desse estudo, considerado como um dos pioneiros para a discussão sobre
letramento, iniciamos a análise dos dados colhidos durante o longo processo investigativo no
campo empírico. Inicialmente tomaremos como parâmetro algumas categorias de discussão
junto aos sujeitos da pesquisa para, em seguida, confrontarmos as discussões com os dados das
aprendizagens dos estudantes no que se refere à leitura e a escrita.
Antes da apresentação das categorias e da discussão dos dados, considera-se importante
uma breve retomada conceitual dos termos práticas e eventos de letramento, que dentre as mais
diversas discussões e interpretações, como Kleiman (1995), Barton (1991), Barton e Hamilton
(2000), Jung (2003), serão consideradas as discussões apresentadas por Soares (2003) que
pautada em Heath (1992, 1993) concebe eventos de letramento enquanto as mais diversas
situações e interações em que a língua escrita é integrada. Já para as práticas de letramento,
pauta-se em Street (1995) e compreende enquanto os comportamentos exercidos pelos sujeitos
nos eventos. É nessa perspectiva de interação e ação entre os mais diversos suportes escritos
que fazem parte do cotidiano das famílias que a discussão será direcionada.
As concepções dos professores corroboram com as discussões destacadas na pesquisa e
podem ser visualizadas no quadro 1 a seguir.
QUESTÕES PROFESSOR 1 PROFESSOR 2
A influência das práticas e
eventos de letramento
vivenciados na família para o
processo de aquisição da
leitura e da escrita pelos
estudantes na escola
Influencia sim na aprendizagem a
vivência com práticas de leitura e
escrita em casa, porque é como diz o
ditado “casa de pai, escola de filho”.
Se a criança vive com a leitura vai
criar o hábito de ler mais rápido.
Quando a criança vivencia situações de
leitura e escrita se familiariza e aprende
mais rápido.
Escritos do meio doméstico e
sua contribuição para o
processo de alfabetização e
letramento das crianças
Contribuem sim os escritos de casa,
porque tudo é o meio. Se a criança
vive em meio aos escritos ela
aprende com mais facilidade.
Tudo que a criança vê em casa ela aprende.
Tanto coisas boas como ruins. Os
materiais de leitura e escrita de casa
influenciam sim no processo de
alfabetização e letramento dos estudantes.
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
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Importância da participação e
acompanhamento da família
para a consolidação da
alfabetização e do letramento
dos filhos
É de fundamental importância que a
família acompanhe a criança no seu
processo escolar. Pai e filho devem
andar lado a lado para que a
alfabetização e o letramento
aconteçam.
Quando a família participa e acompanha
dá continuidade aos ensinamentos de
escola e facilita a aprendizagem.
Diferença na aprendizagem
dos estudantes que contam
com o acompanhamento e
incentivo dos pais
[...] quando o aluno é acompanhado
e incentivado pelos pais em casa ele
aprende com mais facilidade, fica
mais desenvolvido [...] se destaca,
né?
Os alunos que são acompanhados e
incentivados em pelos pais são mais
organizado e preocupados com a escola,
além disso, apresentam maior
desenvolvimento na leitura e escrita. Isso é
visível por todos.
Quadro 1: Concepções dos professores sobre as vivências letradas na familiar e influência na aprendizagem da
leitura e escrita dos estudantes – Fonte: Dados obtidos na pesquisa
Conforme visualizado no quadro 1, os professores defendem a participação,
envolvimento e acompanhamento da família como relevantes para a compreensão do sistema
de escrita pelas crianças, assim como a vivência e interação com os diversos escritos no meio
doméstico. Concebem como grandes influentes para o processo de familiarização com os
escritos, para a construção do hábito de ler e, consequentemente, para a aprendizagem da leitura
e da escrita. Sobre esta concepção defendida pelos professores, Galvão (2003, p. 130) ao
discutir os dados do Inaf/2001, revela que:
[...] o contato com materiais de leitura diversas desde a infância constitui um
fator muito importante para que, quando adulto, o indivíduo alcance maiores
níveis de alfabetismo; por outro lado, essa correlação não pode ser tomada de
maneira absoluta.
Assim, a autora deixa claro que, apesar de serem fatores reveladores para o sucesso da
aprendizagem escolar e para o nível de letramento, não podem ser tomados como indicador
absoluto, pois os dados aqui discutidos e analisados reafirmam a discussão apresentada por
Purcell-Gates (2004), por demonstrarem que quanto maiores os números de materiais escritos
no contexto da família, maiores, também, são as possibilidades dos estudantes se apropriarem
do processo de construção da escrita.
No que se referem às vivências em práticas e eventos de letramento das crianças no
cotidiano familiar, as professoras também confirmam forte relação entre a aprendizagem da
leitura e da escrita. Estudos desenvolvidos por Joly (1999) corroboram com a concepção das
professoras ao ilustrar que os diferentes níveis e ritmos das crianças para aquisição da leitura e
da escrita podem ser melhor explicados a partir de suas diferentes interações familiares com o
texto escrito.
Rojo (1995) ilustra muito bem a discussão apresentada por Joly (1999), assim como as
concepções apresentadas pelas professoras ao revelar que o desenvolvimento do processo de
letramento da criança depende da presença, em seu cotidiano, de prática de leitura e de escrita
e suas diferentes participações e interações.
O acompanhamento da família no processo de construção e consolidação da alfabetização
e do letramento dos filhos e/ou responsáveis representa para os professores fortes fatores de
influencia. Para o professor 1, “Pai e filho devem andar lado a lado para que a alfabetização e
o letramento aconteçam”. Enquanto a professora 2 revela que quando há o acompanhamento e
participação direta da família há uma “[...] continuidade aos ensinamentos de escola e facilita a
aprendizagem”. Apesar de os dados da pesquisa constatarem tais afirmações, é bom lembrar as
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
LINHA MESTRA, N.30, P.28-34, SET.DEZ.2016 31
reflexões de Terzy (2004), ao elucidar o trabalho de Heath (1982, 1982) quando sugere que não
se deve esperar que a comunidade altere sua orientação para adequá-la a escola, mas o contrário.
A diferença no desempenho das crianças que são acompanhadas e incentivadas pelos pais
e/ou responsáveis é também amplamente notável pelos professores. Para o professor 2, o reflexo
desse acompanhamento da família é visível para todos, pois os estudantes ficam “[...] mais
organizados e preocupados com a escola, além disso, apresentam maior desenvolvimento na
leitura e escrita”.
As concepções das famílias confirmam as discussões até aqui apresentadas, por
ratificarem que é fundamentalmente importante para a criança ter em casa práticas que
representem a continuidade da escola, como pode ser visualizado no quadro a seguir.
FAMÍLIAS QUESTÕES
Escritos do meio doméstico e sua
contribuição para o processo de
alfabetização e letramento das crianças
Importância da participação e
acompanhamento da família para a
consolidação da alfabetização e do letramento
dos filhos
Família 1 Os materiais escritos ajudam sim, mas se
os pais buscarem meios para que as
crianças se apropriem. Só os materiais por
si só não vão ajudar muito não.
[...] a mãe precisa verificar as atividades, ajudar
no que for preciso, incentivar e estar sempre em
parceria com a escola.
Família 2 Os materiais escritos de casa ajudam
muito na aprendizagem das crianças. Meu
menino mesmo, ele adora manusear, ler os
manuais, os cupons fiscais, os rótulos, os
anúncios e isso ajuda muito na leitura dele
Só a escola não resolve. Os pais têm que ajudar
também. Eu não abro mão de contribuir com a
educação dos meus filhos.
Família 3 Eu acho que quanto mais os meninos
tiverem leitura pra ler, mais eles vão
aprender.
Eu incentivo muito meu filho dando o meu
exemplo [...] as dificuldades que eu passo por não
saber ler. [...] Eu todo dia pergunto se tem tarefa,
boto pra ele fazer, olho o caderno, fico elogiano
[...] eu acompanho mesmo sem saber nada.
Família 4 Minha filha aprendeu ler com as
historinhas: Rapunzel, Chapeuzinho
vermelho. Ela lia, escrevia e reescrevia.
Se deixar a educação do filho só na
responsabilidade da escola e a família não ajudar,
não participar fica difícil. A família tem que
contribuir sim. Assim com certeza a
aprendizagem da leitura e da escrita acontece
mais rapidamente.
Família 5 Eu acho que os materiais escritos são
importantes para a criança aprender.
Sem o incentivo dos pais as crianças não
conseguem aprender com facilidade. Tem criança
que não gosta de ir à escola e os pais têm que
incentivar.
Família 6 Cada leitura que a criança vê e se envolve,
ajuda muito na aprendizagem.
Não só a escola tem a missão de alfabetizar [...]
os pais também tem que ajudar, tem que
participar.
Quadro 2: Concepções das famílias sobre as vivências letradas da criança em casa e a influência na
aprendizagem da leitura e escrita – Fonte: Dados obtidos na pesquisa
Pelas concepções apresentadas no quadro, as famílias elucidam a grande importância da
contribuição dos escritos no seu cotidiano para a conquista da alfabetização e do letramento das
crianças. A família 1 revela que para além dos escritos no cenário familiar é necessário e
importante “[...] os pais buscarem meios para que as crianças se apropriem”. Essa interação
pode acontecer de muitas formas, pois como as apresentadas por Espíndola e Souza (2011),
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
LINHA MESTRA, N.30, P.28-34, SET.DEZ.2016 32
Heath (1982, 1983), dentre outras pesquisas que apresentam proposições de maior interação da
família com as práticas e eventos de letramento a fim de fortalecer a aprendizagem das crianças.
Sobre essa discussão, Terzy (2004), ao refletir sobre diferentes pesquisas com esse foco, revela
que um ambiente rico em eventos de letramento pode promover em maior sucesso no
desenvolvimento da leitura, pois desde cedo leva a criança a ter comportamento leitor. Para
ilustrar a reflexão da autora, a família 2 utiliza o exemplo do filho para definir a sua posição em
favor das interações com os eventos e práticas de letramento no cotidiano domiciliar ao relatar:
“Meu menino mesmo, ele adora manusear, ler os manuais, os cupons fiscais, os rótulos, os
anúncios e isso ajuda muito na leitura dele”. Nesta mesma concepção a família 4 anuncia sua
crença nos escritos, especialmente os contos, as historinhas ao relatar “Minha filha aprendeu
ler com as historinhas: Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho. Ela lia, escrevia e reescrevia”. Sobre
a importância das histórias infantis, Lahire (1997) contribui:
Quando a criança conhece, ainda que oralmente, histórias escritas lidas por
seus pais, ela capitaliza – na relação afetiva com seus pais – estruturas textuais
que poderá reinvestir em suas leituras ou nos atos de produção escrita [...] isso
significa que, para ela, afeto e livros não são duas coisas separadas, mas que
estão bem associadas (LAHIRE, 1997, p. 20).
Além de reconhecerem a ampla função dos diversos gêneros escritos para o sucesso
escolar das crianças, as famílias também defendem como fundamental a participação e
acompanhamento dos pais/responsáveis para a consolidação da alfabetização e do letramento
dos filhos. A família 1 destaca a necessidade da “[...] parceria com a escola” e para isso os pais
e/ou responsáveis devem “[...] verificar as atividades e ajudar no que for preciso”. Mesmo sem
o domínio da leitura e da escrita a família 3 revela tentar contribuir. Para ela, o maior incentivo
é dar o seu exemplo, falar das suas dificuldades por não saber ler e escrever e, dentro das suas
limitações, também busca contribuir e acompanhar. Nas suas narrativas relata: “Eu todo dia
pergunto se tem tarefa, boto pra ele fazer, olho o caderno, fico elogiano [...] eu acompanho
mesmo sem saber nada”.
A família 6 apresenta uma concepção ampla do papel da família, inserindo-a como
também responsável pela alfabetização das crianças. Revela que os pais precisam ajudar e
participar decisivamente das ações escolares e do processo de aprendizagem dos filhos. Nas
suas palavras, acredita que “Não só a escola tem a missão de alfabetizar [...]”.
Observa-se que de acordo às narrativas dos diferentes segmentos aqui apresentados, todos
acreditam e defendem a relevância das interações das crianças com os diferentes gêneros
escritos, com as diferentes práticas e eventos de letramento para fortalecer a compreensão sobre
o sistema de leitura e escrita das crianças, assim como defendem a participação e
acompanhamento efetivo das famílias como fortes indicadores para a aprendizagem dos
estudantes. Todas essas ideias apresentadas são reafirmadas por diversas pesquisas já discutidas
anteriormente, mas também questionadas por algumas outras, não caracterizando em um
consenso. Para maior sustentação e respaldo, os dados serão agora confrontados com as
aprendizagens construídas pelos estudantes mapeadas no transcorrer das observações.
Diálogos Finais
A pesquisa revelou, a partir das narrativas dos diferentes segmentos pesquisados
(professores e famílias), que todos acreditam e defendem a relevância das interações das
crianças com os diferentes gêneros escritos, com as diferentes práticas e eventos de letramento
para fortalecer a compreensão sobre o sistema de leitura e escrita das crianças, assim como
VIVÊNCIAS DE LETRAMENTO NA FAMÍLIA E IMPACTOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM...
LINHA MESTRA, N.30, P.28-34, SET.DEZ.2016 33
defendem a participação e acompanhamento efetivo das famílias como fortes indicadores para
a aprendizagem dos estudantes, sendo estas legitimadas pelas análises do desempenho dos
estudantes nestas diferentes realidades.
Os dados apresentam indicadores diretos que fazem inferir que as mais diversas práticas
de leitura e escrita promovidas pela família contribuem efetivamente para a criança não apenas
compreender a tecnologia da escrita, mas também despertar o interesse pela leitura. A
participação dos pais ou responsáveis nessas atividades cotidianas é fundamental, pois como
defende Purcell-Gates (2004), o processo de construção da escrita pode acontecer também em
outros espaços fora da sala de aula, principalmente, no contexto familiar com as inúmeras
interações promovidas com os escritos.
Para além da influencia na aprendizagem da escrita, a participação da família e a
diversidade de materiais escritos são também fatores relevantes para o nível de fluência e
compreensão leitora. Os dados do estudo revelam que quanto maiores às vivências de
letramento no contexto doméstico, maiores são as possibilidades de fluência na leitura e
compreensão das crianças.
Assim a pesquisa aponta indicadores diretos que fazem refletir que a família tem forte
influência no desenvolvimento e aprendizagem da criança, principalmente, no que se refere ao
processo de aquisição e apropriação da leitura e da escrita.
É na família que se estabelecem relações necessárias aos comportamentos que podem
influenciar nos destinos escolares das crianças. Porém, os estudos apontam que mesmo a família
sendo uma importante promotora de letramento, existem outras instâncias que também
contribuem de forma significativa para as práticas sociais de leitura e escrita.
A escola, apesar das limitações no que se referem às práticas alfabetizadoras e a
aproximação com as práticas cotidianas de uso social de leitura e escrita, não pode ser
desconsiderada como importante veículo para a constituição da tecnologia e práticas de leitura
e escrita dos estudantes pesquisados. Porém, apesar de a escola ser considerada como
importante agência de letramento, os resultados revelam que em alguns aspectos as práticas de
leitura e escrita são influenciadas também por outras agências sociais que não são a escola.
Referências
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“LUGAR DE NUVEM É ESTAR EM CENA TAMBÉM NA AULA”
Tânia Villarroel Andrade1
Uma nuvem dentro de uma caixa? Paradoxo. Alusão
crítica para se pensar no absurdo. O que se pode por
dentro de uma caixa, em contenção, sob domínio,
conservado e arquivado? Luz do sol, chuva, orvalho?
Não. Ferro velho, minerais, um animal em
decomposição? Sim. Mas nuvem não dá. Como a
alma, ela é inaprisionável.
Roberto Gambini
Só as nuvens choram para além dos olhos. Molham a terra, evaporam, condensam,
precipitam e voltam a chorar. São responsáveis pela transmutação dos estados. Estados
emocionais que não são, mas estão cheios de intensidades.
Ser docente e artista, com tudo o que o olhar de um mestre deve incluir como teores
afetivos, para mim é entrar em estado de nuvem. Ser capaz de verter lágrimas tanto de tristeza
como de alegria. Colocar-se em jogo, sem medo do erro ou ridículo demolindo suas próprias
hierarquias. Habitar sua fantasia como verdade poética. Aceitar o elemento improvisacional
que a vida traz para manter-se em ressonância com sua própria energia vital.
Ensinar é entrega aos estados impermanentes que podem vir a tornar-se memória, pois jamais
saberemos o que permanece ou resiste ao tempo. É estar em cena, em improvisações, correndo
riscos emocionais e partilhando dúvidas sobre o caminho a seguir, invadido por algo mais urgente
do que o programado em qualquer instante, que podemos transformar um roteiro em algo criativo.
Os elementos presentes em aula – sejam estes pessoas, conteúdos, objetos, demandas, atividades,
planejamentos, leis ou regras que podem contrariar algumas relações prazerosas, são todos
parceiros de cena da possibilidade inusitada da criação. Podem tornar-se escadinhas do riso, do
choro, do grito ou do espanto – se assim lhes for permitido pela imaginação e novas negociações
que surgem de uma afetividade que está em movimento e se modifica na relação com as pessoas
que contribuem para as percepções de um grupo. Todos os imprevistos podem ser fios condutores;
quiprocós podem trazer outra dimensão de um determinado conteúdo; e às vezes até, iniciativas
que resultem num fracasso, podem renascer como uma peripécia de um mestre de cerimônias que,
sem pretensões acaba por divertir e ensinar pelo improviso e o faz com tanta alegria que educa sem
dar-se conta, pela qualidade transitória da emoção. Transgredindo condicionamentos
desnecessários faz brotar um saber sensível que impressiona o corpo e fica gravado na memória
com integralidade. Ser educadora para mim não é força, é jeito; é qualidade de toque no olhar: que
aqui significa tanto ponto de vista, opinião, como tocante atitude de comunicação, onde um gesto
pode trazer a dimensão de ampla história.
A docência é como jogar semente na terra preparada com tudo dentro. Porém, sem água,
a fecundação do conhecimento não se dá. Sem afetividade as relações não se consolidam e nem
se poetizam, não há espaço para o que é diferente no outro, só o igual no grupo – e assim
esterilizamos as relações e, com isso os procedimentos ou atividades perdem todo sentido. A
ausência de vínculos é o que compromete as aprendizagens, não a ordem dos conteúdos.
A afetividade é um espaço invariável de instabilidades criado pelas pessoas: não é um
conceito. Ser amoroso, disponível e ativo de forma recíproca nada tem a ver com bom
1 Universidade Estadual de Campinas. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: [email protected].
“LUGAR DE NUVEM É ESTAR EM CENA TAMBÉM NA AULA”
LINHA MESTRA, N.30, P.35-38, SET.DEZ.2016 36
comportamento, obediência e submissão. Tem a ver com sinceridade nas sensações e honestidade
nas atitudes: é uma disposição para intercambiar sem condições prévias e sem burocracias, muito
menos hierarquias. Afetividade é toda uma gama de sentimentos que faz parte das aprendizagens
de forma intrínseca, é ela que nos move em atitudes e define os vínculos como afastamentos ou
aproximações em diversas tonalidades. O ambiente afetivo é um florescer que se faz presente entre
seres que antes de corresponderem indicadores de qualquer avaliação, vibram desse nascer junto
que vem da criatividade: é um encontro em estado bruto de alma com alma, dado e vivido na fresta
da fragilidade, de trocas delicadas, de um lugar sem respostas prontas, que se regenera ao se
relacionar com o outro. Não prende suas conquistas em gaiola, pois estar com o outro reflete seus
próprios talentos, não é uma ameaça, muito menos competição.
A água é parte da emoção e pulso de vida: gota de alquimia de relações multicoloridas,
cheias de tons e sobretons, sustenidos e degrades - necessárias não a uma evolução, mas a uma
maturidade desejada dos envolvidos no processo. Conhecimento é feito de entregas voluntárias
em tempo presente, não obrigatoriedades.
Não posso definir o que faz de uma aula algo que dá certo, mas criar ambiente emocional
constitui prioridade para proporcionar uma experiência que transmita segurança para todo e
qualquer tipo de mudança de planos inspirando confiança coletiva. Somos referências, não
alicerces. Temos como papel mostrar: demonstrando em ações e aceitando nas atitudes, a
inexorabilidade da instabilidade, pois ela faz parte da vida mais tempo do que o planejado.
Flexibilidade é condição de salubridade, sanidade e de permanência de nasceres. Preservação de
vida não tem a ver com moralidade, mas com diversidade de procederes, reações e inter-relações
entre os seres envolvidos num determinado ambiente, que se propõe como pedagógico. É na relação
que se nasce, nos espaços entre as variações de comportamento e nas variantes das escolhas.
Garantir espaço para toda e qualquer manifestação de criatividade e inventividade é o nosso papel
e não a manutenção de condicionamentos. Ninguém cria vínculos se não se sente minimamente
aceito ou acolhido em algo. O negar pode fazer parte da afetividade, mas a intransigência não
estabelece trocas energéticas – é equivalente a um bloqueio, onde nada passa e nem modifica. Só
cristaliza, isola e encapsula de forma categórica.
Para a atriz, estar em cena é estar pronta e disponível, porém, sempre para fantasiar. Fazer
pactos ficcionais, sem consequências aparentes, só criativas. Criar na arte é organizar sem
preocupação com o que os outros pensam de nós; meu objetivo é entrar em contato com meus
próprios limites emocionais - não penso em agradar ninguém enquanto crio, estou em devaneio.
Já para a relação pedagógica, existe um produto e algo se modifica no ato de confiança que vem
de um contexto desfavorável. Não ter resposta, pode fazer uma tentativa diferente nascer, mas
isso não é condição prévia. Porém não estamos separados dentro de nós: esse é um dos pontos
que me unem como atriz e educadora, pois me condenso como uma só energia. Ambas quando
improvisam não tem respostas prontas, apenas um fio condutor ou uma regra de jogo. Por que
a educadora deveria abrir mão da atriz em sala de aula?
Criatividade não se move por certezas e sim por imprevisibilidades vindouras, ainda não
configuradas que nos desenvolvem exatamente em nossos pontos de vulnerabilidade. Confiança
move-se dentro de um campo sutil: está para além das aparências. Não falo de confiança dita da
boca para fora, mas da que é combinada no silêncio. Decisões tomadas sem julgamentos e que se
nutrem do próprio movimento das ações e assim emergem como atitudes compartilhadas, decididas
no instante.
É preciso estar aberto a amplo estado de vazio em sala de aula. Aceitar que a resposta
disponível dentro de nós no processo é a única resposta que podemos dar naquele instante. Ter
a imediata generosidade de abrir-se a um caminho inverso que é criado exatamente ali: não se
trata de nenhuma habilidade em especial ou extraordinária, ela pode ser desenvolvida por toda
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e qualquer pessoa - se trata de interpretar com prontidão os próprios sentimentos, fazendo-os
conversar com interesses do contexto, aqui e agora.
Ser capaz de lançar-se à interrupção do cotidiano, mesmo com objetivos traçados. Interrupção
não como pausa ordinária, mas como nascimento de energia extracotidiana. Estar em cena: nem
mais para direita ou para esquerda, nem mais para cima ou para baixo, num lugar bem dentro de si
- mas que também não era no meio de nada, pois é feito de energia que permanece na totalidade
apesar de todas as intempéries. Essa energia nos faz uno, não sentimos que abrimos mão do que
somos para ser algo que nos contraria. É na adversidade que encontramos a parte que mais importa
para nós, a dificuldade traz o essencial se baixamos o nível de exigência – não com o outro, mas
com nós mesmos. O planejamento é um mapa que contém pistas do tesouro, não verdades: ele é
autorização para o lúdico. A manifestação do mental em linguagem deveria permitir espaço para as
dissonâncias, não engessar procedimentos.
Estar em zona de magnetismo, onde as forças não atuam: não somente é possível estar com
todos os meus sonhos, mas eu posso ser nuvem e estar entregue para algo surja. Não se trata de ser
atriz ou professora: é ser palhaça e educadora. É como na vida, não é preciso abrir mão de ser nuvem
em nenhum lugar que se vá: aliás, isso não é possível, portanto não deveria ser um objetivo da
escolarização/profissionalização de ninguém. Este é um princípio de aniquilamento da
personalidade e do mutilar das qualidades que poderiam ser desenvolvidas em cada vocação. No
afã de moldar, sob qualquer argumento, a escolarização/profissionalização está abrindo mão do que
há de melhor em cada um – tanto adultos como jovens, alunos (as) ou professores (as).
O corpo não é uno sem um órgão ou parte dele, a vida pulsa na integridade. A
autenticidade passa por todas as experiências vivenciadas. Não abro mão de mim: porque sem
coerência ou legitimidade de ações, não há autenticidade e tampouco posso estar com o outro,
pois abri mão de mim, que é o mais importante, porque condição para vínculos. Isso passa, em
princípio, por perceber-se como um só corpo com infinitas camadas e sensações. É incluir, não
corrigir – valorizando saberes.
O estado de nuvem pode nos auxiliar em diluir a ideia de que fechar a porta de uma sala
de aula e cumprir o planejamento dentro do tempo esperado garante a eficiência da
comunicação que um docente pensou a priori numa experiência que deveria ser compartilhada
e não imposta. Lidamos com pessoas, não máquinas. Para as pessoas existem vários tempos,
não só o do relógio. As emoções são encurraladas, negadas e ignoradas na maior parte das
vezes. Não há tempo, nem espaço para dar vazão a elas se passamos a considerar a aula um
espaço para cumprir metas em lugar de estabelecer relações.
Ambientes escolares defendem generalizações humanas através da medicalização ou do uso
de termos que designam qualquer comportamento que afeta a rotina como síndromes ou doenças.
A aprendizagem está exilada do erro ou não pode arranjar nenhuma brecha em novos modos de
explicar um acontecimento: isso mata a relação pedagógica e toda sua possibilidade criativa. É
recorrente que em espaços educacionais ainda tenhamos que enfrentar muitos preconceitos. O
próprio discurso da segurança ou de formar para o futuro já justifica muitas imposições
desnecessárias para moldar o comportamento: a meta é a esterilização dos sentires, esvaziando
qualquer tentativa de expressão dos envolvidos (as) – refiro-me sempre a alunos (as) e professores
(as); pois tem que consolar-se com um ideal de normalidade impossível de alcançar. O espaço para
o erro tem sido deslocado para falsos propósitos de preservação das relações, como por exemplo, o
modismo e exagero do bullying - visto que passam a ser argumentados em prol do controle,
principalmente corporal.
Sem espaço para sombras, ninguém corresponde ao cotidiano. Resultado: insatisfação,
adoecimento e frustrações. Respostas insuficientes não para conteúdos programados, mas
conteúdos emocionais congestionados - que bloqueiam o curso das relações e, por
“LUGAR DE NUVEM É ESTAR EM CENA TAMBÉM NA AULA”
LINHA MESTRA, N.30, P.35-38, SET.DEZ.2016 38
consequência, o programa do calendário. Seria simples se fosse uma questão funcional,
máquinas resolveriam. O que adoece os ambientes pedagógicos é a mesma força que faz com
que os docentes não possam deixar de existir: é a afetividade.
Considerando que admitir que ambas as partes possam ter bloqueios em diferentes
momentos, tanto alunos (as) como professores (as), a relação de poder pode se desfazer - nasce
então uma relação onde papéis são atribuídos, mas sem necessidade de hierarquias ou
autoritarismos. Para isso é preciso sair dos automatismos, duvidar dos procedimentos ou regras
e não querer impor fórmulas de sucesso: improvisar entre as nuvens. Aprendizagens não
ocorrem na linearidade, mas no entre das ações e das relações.
Se isto está interiorizado, assimilado e incluído em nossas personalidades e processos de
amadurecimento, o fracasso não será erro, será parte dos ingredientes para poder estar em
relação com os próprios sentimentos e suas variantes e variações. O olhar humano virá primeiro
do que aquele que serve aos resultados. Gastaremos mais energia em observar como passamos
pelos processos do que duvidando das habilidades de todos (as) e entre todos (as) com desculpas
avaliativas.
A humildade não ocupará um espaço a mais de uma aula ou não significará uma habilidade
sobrenatural a ser atingida. A ideia de encontro de dissonâncias em busca de uma só vibração será
mais importante que homogeneizar reações. E não será uma vergonha ou constrangimento admitir
ignorância - nem de um lado como de outro - visto que a partilha será a prática de multiplicar
energias e relações afetivas. Enquanto não for aberta a possibilidade de discordância como prática
de afetividade e escolha de partilha, nenhum método ou didática terá vida.
Tudo muito poético, mas dá mais trabalho. Não porque seja realmente trabalhoso, mas
porque é como um músculo que nunca usamos – em princípio causa incômodo, mas com o
tempo, o corpo percebe que o que existia antes era uma sobrecarga, pois os trabalhos eram
centralizados e não compartilhados. Quando dividimos e delegamos talentos, todos podem
entrar em contato com seu poder de criação, que está fora da lógica de poder, porque cada um
cria e contribui de forma diferente. Todos são valorizados, pois cada um tem um timbre de
expressão, um jeito de compreender o contexto e uma forma de solucionar conflitos. Com
tempo para entrar em contato com eles é possível um posicionamento confortável, mesmo que
nem sempre concordante com o grupo. Relações quando ganham vida, aceleram o processo de
aprendizagem; ganhamos tempo porque compreendemos o sentido de um movimento que passa
a ser não só individual, mas coletivo. É por aí que começa a sustentabilidade: no equilíbrio de
forças emocionais, onde nuvem é pista, não verdade. O caminho está sempre por ser feito: a
água é um elemento que está sempre em trânsito numa nuvem. A emoção veicula, não
soluciona, não é regida pelas normas da eficiência.
Referências
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LARROSA, J. A pedagogia profana: Danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
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SPOLIN, V. Improvisação para o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1963.
LINHA MESTRA, N.30, P.39-42, SET.DEZ.2016 39
PROCESSO DE CRIAÇÃO: LEITURAS DO (IM)POSSÍVEL
Tânia Villarroel Andrade1
Criar não é ler, ler é processo inverso a criar, mas não complementar. Se para ler você
organiza linearidades, quando existe criação, ao condensarmos sentires, disparamos
linearidades para amplificar sensações. Criar é possível em todo e qualquer tempo e lugar.
Somente quando afetamos nossos processos orgânicos a ponto de acelerar percepções estamos
falando de arte - porém o belo está presente também no cotidiano, só que não de forma
intencional. Arte é materializadora de criações com cargas emocionais intensificadas.
Improvisar é um modo de aceleração.
Improvisar, não é só uma proposta de estrutura ou uma técnica, é um modo de criar.
Porém, para além de elaborações teóricas, é um jeito de ver a arte e a vida. O cotidiano faz parte
da vida, mas para o artista, ambas pulsam juntas e são camadas do universo sensível capazes
de conviver entre elas. Tudo que passa pelo processo de vida e que emociona, tocando o coração
e chamando a alma para dançar, manifesta criação fora ou dentro dos palcos, corpos, telas ou
instrumentos. Processo criativo independe de preferências pessoais ou afeições morais: é
vitalidade manifesta com todas as contradições; são potencialidades que necessitam de vazão.
Quando estas alcançam o nível máximo, o sublime da Arte se condensa, explode, vibra,
conversa, eclode, reverbera – emana vitalidade e a obra se descola do criador.
Improvisação é manifestação criativa, tanto para expectador como para intérprete, pois
na criatividade, ambos formam uma só força vital quando se encontram no ato da criação
compartilhado. A esta sensação, quando cotidiana, chamamos comumente de comunicação,
mas na criação, é energia vital, pois os pontos de conexão gerados pela criatividade não são
feitos de opiniões coincidentes, mas fazem parte do mesmo campo de vibração que busca a
multiplicidade dos significados e das relações.
As variantes e variáveis da composição de uma obra não são obstáculos, são convites e
provocação para as mudanças. Passar pela feitura ou jogar outra vez uma mesma cena, em
diferentes espaços; ou trabalhar um determinado tema, diversas vezes em variados contextos
artísticos, faz com que o essencial do processo criativo apareça. A vitalidade que move a criação
emerge das profundezas da urgência do que é legitimo expressar no improviso - e se amplifica no
corpo para si, mas com o outro. O corpo do intérprete está em jogo, mas também o corpo todo da
obra, todos os elementos estéticos e linguagens estão em atritos poéticos, sobrepondo narrativas
para a convergência com a sensação do que se quer manifestar como sensibilidade.
Um aroma pode ser o disparador de uma criação. A ideia superficial que é cultivada é de
que as lembranças despertadas por aromas cotidianos seriam suficientes para despertar
sensibilidades que se materializam numa obra de arte. No entanto, aromas provindos de óleos
essenciais possuem propriedades de expansão do sistema neural, e criam irradiações outras
dentro da nossa rede de conexões cotidianas, intensificando sinapses. Iniciam seu percurso pelo
sistema límbico – parte do cérebro responsável pelas emoções - o que poderia potencializar a
materialização de fenômenos imagéticos sensíveis ligados ao campo da criatividade. Percursos
imagéticos nossos que se potencializariam criando novas redes neurais, formando caminhos
diferentes do que estamos acostumados, assim aprofundando criações a partir de nossas
próprias imagens mais significativas – que, ao gerar algo artístico, retiraria a imagem do nível
superficial dando-lhe lugar de merecimento; além do que importância pessoal ou particular,
1 Universidade Estadual de Campinas. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: [email protected].
PROCESSO DE CRIAÇÃO: LEITURAS DO (IM)POSSÍVEL
LINHA MESTRA, N.30, P.39-42, SET.DEZ.2016 40
provocando múltiplos desdobramentos através de condensações de sensações que carregam em
si muitas linearidades possíveis.
Os aromas tornam mais provável a convivência de diversos modelos de narrativas
sobrepostas que expressam linguagens para juntas formarem outros significados. O uso de
aromaterapia para a criação de materiais artísticos produz livre-associação entre as imagens e
as condensa novamente - não como um bloqueio emocional, mas mobilizando o excesso de um
determinado conflito com tema intransitável para nós até então – e faz com que a memória
reorganize os significados, transmutando traumas ligados ao excesso de linearidade, com a
oferta de múltiplos caminhos neurais. É o mesmo que o processo criativo faz quando usa
diversas linguagens para se inspirar - porém quando podemos contar com a disponibilidade de
novas conexões neurológicas, o processo se acelera e torna-se muito mais orgânico para se
relacionar com campos poéticos diversos a uma só vez.
O referido processo de criação iniciou-se com o aroma de bergamota, num modelo de
atendimento, que não cria a ideia de hierarquias ou não lida com nenhum modelo de
medicalização, porém, em consequência, acaba tendo um fim terapêutico. Foi criado por mim
para atender a necessidade de pessoas em não se sentirem anormais perante padrões instituídos
sem muito critério; ou vítimas de alguma patologia de qualquer ordem sem lógica - para
poderem se entregar a uma prática terapêutica criativa. A “Aromaterapia na teatralidade” é um
sistema que associa aromas com materiais artísticos – imagens, personagens, filmes, músicas e
movimentos corporais - e se vale também do tarot como instrumento literário que acessa
histórias arquetípicas.
Convidei uma cliente que já atendia há algum tempo para experienciar um sequestro poético
– que seria assessorado por uma acompanhante – que seria motorista do encontro e tocaria bongô
enquanto eu cantava. A atmosfera da experiência seria criada pelo aroma. O sequestro era para um
destino desconhecido para a sequestrada: o parque Ibirapuera. Li poemas, cantamos em roda e
fizemos música – tudo escolhido segundo a vibração poética deste aroma.
A Bergamota é um cítrico da família das rutáceas – palavra que significa liberdade. É um
aroma capaz de arrastar para fora do corpo toxinas, regular pH dos sistemas internos e equilibrar a
elaboração do açúcar no organismo – trazendo alegria. É um aroma excessivamente solar, tanto que
a exposição ao sol quando sobre a pele provoca sérias queimaduras.
Relaciono este aroma com a peça “Romeu e Julieta” - de William Shakespeare – e com seus
personagens protagonistas; por conta da possibilidade de deliberação de bloqueios emocionais
relacionados com o excesso de idealização de parceiros românticos, que costumam resultar em
frustrações amorosas sem tantas razões palpáveis ou diretas. A frustração vem de alguma atitude
platônica, e provem de algo que, frequentemente, nem chega a se configurar.
O limoneno, outro componente da Bergamota, dá movimento às combinações
moleculares, por isso evapora rápido - tem alta volatibilidade, trazendo leveza. Este aroma é
indicado para tratar paixões mal resolvidas que caíram numa eterna nostalgia de um mundo
imaginário sem desenlace.
Enquanto o processo criativo dentro do atendimento era disparado pelo aroma o contato com
o inusitado foi dilatando a característica orgânica das conexões que se fazem na criação. As
conexões não são lineares e tampouco mentais, são intuitivas e sensoriais. Sensibilidades que se
multiplicam em imagens e de forma nem um pouco definitiva, porém tem uma intencionalidade
clara. Os óleos essenciais intensificam tudo que poderia acontecer num tempo maior de trabalho.
Como, em processo, já não sabia separar o que disparava o quê. Se o texto, se as imagens
que eu queria viver com a mesma intensidade das que estavam presentes no texto, se as
sensações inusitadas que talvez eu vivenciasse ou mediasse - para que alguém pudesse vivenciar
o que eu jamais imaginei proporcionar; ou se como quando estudo um aroma, tudo compunha
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LINHA MESTRA, N.30, P.39-42, SET.DEZ.2016 41
uma atmosfera onde as diversas linguagens que eu gosto podiam conversar sem precisarem
concordar entre si.
O aroma era intercessor disparador, mas todos os materiais poéticos usados e os
elementos que compunham a cena também, tal como meus parceiros e parceiras de processo
criativo - tanto quem fez o laboratório de sensibilidades no parque, como o público que me
assistiu na cena que criei depois - a partir de um universo de sensações que vivenciei de forma
rizomática e plena de interelações.
“O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não
há obra. Podem ser pessoas [...] mas também coisas, plantas, até animais,
como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso
fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série,
mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. [...] sempre se
trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê.” (DELEUZE 1992, p. 160).
De fato, para improvisar ou interpretar, nunca estamos sozinhos. Lançar-se ao desconhecido,
considerando o inusitado como componente da cena, potencializa o conteúdo de uma performance.
Na improvisação temos roteiro, não planejamento. No criar improvisando as ações poéticas são
mais importantes que o cumprimento de uma sequência de movimentos que compõem uma só
linearidade. Criar não se encerra, mas está centrado na intencionalidade do artista.
Ao criar a cena, algumas imagens difusas me vieram à cabeça: uma noiva, um bouquet, uma
escada. Também sentia que precisava cantar ao subir a escada. Isso era tudo que eu sabia. Resolvi
incluir alguns dos materiais artísticos que foram usados no Parque Ibirapuera: O poema de Fernando
Pessoa e o trecho da peça “Romeu e Julieta” na boca da noiva antes de jogar o bouquet. Sabia que
queria que me jogassem arroz e que na escada algumas palavras poderiam ser convidativas para o
universo da cena. Gizes também ficaram disponíveis para quem quisesse interagir com o espaço,
caso quisessem escrever algo que tivesse a ver com suas sensações.
Apresentar a cena mais de uma vez e em diferentes espaços, para diferentes públicos
aprofundou as associações que fazia no contato com as linguagens no ato da criação, inclusive a
aromaterapia. Repetir a improvisação mantendo a maior parte dos elementos da cena e variando o
espaço cênico também me trouxe percepções na relação entre as linguagens. Elaborar um material
artístico e levar a sério um processo criativo ativou uma compreensão mais profunda tanto de como
a criação se dá para mim quanto de como posso mapear as propriedades poéticas de um óleo
essencial e como elas se interlaçam com a parte terapêutica de suas propriedades.
A improvisação transformou um disparador – o aroma – em diversos intercessores que
insinuavam por imagens. Uma noiva, um rio, uma escada. Uma noiva sem noivo. Uma noiva
que canta. A trilha sonora da cena era feita com o canto e com as latas de cerveja amarradas na
cintura da noiva – e isso causava um ruído na cena por ser possível percebê-la como carro de
recém-casados ou um barulho de rio que escolhe onde quer passar, ao mesmo tempo. A noiva
subia a escada; e nesse movimento ambas também podiam ser rio, juntas. A noiva, ao passar
recebia punhados de arroz pelo corpo, jogado pelos convidados – os espectadores - um arroz
com potencia também de rio. Barulhinho de rio, também sensação rio vivida pela atriz.
A experiência de dilatar o sensorial e não permitir que o sentido da visão tiranize o próprio
corpo para vivenciar com mais intensidade possível os outros sentidos, principalmente, pele e
olfato, fazia nascer uma noiva vendada com seu próprio véu e sem arrastar grinalda – o que eram
arrastadas eram as latas. Vendar-se era aproximação: uma mulher vendada entre o público era ato
de confiança, não era ameaçadora para os participantes- convidava para a interação. Para criar sem
que a intensidade morresse e a continuidade se desse de forma orgânica, era preciso arriscar. Sair
da zona de conforto para experimentar em tempo real dilatações do corpo como um todo.
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É interessante encontrar situações inusitadas aonde é possível você se arriscar, se
lançar pra que essa entidade obra de arte desça. [...] É como um fluxo, por isso
esse fluxo, essa coisa da entidade, é uma coisa que completa no outro, no olhar de
quem vê, no espectador – e cada um ter a noção da obra completamente diferente
do outro, ou seja, uma obra aberta. (GUIMARAES, 2001, s/p).
A improvisação como processo de criação que se verticaliza por si só e no seu fazer,
passou a constituir um ato de coragem e de aprofundar a intimidade que o inusitado pedia. Uma
criação pode nascer de uma regra, de um aroma, de um figurino, mas ela precisa ter uma
estratégia de sobrevivência. Neste caso, era a escolha de espaços diferentes – isso já desloca as
sensações corporais e a relação com o público. É uma escolha de risco que mantém os outros
elementos para identificar o que ficou de emoção em estado bruto. Manter uma variação
também pode auxiliar a identificar os intercessores de uma criação artística.
O que em um espaço foi dado por subir uma escada, em outro foi potencializado num banco
em forma de “s”: um aroma volátil como a bergamota pode agir de maneira diferente em cada corpo
humano e em cada corpo no espaço. O que em um pode ser percebido numa sensação corporal de
baixo para cima no ar e de forma bem sutil, em outras circunstâncias espaciais pode se manifestar
como um sentimento de festa, de pessoas que celebram uma união e jogam arrozes de baixo para
cima. Ambas as descrições conectam com a volatilidade característica do aroma, no entanto, de
formas absolutamente diversas. É de se considerar que se uma propriedade é vivenciada e descrita
de forma diferente, um aroma com princípios orgânicos, se comportará nos corpos de forma
previsível, mas nunca definitiva ou encerrando um único significado.
Dar corpo e vida a uma improvisação pode amplificar o contato com a propriedade dos
aromas, no que toca nossa alma em território intraduzível. O aroma acaba por criar intercessões
com nosso repertório de imagens sim, mas principalmente em como podemos nos deslocar nós
mesmos de nossos sentires e sairmos dos automatismos das nossas ações, criando cenas, mas
também vínculos mais afetivos com tudo que nos rodeia.
Não era cheiro, não era som, não eram as superfícies das coisas. Era o movimento.
[...] Dentro de mim não havia eu. Não havia nem mesmo um dentro de mim. Eu
era apenas rastro e movimento. (GUIMARAES, 2001, s/p).
Jogar em cena com os diferentes elementos presentes – inclusive um aroma -
intensificando a criação lúdica pelo improviso do inusitado ou acidente, sem a busca de
definições ou símbolos, mas condensações – onde linearidades propagam diversas narrativas,
onde incerteza não vira insegurança, mas criatividade. Não sou mais ser, nem coisa: sou um
estado de poesia, atriz desdobrando-se e aceitando o inacabamento próprio do humano e
potencializando as indefinições criadoras dos artistas.
Referências
DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
Site
GUIMARAES, C. Histórias do não ver. Disponível em:
<http://www.caoguimaraes.com/livro/historias-do-nao-ver-2/>. Acesso em 07 de maio de 2016.
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BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO
EXPERIÊNCIAS NO DIÁLOGO ENTRE COLETIVOS DOCENTES
Mairce da Silva Araújo1
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais2
Ruttyê Silva de Abreu3
Caminante, no hay camino,
se hace camino al na dar
Antonio Machado
Com os versos do poeta sevilhano Antonio Machado trazemos ao diálogo algumas ações
investigativo-formativas produzidas no interior de um coletivo de docente nomeado “Rede de
Docentes que Estudam e Narram sobre Alfabetização, Leitura e Escrita” (REDEALE).
Inserido na Faculdade de Formação de Professores, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (FFP/UERJ), tal coletivo desenvolve atividades que envolvem pesquisa, extensão e
ensino, com desdobramentos no México e no Peru. Dois propósitos maiores nos movem no
Redeale: compreender processos coletivos de mudança das práticas pedagógica a partir das
relações de interação e interlocução entre docentes, em/por coletivos docentes e contribuir com
a organização de ações em redes e coletivos docentes na América Latina.
Nesse artigo trazemos parte de nossos movimentos nos quais pretendemos estreitar e ampliar
laços e ações colaborativas nos países já mencionados, enfocando experiências vividas na
construção de parceria com o coletivo docente peruano “Red Desenredando nudos”.
Rede de docentes que estudam e narram sobre alfabetização, leitura e escrita
A Redeale, coletivo de Docentes que Estudam e Narram sobre Infância, Alfabetização,
Leitura e Escrita, resultou da articulação entre professores(as) e grupos de pesquisa na
FFP/UERJ mobilizados pelo objetivo de compartilhar experiências docentes na educação
infantil, na alfabetização e no ensino superior, no ano de 2015.
O impulso para a criação do coletivo veio a partir de nossa participação no “VII Encuentro
Iberoamericano de Coletivos e redes de Maestros y Maestras que Hacen Investigacion e
Innovación desde su Escuela y Comunidad”, que ocorreu em Cajamarca- Peru, em julho de
2014. Após o encontro, a partir de uma proposta do professor peruano Sabino Abanto Abanto,
coordenador, junto Maria Isabel Gutiérrez Chaves, do coletivo docente “Red Desenredando
nudos”, seguimos em contato com a rede de Cajamarca, via Skype, através de encontros
mensais, com duração de cerca de três horas cada, construindo um intenso diálogo que tem se
nutrido do desejo coletivo de compartilhar experiências docentes, com vistas a fortalecer a luta
por uma escola popular emancipadora na América Latina.
Nos guia uma concepção de formação que busca romper com um modelo de racionalidade
técnica aplicativo de pensar e fazer a formação docente inicial e continuada. Concepção essa
que vê os/as professores/as como meros/as aplicadores/as de conhecimentos e práticas
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, São Gonçalo, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, São Gonçalo, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Formação de Professores, São Gonçalo, Rio de Janeiro,
Brasil. E-mail: [email protected].
BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS NO...
LINHA MESTRA, N.30, P.43-48, SET.DEZ.2016 44
definidos/as nos gabinetes das secretarias de educação, dentro dos muros da universidade, nos
espaços acadêmicos, portanto, ao largo da escola e da comunidade sem reconhecer a natureza
autoral e produtiva da prática docente.
Em diálogos entre Universidade e Escola Básica, que caracteriza nas ações investigativas
dentro da universidade, temos aprendido a reconhecer “a escola no plural – que emerge desde
a cotidianidade dos saberes, dos desejos e das buscas dos que atuam nela” (BERNAL, 2010, p.
2). Narrativas docentes revelam saberes e fazeres pedagógicos construídos e vividos em
diferentes tempos e lugares, em boa parte das vezes alimentados em coletivos, indiciando que
professores/as se formam em múltiplos espaços e tempos, em movimentos diversos e de
natureza complexa, permeados por relações grupais, colaborativas e dialógicas. (ARAUJO E
MORAIS, 2016)
O caminho que se constrói na caminhada
estamos muy animados de hacer el proyecto juntos,
los matices, las diversidades, la cultura los colores
serán los ingredientes para esta linda experiencia de
creación colectiva
(blog “Red de Maestras y Maestros Desenredando
Nudos”)
Na interlocução entre os coletivos Redeale e “Red Desenredando nudos” fomos
construindo caminhos que não estavam previamente desenhados.
A afirmação das professoras peruanas, compartilha o entusiasmo provocado pela
experiência. Por outro lado, porém, obstáculos também dificultavam a construção de projetos
coletivos. Assim, a distância física Brasil- Peru e a diferença de idioma português-espanhol são
desafios que continuamos a enfrentar até hoje.
Compartilhando nossas investigações a partir da escola e da comunidade, muito mais do
que métodos ou técnicas pedagógicas, dávamos-nos a conhecer um coletivo a outro coletivo.
Compartilhávamos um patrimônio de saber-fazer vivo, incorporado em práticas cotidianas,
historicamente e culturamente situadas, provocadora de leituras de mundo singulares, como nos
ensina Freire.
Alguns frutos iniciais da caminhada
Dado os limites do presente artigo, trazemos dois projetos compartilhados gerados a parti
da caminhada: o Projeto Calendário Patrimonial um Retrato Gonçalense e a Expedição
Pedagógica vivida no “III Encuentro Nacional del colectivo peruano de docentes que hacen
investigación e innovación desde la escuela y su comunidad”, em Huancayo, Peru, no período
de 01 a 05 de agosto de 2016.
Projeto Calendário Patrimonial um retrato gonçalense
Em um dos encontros entre os coletivos foi apresentado pelas docentes peruanas um
projeto desenvolvido na Escuela Campesina Alternativa que produzira um calendário. Tal
projeto, desenvolvido com estudantes na cidade de Cajamarca, Peru, originou a construção de
um calendário com contos criados pelas crianças, inspirados nas árvores nativas do Peru. O
trabalho além de buscar atender aspectos educacionais, culturais e curriculares, tinha como
BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS NO...
LINHA MESTRA, N.30, P.43-48, SET.DEZ.2016 45
finalidade maior o desenvolvimento pessoal e colectivo de crianças, jovens, adultos para que
essas possam melhorar as condições de vida e do meio ambiente.
Fig. 1: Calendário da Escola Campesina Alternativa acervo REDEALE
Após apresentação do projeto do Calendário Cultural das crianças de Cajamarca, foi
proposto pelas/os colegas peruanas/os desenvolver um trabalho semelhante no Brasil.
Incorporando a proposta construímos o projeto “Calendário Patrimonial um Retrato
Gonçalense”, a ser desenvolvido na Escola Municipal Paulo Macedo do Amaral, por ser esta o
local de trabalho de uma das professoras do grupo brasileiro.
O projeto ainda em desenvolvimento envolveu toda escola, tendo produzido alguns
trabalhos acadêmicos sobre a experiência. Trazemos aqui apenas um dos cordéis produzidos
com as crianças:
FAZENDA COLUBANDÊ
Querido amigo
Quero te dizer
[...]
Antigamente tinha escravidão
E também muita plantação
Era da Catarina Siqueira
Essa grande construção
Fica em São Gonçalo, no bairro Colubandê
Um lugar que considero, muito bom de se viver
Com pessoas legais, divertidas e bonitas
Quando você puder, venha nos ver!
(Cordel Coletivo 3º ano- E. M. Paulo Amaral)
Importante trazer, igualmente, uma das reflexões sobre a experiência elaborada pelo grupo,
que confirma para nós a potência da formação que vai se constituindo no movimento coletivo
A pesquisa e estudos acerca dos patrimônios históricos da cidade de São
Gonçalo, a nossa cidade, fez crescer o encantamento e admiração por um lugar
que outrora era visto apenas como mais um lugar comum da cidade, sem
sequer pensar nos aspectos culturais e históricos que tais patrimônios
representavam. Mudança de concepção se dá primeiro em nós,
educadoras/pesquisadoras. De forma semelhante também ocorreu com as
crianças da Escola Municipal Paulo Macedo Amaral. Tal sentimento que
surge com relação a nossa cidade transforma-nos em novos cidadãos
BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS NO...
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gonçalenses, cidadãos com uma concepção de pertencimento e de
responsabilidade em cuidar e preservar o patrimônio da cidade. (FARIA,
CRESPO, LOROSA, 2016, p. 9)
Uma expedição pedagógica em Huancayo, Peru: a formação como viagem
Em verbete elaborado para o “DICIONÁRIO: trabalho, profissão e condição docente”,
publicado em cdrom pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais,
Bernal, define Expedição Pedagógica como:
Movimento de professoras e professores que, por meio de viagens através de
caminhos, povoados e cidades, produzem uma mobilização social pela educação,
geram encontros e constroem um novo olhar sobre si mesmo e sobre a diversidade
de práticas pedagógicas existentes. (BERNAL, 2010, p. 1)
A ideia da Expedição Pedagógica está ligada à origem e ao desenvolvimento do
Movimento Pedagógico na Colômbia, durante a década de 80, nos departamentos de Caldas e
Guaviare, expandindo-se por toda a America Latina e mantendo-se até nos tempos atuais, a
partir da organização de redes e outros coletivos docentes e trazendo contribuições para
respostas à questões tais como: “Quem somos hoje como professores?”, “ Que escola estamos
construindo?”
O movimento que nos levou ao “III Encuentro Nacional del colectivo peruano de docentes
que hacen investigación e innovación desde la escuela y su comunidad”, em Huancayo, Peru,
no período de 01 a 05 de agosto de 2016, para vivenciar com o grupo a expedição pedagógica
peruana, também foi tomando corpo a partir de encontros entre os coletivos brasileiro e peruano.
Um grupo formado por onze integrantes, sendo tres professoras da universidade e nove entre
professor/as da escola básica e estudantes de graduação.
Fig. 2: O Redeale na Expedição Pedagógica Peruana acervo REDEALE
Compartilhando com Sá-Chaves que “a formação é uma viagem, a narrativa é a memória
dessa jornada” (2014, p. 21) planejamos, cuidadosamente, nossa expedição pedagógica, tanto
no sentido material, quanto no sentido de nos prepararmos afetivamente, psicologicamente,
quanto intelectualmente, para experiência a ser vivida.
BRASIL E PERU NAS DOBRAS DO (IM)POSSÍVEL: COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS NO...
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Um relato extraído do diário de campo de uma das participantes antes da viagem e uma
reflexão produzida após o retorno, que constam de um artigo produzido para a Revista
Magistério da Colômbia, dão a ver parte da riqueza do processo vivido:
Check-in feito, o que outrora era apenas uma possibilidade distante, vai se
tornando uma realidade: será preciso encarar, de fato, o pássaro voador!
Muitas emoções e sentimentos se misturam. Para nós moradores/as de São
Gonçalo, cidade periférica e com altos índices de pobreza, a hipótese de viajar
de avião, simplesmente, nem era levantada: sair do país, descobrir outros
mundos, outras culturas, outros povos, outros “outros” (Diário Danusa
Tederiche). (ARAUJO, FARIA, CONCEIÇÃO, 2016, p. 4).
A escrita reflexiva sobre esta jornada tem nos provocado a pensar sobre a
potência do encontro com o outro para o nosso próprio processo formativo.
Nesse sentido, a experiência provocada pela expedição pedagógica, nos
desafiando a construir novos olhares sobre nós mesmos e sobre nossas práticas
pedagógicas, a partir dos encontros/confrontos com a diversidade de tantas
outras práticas pedagógicas existentes, nos mobiliza para a construção de uma
pedagogia outra, inspirada no compromisso ético, estético e político com uma
sociedade latino-americana mais justa e democrática. (ARAUJO, FARIA,
CONCEIÇÃO, 2016, p. 8)
Tanto uma, quanto outra narrativa, das poucas narrativas reflexivas que conseguimos
produzir até agora, nos anima a seguir em frente em nosso propósito de compreender processos
coletivos de mudança das práticas pedagógica a partir das relações de interação e interlocução
entre docentes, em/por coletivos docentes e contribuir com a organização de ações em redes e
coletivos docentes na América Latina.
Breves apontamentos finais
O diálogo que temos construído entre Brasil e Peru tem confirmado para nós reflexões
que afinadas com as perspectivas epistemológicos de Paulo Freire e Boaventura de Souza
Santos (conhecimento e emancipação), confirmam que o contexto educacional atual na
América Latina é fruto de políticas colonizadoras de tradição eurocêntríca e fortemente
alinhadas às necessidades do chamado mercado global.
Indo na contramão das lógicas colonialistas, os coletivos docentes com os quais
intercambiamos projetos de investigação e ação, vem assumindo uma postura investigativa a
partir do cotidiano da escola e da comunidade. Vivendo a experiência da construção de projetos
coletivos, docentes e estudantes têm favorecido a emergência de uma ecología de saberes, como
afirma Santos, produzida a partir de questões que atravessam as experiências locais, colocando
em confronto projetos globais.
Referências
ARAÚJO, M.; MORAIS, J. Formação Continuada em Redes Latino Americanas: Experiências
e Narrativas Docentes no México, Peru e Brasil. Trabalho apresentado no III Encuentro
Nacional del colectivo peruano de docentes que hacen investigación e innovación desde la
escuela y su comunidad, 01-05/08/2016, Peru.
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LINHA MESTRA, N.30, P.43-48, SET.DEZ.2016 48
______. et al. “Um diálogo Peru-Brasil, producimos calendários: uma escuela como expresión
de cultura.”. Trabalho apresentado no III Encuentro Nacional del colectivo peruano de
docentes que hacen investigación e innovación desde la escuela y su comunidad, Huancayo,
01-05/08/2016, Peru.
______; FARIA, Danusa T. B.; CONCEIÇÃO, Sandra S. P. Diário de Itinerância e uma expedição
Pedagógica no Peru: caminhos de processos formativos. Artigo submetido à Revista Internacional
Magisterio. Disponível em: <http://www.magisterio.com.co/revista/la-escuela-y-la-paz>. Acesso
em: 30 ago, 2016.
BERNA, M. P. U. Expedição pedagógica. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M. C.; VIEIRA,
L. M. F. Dicionário: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade
de Educação, 2010. CDROM.
Blog “Red de Maestras y Maestros Desenredando Nudos”. Disponível em:
<http://desenredandonudos.jimdo.com>. Acesso em: 10/05/2016.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. RJ: Paz e Terra, 1999.
MORAIS, Jacqueline et al. “Red Desenredando nudos - Cajamarca - Perú y Red REDEALE –
Río de Janeiro- Brasil: la Producción de Cartas entre Alumnos de Segundo y Quinto Grado
Durante el año 2015”. Trabalho apresentado no “III Encuentro Nacional del colectivo
peruano de docentes que hacen investigación e innovación desde la escuela y su
comunidad”, Huancayo, 01-05/08/2016, Peru.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente – contra o desperdício da
experiência. S. Paulo: Cortez, 2000.
LINHA MESTRA, N.30, P.49-54, SET.DEZ.2016 49
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
Adriana Pastorello Buim Arena1
Introdução
A adaptação, uma das formas de transposição literária, é o processo de transpor uma obra
escrita em um determinado gênero para outro, dentro de um mesmo campo semiótico, por
exemplo, a linguagem, ou de um campo a outro, como da linguagem verbal para a verbo-visual,
como as histórias em quadrinhos. Este artigo tem como objetivo analisar as semelhanças e as
diferenças percebidas por uma criança sobre a ilustração do personagem professor entre a
versão narrativa de um conto de Machado de Assis, Conto de Escola, publicado pela Cosac
Naify em 2002, com ilustrações de Nelson Cruz, e o mesmo conto adaptado para quadrinhos
por Laerte Silvino, em publicação pela editora Peirópolis na série Clássicos em HQ, em 2011.
Para aproximar o jovem leitor aos cânones da literatura, os editores promovem adaptações de
edições anteriores ou parte delas. Cada editora elege uma obra fonte (obra de partida) com o objetivo
de construir uma nova (obra de chegada). A editora Cosac Naify utilizou como fonte o livro Contos:
uma antologia, Volume II, introdução e notas de John Gledson, publicado pela Companhia das
Letras em 1998. A editora Peirópolis usou a obra Várias Histórias, de 1896, mas não anuncia o
nome da editora que lançou a obra para o público brasileiro. Neste segundo trabalho de
transposição, o texto apresentado em quadrinhos permaneceu integral, fato que motivou este estudo
investigativo. Além da pesquisa documental, também serão analisados dados de duas entrevistas
realizadas com um menino de onze anos, para quem foram apresentados os dois livros, com
intervalo de um dia entre a leitura de uma obra e outra. A primeira a ser lida apresenta o texto
narrativo e algumas ilustrações e, em seguida, a primeira entrevista foi realizada. Após a segunda
leitura, a do texto transformado em quadrinhos, foi feita a entrevista final.
Ao percorrer os escritos críticos e os teóricos que tratam do fenômeno da transposição ou
da adaptação de obras literárias, pode-se perceber que o tema não é novo, entretanto a produção
acadêmica brasileira sobre os impactos da leitura das adaptações dos clássicos para crianças
ainda é tímida.
Textos do século XIX trazem dificuldades ao público infantil do século XXI, mas o
recurso de imagens pode ajudar o leitor a dialogar com eles. Esta hipótese será confirmada,
quando os dados das entrevistas forem neste artigo analisados.
Efeitos do livro ilustrado e dos quadrinhos no jovem leitor
Figura 01: Arte COLE. Arquivo pessoal ou referência.
1 Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: [email protected].
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.49-54, SET.DEZ.2016 50
Como já apontado anteriormente, a obra de partida é sempre aquela escolhida pelo
escritor, ilustrador ou quadrinista para dela produzir outra em suporte diferente. No caso
analisado - Conto de escola - não há coincidência entre a obra de partida e a obra original, pois
a primeira publicação do referido conto foi em um jornal, o Gazeta de Notícias do Rio de
Janeiro. Posteriormente, o próprio autor Machado de Assis reuniu dezesseis de suas histórias
publicadas pelo mesmo jornal no período entre 1884 e 1891 para lançar a coletânea Várias
Histórias em 1896. Dessa forma, o conto escolhido como obra de partida está no formato
narrativo e não possui ilustrações.
Considerar-se-á « ilustração como toda imagem que acompanha um texto. Pode ser um
desenho, uma pintura, uma fotografia, um gráfico, etc. » (CAMARGO, 1995, p. 16). Há outras
definições possíveis para a palavra ilustração quando se a estuda em diversos contextos
históricos em que foi inserida, mas devido ao curto espaço deste artigo optou-se por não alongar
a discussão que mereceria um artigo exclusivo para este tema.
Em entrevista, o quadrinista Silvino ressaltou a possibilidade de utilizar o texto integral
na transposição literária devido à forma como Machado de Assis construiu a narrativa.
Pelo tamanho do conto, foi possível usar a obra de maneira integral – o que
isso significa para você enquanto quadrinista?
Quando enviei o primeiro projeto, umas cinco páginas do que seria o livro,
propus para a editora usarmos o texto integral. Não havia necessidade de
adaptar, o texto estava totalmente pronto e não ousaria pôr palavras na boca
de Machado. A editora achou ótimo, pois dessa forma as crianças estariam
lendo tudo, e não um resumo do que era o conto, e, assim, o acompanhamento
dentro da sala de aula seria mais proveitoso; os quadrinhos serviriam como
um mero condutor das palavras do autor. (BORGES, 2013, p. 108)
Os quadrinhos, de fato, serviram para conduzir as palavras do autor; não há no trabalho
nenhuma adaptação quanto ao texto. No que se refere à narratividade, apenas há cortes nos
períodos. Existem balões apenas para as poucas falas existentes no conto. Os demais quadrinhos
apresentam o quadro de narração associado à ilustração. Na narrativa ilustrada há mais fluidez
no ritmo da narratividade, porque o leitor lê uma parte maior do conto para comparar com a
ilustração que acompanha o texto. Nos quadrinhos, essa fluidez de leitura é quebrada pelo
processo de enquadramento. Lê-se pouco, e observa-se para cada porção de texto uma nova
ilustração. O jogo entre texto verbal e texto visual é mais presente nos quadrinhos e a ilustração
revela exatamente o que o diz texto. Segundo Camargo (2016, s/p),
Se entendemos que a ilustração é uma imagem que acompanha um texto,
então, é preciso reconhecer que a ilustração não tem função isoladamente, mas
só em relação a um texto. Não estou me referindo, aqui, ao livro de imagem
(sem texto), mas ao livro ilustrado. A relação entre ilustração e texto pode ser
denominada coerência intersemiótica, denominação essa que toma de
empréstimo e amplia o conceito de coerência textual. Pode-se entender a
coerência intersemiótica como a relação de coerência, quer dizer, de
convergência ou não-contradição entre os significados denotativos e
conotativos da ilustração e do texto. Como essa convergência só ocorre nos
casos ideais, pode-se falar em três graus de coerência: a convergência, o
desvio e a contradição. Avaliar, portanto, a coerência entre uma determinada
ilustração e um determinado texto significa avaliar em que medida a ilustração
converge para os significados do texto, deles se desvia ou os contradiz.
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.49-54, SET.DEZ.2016 51
No que se refere à coerência interseminótica, a relação entre texto e ilustração realizada
por Silvino e por Nelson Cruz poderiam ser classificadas como uma coerência de convergência,
já que ambos optaram por ilustrar o episódio tratado pelo texto verbal respeitando sua sequência
e conteúdo. Não se percebe desvio ou contradição.
Embora o ilustrador e o quadrinista tenham escolhido o mesmo tipo de coerência
intersemiótica para a realização dos trabalhos de transposição literária, os efeitos provocados
pelo estilo e pelo formato de livro ilustrado e de quadrinhos causaram impressões bem
diferentes para o jovem leitor, que ao ser questionado sobre as ilustrações revela suas
percepções.
O aluno de onze anos experimentou as duas leituras do mesmo texto ambas com estilos
de ilustração e composição gráficas diferentes. Confirmou em entrevista a importância da
imagem para a compreensão de um texto escrito em 1840. Também revelou seus gostos
pessoais quanto ao estilo de ilustração de cada obra.
P - Ah, tem mais diálogos?
L – Sim, tem mais informações dá pra saber mais coisas. E com a ilustração
que eu vi neste livro... lá no outro tinha uma expressão “um papagaio” mas aí
eu vi aqui que era uma pipa. E eu achava que era um papagaio mesmo.
P - Você achava que era um papagaio voando?
L – É, porque no outro era a forma de um papagaio e estava escrito papagaio
e aqui eu vi “um papagaio voando no céu”; era uma pipona vermelha.
P - Na verdade era um papagaio, porque, quando eu era criança, eu não falava
pipa. Nós falávamos só papagaio, a palavra pipa não existia. E o Machado de
Assis usava também papagaio. E eles mantiveram o texto. E a ilustração de lá
não esclareceu isso pra você.
L – É, porque lá tinha a forma de um papagaio e eu assemelhei com um
papagaio.
P - Ah, tinha forma de papagaio e aqui não.
L - E aqui não. Aqui é uma pipa, bem no comecinho.
Ilustração Nelson Cruz, p. 9.
Ilustração Silvino, p. 15.
Algumas inferências na primeira leitura realizada – a do livro ilustrado – só foram
aprofundadas ou refeitas com a segunda leitura, a dos quadrinhos. Hoje o termo papagaio está
em desuso em algumas regiões do país para designar o referido brinquedo. A escolha estética
de Nelson Cruz de ilustrar a pipa em formato de uma ave, o papagaio, indica possivelmente a
palavra com a qual nomeava esse brinquedo popular durante sua infância. Torna-se evidente
que o ilustrador não estava preocupado com a função descritiva que uma imagem poderia ter,
mas com a função estética da linguagem visual, porque importa muito mais a sobreposição de
pinceladas, a luz, o brilho, o enquadramento da pipa no cenário, do que propriamente introduzir
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.49-54, SET.DEZ.2016 52
uma glosa para orientar o pequeno leitor. Embora apresentasse marcas efetivas de que se tratava
de uma pipa, pois há uma linha na mão de uma criança sentada em um telhado que manipula e
segura o brinquedo, a linguagem visual não foi suficiente para que o jovem leitor interpretasse
esses indícios. Além de papagaio, muitas outras palavras em desuso no século XXI foram
ressaltadas no momento da entrevista.
A criança consegue perceber as diferenças entre um trabalho e outro ao apontar a
apresentação da linguagem visual dos quadrinhos subordinada à linearidade das ações
presentes na narrativa. Além disso, os personagens são sempre retratados com perfeita
semelhança, traço inexistente nas ilustrações de Nelson Cruz, sempre variadas. Vale
ressaltar que os objetivos são diferentes quanto à construção do texto e da imagem,
considerados os suportes em que são apresentados. Os quadrinhos devem representar o
andamento de todas as ações, entretanto, esta característica não simplifica o entendimento
do texto gráfico, mas ao contrário, sua natureza intertextual estimula a leitura de outras
linguagens. O fato de os quadrinhos “mostrar tudo o que tá acontecendo em todo momento”
(fala da criança) não fornece ao leitor as condições para um diálogo mais profundo com o
texto, porque retira do cenário o esforço pessoal da criança em estabelecer os nexos entre
as informações que têm diante dos olhos e as que foram já por ela apropriadas. Este tipo de
livro não limita a leitura dos cânones, como foi muito discutido no passado, quando se
confundia que a integração entre imagem e texto traria superficialidade e desestimularia a
leitura de livros considerados sérios, ou seja, aqueles que apresentavam apenas o texto.
P - O Silvino mostra o professor de outra maneira. E o que você achou em
relação à imagem do professor? Qual a diferença? (Silêncio)
L - No outro livro, o professor tem cara de mais malvado, uma pessoa mais
brava. Aqui ele já é mais normal, tem cara de ser mais calmo. Porque no outro,
ele tem um olho arregalado, uma boca toda cheia de dentes afiados, nesse aqui
é mais realidade. Na hora que ele vai brigar com o Raimundo e com o Pilar,
ele só grita, mas ele não faz aquele dedo, os olhos, olha aqui ó (mostra).
Ilustração Nelson Cruz, p. 21.
Ilustração Silvino, p. 31.
O jovem leitor gosta de sentir emoções fortes, de ser tocado por apreciações estéticas de
grande poder gerador de sentimentos e emoções diversas. A ilustração que o aproxima mais de
seu cotidiano não o faz sentir medo e pensar em seres fantasiosos como monstros, bruxas e
vampiros. Talvez seja esse o motivo que leva nosso pequeno leitor a eleger a ilustração de
Nelson Cruz como a que gostaria de ter em sua biblioteca particular.
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
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P - Você achou que o Silvino é melhor que o Nelson Cruz, ou são traços
diferentes?
L - São traços diferentes. É porque esse aqui tem que manter os mesmos
traços, são vários desenhos em uma página, então tem que fazer tudo
igualzinho, tudo mais realista. O outro, ele pode ser mais... ele pode fazer os
personagens do jeito dele, porque aqui ele pode fazer do jeito que ele quiser.
E aqui se ele começou vai ter que seguir o outro.
P - Se fosse pra comprar o livro e tua mãe dissesse “tem esse e esse aqui”, e
você pudesse escolher só um na livraria, qual você escolheria?
L - Se fosse pra diversão, eu compraria esse (mostra os quadrinhos), mas se
fosse pra ser mais complexo e a imagem ter tudo a ver com o texto eu
escolheria aquele.
A arte não toca todos os indivíduos da mesma maneira. Os aspectos cultural, social e
histórico que os constituem guiam seu percurso na experimentação de um livro ilustrado ou de
um em quadrinhos.
Conclusão
Foi possível verificar nas palavras ditas de uma criança, as inquietações que ela vivenciou
ao ler o texto e interpretar as imagens. As sensações vividas pela literatura possibilitam
experiências sensíveis, as quais jamais poderiam ser vivenciadas sem que com ela o leitor
estabelecesse diálogos múltiplos.
Entre as questões fundamentais, foi possível constatar que a criança se identificou com o
texto Conto de escola, pois corresponde aos temas atuais de sua vida. Ela atribuiu sentidos às
palavras desconhecidas por meio do contexto, e, dessa maneira, usou a linguagem visual para
confirmar as hipóteses levantadas durante a leitura do texto. O que não estava dito
explicitamente em palavras aparece na ilustração e auxilia a construção dos conceitos de termos
desconhecidos, como foi o caso das palavras papagaio/pipa.
A escolha do design gráfico - relação texto e imagem - modifica o texto, porque, embora
sejam as palavras as mesmas, não é o mesmo o espaço gráfico que elas ocupam, criando, por
meio dessa composição, uma nova obra.
Referências
ASSIS, M. Várias Histórias. Disponível em:
<http://www.machadodeassis.net/hiperTx_romances/obras/variashistorias.htm>. Acesso em:
22 ago. 2016.
______. Conto de escola. Adaptado por Silvino. São Paulo: Peirópolis, 2010. (Coleção
Clássicos em HQ).
______. Conto de escola. Ilustrações Nelson Cruz. São Paulo: Cosac Naify, 2002. (Coleção
Dedinho de prosa).
BORGES, R. F. (Org.). Clássicos em HQ. São Paulo: Peirópolis, 2013.
A NARRATIVA CLÁSSICA E A TRANSPOSIÇÃO LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.49-54, SET.DEZ.2016 54
CAMARGO, L. A relação entre imagem e texto na ilustração de poesia infantil. Disponível
em: <http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/poesiainfantilport.htm>. Acesso em: 19 ago.
2016.
______. A ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1995.
LINHA MESTRA, N.30, P.55-59, SET.DEZ.2016 55
O (IM)POSSÍVEL CHAMADO DO MONSTRO: ENTRE O HIPER-
REALISMO E O FANTÁSTICO/INSÓLITO
Janaina Rosa Arruda1
Nada melhor do que começar uma narrativa infligindo a dúvida ou o medo no leitor, ainda
mais se esse leitor for um jovem leitor. Em O chamado do monstro a narrativa já começa com
o aparecimento do Monstro na vida do protagonista, aparecimento promovido pela temática do
fantástico ao instaurar a dúvida, o meio fio, pelo qual o leitor caminha na tentativa de entender
os fatos que se desenrolam. Na visão de Roas, o objetivo do fantástico é precisamente
desestabilizar os limites que nos dão segurança, problematizar as convicções coletivas,
questionar, afinal, a validade dos sistemas de percepção da realidade comumente admitidos
(ROAS, 2014, p. 134).
Ainda que o olhar de análise da obra seja o de pesquisador, é preciso perceber que Patrick
Ness questiona a realidade com o encontro de um garoto e um monstro logo nas primeiras
páginas. Afinal, a forma como esse encontro acontece é permeada pela insegurança e pelo medo
do personagem. A construção das cenas é realizada de modo gradativo, para que o leitor seja
envolvido pouco a pouco, para que seja entrelaçado pelos braços do insólito e que permaneça
atento às cenas que se apresentarão.
Podemos até mesmo antecipar a expectativa do fantástico/insólito antes mesmo da leitura
do texto propriamente dito, pois desde a apresentação da capa e das ilustrações o leitor já é
convidado a adentrar em uma narrativa, aparentemente, recheada de suspense:
Conor piscou, sonolento, e franziu os olhos. Algo não se encaixava. Sentou na
cama, um pouco mais acordado. O pesadelo se apagava, mas havia algo de
estranho que ele não conseguia tocar, algo diferente, algo... Aguçou os
ouvidos, tentando captar alguma coisa além do silêncio [...] Alguém o
chamava. Conor. (NESS, 2011, p. 12).
O efeito criado pelo fantástico/insólito pode ser notado nessas linhas, pois a dúvida é
marca desde o começo. Conor está sonolento, não se pode afirmar ao certo se dormindo ou
acordado, encontra-se naquele momento em que se acorda de um pesadelo, mas que ainda o
incomoda. Seus sentidos estão alterados e ele sente que tem alguma coisa errada, mas não sabe
dizer o que é. O silêncio ao seu redor deixa a cena ainda mais suspensa, até que a espera é
quebrada por uma voz que chama por seu nome. A escolha dessa construção de cena por Patrick
Ness pode remeter a situações vivenciadas pelos próprios leitores.
Ainda que esses eventos compactuem com a possibilidade do “sobrenatural”, Roas afirma que
A vacilação não pode ser aceita como único traço definitivo do gênero
fantástico, pois não comporta todas as narrativas que costumam ser
classificadas assim. Em contraste, minha definição inclui tanto as narrativas
em que a evidência do fantástico não está sujeita a discussão, quanto aquelas
em que a ambiguidade é insolúvel, já que todas postulam uma mesma ideia: a
irrupção do sobrenatural no mundo real e, sobretudo, a impossibilidade de
explicá-lo de forma razoável. (ROAS, 2014, p. 43).
1 Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected].
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Assim, pode haver explicações para a voz que Conor ouviu, talvez perturbações devido
ao pesadelo, mas também pode não haver uma explicação lógica, pode ser um rompante do
sobrenatural. O próprio personagem busca uma explicação para o evento e a narrativa mostra
como a dúvida irá permanecer como companhia ainda em algumas cenas. No trecho:
Tinha sido um sonho. O que mais poderia ser? [...] Ele riu do próprio
pensamento, da bobagem que era aquilo tudo, e saiu da cama. Ouviu o som de
algo esmigalhando debaixo de seus pés. O chão do quarto estava coberto de
folhas de teixo pequenas e pontiagudas (NESS, 2011, p. 21).
Patrick Ness reproduz no personagem o confronto entre a realidade e o insólito.
Inicialmente, Conor busca uma explicação no sonho, acreditando que seu encontro com o
monstro não tenha passado de um pesadelo. Ele ri de sua credulidade em monstros, mas um
novo elemento perturba suas convicções, pois ao toque de seus pés no chão, percebe seu quarto
repleto de folhas do teixo, um indício de que a realidade e o sobrenatural podem, de fato, existir
simultaneamente. Mas que lugar é esse em que o possível e o impossível ganham espaço? Para
Petit, “É o texto que “lê” o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito
sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear” (PETIT, 2008, p. 38).
A história de Conor exige do personagem crescimento diante dos acontecimentos que se
desenrolam, mas ao mesmo tempo ele não passa de um menino. Ainda que o sobrenatural
perturbe, a realidade pode, muitas vezes, ser ainda mais perturbadora.
O (im)possível no chamado
A obra de Ness apresenta Conor como um menino que (sobre)vive ante a doença terminal
à qual a mãe é acometida. O autor não nomeia essa doença, mas a descrição da mãe e de seu
tratamento permitem perceber de que se trata de um câncer. Morando somente com a mãe,
Conor se sente sozinho, mesmo que a avó materna também seja figura importante na narrativa,
o garoto não tem por ela afinidade, o que torna sua desventura ainda mais perturbadora.
O que temos na obra é o olhar de um menino diante de um problema que pode acometer
muitas famílias. A realidade da doença de sua mãe contrasta com sua experiência com o
monstro. Em vários momentos é como se existisse um mundo paralelo, como se a realidade
fosse tão dura que a fantasia se tornasse o melhor refúgio para a situação. Para C. S. Lewis o
realismo é “a arte de tornar algo mais próximo de nós, tornando-o palpável e vívido, por meio
de detalhes precisamente observados ou nitidamente imaginados” (LEWIS, 2009, p. 53).
O texto não apresenta esperanças quanto ao caso da mãe de Conor, sua saúde está sempre
mais debilitada ao longo da narrativa e esse definhamento torna cada encontro entre mãe e filho
mais tenso:
Sua mãe sacudiu a cabeça [...] “Não tem mais tratamentos.” “Sinto muito,
filho”, falou, as lágrimas brotando dos olhos, apesar de ela continuar sorrindo.
“Nunca senti tanta pena por alguma coisa na vida.” Conor olhou para o chão
novamente. Sentia como se não conseguisse respirar, como se o pesadelo
estivesse sugando seu ar. “Você disse que faria efeito”, falou, sua voz
falhando. (NESS, 2011, p. 176).
A aceitação da condição da mãe era o que enraivecia Conor. Ao longo da narrativa pode-
se perceber que a manifestação do monstro está associada aos sentimentos despertados no
garoto pelas situações vivenciadas. A cada novo rompante de cólera, o fogo que ardia dentro
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LINHA MESTRA, N.30, P.55-59, SET.DEZ.2016 57
dele ressurgia e o monstro se aproximava. Sendo o monstro criação ou não de Conor, a realidade
não era e essa era tal como se apresentava. Para Roas, “seria possível dizer que a literatura é
uma ´representação da realidade´, quando a própria realidade parece ser inteiramente ofuscada
pela ficção? Em que sentido a construção da realidade se diferencia da mera possibilidade?”
(ROAS, 2014, p. 88).
A dor de Conor é a representação da possibilidade de se vivenciar as mesmas situações.
A identificação com a dor faz parte de uma essência muito humana: a compaixão. Por meio da
narrativa é possível experimentar a situação de impotência diante da morte iminente, de
frustração ante as atitudes que são esperadas e aquelas que de fato acontecem.
Conor precisa pensar no futuro, em como ficará sem a mãe, em aceitar recomeçar a vida
ao lado da avó materna, em entender o porquê de seu pai não aceitar sua presença. São esses
conflitos duros para um menino de 11 anos e que, inevitavelmente, ocorrem ao longo na
história. Conor precisa para solucionar seus conflitos. Baudrillard afirma que
para o processo de reprodutibilidade, que domina a sociedade contemporânea,
o real não é apenas o que pode ser reproduzido, mas sobretudo o que já está
reproduzido. O hiper-real só está além da representação porque está
integralmente na simulação, em sua repetição en abyme. Nesse sentido, o
Hiper-realismo faz parte de uma realidade codificada, que perpetua e para a
qual não traz qualquer mudança. (BAUDRILLARD, 1976, p. 112).
Nesse sentido, a realidade é hiper-realista, pois não comporta qualquer simulação, a
representação do real é a representação do hiper-realismo uma vez que esse seja sua
intensificação, não existe nada mais impactante do que o próprio real. A base de todos os
conflitos vividos por Conor parte da doença que vitima sua mãe e contra a qual ninguém
consegue lutar, nem ele, nem a avó, nem os médicos.
A luta de Conor, no caso, não é contra a doença da mãe ou contra o monstro; sua luta é
contra ele mesmo, contra os sentimentos que insistem em causar pesadelos e que dificultam sua
relação com as pessoas.
A evocação do (im)possível
A obra de Patrick Ness consegue traçar uma aproximação entre situações muito distintas.
Se por um lado existem efeitos capazes de contextualizar o efeito fantástico/insólito, por outro
lado a realidade da situação de Conor também comove e cria laços com o leitor. No entanto,
vale destacar que a literatura voltada ao público juvenil nem sempre pôde fazer uso dessa
construção, essa é uma forma de se escrever para os jovens que até pouco tempo era
desconsiderada.
Os textos eram inicialmente voltados ao caráter moralizante, em transmitir determinado
ensinamento sem que houvesse qualquer intenção de promover o efeito estético da obra. Os
contos de fada são um exemplo claro desse tipo de literatura destinada às crianças. A erupção
da realidade nas histórias infantis ocorreu devido a acontecimentos que mudaram a marcha da
história, como a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Os contos de fadas foram vistos com
desdém a partir de então por apresentarem um suposto descompromisso com a realidade e por
promoverem uma evasão dos valores humanos (COLOMER, 2003, p. 61).
O que se destaca na literatura infantojuvenil é a mudança pela qual passam os textos
destinados aos jovens. A ideia de fantasia e realidade parecia oposta, como se a associação
dessas temáticas não pudesse convergir. A atualidade, principalmente, mostra-nos que essa
associação é possível e que tal construção pode ser apreciada pelo jovem leitor. Segundo Roas,
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As narrações fantásticas buscam implicar o leitor no texto por duas vias
essenciais: a) A cooperação interpretativa do leitor para que ele assuma que a
realidade intratextual é semelhante à sua; b) correspondência entre sua ideia de
realidade e a ideia de realidade criada intratextualmente (ROAS, 2014, p. 91).
Dessa forma, fica evidente como o texto de Ness consegue criar a aproximação entre
realidade e fantasia vista tão paradoxalmente no passado. Se existe um mundo real vivido por
Conor que se apresenta sob a forma da doença terminal de sua mãe, por outro lado também
existe um sobrenatural que se apresenta como um segundo plano sob o convite de um monstro.
De acordo com Roas, Freud afirma que a literatura fantástica traz à consciência
realidades, situações e desejos que não podem ser manifestos de modo direto porque
“representam algo proibido que a mente reprimiu ou porque não se encaixam nos esquemas
mentais em uso” (FREUD apud ROAS, 2014, p. 92).
Talvez o fantástico/insólito na narrativa de Ness seja essa erupção proveniente da
consciência de Conor, afinal, a leitura que pode ser feita trata do câncer da mãe de Conor como
a personificação do monstro. Para Kothe,
A fantasia pode ser um processo da compensação de traumas, uma tentativa,
ainda que falsa, de elaborá-los e de encontrar uma saída, como o sintoma é a
manifestação de uma doença: não adianta, porém, combater a febre se não se
descobre e enfrenta a sua causa (KOTHE, 1994, p. 162).
A imagem do garoto é a de um menino triste, e não poderia ser diferente. Seu afastamento
dos amigos e a aceitação das agressões cometidas contra ele por outros jovens colocam-no na
posição de vítima. Sua raiva era contra a doença, mas ao mesmo tempo contra ele mesmo diante
de sua impotência, logo, o sofrimento derivado das agressões que sofria era visto como uma
forma de punição. Conor se sentia merecedor da dor que sentia:
Conor gritava e gritava e gritava, cheio de dor e mágoa... E ele disse. E falou
a verdade. “Não aguento mais!, berrou, o fogo ardendo ao seu redor. “Não
aguento saber que ela vai embora! Só quero que acabe! Só quero o fim de tudo
isso!”E então, o fogo engoliu o mundo, arrasando tudo, levando o garoto junto.
(NESS, 2011, p. 198).
A verbalização de seus sentimentos ao final do livro rompeu com toda a angústia que
carregava, pois ele obrigou-se a enxergar o que realmente sentia. O fogo que o queimava por
dentro chega ao seu auge no final, por mais que Conor tentasse controlá-lo, ele perdeu o controle
e assumiu sua condição, assumiu seu desejo de querer que tudo acabasse. Essa era uma espécie
de confissão que ele não desejava fazer.
A junção da realidade e do insólito é fundamental para o desenrolar da história, pois quem
faz Conor assumir sua dor e seus sentimentos é o Monstro ou a manifestação desse. Ora a
realidade, ora o fantástico/insólito, o que se encontra no texto de Patrick Ness é uma narrativa
comovente capaz de envolver jovens ou adultos e promover a literatura.
Considerações
O enredo de O Chamado do Monstro está pautado em duas situações distintas: a doença
terminal da mãe de Conor e o encontro desse com o Monstro. Ainda que sejam situações
contrastantes, as duas situações, simultaneamente, constroem o enredo, pois a realidade do
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câncer dialoga com o “monstro” compondo, assim, eixos que direcionam os fatos narrados.
Embora o monstro seja parte apenas da criação do menino, o câncer é uma realidade que foge
ao seu controle.
A leitura permite sentir o que Conor sentiu, amedrontar-se diante do desconhecido, chorar
a sua dor, encoleirar-se diante de sua impotência; a realidade é quase palpável, mesmo que
esteja enlaçada pelo fantástico/insólito nas suas entranhas. Como afirma Petit,
Ler é conhecer a experiência de homens e mulheres, daqui ou de outros lugares,
de nossa época ou de épocas passadas, transcrita em palavras que podem nos
ensinar muito sobre nós mesmos, sobre certas regiões de nós mesmos que ainda
não havíamos explorado, ou que não havíamos conseguido expressar. Ao longo
das páginas, experimentamos em nós, a um só tempo, a verdade mais subjetiva,
mais íntima, e a humanidade compartilhada (PETIT, 2009, p. 94).
Conhecer o medo e a dor de Conor é também conhecer um pouco do homem, seus anseios
e seus vícios.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. L’é change symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976, p. 112.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.
LEWIS, C. S. Um experimento na crítica literária. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
KOTHE, Flávio. A narrativa trivial. Brasília: Universidade de Brasília, 1994.
NESS, Patrick. O chamado do monstro. São Paulo: Ática, 2011.
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Ed. 34, 2009.
ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
LINHA MESTRA, N.30, P.60-64, SET.DEZ.2016 60
LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA, DE LEONARDO ARROYO (1968), E
A PRODUÇÃO BRASILEIRA SOBRE LITERATURA INFANTIL
Viviane Bessão de Assis1
Introdução
Com o objetivo de contribuir para a compreensão da história da literatura infantil no
Brasil e compreender o lugar ocupado pelo escritor, jornalista e historiador Leonardo
Arroyo (1918-1985)2 nessa história, focalizam-se, neste texto, aspectos da configuração
textual do livro Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para a sua história e
suas fontes, de Arroyo (1968), no conjunto da produção de estudos sobre literatura infantil
no Brasil, publicados até a década de 1960.
Mediante abordagem histórica centrada em pesquisa documental e bibliográfica,
analisou-se o conjunto de referências de textos sobre literatura infantil reunidas nos documentos
nos documentos: Ensino de Língua e Literatura no Brasil: repertório documental republicano
(MORTATTI, 2003); e Bibliografia Brasileira sobre História do Ensino de Língua e Literatura
no Brasil: 2003-2011 (BBHELLB) (MORTATTI, 2011). Esses documentos resultaram de
Projetos Integrados de Pesquisa, coordenados pela Profª. Drª. Maria do Rosário Longo Mortatti,
entre os anos de 1999 e 2003; e 2009 a 2011, no âmbito do GPHELLB3.
No primeiro documento constam 544 referências de diferentes textos sobre literatura
infantil, produzidos por brasileiros entre 1874 e 2002. Desse total, constam: 113 livros; 60
capítulos de livros; 209 artigos em periódicos; seis números especiais de periódicos;
103dissertações e teses; três publicações institucionais; 38 obras de referência; dois verbetes
em dicionário;10 prefácios e apresentações.
No segundo documento, encontram-se reunidas 477 referências de texto sobre literatura
infantil, produzidos por brasileiros entre 2003 e 2011. Desse total, constam os seguintes tipos
de textos: 57 livros; 99 capítulos de livros; 117 artigos em periódicos; 24 dissertações de
mestrado; 180 teses de doutorado.
Por meio da análise do conjunto das referências reunidas nesses documentos, constatou-
se que, até o final da década de 1960, havia poucos estudos que abordassem a “origem” da
literatura infantil no Brasil. Os estudos existentes enfocavam diferentes aspectos: a sua
utilização na escola primária; a relação entre a leitura e a criação de hábitos saudáveis de
comportamento; e sua utilização para o desenvolvimento da leitura dos escolares.
Ainda, foi possível constatar, que há cinco estudos de abordagem histórica sobre literatura
infantil, dentre os quais constam três livros e dois artigos publicados em periódicos. Desse
conjunto, destaca-se o livro Literatura infantil brasileira, de Arroyo (1968), considerado
“pioneiro” na abordagem histórica da literatura infantil (MORTATTI, 2011b).
1 E-mail: [email protected]. 2 Leonardo Arroyo (1918-185) nasceu na cidade de São José do Rio Preto (SP). Com 18 anos de idade, começou
sua carreira de jornalista na mesma cidade. Foi editor, diretor e redator da Página Literária do jornal Folha de S.
Paulo (SP). Além de sua atuação como jornalista, é autor de livros de literatura, livros de literatura infantil e livros
de abordagem histórica. 3 O GPHELLB decorre do Programa de Pesquisa “História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil”
(PPHELLB) e, desse grupo e desse programa de pesquisa, em funcionamento desde 1994, resultaram o Projeto
Integrado de Pesquisa “História do ensino de língua e literatura no Brasil” (PIPHELLB), em desenvolvimento, em
etapas trienais, desde 1995. O grupo tem como líder a Profª. Drª. Maria do Rosário Longo Mortatti e, como vice-
líder, Profa. Dra. Rosa Fátima de Souza.
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Os estudos de abordagem histórica sobre literatura infantil publicados até a década de 1960
Os quatros estudos anteriores a publicação do livro de Arroyo, que apresentam uma
abordagem histórica sobre o tema, publicados até o ano de 1968, são: o artigo “Como aperfeiçoar
a Literatura Infantil”, do professor e psicólogo Manuel Bergströn Lourenço Filho, escrito em 1943,
e publicado na Revista Brasileira; o artigo “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”, do
professor e sociólogo Fernando de Azevedo, publicado em 1952, na revista Sociologia; e os livros
Problemas da literatura infantil, de Cecília Meireles (1951); Literatura infantil, de Nazira Salem
(1959); e Literatura infantil brasileira, de Leonardo Arroyo (1968).
O artigo “Como aperfeiçoar a Literatura Infantil”, de Lourenço Filho (1943) foi
organizado em oito seções, nas quais o autor propõe categorias de análise sobre a criação,
produção, circulação e crítica da literatura infantil no Brasil. Lourenço Filho (1943) apresenta
a produção brasileira sobre o tema ordenada em três fases: a) resumo histórico contendo autores
e obras adaptadas para o público infantil; b) a segunda fase marcada por uma “leitura escolar”,
“[...] para o uso direto, por parte de crianças, ou para utilização por elas, sob a direção do
professor” (LOURENÇO FILHO, 1943, p. 155); c) e a terceira fase inaugurada por Monteiro
Lobato, com o livro Narizinho Arrebitado (1921). O autor conclui apontando critérios para o
aperfeiçoamento do gênero, tais como, medidas de “esclarecimento social”, visualização,
difusão e inserção de um público cada vez maior na literatura infantil, conceituação desse
gênero literário e estímulo aos autores nacionais.
No artigo “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”, Fernando de Azevedo
(1952) analisa a leitura e o crescente mercado de livros de literatura infantil como um novo
fenômeno cultural. Para ele, as crianças e os adolescentes passaram a ocupar um novo lugar nas
sociedades modernas, constituindo-se como uma classe antes não percebida. Azevedo (1952)
afirma que o impresso, o rádio, a televisão, o circo, o teatro, entre outros, atuavam
influenciando, principalmente, a este novo público. Portanto, para ele, tornava-se necessário
estudar tais instituições responsáveis pela produção de bens culturais voltados à infância, tais
como editoras, livrarias, tradutores, governos, financiadores e a própria escola.
O livro Problemas da literatura infantil, de Cecília Meireles (1951), resulta de três
conferências ministradas para professores em um curso de férias, no ano de 1949, a pedido da
Secretaria da Educação de Belo Horizonte (MG). Meireles (1951) trata de três assuntos nesse
livro: a literatura oral (folclore); sua compreensão sobre a literatura infantil; e os aspectos
morais presentes nos livros para crianças. Para a autora, a escolha dos livros deveria ser feita
pelas crianças, pois os adultos costumavam subestimá-las quanto à crítica e o gosto pela arte.
No entanto, Meireles (1951) afirma que definir ou conceituar a literatura infantil não é tarefa
fácil porque exige a confluência de três elementos: a “moral”, a “instrução” e a “recreação”.
Portanto, a literatura infantil, para a autora, é considerada com base em uma perspectiva
formativa da leitura, acima de tudo, como arte literária.
O livro Literatura infantil, de Nazira Salem (1959) centra-se na história da literatura
infantil mundial, principalmente, em relação aos livros adaptados para a língua portuguesa que,
segundo a autora, oportunizaram o “aparecimento da literatura infantil” no Brasil. Sobre esse
aspecto, destaca a atuação do professor Carlos Jansen na tradução de clássicos como: As mil e
uma noites (1882); Robinson Crusoé (1885);As viagens de Gulliver (1885); e Barão de
Münchausen (1891). A autora trata das teorias educacionais que influenciaram a produção de
literatura infantil ao longo do tempo, quanto ao aspecto recreativo e/ou lúdico da produção
desse gênero. Por fim, destaca os “precursores” brasileiros de nossa literatura infantil, tais
como: Alberto Figueiredo Pimentel; Olavo Bilac; Coelho Neto; Arnaldo de Oliveira Barreto;
Thales Castanho de Andrade; Paulo Menotti Del Picchia; Monteiro Lobato; Viriato Correia;
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Humberto de Campos; Érico Veríssimo; entre outros. De modo geral, o livro organiza-se com
base nas biografias desses autores, seguidas de sua bibliografia.
Como se pode observar, embora apresentem aspectos diferentes, esses textos assemelham-se
quanto a busca por uma conceituação da literatura infantil, a necessidade da valorização desse
gênero como arte literária e a preocupação com o aspecto formativo da leitura destinada à criança.
O livro Literatura infantil brasileira, de Arroyo (1968)
O livro Literatura infantil brasileira, de Leonardo Arroyo (1968), ao contrário dos demais
estudos apresentados, anteriormente, baseia-se em bibliografia estrangeira publicada na França,
Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, Alemanha e na Itália. O objetivo de Arroyo (1968) foi o
de apresentar as “[...] diversas fases da nossa literatura infantil e não da análise crítica [...]”
dessas fases (ARROYO, 1968, p. 18). Por meio da análise de documentos antigos, reunidos ao
longo de vários anos, como catálogos de editoras, livros de memorialistas, estudos sociológicos
e depoimentos de leitores, Arroyo organizou as “fases” de desenvolvimento da literatura infantil
da seguinte forma: a tradição oral ou folclore; a literatura escolar; a imprensa escolar; o teatro;
até o modelo de literatura infantil criado por José Bento Monteiro Lobato.
Publicado na coleção “Biblioteca de Educação” da editora Melhoramentos (SP), o livro
de Arroyo foi organizado em seis capítulos, além do prefácio do autor e uma apresentação
escrita pelo professor e psicólogo Lourenço Filho. Constam, ainda, uma relação de bibliografia
de 176 autores brasileiros e estrangeiros, índice onomástico com 12 folhas, e lista dos catálogos
e acervos consultados.
A coleção “Biblioteca de Educação” na qual o livro de Arroyo (1968) foi publicado, além
de fornecer “modelos” de educação e de saberes necessários à profissão docente,
(CARVALHO; TOLEDO, 2004) apresenta um esforço de “[...] objetividade e cientificidade
que procura caracterizar a educação [...] como atividade social especializada [...].”
(MONARCHA, 1997, p. 45).
Assim, coerentemente com o propósito científico de oferecer leitura teórica e
especializada para professores, o livro de Arroyo (1968) recebe o prefácio de Lourenço Filho e
é elogiosamente apresentado como um “estudo básico” sobre o tema. Com “[...] documentação
muito abundante, haurida em livros, artigos de jornal e mesmo correspondência particular [...]”
que lhe conferem “[...] na bibliografia da especialidade uma posição de real preeminência [...]”
(LOURENÇO FILHO, 1968, p. 12).
No primeiro capítulo, Arroyo (1968) apresenta o(s) conceito(s) de literatura infantil que
circulavam naquele momento histórico e os problemas com a definição desse gênero.
No segundo capítulo, explica a confluência das diferentes culturas na produção da
literatura infantil brasileira – as culturas indígenas, europeia e africana.
No terceiro capítulo, trata do início da formação de um “sistema” de ensino durante o
Brasil Colonial e o período do Império, o advento do livro e a vinda de professores estrangeiros
para ensinarem os filhos de famílias abastadas do Rio de Janeiro, Recife e São Paulo.
No quarto capítulo, trata da tradução dos contos clássicos da literatura infantil universal e de
como esses contos contribuíram para a formação de um público leitor no Brasil. Além disso, trata
das primeiras leituras utilizadas nas escolas brasileiras, no período entre o Império e a República.
No quinto capítulo, aborda a importância da imprensa escolar e infantil durante o século
XIX, como um “[...] instrumento lúdico e instrutivo por excelência[...]” (ARROYO, 1968, p.
131), num período em que o livro era objeto raro e de difícil acesso.
No sexto capítulo, trata da reação nacional de escritores, professores e intelectuais
brasileiros contra as traduções de clássicos da literatura infantil estrangeira e dos primeiros
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livros nacionais escritos para o público infantil. Destaca, por fim, o papel das coleções infantis,
de professores e editoras nesse setor.
Conforme mencionei, até a publicação do livro de Arroyo (1968), havia poucos estudos
de abordavam históricos sobre a origem e a produção sobre literatura infantil no Brasil. Arroyo
(1968), jornalista e estudioso da cultura brasileira, inovou por ter estabelecido a relação entre
literatura infantil, pedagogia e o espaço escolar como o responsável pela criação do livro
infantil. Sintetizando, portanto, a partir de marcos históricos, obras representativas que estavam
sendo produzidas por autores brasileiros e destinadas às crianças e jovens.
Considerações finais
Os estudos aqui apresentados e, sobretudo, o desenvolvido por Arroyo (1968), contribuiu
significativamente para formular os princípios de uma abordagem da literatura infantil como
“objeto de investigação”, criando bases para um movimento progressivo de estudos nessa área
no país. (MORTATTI, 2011b).
Assim, com base nas primeiras edições impressas direcionadas às crianças, Arroyo
(1968), estabeleceu uma historiografia da literatura infantil brasileira e formulou uma narrativa
sobre a “origem” desse gênero literário no Brasil, tendo contribuído significativamente para
avanços de aspectos pouco explorados em relação à produção sobre literatura infantil existente
até o final da década de 1960.
Portanto, Literatura infantil brasileira, de Leonardo Arroyo (1968), assenta esse tema em
outro patamar ligado ao rigor científico da área educacional, tornando-se, assim, basilar para a
compreensão histórica desse campo de conhecimento.
Referências
ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira: ensaio de preliminares para sua história
e suas fontes. São Paulo: Melhoramentos, 1968.
AZEVEDO. Fernando de. “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”. In: Sociologia,
(Escola de Sociologia e Política). v. XIV, n. 1, março, 1952.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de.; TOLEDO, Maria Rita de Almeida. A Coleção como
estratégia editorial de difusão de modelos pedagógicos: o caso da Biblioteca de Educação
organizada por Lourenço Filho. In: III CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO: a educação escolar em perspectiva histórica. Curitiba: Pontifícia Universidade
Católica do Paraná: Sociedade Brasileira de História da Educação, 2004.
LOURENÇO FILHO, Manuel Bergstrom. Como aperfeiçoar a literatura infantil. Revista
Brasileira. Rio de Janeiro, v. 3, n. 7, p. 146-169, 1943.
MEIRELES, Cecília. Problemas de literatura infantil. 2. ed. São Paulo: Summus, 1979.
MONARCHA, Carlos (Org.). Lourenço Filho e a Biblioteca de Educação. In: MONARCHA,
Carlos (Org.). Lourenço Filho: outros aspectos, mesma obra. Campinas, SP: Mercado de
Letras; Marília: UNESP, 1997, p. 27-57.
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MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Ensino de língua e literatura no Brasil: repertório
documental republicano. Marília: FFC/UNESP, 2003. (não publicado).
MORTATTI, Maria do Rosário. Bibliografia Brasileira sobre História do Ensino de Língua
e Literatura no Brasil – 2003-2011 (BBHELLB). Marília: [s. n.], 2011. Relatório Técnico de
Pesquisa, 31p. (não publicado).
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Prefácio à 3ª edição do livro ‘Literatura infantil
brasileira’, de Leonardo Arroyo. São Paulo: UNESP, 2011b.
SALEM, Nazira. Literatura infantil. São Paulo: Mestre Jou, 1959.
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O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS
HISTÓRIAS
Simone Machado de Athayde1
“Monte Alegre é feita de ouro em pó.
Eu andei o mundo inteiro,
nunca achei lugar melhor.”
(Jongo de Monte Alegre)
A Comunidade Quilombola de Monte Alegre está localizada à 38 km da sede do
Município de Cachoeiro de Itapemirim – ES, num vale cortado de noroeste a sul pelo Ribeirão
Floresta, afluente do Rio Itapemirim, está cercada por vários morros. É uma comunidade da
zona rural do distrito de Pacotuba que foi formada no final do século XIX, por volta de 1888,
ano da Abolição da Escravatura no país.
As pessoas nascidas no final do século XIX e início do século XX diziam que muitos
moradores se deslocavam de lugares vizinhos e até de longe para dançar o caxambu2 e os
chamados “bailes de sala” realizados em Monte Alegre no final do dia e também aos finais de
semana, em horário noturno, mesmo após um exaustivo dia de trabalho. Essas referências
justificaram a origem do nome da comunidade.
De acordo com o Relatório Técnico de Identificação da Comunidade Remanescente de
Quilombos de Monte Alegre (2006, p. 135 – 136), os relatos orais de membros da comunidade
dão conta de que é lugar comum a explicação do nome Monte Alegre vir dos festejos que
sempre aconteceram ali, atraindo pessoas de vários locais dos arredores: bailes, caxambu, festa
de finados no antigo cemitério, Folia de Reis etc. Os responsáveis pela grande alegria das festas
eram os negros com suas danças, músicas e outras manifestações comemorativas. No
documento enviado à Fundação Cultural Palmares (FCP) em julho de 2005, com o pedido de
certificação de Monte Alegre como Remanescente das Comunidades dos Quilombos, consta a
seguinte explicação:
O negro [...] começou a organizar meios para expressar suas alegrias e
normalmente eles praticavam uma dança denominada caxambu. Com o
crescimento da comunidade e suas diversões afro-brasileiras, pessoas
deslocavam-se de outras vizinhas para alegrarem-se junto aos negros. Daí
surgiu o nome Monte Alegre.
“Monte” refere-se aos morros e montanhas existentes no interior e ao redor da
comunidade, ela se localiza em uma região montanhosa, e “Alegre” remete às alegrias e festejos
dos antigos (RELATÓRIO TÉCNICO DE IDENTIFICAÇÃO DA COMUNIDADE
REMANESCENTE DE QUILOMBOS DE MONTE ALEGRE, 2006, p. 136).
As atividades de Turismo Pedagógico, desenvolvidas por integrantes da comunidade
remanescente do quilombo de Monte Alegre, fogem dos padrões que perpassam o processo de
1 Mestre em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF. Professora
do Centro Universitário São Camilo – Cachoeiro de Itapemirim. Professora da Rede Municipal de Ensino do
Município de Cachoeiro de Itapemirim - E-mail: [email protected]. 2 Os cantos, as danças e os instrumentos que demarcam o ritmo, que os moradores de Monte Alegre denominam
caxambu. Entretanto, os versos cantados constituem o que os participantes chamam de jongos e os instrumentos, que
são dois tambores (um grande e um pequeno), chamados de caxambu e nominam o conjunto ritual. (Relatório Técnico
de Identificação da Comunidade Remanescente de Quilombos de Monte Alegre, 2006, p. 271 – 272).
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS
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construção do conhecimento formal das escolas, baseado, muitas vezes, nos livros didáticos
que, em sua maioria, dialogam com a História do Negro na vertente da opressão e do
sofrimento, caracterizando-o como mero coadjuvante da História do Brasil e não como ator que
contribuiu para a formação do povo brasileiro.
Segundo Brandão (2007, p. 47), “a educação do homem existe por toda parte e, muito
mais do que a escola". Sendo assim, ela "é o resultado da ação de todo o meio sociocultural
sobre os seus participantes". Para ficar mais claro, nota-se que "é o exercício de viver e conviver
o que educa. E a escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento provisórios onde
isto pode acontecer". Seguindo esse raciocínio, "é a comunidade quem responde pelo trabalho
de fazer com que tudo o que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida
– e também com a aula – ao educando”.
Assim, as aulas-passeio têm o objetivo de promover um ambiente onde as relações
sociais, econômicas e culturais são interativas, deixando caracterizar essa atividade como uma
forma de lazer e turismo aplicado à educação. A prática dessas aulas identificadas por Freinet
(1996), podem também ser vistas como uma possibilidade de "ponte" entre a pedagogia e o
turismo, o que chamamos, atualmente, de turismo pedagógico, propiciando a conversão e
reconversão do olhar nos envolvidos. Elas ainda podem ser planejadas pelo professor tendo
como base os princípios já mencionados, para que, dessa forma, o conhecimento construído
tenha sentido na vida de nossos educandos, pois a experimentação, as vivências são premissas
que perpassam o aprendizado com significado.
Assim, as aulas-passeio têm o objetivo de promover um ambiente onde as relações
sociais, econômicas e culturais interagem-se, deixando caracterizar essa atividade como uma
forma de lazer e turismo aplicado à educação. A prática dessas aulas identificadas por Freinet,
podem também ser vistas como uma ponte entre a pedagogia e o turismo, o que chamamos
atualmente de turismo pedagógico, propiciando a conversão e reconversão do olhar nos
envolvidos (BONFIM, 2010, p. 124).
Aulas- passeio: implicações na construção do conhecimento
De acordo com os professores da Aula-passeio I o motivo que impulsionou a visita foi o
de apenas conhecer uma comunidade quilombola, em especial, a de Monte Alegre.
“Ouvimos falar dela, assim resolvemos agendar uma visita para conhecê-la!”
(Professores)
Durante essa visita, foi possível estabelecer um diálogo com alguns estudantes,
questionando-os o motivo da visita:
“Sei lá!” (Estudante 1)
“Não lembro se o professor falou alguma coisa” (Estudante 2)
“O professor falou que é para a gente saber um pouco da História”. (Estudante 3)
“Aprender um pouco mais da cultura dos escravos”. (Estudante 4)
“Não estamos estudando Ciências. Talvez depois vamos estudar”. Resposta
dada após a realização da trilha. (Estudante 5)
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“Pensei que eu fosse encontrar os negros vestidos com aquelas roupas, tronco
e mais outras coisas”. (Estudante 6)
Diante dessas falas, é possível perceber a ausência de uma prática educativa planejada,
contextualizada, capaz de estabelecer uma ponte entre as discussões efetivadas na sala de aula
com o contexto social, uma prática educativa ausente também no trabalho referente ao trabalho
da Lei nº 11.645/2008.
É possível perceber, na fala do Estudante 6, o silenciamento do estudo no que diz respeito
à luta do negro no Brasil, bem como a sua contribuição nas áreas social, econômica e política
da História do Brasil. Sua história de opressão ainda é mais latente do que a história de suas
conquistas.
A visita da escola estadual, localizada no município de Alegre – ES (Aula-passeio II,)
teve a presença de dois professores (o de História e o de Sociologia) e da gestora
pedagógica. De acordo com eles, o objetivo da visita estava pautado no conhecimento de
um quilombo que foge dos padrões apresentados pelos livros didáticos e que tem um
trabalho fundamentado no desenvolvimento de Políticas Públicas em favor do crescimento
da comunidade.
“Quando fazíamos Faculdade viemos conhecer essa comunidade. Agora,
estamos voltando com nossos alunos. O Quilombo de Monte Alegre tem
muito a nos ensinar porque tem um trabalho incrível desenvolvido por
Leonardo3”. (Professores)
Perante a fala dos professores, é importante destacar que Leonardo Ventura durante o
momento inicial da visita, menciona que alguns estudantes, que têm a oportunidade de visitar
a Comunidade Quilombola de Monte Alegre, retornam mais tarde na condição de professores
juntamente com sua turma.
Os 14 estudantes, que cursam o 3º ano do Ensino Médio dessa escola, aproveitaram a
manhã, para vivenciar o “Turismo Étnico, Cultural e Ambiental” oferecido pela Comunidade
Quilombola de Monte Alegre.
Após o café da manhã, os professores, com Leonardo, deram uma aula sobre o “Trabalho
Escravo no Brasil”, o “Eurocentrismo”, o “Movimento Quilombola” e a "Não passividade do
negro” - momento de grande atenção por parte dos estudantes. Após esse significativo
momento, foi a vez da apresentação cultural do caxambu e do samba de roda.
Das cinco escolas acompanhadas, essa foi a única contemplada com o samba de roda em
que todos foram chamados, para dançar embalados ao som do tambor, das palmas e do seguinte
canto:
Ô Geraldo4 cadê você, cadê você, cadê você,
Ô Geraldo cadê você, cadê você, cadê você.
Mexe, mexe Geraldo que o povo quer te vê,
mexe, mexe Geraldo que o povo quer te vê.
Na observação participante realizada com os estudantes após o percurso da trilha, foi
perguntado o que estavam achando da visita e alguns respondiam:
3 Um dos líderes da Comunidade Quilombola de Monte Alegre. 4 Nome do professor de História.
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS
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“Tudo é muito bom!” (Estudante 1)
“Estou aprendendo muito mais aqui do que na sala”. (Estudante 2)
“Muita coisa que vi na trilha tem na minha roça”. (Estudante 3)
“Aprender sobre os negros é aprender sobre a História do Brasil!” (Estudante 4)
“Esse quilombo não é igual que eu aprendi um tempo atrás”. (Estudante 5)
“Aqui é bem limpinho.” (Estudante 6)
“Quanta coisa estou aprendendo. Valeu apena acordar tão cedo para vir até
aqui”. [risos] (Estudante 7)
As vozes revelam que os estudantes estão vivenciando, de forma significativa, os
conteúdos trabalhados em sala de aula que perpassam pelo viés da inserção da 11.645/2008 e
que o esforço faz parte do processo de construção do conhecimento.
O Estudante 2 afirma que conseguiu aprender mais coisas in loco que na sala de aula.
Compreendemos que, para os estudantes, a experimentação é importante, pois oferece uma
dinâmica à prática educativa distinta da cotidiana, cujo objetivo é tornar as aulas significativas,
pois a vivência aproxima o abstrato do real.
O Estudante 3 aproxima a vivência de sua roça com a experimentação realizada no
caminho percorrido durante a caminhada pela trilha e visita à horta comunitária do quilombo.
Nessa experiência desenvolvida a partir do turismo pedagógico, as barreiras entre os muros e a
rigidez espacial da escola puderam ser borrados, permitindo a aproximação entre essa prática
educativa e o contexto social mais amplo de onde provêm seus estudantes. Esse estudante
estabeleceu uma ponte identitária entre a mobilização comunitária, empenho e dedicação dos
quilombolas para a construção e manutenção de sua horta comunitária e a experiência cotidiana
da roça feita na casa de seus familiares. Esses saberes ligados ao cotidiano camponês, muitas
vezes discriminado por ser visto como algo distante dos valores da modernidade, encarado
como mero processo de subsistência econômica ligado a valores de humildade e simplicidade,
foi ressignificado a partir da fala de Leonardo aos estudantes. Os saberes dos homens do campo
são práticas historicamente apartadas do cotidiano escolar, uma vez que seu princípio
organizador está pautado no mundo citadino. Na escola, a regulação do tempo e do espaço
seguem as divisões e ritmo das indústrias; os conteúdos trabalhados em sala de aula são
divididos, metaforizando a linha de produção em série; a escolha dos temas abordados privilegia
os saberes técnicos. Em sentido oposto, a visita ao Quilombo de Monte Alegre proporcionou a
integração entre saberes aparentemente díspares, voltados para a prática econômica que permite
a sustentabilidade dessa comunidade que, coincidentemente, é a mesma desenvolvida pela
agricultura familiar, responsável pela produção da maior parte dos alimentos que abastecem a
mesa do brasileiro.
A fala do Estudante 6 “Aqui é bem limpinho” chama a atenção pela lacuna de sentidos
existentes entre o jogo daquilo que se espera encontrar num quilombo, ou seja, uma ideia pré-
concebida sobre o que seria a vida de uma comunidade negra e aquilo que foi possibilitado, ao
aluno, vivenciar a partir da aula passeio. Nesse interstício, transparece o preconceito velado ao
negro e a tudo que lhe é atribuído. Segundo a afirmativa do Estudante 6, a visita ao quilombo
surpreende, pois expõe um local antes desconhecido na prática, mas cuja ideia preexistente
apontava para uma comunidade de negros, local sinônimo de “sujo”, “pobre”, “feio”. Esse
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estigma é comum na sociedade brasileira, em que símbolos da modernidade e do bem-viver são
expostos nos mais diferentes meios, apontando que somente o branco teria a possibilidade de
ser "limpo", "rico" e "bonito". Quebrar estereótipos que atribuem ao negro brasileiro um caráter
que o inferioriza e, ao mesmo tempo, o culpa por estar preso aos grilhões da pobreza constitui
meta a ser destacada nesse tipo de turismo pedagógico.
Na observação participante realizada na Aula-passeio III juntamente com uma escola
municipal do município de Marataízes – ES, verificou-se que a mesma contou com a
participação de dois professores (um de Ciências e o outro de Matemática), da coordenadora e
diretora da escola. Pode-se perceber que o objetivo da visita perpassava o conhecimento das
atividades técnicas desenvolvidas pela comunidade, voltadas para a agro-ecologia.
Essa escola teve a participação de 20 estudantes que cursam o 8º e 9º anos do Ensino
Fundamental II. De acordo com a equipe escolar, nem todos os estudantes vieram. Alguns
familiares não deixaram suas crianças participar da aula por motivo religioso e outros não
tinham como pagar por essa visita.
No que diz respeito ao motivo religioso mencionado, é possível notar que as religiões de
matrizes africanas não são bem vistas pela sociedade que ainda tem uma visão depreciativa e
preconceituosa, da qual o índio e o negro seguem sendo alvo (SILVA, 2005, p. 99). Portanto, a
falta de conhecimento, tanto do professor quanto da família, sobre estas religiões resulta em
atitudes preconceituosas. A escola, por sua vez, tem um importante papel no que tange a ações
pedagógicas voltadas a essa temática, sendo capaz de estabelecer um intercâmbio entre escola
e família com o objetivo de promover o respeito.
Durante a apresentação relacionada ao contexto histórico de Monte Alegre, houve muita
conversa por parte dos estudantes. Dispersavam-se com facilidade diante das atividades
ofertadas no decorrer da vista, fato que levou os professores a chamarem a atenção de forma
contínua da turma.
No decorrer da visita, alguns estudantes comentavam:
“Tudo é muito diferente do que aprendi na escola”. (Estudante 1)
“Quando eu estiver fazendo o Ensino Médio, vou trabalhar com a construção
de uma horta comunitária igual a que Leonardo falou.” (Estudante 2)
“Nunca vi um quilombo assim. É bem legal isso tudo!”. (Estudante 3)
“A trilha foi a parte mais legal desse passeio”. (Estudante 4)
“Eu não vi os macaquinhos que o professor falou que iríamos ver”. (Estudante 5)
Mais uma vez, as vozes dos estudantes estão carregadas de ausência do trabalho da equipe
pedagógica e docente da escola na tratativa dos temas relativos à Lei nº 11.645/2008. Apesar
disso, todos ficaram impressionados com que estavam vivenciando. O Estudante 2 teve o
exemplo da horta comunitária como um projeto a ser desenvolvido por ele. Já o Estudante 5
não foi para casa frustrado, pois quando estava indo embora com seu grupo, conseguiu avistar
de dentro do ônibus os macaquinhos enfatizados pelo professor.
A IV Aula-passeio, foi proporcionada pela visita de uma escola municipal localizada
também no município de Marataízes – ES e contou com a participação de 30 estudantes que
frequentam o 2º e 3º anos do Ensino Médio. Essa aula teve o apoio de dois professores (um
Biólogo e um Engenheiro Agrônomo) e contou com a participação de um quilombola,
representando o quilombo localizado em Graúna, região do interior daquele município.
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De acordo com os professores, o objetivo da visita foi trabalhar o Meio Ambiente;
Sensibilidade Ecológica; Corredores Ecológicos; Fauna e Flora; Cultura e Artes dos quilombos
(enquanto comunidade formada por grupo de descendentes africanos). Ainda de acordo com
eles, os estudantes deveriam produzir, em dupla, um relatório a ser entregue no final da aula de
campo. O que chamou atenção foi o fato de que os estudantes, em momento algum da visita,
estarem registrando em seus cadernos o que estavam vivenciando, o que poderia impactar o
processo de construção desse relatório.
No percurso da visita, os estudantes ficaram surpresos com tudo que viram e
experimentaram. Pode-se perceber que foi um grupo muito engajado no objetivo proposto pelos
professores.
“Nunca vi uma comunidade quilombola”. (Estudante 1)
“Conhecer tudo isso é muito bom!”. (Estudante 2)
Essas duas vozes afirmam a importância da escola trabalhar na perspectiva da observação
e da experimentação. Essa escola vem desmitificar o que ainda se ouve falar sobre o conceito
histórico de quilombo enquanto agrupamentos de africanos escravizados fugidos de engenhos,
que tentaram reproduzir vida comunitária semelhante à da África (MOURA, 2012, p. 13). É
nesse sentido que a apresentação de Leonardo sobre os aspectos sociais, culturais; as atividades
econômicas; as políticas públicas acessadas; os prêmios atribuídos à comunidade no âmbito do
cotidiano desse quilombo são extremamente importantes.
Para a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por intermédio de um grupo
de trabalho criado em 1994:
O termo ‘quilombo’ tem assumido novos significados na literatura
especializada e também para os grupos, indivíduos e organizações. Ainda que
tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para
designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e
contextos do Brasil. Definições têm sido elaboradas por organizações não-
governamentais, entidades confessionais e organizações autônomas dos
trabalhadores, bem como pelo próprio movimento negro. ... o termo
‘remanescentes’ de quilombo’ vem sendo utilizado pelos grupos para designar
um legado, uma herança cultural e material que lhes confere uma referência
presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico
(Relatório Técnico de Identificação da Comunidade Remanescente de
Quilombos de Monte Alegre, 2006, p. 51).
Aula-passeio de número V, realizada por uma escola estadual localizada no município de
Cachoeiro de Itapemirim. Ela teve a participação de duas professoras que ministram disciplinas
do Núcleo Comum e de 21 estudantes que cursam o 3º e 5º ano do Ensino Fundamental I,
acompanhados, também, pela mãe de um dos estudantes.
Para as professoras, o objetivo da visita foi finalizar o Projeto da História da Boneca Preta
chamada “Abayomi”5 que está sendo desenvolvido na escola. O nome dessa boneca significa aquela
que traz felicidade. Sua origem está relacionada ao processo de escravização, pois, em viagens
muito difíceis, longas e cansativas para o Brasil, nos navios negreiros, as mulheres rasgavam a barra
da saia com as próprias mãos e confeccionavam essa boneca para suas crianças brincarem com o
5 Disponível em: <http://ideiasgraciosas.blogspot.com.br/2012/11/bonecas-abayomi.html>. Acesso em: 06 de
setembro de 2015.
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS
LINHA MESTRA, N.30, P.65-73, SET.DEZ.2016 71
objetivo de acalentá-las, pois choravam assustadas de fome e porque viam a dor e o desespero dos
adultos. De acordo com uma das professoras: "Nem todos vieram, uns porque os pais não deixaram,
já outros porque são bagunceiros. Fizeram muita bagunça e receberam o castigo de não poder
conhecer uma comunidade quilombola".
Tendo como destaque a fala da professora mencionada acima, é perceptível o exercício
da prática educativa voltada para punição, entre os estudantes que ainda não conseguem se
“adaptar” às normas da escola são privados de alguns momentos em que o conhecimento é
construído, nesse caso, o da aula-passeio na Comunidade Quilombola de Monte Alegre. Freire
(1996, p. 164-165) afirma que:
Como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma
experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os
sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Nem
tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que
faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual.
Na observação participante dessa aula, a oportunidade de questionar as crianças sobre o
que estavam achando da visita foi clara e precisa:
“Bem legal! Que pena que meus outros colegas não vieram”. (Estudante 1)
“Tudo é muito diferente do que aprendi na escola”. (Estudante 2)
“Ah! Gostei muito de passear na floresta”. Quero voltar”! (Estudante 3)
“Viemos aqui para ver as coisas”. (Estudante 4)
“Para conhecer o afro”. Perguntei: O que é afro? E ela respondeu: “Não sei”.
(Estudante 5)
“A dança (o caxambu) que eles apresentaram é o “funk” deles”. [risos].
(Estudante 6)
De acordo com as vozes dos estudantes, foi possível perceber a sensibilidade afetiva da
Estudante 1, quando se queixou da ausência de seus colegas que não puderam estar presente
nessa aula-passeio. Percebe-se, também, a fragilidade dos professores em implementar o
trabalho da Lei 11.645/2008.
O Estudante 6 fez a comparação da dança “caxambu” com o “funk”, forma que ele
encontrou de aproximar o contexto social ao qual está inserido com a realidade dos monte
alegrenses, ou seja, eles também apresentam danças que envolvem o balançar do corpo,
coreografias criadas e ensaiadas como acontece no “funk”.
Para não concluir
Ao acompanhar o trabalho realizado pelos professores que visitam e levam suas turmas
para Monte Alegre, foi verificado que a Lei 11.645/2008 ainda é pouco explorada durante as
visitas e nas Instituições de Ensino, pois a maioria dos professores não constrói um
planejamento articulado com as atividades desenvolvidas por Leonardo Ventura no percurso da
visita. Cabe ainda questionar o óbvio: o que seria mais consonante ao ensino da história e
cultura afro-brasileira e indígena que uma visita a uma comunidade negra quilombola? No
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS
LINHA MESTRA, N.30, P.65-73, SET.DEZ.2016 72
entanto, esse trabalho revelou nuances e especificidades de difícil abordagem que nos permitem
compreender o intrincado processo de construção de símbolos e, por conseguinte, da construção
de conhecimentos sobre as identidades negras no Brasil.
Verificou-se que alguns professores adotam a postura do visitante e não do condutor que
vai facilitar o processo de ensino aprendizagem.
Ficou explícito que Leonardo Ventura, gradativamente, vem dando visibilidade à
Comunidade Quilombola de Monte Alegre desenvolvendo, desde 2005, ações de turismo
pedagógico em consonância com o oferecimento de aulas-passeio, desenvolvidas para as
escolas da região. Por meio dessas atividades de turismo pedagógico, ofertadas por ele e sua
família, é operada a ressignificação do conceito de comunidade quilombola. Se alguns livros
didáticos insistem trazer uma representação de quilombo como terra de negro escravo fugido,
apresenta-se, a partir das visitas, um outro panorama dessas comunidades negras do Brasil,
lidando com a diferença na ótica do contato e não do isolamento. A formação continuada de
professores no tocante à Lei 11.645/2008 pode ser uma alternativa às ações voltadas para o
ensino de conteúdos da História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena nas escolas.
Cabe ressaltar que Leonardo, apesar de desenvolver ações voltadas para o público
estudantil, não é pedagogo e age criando mensagens absolutamente honestas a partir de seus
respectivos e específicos ponto de vista, como negro e quilombola. Se há algo faltando na ação
de turismo pedagógico desenvolvido no Quilombo de Monte Alegre é, certamente, a ação dos
professores, coordenadores e diretores das escolas de Cachoeiro de Itapemirim e região que, na
grande maioria das visitas analisadas, delegaram a responsabilidade de seu planejamento e
execução de ações educativas à liderança do Quilombo, sem compreender a variedade de
significados e conflitos constituintes desses discursos.
Referências
BONFIM, Mailene Vinhas de Souza. Por uma Pedagogia diferenciada: Uma reflexão acerca do
turismo pedagógico como prática educativa. Revista Turismo Visão e Ação – Eletrônica, v.
12, n. 1, p. 114 – 129, jan./abr. 2010.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2007.
BRASIL. Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação. CP/DF Resolução nº 1, de
17 de junho de 2004. Institui as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.
______. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: 10 de março de 2008.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>.
Acesso em: 18 de dezembro. 2013.
O QUILOMBO DE MONTE ALEGRE – ES: HISTÓRIA DE MUITAS HISTÓRIAS
LINHA MESTRA, N.30, P.65-73, SET.DEZ.2016 73
FREINET, Célestin. Para uma escola do povo: guia prático para a organização material,
técnica e pedagógica da escola popular. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LEITE, Ilka Boaventura. O Projeto Político Quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais.
Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 16 (3): 424, setembro-dezembro/2008.
MELLO, M. MOURA. Reminiscências dos quilombos: territórios da memória em uma
comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012.
Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.
Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico- Raciais. Brasília: SECAD, 2010.
Ministério da Educação/Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão. Brasília: SECADI, 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/>. Acesso em:
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MOURA, Clóvis. História – Quilombos e Quilombolas. Quilombos e quilombolas no Brasil,
mas no Paraná, quem diria. Disponível em: <http://www.quilombos.pr.gov.br/>. Acesso em:
08 de novembro. 2013.
MOURA, Clóvis. Quilombos, resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1989.
MOURA, Glória. Quilombos contemporâneos: resistir e vencer. Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 2012.
Relatório Técnico de Identificação da Comunidade Remanescente de Quilombos de
Monte Alegre – Projeto Territórios Quilombolas no Espírito Santo – UFES – Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. Território “Quilombola” de Monte Alegre –
História, Cultura, Meio Ambiente e Direito Étnico. Vitória – ES. 2006.
LINHA MESTRA, N.30, P.74-78, SET.DEZ.2016 74
DAS BORDAS (LITORÂNEAS) PARA O FLUXO DA PALAVRA: DIÁLOGOS
COM O GRUPO SARAU DAS OSTRAS
Eliane Aparecida Bacocina1
Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo2
Bordando um texto
Escrever sobre bordas...
Bordas (im)possíveis.
Margens, Fronteiras, Pedaços de pensamentos.
Bordas litorâneas... Onde as ondas se movimentam... Onde vivem as ostras... seres que,
mesmo fechados em conchas, se abrem... Transformam as impurezas em pérolas.
Bordas da cidade... Locais de passagem... de criação... de poetas....
Poetas que transcendem as fronteiras do lugar. Sarau das Ostras. Grupo que cria... Que
diz sim. Que diz não. Poetas das margens.
Bordas da página... Margens do papel... Local onde se registra o que não cabe. Margens
dos livros produzidos pelos poetas. Livros de poemas marginais... Trans-bordantes...
(Trans)bordando pensamentos
Pensamentos que não cabem no papel.
Verso que se ouve, que se diz, que se escreve, que se sente.
Verso... Di-verso... Re-verso...
Pensamentos de uma pesquisadora que pesquisa /poetiza... que se
Encanta...
Encontra...
Des-encontra...
Des-territorializa...
Politiza...
Coletiviza...
Em meio a participantes de pesquisa... alunos... amigos... Versos... Encantos...
Este texto constitui-se num ensaio a partir de pesquisa de Doutorado em fase de
finalização.
Momento tenso de escrita. Escrita daquilo de que se pode um ponto final.
Ponto final que se quer reticências.
Pesquisa sobre linguagem poética... a partir de uma linguagem que se quer poética.
Participantes: poetas do litoral sul paulista - Grupo Sarau das Ostras: Ludimar. Poeta
Fernandes, Nego Panda, RO3P, Abel.
Poetas que se dizem “marginais”.
Materiais de análise:
- Transcrição de diálogos, intitulados “Conversas Poéticas”, realizadas em três encontros.
- Livros de poemas.
No recorte aqui proposto, pensa-se sobre o modo como os poetas do grupo pesquisado se
autodenominam: poetas marginais.
Perguntamos: o que é ser marginal? 1 Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
DAS BORDAS (LITORÂNEAS) PARA O FLUXO DA PALAVRA: DIÁLOGOS COM O GRUPO SARAU...
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Leminski tem uma possível resposta – poética:
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha. (Paulo Leminski).
Escrever à margem da página em branco...
Passagem...
Escrever na entrelinha...
Pode-se dizer, ainda, que a materialidade das produções escritas “marginais” é singular,
carrega particularidades, e ao mesmo tempo é coletiva, evidencia vozes que são de quem
escreve e refletem a voz de comunidades que têm em comum revoltas, inquietações. Devires-
marginais, como propõem Deleuze e Guattari (2003), quando apresentam elementos daquilo
que denominam “literatura menor”: Desterritorialização. Tudo é político. Tudo nela toma um
valor coletivo.
Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua
que uma minoria constrói numa linguagem maior [...] função de enunciação
colectiva e mesmo revolucionária: a literatura é que produz uma solidariedade
activa apesar do cepticismo; e se o escritor está à margem ou à distância da
sua frágil comunidade, a situação coloca-o mais à medida de exprimir uma
outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de
uma outra sensibilidade. (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38).
Construção de uma minoria... linguagem maior... coletiva e revolucionária.
Comunidade potencial.
Outra comunidade potencial. Sensibilidade outra.
Estar à margem da cidade – desterritorialização
Mostrar que se faz literatura nos lugares esquecidos da cidade, como afirma Nego Panda,
sobre seus escritos e seu livro:
Quando eu lancei meu livro eu falei que aquele livro não era uma vitória
minha, era uma vitória de quem morava na periferia, que não tinha aquele
contato direto com o autor ou com a literatura em si. [...] Quando eu fiz meu
livro, a intenção era essa, era mostrar que a gente que tá jogado nos confins
da cidade, lá na parte esquecida da cidade, também pode fazer literatura.”
(Nego Panda, referindo-se ao livro de sua autoria, Poesias de um mundo louco.
Transcrição do 1º encontro das Conversas Poéticas).
Vitória...
De quem mora na periferia...
Jogado nos confins da cidade...
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LINHA MESTRA, N.30, P.74-78, SET.DEZ.2016 76
Parte esquecida...
Também pode fazer literatura.
E faz literatura.
Que literatura é essa?
Literatura que se (des)territorializa / (re)territorializa.
Territórios poéticos...
O BARATO É LOKO – político – coletivo
Assistindo às apresentações do grupo Sarau das Ostras, a palavra – BARATO – contida
numa frase / verso, repetida, em várias vozes, desperta a atenção: “O barato é loko”.
Baratinadas, vamos perguntar: “Por que é louco esse barato?”
Nas palavras de Nego Panda:
A gente quer falar que o mundo ta louco. O mundo ta um caos. A sociedade
ta vivendo em estado de calamidade. Então a ideia da letra é essa. Falta amor
no ser humano, então o barato ta louco. O pessoal ta se matando por besteira,
agride o outro por causa de 2 reais, o outro mata porque olhou torto, esbarrou
no outro, o outro vai lá e dá uma facada. Então, o barato é louco. (Nego Panda.
Transcrição do 1º encontro das Conversas Poéticas).
E Ludimar, que passou a fazer parte desse barato, por “contágio”, completa:
E aí eu disse que se o barato é louco desse barato eu quero um pouco. [...]
Além disso, o meu barato é louco é assim, o barato é participar. O barato é
mostrar que tem muita coisa errada. O barato é louco porque eu tenho que ta
dentro desse contexto desse barato, pra mostrar que eu não quero ser mais um,
quero atravessar a rua. Vamos mexer nesse barato. (Ludimar. Transcrição do
1º encontro das Conversas Poéticas).
No encontro seguinte, RO3P, rapper, que não esteve presente no 1º encontro, retoma o
assunto e fala sobre o seu barato.
O Fernandes tinha falado. “Oh, eu só vou adiantar uma coisa pra você. A
Eliane vai perguntar porque que o barato é louco”. [...] Essa música eu tinha
escrito. Hoje eu nem canto, mas eu recito ela. [...] e eu até fiquei pensando
muito, no dia que o Fernandes falou. A resposta parece até difícil, mas é muito
fácil, (...)eu queria ter uma nave espacial pra voltar há anos atrás quando eu
tinha 9 anos e eu vi o meu pai morrer na minha frente. Dali em diante é o
motivo do barato é louco. Foi dali em diante. (RO3P. Transcrição do 2º
encontro das Conversas Poéticas)
Resposta que impacta.
Barato que está na vida.
No ato sensível e político de viver.
No constituir-se coletivamente, no estar com o outro, ser contagiado pelos versos, pela
poesia que transborda os pensamentos e sentimentos.
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LINHA MESTRA, N.30, P.74-78, SET.DEZ.2016 77
Por que escrever?
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
Preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá do céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
E eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(LEMINSKI, 2002, p. 135).
Poetas dizem porquê escrevem.
Escrever é vida, é verdade, e sentimento.
Ludimar: Por que eu escrevo? Porque eu preciso viver. Eu escrevo porque...
nossa, escrever pra mim é uma das prioridades da minha vida. Eu preciso
escrever. Assim como eu preciso ler eu preciso escrever. Escrever é o que me
faz sentir viva. É o que me faz sentir livre. É o que me faz crescer. É o que me
faz me comunicar. Praticamente é tudo. (Ludimar. Transcrição do 2º encontro
das Conversas Poéticas).
Eliane: E o que é um poema pra você?
Pelé: Uma vida. Uma vida. Ta escrevendo ali um poema. Que nem a Dona
Ludimar, o poema tem que ter sentimento. Tem que ter sentimento e verdade.
Sem verdade no poema, você ta rasgando uma parte da sua vida. [...] eu
acredito que todo ser humano é um poeta, todo mundo tem coisas pra escrever,
tem coisas pra viver.
[...] porque eu costumo falar pros meninos a gente somos compositores,
somos escritores, a gente não vai parar de escrever nunca, a não ser que Deus
venha e: Olha, você não vai escrever mais, toma aí um derrame, você não vai
escrever mais porque cê vai morrer... fora isso enquanto a gente tiver ar e
condições de escrever. (RO3P. Transcrição do 2º encontro das Conversas
Poéticas).
Por trás desse tentar expressar, o devir.
Devir-escritor.
Devir-poeta.
“O devir é o processo do desejo”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 67).
Desejo de escrever...
Desejo de ser poeta.
Escrever porque se precisa viver...
Viver para escrever...
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Para não deixar de transbordar...
Reações relatadas nas falas transcritas dos poetas sugerem um transbordamento da
linguagem, tal como a escrita que não cabe nas margens da folha de papel, cujos versos o Poeta
Fernandes reproduz oralmente num movimento gestual:
[...] às vezes falta fôlego pra falar a frase. Imagina pensar essa frase escrita
numa linha só. Não cabe no papel, mas a ideia que passa pra pessoa é que
quando eu to falando assim gestualmente eu to escrevendo a frase numa linha
só. [...] Esse movimento com a mão, ninguém sabe até hoje porque eu faço
esse movimento com a mão ali na hora da apresentação, é porque essa ideia
pra escrever no papel... pra que tudo isso que eu estou falando num fôlego só
também coubesse numa linha só. (Poeta Fernandes. Transcrição do 1º
encontro das Conversas Poéticas).
Das margens de tantas páginas escritas, oriundas das bordas que ladeiam cidades, às
fronteiras de um pensamento que se revela fértil, concretiza-se um movimento-fluxo das
palavras numa composição poética, singular.
Para onde nos leva?
De que modo flui esse movimento?
Devaneios daí advindos fazem (trans)bordar as margens (im)possíveis do que produz tal
linguagem, na qual a própria condição da leitura é, ela também, fluxo de pensamento que se
produz... poético.
Referências
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim,
2003.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 4. 2. ed.; tradução
de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012.
FOUCAULT, M. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: estratégia, poder-saber. v. V.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p. 144-162.
LARROSA, J. Sobre a lição. In: ______. Pedagogia Profana. Porto Alegre: Contrabando,
1998. p. 139-146.
LEMINSKI, P. 1944-1989. Melhores poemas de Paulo Leminski. Seleção Fred Góes, Álvaro
Marins. 6. ed. São Paulo: Global, 2002.
N. P. Poesias de um mundo louco. Praia Grande / SP: Literata, 2011.
LINHA MESTRA, N.30, P.79-83, SET.DEZ.2016 79
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: ENTRE MEMÓRIAS E PRÁTICAS
Alessandra Ribeiro Baptista1
Magda Cristina Dias de Lucena2
Amélia Escotto do Amaral Ribeiro3
Introdução
A promoção da leitura e da escrita nos anos iniciais tem se destacado nas discussões sobre a
efetividade dos sistemas e das práticas em alfabetização. Também, a formação e atuação do
professor têm sido questionadas, sobretudo, no que diz respeito à seleção de estratégias adequadas
à diversidade de alunos e contextos. O discurso de alfabetizadores, por sua vez, indica uma
tendência à oposição entre práticas pedagógicas promotoras da leitura e da escrita consideradas
“tradicionais” e “modernas”, associando-as, não raro, ao tempo de magistério. Essa oposição,
quando se trata da escola pública, revela, ao mesmo tempo, a busca por alternativas pedagógicas
efetivas e, certa fragilidade do alfabetizador na proposição de experiências de aprendizagem
significativas. Essa busca por “novas” abordagens, ao romper com o ensino tradicional, apresentaria
perspectivas mais promissoras para o campo da alfabetização.
Nesse contexto, acredita-se ser relevante tomar como foco de investigação, elementos
mnêmicos presentes no discurso de professores alfabetizadores com mais de 20 anos de
experiência em alfabetização. E, a partir deles, refletir sobre as relações entre ciclo de vida
profissional, formação doente e a experiência como norteadora da prática em alfabetização.
Relações entre ciclo de vida profissional, formação e experiência
A formação docente articula saberes da formação inicial e continuada, características
pessoais, trajetória de vida e socialização, além do modelo de ensino no qual o docente foi
escolarizado. Esses elementos são contemplados pela prática pedagógica, e integram os
processos de constituição da profissionalidade docente (HUBERMAN, 1995; NÓVOA, 2009;
TARDIF, 2000).
As relações que se estabelecem entre as dimensões pessoais, o percurso de vida
profissional de cada professor e a ação pedagógica são pontuadas por Huberman (1995). Ele
considera que a ação pedagógica é marcada pelos processos identitários construídos pelo
professor, em diferentes fases que compõem o ciclo de vida profissional: entrada na carreira,
estabilização, diversificação, pôr-se em questão, serenidade e distanciamento afetivo,
conservantismo, lamentações e desinvestimento.
Em termos das características de cada fase, 2 e 3 primeiros anos de ensino correspondem à
entrada na carreira. Esta fase caracteriza-se como um momento de sobrevivência diante das
novidades e dificuldades, e também, de descobertas. O período de 4 a 6 anos diz respeito à fase de
estabilização, marcada pelo sentimento de pertencimento a um corpo profissional e pela
independência. O período entre 7 e 25 anos de carreira tem como traço o desejo de sair da rotina;
os questionamentos sobre a permanência ou não da docência, e o balanço da vida profissional. O
período entre 25 a 35 anos corresponde a uma fase de serenidade, distanciamento afetivo,
conservantismo e lamentações, e é marcada pelos questionamentos e dificuldades no diálogo com
1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Duque de Caxias, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected].
PROFESSORAS ALFABETIZADORAS: ENTRE MEMÓRIAS E PRÁTICAS
LINHA MESTRA, N.30, P.79-83, SET.DEZ.2016 80
alunos de diferentes gerações. O período de 35 a 40 anos de carreira diz respeito à fase de
desinvestimento, caracterizada por uma vida dedicada a uma maior reflexão.
Se consideradas as fases do ciclo de vida profissional como um processo, inclui-se aí a
ideia de amadurecimento pessoal e profissional. Esse amadurecimento implica a construção de
saberes a partir da prática que, ao mesmo tempo, permitem refletir e intervir na e sobre a prática.
Esses saberes, denominados como saberes da experiência, por articularem saberes e identidade
profissional, são apontados como elementos chave para a constituição da profissionalidade
docente (TARDIF, 2002).
Os saberes da experiência se constituem nas relações que os docentes estabelecem com a
escola, com os alunos e com os colegas. Portanto, “resultam do próprio exercício da atividade
profissional dos professores” (CARDOSO et al., 2012, p. 3). Por apresentarem um caráter
eminentemente social e multireferenciado, “incorporam-se à experiência individual e coletiva
sob forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e de saber ser” (TARDIF, 2002, p. 38).
Sob essa ótica o fazer docente se constrói na prática, ao longo da carreira.
As memórias de professores como fonte de reflexão sobre a prática docente
As memórias de professores alfabetizadores permitem um outro olhar sobre o professor,
para além da racionalidade técnica. Esse olhar percebe o professor como alguém cujas
experiências contribuem para um melhor entendimento sobre a alfabetização, suas práticas e
desafios. Nesse sentido, a memória das experiências vividas é fundamental no processo
contínuo de tornar-se professor (ANTUNES, 2011).
É possível dizer que as memórias dos professores compõem um movimento de (auto)
reflexão. Ao reconstruírem suas práticas na e através das memórias, os professores refletem
sobre elas, se auto avaliam e identificam quais aspectos dessa prática precisam ser revistos, e
analisam como as relações que estabelecem com os saberes que o constituem influenciam no
aprendizado dos alunos.
Do ponto de vista da constituição da profissionalidade docente, os registros mnêmicos
podem servir, também, como fonte de dados para “a reconstrução da história da prática
docente”. O processo de recordação é construtivo e desempenha uma função social, é “[...] uma
questão de “reviver” certos acontecimentos, ser capaz de os reordenar, dando nova forma a
sentimentos, imaginando novas relações entre coisas bem conhecidas, ou mundos
completamente novos” (SHOTTER apud NÓVOA, 1995, p. 212).
Nesse sentido, a memória está associada à relação afetiva que o sujeito estabelece com a
situação relembrada. O relembrar está impregnado de afetividade; se apresenta de forma viva e
rica de detalhes, como se o sujeito presentificasse a cena vivida (BOSI, 2009).
Portanto, investigar questões relacionadas ao campo da alfabetização a partir das memórias
de professores alfabetizadores, pode contribuir para uma compreensão mais abrangente dos
desafios colocados, especialmente, pelo ensino e aprendizagem da leitura e da escrita.
O que os dados revelam
Apresentam-se, aqui, resultados de estudo exploratório descritivo sobre práticas de
promoção da leitura e da escrita nos anos inicias da escolarização, tomando como foco as
memórias de professoras alfabetizadoras com mais de 25 anos de magistério, que sempre
aturam na alfabetização em escolas públicas de Duque de Caxias – RJ. Com esse perfil foram
entrevistadas quatro professoras, estando uma delas em processo de aposentadoria (P3). Neste
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LINHA MESTRA, N.30, P.79-83, SET.DEZ.2016 81
texto, as professoras são identificadas como: professora 1- P1, professora 2 - P2, professora 3 -
P3 e professora 4 - P4, respectivamente.
Para melhor sistematização, os dados se organizam a partir de duas categorias: relações
entre marcas do ciclo de vida profissional e formação docente, as estratégias consideradas
essenciais para a promoção da leitura e da escrita.
No que diz respeito às marcas do ciclo de vida profissional, as professoras entrevistadas têm
25 (P1), 29 (P2) e 30 (P3 e P4) anos de carreira como alfabetizadoras. Encontram-se, portanto, na
fase do ciclo de vida profissional indicada por Huberman (1995) como a fase do distanciamento
afetivo, conservantismo, lamentações e serenidade. As características dessa fase aparecem nas falas
das professoras alfabetizadoras, quando pontuam a dificuldade no diálogo com os pais, com os
alunos de gerações diferentes e com professores “novos”. Afirmam:
Hoje, a falta de parceria da família é muito grande. (P 1)
Os alunos frequentam pouco a escola e os pais também. (P 2)
Eu ainda vejo que os pais são os nossos maiores desafios. A gente chama na
escola, mas as vezes não adianta de nada. Eu falo nas reuniões que os pais não
precisam ficar uma hora com os filhos, mas pelo menos 10 minutos com
qualidade. E aí, quando os alunos saem daqui, não tem ninguém para cobrar
deles. E eles ficam sem limites. (P 4)
Aqui a gente tem professoras recém-chegadas que até tem ideias ótimas, mas...
(P 3)
Observam-se traços dos comportamentos de distanciamento e lamentações, sobretudo,
quanto ao diálogo com os pais/família. As professoras lamentam a ausência dos pais e atribuem
a ela a dificuldade com o estabelecimento de limites dos alunos. Esse sentimento de
distanciamento se mostra, ainda, nas afirmações que as professoras alfabetizadoras fazem sobre
as relações entre pais, filhos/alunos e escola.
Chama a atenção, também, como as professoras comparam os “profissionais de
antigamente” com os de hoje. Há um sentimento de nostalgia do passado, uma prudência e
resistência acentuada às inovações. E, no momento da comparação, as professoras assumem
suas práticas como tradicionais, ainda que reconheçam as contribuições das “recém” chegadas
para o contexto escolar atual. Destacam:
[...] Temos aqui professoras ótimas que usam coisas novas, mas eu, quando
vejo algo novo eu até uso, mas eu me sinto segura no tradicional. E meus
alunos estão aprendendo assim[...]. (P 1)
[...] Têm pessoas que estão chegando agora no magistério e trazem algumas
coisas [...] mas a minha segurança “tá” aqui, no tradicional. As outras coisas
são para enriquecer […]. (P 2)
[...] Nós tínhamos uns trinta e poucos alunos na turma[...]. Antigamente, até
os professores se interessavam mais, não importava se ganhavam pouco, mas
trabalhavam com gosto […]. (P 3)
Em relação à formação, todas as professoras fizeram o Curso Normal apenas uma (P4)
cursou uma graduação. Essa professora atribui à graduação e ao amadurecimento profissional
a possibilidade de repensar suas práticas, adequando-as ao contexto escolar de atuação. Relata:
[...]eu era muito tradicional, fazia realmente a alfabetização como a Cartilha
mandava. [...]. Mas depois você vai amadurecendo e vai avaliar que não é
dessa forma que acontece. Então eu comecei a me interessar por cursos e na
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LINHA MESTRA, N.30, P.79-83, SET.DEZ.2016 82
faculdade mesmo é que a gente foi vendo muita coisa. Então a partir do
momento que conheci como acontecia a alfabetização, como se dá esse
processo da leitura e escrita, eu comecei a repensar toda essa minha trajetória.
Então a gente começa a refletir e refaz às suas vidas. [...]. Então eu refleti e
comecei a fazer a mudança. [...]. (P 4)
Pode-se observar que a P4 destaca as contribuições da formação para repensar sua própria
prática, modificando-a a partir da articulação entre o conhecimento teórico e os saberes
construídos na e através da experiência.
Ainda sobre a formação, a P3 fez questão de marcar que formação não modificou sua
prática, pois antes de frequentar o Curso Normal já auxiliava outras professoras em sala de aula.
Afirma: “Não, não mudou nada. Foi só para dizer que eu já era professora formada. Eu não
aprendi nada de interessante”. Acredita que o Curso Normal serviu apenas para certificá-la.
Para ela, a experiência foi o suficiente.
Quanto às estratégias consideradas essenciais para a promoção da leitura e da escrita
nos anos iniciais, observa-se que as professoras entrevistadas as descrevem a partir das
atividades que desenvolvem. Assim:
[...] coloco historinha, leitura, pintura. As crianças criam desenho, criam
frases. Usamos caderno de leitura [...] que acaba se tornando uma cartilha. Eu
tomo leitura duas vezes por semana. (P 1)
Eu uso recorte e cola, muita produção de texto, exibição de filmes, algumas
brincadeiras, muito ditado [...] a gente consegue ver a evolução na escrita da
criança. (P 2)
Eu passava lição, tomava leitura, passava dever de casa. Eles faziam vários
exercícios. Levavam muitos trabalhos para casa. Eles tinham caderno de
caligrafia. Livros para tomar leitura, caderno desenho, tinha Cartilha. (P 3)
Hoje eu trabalho de forma construtivista. [...] Eu tomo leitura quase todos os
dias, a gente tem sequência de listas, disso eu não abro mão. [...] leitura
compartilhada sempre. E ler pelo simples prazer de ler. Lista de frutas, de
animais, tudo quanto lista você imaginar. (P 4)
As atividades descritas têm como foco o ensino e a aprendizagem da leitura. Isso parece
evidenciar que a leitura vem sendo privilegiada pelo fazer pedagógico em alfabetização. O
movimento de verificação da leitura destacado pelas professoras P1, P2, P3, P4 indica que no
universo pesquisado, “tomar a leitura” compõem a rotina em alfabetização.
Percebe-se nas narrativas das professoras a ideia de que a leitura precisa ser estimulada
para que o aluno sinta o ato de ler como prazeroso, e de uma relação entre o prazer da leitura e
o êxito na alfabetização. Percebe-se, ainda, o uso de listas de palavras, a produção de textos
variados e a interdisciplinaridade como recorrentes entre atividades descritas pelas as
professoras alfabetizadoras.
Em síntese, os resultados evidenciam, no universo investigado, uma estreita relação entre
as marcas do ciclo de vida profissional e as estratégias para o fazer pedagógico em
alfabetização.
(In)conclusões
A partir das considerações apresentadas, ratifica-se que: o relato de alfabetizadoras
trazem as marcas do ciclo de vida profissional e evidencia, no universo pesquisado a associação
entre práticas pedagógicas “tradicionais” e “modernas” ao tempo na profissão; é marcante a
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influência dos registros mnêmicos na condução da prática docente; os saberes da
experiência/saberes da prática se sobrepõem aos demais saberes quando se trata da constituição
da profissionalidade docente.
Por fim, sugerem-se à reflexão duas questões: a prevalência dos saberes da experiência
como estruturadores da profissionalidade docente em alfabetização, e a contribuição da
formação inicial e continuada para a constituição dessa profissisonalidade.
Referências
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profissional. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2011.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
CARDOSO, A. A.; PINO, M. A. B. Del.; DORNELES, C. L. Os saberes profissionais dos
professores na perspectiva de Tardif e Gauthier: contribuições para o campo de pesquisa sobre os
saberes docentes no Brasil. IX ANPED, 2012. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/view/668/556>. Acesso
em: 10 de jun. de 2016.
HUBERMAN, M. O ciclo de vida dos professores. In: Nóvoa, A. (Org.) Vidas de Professores.
Porto: Porto Editora, 1995.
NÓVOA, A. Vida de Professores. Porto: Porto Editora, 1995.
______. Para uma formação de professores construída dentro da profissão. Revista de
Educación - La formación de profesores de Educación Secundaria, Madrid, n. 350, p. 203-218,
2009. Disponível em: <http://www.revistaeducacion.mec.es/re350/re350_09por.pdf>. Acesso
em: 2 de out. 2015.
TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários. Revistas
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 13, jan.-abr. 2000.
______. Saberes Docentes e Formação Profissinal. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
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O REPENSAR A EDUCAÇÃO NA FAVELA: UMA DOBRA POSSÍVEL
Karen Cesar Baptista1
Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto2
Introdução
Este texto socializa reflexões sobre a ação educativa com base nas condições materiais que
as escolas na favela se inserem a fim de (re)pensar uma prática pedagógica que revele a
especificidade da educação, resgatando a função da escola e a importância do saber sistematizado.
Tomamos como referencial teórico-metodológico a psicologia histórico-cultural do
desenvolvimento humano de Vigotski (2007) segundo a qual o psiquismo humano é desenvolvido
sócio-historicamente, pela mediação da linguagem, e a pedagogia histórico-crítica defendida por
Saviani (2011), para a qual a história de toda humanidade só se torna possível com a transmissão
da riqueza intelectual produzida para as novas gerações, logo, o movimento da historicidade, das
aquisições da cultura de um povo, depende das relações educativas.
Para desenvolver o estudo foi necessário compreender a realidade da favela, mostrando o
fenômeno da miséria no processo de urbanização contemporâneo, isso porque, o referencial
teórico advindo da pedagogia histórico-crítica, tem como preocupação pensar o fenômeno
educacional atrelado ao complexo social.
Para compreender as ações educativas ali vividas foi realizada uma pesquisa de campo
em uma escola municipal do interior paulista, em um bairro periférico, em uma sala de 4º ano
do Ensino Fundamental. Procedimentalmente foram realizadas gravações de áudio e anotações
em diário de campo.
Posto isto, discorreremos sobre as características da favela e a especificidade da
educação, posteriormente apresentaremos um episódio de ensino de ortografia vivido na
aula de Língua Portuguesa.
As características da favela e a especificidade da educação
Grandes fábricas, indústrias agrícolas, investimentos em infraestrutura, entre outros cenários
da época da modernização do Brasil, especificamente, a urbanização da grande cidade de São Paulo,
na década de 50 e 60 do século XX, possibilitou o crescimento demográfico das regiões
metropolitanas paulista e fluminense. Analisando os problemas dessas grandes metrópoles, a cidade
então, tornou-se criadora de pobreza, seguindo um modelo socioeconômico capitalista, que fez a
população das periferias pessoas ainda mais pobres (SANTOS, 1994).
Nesse contexto, desde o século XX, os moradores das favelas e suas histórias foram
ofuscados, ficando à margem dos estudos. A primeira definição da palavra favela, veio em
1812, no vocabulário vulgar, do escritor James Hardy Vaux, aparecendo como slum, palavra
inglesa, que significava “comércio criminoso”. No entanto, entre 1830 e 1840, os chamados
slum serviam de moradias aos pobres, passando a significar “cômodo onde se faziam comércios
ilegais”, logo foi reconhecido na França, na América e na Índia, ganhando fama internacional,
caracterizando-as como habitações dilapidadas, doenças, pobreza e vícios, com grande
concentração de população. (DAVIS, 2006).
A favela contém características peculiares, nela predominam-se as características da
definição clássica de favela, tais como aglomerações, habitações pobres ou informais, acesso 1 Mestranda da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: [email protected]. 2 Professora Doutora da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: [email protected].
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restrito a água, péssimas condições sanitárias e medo da população em relação ao domínio de
posse da terra. Com o fenômeno da metropolização, as grandes cidades surgem como o cantar
de sereias, seduzindo a chegada de milhões de migrantes a procura de empregos.
Acreditamos que para que ocorra uma mudança nesse quadro, devemos evidenciar o
papel da escola como possibilitadora de transformações de vidas, ou seja, transformações reais
do sujeito, estabelecendo uma relação de reflexão crítica do meio em que se vive, para que se
reivindiquem condições melhores, tendo consciência de seus direitos como cidadãos, portanto,
iremos analisar a escola e suas relações de ensino por acreditar que a escola não é a redentora,
mas possibilita mudanças profundas na sociedade pelo processo educativo.
Se a escola, uma instituição social, é um ambiente privilegiado para aquisição do
conhecimento sistematizado, ou seja, dos conhecimentos já produzidos pelas gerações
antecedentes, podemos dizer que é necessário esta apropriação para possibilitar o avanço das
novas gerações, superando o que fora construído historicamente. Nesse sentido, é preciso
refletir sobre os processos educativos e sobre o modo de enxergar os sujeitos, a fim de superar
o diagnóstico de um espaço de reprodução da sociedade capitalista, visando contribuir para uma
geração transformadora da sociedade.
Segundo Saviani (2011, p. 80) a educação deve ser compreendida "no seu
desenvolvimento histórico-objetivo e por consequência, [como] possiblidade de se articular
uma proposta pedagógica cujo ponto de referência, cujo compromisso, seja a transformação da
sociedade e não sua manutenção, a sua perpetuação".
Posto isto, e diante das discussões sobre o ensino da língua na escola, consideramos com
Morais (2003, p. 23) que "assim como não se espera que um indivíduo descubra sozinho as leis
de trânsito [um tipo de convenção social] não há por que esperar que nossos alunos descubram
sozinhos a escrita correta das palavras". Entendemos também com Possenti (1996) que o papel
da escola é ensinar a língua padrão e, nesse contexto, é preciso "perceber que os menos
favorecidos socialmente só têm a ganhar com o domínio de outra forma de falar e escrever" (p.
18), o que inclui, também, o domínio do aspecto ortográfico da escrita.
Na rua do Rogério os carros nunca derrapam3
É na tentativa de compreender como o saber erudito se apresenta nas escolas para as
camadas socialmente e culturalmente desprivilegiadas que apresentaremos uma pesquisa de
campo feita em uma favela, tal como já descrita anteriormente.
A trama acontece na favela do Cantagalo, na cidade de Piracicaba. Apesar do processo
de urbanização da localidade, os problemas dessa comunidade são inúmeros e o descaso da
ordem pública com a falta de serviços básicos ainda permanece.
A escola pesquisa da começou a funcionar em condições precárias e sem espaço para as
crianças da região, recebeu em 2005 uma nova estrutura, após parceria entre o governo do
Estado e a prefeitura da cidade, o que garantiu o investimento social para a construção de seis
novas salas de aula, sala de informática, sala de educação artística, entre outras.
A escolha da sala de aula na qual a pesquisa foi realizada deu-se através do contato que a
secretária intermediou entre a direção e as professoras. Elaine4 foi uma das únicas professoras
que se prontificou a receber pesquisadora.
3 O título desta seção foi livremente inspirado no título da poesia de Cecília Meireles "A chácara do Chico Bolacha"
(1964). 4 Os nomes da professora e dos alunos são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos.
O REPENSAR A EDUCAÇÃO NA FAVELA: UMA DOBRA POSSÍVEL
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No dia da aula sobre os sons da letra R Elaine trabalhou com o material Ler e Escrever.5
Professora: Todas as palavras que pronunciamos e que tem o som do R forte
no meio das palavras, usamos RR para escrever. Copiem isso no caderno.
Vocês têm que aprender a formar frases. Vamos lá... Quando usamos um R no
meio da palavra ele é fraco. Quais as palavras que aparecem aí?
As crianças leram em coro: Resistiu. Geração. Terraço. Descobriu. Genro.
Honra. Enrolar.
A professora lê no livro Ler e Escrever o texto "O pastor e as ovelhas". E
continua... Observando a grafia. O que é grafia?
Aluno1: O escrito.
Professora: Isso mesmo. Olha lá... NADA FORA. Fora quer dizer o quê?
Aluno2: Foi
Professora: Isso muito bem.
Professora: Ó prestem atenção, SAIR, OUVIR, ENCONTRAR, CORRER,
MORRER... Olhem a minha boca... Como que a gente encontra essas palavras
no dicionário?
Aluno3: SAIR. É um separado da outra. (Referindo-se a separação das sílabas
das palavras no dicionário).
Aluno2: Porque saíram é passado, e sair é futuro.
Professora: A explicação está certa, mas porque eu encontro SAIR. O que é
SAIR?
Aluno3: Porque é verbo. É ação.
Professora: Isso, tá fazendo alguma coisa, é ação. SAIR é ação?
Aluno3: Sim
Professora: OUVIR?
Alunos: Sim
Professora: CORRER?
Alunos: Simmm..
Professora: MORRER?
Aluno4: Nãoooo..
Professora: Ahh morrer não é ação?
Aluno4: Não, porque já morreu.
Professora: Morrer é uma ação, porque você vai morrer. Vamos formular as
respostas, copiem direito. A professora escreve na lousa: “SAIR, porque as
palavras que indicam ação, ou seja, os verbos aparecem no infinitivo”.
Respondendo a pergunta do exercício do Ler e escrever.
No momento em que os alunos copiam as respostas escritas na lousa pela professora, esta
circula entre as carteiras olhando e tirando as dúvidas que surgiam. Em um desses momentos,
a professora se dirige à pesquisadora e comenta: "Você tem que corrigir o tempo todo, senão
eles escrevem errado. Se a gente não ensina, como é que faz?! Se ensinando ainda escrevem
errado, imagina se eu não ensinasse”.
Ao dizer isso a professora defende, como já vimos em Duarte (2001), em favor do ato de
ensinar, a necessidade da sistematização dos conhecimentos, que no caso, ela julgava estar
ensinado: ortografia - os usos da letra R.
Entendemos que a ortografia é fruto de um contrato social estabelecido historicamente,
portanto, é arbitrária. Contudo, devido aos movimentos educacionais naturalizantes do processo
5 O programa Ler e Escrever é um conjunto de linhas de ação articuladas que inclui formação, acompanhamento,
elaboração e distribuição de materiais pedagógicos e outros subsídios, constituindo-se dessa forma como uma
política pública para o Ciclo I, que busca promover a melhoria do ensino em toda a rede estadual.
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de ensino-aprendizagem, alguns professores deixam de lado o ensino da ortografia, uns por
“respeitarem” o dialeto local, outros por acreditarem que as crianças, por si mesmas, irão
desenvolver a habilidade da escrita ortográfica, bem como o uso de regras próprias da escrita.
Podemos observar nesse episódio, que a professora tem intenções educativas e lança mão
de seus conhecimentos para ensinar seus alunos. Há, por parte da professora, uma preocupação
com a escrita correta das palavras, o que ela enuncia formalmente para a pesquisadora. Ao
enfatizar o uso do “R forte” e do “R fraco”, desencadeia uma possibilidade de aprendizado entre
os alunos, no entanto, observando atentamente a aula é possível afirmar que ainda que ela tenha
tido o desejo de ensinar os usos da letra R para as crianças, ela não o fez.
No decorrer do processo ela desloca a discussão dos usos dessa letra para uma reflexão
superficial sobre a classe gramatical dos verbos. Acreditamos que ao trabalhar com a forma
nominal que representa o verbo, os infinitivos, a professora possa ter considerado estar dando
destaque ao uso da letra R no final das palavras, uma vez que os infinitivos sempre finalizam
com AR, ER ou IR.
Nesse processo a professora deixou de informar aos alunos que a utilização da letra R é
um caso de regularidade "contextual", ou seja, os casos de regulares “contextuais” são aqueles
em que as relações letra-som são explicitadas segundo o contexto, ou seja, o texto gráfico, onde
um mesmo som é notado com alternativas únicas, de acordo com sua posição na palavra
(MORAIS, 1999). Neste mesmo sentido, Cagliari (1999) explicita que algumas letras
apresentam dificuldades que dependem do contexto linguístico e que, de modo geral esses casos
podem ser ensinados através de regrinhas.
Porém, observa o autor, “essas regrinhas valem como um todo e não diria, por exemplo,
que elas podem ser hierarquizadas numa sequência de dificuldades progressivas, porque isto
não tem nenhum fundamento científico” (CAGLIARI, 1999, p. 77). Fazem parte destes casos,
dentre outros, o uso de R ou RR, G ou GU, C ou QU, o uso do E ou do I no final das palavras.
A professora se equivoca também quando diz que "quando usamos um R no meio da
palavra ele é fraco". Na verdade, quando o R aparece entre duas vogais o som é fraco, mas
quando aparece entre uma consoante e uma vogal, tal como em GENRO, HONRA ou
ENROLAR, o som é forte, com vibração prolongada, tal como no uso dos dois erres (RR).
Algumas considerações acerca do vivido
Nessa situação de ensino, pudemos notar a intenção educativa por parte da professora, no
entanto, nos questionamos: se a professora seguia o material proposto pela secretaria da
educação, quais saberes estavam sendo privilegiados?
Parece-nos diferentes conteúdos foram abordados de forma superficial: o aspecto
ortográfico dos usos da letra R e a classe gramatical dos verbos. Seria o livro o material o
indicador dessas atividades, tais como a professora as desenvolveu o seria a leitura que a
professora realiza do material? Sobre isso poderíamos discutir em um outro artigo, dados os
limites deste texto. O que fica, no entanto, é que de um modo ou de outro, os alunos precisam
ter acesso aos conhecimentos a partir de informações corretas e precisas dos professores, pois
devido ao contexto cultural e socioeconômico em que estão inseridos, dificilmente encontrarão
outra ponte de acesso, senão a escola.
Por fim, ao defendermos o ensino sistemático na escola, objetivando uma luta ideológica
constante para se formar leitores e produtores de textos reais, pois ao ensinar a escrita correta,
encarando a ortografia como objeto de conhecimento, estaremos contribuindo para a
democratização do acesso a língua escrita, logo, ampliando os sentidos que o aluno pode
estabelecer quando interage com/pela linguagem, viabilizando à meta de que é possível ter
O REPENSAR A EDUCAÇÃO NA FAVELA: UMA DOBRA POSSÍVEL
LINHA MESTRA, N.30, P.84-88, SET.DEZ.2016 88
sucesso na aprendizagem dos conhecimentos escolares. Essa é a tarefa da educação, propiciar
a aquisição dos conhecimentos como condição de libertação dos indivíduos na sociedade e essa
tarefa constitui o pressuposto principal do pensamento da pedagogia Histórico-Crítica.
Referências
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às aproximações neoliberais
e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2001.
MORAIS, Arthur Gomes. Ortografia: ensinar e aprender. São Paulo: Editora Ática, 2003.
MASSINI-CAGLIRI, Gladis; CAGLIARI, Luiz Carlos. Diante das Letras: a escrita na
alfabetização. Campinas, SP: Mercado de Letras & Associação de Leitura do Brasil – ALB, SP:
Fapesp, 1999.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1994.
São Paulo. Programa Ler e Escrever. Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
Disponível em: <http://lereescrever.fde.sp.gov.br/>. Acesso em: 10 março de 2013.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 2008.
______. Pedagogia Histórico-Crítica: Primeiras aproximações. Campinas: Autores
Associados, 2011.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar Gramática na Escola. Campinas: Mercado de
Letras ALB, 1996.
VIGOTSKI, L. S. A Formação Social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LINHA MESTRA, N.30, P.89-93, SET.DEZ.2016 89
O ESTUDO DE NARRATIVAS TRADICIONAIS ARMÊNIAS NO ENSINO MÉDIO
Dayse Oliveira Barbosa1
Introdução
Devido ao centenário do genocídio armênio em abril do ano passado, foi desenvolvida,
no transcorrer do primeiro bimestre letivo, com alunos do primeiro ano do ensino médio da
rede estadual de São Paulo, uma sequência didática que privilegiou a análise linguística e
literária de três narrativas tradicionais armênias. São elas: Lenda de Hayk, Lenda de Aram,
Lenda de Ara e Semiramis.
É importante mencionar que as três historias analisadas neste trabalho são provenientes
dos Cantos de Goghten. Os Cantos de Goghten são poemas orais, originários da província de
Siunik, região de Shirak, próximo da atual Yerevan. Esses cantos foram compostos por
trovadores anônimos, e circularam durante séculos, sendo transmitidos de geração em geração,
sem registro escrito. Por isso, é muito difícil precisar a época de elaboração desses cantos.
Como não há registros originais dos Cantos de Goghten, a versão utilizada neste trabalho
é oriunda dos registros realizados por Moisés Khorenatsi (2012), considerado pai da
historiografia armênia.
Tendo em vista o Currículo do Estado de São Paulo (2010), a sequência didática
elaborada para contemplar o estudo das lendas armênias focou o desenvolvimento das
habilidades de reconhecimento dos elementos básicos da narrativa literária e construção de
sentido pela comparação entre textos, a partir de diferentes relações intertextuais.
Dessa forma, por meio da análise das três narrativas armênias, procurou-se conduzir os
estudantes à compreensão de como os elementos textuais articulam-se para ressaltar o perfil heroico
dos protagonistas das lendas abordadas e a importância desses herois para a literatura armênia.
A seguir serão apresentadas as sínteses das lendas de Hayk, de Aram, de Ara e Semiramis.
Posteriormente, serão explicitadas as linhas gerais da sequência didática desenvolvida a partir
dessas lendas.
Hayk – o heroi fundador da nação armênia:
A lenda de Hayk narra, fundamentalmente, a constituição do povo armênio. Não há
registros históricos da existência de Hayk, contudo, a lenda de Hayk é basilar para a constituição
da cultura armênia.
O conflito inicial é instaurado quando Bel tenta submeter o povoado de Hayk – cerca de
trezentas pessoas estabelecidas na terra de Ararad – ao seu domínio. Hayk não aceita que ele
próprio e seu povo sirvam à tirania de Bel. Com isso, instaura-se a tensão que desencadeará o
combate central da narrativa.
A nobreza de caráter de Hayk será consolidada quando, na cena do combate, ele defronta-
se com Bel muito bem armado para o combate e escoltado por seus melhores soldados.
Hayk, nesse momento, assume seu primeiro grande desafio, ele coloca-se diante de sua
tropa, escoltado por seus filhos e pelo neto, Cadmos. Assim, Hayk demonstra sua soberania,
porque ele não apenas expõe a si mesmo, mas também aos próprios descendentes na linha de
frente do combate e, de acordo com o narrador, após o heroi alinhar as tropas atrás de si
formando um triângulo, avançou calmamente.
1 E-mail: [email protected].
O ESTUDO DE NARRATIVAS TRADICIONAIS ARMÊNIAS NO ENSINO MÉDIO
LINHA MESTRA, N.30, P.89-93, SET.DEZ.2016 90
Essa atitude de Hayk de posicionar-se na linha de frente de seu exército acentua os traços
de honra e caráter do heroi, e ao avançar calmamente para um visível combate com um inimigo
tirano muito bem armado, Hayk evidencia sua astúcia e inteligência.
O assassinato de Bel é o clímax da narrativa. Esse assassinato é determinante para
caracterizar o heroísmo de Hayk. Bel é uma ameaça para toda uma coletividade, pois ele é um
tirano. Assim, a sua morte é essencial para que o equilíbrio inicial da narrativa seja restabelecido
e o povoado de Hayk volte a ter paz.
O exército de Bel fugiu diante da valentia de Hayk. O heroi determinou que o corpo de
Bel fosse enterrado na presença das mulheres e filhos do seu inimigo e na região da batalha
fundou o vilarejo que recebeu o nome de Hayk.
Essa lenda evidencia não só como Hayk tornou-se o heroi fundador do povo armênio,
mas também porque esse heroi é o protótipo da astúcia e da coragem do povo armênio para
defender suas terras e, principalmente, como o imaginário armênio está essencialmente ligado
aos primórdios da Humanidade.
Aram – o primeiro rei do Reino de Urartu
Aram é considerado o primeiro rei do Reino de Urartu. De acordo com dados históricos,
o Reino de Urartu existiu entre os séculos IX e VI a. C., sendo que o mandato de Aram deu-se
entre os anos 880 e 844 a. C.
Tradicionalmente, acredita-se que o povo armênio formou-se a partir da queda do Reino
de Urartu. Por isso, a lenda de Aram integra o conjunto de narrativas que constituem a formação
do povo armênio.
A narrativa de Aram é marcada por confrontos contra os líderes de povos vizinhos que
ameaçavam as fronteiras do reino armênio. Logo, a lenda de Aram, assim como a lenda de
Hayk, faz referência direta ao espaço territorial ocupado pelo povo armênio nos primórdios da
constituição populacional da Humanidade.
A lenda de Aram narra uma sequência de batalhas desse herói armênio contra Niwkar Mades
– líder dos medos –, Barsham – reinava em regiões da Assíria – e Payapis Kaaghiai – dominador
que se apossou das regiões entre os mares Pontus e Oceano. Essa sequência de batalhas que constitui
a narrativa de Aram constrói um ambiente extremamente beligerante em torno do heroi e, com isso,
demonstra que a formação do povo armênio está relacionada à audácia, coragem e inteligência de
Aram, que lutou destemidamente pela expansão dos domínios de seu reino.
Outro ponto importante de contato entre Aram e Hayk é a postura dos rivais em relação
a eles. Na lenda de Aram, há um trecho que narra os planos de vingança de Ninos (rei de Níneve,
descendente de Bel). Ninos desejava exterminar os descendentes de Hayk em resposta ao
assassinato de Bel, morto pelas mãos de Hayk. Contudo, Ninos teme o enfrentamento com
Aram. Por isso, o descendente de Bel ordena que o heroi armênio dirija um de seus principados,
além de conceder-lhe o direito de usar um diadema de pérolas e de ser chamado de segundo,
depois apenas de Ninos.
Esse fato demonstra que Aram mantém a linhagem astuciosa de Hayk, ao passo em que
Ninos preserva a covardia de seu ancestral. Para não guerrear diretamente com Aram e,
provavelmente, ser destruído por ele, Ninos prefere fazer concessões, ou seja, indiretamente o
descendente de Bel subjuga-se ao heroi armênio por medo de perder o seu mandato (e talvez a
própria vida) para Aram.
A lenda de Aram culmina com a vitória dele contra seus poderosos inimigos. Como
recompensa pela consagração sobre os inimigos, o heroi armênio ordenou que toda a população
O ESTUDO DE NARRATIVAS TRADICIONAIS ARMÊNIAS NO ENSINO MÉDIO
LINHA MESTRA, N.30, P.89-93, SET.DEZ.2016 91
sob seu poderio aprendesse a língua e a fala armênia, além de povoar as províncias denominadas
Segunda, Terceira e Quarta Armênia.
Da mesma forma que as batalhas, as conquistas de Aram também são coletivas. A
instituição da língua e da fala armênia bem como a expansão dos domínios armênios remetem
diretamente à luta do povo armênio para instaurar a sua autonomia desde a Antiguidade.
Ara, o belo, e Semiramis, a rainha luxuriosa
Essa lenda narra a paixão da rainha assíria Semiramis por Ara, o belo, filho de Aram,
portanto, líder do povo armênio.
Há indícios históricos de que Ara e Aram foram a mesma pessoa, no entanto, Khorenatsi
(2012) os trata como personalidades distintas, dessa forma, cada um tem uma historia própria.
Em relação à rainha Semiramis, os dados históricos apontam que ela governou a Assíria por
volta do século IX a. C.
De acordo com a lenda, Semiramis apaixonou-se perdidamente por Ara, o belo soberano
armênio. No entanto, ela ainda era casada com Ninos. Por isso, manteve sigilo sobre seu
sentimento. Mas, após a morte do marido, Semiramis tudo fez para seduzir Ara, oferecendo-lhe
presentes e promessas de poder.
Como Ara recusou todas as ofertas de Semiramis, ela ordenou ao exército assírio que
invadisse o planalto de Ara, chamado de Ayrarat. A ordem da rainha assíria era para que suas tropas
capturassem Ara e o mantivesse vivo. Contudo, Ara enfrentou as tropas de Semiramis até a morte.
Como o exército armênio estava disposto a vingar a morte de seu líder, Semiramis ocultou
o corpo de Ara, dizendo aos armênios que a vida dele havia sido restituída após ela ter ordenado
aos deuses que lambessem as feridas de Ara. Semiramis estava convicta de que, por meio de
suas feitiçarias, faria o belo soberano armênio reviver. Mas, ela não alcançou seu intento. Então,
lançou o corpo de Ara em um grande precipício, vestiu e adornou, em segredo, um de seus
amantes para convencer o povo armênio de que Ara havia realmente retornado à vida e,
simulando estar agradecendo aos deuses, ofereceu-lhes estátuas e grandes sacrifícios.
Seguindo a linhagem de herois armênios, Ara não aceita ser subjugado. Ele não se deixa
seduzir pelas ofertas ostensivas da rainha assíria e prefere a morte no campo de batalha para
defender seu povo a unir-se com Semiramis por interesse. Essa imagem construída por Ara
acentua o caráter íntegro dos herois armênios.
O mais interessante na lenda de Ara e Semiramis é que o heroi armênio morre no início
da narrativa. A partir da morte dele, o narrador prossegue a historia, contando o percurso da
antagonista, Semiramis.
Como a rainha assíria é uma personalidade histórica, o narrador pontua algumas obras de
infraestrutura importantes realizadas por Semiramis nas terras de Ayrarat, onde ela passava
frequentemente os verões, devido à beleza e a serenidade do local.
Todavia, a rainha Semiramis era extremamente displicente na administração, sempre que
ela partia para a Armênia nos meses de verão, deixava como prefeito e supervisor da Assíria e
de Níneve o mago Zoroaster (patriarca dos medos), até que a rainha confiou ao mago o governo
de todo o seu império.
Além disso, Semiramis acabou desperdiçando grande fortuna e tesouros com amantes. A
perversidade dela chega ao ápice quando assassina os próprios filhos – apenas o caçula, Nínuas,
consegue escapar – porque eles exigem que ela lhes entregue o poder e o tesouro do reino, uma
vez que temiam a conduta extravagante da mãe.
Em razão de sua descompostura e falta de caráter, Semiramis teve um fim trágico. Devido à
disputa de poder entre a rainha assíria e Zoroaster, eles entram em guerra um contra o outro. Fugindo
O ESTUDO DE NARRATIVAS TRADICIONAIS ARMÊNIAS NO ENSINO MÉDIO
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de Zoroaster, Semiramis parte para a Armênia. Lá, ela é assassinada por Nínuas, que desejava
vingar a morte de seus irmãos. Assim, Nínuas tornou-se o soberano da Assíria e de Níneve.
Dessa forma, conclui-se a narrativa de Semiramis, a rainha assíria que provocou a morte
de Ara, o belo, e por sua descompostura, foi assassinada pelo filho caçula.
Sequência didática
Inicialmente, realizou-se um breve retrospecto histórico-político-social da Armênia, que
inseriu os alunos na atividade didática.
Em seguida, cada uma das lendas foi analisada em sala de aula, seguindo o roteiro
proposto por Antunes (2010), no qual se parte dos aspectos globais do texto, para,
posteriormente, abordar os aspectos da construção textual, finalizando com os aspectos da
adequação vocabular. Dessa forma, partiu-se dos elementos mais genéricos para os mais
particulares, evidenciando em cada etapa como a unidade textual é construída de acordo com o
efeito de sentido pretendido pelo autor.
Por meio desse estudo mais aprofundado, foi possível que os alunos compreendessem
como plano de expressão e plano do conteúdo interligam-se no texto literário para produzir a
significação das lendas. Assim, ficou mais explícito para os estudantes que todos os elementos
do enredo são entrelaçados para construir a verossimilhança da obra.
É importante enfatizar ainda que, após o estudo das três narrativas, foi feita uma retomada
das principais características de cada uma delas, enfatizando as relações intertextuais existentes
entre elas.
Para concluir a sequência didática, que durou aproximadamente três semanas (15 aulas),
foram lidas e comentadas em sala de aula notícias do contexto histórico atual da Armênia,
relacionando-o com o conteúdo geral das lendas e a questão do genocídio armênio.
Considerações finais
No estudo das três lendas – Lenda de Hayk, Lenda de Aram, Lenda de Ara e Semiramis
– referentes à origem do povo armênio verificou-se que houve significativo interesse dos alunos
no transcorrer das atividades.
Notou-se, a partir das análises desenvolvidas, que os estudantes compreenderam como os
elementos linguísticos articulam-se para a produção de sentido do texto que, nesse caso, era a
formação histórica do povo armênio.
Além disso, o estudo das lendas armênias também possibilitou aos alunos do ensino
médio ampliar o repertório cultural conhecendo alguns aspectos importantes da literatura
armênia.
Referências
ANTUNES, Irandé. Análise de textos – fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,
2010.
ARLEN, M. J. Passagem para Ararat. Tradução de Ana Teresa J. Reynaud. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1978.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 2001.
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LINHA MESTRA, N.30, P.89-93, SET.DEZ.2016 93
KEROUZIAN, Y. O. “Os documentos antigos da poesia armênia.” In: Separata da Revista
Língua e Literatura, n. 7. São Paulo, FFLCH/USP, 1978.
KHORENATSI, M. Historia dos Armênios. Tradução de Deize Crispim Pereira. São Paulo:
Humanitas, 2012.
SÃO PAULO. Currículo do Estado de São Paulo: Linguagens, códigos e suas tecnologias.
São Paulo: SEE, 2010.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Unidades de leitura. Campinas: Autores Associados, 2008.
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A OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS ESTADUAIS PAULISTAS: O DISCURSO
ESTUDANTIL CONTRA A REORGANIZAÇÃO AVALIADO A PARTIR DA
PRODUÇÃO DE UM CORDEL COLETIVO
Paulo Roxo Barja1
Cláudia Regina Lemes2
O mundo da consciência não é criação, mas sim
elaboração humana.
Este mundo não se construi na contemplação, mas no
trabalho.
Paulo Freire
A reorganização escolar proposta em São Paulo
Em 2015, escolas estaduais paulistas foram ocupadas por alunos em protesto contra a
reorganização escolar anunciada pelo governo: “[...] Alckmin publica nesta terça decreto que
oficializa reorganização escolar em SP” (ÚLTIMO SEGUNDO, 2015). A ocupação causou
descontentamento nas comunidades escolares, o que ocasionou a reação por parte dos
estudantes: “[...] Anúncio foi feito nesta segunda-feira (30), apesar de ocupação de 194 escolas;
em reunião, braço direito de secretário diz que governo paulista "está em meio a uma guerra"
com alunos” (ÚLTIMO SEGUNDO, 2015).
Além de outras reclamações sobre a proposta de reorganização das escolas, os estudantes
alegaram tratar-se de uma manobra política opressora, impositiva, que ocorreu sem levar em
conta as características democráticas que as decisões no âmbito de uma escola precisam ter.
Esta alegação encontra respaldo na notícia de 30 de novembro de 2015, que informava sobre a
publicação do decreto oficializando a reorganização e o fechamento de escolas.
O anúncio foi feito nesta segunda-feira (30) pela Secretaria Estadual da
Educação, apesar de a gestão Geraldo Alckmin (PSDB) ter prometido ampliar
os diálogos com a sociedade após a medida se tornar alvo de protestos de
estudantes, pais, professores e movimentos sociais.
Segundo o governo paulista, 194 escolas permanecem ocupadas por alunos
que são contrários à reorganização escolar, que afetará cerca de 311 mil
estudantes em todo o Estado (ÚLTIMO SEGUNDO, 2015)
A falta de diálogo reclamada pelos estudantes, trouxe especialistas para o âmbito da
discussão que alertaram para o peso simbólico do ato e para o sentimento de pertencimento dos
estudantes e comunidade escolar, conforme expressão de pesquisadora à Carta Capital (2015)3:
“A experiência da ocupação é muito forte no sentido de pertencimento. É manifestação de
insatisfação, e de que outros espaços de diálogo não estão sendo possíveis. Também chama a
atenção porque muitas vezes essas pautas estão escondidas no meio dos jornais. (CARTA
CAPITAL, 2015)4
1 UNIVAP, São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Cláudia Regina Lemes, São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ocupar-e-dizer-eu-ocupo-porque-tambem-e-meu> - trecho da entrevista
com a socióloga Maria Virgínia de Freitas. 4 <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ocupar-e-dizer-eu-ocupo-porque-tambem-e-meu> - trecho da entrevista
com a socióloga: Maria Virgínia de Freitas.
A OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS ESTADUAIS PAULISTAS: O DISCURSO ESTUDANTIL CONTRA A...
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Durante o embate entre governo estadual e estudantes, tanto a mídia tradicional, como as
instituições e entidades públicas acompanharam os acontecimentos, divulgando as pautas do
movimento:
Por essa o governador Geraldo Alkmin não esperava. Acostumado a passar
por cima dos interesses da juventude quando lhe interessa, o tucano está tendo
que enfrentar agora a força da Primavera Secundarista.
Desde a semana passada, pelo menos 39 escolas públicas da rede estadual —
no interior e na capital — já foram ocupadas por estudantes, pais e professores
contra a (des)organização escolar anunciada por Alckmin. (UBES, 2015)
Além das publicações em redes sociais e na mídia alternativa apoiando o movimento,
também artistas da música e outras modalidades da Arte manifestaram solidariedade à
movimentação dos secundaristas.
O movimento de ocupação
Em setembro de 2015, o governo do Estado de São Paulo anunciou um plano de
reorganização das escolas públicas da Rede Estadual: “estudantes, pais e professores afetados pelo
plano reagiram, alegando falta de diálogo, ausência de justificativas pedagógicas e solicitando a
suspensão da reorganização.” (MAZZA; SANTOS, 2015, p. 1). Esta postura governamental
provocou um movimento de estudantes que teve como lema: “Não fechem a minha escola.”
O referido movimento gerou comoção social pois, como relatam Mazza e Santos (2015),
era a primeira vez, neste século, que a grande mídia retratava a imagem dos estudantes de
periferia como efetivamente envolvidos numa luta pela qualidade de ensino. Isso quebrava o
velho paradigma, construído pelos próprios meios de comunicação e imaginário coletivo de
considerar os jovens da periferia como desinteressados pelos estudos e responsáveis pelo
sucateamento, violências e depredações das escolas públicas.
Os estudantes que permaneceram no interior das escolas fizeram campanhas pela
melhoria da educação e cuidaram da escola: “[...] Durante as ocupações, eles acabaram
realizando alguns trabalhos como pintura, limpeza e consertos de infraestrutura.” (MEON,
2015), ao mesmo tempo que buscavam atividades significativas para se ocuparem durante o
processo. Para isto contaram com professores solidários que doaram aulas sobre cidadania,
movimentos sociais, história e cultura, entre outros temas importantes para o momento e
demanda que estavam vivendo. Em alguns casos, estes colaboradores foram porta-vozes dos
estudantes que permaneceram nas unidades ocupadas, inclusive durante a noite. Foram doados
alimentos e os próprios estudantes providenciaram as refeições durante o período ocupado.
Também artistas da música, artes plásticas, literatura e profissionais liberais colaboraram
voluntariamente com palestras e oficinas.
Por ser um movimento que ocorreu em todo Estado de São Paulo, cada unidade escolar
ocupada organizou-se conforme condições específicas e cultura local. Em São José dos
Campos, foram duas escolas localizadas na Região Sul da cidade. Estas escolas permaneceram
ocupadas por vários dias sendo que na EE Moabe Cury o movimento iniciou-se no dia 23 de
novembro de 2015: “Cerca de 70 alunos ocupam nesta segunda-feira (23) a escola Moabe Cury,
no Conjunto Ema, Zona Sul de São José dos Campos, em protesto contra a reorganização
promovida pelo governo estadual” (G1, 2015) e chegou ao fim em 05 de dezembro do mesmo
ano: “O conselheiro tutelar Rogério Bastos foi chamado pelos estudantes para atestar que a
escola foi entregue sem depredação e danos ao patrimônio. Ele visitou as salas e acompanhou
A OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS ESTADUAIS PAULISTAS: O DISCURSO ESTUDANTIL CONTRA A...
LINHA MESTRA, N.30, P.94-98, SET.DEZ.2016 96
a entrega das chaves para o zelador da escola” (PEREIRA, 2015). E a EE Major Miguel foi
ocupada de 19 de novembro de 2015 a 06 de dezembro de 2015.
Assim como em várias escolas do Estado de São Paulo, também em São José dos Campos,
vários artistas e professores voluntariamente desenvolveram atividades diversas com os
estudantes. Entre as atividades, foi realizada uma oficina de literatura de cordel.
Oficinas de Cordel durante a Ocupação Escolar em São José dos Campos
As oficinas de cordel oferecidas aos estudantes das escolas ocupadas de São José dos
Campos cumpriram dois objetivos básicos: i) oferecer uma alternativa de atividade cultural; ii)
fornecer aos participantes as informações básicas para a expressão textual de suas
reivindicações, ampliando assim os canais expressivos do movimento.
As oficinas foram ministradas por professor universitário que desde 2008 desenvolve
trabalhos em escolas e instituições sociais adotando a leitura e produção (interativa) de cordel
num processo em que se preocupa tanto com a escrita da palavra, como com a reflexão sobre o
mundo, como sugeriu Paulo Freire, em seus diversos trabalhos: “A violência dos opressores
que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como
distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez
menos.” (FREIRE, 1975, p. 30-31). O referido autor acrescenta que esta luta somente tem
sentido quando o oprimido, ao buscar recuperar sua liberdade e humanidade, não reproduz a
opressão que lhe foi imposta, mas que seja restaurador da humanidade. A grande tarefa da
humanística e histórica dos oprimidos, segundo Freire (1975) é libertar a si e aos opressores. A
proposta da oficina de cordel era – como foi sugerido aos estudantes - a criação literária coletiva
de cordéis para debater aspectos da reorganização proposta e da própria ocupação, refletindo
sobre a humanidade e liberdade a partir da criação e da linguagem artística e literária.
O processo de produção foi bastante informal: dada a falta de acesso às salas de aula da
ocupação, as oficinas foram ministradas nos pátios escolares. Foi feita inicialmente uma
apresentação dialogada sobre a literatura de cordel, suas origens e características. Em seguida,
passava-se à leitura conjunta de trechos de cordel e, finalmente, passava-se à criação
propriamente dita, que era anotada em folhas de papel e/ou flipchart. Os textos produzidos
coletivamente foram reunidos posteriormente no folheto de cordel intitulado “A Poesia do
Cordel na Ocupação Escolar”, disponibilizado para leitura no blog Cordéis Joseenses (2015).
As escolas ocupadas também receberam, durante o processo de ocupação, doação de
cordéis para distribuição e/ou formação de cordelteca escolar.
A partir do folheto de cordel produzido, pode-se observar nos textos dos jovens a
materialidade das ideias de sujeitos históricos que foram porta-vozes de um amplo discurso
social. É este discurso que nos interessa analisar, sem a pretensão de esgotar a leitura de um
movimento que tem múltiplas vertentes e possibilidades de construção de conhecimentos e
sentidos. Os diversos argumentos e sentimentos dos estudantes contra a proposta de
reorganização escolar, que originalmente implicava no fechamento de escolas e em
transferências compulsórias de alunos, sem que se levasse em conta as demandas locais e a
necessidade de adequação entre horários de trabalho e estudo, foram explicitados no texto. O
folheto evidencia as discordâncias entre o discurso propagado pela mídia e os reais anseios
expressos pelos estudantes, permitindo refletir sobre o crescente papel participativo do jovem
no cenário educacional (e mesmo social) do Brasil contemporâneo:
“[...] seguimos nossa jornada/ precisamos de alegria/ e também muita união/
para nossa ocupação/ ter sucesso e serventia/ nós não queremos bagunça/
A OCUPAÇÃO DAS ESCOLAS ESTADUAIS PAULISTAS: O DISCURSO ESTUDANTIL CONTRA A...
LINHA MESTRA, N.30, P.94-98, SET.DEZ.2016 97
queremos dialogar/ não fechem nossas escolas/ precisamos estudar/
conservando a amizade/ junto da comunidade[...]” (CORDÉIS JOSEENSES,
2015).
Neste trecho, explicita-se a preocupação dos estudantes em deixar claro que não queriam
bagunça nem caridade. Estavam lá porque queriam ter voz ativa. Estudantes com seus discursos
simples, sim, porém repletos da personalidade de sujeitos que emergiram da indignação pela
falsa generosidade, como defendeu Freire (1975) que espera “[...] a mão estendida e trêmula
dos esfarrapados do mundo, dos ‘condenados da terra’” (p. 32).
O discurso dos estudantes, apesar de trazer algumas contradições que marcam o
indivíduo: “[...] nem totalmente livre nem totalmente assujeitado, movendo-se no espaço
discursivo do Um e do Outro” (BRANDÃO, 2014, p. 85), nos desafia na busca da compreensão
da fala não apenas centrada na língua, mas em recursos muitas vezes extralinguísticos. Estes
recursos estiveram presentes nas condições sócio-histórica do fenômeno da ocupação escolar:
nas roupas, nos comportamentos, nas idealizações presentes nas entrelinhas da fala e/ou na
própria palavra oral ou escrita: “[...] um rapaz e uma menina/ por aqui se conheceram/ gostaram
muito um do outro/ pintou clima e resolveram/o namora começou/ novo casal se formou/muitos
se surpreenderam [...]”(CORDÉIS JOSEENSE, 2015). Sendo a linguagem um instrumento de
suporte do pensamento sabemos da sua não neutralidade ou inocência. Outrossim é um lugar
privilegiados das manifestações ideológicas, de conflitos e confrontos ideológicos: “[...]
estamos organizados/ fazendo esta ocupação/ tem equipe de limpeza/ e de comunicação/
segurança e convidados/ também aula por que não? [...]” (CORDÉIS JOSEENSE, 2015).
Dos que podemos afirmar neste trabalho acerca dos registros referentes ao fenômeno da
ocupação escolar possíveis de análise não se quer conclusivo. São aproximações desafiadoras
de fatos ideológicos e sociais sobre a ação de estudantes de escolas públicas, filhos das camadas
sociais menos favorecidas deste país, que por longa data estiveram “invisíveis” e que emergem
na luta por um direito fundamental: educação. Este fato a priori não nos autoriza considerar que
a alienação foi combatida. É preciso ampla e profunda reflexão sobre a condição do oprimido,
as facetas do opressor e a inconclusão dos homens e da consciência humana.
Referências
FREIRE, P. A Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso: São Paulo: Editora Unicamp, 2014
IG. Alkmin publica nesta terça texto da reorganização escolar. Último Segundo – Educação,
São Paulo, 30, nov. 2015. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-11-
30/alckmin-publica-nesta-terca-decreto-que-oficializa-reorganizacao-escolar-em-sp>. Acesso
em: 28, ago. 2016.
PEREIRA, A. Estudantes desocupam escolas estaduais de São José dos Campos. Meon, São José
dos Campos, 05, dez. 2015. Disponível em: <http://www.meon.com.br/noticias/regiao/estudantes-
desocupam-escolas-estaduais-de-sao-jose-dos-campos>. Acesso em: 30. ago. 2016.
G1. Alunos ocupam segunda escola em São José em protesto contra Estado. Globo.com Vale do
Paraíba, Vale do Paraíba e região, 23, nov. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/vale-do-
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LINHA MESTRA, N.30, P.94-98, SET.DEZ.2016 98
paraiba-regiao/noticia/2015/11/alunos-ocupam-segunda-escola-em-sao-jose-em-protesto-contra-
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MATUOKA, M. "Ocupar é dizer 'eu ocupo porque também é meu'" Carta Capital, on line,
25, maio 2016. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ocupar-e-dizer-eu-
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MAZZA, D.; SANTOS, M. B. "Notas sobre o movimento de ocupação em São Paulo”. Brasil
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UBES - União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. " UBES convoca “Dia Nacional de
Solidariedade à Ocupação de Escolas em São Paulo”, União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas, Brasil, 17, nov. 2015. Disponível em: <http://ubes.org.br/2015/ubes-convoca-dia-
nacional-de-solidariedade-a-ocupacao-de-escolas-em-sao-paulo/>. Acesso em: 28, ago. 2016.
ALMEIDA, C. Doe uma aula em uma das escolas ocupadas em São Paulo”, Super Abril,
Brasil, 19 nov. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cultura/doe-uma-aula-em-uma-
das-escolas-ocupadas-de-sao-paulo>. Acesso em: 28, ago. 2016.
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O DISCURSO JOVEM: CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA
LITERATURA DE CORDEL
Paulo Roxo Barja1
Cláudia Regina Lemes2
Cordelista vai à escola
debater informação,
questionar, levar ideias,
promover a criação
coletiva de poesia
- cordel, rap, até canção.
Cada encontro deixa a alma
mais feliz e energizada;
todos juntos somos fortes,
nossa voz é ampliada.
O cordel pede respeito
ao discurso da moçada:
Peleja por Igualdade,
Batalha contra o Machismo,
Afeto por minorias,
Repúdio a todo Racismo,
Justiça e Respeito sempre,
Amor e mais: ativismo!
Paulo Roxo Barja
Introdução: Cordel e Educação
Ainda hoje, ouve-se frequentemente – inclusive no meio acadêmico – a afirmação de que o
Brasil é um país sem tradição de leitura. Independentemente da camada social, é comum que se
aponte, como formas artísticas predominantes em nosso país, a música e a dança, que na maior
parte das vezes assumem aspecto festivo (como no carnaval), devocional (procissões) ou uma fusão
destes. Entretanto, desde sua chegada ao Brasil, ainda no período colonial, a literatura de cordel
encontrou terreno fértil e aqui fincou raízes, de tal modo que os folhetos hoje representam, para
muitos, uma das mais puras formas de expressão da cultura popular brasileira.
Vinculado à tradição oral (frequentemente apresentado na forma cantada, por exemplo), o
cordel trata dos mais diversos assuntos, sendo acessível a pessoas de todas as camadas sociais: do
estrato considerado culto (que geralmente possui frequentes oportunidades de contato com a
diversidade cultural) até a camada mais popular, que tem contato mais direto com esse tipo de
literatura rica em narrativas, forma privilegiada de comunicação e transmissão de conhecimento.
Embora se considere os anos 50/60 do século XX como a época de ouro do cordel
brasileiro, a verdade é que os folhetos seguem até hoje mobilizando autores e leitores, tendo
sido inclusive impulsionados pelo aumento do acesso à internet em nosso país.
Progressivamente, a literatura de cordel encontrou seu caminho junto à Educação, tornando-se
não apenas objeto de estudo nas universidades, como também recurso didático nos diferentes
1 Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP, São José dos Campos, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: [email protected].
O DISCURSO JOVEM: CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL
LINHA MESTRA, N.30, P.99-104, SET.DEZ.2016 100
níveis de ensino (MARINHO; PINHEIRO, 2012). De certo modo, pode-se afirmar que isso
representa apenas a oficialização de algo que informalmente já ocorria: principalmente no
sertão nordestino, o cordel há décadas já assumia papel importante na alfabetização de crianças
e jovens, como exemplifica o ator José Dumont, em relato a Henrique (2005).
No final do governo Lula, num reconhecimento à importância dos folhetos na educação,
o primeiro Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel apresentava a categoria “formação”,
voltada a iniciativas vinculadas à difusão desta literatura em ambiente escolar, com a formação
de agentes multiplicadores (BRASIL, 2010). Isso permite afirmar que o cordel já se encontra
plenamente reconhecido como recurso pedagógico nas redes de ensino do Brasil, como o
provam iniciativas como as de Arievaldo Viana, com seu projeto “Acorda Cordel na Sala de
Aula”), e Francisco Diniz (2015) com o projeto “Cordel na Escola”.
No entanto, há outro aspecto que ainda se encontra em desenvolvimento (e requer
incentivo): trata-se do estabelecimento da literatura de cordel como recurso de expressão para
os jovens. Este foi o objetivo principal do projeto “Narração, Foto e Poesia”, desenvolvido em
São José dos Campos, com apoio do Fundo Municipal de Cultura. O presente artigo analisa os
textos de cordel criados a partir das oficinas literárias de tema livre realizadas no âmbito deste
projeto.
Projeto: implantação e metodologia
No período 2015/2016, o Fundo Municipal de Cultura de São José dos Campos foi posto
em prática, apoiando a execução de cerca de 20 projetos culturais. Um dos projetos selecionados
para implantação, “Narração, Foto e Poesia”, envolveu o oferecimento de oficinas de cordel a
alunos de escolas públicas joseenses, visando propiciar o contato direto destes com esta forma
literária, bem como capacitar os alunos ao exercício da expressão através da criação coletiva de
textos no formato da poesia de cordel.
As atividades ocorreram em oito escolas de diferentes regiões da cidade. Em todas as oficinas,
partiu-se do conceito enunciado por Boal (2005) que define os participantes como “espectaTores”,
ou seja, um público que acompanha e ao mesmo tempo participa da atividade criativa.
As oficinas de cordel foram divididas nas seguintes etapas:
1. Apresentação sobre literatura de cordel – utilizou (sempre que possível) projeção em telão
(com auxílio de Datashow), buscando empregar linguagem simples e com abertura para
questões a qualquer momento. Foi apresentada a contextualização histórica desta forma
literária, além de exemplos criativos;
2. Leitura de Cordéis Joseenses – apresentação de cordéis selecionados com auxílio dos
próprios participantes;
3. Sessões de criação coletiva – criação coletiva de cordéis em sala de aula, com tema definido
pelos próprios estudantes. Foi dada ênfase à composição em sextilhas, formato tradicional
e mais simples que as demais métricas do cordel; a leveza da sextilha fazia desta a forma
ideal para incentivar, inicialmente, a leitura e interpretação entre crianças e adolescentes –
e, num segundo momento, a criação, objetivo principal das oficinas. Como procedimento
geral, os versos criados pelos alunos eram anotados em quadro branco à vista de todos, que
faziam sugestões e correções até atingir um formato de consenso (posteriormente revisado
pelo professor-cordelista).
A partir das oficinas, foram assim desenvolvidos textos em sextilhas de cordel, depois
disponibilizados em versão impressa (agrupados em folhetos) e também pela internet (no blog
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LINHA MESTRA, N.30, P.99-104, SET.DEZ.2016 101
Cordéis Joseenses). As escolas participantes receberam a doação de exemplares dos cordéis
coletivos publicados ao longo do projeto.
Resultados e discussão
Na criação coletiva, o maior desafio era vencer uma certa timidez inicial por parte dos
alunos, que podemos atribuir à insegurança natural em se assumir como sujeito criativo numa
forma artística ainda não familiar para eles. Mesmo assim, em todos os encontros realizados foi
possível compor sextilhas coletivamente. Nas oficinas, a criação coletiva partiu de elementos
que nem sempre estão presentes no cotidiano escolar. Foram permitidos e incentivados, como
partes essenciais do processo de construção coletiva:
1. Diálogo aberto – as conversas espontâneas entre os estudantes serviram como ponto de
partida para a interação e posterior atividade criativa. A partir da oralidade é que foram
produzidos os textos de cordéis depois disponibilizados em versão impressa (para todas as
escolas participantes) e na internet, via blog e YouTube, aliando-se assim cultura tradicional
e recursos tecnológicos.
2. Definição democrática dos temas – entre os estudantes, para definição dos temas a se tratar.
Deste modo, a conversa informal com os alunos servia para levantar temas/assuntos
relevantes para eles, a explorar na criação coletiva das sextilhas, garantindo assim que a
produção fosse significativa como veículo de expressão dos estudantes, mais que mero
exercício em sala de aula.
A figura 1(a/b) apresenta dois exemplos de textos criados pelos estudantes, mostrando o
quadro branco da sala de aula após a sessão coletiva de criação.
Figura 01 (a e b): Dois exemplos de produção coletiva de cordel dentro do projeto “Narração, Foto e Poesia”.
a
b
O DISCURSO JOVEM: CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL
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Experiências prévias já apontavam para o fato de que o público jovem em geral responde
positivamente ao convite à criação de versos de cordel (BARJA, 2014; BARJA; LEMES, 2014),
o que se confirmou durante o projeto. Foram produzidos textos abordando os mais diversos
assuntos: desde temas como amor e culinária, até textos mais diretamente políticos,
questionando machismo e racismo.
Aqui, é importante observar que mesmo os temas considerados “mais leves” são
reveladores de uma visão de mundo. Um dos poemas questiona, por exemplo, a franquia
televisiva MasterChef, argumentando que “a comida lá é boa / mas em casa é mequetrefe”
(“Oficina de Cordel”, primeiro folheto coletivo publicado dentro do projeto).
O interesse demonstrado por alunos tanto do Ciclo Fundamental quanto do Ensino Médio na
narração (inclusive em cordel) de histórias de sustos e assombração levou à produção de um “Cordel
do Medo”, que apresenta como principal história uma narrativa intitulada “Strogonoff do Medo” e
que fala sobre crimes (ficcionais) cometidos contra alunos (CORDÉIS JOSEENSES, 2015a).
Quanto ao amor, a história criada por alunos da Zona Sul de São José dos Campos, na
periferia da cidade, é exemplar: narra o romance entre um cantador de rua e a filha de um prefeito
da região. O rapaz chega a ser interpelado por seguranças da moça e sofre para vencer a barreira
social e ser enfim aceito pelo pai da noiva. Também revelador é o final do cordel, que anuncia: o
rapaz pode vir a ser o sucessor do prefeito numa próxima eleição (CORDÉIS JOSEENSES, 2015b).
Apesar das narrações efetuadas na linguagem do cordel, predominaram no projeto – por
opção dos próprios alunos – os textos não narrativos, ou seja, aqueles que cumpriram
essencialmente o papel de dissertação em versos. Uma leitura atenta desses textos permitiu a
identificação de elementos ideológicos por meio dos temas predominantes e que podem ser
sumarizados, de modo agrupado, como segue:
1. críticas ao machismo;
2. juízo de valor relacionado com a conduta sexual e o gênero;
3. denúncias contra preconceito e bullying.
Quanto aos primeiros dois tópicos, é interessante observar que são aspectos que
coexistem em diversos trechos da produção coletiva, como vemos a seguir:
Até hoje ainda se escuta:
“Mulher tem que cozinhar!“
Marido chega cansado
e diz: “Prepare o jantar!”
[...]
O machismo vem de casa
e aparece na quebrada;
a mulher de roupa curta
é bastante assediada
e até por outras mulheres
fica sendo mal falada
[...]
Tem muito homem folgado:
diz que é dono do pedaço.
Na hora do vamos ver,
demonstra que é um fracasso.
(“A Peleja das Mulheres Contra o Monstro do Machismo”, produção coletiva,
CORDEIS JOSEENSES, 2015c)
O DISCURSO JOVEM: CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO ATRAVÉS DA LITERATURA DE CORDEL
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Aqui, podemos destacar alguns pontos. Embora o texto dos estudantes revele
essencialmente críticas à postura do homem machista (que já chega em casa dando ordens), há
também menção explícita ao fato de que a “mulher de roupa curta” sofre sanções de outras
mulheres. Esta colocação endossa o entendimento de que o machismo, mais do que uma questão
de gênero, é uma questão cultural.
Também chama atenção o fato de que, ao lado de um discurso consciente contra o
machismo, o texto dos estudantes apresenta, por outro lado, afirmações que indicam uma
avaliação de homens e mulheres segundo quesitos sexuais – o “fracasso”, no contexto da
produção dos alunos, sugere desempenho sexual insatisfatório.
Passando ao terceiro tópico mencionado, o “Cordel-Rap do Bullying”, produzido
coletivamente no âmbito do projeto, apresenta um texto forte sobre a violência e opressão
expressos através de atitudes de bullying, enfatizando as ofensas verbais, enumeradas no
próprio texto: “gordo”, “retardado”, “vesgo”, “viadinho” e “vadia que não tem jeito”. O poema
declara que o bullying “é, na verdade, um tipo de violência” e conclui pedindo uma mudança
de atitude por parte das pessoas. Percebe-se aqui uma certa superposição com pontos de vista
expressos nos trechos anteriormente comentados, em relação ao machismo; afinal, a “vadia que
não tem jeito” talvez seja a “mulher de roupa curta” citada no outro texto. Como se trata de
textos produzidos em datas diferentes, por alunos diferentes, eles se complementam para
mostrar a relevância do tema, sinalizando para possíveis debates a se fazer no próprio ambiente
escolar. Também a questão da orientação sexual aparece, na ofensa “viadinho”, que é criticada
pelos alunos. No entanto, a simples presença do termo no cordel sugere que se trata de
vocabulário comum entre os próprios alunos (a ponto de haver o registro da queixa no texto).
Lembramos aqui o discurso presente em outro texto coletivo do mesmo folheto de cordel, que
diz “Uma coisa essencial / é o respeito à diferença” (CORDEIS JOSEENSES, 2015d).
Outros textos produzidos apresentam o discurso dos jovens em relação ao preconceito racial.
Este discurso é expresso de modo bastante direto no “Cordel-Rap do Racismo e da Desigualdade”:
Vamos falar de racismo,
que é forma de preconceito.
Muitos julgam cor de pele
e não têm nenhum respeito:
[...]
Todo mundo acha legal
o Pelé e o Obama
mas pro negro sem dinheiro
o chão firme vira lama
(“Cordel-Rap do Racismo e da Desigualdade”, produção coletiva, CORDEIS
JOSEENSES, 2015c)
É interessante observar que os alunos demonstram aqui a percepção de que o preconceito
não é apenas em relação à cor, e sim em relação ao status social. Nesse sentido, é exemplar o
trecho “Todo mundo acha legal / o Pelé e o Obama / mas pro negro sem dinheiro / o chão firme
vira lama”. Ressaltamos que todas as produções efetivadas ao longo do projeto foram
disponibilizadas a todas as escolas participantes, de certo modo permitindo a realização do
debate referente a esta questão (e outras) em contexto que extrapola os limites físicos da escola
em que o texto foi produzido. Assim, se a metodologia adotada permitiu aproximação com os
estudantes, por outro lado constata-se que a produção cordelística conjunta pode servir,
também, como ponto de partida para debates mais amplos.
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Conclusão
A Cultura Popular pode ser ponto de partida para várias alternativas de atividades
pedagógicas tanto no registro da educação formal quanto na educação informal. A análise dos
textos de cordel coletivamente produzidos permitiu identificar elementos ideológicos a partir
dos temas e termos predominantes nos textos; assim, foi possível conhecer a visão dos alunos
sobre o mundo atual, seus anseios, medos e mesmo suas contradições. Por fim, o
desenvolvimento das atividades vinculadas à criação coletiva de cordel mostra ser essa uma
opção significativa para a expressão em sentido que ultrapassa o fazer artístico: escrito, falado
ou cantado, o cordel pode dar voz aos estudantes.
Referências
BARJA, P. R. Cordel e a Poesia do Cotidiano: um jeito de ler os leitores. Linha Mestra (ALB),
v. 24, p. 2755-2760, 2014.
BOAL, A. Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005.
BRASIL, 2010. Prêmio Mais Cultura de Literatura de Cordel divulga projetos classificados.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cultura/2010/12/premio-mais-cultura-de-literatura-
de-cordel-divulga-projetos-classificados>. Acesso em: 28, ago. 2016.
CORDÉIS JOSEENSES, 2015a. CJ 61 – Cordel do Medo. Disponível em:
<http://cordeisjoseenses.blogspot.com.br/2015/11/cj-61-cordel-do-medo.html>. Acesso em:
30, ago. 2016.
CORDÉIS JOSEENSES, 2015b. CJ 63 – Cordel do Amor em Sextilhas. Disponível em:
<http://cordeisjoseenses.blogspot.com.br/2015/12/cj-63-cordel-do-amor-em-sextilhas.html>.
Acesso em: 30, ago. 2016.
CORDÉIS JOSEENSES, 2015c. CJ 64 – O Cordel Pede Respeito. Disponível em:
<http://cordeisjoseenses.blogspot.com.br/2015/12/cj-64-o-cordel-pede-respeito-ao.html>.
Acesso em: 30, ago. 2016.
CORDÉIS JOSEENSES, 2015d. CJ 59 – Oficina de Cordel. Disponível em:
<http://cordeisjoseenses.blogspot.com.br/2015/08/cj-59-oficina-de-cordel.html>. Acesso em:
30, ago. 2016.
DINIZ, F. 2015. Projeto Cordel na Escola. Disponível em:
<http://www.projetocordel.com.br/projetocordelnaescola.htm>. Acesso em: 28, ago. 2016.
HENRIQUE, K. José Dumont: do cordel às telas. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
LEMES, C. R.; BARJA, P. R. Cordel na Escola: leitura, oralidade e construção coletiva. Linha
Mestra (ALB), v. 24, p. 2761-2764, 2014.
MARINHO, A. C.; PINHEIRO, H. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2012.
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PRÁTICAS DE ALFABETIZADORAS EM FORMAÇÃO PELO PNAIC:
USO DAS OBRAS COMPLEMENTARES E/OU ALFABETIZAÇÃO NA
IDADE CERTA
Regiane Pradela da Silva Bastos1
Cancionila Janzkovski Cardoso2
[...] a literatura torna o mundo e a vida
compreensíveis,
porque revela outros mundos e outras vidas [...]
Magda Soares
A leitura literária corresponde ao interesse da maioria das crianças, possibilitando não só uma
alternativa de lazer e prazer, mas também por seu valor formativo. Os livros infantis são recursos
didáticos que podem favorecer a aprendizagem da leitura, a fluência e a produção textual, a
articulação entre o letramento e a alfabetização iniciais e a reflexão sobre o sistema de escrita
alfabética, além de possibilitar descobertas por meio de situações prazerosas de leitura.
Com objetivo de auxiliar no processo de alfabetização e letramento, o Ministério da Educação
(MEC) distribuiu acervos de livros para as salas do ciclo de alfabetização por meio do Programa
Nacional do livro Didático (PLND). Inicialmente foram enviados para as escolas públicas os
acervos com gêneros textuais variados, intitulado “Obras Complementares”, em 2010 e 2013.
Depois, com início do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), a partir de 2013,
foram distribuídos acervos de literatura infantil intitulado “Alfabetização na Idade Certa”.
O PNAIC foi instituído em 2012, com a finalidade principal de assegurar que todas as
crianças estejam alfabetizadas plenamente até os oito anos de idade, ao final do terceiro ano do
Ensino Fundamental. É uma política pública nacional de formação continuada de alfabetizadores e
um dos eixos de atuação do Programa é representado pelos materiais didáticos, obras literárias e
obras de apoio pedagógico, disponibilizados pelo MEC às salas de alfabetização das escolas
públicas, como mais um suporte ao trabalho pedagógico do professor alfabetizador.
Sendo assim, durante os encontros de formação, várias obras foram apresentadas aos
alfabetizadores, principalmente as Obras Complementares que já haviam sido distribuídas e
estavam nos cadernos de formação por meio de relatos de experiências e sugestões de
estratégias pedagógicas para utilizá-las. Além disso, os Orientadores de Estudo iniciavam todos
os encontros de formação com uma leitura deleite utilizando muitos desses livros.
Contextualizando a pesquisa
Diante desse contexto, iniciou-se uma pesquisa com objetivo de analisar o diálogo entre
as práticas pedagógicas de três professoras dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, de
três escolas estaduais de Rondonópolis/MT, e a formação do PNAIC na área de Linguagem,
com foco na utilização dos acervos de livros Obras Complementares e/ou Alfabetização na
Idade Certa.
Portanto, este estudo é parte da dissertação de mestrado que se vincula ao Grupo de
Pesquisa Alfabetização e Letramento Escolar (ALFALE), da UFMT/CUR/PPGEdu. A
investigação qualitativa com abordagem sócio-histórica utilizou como instrumentos de coleta
1 Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Federal de Mato Grosso. Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected].
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LINHA MESTRA, N.30, P.105-109, SET.DEZ.2016 106
de dados o questionário, análise documental, duas entrevistas com cada colaboradora, e quinze
dias de observação em cada sala de aula, em 2014 e 2015, totalizando 180 horas de observações.
À luz da teoria bakhtiniana, fundamentada no conceito de dialogismo para análise da empiria,
a pesquisa procurou responder como são as práticas pedagógicas de professoras do ciclo de
alfabetização, que participaram da formação do PNAIC na área de Linguagem, em relação à
utilização dos acervos Obras Complementares e/ou Alfabetização na Idade Certa.
A leitura como processo dialógico
Para o PNAIC, a leitura é definida como a “relação dialética entre interlocutores, que
pressupõe a interação entre texto e leitor e não um simples ato mecânico de decifração de signos
gráficos” (CRUZ; MANZONI; SILVA, 2012, p. 10). A leitura vai além da decifração de
códigos gráficos, pois a interação entre texto e leitor está carregada de ideologia, visto que todo
signo é ideológico e remete a algo fora de si mesmo, sendo um fragmento material da realidade
(BAKHTIN, 2006).
Sendo assim, o sentido do texto e a significação das palavras constroem-se na produção
e interpretação de textos, de acordo com a relação entre os sujeitos, ou seja, na relação dialógica
entre os interlocutores.
Nessa perspectiva, ao longo dos encontros de formação do Pacto foram trabalhadas
algumas estratégias para incentivar a interação dos alunos com os livros infantis, entre elas a
leitura deleite e a criação do cantinho de leitura nas salas de alfabetização.
Leitura deleite, de acordo com os documentos do PNAIC,
[...] é sempre de prazer e reflexão sobre o que é lido, sem se preocupar com a
questão formal da leitura. É ler para se divertir, sentir prazer, para refletir sobre
a vida. Tal prática, no entanto, não exclui as situações em que se conversa
sobre os textos, pois esse momento também é de prazer, além de ser de
ampliação de saberes. (BRASIL, 2012, p. 29).
A leitura deleite é uma estratégia pedagógica, no qual os alunos leem sozinhos ou o
professor lê para eles. É imprescindível garantir às crianças o ato de ler enquanto direito, assim
como é importante o professor ler para seus alunos, para que eles “apreendam aspectos
peculiares da modalidade escrita, como a estrutura sintática, o vocabulário, os elos coesivos”
(MAGALHÃES et al, 2012, p. 9). Todavia, é indispensável que se proporcione não só a prática
da escuta, mas também a experimentação, o contato com os livros, a vivência literária, a
apreciação estética, que, muitas vezes, não precisa ser explicada, mas vivida.
Nessa perspectiva, o cantinho de leitura pode promover este contato das crianças com o
material de leitura, pois é um espaço planejado dentro da sala de aula com a intenção de
promover a prática de leitura aos alunos, que pode ser composto por variados materiais de
leitura: livros literários, obras complementares, revistas, gibis, jornais, dicionários e livros
paradidáticos. Ao longo dos encontros do PNAIC, foi incentivada a criação do cantinho de
leitura nas salas de alfabetização.
Uso das Obras Complementares e/ou Alfabetização na Idade Certa
No primeiro ano, havia em sala de aula o acervo Obras Complementares (OC), no
terceiro, o acervo Alfabetização na Idade Certa (AIC) e no segundo ano as duas coleções.
Portanto, as três turmas tinham as caixas de livros com pelo menos um dos acervos no armário,
sendo possível o contato das crianças com os diversos gêneros textuais.
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As três alfabetizadoras utilizaram obras de um dos acervos em suas práticas pedagógicas,
porém com objetivos diferentes e com frequências variadas, como demonstrado no Quadro 1.
AU
LA
OB
SE
RV
AD
A
1º ANO 2º ANO 3º ANO
1ª Livros Diversos (OC) - Livros diversos (AIC)
2ª “A ciranda das vogais”
Zoé Rios (OC) - -
8ª - Livros diversos
(OC, AIC) -
9º “Mapa de sonhos”
Uri Shulevitz (OC) - -
11ª “Beleléu e os números” - Patrício
Dugnani (OC)
Livros diversos
(OC, AIC) -
12ª
Livros diversos (OC)
- -
“Dez casas e um poste que Pedro
fez” – Hermes Bernardi Jr. (AIC)
“Beleléu e os números” - Patrício
Dugnani (OC)
14ª “Gente de muitos anos” – Malô
Carvalho (OC)
Livros diversos
(OC, AIC)
“A melhor família do mundo” -
Susane López
“O ouriço” - Gustavo Roldan
(AIC)
Quadro 1: Livros dos acervos Obras Complementares e Alfabetização na Idade Certa utilizados pelas
alfabetizadoras. Quadro elaborado com base nos dados coletados nas observações.
A professora do primeiro ano se valeu desse material para realização da leitura deleite.
Apesar de ter em sua sala apenas os livros das Obras Complementares, ela trouxe também livros
do acervo Alfabetização na Idade Certa para ler para os alunos. A alfabetizadora lia para seus
alunos praticamente todos os dias e algumas vezes também proporcionava momentos em que
os seus alunos liam sozinhos. Para isso ela criou o cantinho de leitura no fundo da sala, onde
deixava a caixa de livros e os alunos pegavam e liam livremente. Nesses momentos de leitura
as crianças interagiam com os livros, dialogavam com as outras crianças mostrando as
ilustrações e atribuindo sentidos.
Essa professora, ao trabalhar a leitura deleite, tinha dois objetivos: desenvolver na criança
o hábito da leitura, a formação do leitor, mas também trabalhar a interpretação por meio da
oralidade, como relatou quando questionada sobre os objetivos ao trabalhar com as Obras
Complementares.
O hábito da leitura mesmo, e também porque através do livro você trabalha com
eles a interpretação, [...] você vai conversando com eles, você está instigando eles,
estão também prestando atenção no que a história tá dizendo, né, então, assim, o
PRÁTICAS DE ALFABETIZADORAS EM FORMAÇÃO PELO PNAIC: USO DAS OBRAS...
LINHA MESTRA, N.30, P.105-109, SET.DEZ.2016 108
livro, ele não tem só a função de trazer leitores, né, mas sim também de aprender
interpretar oralmente, desenvolver a fala, tem muitas coisas que o livro nos
proporciona, [...]. (Professora do 1º ano, 2ª Entrevista, junho/2015)
A leitura deleite esteve muito presente na prática dessa professora, mostrando que ela se
identificou com essa estratégia e a utilizou, praticamente, todos os dias, após ter feito o Pacto,
ou seja, já fazia parte de sua rotina. Além disso, no primeiro ano as crianças estão no início da
alfabetização e a leitura em voz alta realizada pela professora é um aspecto que deve ser muito
trabalhado, pois, ao escutar a história, as crianças desenvolvem conhecimentos sobre a escrita
e estratégias de leitura que servirão nas situações de leitura autônoma. Nos momentos de leitura
deleite, a literatura também promove encontros do leitor com diversos saberes, como ressaltado
por Smolka (2012, p. 111),
[...] a literatura, como discurso escrito, revela, registra e trabalha formas e
normas do discurso social; ao mesmo tempo, instaura e amplia o espaço
interdiscursivo, na medida em que inclui outros interlocutores – de outros
lugares, de outros tempos – criando novas condições e novas possibilidades
de trocas de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como
protagonistas no diálogo que estabelece.
A professora do segundo ano, além da leitura deleite realizada pelos alunos, em que vários
livros foram utilizados ao mesmo tempo, utilizando o cantinho de leitura algumas vezes,
também utilizou os acervos para desencadear a produção de textos. Em uma das aulas ela pediu
para que as crianças escrevessem o resumo do livro que leram e em outra recontassem de
maneira diferente a história. A alfabetizadora também usou as obras para os alunos lerem em
voz alta sobre um palanquinho de madeira, no qual orientou os alunos a se posicionarem, se
apresentarem e expor o livro, trabalhando assim a oralidade com eles.
Ao ser questionada sobre os acervos, a professora respondeu:
O acervo literário é bom, os livrinhos a gente usa bastante. Agora já está na
hora de trocar, porque as crianças são assim, a gente põe a caixinha lá no
fundo, eles vão lendo, eles exploram, faz o palanquinho de leitura, eu coloco
um para escutar a leitura do outro, porque às vezes não dá tempo de eu escutar
de todo mundo. Tem os momentos de leitura lá na frente, mas a caixinha, um
bimestre eles já leram quase todos, aí a gente troca, às vezes a gente fica um
semestre com a caixinha. Eu tenho duas caixinhas, eu vou oferecendo de novo.
(Professora do 2º ano, 1ª Entrevista, novembro/2014)
Por meio da fala da professora, percebemos que ela valoriza o material e trabalha bastante
com ele em suas aulas.
Já a professora do terceiro ano utilizou os livros que estavam em sua sala de aula
(Alfabetização na Idade Certa) para leitura deleite, mas também para observar a fluência da
leitura. Segundo Ribeiro (2014, p. 117), “Na educação, é importante buscar o desenvolvimento
do leitor fluente e capaz de demonstrar senso crítico, desde os anos iniciais de escolarização”.
Embora o acervo tenha sido pouco utilizado pela professora durante as observações, ela
relatou que o usava em suas aulas: “[...] eu utilizo ele, por exemplo, terminou a atividade deles,
aí ele vai lá e escolhe o livro”. Além da leitura deleite, ela se valia das obras para que os alunos
produzissem textos por meio do reconto: “[...] ele vai ler aquele livro, daquele livro ele vai me
produzir algo em cima dele, [...] o que ele tá aprendendo com aquele livro, tá falando de quê?”
(Professora do 3º ano, 1ª Entrevista, abril/2015).
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LINHA MESTRA, N.30, P.105-109, SET.DEZ.2016 109
Dessa maneira, foi possível perceber que a alfabetizadora trabalhou bastante os eixos de
leitura e produção de textos com os alunos.
Considerações finais
A investigação revelou que as alfabetizadoras apontaram mudanças em suas práticas
depois da formação do PNAIC, pois se apropriaram de estratégias pedagógicas sugeridas pelo
Programa, principalmente a leitura deleite, como pode ser constatada em suas práticas
pedagógicas.
No período em que foram observadas suas aulas, as professoras proporcionaram a
interação das crianças com os livros dos acervos do PNLD, enquanto processo dialógico, com
frequências variadas e com diferentes objetivos, por meio da leitura deleite, como mote para
produção de texto e para trabalhar a fluência.
Portanto, podemos considerar que os acervos alcançaram os seus objetivos que é de
auxiliar no processo de alfabetização e letramento.
Referências
BAKHTIN. Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BASTOS, Regiane Pradela da Silva. Práticas de alfabetizadoras em formação pelo PNAIC:
estudo do uso dos acervos de leitura. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de
Ciências Humanas e Sociais. Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Federal
de Mato Grosso. Rondonópolis, 2016.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Formação de Professores
no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Brasília: MEC/SEB, 2012.
CRUZ, Magna do Carmo S.; MANZONI, Rosa Maria; SILVA, Adriana M. P. da. Planejamento
no ciclo de alfabetização: objetivos e estratégias para o ensino relativo ao componente
curricular – Língua Portuguesa. In: BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa: a organização do planejamento e da rotina no ciclo de alfabetização na perspectiva do
letramento: ano 2: unidade 2. Brasília: MEC/SEB. p. 6-15. 2012.
MAGALHÃES, Luciane et al. Planejamento do ensino: alfabetização e ensino/aprendizagem
do componente curricular – Língua Portuguesa. In: BRASIL. Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa: planejamento escolar: alfabetização e ensino da língua
portuguesa: ano 1: unidade 2. Brasília: MEC/SEB, p. 6-16, 2012.
RIBEIRO, Ana Elisa. Fluência de leitura. In: Glossário Ceale: termos de Alfabetização, leitura e
escrita para educadores/ Isabel Cristina A. da S. Frade, Maria da Graça C. Val, Maria das Graças
de C. Bregunci (Org.). Belo Horizonte: UFMG/ Faculdade de Educação, p. 117-118. 2014.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como
processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
LINHA MESTRA, N.30, P.110-114, SET.DEZ.2016 110
PRÁTICAS DE LEITURA NO CONTEXTO DO PNAIC: CANTINHO DE
LEITURA E LEITURA DELEITE
Regiane Pradela da Silva Bastos1
Claudia Leite Brandão2
Ler é, [...],
não só uma ponte para a consciência,
mas também um modo de existir
no qual o indivíduo compreende e interpreta
a expressão registrada pela escrita
e passa a compreender-se no mundo.
Ezequiel Theodoro da Silva
A literatura infantil é imprescindível na alfabetização, pois como afirma Smolka (2012),
ela é uma forma essencialmente lúdica de linguagem, que constitui importante elemento
mediador no processo de aquisição da escrita de uma maneira prazerosa.
Devido à importância da literatura na alfabetização, o Pacto Nacional de Alfabetização
na Idade Certa (PNAIC) nos encontros de formação dos professores alfabetizadores promoveu
o contato desses profissionais com obras infantis e literárias, utilizando o cantinho de leitura e
a leitura deleite como estratégias para o incentivo e desenvolvimento da leitura em sala de aula.
Cabe ressaltar, que o PNAIC incentivou que os participantes da formação incluíssem essas
práticas no planejamento de suas rotinas pedagógicas.
Diante disso, este estudo partiu da seguinte indagação: O que as alfabetizadoras relatam
como prática de leitura desenvolvida em sala de aula diante da sua participação nos encontros
de formação do PNAIC?
O PNAIC é uma política pública de formação continuada para professores
alfabetizadores, que foi instituído em 2012, pelo Ministério da Educação (MEC), com a
finalidade de assegurar o direito de alfabetização a todas as crianças até os oito anos de idade,
isto é, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental.
Para Souza, Silva e Ariosi (2016), entre os objetivos da formação e a dinâmica dos
encontros do PNAIC estavam o conhecimento dos materiais pedagógicos distribuídos pelo
MEC por meio do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e do Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), o planejamento da alfabetização a partir de uma rotina com a
perspectiva do letramento, e, a compreensão da importância da literatura no Ensino
Fundamental.
Nessa perspectiva, o Programa impulsionou o uso de diversos gêneros textuais para
auxiliar no processo de alfabetização e letramento, sugerindo a implantação de algumas
estratégias de ensino para o desenvolvimento da leitura em sala de aula, como:
Leitura Deleite: para o PNAIC é quando a pessoa lê para si ou para alguém para se divertir,
sentir prazer. Esses momentos são sempre de prazer e reflexão sobre o que é lido, sem a
preocupação com a questão formal da leitura. Porém, podem ser incluídas situações em que
se conversa sobre os textos, pois também são momentos prazerosos, além de ampliação de
saberes (BRASIL, 2012).
1 Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso. Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected].
PRÁTICAS DE LEITURA NO CONTEXTO DO PNAIC: CANTINHO DE LEITURA E LEITURA DELEITE
LINHA MESTRA, N.30, P.110-114, SET.DEZ.2016 111
Consideramos que a leitura deleite nos encontros de formação contribuiu para a promoção
do contato com os textos literários e/ou infantis aos alunos, e principalmente, que as
alfabetizadoras tivessem acesso e conhecimento dos materiais de leitura disponibilizados
pelo PNBE, PNLD/Obras complementares e PNLD/Alfabetização na Idade Certa.
Cantinho de Leitura: Espaço organizado dentro da sala de aula, com objetivo de possibilitar
a leitura, promovendo a interação das crianças com os diversos suportes de textos como:
livros literários e/ou infantis, gibis, obras de divulgação do saber científico, livros
instrucionais, livros de palavras, jornais, revistas, entre outros. Esta organização é
importante, pois os materiais ficam disponíveis diariamente para alunos e professores.
A partir dessas informações, este artigo objetiva compreender as práticas de leitura de três
alfabetizadoras da rede estadual de Primavera do Leste - MT, que participaram dos encontros de
formação do PNAIC, no ano de 2013, na área de linguagem. Desse modo, apresentamos este texto
como subsídio aos estudos sobre práticas de leitura desenvolvidas por alfabetizadores.
Para tanto, a metodologia que permeou esta investigação se deu por meio da abordagem
qualitativa, discutida por André (2001) com a metodologia de análise de conteúdo, proposta
por Bardin (2011). A coleta de dados foi realizada com a aplicação de questionário e a partir
das respostas construímos os mapas de palavras utilizando o programa online WordleTM,
disponível em <http://www.wordle.net/create>, a fim de sintetizar os dados coletados.
A seguir apresentamos as discussões dos dados narrados pelas alfabetizadoras sobre as
práticas de leituras utilizadas em sala de aula.
Análise dos dados da pesquisa: Práticas de leitura na alfabetização
Devido às alfabetizadoras terem citado o cantinho de leitura e a leitura deleite como práticas
implementadas no planejamento pedagógico, o foco dos dados será sobre essas duas ações.
Em relação ao cantinho da leitura, as alfabetizadoras relataram que esse espaço era
organizado com os livros distribuídos pelos programas do Governo Federal, com obras doadas
por alunos e pelo acervo pessoal delas. É pertinente ressaltar que o intuito principal dos
programas do PNLD/Obras complementares e PNLD/Alfabetização da Idade Certa era a sua
distribuição de acervos para as salas de alfabetização, de modo que ficassem disponíveis aos
alunos nesse ambiente.
Conforme Bastos (2016, p. 76), “Com o material de leitura em sala é possível
proporcionar momentos em que a criança lê por puro prazer (leitura deleite) e outros com
objetivos didáticos (para aprendizagem da leitura, para fluência, produção de textos, trabalhar
conteúdos interdisciplinares, entre outros)”.
As professoras expuseram que o cantinho de leitura e a leitura deleite faziam parte das
rotinas diárias em sala de aula, sendo utilizados de várias maneiras. Uma das formas de
utilização era para deleite, e uma alfabetizadora citou que em sua sala de aula, uma vez por
semana os alunos podiam escolher um livro para ler em casa, assim no final da aula, uma criança
era escolhida para contar a história do livro que leu.
O ato das alfabetizadoras lerem para as crianças contribuem para incentivar que os alunos se
tornem leitores, pois a “[...] criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro
do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam; é a estória” (ALVES, 2004, p. 41).
De acordo com os relatos percebemos que em alguns momentos os alunos tinham a
oportunidade de praticarem a leitura deleite autonomamente, capacidade que foi desenvolvida
nos momentos em que as docentes liam para a sala, ao escutar um colega ler ou contar o que
PRÁTICAS DE LEITURA NO CONTEXTO DO PNAIC: CANTINHO DE LEITURA E LEITURA DELEITE
LINHA MESTRA, N.30, P.110-114, SET.DEZ.2016 112
havia lido e na participação das rodas de conversas, a qual tinham a oportunidade de escutar e
falar sobre as histórias que eram lidas.
Nesta mesma perspectiva, Machado (2012, p. 18-19) afirma que “ouvir histórias baseadas
na leitura de livros é mais que se envolver com uma narrativa, é também participar de práticas
de leitura que supõem uma relação com o outro e com o mundo”, pois, no tempo que durar a
história, a criança e a pessoa que lê estarão envolvidas em uma situação de leitura.
Vale ressaltar que a formação do cantinho de leitura é pessoal de cada professor, e o que
definirá a forma de organização é a estrutura da sala de aula, porém, o espaço deve ser pensado
de forma que fique atrativo para a disponibilização e acesso aos materiais de leitura.
Segundo Bretas (2009, p. 95), o cantinho de leitura proporciona “a aproximação do aluno
com o livro, pela percepção de sua textura, exploração de suas cores, encenação de suas
histórias, criação, recriação de diferentes textos a partir daquele apresentado pelo livro”.
A partir disso, interessamos em perguntar: “Qual a estratégia para incentivar os alunos a
utilizarem o cantinho de leitura?” Apresentamos a Figura 1 com as respostas das alfabetizadoras
por meio do mapa de palavra.
Figura 1: Mapa das palavras nas respostas à pergunta “Qual a estratégia para incentivar os alunos a utilizarem o
cantinho de leitura?” – Fonte: As autoras.
Num exercício de síntese, observando as palavras mais utilizadas pelas alfabetizadoras e,
a leitura de todas as respostas da pesquisa, talvez pudéssemos dizer que:
Todas acreditam na importância da leitura deleite para incentivar o uso do cantinho de
leitura e consequentemente como motivação para que os alunos se interessem por aprender a
ler, criando o hábito da leitura.
Nesse sentido, Souza, Silva e Ariosi (2016), destacam que [...] a leitura do texto literário,
associada às ações envolvidas nas estratégias de compreensão leitora, pode proporcionar um
ensino de leitura diferenciado, por sugerir o uso de diversos tipos de textos literários e modos
de estimular o ato de ler e escrever.
Em relação à questão: “Qual a contribuição e/ou importância do cantinho da leitura e da
leitura deleite?” As professoras relataram que as rotinas na utilização do cantinho de leitura e
leitura deleite possibilitavam e favoreciam a construção de conhecimento na criança, sendo de
grande importância para o trabalho escolar.
Para Rosa e Brandão (2010, p. 52), a leitura diária de textos diversos e o diálogo entre o
professor e as crianças sobre esses textos lidos “são elementos fundamentais para que estas se
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apropriem de estratégias de compreensão que mais tarde poderão ser aplicadas quando elas
estiverem lendo, de forma independente, os textos de sua escolha.” Compreendemos que por meio
do uso do cantinho de leitura e da prática da leitura deleite, as alfabetizadoras proporcionaram aos
alunos a interação com textos orais e escritos, mediando à relação entre as crianças e a escrita. A
Figura 2 indica o teor das respostas das alfabetizadoras sobre a questão apresentada anteriormente.
Figura 2: Mapa das palavras nas respostas à pergunta “Qual a contribuição e/ou importância do cantinho de
leitura e da leitura deleite para a sua prática pedagógica?” – Fonte: As autoras.
Procurando realizar uma síntese, valendo-nos das palavras mais utilizadas pelas
professoras, talvez pudéssemos dizer que:
Com o cantinho de leitura e a leitura deleite os alunos adquiriram o gosto pela leitura,
demonstrando vontade em estar em contato com os livros, visto que a disponibilização dos
materiais de leitura desperta o interesse em manusear e ler os livros.
Segundo Silva (2005, p. 145), para formar leitores e “motivar as crianças a aprender como
se escreve, precisamos não perder de vista a necessidade de garantir tempo pedagógico para
leitura de textos literários (leitura deleite), leitura de diversos gêneros textuais em jornais,
revistas, entre outros portadores [...]”.
Nesse sentido, a leitura é um dos eixos do ensino que se deve trabalhar com as crianças
desde o início da alfabetização, mesmo antes de iniciar o processo de apropriação do sistema
de escrita alfabética. Inicialmente ela pode ter acesso à leitura, tendo o professor como leitor.
Entretanto, é fundamental que além da prática da escuta se promova também o contato das
crianças com os livros, para apreciação estética, em toda a sua fase de escolarização.
Algumas considerações
Por meio das respostas das professoras, percebemos que o uso do cantinho de leitura e a
leitura deleite propostas pelo PNAIC, foram implementadas nas rotinas diárias do planejamento
pedagógico das alfabetizadoras.
De acordo com os dados, constatamos que elas utilizavam o cantinho de leitura de
diversas maneiras, porém todas citaram que os livros que compunham o ambiente serviam
principalmente para a realização da leitura deleite, incentivando o gosto pela leitura.
As alfabetizadoras consideravam essas práticas como indispensáveis para o incentivo da
leitura em sala de aula, por isso organizavam e tentavam manter o espaço organizado ao longo
PRÁTICAS DE LEITURA NO CONTEXTO DO PNAIC: CANTINHO DE LEITURA E LEITURA DELEITE
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do ano, pois acreditavam no propósito dessas metodologias. Sendo assim, essas ações
metodológicas contribuíram para incentivar o desenvolvimento da leitura nas crianças, criando
condições de que as mesmas pudessem atuar nas situações de leitura e escrita com autonomia.
Para as alfabetizadoras, a utilização do cantinho de leitura e leitura deleite como atividade
permanente possibilitava e favorecia a construção de conhecimento pela criança, sendo de
grande importância para o trabalho escolar, na perspectiva do alfabetizar letrando.
Referências
ALVES, Rubem. Por uma educação romântica. 5. ed. Campinas: Editora Papirus, 2004.
ANDRÉ, Marli. Pesquisa em Educação: Buscando rigor e qualidade. Cadernos de pesquisa,
n. 113, jul. 2001, p. 51- 64.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Tradução de Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro.
Lisboa: Edições 70, 2011.
BRETAS. Maria L. B.. Políticas de fomento à leitura: perspectivas e desafios em diferentes
contextos. 2009. 216f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal de Goiás (UFG),
Goiás, 2009.
BASTOS, Regiane P. da S. Práticas de alfabetizadoras em formação pelo PNAIC: estudo
do uso dos acervos de leitura. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Ciências
Humanas e Sociais. Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Federal de Mato
Grosso. Rondonópolis, 2016.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Formação de Professores
no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Brasília: MEC/SEB, 2012.
BRANDÃO, A. C. P.; ROSA, E. C. A leitura de textos literários na sala de aula: é conversando
que a gente se entende... In: PAIVA, A.; MACIEL, F.; COSSON, R. (Coord.). Literatura e
formação de leitores no Ensino Fundamental. Brasília, DF: CEALE/SEB/MEC, p. 50-106,
2010. (Coleção explorando os sentidos, v. 20).
MACHADO, Maria Z. V. A criança e a leitura literária: livros, espaços, mediações. Brasília:
Positivo, 2012.
SILVA, Roseane P. Leitura e escrita na alfabetização. In: MORAIS, A. G.; ALBUQUERQUE,
E. B. C.; LEAL, T. F. (Org.). Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética. Belo
Horizonte: Autêntica, 2005.
SMOLKA, Ana L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo
discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2012.
SOUZA, Renata J.; SILVA, Kênia A. de A. M.; ARIOSI, C. M. F.. A Leitura e a Função da
Literatura no PNAIC: para Além do Deleite. Educação em Revista, Marília, v. 17, p. 63-80,
2016, Edição Especial.
LINHA MESTRA, N.30, P.115-119, SET.DEZ.2016 115
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO
DISCURSIVO ORAL
Fabrini Katrine da Silva Bilro1
Débora Amorim Gomes da Costa-Maciel2
Dentre a grande variedade de práticas escolares que envolvem o uso da oralidade, o
gênero textual seminário apresenta-se como uma das principais atividades desenvolvidas com
o objetivo de possibilitar a interação entre os sujeitos e a aprendizagem de conhecimentos
diversos, conforme revelam pesquisas desenvolvidas por Schneuwly e Dolz (2004), Vieira
(2007), Costa-Maciel e Bilro (2015). Trata-se de um evento discursivo, propriamente escolar,
através do qual um locutor interage com seus interlocutores por meio da linguagem oral
(apoiado por recursos gráficos), buscando construir e compartilhar informações.
Movidas por essa compreensão, analisamos a prática de uma docente de Língua
Portuguesa, regente de turmas do 9º ano do Ensino Fundamental de uma Escola Municipal da
cidade de Condado-PE, buscando compreender quais estratégias didáticas são mobilizadas para
o ensino do gênero textual seminário. Para realizarmos esse estudo, utilizamos como
instrumento de pesquisa a entrevista semiestruturada (MINAYO, 1993) e tratamos os dados
coletados sob o prisma qualitativo, com emprego de elementos da técnica da análise de
conteúdo categorial (BARDIN, 1997).
Oralidade e ensino: gênero textual seminário
Ao tratarmos de oralidade, logo estabelecemos uma relação com os diversos momentos
em que utilizamos a fala para exteriorizarmos nossos enunciados. No entanto, se analisarmos
os diversos usos sociais da linguagem falada, poderemos perceber que o oral não se restringe
apenas a vocalização de palavras em situações “informais”, uma vez que não existe “o oral”,
mas “os orais”: cotidianos, formais públicos e escritos oralizados; uns mais informais, outros
mais restritos e normatizados, mas todos construídos a partir de um “modelo” idealizado e
aceito socialmente, de acordo com as situações de uso e as necessidades dos falantes. O que
conduz a análise não apenas da modalidade oral da língua, mas dos gêneros orais: práticas
sociais interativas, com fins comunicativos, que se materializam na realidade sonora
(MARCUSCHI, 2010), consideradas como megainstrumentos que concebem aos indivíduos a
ampliação de suas capacidades comunicativas (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).
Inserido na proposta de abordagem da oralidade como objeto autônomo de ensino-
aprendizagem, o gênero textual seminário é definido por Schneuwly e Dolz (2004, p. 185) como
um gênero textual oral público, relativamente formal e específico, no qual
um expositor especialista dirige-se a um auditório, de maneira
(explicitamente) estruturada, para lhe transmitir informações, descrever-
lhe ou explicar alguma coisa.
Constituindo-se como uma oportunidade de incentivar a pesquisa, o trabalho colaborativo
e a aprendizagem independente dos sujeitos, por permitir a materialização de textos orais e
escritos, assim como a construção conjunta e interativa de conhecimento entre professores -
alunos - alunos.
1 Universidade de Pernambuco, Nazaré da Mata, Pernambuco, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade de Pernambuco, Nazaré da Mata, Pernambuco, Brasil. E- mail: [email protected].
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO DISCURSIVO ORAL
LINHA MESTRA, N.30, P.115-119, SET.DEZ.2016 116
No âmbito das práticas pedagógicas, a produção e a realização do seminário, assim como
de qualquer outro gênero textual formal (oral ou escrito), exige que o sujeito acione e utilize
uma série de competências comunicativas próprias da linguagem oral, e também da escrita, que
não são apreendidas de maneira espontânea. Competências que para serem desenvolvidas
necessitam da elaboração e da efetivação de uma proposta didática que trate o gênero como
objeto autônomo de ensino-aprendizagem, em que os professores de língua materna tomem
para si a responsabilidade de desenvolver e de realizar intervenções didáticas ligadas aos
aspectos do conteúdo; às dimensões comunicativas; e aos procedimentos linguísticos e
discursivos característicos desse gênero oral (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).
A partir dessa compreensão, apresentamos, a seguir, a análise das estratégias didáticas
utilizadas pela docente no trato com o seminário.
Estratégias de didatização do seminário
Ao tratar da didatização do seminário, a docente situa a discussão a partir da descrição de
uma sequência didática, envolvendo o tema “Alimentação Saudável”. Por meio da análise desta
atividade, pudemos observar que, em sua metodologia de ensino, a docente mobiliza estratégias
didáticas que categorizam o seminário em 2 (duas) dimensões: 1) gênero como objeto autônomo
de ensino; 2) gênero como exigência da rotina escolar.
Para o trato do gênero seminário enquanto objeto autônomo de ensino, percebemos
que a docente inicia a atividade com da escolha do tema: Alimentação Saudável, que se dá
devido a uma demanda colocada pela observação dos hábitos alimentares do grupo-sala no
espaço escolar. Sobre isso ela afirma:
Eu decidi esse tema, por que alimentação saudável e não outro, né? Pelo fato
da observação deles chegarem na escola muito cedo e a gente já vê muito
salgadinho, gente chupando chiclete o tempo inteiro[...]O tema veio aí dessa
observação dos meninos.
Nesse trecho, a docente revela a preocupação em eleger um tema próprio do contexto real
dos alunos, fazendo com que percebam a necessidade de investigar e de apresentar aos demais
colegas informações sobre hábitos do seu dia a dia.
Escolhida a temática, há um investimento no conteúdo a ser tratado por meio da realização
de leituras, da apresentação de vídeos e da promoção de debates, recursos que oferecem aos
alunos a possibilidade de analisar os diferentes posicionamentos e aspectos relacionados ao
assunto abordado. De acordo com a docente:
[...] o passo a passo desse trabalho, começou com a leitura de alguns textos, de
alguns debates [...] Aí depois eu trouxe alguns vídeos falando dicas de
alimentação saudável, até do próprio Ministério da Saúde [...] a gente também
tem alguns textos no próprio livro deles que falam sobre isso. Então a gente tentou
aí aproveitar esses textos que já estavam no livro pra trabalhar o assunto e pra eles
ficarem mais familiarizados com isso e no dia apresentarem o trabalho.
Acreditamos que estratégias como essa, de inserir os alunos na discussão acerca do
assunto por meio da apresentação de textos em diversos suportes (internet, livro didático) e de
familiarizá-los com o tema trabalhado, além de inserir o aluno na discussão do tema, possibilita
a interação ativa entre alunos-professor-alunos-fontes de conhecimentos, fazendo com que
todos sintam-se parte do processo de construção do conhecimento.
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO DISCURSIVO ORAL
LINHA MESTRA, N.30, P.115-119, SET.DEZ.2016 117
Após contextualizar a temática e despertar o interesse nos alunos de pesquisar sobre o
assunto, a docente prossegue com a distribuição dos tópicos que serão apresentados pelos
grupos, estratégia que caracteriza a organização estrutural do seminário. Ela diz: “E aí depois
desses textos lidos, desses vídeos que a gente viu, aí a gente foi tentar dividir por turmas, por
grupos na turma, quem iria apresentar cada tópico.”. Nesse momento, cada grupo fica ciente da
parte do assunto que irá pesquisar e apresentar aos demais colegas.
Divididas as partes, os alunos são orientados a investigarem o assunto em fontes diversas,
internet e livro didático, como podemos observar na seguinte fala:
[...] eles fizeram (a pesquisa) na própria sala com o livro, com a leitura no
livro didático deles, outras, eles tiveram que pesquisar fora, principalmente na
hora que a gente dividiu, né, o que cada grupo iria apresentar. Eles fizeram
essa pesquisa na internet [...]
Após as pesquisas, os alunos, juntamente com a docente, realizaram a análise e a seleção
das informações principais que seriam apresentadas, aprendendo a organizar os diferentes tipos
de conhecimentos a partir do contexto comunicativo colocado (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).
Nesse momento, os alunos foram orientados a identificarem que informações seriam
interessantes para serem apresentadas, considerando seus destinatários, no caso a professora e
o grupo-sala. É o que podemos observar no seguinte trecho:
[...] eu separei um minutinho da aula pra conversar com esse pessoal sobre o
que eles poderiam descartar daquela pesquisa, o que seria mais relevante eles
apresentarem, o que eles acharam que deveriam passar pra outra turma [...]
Os alunos também foram orientados acerca de elementos próprios à situação de
comunicação e às características linguísticas do seminário, como os papéis que iriam assumir
no momento da apresentação e o registro adequado a essa situação de comunicação, no caso, a
linguagem formal, sempre atentos à função e ao objetivo do gênero: informar/expor. Passam a
ter importância considerável tanto as situações de produção e circulação dos textos como a
significação que nelas é forjada (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004). Acerca disso, ela diz:
[...] eu trouxe o registro que eles precisariam usar, a forma como eles deveriam
apresentar que deveria ser um registro culto, né, ali, uma linguagem mais
formal, até porque eles estavam ali na frente, tavam ali como mediadores do
conhecimento naquele momento.
Estratégias como estas, possibilitam aos alunos o conhecimento das características
próprias de situações formais de uso da linguagem oral, as quais não são adquiridas
espontaneamente. Além disso, faz com que eles compreendam que monitoramos a fala em
função do ambiente, do interlocutor e do conteúdo a ser tratado (BORTONI-RICARDO, 2004).
Deixando-os cientes do quê, de para quem e do como irão falar as informações coletadas.
Tendo em vista que o seminário, geralmente, é estruturado a partir da alternância entre
discurso e apresentação de documentos que comprovem o que foi colocado, no momento de
planejamento, ainda foram preparados materiais que iriam servir de apoio a apresentação, como
cartazes e slides, os quais foram produzidos pelos alunos com a orientação da docente. Ela
afirma que
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO DISCURSIVO ORAL
LINHA MESTRA, N.30, P.115-119, SET.DEZ.2016 118
Eles trouxeram as imagens pra elaborar os cartazes, esses cartazes foram feitos
na própria sala de aula. [...] a responsabilidade dos slides que todos os grupos
utilizaram, foi também uma questão que eles mesmos que fizeram.
Ao levar os alunos a produzirem de maneira autônoma os materiais que servirão de
apoio à apresentação do seminário, a docente faz com que eles percebam a diversidade de
suportes (orais e escritos) que são necessários para a produção e realização desse evento
discursivo (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004).
Além do trato do seminário como objeto de ensino, percebemos que na prática da docente
esse gênero oral é utilizado como meio para o cumprimento de uma exigência da rotina
escolar, a saber, a atribuição de notas. Para ela,
[...] o objetivo principal era avaliar o dia dessa apresentação. Como eles iriam
chegar ali e iriam falar tudo aquilo que eles pesquisaram. Então assim, claro
que eu levei também em consideração na hora de colocar a nota, como eu disse
né, essa nota de participação do gênero oral, eu levei em consideração também
eles trazerem as pesquisas, elaborarem os cartazes, terem a boa vontade de
pesquisarem os vídeos, de preparar os slides, tudinho.
Neste trecho, a docente apresenta outra dimensão do trato com o seminário. Ela revela
que o gênero é comumente produzido como meio para o cumprimento de uma exigência da
rotina escolar, avalia-se habilidades com o objetivo de atribuir notas. Segundo ela, apesar de
enfatizar a função comunicativa do gênero, a dimensão avaliativa ainda constitui-se como um
dos principais motivos que leva os alunos a construírem e a realizarem o seminário. Aspecto
também revelado por estudos desenvolvidos por Vieira (2007), de acordo com os quais, o foco
na avaliação e atribuição de notas configura-se como uma estratégia docente para incentivar à
participação dos alunos, pois, ao perceberem que estão sendo avaliados, eles demonstram um
maior engajamento na realização da atividade.
Por meio da análise da prática da docente, percebemos que ela utiliza em seu passo a
passo metodológico estratégias que motivam os alunos a produzirem o seminário e que os levam
a compreenderem o processo de produção desse gênero oral. Possibilitando, junto aos alunos,
o ensino, o desenvolvimento e a ampliação de habilidades necessárias ao uso da linguagem oral
formal nos diversos contextos comunicativos.
Considerações finais
Esta pesquisa buscou analisar, no âmbito das práticas pedagógicas de uma professora de
Língua Portuguesa, regente de turmas do 9º ano do Ensino Fundamental, as estratégias didáticas
mobilizadas na docência para o ensino do gênero oral seminário. Através da análise dos dados,
observamos que, em sua metodologia, a docente utiliza estratégias que categorizam o seminário
em 2 (duas) dimensões: 1) gênero como objeto autônomo de ensino; 2) gênero como exigência
da rotina escolar.
Para o trato do seminário enquanto objeto de ensino, a docente utiliza estratégias que
abordam elementos essenciais a sua compreensão e as suas condições de produção nas
diferentes práticas de linguagem, a saber: o quê? Por quê? Para quê? Para quem? Como?
Estratégias que possibilitam uma organização didática do oral direcionada e preocupada com o
desenvolvimento de competências necessárias ao uso da fala em diversas instâncias de
produção, que não se resumem a sala de aula nem ao estudo do seminário, visto que
SEMINÁRIO E ENSINO: ESTRATÉGIAS PARA DIDATIZAR O GÊNERO DISCURSIVO ORAL
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proporcionam situações didáticas em que o aluno é levado a confrontar e a explicar suas ideias
de forma organizada, levando em conta as diferentes esferas de uso da fala pública.
Além de objeto de ensino, o gênero textual seminário é utilizado pela docente como meio
para o cumprimento de uma exigência da rotina escolar. Para isso, ela avalia habilidades com
o objetivo de atribuir notas. Estratégia que, de acordo com a professora, motiva os alunos a
construírem e a realizarem o gênero oral.
Sendo assim, compreendemos, através dos dados, que, na prática da docente investigada,
o gênero textual seminário assume perspectivas que, apesar de aparentemente diversas, inter-
relacionam-se, construindo o fazer-docente e contribuindo para que os alunos aceitem,
compreendam e produzam o gênero enquanto ação discursiva com fins sócio-comunicativos.
Referências
BARDIN, L. Análise de Conteúdos. Lisboa: Edições 70, 1997.
BORTONI-RICARDO, S. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula.
São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
COSTA-MACIEL, D. A. G. da; BILRO, F. K. da S. Afinal, a oralidade pode ser ensinada? O
que propõem os livros didáticos de língua portuguesa? In: Anais da 37ª Anped, 2015.
MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita. Atividades de retextualização. São Paulo: Cortez,
2010.
MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento científico: pesquisa qualitativa em saúde.
2. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, 1993.
SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado das
Letras, 2004.
VIEIRA, A. R. F. Seminários escolares: gêneros, interações e letramentos. Recife: ed.
Universitária da UFPE, 2007.
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CONTRIBUIÇÕES DA SALA DE RECURSOS MULTIFUNCIONAL PARA A
MELHORIA DOS PROCESSOS EDUCACIONAIS INCLUSIVOS
Caroline Elizabel Blaszko1
Evelise Maria Labatut Portilho2
Alessandra Weiss Ferraz de Oliveira3
O presente estudo traz reflexões em relação à Sala de Recursos Multifuncional e suas
respectivas contribuições para a formação do aluno, bem como dos processos educacionais
inclusivos nos anos iniciais do ensino regular.
As reflexões estruturadas e apresentadas neste trabalho são fruto de uma pesquisa
bibliográfica de cunho teórica, a qual ganhou respaldo por autores e pela legislação vigente, a
qual se ordena em dois momentos. No primeiro explica-se a conceituação da Sala de Recursos
Multifuncional e sua relevância para a formação do aluno e no segundo momento apresenta-se
aspectos referente a Sala de Recursos e suas contribuições para processos educacionais
inclusivos em prol de uma educação igualitária.
O Atendimento Educacional Especializado e as Salas de Recursos Multifuncionais
O atendimento educacional especializado, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001) devem ser oferecidos aos alunos
que apresentam necessidades educativas especiais e dificuldades acentuadas de aprendizagem,
assegurando condições necessárias para uma educação igualitária e de qualidade para todos.
Segundo as Diretrizes supracitadas, o Atendimento Educacional Especializado deve ser
oferecido em período inverso ao que a criança frequenta o ensino regular, em centro
especializado, centro de apoio pedagógico e sala de recursos multifuncional.
A Sala de Recursos multifuncional constitui-se foco de reflexões deste estudo, a qual é
conceituada como:
[...] serviço de natureza pedagógica, conduzido por professor especializado,
que suplementa (no caso dos superdotados) e complementa (para os demais
alunos) o atendimento educacional realizado em classes comuns [...]. Esse
serviço realiza-se em escolas, em local dotado de equipamentos e recursos
pedagógicos adequados às necessidades educacionais especiais dos alunos,
podendo estender-se a alunos de escolas próximas, nas quais ainda não exista
esse atendimento. Pode ser realizado individualmente ou em pequenos grupos,
para alunos que apresentem necessidades educacionais especiais semelhantes,
em horário diferente daquele em que frequentam a classe comum. (BRASIL,
2001, p. 50).
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). Membro do Grupo de Pesquisa: Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada. Professora
Colaboradora da Universidade Estadual do Paraná, Campus de União da Vitória-PR (UNESPAR/UV). E-mail:
[email protected]. 2 Doutora em Educação. Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Líder do
Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada. Conselheira da Associação
Brasileira de Psicopedagogia (ABPp). E-mail: [email protected]. 3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR); Membro do Grupo de Pesquisa: Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada, vinculado
ao CNPq.
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LINHA MESTRA, N.30, P.125-129, SET.DEZ.2016 121
De acordo com o documento, a Sala de Recursos Multifuncional consiste num serviço de
apoio especializado que deve contribuir para o processo educacional inclusivo da criança no
Ensino Regular, pois trabalham com as potencialidades, as dificuldades e os fatores que faltam
para a criança ter um bom desenvolvimento e uma boa aprendizagem.
Ressalta-se que no Estado do Paraná, à Sala de Recursos Multifuncionais, embasado nos
preceitos legais que regem a Educação Especial, ou seja, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394/96 (BRASIL, 1996); as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Especial na Educação Básica, Resolução CNE n° 02/01 (BRASIL, 2001), a
Deliberação nº 02/03 - CEE (PARANÁ, 2003), contribuíram para regulamentação e oferta da
Sala de Recursos mediante duas instruções: primeiramente, a Instrução nº 04/04 (PARANÁ,
2004) seguida da Instrução nº 15/08 (PARANÁ, 2008), ambas da Secretaria de Estado da
Educação, do referido Estado. Respaldado nos documentos legais o Estado do Paraná amplia a
terminologia da Sala de Recursos Multifuncional, adequando-se inclusive às orientações do
MEC, emitindo a Instrução nº 16/11 (PARANÁ, 2011) que conceitua a Sala de Recursos
Multifuncional como:
[...] um atendimento educacional especializado, de natureza pedagógica que
complementa a escolarização de alunos que apresentam deficiência
intelectual, deficiência física, neuromotora, transtornos globais do
desenvolvimento e transtornos funcionais específicos, matriculados na rede
Pública de Ensino. (PARANÁ, 2011, p. 1).
No que tange aos atendimentos dos alunos na Sala de Recursos Multifuncional, estes
poderão ser realizados individualmente ou em grupos visando oferecer suporte necessário às
necessidades educacionais especiais dos alunos, oportunizando o acesso ao conhecimento.
Segundo a Resolução nº 04/2009 no artigo 13, o professor que trabalha no atendimento
educacional especializado tem múltiplas funções como:
1. identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recursos
pedagógicos, de acessibilidade e estratégias considerando as
necessidades específicas dos alunos público-alvo da Educação
Especial;
2. elaborar e executar plano de Atendimento Educacional Especializado,
avaliando a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos
e de acessibilidade;
3. organizar o tipo e o número de atendimentos aos alunos na sala de
recursos multifuncionais;
4. acompanhar a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos
pedagógicos e de acessibilidade na sala de aula comum do ensino
regular, bem como em outros ambientes da escola;
5. estabelecer parcerias com as áreas intersetoriais na elaboração de
estratégias e na disponibilização de recursos de acessibilidade;
6. orientar professores e famílias sobre os recursos pedagógicos e de
acessibilidade utilizados pelo aluno;
7. ensinar e usar a tecnologia assistiva de forma a ampliar habilidades
funcionais dos alunos, promovendo autonomia e participação;
8. estabelecer articulação com os professores da sala de aula comum,
visando à disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos e de
acessibilidade e das estratégias que promovem a participação dos
alunos nas atividades escolares.
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Corroborando, Mazzota (1982) o professor que atua na Sala de Recursos tem dupla
função, prestando atendimento aos alunos diretamente, seguida de orientações aos professores
do ensino regular, as famílias e demais profissionais que atuam no contexto escolar. Ainda
segundo o autor, o professor que trabalha no atendimento educacional especializado deve
desenvolver um trabalho em cooperação com demais profissionais que atuam com o aluno,
principalmente professores da classe comum.
Nesse sentido, segundo Brasil (2001) o atendimento educacional especializado (AEE)
contribui para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais e
complementa a formação do aluno visando sua autonomia, independência e o desenvolvimento
integral da criança. Também coopera para a eliminação de barreiras, para plena participação
das crianças em contexto escolar e social.
Contributos da Sala de Recursos Multifuncional para os Processos Educacionais
Inclusivos
A educação inclusiva tem como um dos princípios, a aceitação das diferenças, sendo que
a escola deve adaptar-se e preparar-se para atender todos os estudantes de maneira igualitária e
da melhor maneira possível (MITTLER, 2003).
Para conceituar a educação inclusiva nos reportamos a Carneiro (2013, p. 29) que define
como um:
Conjunto de processos educacionais decorrentes da execução de políticas
articuladas impeditivas de qualquer forma de segregação e de isolamento.
Essas políticas buscam alargar o acesso à escola regular, ampliar a
participação e assegurar a permanência de TODOS OS ALUNOS nela,
independentemente de suas particularidades. Sob o ponto de vista prático, a
educação inclusiva garante a qualquer criança o acesso ao Ensino
Fundamental, nível de escolaridade obrigatório a todo cidadão brasileiro.
Segundo o autor supracitado, a educação inclusiva visa à inclusão, a qual deve produzir
igualdade de oportunidades a todos, inclusive de fazer as suas próprias escolhas, construir sua
identidade e atuar em sociedade.
Nesse sentido, Ujiie, Blaszko e Pinheiro (2015, p. 117) enfatizam que “o eixo central da
proposta inclusiva é proporcionar melhores condições de aprendizagem para todos, por meio
de uma transformação radical da cultura pedagógica”. Sendo que é com a diversidade que surge
a preocupação com o desenvolvimento de uma educação inclusiva, a qual tem como objetivo
oportunizar a todas as crianças, condições para a aprendizagem e o acesso à educação
igualitária.
Conforme (BRASIL, 2008) o atendimento educacional especializado deve priorizar o
lúdico, a riqueza de estímulos nos aspectos físicos, emocionais, cognitivos, psicomotores e
sociais, contribuindo para o desenvolvimento das bases necessárias para novas aprendizagens,
a construção do conhecimento e o desenvolvimento global da criança.
Também o professor deve observar os reflexos de suas ações educativas sobre o
desenvolvimento das crianças e conhecer os seus estilos de aprendizagem.
Pensar sobre os estilos de aprendizagem nos auxilia a conhecer melhor o jeito
de aprender dos nossos alunos, das nossas crianças. Ao conhecermos o nosso
processo de ensino e aprendizagem e considerarmos os vários estilos de
aprendizagem das nossas crianças poderemos olhar e perceber [...] a
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diversidade que nos complementa como seres humanos (PORTILHO,
GIOVANELLA, SILVA, 2015, p. 92).
As autoras enfatizam a necessidade dos professores conhecerem seus alunos,
identificando suas habilidades e necessidades específicas, para elaborar e executar um plano de
ação, definir e organizar estratégias pedagógicas, produzir materiais adequados às diferentes
necessidades das crianças.
No enfoque da educação inclusiva, a Sala de Recursos apresenta grande relevância, “pois
visa oferecer o apoio educacional complementar necessário para que o aluno se desempenhe e
permaneça na classe comum, com sucesso escolar” (MORETTI e CORRÊA, 2009, p. 487).
Para que a educação inclusiva seja efetivada, dentre muitos quesitos necessários destaca-
se a necessidade da parceria e colaboração do professor da Sala de Recursos e do professor do
ensino regular, para que ambos oportunizem ao estudante condições para potencializar suas
aprendizagens.
Baseados nos estudos teóricos e documentos da área, elenca-se algumas contribuições do
atendimento educacional especializado para os processos inclusivos, as quais são apresentadas:
Contribui para o estabelecimento de parcerias colaborativas entre os profissionais, o
desenvolvimento de um olhar voltado às potencialidades e fragilidades da criança, a partilha
dos conhecimentos, e na busca de recursos que oportunizem as crianças o avanço ao
processo de escolarização, em conjunto com os demais colegas que frequentam o ensino
regular.
Estimula o desenvolvimento dos processos mentais do aluno como a atenção, memória,
imaginação, linguagem, percepção, contribui para o desenvolvimento da autonomia, para
que possa decidir, opinar, intervir e adotar atitudes, a partir de suas necessidades e
interesses.
Possibilita condições de acesso ao conhecimento e a aprendizagem, assegurando condições
para continuidade dos estudos nos demais níveis de ensino de acordo com interesse de cada
um.
Para que se efetivem as contribuições supracitadas, é necessário que a escola e o professor
estejam comprometidos com a formação integral das crianças, primando por conhecer os
alunos, suas habilidades, dificuldades e potencialidades, seguida do planejamento e
desenvolvimento de ações pedagógicas que contribuam para a ampliação dos conhecimentos
de maneira significativa pelo aluno.
Considerações finais
Conclui-se que o atendimento educacional especializado oferecido na Sala de Recursos é
de grande relevância para os processos educacionais inclusivos, a qual possibilita o
estabelecimento de parcerias colaborativas entre os professores, os quais são um dos principais
profissionais que planejam, desenvolvem, acompanham, estimulam e contribuem para o
desenvolvimento e a aprendizagem da criança de maneira integral.
Referências
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de 23 de dezembro de 1996. Brasília/DF: MEC/SEF, 1996.
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UMA REFLEXÃO ACERCA DO SER PROFESSOR NOS ANOS INICIAIS:
IDENTIDADE E PROFISSIONALIDADE
Caroline Elizabel Blaszko1
Nájela Tavares Ujiie2
Evelise Maria Labatut Portilho3
A presente pesquisa apresenta reflexões acerca do ser professor nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental, com foco na construção de sua identidade e profissionalidade, baseados
na análise documental de artigos científicos publicadas na biblioteca eletrônica Scielo
(Scientific Electronic Library Online), que contribuem para o embasamento do presente estudo.
Destaca-se que as palavras-chaves que nortearam a busca pelas produções científicas
foram: identidade docente e profissionalidade docente, direcionada aos professores dos anos
iniciais do ensino fundamental. Ressalta-se que foram encontrados dezoito artigos no total, doze
artigos pelo termo identidade docente, mas apenas dois artigos com foco referente aos anos
iniciais e seis artigos pelo termo profissionalidade docente sendo três contemplando os
professores dos anos iniciais, diante destes dados percebe-se a necessidade do aprofundamento
e verticalidade nestas áreas.
O estudo abrange breves reflexões sobre a identidade e profissionalidade docente
embasados em autores e estudos do campo da formação de professores.
Aportes teóricos: identidade e profissionalidade docente
Buscando conceituar identidade docente, reportamo-nos Pimenta (1999, p. 18) que define:
A identidade não é um dado imutável. Nem extremo, que possa ser adquirido.
Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado. A
profissão de professor, como as demais, emerge em dado contexto e momento
históricos, como resposta a necessidades que estão postas pelas sociedades,
adquirindo estatuto de legalidade.
Corroborando Benites (2007) enfatiza que a identidade profissional emerge em um
contexto como resposta às necessidades postas pela sociedade, formando um corpo de
conhecimentos, normas e valores. Nesse sentido, Schaffel (2000, p. 50) específica que "A
identidade não é jamais concedida. Ela é sempre construída e reconstruída em um ambiente de
incerteza".
Ressalta-se que a construção da identidade profissional é um processo contínuo, que se
efetiva a partir do confronto entre as teorias e as práticas, que no campo da educação e formação
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
(PUCPR). Membro do Grupo de Pesquisa: Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada. Professora
Colaboradora da Universidade Estadual do Paraná, Campus de União da Vitória-PR (UNESPAR/UV). E-mail:
[email protected]. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Tecnologia da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná (UTFPR). Professora Efetiva da Universidade Estadual do Paraná, Campus de União da Vitória-
PR (UNESPAR/UV). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação (GEPE). E-mail:
[email protected]. 3 Doutora em Educação. Professora Titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Líder do
Grupo de Pesquisa Aprendizagem e Conhecimento na Formação Continuada. Conselheira da Associação
Brasileira de Psicopedagogia (ABPp). E-mail: [email protected].
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de professores é precedida pela análise das ações educativas à luz das teorias já existentes e em
processo de construção. Ainda segundo Pimenta (1999, p. 19) a identidade:
Constrói-se também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor,
confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo
de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus
saberes, de suas angústias e anseios, do sentimento que tem em sua vida o ser
professor. Assim como a partir de sua rede de relações com os outros professores,
nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos.
A construção da identidade profissional começa com a escolha da profissão, seguida de
estudos no decorrer da formação inicial e continuada, de experiências, vivências e práticas
desenvolvidas em diferentes espaços institucionais (MOITA, 1995).
Complementando Nóvoa (1992, p. 16) explica que a identidade do professor, “é um lugar
de lutas e de conflitos, é um lugar de construção de maneiras de ser e de estar na profissão”. A
construção da identidade profissional é um processo contínuo, longo, complexo que exige
tempo, assimilação das mudanças, que no caso do ser professor é seguida do repensar da prática
pedagógica com relação à ação em sala de aula, ou seja, uma apreensão de conteúdo e forma,
sobre o que faz, como faz e por que faz em sala de aula, com os saberes que são seus e os
saberes de seus alunos (QUADROS et al, 2005).
Galindo (2004) destaca que identidade docente consiste em um processo de construção do
ser humano enquanto profissionais, envolvendo o processo contínuo de formação e aprendizagem.
Nesse sentido, Papi (2005, p. 53) pontua que:
Por todas as diferentes considerações, entende-se que a identidade profissional
configura uma forma de ser e fazer a profissão; portanto, precisa consistir em
um processo no qual os professores considerem-se atores, responsáveis e
autônomos, pelo trabalho que desenvolvem e pela vida pessoal e social da qual
fazem parte.
Colaborando com a identidade docente encontra-se a profissionalidade docente, a qual é
de grande relevância, pois consiste no desenvolvimento das competências necessárias ao
exercício da profissão professor. No que tange a profissionalidade docente, Contreras (1997, p.
51) explica que esta abrange “[...] às qualidades da prática profissional dos educadores em
função daquilo que requer o ofício educativo [...] também expressar valores e pretensões
desejáveis de alcançar e desenvolver na profissão, autonomia destes professores”.
Com relação aos aspectos integrantes da profissionalidade docente, Chakur (2001)
enfatiza que o professor necessita ter a competência pedagógica para planejar, preparar e
desenvolver as atividades e, por conseguinte aplicar instrumentos de avaliação, com intuito de
avaliar a aprendizagem dos alunos e a eficácia das estratégias educativas desenvolvidas por
meio das aulas.
Conforme o autor supracitado, o professor da educação básica precisa apresentar
competências e habilidades psicopedagógicas, observando e interagindo com educandos de
personalidades e comportamentos distintos presentes em contexto escolar. O docente deve ter
responsabilidade social, buscando desenvolver ações direcionadas a formação das novas
gerações para convivência democrática e para o exercício da cidadania perante a sociedade.
Também cabe ao profissional ter comprometimento político, seguido do engajamento na rotina
institucional, ou seja, é importante conhecer e cumprir as normas das instituições que regulam
o seu trabalho. O professor necessita fazer investimento na própria formação, buscando
UMA REFLEXÃO ACERCA DO SER PROFESSOR NOS ANOS INICIAIS: IDENTIDADE E...
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aperfeiçoamento por meio da participação em formação inicial/continuada, eventos, encontros,
discussões, reflexões e leituras.
A formação de professores pode exercer um papel importante na configuração de uma
nova profissionalidade docente, estimulando a emergência de uma cultura profissional em prol
da construção de novos saberes, aliando a teoria e a prática, vivências e experiências em prol
da melhoria da educação (NÓVOA, 1992).
Segundo o autor supramencionado formação constrói-se num processo de relação entre
saber e conhecimento, estimulando a perspectiva crítico-reflexiva em prol da formação de
profissionais ativos e competentes.
Resultados e discussão: os artigos do Scielo em congruência com o referencial de base
A análise dos artigos publicados no Scielo envolvendo as temáticas identidade e
profissionalidade docente, assuntos que ainda são pouco explorados, demonstram a necessidade
de aprofundamento de estudos em ambas áreas, pois do universo de dezoito artigos temos cinco
para compor a análise que se segue com foco na formação de professores dos anos iniciais do
ensino fundamental.
No que tange a identidade docente, encontramos doze trabalhos, sendo destes somente os
trabalhos de Galindo (2004) e Quadros et al (2005) que abordavam em seu contexto a formação
da identidade docente com foco no professor dos anos iniciais.
Quadros et al (2005) no seu trabalho intitulado “Os professores que tivemos e a formação
da nossa identidade como docentes: um encontro com nossa memória”, traz reflexões sobre as
influências de professores que tivemos na formação profissional, que por meio de suas ações,
atitudes e exemplos refletem na formação e atuação do professor, debate a influência da
memória educativa no processo de formar-se professor.
Galindo (2004) no seu estudo “A construção da identidade profissional docente”, aponta
reflexões e discussões sobre o conceito de identidade e enfoca elementos para pesquisa sobre a
identidade profissional, que é considerada inserida no jogo do reconhecimento constituído por
dois polos, o primeiro o do auto-reconhecimento, ou seja, como o professor se reconhece, e o
segundo do alter-reconhecimento, ou seja, como o professor é reconhecido pelos outros. O
estudo também demonstra que os professores vivenciam um momento de conflito na identidade
profissional, pelo acirramento da disputa inerente ao mercado de trabalho, o que dificulta de
certa forma a vivência da identidade coletiva e compartilhada dos professores.
De acordo com o autor supracitado, a identidade inserida no jogo de reconhecimento
indica que o ser humano é capaz de simbolizar, criar, representar e compartilhar saberes e
significados em relação aos objetos que fazem parte de suas vivências.
Em relação à profissionalidade docente, encontraram-se no Scielo seis trabalhos que
abordam a temática, mas somente os artigos de Morgano (2011), Bodião e Formosinho (2010)
e Chakur (2005), trazem reflexões sobre a profissionalidade docente direcionada aos professores
dos anos iniciais do ensino fundamental.
Morgano (2011) no artigo “Identidade e profissionalidade docente: sentidos e im
(possibilidades)”, destaca que as exigências da contemporaneidade têm avivado a importância
da educação e a relevância atribuída ao papel dos professores para o sucesso educativo dos
alunos. Segundo o autor, as possibilidades dos professores buscarem melhores condições as
finalidades educativas dependem de um tripé constituído por: competência profissional,
identidade profissional e profissionalidade docente. O autor também enfatiza que existem
também problemas e desafios que os professores e as escolas enfrentam, os quais interferem
dificultando a melhoria das práticas educativas.
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Ainda de acordo com o autor, a profissão docente, nas últimas décadas sofreu
transformações significativas, sendo exigido atualmente para lecionar na Educação Básica
formação em nível superior, seguida da formação continuada, visto que a formação e a
aprendizagem são processos contínuos necessários para exercer a profissão.
Chakur (2005) no artigo “O desenvolvimento profissional de professores das séries iniciais
do ensino fundamental”, abrange um estudo de campo, seguido de reflexões as quais apontam que
o desenvolvimento da profissionalidade docente envolve uma sequência de níveis hierárquicos e, e
para que os esquemas profissionais progridam e se aperfeiçoem, é necessário que o professor tenha
a tomada de consciência dos obstáculos enfrentados, para posterior ação e solução.
Bodião e Formosinho (2010) no artigo “A profissionalidade docente na educação básica
em Portugal: depoimentos de alguns professores” exploram alguns aspectos da construção da
profissionalidade docente e destacam a partir da pesquisa que a função docente continua se
caracterizando como uma atividade solitária, pois no universo escolar ainda faltam estratégias
de acolhimento aos professores principiantes, às formações continuadas oferecidas pouco se
voltam ao contexto, o interesse dos professores pela formação continuada são voltados para
progressões funcionais, não sendo vetores das alterações das práticas curriculares. O autor
enfatiza a necessidade da implantação de processos de formação profissional docente nas
próprias instituições escolares, abrangendo a constituição de grupos de reflexões.
O exposto pelos autores supracitados nos remete as proposições de formação continuada
expressas por Ujiie (2014) e Portilho (2015), ambas relacionadas à formação continuada em
contexto, que venha atender as demandas da ação pedagógica e tendo as instituições de educação
infantil, primeira etapa da educação básica como lócus formativo do professor, a partir da ação
prática e de reflexividade teórica, ambas em defesa das comunidades de aprendizagem como fonte
constitutiva da identidade e profissionalidade do professor, ação que pode ser generalizada para a
formação continuada dos anos iniciais do ensino fundamental foco deste estudo.
Assim, ao evidenciarem-se as nuances dos artigos achados registra-se a congruência entre
o referencial de base debatido no tópico um e as análises emergentes nesta sessão.
Considerações finais
A identidade e profissionalidade docente tem forte influência na construção e na formação
do ser professor em qualquer nível de ensino. Dessa forma deve ser pauta de aprofundamento
e atenção nas pesquisas direcionadas a formação de professores dos anos iniciais do ensino
fundamental, considerando os achados significativos na biblioteca eletrônica Scielo, mas
incipientes, considerando o campo da educação e o seu valor para aprofundamento do debate,
intencionando uma formação de professores de qualidade e comprometida com a dinâmica
social e pedagógica da educação.
Referências
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profissionais da educação infantil. In: UJIIE, N. T.; PIETROBON, S. R. G. Educação, Infância
e Formação: vicissitudes e quefazeres. Curitiba-PR: CRV, 2014, p. 53-63.
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OS CÍRCULOS DE LEITURA NA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: UMA
EXPERIÊNCIA COM O PIBID
Carla Luzia Carneiro Borges1
Sônia Moreira Coutinho2
Cada vez mais há mais necessidade de se ampliarem as práticas com textos diversos no
ensino-aprendizagem de língua portuguesa, de modo a possibilitar o acesso aos bens culturais
cotidianos em circulação na sociedade, bem como possibilitar a leitura em rede pelos sujeitos
em constituição. Essa leitura em rede acusa uma abordagem dialógica do texto, numa
perspectiva bakhtiniana, a partir da qual a linguagem produzida pelos sujeitos está vinculada a
esferas específicas de comunicação e às ideologias presentes nessas esferas. Desse modo,
partimos de um eixo temático: Quem sou eu, quem é o outro no mundo e quais as minhas
práticas com leitura? A ideia foi problematizar a relação eu/outro/leitura nas diversas esferas,
inclusive no espaço virtual, no qual os sujeitos buscam o outro de diversas formas e a partir da
produção de diversos gêneros discursivos. Realizamos círculos de leitura com alunos dos cursos
de licenciatura da Universidade Estadual de Feira de Santana, que atuam no PIBID (Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), considerando a multiplicidade cultural e
semiótica dos textos em circulação na sociedade, os quais adentram a escola e muitas vezes não
são tratados na perspectiva dos multiletramentos (ROJO, 2012), ficando limitados a uma
diversidade textual desprovida de uma análise crítica de seu impacto nos contextos de produção
de conhecimento na sociedade atual. O estudo tem como objetivo apresentar a realização de
círculos de leitura, problematizando o uso dessa metodologia que proporciona um espaço
dialógico no qual os sujeitos têm a oportunidade/possibilidade de estabelecer relações de suas
experiências leitoras a partir dos gêneros textuais (ou textos) trabalhados.
Toma-se como fundamento a perspectiva sócio-histórica da linguagem, bem como a
noção de gêneros do discurso (BAKHTIN, 1992), considerando sua natureza dialógica. Os
círculos de leitura são vistos como lugar no qual os sujeitos (alunos bolsistas do PIBID) se
posicionam, a partir de práticas sociais de linguagem (STREET, 1984), evidenciando como
abordagem de extrema importância para professores em formação, uma vez que traz
contribuições para a constituição de leitores no contexto acadêmico. Assim, pensar a
universidade enquanto espaço de formação do leitor é uma necessidade crescente posto que,
em muito, já se superou a concepção de que a escola fundamental e do ensino médio é a única
responsável por esta tarefa. Nos dias atuais, compreendemos que a sociedade demanda da
universidade a formação de sujeitos capazes de participar da diversidade de práticas leitoras,
tanto daquelas que fazem parte das atividades acadêmicas (pertinentes às áreas do
conhecimento), do desempenho profissional, bem como de outros contextos sociodiscursivos,
principalmente, no que se refere aos alunos dos cursos de licenciatura, dos quais se espera o
desenvolvimento de práticas leitoras quando da sua atuação em escolas dos ensinos
fundamental e médio. Esta preocupação está posta nos objetivos gerais do PIBID da UEFS.
Ao considerar a leitura como uma questão que deve ser trabalhada em (por) todas as áreas.
Por isso, a realização dos círculos de leitura envolvendo estudantes/bolsistas dos cursos de
licenciatura participantes desse Programa Institucional, constituiu-se em momentos significativos
de leituras, debates, trocas, nos quais os sujeitos partindo de suas vivências leitoras puderam
construir/estabelecer redes de sentidos a partir dos diversos textos trabalhados. Para muitos
1 Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Estadual de feira de Santana. Feira de Santana, Bahia, Brasil. E-mail: [email protected].
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estudantes, a participação nos círculos foi uma experiência relevante para sua formação enquanto
leitores em constituição, assim como para sua atuação nas atividades em sala de aula.
Círculos de Leitura: espaço dialógico
Para Bakhtin, “a língua existe não por si mesma, mas somente em conjunção com a
estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através da enunciação que a língua
toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade. (...)”
(BAKHTIN, 2004 [1999], p. 154). O texto, então, seria essa construção enunciativa concreta,
situada e em constante diálogo com a realidade. Nesse caso, os textos parecem ganhar,
juntamente com a modernidade, uma fluidez (BAUMAN, 2001) necessária às práticas humanas
também diversas e fluidas. A concepção de texto/leitura em rede – pressupõe uma relação
constitutiva entre gêneros discursivos, esferas de comunicação (escolares e não-escolares) e os
sujeitos (BAKHTIN, 1992).
A discussão de Bakhtin acerca dos gêneros discursivos também reforça que o texto se faz
presente e se constitui socialmente e tem uma natureza de transitar por espaços diferenciados.
“Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas
com a utilização da língua.” (BAKHTIN, 1997, p. 279). Essa é a base da noção de gêneros
trazida pelo autor e tem impacto sobre a noção de texto em sua natureza dialógica,
multifacetada, heterogênea, pois os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”.
É sobre essa concepção que o autor enfatiza a variedade dos gêneros, ainda que se limite aos
gêneros orais e escritos. Atualmente, outros gêneros, em outras modalidades de linguagem,
estão sendo evidenciados, vinculados a questões acadêmicas, políticas e/ou educacionais.
O objetivo do trabalho é, portanto, apresentar a realização de círculos de leitura enquanto
metodologia que proporciona um espaço dialógico no qual os sujeitos (bolsistas do pibid) têm
a possibilidade de estabelecer relações entre as suas diversas práticas de multiletramentos.
Tomamos os Círculos de leitura como lugar no qual os sujeitos (estudantes bolsistas do PIBID)
se posicionam, a partir de práticas sociais de linguagem (STREET, 2014).
Quanto ao conceito de multiletramentos, destacamos a visão de Rojo:
(...) O conceito de multiletramentos – é bom enfatizar – aponta para dois tipos
específicos e importantes de multiplicidade presentes em nossas sociedades,
principalmente urbanas, na contemporaneidade: a multiplicidade cultural das
populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos por meio
dos quais ela se informa e se comunica” (Rojo, 2012, p. 13).
Entre as referidas multiplicidades, o círculo de leitura se coloca como sendo uma
metodologia diferenciada que, ao mesmo tempo, possibilita o diálogo com os diversos gêneros
e constitui-se num espaço para construção de um conhecimento acerca da prática cultural com
leitura e escrita. A autora destaca a importância de se pensar nessa grande malha textual, que
se compõe de textos, usando uma metáfora que traduz bem essa teia social de produção dos
gêneros. Segundo Rojo, “o melhor lugar para eles existirem é “nas nuvens” e a melhor maneira
de se apresentarem é na estrutura ou formato de redes (hipertextos, hipermídias)” (ROJO, 2012,
p. 23). É possível defender, então, o espaço social em si como hipertextual: do cotidiano para a
multiplicidade cultural e semiótica.
O problema que se coloca a partir dessa realidade é: Se, como argumentamos, existem
múltiplos letramentos, como foi que uma variedade particular veio a ser considerada como o
único letramento?” (STREET, 2014, p. 121). Essa questão é essencial para compreendermos a
dinâmica das relações sociais e o papel da escola nessa grande teia:
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como pensar uma sequência de atividades para sala de aula que parta dessa realidade híbrida,
tomando as práticas textuais e seus diversos gêneros e culturas em movimento nas diversas
esferas de atuação do homem?
que elementos da diversidade semiótica podem ser mobilizadores da constituição da autoria,
das seleções de leitura e de produção de textos na sala de aula?
A proposta de nossa oficina foi possibilitar, portanto, o acesso a coleções de leituras
diversas em estética e em funções sociais, ao mesmo tempo que abordassem questões relativas
ao contexto da escola e ao tratamento dos multiletramentos na formação de professores em
iniciação à docência. Essa abordagem, pretendeu pensar os gêneros nessa dinâmica, a partir da
pedagogia de multiletramentos (STREET, 2014), voltada para a formação de professores
(bolsistas do PIBID).
Os círculos de leitura em três momentos
Os círculos de leitura aconteceram em três dias, cada um configurando-se num momento
específico, envolvendo temas e gêneros que dariam conta de uma prática de formação de
estudantes em iniciação à docência, com base na pedagogia dos multiletramentos. Foram temas
trabalhados na oficina: eu e o outro no mundo e cenas de sala de aula. Para isso, os gêneros
trabalhados foram poema, conto, tiras e filme, autorretrato, relato e debate. A escolha dos
gêneros permitiu tratar o tema de modo transversal, evidenciado a ideia do texto em rede. Os
textos selecionados para esse primeiro momento foram:
4. Poema Quando olho para mim não me percebo – Álvaro de Campos
5. Conto de escola – Machado de Assis
6. Tiras de Calvin - Bill Watterson
7. Tiras de Mafalda – Quino
8. Filme Entre os muros da escola – Laurent Cantet, 2008
Cada leitura foi muito importante para dar conta da multiplicidade de gêneros, ao tempo
que contemplava o tema definido e cumpria uma função de mobilizar os estudantes para a
prática de sala de aula e para análise do texto em rede na sociedade em geral. Quanto aos
momentos, foram assim desenvolvidos:
Momento 1
socialização das expectativas com a oficina;
leitura de poema de fernando pessoa (heterônimo álvaro de campos) – quando olho para
mim, não me percebo
discussão do poema/produção de um auto-retrato
socialização da produção
leitura do conto de escola, de machado de assis
discussão
Momento 2
relato escrito das práticas de letramento, nas diversas esferas de comunicação dos
participantes da oficina/socialização do relato
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leitura de tirinhas de Mafalda e de Calvin (três tiras de cada)
discussão (a discussão ocorreu a cada leitura – total de 6 tiras)
Momento 3
exibição do filme Entre os muros da escola
discussão do filme
avaliação da oficina
Nos Círculos de Leitura, primeiro momento, realizado a partir da leitura do poema
“Quando olho para mim não me percebo”, de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando
Pessoa); e da discussão/produção de autorretrato: 1) as participantes comentaram o texto de
Álvaro de Campos. Uma delas relacionou com uma leitura feita em aula de teoria de literatura
sobre Fernando Pessoa, segunda a qual o poeta declara que quando escrevia como Álvaro de
Campos estava “sonolento e com preguiça”; 2) outra comenta propaganda do canal futura (o
que move o mundo são as perguntas...) pra falar da importância de se fazer perguntas, o que
significa curiosidade sobre o mundo, estar em busca de saber algo, pra justificar o poeta “não
saber” o que quer; outra fala da função da arte, do papel de fazer as pessoas pensarem sobre a
vida (movimento da escrita para o cotidiano). A discussão levou à produção de um autorretrato.
Cada aluno escreveu sobre si a partir do lugar de estudante que atua no PIBID. Uma participante
declarou que faria um poema dada (remissão a leituras de movimentos artísticos).
No momento de leitura do conto de escola/discussão, ocorreu o seguinte: uma participante
relacionou ao contexto político brasileiro atual, citando a delação premiada; discussão sobre a
relação de poder na escola: a posição que o professor e o estudante ocupam; os saberes/as
interdições; as “barganhas” pra ter “sucesso” na escola; relação com vivências pessoais
enquanto estudantes do ensino fundamental e médio;
referência a outros textos lidos sobre história da educação no brasil em outras disciplinas do
curso;
confronto da realidade escolar com as novas propostas de intervenção do pibid, mais
colaborativas/dialógicas, as quais priorizam a comunicação entre saberes na escola e fora dela.
Considerações sobre a prática com multiletramentos nos Círculos de Leitura
Reconhecemos alguns pontos bastante positivos dessas oficinas. A oportunidade de
leitura de textos em suas múltiplas semioses pelos estudantes em formação foi muito proveitoso
e os inseriu num perspectica diferenciada. O relato das várias práticas de letramento a partir das
diversas coleções de leitura dos estudantes. Outro ponto importante foi a identificação de
aspectos estéticos e culturais dos gêneros trabalhados, também as leituras em sequência, cada
uma com seu tempo de interpretação/compreensão. A cada leitura de novo gênero, há
recorrência ao já lido antes.
No momento 3, discussão do filme, foram retomadas questões discutidas desde o primeiro
momento: o texto vai sendo lido em rede, observando como o tema é tratado e que vínculos
ideológicos e culturais são construídos e como a estrutura define ou não o gênero.
As seleções vão sendo tratadas como práticas constitutivas do estilo e, consequentemente
da autoria. As participantes depõem que os círculos possibilitam que se posicionem diante dos
saberes apresentados, defendendo a importância desta metodologia para sua formação.
OS CÍRCULOS DE LEITURA NA INICIAÇÃO À DOCÊNCIA: UMA EXPERIÊNCIA COM O PIBID
LINHA MESTRA, N.30, P.130-134, SET.DEZ.2016 134
Os sujeitos fazem seleções de gêneros conforme sua cultura, seu estilo. E sendo estes
elementos caracterizados pela diversidade, é de grande importância a abordagem dos
multiletramentos na escola.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
ROJO, Roxane, MOURA, Eduardo (Org.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola
Editorial, 2012.
STREET, B. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na
etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. 1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014.
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UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE REPRESENTAÇÕES DE LEITURA
COMPARTILHADAS ENTRE PROFESSORES DE LÍNGUA ESPANHOLA
DO INTERIOR PAULISTA1
Rafael Ribeiro dos Santos Borges2
Luzmara Curcino3
O ato de ler não pode ser concebido senão em sua complexidade histórica, cultural e
social. Essa complexidade advém e se manifesta nas várias concepções e discursos que o erigem
em suas dimensões prática e simbólica, responsáveis pelo modo como nos reconhecemos e nos
representamos como leitores. A esses aspectos gerais e complexos que conformam a leitura, é
preciso acrescer as especificidades desse gesto quando o concebemos no âmbito do ensino de
língua estrangeira. Assim, soma-se a essa rede de representações próprias da leitura de textos
em língua materna, aquelas relativas ao imaginário do que é ser leitor de textos escritos em
outra língua e cultura. Entram em jogo as nossas representações quanto ao nível de
conhecimento cultural e linguístico necessário para se exercer a leitura de textos em outra
língua, em especial no que concerne aos textos de maior prestígio da cultura em questão, tais
como os textos literários.
Embora grande parte das representações do que é ser leitor sejam transculturais, uma vez que
essa prática goza indiscutivelmente de alto prestígio simbólico nas sociedades letradas de modo
geral, e uma vez que esse prestígio se relaciona também aos objetos culturais que ao longo da
história e graças a uma série de instituições tornaram-se os exemplares da genialidade de cada
cultura (livros e entre eles obras de autores consagrados), há certas especificidades relativas aos
modos como diferentes comunidades de leitores se identificam, compartilham valores e gostos,
selecionam textos, e se valem da prática de leitura com finalidades e objetivos distintos. No
ensino/aprendizado de uma língua estrangeira, além do necessário conhecimento da língua para se
tornar leitor de textos nela produzidos, parte-se do pressuposto de que já se é leitor na língua de
origem, logo, pressupõe-se que aquele que aprende uma língua compartilha de antemão certas
práticas de leitura em sua língua materna, de modo que parte de suas estratégias e hábitos de leitura
possam ser transpostos para a apropriação de textos em língua estrangeira.
Apesar dos vários estudos dedicados à leitura em língua estrangeira, conforme
levantamento realizado por Moita Lopes (1999, p. 424) que constatou em relação às décadas de
80 e 90 que o tema da leitura era o segundo mais privilegiado pelas pesquisas de mestrado e de
doutorado no ensino de línguas, ainda assim, na prática educacional e de ensino de línguas não
se vê com frequência discussões acerca dos desafios para se formar um leitor em língua
estrangeira. Ainda que se conceba a leitura como um direito humano e como forma de
estabelecimento de equidade a partir de uma concepção sociocultural de ensino (tal como
preconizado nas Orientações Curriculares do Ensino Médio - OCEM, 2006), a leitura nas aulas
de língua estrangeira é em geral conduzida segundo uma perspectiva instrumentalista, com
finalidade pragmática de ensinar a decodificação da escrita em outra língua ou de abordar a
leitura como uma das 4 habilidades necessárias ao aprendizado de uma língua.
Para essa tarefa, a figura do professor ocupa papel privilegiado e de destaque. Por suas
decisões, escolhas e competências, ele pode não apenas ensinar a decodificação de textos sob a
forma escrita na língua estrangeira alvo, como também produzir uma identificação salutar e
plena com os usos peculiares e excepcionais de uma língua e da cultura que ela enseja, 1 Esse artigo advêm da pesquisa em nível de mestrado financiada pela Fapesp sob o número 2015/02786-7. 2 Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
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LINHA MESTRA, N.30, P.135-138, SET.DEZ.2016 136
manifestos em certos textos e graças à sensibilidade acurada de alguns autores. Ainda que não
seja o único responsável pela formação leitora do aluno, o professor sem dúvida é um dos
pilares base nesse processo de mediação entre o já sabido e aquilo que se espera que ele aprenda,
a partir de um conhecimento formal e sistematizado no âmbito escolar.
Assim, o professor atua de modo a não apenas prover os meios de compreensão linguística
e cultural dos textos formulados numa língua estrangeira, como também na transmissão dos
valores acerca da própria leitura. Por isso, a compreensão das representações sobre a leitura
compartilhadas entre professores, e mais especificamente entre professores que atuam no
ensino de uma língua estrangeira como o espanhol, importam na medida em que podem
contribuir com o ensino dessa língua e com a formação efetiva de leitores de textos das culturas
de expressão espanhola. Saber o que os professores dessa língua dizem sobre a leitura, de modo
geral, dizem sobre si como leitores de textos em língua espanhola, sobre quais são os objetos e
gêneros discursivos mais lidos por eles e mais indicados em suas aulas, e quais são as formas
de incentivo e de aferição da leitura por parte de seus alunos de língua estrangeira, pode
contribuir para a formação contínua, e indistinta de uma língua a outra, do gosto pela leitura,
ampliando as chances de formar um leitor perene.
Desafio de todo e qualquer professor de língua, a formação do leitor perene depende da
melhor compreensão do funcionamento discursivo das línguas e das práticas e objetos
simbólicos que concernem esta língua. Depende ainda da capacidade de fomento dessa prática
diretamente ligada às representações que compartilha sobre o tema. Assim, o trabalho com a
leitura nas aulas de língua espanhola deve preconizar a formação de um aluno para que ele não
apenas saiba ler na língua espanhola, mas que se torne efetivamente leitor de textos nessa
língua, capaz de posicionar-se criticamente em relação aos mesmos, ampliando assim suas
referências de mundo e aproximando-se cada vez mais da cultura e da língua alvo.
Foi visando compreender o perfil leitor dos professores, e seu potencial identificatório no
fomento da leitura, que nos dedicamos, em parte de nossa pesquisa, a realizar um mapeamento
geral desse perfil. Para tanto, realizamos a aplicação de um questionário/entrevista com
professores de língua espanhola que atuam na cidade de São Carlos, interior de São Paulo. O
questionário aplicado é composto por 30 questões, entre abertas e mais genéricas, até aquelas
mais específicas, objetivas, representadas formalmente por questões fechadas, de múltipla
escolha e dicotômicas (sim ou não), apresentadas a um grupo de 13 professores de espanhol4
atuantes em escolas privadas e no Centro de Estudo de Línguas (CEL)5.
Durante o levantamento e análise desses dados constata-se, já nas respostas às primeiras
perguntas, a preocupação dos entrevistados em demonstrarem sua consciência quanto à
importância de se engajarem em um constante processo de formação e aprendizagem,
possibilitado tanto pela prática docente, quanto por ela exigido.
Fiz a minha graduação em Letras em 5 anos e meio. No entanto, atuando como
professora de espanhol na rede pública e privada, acredito estar em constante
formação e aprendizagem e, portanto, sigo estudando a língua, suas variedades
e as culturas dos diversos países que a falam. Deste modo, estudo espanhol
há, aproximadamente, 8 anos. (P13 – EP, CEL)6
4 A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal
de São Carlos, sob o parecer de nº 1.390.004. 5 Segundo informações fornecidas pela Secretaria da Educação da cidade de São Carlos, em geral, as escolas
públicas da cidade não dispõem da oferta da língua espanhola em sua grade regular, o que justifica a ausência de
professores desse perfil em nosso corpus. 6 Como é de consenso na área, com a finalidade de manter o sigilo dos entrevistados utilizamos P (Professor), o
número das entrevistas, EP (atuante na escola particular) e CEL (atuante no Centro de Estudo de Línguas).
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LINHA MESTRA, N.30, P.135-138, SET.DEZ.2016 137
Esse tipo de declaração, manifesta em resposta à pergunta que se referia há quanto tempo
aprendeu a língua, mostra uma consciência desses professores e uma filiação de seus
enunciados aos discursos acadêmicos e pedagógicos sobre a formação continuada do professor,
em que a prática no ensino também é considerada um processo de formação docente.
Afeitos à língua, indissociável da cultura que ela expressa, os professores entrevistados
demonstram não apenas a busca pelo conhecimento linguístico e a viabilização do contato com
os objetos simbólicos produzidos nessa língua, como também demonstram sua grande afinidade
intelectual e sua identificação afetiva com os povos e sua exceção cultural. Essa relação de
conhecimento e de afeto define as escolhas leitoras que esses professores empreendem para ler
em espanhol e para motivar seus alunos na leitura de textos nessa língua. Em geral, declaram
em suas repostas que suas leituras são norteadas pelo prazer de ler, embora grande parte dos
textos que leem na língua estrangeira advenha do livro didático que usam para suas aulas. Esse
instrumento pedagógico e essa finalidade pragmática de ler os textos em função dos objetivos
das lições preconizadas no material parecem contradizer a declaração comum de que a leitura
deve ser feita por prazer. Os demais objetos e gêneros textuais de leitura (contos e crônicas,
textos jornalísticos e poesias além dos periódicos online como “El país” e “El mundo”) embora
refiram-se a materiais complementares ao livro didático e selecionados pelos professores em
função de seus gostos, de seu acesso e interesse por esses textos, também não correspondem
aos tipos de textos que consensualmente se considera serem aqueles que são lidos por leitores
efetivos, de modo espontâneo e por prazer e que gozam de maior prestígio simbólico, em grande
parte por não se tratar de uma ação com um fim outro que não apenas a fruição, tal como a
leitura de romances ou de poesia para entretenimento ou ilustração.
Apesar desse descompasso em relação às representações de leitura que em geral gozam
de maior valor simbólico nesse campo, em geral os professores consultados se consideram bons
leitores, com exceção de um que questiona o que está sendo entendido por leitura,
exemplificando que não domina todos os gêneros, como os textos da área jurídica, por exemplo,
além de se considerar um melhor leitor em sua língua materna em função das aproximações
culturais que envolvem o ato de ler. Outra representação que compartilham sobre a leitura é
aquela que afirma ser necessária ao bom leitor a capacidade de ler criticamente. Tendo em vista
que não é qualquer apropriação de qualquer gênero que exige uma atitude crítica em relação
aos textos, depreendemos mais uma vez o predomínio da leitura e do ensino da leitura a partir
de textos sobretudo informativos, de origem midiática. Assim, além de conceberem a
importância de que a leitura seja uma prática constante, eles também manifestam mais
reiteradamente que outras a preocupação com uma abordagem crítica daquilo que se lê.
A partir de suas respostas, pudemos constatar que os gêneros e os objetos declarados
como os mais lidos pelos professores em língua estrangeira são os mesmos que eles dizem
trabalhar frequentemente em sala de aula, principalmente por meio da leitura em voz alta de
modo a aferir os avanços quanto à pronúncia adequada das formas da língua. Frente a certos
dados e a essa constatação, é possível compreender uma distinção entre a concepção da leitura
em língua materna e a concepção da leitura em língua estrangeira, quanto a seu ensino e
fomento. O que parece estar implicado nessa abordagem com a leitura nas aulas de língua
estrangeira não é necessariamente o trabalho com o texto, a produção e desenvolvimento dos
sentidos, e a apresentação de obras de uma cultura, de modo a incentivar e a tornar perene o
interesse e o hábito de leitura de textos nessa segunda língua, mas sim uma leitura para fins de
aferição e fomento da pronúncia adequada da língua. Ainda que as habilidades comunicativas
(escrita, leitura, oralidade e audição) estejam intrinsecamente relacionadas, como aponta Baralo
(2000), é, no entanto, preciso que o professor tenha claro quais são os limites e o foco de cada
uma delas, de forma a não subutilizar o texto na falsa aparência de estar trabalhando-o
UMA ANÁLISE DISCURSIVA DE REPRESENTAÇÕES DE LEITURA COMPARTILHADAS ENTRE...
LINHA MESTRA, N.30, P.135-138, SET.DEZ.2016 138
efetivamente com os alunos. É justamente pela subutilização do texto ou pelo desvio de foco
na competência que está sendo privilegiada que existem estudos mais radicais como os de Busto
(2013, p. 29) que recomendam aos professores ser preciso lembrar que “la lectura es un buen
ejercicio de expresión lectora, pero no de expresión oral”7À pergunta sobre qual seria a maior
dificuldade que enfrentam para formar um leitor em língua espanhola, os professores
declararam, em uníssono, ser a “falta de vontade dos alunos”, que por sua vez explicaria as
decisões que adotam no trabalho com certos textos e não outros. Partindo do pressuposto de
que os alunos não leem, não gostam de ler, leem pouco mesmo em sua língua materna, os
professores adotam como estratégia para trabalharem essa habilidade em suas aulas a adoção
de textos que compõem o repertório cultural de seus alunos e que despertem neles seu interesse
pelas aulas e pela leitura, o que redunda e explica a escolha de gêneros de extensão mais breve,
contemporâneos e, crescentemente, mais multimodais.
É possível constatar de modo geral que as representações dos professores sobre a leitura, a
forma como se veem como leitores em língua espanhola e por consequência veem seus alunos, os
gêneros textuais que fundamentam as práticas em sala de aula, inclusive para além do livro didático,
respondem a diferentes discursos sobre a leitura, sobre os textos mais legítimos, sobre as
metodologias de ensino vigentes a serem seguidas e sobre o perfil de seus alunos. A ideia de que a
leitura deve ser uma prática prazerosa e de que para formar leitores é preciso ler textos que os
agradem têm muito a ver com o imaginário sociocultural que compartilhamos, de modo geral, sobre
a leitura hoje. A ideia de que o trabalho de leitura de textos, como etapa da formação no
ensino/aprendizado de uma língua estrangeira, deve priorizar textos que permitam aferir a fluência
na leitura oral, bem como ampliação lexical e vocabular na língua alvo, ainda parece nortear a
escolha dos gêneros presentes nos livros didáticos de ensino de língua estrangeira, bem como as
escolhas extra livros didáticos realizadas pelos professores. A ideia de que é preciso formar o leitor
crítico também explica a preferência por textos de viés argumentativo ou informativo na leitura em
suas atividades intra e extra classes. Mais do que oriundas da constatação individual desses leitores,
essas concepções são antes coletivas e socio-histórica e culturalmente determinadas.
A reflexão sobre esse funcionamento dos discursos sobre a leitura, que recaem sobre nossas
práticas, sobre o modo como lemos ou como ensinamos e fomentamos a ler, é fundamental na
atuação docente de modo a nos tornar mediadores da leitura mais consequentes porque cientes
dessas injunções que, em matéria de leitura, fazem falar, fazem fazer e fazem ser.
Referências
BARALO, M. El desarrollo de la expresión oral en el aula de E/LE. Carabela, Madrid, Sgel,
n. 47 (El desarrollo de la expresión oral en el aula de E/LE), p. 5-36, 2000. Disponível em:
<https://www.nebrija.com/revista-linguistica/files/articulosPDF/8.Baralo1.pdf>. Acesso em:
15 ago. 2016.
BUSTO, Enrique Santamaría. Enseñar la competencia fonética. In: ZAROBE, Leyre Ruiz de,
ZAROBE, Yolanda Ruiz de. (Org.) Enseñar hoy una lengua extranjera. España: Publidisa,
2013, p. 2-64.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Fotografias da Linguística Aplicada no campo de línguas
estrangeiras no Brasil. DELTA [online]. São Paulo, v. 15, n. especial, p. 419-35, 1999. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/delta/v15nspe/4024.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
7 A leitura é um bom exercício de expressão leitora, mas não de expressão oral. (Tradução nossa)
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UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E
DISTRIBUIÇÃO
Claudia Leite Brandão1
Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues2
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!
Castro Alves
Este trabalho apresenta dados obtidos por meio de pesquisa desenvolvida no período de
2014 a 2016 e vinculada ao grupo Alfabetização e Letramento Escolar (ALFALE), da UFMT,
Câmpus Universitário de Rondonópolis, no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGEdu). Seu objetivo foi compreender o funcionamento e a distribuição do PNBE do
Professor 2013 para as escolas públicas, particularmente no munícipio mato-grossense de
Primavera do Leste. Neste texto será apresentada uma parte dos dados coletados sobre os
investimentos do Ministério da Educação (MEC) em livros destinados à leitura profissional
docente com o objetivo de suscitar reflexões sobre a destinação de obras para subsidiar a
formação contínua de professores no interior das próprias escolas.
Em 1997, o MEC, no Governo de Fernando Henrique Cardoso, instituiu o Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) com a finalidade de distribuir obras de literatura, de
pesquisa e de referência, para promover o acesso e o incentivo à leitura por parte de alunos e
professores. Assim, o PNBE constituiu-se na distribuição de livros de literatura (PNBE
Literário) como ação principal do Programa.
A partir do Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Edital de
convocação de 2009, foram incorporadas outras ações específicas, como: PNBE Especial (obras
teóricas sobre necessidades educacionais especiais), PNBE Temático (obras de literatura que
retratem o reconhecimento e a diversidade humana), PNBE Periódicos (revistas da área
educacional) e o PNBE do Professor (obras de referências teóricas e metodológicas).
A criação do PNBE do Professor está vinculada à Política Nacional de Formação de
Profissionais do Magistério da Educação Básica, instituída pelo Decreto nº 6.755, de 29 de
janeiro de 2009. No referido documento, a formação continuada como política nacional é
entendida como componente essencial da profissionalização docente, devendo articular a teoria
e a prática no processo de formação docente, buscando domínio de conhecimentos científicos
e didáticos. (BRASIL, 2009).
Nessa perspectiva, o PNBE do Professor fez parte das estratégias do Governo Federal
para a formação docente, entregando às escolas públicas obras de cunho teórico e metodológico,
para apoiar a prática pedagógica dos docentes, buscando uma articulação entre teoria e prática.
Nesse entendimento, os livros do PNBE do Professor se constituem em um instrumento de
apoio ao processo de formação docente e constituição do professor leitor.
1 Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC), Primavera do Leste, Mato Grosso, Brasil. E-mail:
cau_brandã[email protected]. 2 Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail:
UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.139-143, SET.DEZ.2016 140
O PNBE do Professor, até o momento, teve duas edições distribuídas às escolas:
PNBE do Professor 2010 – entregue às escolas no ano de 2011 contemplando os docentes
do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos, com a distribuição
de 6.983.131 livros totalizando R$ 59.019.172,00 como investimento.
PNBE do Professor 2013 – chegou às instituições de ensino no ano de 2014, atendendo aos
docentes da Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e
Adultos, com aquisição de 12.106.780 exemplares e um investimento de R$ 104.601.156,59.
(BRANDÃO, 2016).
O investimento na aquisição e distribuição de livros nas escolas públicas brasileiras
corrobora com a concepção de que o profissional da Educação, particularmente o professor,
deve aperfeiçoar-se continuamente. A leitura, inequivocamente, é um meio para fomentar e
ampliar a formação continuada.
Partindo dessa afirmação, entendemos que a leitura profissional é essencial para a
constituição da profissão docente em qualquer modalidade de ensino. Nesse sentido, o PNBE do
Professor busca contribuir para o processo de formação permanente e continuada dos educadores.
Desse modo, apresentamos este texto como subsídio aos estudos sobre as políticas de
promoção à leitura no Brasil. Para tanto, esta investigação consistiu em uma pesquisa de
abordagem quanti-quali, tendo como instrumento a análise de documentos oficiais, dentre
outras publicações relacionadas ao Programa dispostas nos portais do Ministério da Educação
e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
A seguir, com um breve informativo sobre o PNBE do Professor, apresentamos a
discussão dos dados específicos sobre o PNBE do Professor 2013.
PNBE do Professor: Algumas informações
O PNBE do Professor foi instituído com o objetivo de distribuir livros de referências
teórico-metodológica aos docentes das escolas públicas brasileiras. Esses livros têm como
destino as bibliotecas escolares, onde devem ser disponibilizados para os docentes utilizarem
durante os seus processos formativos e na preparação das aulas.
Como pode ser conferido nos editais dos PNBEs (BRASIL, 2009; 2011), o processo de
aquisição das obras para composição do acervo do PNBE do Professor segue as seguintes etapas:
Elaboração e disponibilização do Edital estabelecendo os critérios para a inscrição,
composição e avaliação das obras a serem adquiridas pelo PNBE, devendo ser publicado no
Diário Oficial da União (DOU) e disponibilizado na internet. Nos editais do PNBE do
Professor consta a exigência de que os livros sejam de caráter teórico-metodológico, sem
características de doutrinação política e religiosa.
Com a disponibilização do edital, as editoras podem realizar as inscrições das obras seguindo
as normas estabelecidas. Após as inscrições das obras, a primeira etapa para seleção é a
triagem e a pré-análise, que é coordenada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), o
responsável pela verificação dos aspectos físicos e editatoriais dos livros, eliminando as
obras que não atendem ao edital publicado. Um dos critérios observados nesta etapa é o
número de obras inscritas, pois em cada edital é determinada a quantidade máxima de livros
inscritos por editora.
UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.139-143, SET.DEZ.2016 141
Segundo Cosson e Paiva (2014, p. 481), “os critérios que orientam a triagem são, em sua
maioria, de cunho técnico e documental, dizendo respeito às condições de participação das
editoras e cumprimento de requisitos legais para compras governamentais.”
Posteriormente à triagem e pré-análise, os livros são encaminhados para avaliação
pedagógica, que é realizada por professores de instituições públicas de Ensino Superior
selecionadas pelo MEC. Os docentes são responsáveis por elaborarem parecer individual de
cada obra. Acerca disso, Marques (2013) esclarece que cada professor recebe uma
quantidade de livros e ficha para realizar a avaliação. Para o exercício dessa função, o
avaliador recebe uma remuneração em forma de pagamento de bolsa e deve entregar o
parecer no prazo determinado.
Após a avaliação e seleção das obras, é enviada a lista com os títulos selecionados para que o
FNDE inicie o processo de negociação, assinatura do contrato com as editoras e determinação
da quantidade de obras que deverão ser produzidas com a supervisão dos técnicos do FNDE.
A distribuição é realizada pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que distribui os
acervos às escolas. Para escolas das zonas rurais, os acervos são entregues nas secretarias
municipais de educação ou prefeituras, que serão as responsáveis por distribuírem às escolas
rurais. A distribuição das obras pode ser acompanhada no portal do FNDE pelo Sistema do
Material Didático (SIMAD).
Esse processo faz parte da aquisição até a distribuição dos acervos do Programa. Algumas
particularidades sobre os critérios para inscrição e seleção podem ser diferenciadas em cada
edital do PNBE do Professor.
Nessa perspectiva, a seguir daremos ênfase aos dados específicos do PNBE do Professor,
que foram adquiridos por meio do Edital de convocação para inscrição no processo de avaliação
e seleção de obras de apoio pedagógico, para o Programa Nacional Biblioteca da Escola –
PNBE do Professor 2013.
Uma análise do PNBE do Professor 2013
No ano de 2011, foi publicado o Edital para a inscrição das obras para compor o PNBE
do Professor 2013 (BRASIL, 2011). Nesse documento constam os critérios específicos para as
editoras inscreverem as obras. Como alguns dos critérios estabelecidos, o Edital citava que os
livros inscritos não poderiam ter sido adquiridos pelo PNBE do Professor 2010; cada editora
poderia inscrever no máximo vinte (20) obras, com limite de oito em cada categoria; cada livro
poderia ser inscrito em apenas uma modalidade. No processo de seleção do PNBE do Professor
2013 foram escolhidas obras de quarenta e sete (47) editoras.
Vale ressaltar que o PNBE do Professor 2013 teve atendimento ampliado, passando a
contemplar todas as etapas de ensino da Educação Básica. Outro ponto importante nessa edição
do Programa foi a aquisição das obras em formato MecDaisy3.
Para a composição do PNBE do Professor 2013 foram selecionadas cento e vinte e cinco
(125) obras, distribuídas na composição dos seis acervos contemplando todas as categorias de
ensino. Os acervos abrangiam as seguintes áreas de conhecimento: Linguagem e Códigos;
Ciências Humanas; Ciências da Natureza e Matemática.
3 MecDaisy – software baseado no padrão internacional Daisy (Digital Accessible Information System) que
consiste em uma solução tecnológica para a geração de livros em formato digital acessível que permite a
reprodução audível utilizando gravação ou síntese de fala, a navegação pelo texto, a reprodução sincronizada dos
trechos selecionados, a ampliação de caracteres e a conversão para o Braille (BRASIL, 2011, p. 10).
UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.139-143, SET.DEZ.2016 142
No PNBE do Professor 2013 (versão impressa) foram aplicados R$ 83.046.190,67 na
distribuição de 12.106.780 livros, para compor 484.471 acervos sendo distribuídos a 153.751
escolas brasileiras. O Programa na categoria Educação Infantil teve 16% das obras adquiridas
pelo PNBE; 24%correspondiam a obras destinadas aos anos iniciais; outros 24% aos anos
Finais do Ensino Fundamental; para o Ensino Médio 24%; ao EJA - Ensino Fundamental 8% e
EJA - Ensino Médio 4%.
A partir desses percentuais nos indagamos: A baixa quantidade de livros adquiridos para
a Educação de Jovens e Adultos demonstra a existência de poucas produções específicas para
essa modalidade de ensino? A limitação de números de obras que podem ser inscritos por
editora favorece a diferenciação de livros inscritos por modalidade de ensino? As editoras
preferem a inscrição nas modalidades com maiores tiragens?
O Quadro 1 demonstra o panorama dos dados do PNBE na versão de livros impressos.
Categoria
Obras
por
Acervo
Valor por
Acervo
Tiragem
por obras
Total de
obras
adquiridas
Escolas
beneficiadas Investimento total
Educação
Infantil 20 R$138,13 106.626 2.132.520 87.232 R$14.728.249,38
E.F - Anos
iniciais 30 R$202,28 149.510 4.485.300 109.822 R$30.242.882,80
E.F - Anos Finais 30 R$205,83 102.955 3.088.650 50.740 R$21.191.227,65
Ensino Médio 30 R$220,01 62.177 1.865.650 19.290 R$13.679.561,77
E.F - EJA 10 R$57,41 43.797 437.970 31.967 R$2.514.385,77
E.M - EJA 5 R$35,55 19.406 97.030 7.550 R$689.883,30
TOTAL 125 R$859,21 484.471 12.106.780 153.751 R$83.046.190,67
Quadro 1: Caracterização do PNBE do Professor 2013 – Fonte: Base de dados Brasil (2015)
Em relação aos valores investidos na aquisição dos livros para compor o acervo do PNBE do
Professor 2013, houve variações: a obra adquirida de menor valor custou R$ 2,65 e a de maior foi
de R$ 17,15. A média de custo entre todas as aquisições ficou no valor de R$ 6,87 reais.
Já as obras no formato MecDaisy foram distribuídas para as escolas que possuíam
professores cegos e para as que tivessem mais 1.500 alunos. No Quadro 2 consta um panorama
dessas obras.
Categoria Obras por
Acervo
Valor por
Acervo
Tiragem por
obras
Total de obras
adquiridas
Investimento
total
Educação Infantil 20 R$117,60 1.246 24.920 R$146.529,60
E.F - Anos iniciais 30 R$165,60 1.450 43.500 R$240.120,00
E.F - Anos Finais 30 R$225,60 631 18.930 R$142.353,60
Ensino Médio 30 R$184,50 1.102 33.060 R$203.319,00
E.F - EJA 10 R$210,60 147 1.470 R$30.958,20
E.M - EJA 05 R$88,80 169 845 R$15.007,20
TOTAL 125 R$992,70 4.745 122.725 R$778.287,60
Quadro 2: Caracterização do PNBE do Professor 2013 versão MecDaisy – Fonte: Base de dados Brasil (2015)
UM ESTUDO DO PNBE DO PROFESSOR 2013: AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.139-143, SET.DEZ.2016 143
No PNBE do Professor 2013, na versão MecDaisy, foram investidos R$ 778.287,60 na
distribuição de 4.745 obras para compor 122.725 acervos. Diante dos dados expostos nos
quadros 1 e 2, verifica-se que o PNBE do Professor 2013 teve o investimento total de R$
83.824.478,27.
Algumas considerações
Após os estudos podemos considerar que o PNBE do Professor é uma ação recente dentro
do PNBE e que, de uma edição para outra, houve ampliação dos investimentos e do atendimento
entre as categorias de professores.
O investimento na aquisição e distribuição de livros de caráter teórico-metodológico para
as escolas públicas brasileiras objetiva principalmente subsidiar a formação continuada dos
professores. Desse modo, o acesso aos livros do Programa é importante para que os docentes
possam desenvolver o processo de formação e/ou autoformação, utilizando a leitura dos
materiais no ato de refletir sobre a prática pedagógica e a sua própria profissão.
Referências
BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Programa Nacional Biblioteca
da Escola. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-da-
escola/biblioteca-da-escola-apresentacao>. Acesso em: 24 de jul. de 2015.
______. Ministério da Educação. Edital de convocação para inscrição de obras de apoio
pedagógico destinadas a docentes no processo de avaliação e seleção para o Programa
Nacional Biblioteca da Escola – PNBE do Professor 2010. Diário Oficial da União. Brasília,
DF, 2009. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/109-
editais?download...edital-pnbe-do-professor2010>. Acesso em: 24 de jul. de 2015.
______. Ministério da Educação. Edital de convocação 02/2011 - Programa Nacional
Biblioteca da Escola – PNBE do Professor 2013. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 2011.
Disponível em: <http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/109-editais?download...edital-
pnbe-do-professor2013>. Acesso em: 24 de jul. de 2015.
BRANDÃO, Claudia Leite. PNBE do Professor: Usos e desusos. Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e sociais, Rondonópolis-
MT, 2016.
COSSON, Rildo; PAIVA, Aparecida. O PNBE, a literatura e o endereçamento escolar. Remate de
Males, Campinas, p. 477-499, jul./dez. 2014. Disponível em:
<http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/view/4207>. Acesso em: 12 de fev. de 2016.
MARQUES, Maria José Diógenes Vieira. Programa Nacional Biblioteca da Escola: PNBE
do correio à sala de aula, 2013, 182f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal de Uberlândia, Faculdade em Educação, Uberlândia-MG, 2013.
LINHA MESTRA, N.30, P.144-148, SET.DEZ.2016 144
BRINCANDO COM AS PALAVRAS: O POEMA EM SALA DE AULA
Regiane Meres Menezes Brites1
Ana Lúcia Nunes da Cunha Vilela2
O presente relato de experiência propõe a utilização dos projetos didáticos como uma
modalidade organizativa do ensino, composta de sequências de atividades que são finalizados
com a produção de um produto real e de uso social com um interlocutor definido e que
possibilita a leitura e a escrita como práticas sociais. O projeto didático de Língua Portuguesa
desenvolvido com uma turma do 1º ano do 1º ciclo, do Ensino Fundamental de uma escola
pública de Cuiabá-MT teve como gênero textual o poema, abordando o conteúdo de
comunicação oral e sobre as características linguísticas dos poemas. Este projeto teve o tempo
estimado de um mês, gerando ao final um livro de poemas no qual continham os poemas
selecionados pelas próprias crianças e a declamação dos poemas em um Sarau Infantil para os
funcionários, professores e pais.
Tal conteúdo justifica-se pela importância de desenvolver a comunicação oral, aproximar os
alunos da linguagem escrita e desenvolver oralidade por meio de recitação de poemas que se
caracterizam por sua musicalidade e por suas rimas, podendo criar várias situações de aprendizagem
significativa tanto da leitura e da produção de textos quanto do sistema de escrita alfabética.
Por meio das necessidades de aprendizagem apresentadas pelos alunos, elaboramos projetos
didáticos que possibilitem aos alunos elaborar e executar estudos e pesquisas que promovam
avanços no desenvolvimento cognitivo através de hipóteses levantadas por eles próprios.
A escolha por trabalhar com projetos didáticos deu-se por compartilharmos da ideia de
que é um trabalho “fascinante e surpreendente”, como discorrem os autores Grellet, Signorelli
e Scarpa (2001, p. 1) “Fascinante pela capacidade de envolver até os alunos mais displicentes.
Surpreendente por trazer embutido o germe do inesperado”. E por consideramos que o trabalho
proporciona aos “alunos que planejam e implementam projetos aprendem a analisar dados,
considerar situações e tomar decisões” (SIGNORELLI, 2001, p. 1), e que o professor tenha
certeza e clareza das competências que deseja desenvolver, que conhecimentos tem que
mobilizar e criar caminhos para a viabilização do assunto e das informações necessárias, além,
de trazer para o projeto em questão a participação, a colaboração e o respeito mútuo dos alunos.
Por meio do projeto de “Poemas” propomos a formação de crianças leitoras e produtoras
de textos, não somente como uma formação pedagógica, mas sobre tudo, uma formação
educativa com “um profundo sentido ético, uma vez que, em seu domínio da língua, na sua
capacidade de se expressar, entender e contribuir para o enriquecimento social, a criança está
ampliando o seu horizonte pessoal. ” (RUIZ, 2006, apud JOLIBERT, 2006)
O projeto se justifica pela importância de desenvolver nos alunos a oralidade por meio de
poemas que se caracterizam por sua musicalidade e por suas rimas. Com os poemas podemos
criar várias situações de aprendizagem significativa para os alunos, assim como ampliar seu
repertório de leituras e comunicação oral, já que a leitura dos poemas pelos alunos e pelo
professor precisa da mudança constante de papéis de quem ouve e de quem escuta. Essa troca
de papéis desenvolve nos alunos o propósito de falar e de escutar, além de desenvolver o direito
de expressar e respeitar opiniões e de inseri-los na cultura escrita e que se tornem usuários dela.
O poema por ter em sua característica uma sonoridade chama a atenção das crianças e por
possuir uma forma gráfica que favorece a memorização dos versos se torna um instrumento
1 Ceja Prof.ª Almira de Amorim e Silva, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Educação, Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. E-mail:
BRINCANDO COM AS PALAVRAS: O POEMA EM SALA DE AULA
LINHA MESTRA, N.30, P.144-148, SET.DEZ.2016 145
valioso em sala de aula. Por suas características o poema não favorece apenas a leitura, mas
também a atenção na hora de ouvir.
A estrutura composicional dos poemas, em especial os que possuem rimas,
convida à recitação. A semelhança sonora entre as palavras, a organização dos
versos em estrofes e o ritmo resultante dessa interação são especialmente
sentidos e apreciados quando pronunciamos um poema em voz alta.
(BRASIL, 2012)
Proporcionar aos alunos situações em que eles têm que ouvir com atenção e ler em voz
alta é uma maneira de ampliar o universo discursivo deles. Dessa forma esperamos que não só
se familiarizem com a linguagem poética, mas sobre tudo sintam prazer em ler e ouvir poesia.
A proposta de apresentar os poemas aos alunos e que, além de aprenderem sobre rimas e
a se comunicarem oralmente, eles memorizem os poemas que mais lhes interessaram.
Memorizar os poemas e assim declamarem em público significa demonstrar os conhecimentos
adquiridos. Dessa forma nosso papel como professor é facilitar “que todas as crianças se sintam
seguras para poder expressar suas emoções, sentimentos, opiniões e sugestões”. (JOLIBERT,
2006, p. 49)
Igualmente importantes são os objetivos que almejamos alcançar com a realização do
Projeto Poema. São objetivos reais que buscam, antes de qualquer coisa, formar leitores e
produtores de textos, desenvolver comportamento de leitor e a linguagem poética, ampliar o
repertório literário dos alunos, conhecer as características das poesias e autores desse gênero,
utilizar a linguagem oral em uma situação comunicativa formal, recitar poesias explorando
recursos existentes na oralidade e valorizando os sentimentos que o texto quer transmitir,
valorizar a entonação de voz, fluência, ritmo e dicção como maneira de articular e aperfeiçoar
a oralidade e brincar com a sonoridade das palavras.
Aprendizagens realizadas
Para que nossos objetivos fossem alcançados com êxitos, utilizamos como metodologia
a divisão do projeto de formar a trabalharmos com ele uma vez por semana, por entendermos
que o projeto é um conjunto de atividades que auxilia a aprendizagem e independente das
atividades de sistematização e das sequências didáticas trabalhadas.
O início do projeto aconteceu com uma apresentação das características dos poemas para
as crianças, apresentação do livro de poemas, no qual foram retirados os poemas a serem
trabalhados em sala: BOI DA CARA PRETA e A ARCA DE NOÉ. Além de mostrarmos a
estrutura que os livros possuem (título, autor, sumário).
Ao convidar as crianças a observar o livro de poemas e escutar a leitura de alguns deles,
favorecemos a aprendizagem do comportamento leitor e ao explorem o livro conheceram suas
características e identificaram diferenças entre a leitura de diversos textos.
No segundo e terceiro momento realizamos atividades com rimas, para que os alunos
reconhecessem unidades fonológicas ou segmentos sonoros. Utilizamos como recurso didático
cartazes com a escrita dos poemas, fichas com palavras retiradas dos poemas, reordenação de
poemas já conhecidos e brincadeiras como a da “barquinha”, para a sistematização de rimas.
Essas atividades permitiu as crianças que observassem a sonoridade das palavras e
utilizem seus conhecimentos para criar novas rimas ampliando seu repertorio de vocabulário e
compreender as relações entre oralidade e escrita refletindo sobre como se escreve.
No quarto momento trabalhamos com a escrita de um poema conhecido dos alunos. Os
alunos ditavam um poema de seu conhecimento, para o professor que servia de escriba,
BRINCANDO COM AS PALAVRAS: O POEMA EM SALA DE AULA
LINHA MESTRA, N.30, P.144-148, SET.DEZ.2016 146
pontuando junto a eles as unidades gráficas do poema como: linha do verso, trecho da estrofe.
Após escrita no quadro foi feito a releitura do poema para conferir se o mesmo estava escrito
de forma correta, depois de verificado os alunos deveriam copiar no caderno.
A escrita de um poema conhecido permitiu as crianças aprenderem alguns
comportamentos de escritor e atentar para as características gráficas do poema apropriando-se
da linguagem escrita e suas características.
O quinto momento se destinou para o ensaio dos poemas que seriam recitados no Sarau.
Neste dia levamos um microfone como recurso material para que os alunos fossem se
acostumando e para que percebessem a importância do momento. Tão importante como a
memorização do poema era o aprendizado da postura com que eles deveriam se portar perante
público, já que a declamação de um poema tem uma formalidade implícita. Nesse ensaio
procuramos desenvolver nos alunos o sentido de se comunicar em público e de toda a
formalidade que a oratória requer.
Ao pedirmos para as crianças recitarem os poemas escolhidos por elas mesmo, elas
observaram a importância do respeito ao seu momento de falar e ao momento do outro falar,
para poderem acompanhar a ordem sequencial do texto e adaptarem a sua participação
aprimorando os procedimentos de recitação de poema, como ritmo e entonação de voz.
Propusemos como produto final e de uso social a confecção de um livro contendo todos
os poemas estudados e lidos ao longo do projeto, digitado pelos professores e ilustrado pelos
alunos. Para marcar o “encerramento” do projeto fizemos um Sarau Infantil para toda a escola
e para os pais. Esse Sarau concluiu uma etapa da aprendizagem em que os alunos foram
responsáveis por sua própria aprendizagem.
No Sarau as crianças sentiam um misto de nervosismo, euforia, alegria e autoestima
elevada, pois era um momento em que estava em jogo seu aprendizado, seus conhecimentos e
suas experiências num desafio pessoal porque estudaram e se prepararam para aquele momento.
O Sarau propõe uma situação real de comunicação oral com vários interlocutores o que faz dele
um momento desafiador.
A partir do momento em que os alunos venceram o desafio do Sarau na escola, novas
portas se abriram e novos desafios surgiram como, por exemplo, a recitação dos poemas em um
ambiente social diferente e desconhecido do que eles vivenciam. O desafio surge para a
apresentação em um encontro de capacitação estadual para representantes das secretarias
municipais de educação do estado de Mato Grosso realizado em um Hotel na cidade de Cuiabá.
Este momento foi muito relevante, pois abriu os horizontes dos alunos para novas perspectivas
e novas interações sociais e culturais.
Novos caminhos e possibilidades
Durante o desenvolvimento do projeto de Poemas percebemos a importância de criar
estratégias que aproximasse as crianças do universo das rimas. Uma aproximação que
permitisse uma tomada de consciência e de identificação com a cultura escrita e proporcionando
uma interação com culturas diferentes da que convivem no cotidiano da escola.
Quando a escola não exerce seu papel de mediadora, o campo da poesia pode
permanecer totalmente estranho para muitas crianças, em particular as que
pertencem a um meio familiar onde pouco ou nada se lê e onde as urgências
funcionais mascaram as necessidades do imaginário; mas também para as que
pertencem ao nosso meio cultural, onde em geral não se vê nem se ouve
poemas na televisão, onde não são escutados nem no rádio nem em fita cassete
BRINCANDO COM AS PALAVRAS: O POEMA EM SALA DE AULA
LINHA MESTRA, N.30, P.144-148, SET.DEZ.2016 147
e onde, em definitivo, o imaginário segue outros caminhos que não a
linguagem escrita. (JOLIBERT, 1994, p. 195)
No percurso pode-se notar que os alunos aceitaram o desafio de conhecer uma estrutura
de texto diferente da que estão acostumados e, acima de tudo, “manifestaram uma interação
autônoma, eficiente e prazerosa com eles” (JOLIBERT, 2006, p. 151).
Essa experiência nos prova que aprender interagindo com o mundo e fazendo parte deste
mundo tem outro significado para o aluno. Ele se torna mais participativo e ávido por aprender
e mostrar o que aprendeu durante as aulas, pois ele sente que seu aprendizado vai lhe servir
para alguma coisa. Dessa forma percebemos que o aluno, no projeto didático, interage
socialmente com os colegas e com o professor na busca de novos conceitos e na reformulação
desses conceitos.
As crianças são vistas como seres inteligentes, ativos, curiosos, cheios de
iniciativas, responsáveis, sociáveis, capazes de fazer e aprender muito mais do
que normalmente lhes é solicitado. Há uma confiança legitimada pela
experiência – em que TODOS podem aprender, sempre que lhes são
proporcionadas as condições adequadas e não lhes impede de crescer.
(JOLIBERT, 2006, p. 179).
A alfabetização é uma fase de aprendizagem definidora na vida das crianças na qual elas
estão receptivas a novas descobertas, novos conhecimentos e novas aprendizagens. Dessa forma
o professor deve aproveitar desse momento para buscar atividades que irão inserir os alunos no
mundo da cultura escrita, apresentando-os diferentes gêneros textuais e portadores de texto. No
projeto poemas tínhamos por objetivo essa inserção da criança ao mundo letrado e o contato
com o gênero textual poemas.
Ao final do projeto poemas podemos afirmar que a experiência foi de aprendizagem
mutua. Para as crianças que tiveram a oportunidade do contato com o gênero escolhido com
uma linguagem que era compreensível e que brincava com as palavras, sendo assim, atraente
ao gosto dos alunos. E para nós, professoras, por termos a oportunidade da experiência de
trabalharmos com projetos que levam os alunos a pensar e, principalmente com o projeto em
questão, que nos mostrou que a inserção a cultura escrita, assim como a formação de crianças
leitoras e produtoras de texto pode e deve ser feita de forma agradável, significativa, pois é um
conhecimento adquirido que será levado para a vida social.
Referências
BRASIL. Caderno de orientações: poemas. Ministério da Educação. Projeto Trilhas. São
Paulo, 2011.
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A MÁQUINA DE ROSTIDADE E EDUCAÇÃO: PROCESSOS DE
SUBJETIVAÇÃO
Maria dos Remédios de Brito1
Helane Súzia Silva dos Santos2
I
A máquina não pode ser entendida a partir do mecanicismo, ela se opõe a qualquer tipo
de estrutura fechada, pois a “máquina implica uma relação de emergência, de finitude, de
destruição e de morte” (GUATTARI, 1992, p. 71). Deleuze e Guattari (1996) discutem as
máquinas técnicas, sociais, desejantes às abstratas, esta última é uma indomável máquina de
produção de objetividade-sujeitidade, emergente de um tempo atravessado pela
heterogeneidade.
A máquina é operada no socius, no corpo, na alma. Para Guattari (1992), a história da
humanidade passa por um verdadeiro criacionismo atravessado pelas concretudes e pelas
virtualidades. Por mais que se busque uma unidade, o ser resulta sempre de sistemas de
modelizações; sendo assim, essa configuração não passa por fixidade e nem por harmonia. As
configurações materiais passam por multiplicidades, atravessando o sujeito3, de modo que não se
sabe efetivamente qual elemento que o determina ou qual elemento que faz ou não parte dele.
As subjetividades são concebidas como produto e produção de agenciamentos diante das
relações homem-máquina, rosto-máquina, que formam o conteúdo da subjetividade. As
“máquinas são as formas conceituais com as quais se organiza a vida, se transforma o mundo,
são as conexões materiais dentro das quais se produz a subjetividade” (NEGRI, 2010, p. 102).
A transversalidade, que perpassa os processos de subjetivação na atualidade, obriga a se
pensar fora das estruturas fechadas, pois há configurações de produção semióticas diversas que
passam pelos componentes familiares e religiosos, pelo meio ambiente, pela arte, psicologia,
educação, entre outros. Assim como, elementos fabricados pelos jornais, pelas revistas, pelos
blogs, pelas redes sociais, pelas novelas, pelo cinema, etc.
É importante ressaltar, que todos esses processos fazem funcionar e produzir a
subjetividade, esta não é um centro nuclear de totalidade. Portanto, diante de processos tão
dinâmicos e, ao mesmo tempo, conectivos é possível colocar em funcionamento uma variedade
de instâncias maquínicas que não se sabe direito por onde podem ser atravessadas. Por exemplo,
as novas tecnologias levam a pensar que há uma produção homogênea de subjetividade, mas se
sabe que há uma tendência cada vez mais heterogênea na produção desses processos que são
insuspeitos.
Essa produção maquínica atravessa o rosto, a cabeça, o corpo, em sua integralidade, não
podendo ser lida na perspectiva de ser boa ou ruim, pois tudo perpassa pelos agenciamentos.
Uma composição heterogênea, que carrega trocas múltiplas e maquinam produção de grupos,
de coletivos, oferecendo aos sujeitos possibilidades de dobras, de diversificação para compor e
recompor seus processos de corporeidade, bem como podem compor alguma forma de
singularização.
1 Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 O termo sujeito não está ligado aos aportes tradicionais, sendo concebido como a instância primeira e última do
conhecimento, ou como pura consciência pré-reflexiva, foco de unidade, de expressividade do saber unificador. O
texto toma preferência pelo tratamento de subjetividade, esta não sendo passiva de totalização ou de centralidade.
A subjetividade é efetivamente fabricada na cartografia social e cultural.
A MÁQUINA DE ROSTIDADE E EDUCAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.149-152, SET.DEZ.2016 150
No texto intitulado “Ano Zero...”, Deleuze e Guattari mostram uma poderosa máquina
abstrata, produtora de rosto que escava os buracos, os quais atravessam a subjetividade. Essa
máquina opera por conexões complexas, por agenciamentos concretos de toda ordem. Eles
também afirmam que ela percorre caminhos virtuais, diferenciados em suas variações e
deslocamentos. Assim, uma máquina abstrata “(...) é ela mesma um território, novamente
coberto de dobras, sombras variadas e alternativas possíveis” (NEGRI, 2010, p. 105).
A máquina abstrata é produção, nela há o processo de construção e desconstrução, tendo a
capacidade imanente de criar, de entrar em diferentes planos, de anular diferentes linhas, de traçar
redes com a capacidade de territorializar e de desterritorializar. Ela deve ser posta como capacidade
de diferenciação, pois produz encadeamentos, bem como tem a capacidade de configurá-los, sendo
assim, não há linearidade, também não há um peso de estado de coisas fixas.
A máquina abstrata também pode ser entendida como uma montagem heterogênea, assim
como aquilo que extrai, que coloca em funcionamento uma variedade de ligações. Ela nos “...
heterogeniza fora de qualquer traço unificador” (GUATTARI, 1992, p. 51). Traça forças,
desejos que possibilitam inventar diariamente novas práticas, novas paixões, novas
mercadorias, novas tecnologias, novos rostos.
As subjetivações se tornam vazias se não possuem rosto, e seus lugares produzem
ressonâncias. O rosto é o produtor de uma redundância, ele é a moldura, a tela, o quadro no
qual os desenhos significantes são postos. Por isso, ele “escava o buraco de que a subjetivação
necessita para atravessar” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 32).
Contudo, é possível dizer que o significante e o significado não se movimentam sozinhos
e nem mesmo a subjetividade cava só seu buraco pelo qual atravessa o rosto. Os rostos também
não se constituem sozinhos, suas concretudes nascem de uma máquina abstrata de rostidade
(máquina abstrata de codificação), sem dúvida, essa máquina procura assumir determinados
papéis de escolhas e de seleção. Ela constrói e destrói, ela rejeita e aceita rostos. Aqueles rostos
com ares suspeitos são desprezados, postos em segunda ordem de entendimento e de percepção.
Parece haver sempre uma suspeita, uma zona lacunar suspensa, paisagem vaga, buraco aberto.
Pontos de virtualizações impossíveis.
Rostos são montados, ao mesmo tempo em que são dobrados, desfeitos... há todo um
mecanismo abstrato que passa e que não se sabe efetivamente onde ocorre a concretude ou seu
estado de coisa. A máquina abstrata vai distribuindo a rostidade em todo o sistema e, assim, a
rostidade vai se organizando, tomando determinados contornos e determinadas expressões, bem
como certas coordenadas binárias por meio do “é assim” ou “não é assim”, “sim” ou “não”
demarcando categorias que entram ou não em um campo de tolerância.
A máquina abstrata de rostidade escreve cada um de nós em um quadriculado, portanto
ela produz a ordenação, as vizinhanças, procura detectar desvios, violações, e não tende a se
preocupar com a individualidade, mas busca promover os universais. Essa lógica da unidade
tende a delinear as arborescências, as instalações binárias, dicotômicas, em que o significado e
a subjetividade podem realmente tornar-se concebíveis em solo firme. Por isso, o receio de cada
ponto maquínico, discursivo, linguístico, semiótico ou de subjetividade, pode se abrir para
outras conexões nômades, mesmo estando submetido às mutações permanentes.
A máquina abstrata de rostidade tem como objetivo entrar na ordem molar e bloquear os
fluxos, assim nenhuma perspectiva de uma máquina nômade, que esteja além do significado e
do significante, que vá para além das representações não são bem vistas. O fora efetivamente
deve ser protegido, enclausurado, na perspectiva da máquina de rostidade. Ela diz não a
qualquer tipo de tempestade exterior e tende a arrastar os sujeitos para um olho central, mesmo
havendo fugas por todos os lados.
A MÁQUINA DE ROSTIDADE E EDUCAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.149-152, SET.DEZ.2016 151
Os traços da rostidade não se deixam subsumir por completo, então, pode-se dizer que no
rosto há sempre um por vir, uma abertura à possibilidade de ser desfeito, desarranjado. O rosto
também atravessa uma paisagem, que não pode ser entendida apenas como um meio, mas como
desterritorialidade. Há várias ligações sobre essa ideia de rosto-paisagem. A educação cristã
traça um rosto, faz toda uma manobra com o corpo, com os sentidos, fomenta uma rigorosa
disciplina, configura toda uma paisagem que faz do rosto uma pedagogia. O close do rosto no
cinema também imprime certa pedagogia traçando uma paisagem que define tela câmera, luz,
composição, foco. Até nos romance o rosto dos personagens traçam planos-paisagens. Não há
rosto que “... não envolva uma paisagem desconhecida, inexplorada, não há paisagem que não
se povoe de um rosto amado ou sonhado, que não desenvolva um rosto por vir” (DELEUZE &
GUATTARI, 1996, p. 38).
II
Com o que fora dito acima, indaga-se: o que a educação tem a ver com essa poderosa máquina
abstrata de rostidade? A educação poderia ser entendida como um campo de sujeição? Ora, é sabido
que a educação é uma questão cultural e política, ligada ao socius e ao poder. Com isso, a educação
não deixa de ricochetear o rosto, ela também é um rosto com suas superfícies que não deixam de
fomentar significações. Ela instala comandos por todos os lados, disciplina corpos, fomenta normas,
institui condutas. Sempre cavando um buraco da subjetividade ou buscando um muro, um buraco
para que o eu seja instalado, esse eu que nos é tão caro.
O muro educativo que diz: “você deve ser ordenado, interpretado, subjulgado ou o seu
corpo deve ser articulado. Você é um significante para ser significado, portanto, você não é um
desviante. Você será um sujeito, sujeitado, para não ser um vagabundo”. O espaço escolar não
é separado de uma educação docilizada, por isso, talvez, a gramática comum nunca é separável
de uma educação do rosto, aliando, assim, à máquina abstrata de rostidade, pois submete a
expressão para uma subjetividade comum. Dizem Deleuze e Parnet “a professora explica uma
operação às crianças, ou quando lhes ensina sintaxe, não lhes dá propriamente informações,
comunica-lhes injunções, transmite-lhes palavras de ordem” (2004, p. 34).
Com isso, há uma promoção à caça aos devires, pois o ideal é o requerimento de corpos
e subjetividades disciplinados, para pensar a partir de Foucault (1987). Esse corpus autoritário
determina a produção do rosto em escala social, pois opera por todo o corpo, não havendo,
portanto, rosto e sujeitos prévios. Até mesmo a infância é governabilizada em todos os seus
trajetos pela pedagogia escolar, não há espaço para que a criança se veja como não datada,
esquadrinhada, mesmo sem saber o que seja tudo isso.
Isso quer dizer que a educação não só produz um rosto como também faz esse processo
com o corpo inteiro, há toda uma operação que vai cavando outras cavidades do corpo: a cabeça,
as mãos, os ouvidos, a boca, a linguagem, o seio, o ventre, as pernas, os braços, os pés, a roupa,
os cabelos, tudo isso vai sendo tomado pelos processos de rostidade.
O rosto sempre vai precisar dessa máquina abstrata que não se contenta em codificar
somente a cabeça. Como a educação desencadeia essa máquina de rostidade? Quando
determinados agenciamentos de poder entram em jogo, o poder tem necessidade de produção.
Tal produção está envolvida por uma série dispersa de movimentos que se operam, que se
agitam, delineando linhas e fissurando outras ou todas ao mesmo tempo.
A educação não deixa de estar presente no interior dessa máquina quando entra no campo da
modelização, pois, politicamente, agencia o poder padrão normativo, bem sucedido (uma máquina
de controle da vida que busca sempre a correção, a consciência, a razão, a moral). De todos os
modos, busca a normalidade dos corpos, uma imagem comum a todos os rostos.
A MÁQUINA DE ROSTIDADE E EDUCAÇÃO: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
LINHA MESTRA, N.30, P.149-152, SET.DEZ.2016 152
A educação não mede esforços para isso, há todo um esquema arborescente instalado que
esquematiza, disciplina e organiza vidas, sexo, costume, modo de ser e ver, etc. Contudo, o pior
de tudo isso não é a esterilização que atravessa a educação, mas é o esmagamento de tudo aquilo
que passa pelo meio, pelo entre... Sim, existe em toda parte multiplicidades que não se deixam
binarizar, dicotomizar. “Há linhas, que não se reduzem ao trajeto de um ponto, e que escapam
à estrutura, linhas de fuga, de devires” (DELEUZE & PARNET, 2004, p. 38).
Por isso, para além dessa unidade despótica, entende-se que o rosto é inumano, desde o início,
ele é close, com suas superfícies brancas, com seus buracos negros, com suas cavidades, com seu
vazio, seu tédio, sua angústia, seus desejos, suas ruínas, suas alegrias, seus desamparos. Se há um
destino para o homem, esse será escapar do rosto universal para tornar-se a si mesmo. Para além da
educação do rosto unívoco, anseia-se pela rostidade imperceptível e clandestina. O muro branco
deve ser quebrado, pois no rosto há um mundo inexplorado, mundo de futuros-presentes, instantes,
velocidades vitais, que nenhuma lógica linear poderá navegar.
Não é tranquilizador escapar, porque a todo o momento não se sabe para onde ir, em que
meio entrar, qual fissura atravessar, em que onda nadar. É algumas vezes um terror. Por isso,
buscar um rosto não é encontrar ou procurar, não é fomentar um conceito, mas um conjunto de
experimentações, pois ao rosto não se chega, não se chegará, já que ele não para de deslizar...
Há toda uma vigilância, mas há também um processo viajante... Sobre ele há uma guerra, uma
labuta diária... O que pode um rosto? Experimentações éticas, políticas, biológicas,
linguísticas... Ele atrai censura, desejo, liberdade... Para um rosto há todo tipo de corpus que
não deixa a experimentação sossegada, contudo, o rosto está sempre no meio desde que ele se
compreendeu como maquinação.... Prudência, a regra da experimentação do rosto para
comportar os (im)possíveis. Aqui, os processos percorrem as singularizações ao invés das
subjetividades. Assim, o que pode a educação a favor dessas passagens singulares? O que pode
a educação quando não sustenta essa superfície, pois nela os buracos deixam vazar
experimentações desviantes? Nem sempre as perguntas devem ou podem ser respondidas, mas
sentidas...
Referências
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. Tradução de José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógi
D’água editores, 2004.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Tradução de
Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.
FOUCAULT. M. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira
e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
NEGRI, A. Sobre Mil Platôs. In: Revista Lugar Comum, n. 23-24 (Rede Universidade
Nômade). p. 95-112. 2010.
LINHA MESTRA, N.30, P.153-157, SET.DEZ.2016 153
AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A
APREENSÃO DO CONHECIMENTO EM EDUCAÇÃO MUSICAL
Daniel Bortolotti Calipo1
A educação infantil nos apresenta uma pluralidade de conhecimentos humanos capazes de
desenvolver tanto os adultos educadores como as crianças de forma integral. A música, como um
destes conhecimentos, possibilita um devir sem separação entre razão e emoção, tanto das crianças
como de seus educadores. As atividades musicais propostas neste contexto educativo devem
entrelaçar, portanto, a objetividade conceitual da música aos infindáveis significados de seus
executantes. A criança e seu educador incorporam os sons, os ritmos, tonalidades subjetivamente,
atribuindo a estes conceitos musicais, valores e entendimentos que lhes são pessoais, porém todos
com uma só intenção: experimentar coletivamente a viagem musical pelo imaginário da criança.
Chamo de objetividade musical alguns conceitos explorados, legitimados e difundidos
pela história da música ocidental, tais como harmonia, melodia e ritmo, dentro da esfera da
música tonal e, mais especificamente, do cancioneiro infantil e da música popular brasileira.
Não quero com isso restringir a matéria da música a estes conceitos, mas apenas situar meus
limites de entendimento musical.
Entretanto, o que vem conduzindo os currículos da primeira infância e posteriormente os
primeiros anos do ensino fundamental são perspectivas pedagógicas tradicionais que visam
trabalhar os diferentes conhecimentos humanos de forma separada e isolada, fragmentando o
conhecimento. A música dentro desta concepção é vista como algo pronto e acabado, que
somente deve ser transmitida à criança como um produto a ser aprendido e reproduzido. As
crianças são obrigadas a experimentar atividades musicais estritamente conceituais e objetivas,
com conteúdos pré-estabelecidos em cartilhas que esperam resultados predeterminados e
descartam quaisquer sentimentos inesperados e significações do próprio executante, causando,
com isso, limitações no alcance de novos horizontes à navegação no mar da música.
Mas continuamos apenas cantando canções que já vêm prontas, tocando os
instrumentos única e exclusivamente de acordo com as indicações prévias do
professor, batendo o pulso, o ritmo, etc. quase sempre excluindo a interação com
a linguagem musical, que se dá pela exploração, pela pesquisa e criação, pela
integração de subjetivo e objetivo, de sujeito e objeto [...] (BRITO, 2003, p. 52).
E no que podemos ser diferentes em nossas práticas musicais no contexto da educação infantil?
Primeiro temos que nos distanciar do uso da música para outros fins, como por
exemplo, marcação da rotina escolar, alfabetização, controle e ordem das crianças ou tão
somente para o complemento de conteúdos do currículo pedagógico. (BRITO, 2003). Há,
contudo, uma possibilidade de relação da música para com as outras linguagens, relação
esta capaz de potencializar as expressões artísticas das crianças e suas experiências com os
diferentes conhecimentos.
Em perspectivas pedagógicas sócio-construtivistas, que consideram a educação infantil
como o lugar privilegiado das interações simbólicas entre as linguagens infantis, no qual a
criança é o sujeito protagonista das ações educativas e da construção do conhecimento, a música
pode ser incorporada como a manifestação de ser do sujeito no mundo, sendo por sua vez
1 Daniel B. Calipo é graduado em Pedagogia pela Unicamp, músico-compositor autodidata, produtor e educador
musical. Trabalha na Prefeitura de Campinas como professor da educação infantil e formador de professores e
monitores. E-mail: [email protected].
AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A APREENSÃO DO...
LINHA MESTRA, N.30, P.153-157, SET.DEZ.2016 154
também uma linguagem que potencializa essas ações, justamente por estar imbricada em
relações entre as subjetividades das crianças e a realidade que as envolvem. Neste viés, este
processo de construção do conhecimento passa a ser sensível-criativo.
A criatividade parece emergir de múltiplas experiências, juntamente com um
desenvolvimento estimulado de recursos pessoais, incluindo um senso de
liberdade para aventurar-se além do conhecido. (EDWARDS, 1999, p. 87).
A partir daí, nosso pensamento musical pode se expandir aos pressupostos da linguagem em
seu sentindo filosófico, cabendo-nos atribuir uma profunda correlação do músico ao seu contexto
de expressão. Os atributos e significados da música imbricam-se às situações sócio-educativas
vividas pelas crianças, deslocando a ênfase do objeto para o sujeito, ou seja, da música para o seu
executante, este que, dentro de seu mundo de relações, predica sua musicalidade.
Em outras palavras, como já dito, a música como uma linguagem do conhecimento
infantil não pode ser trabalhada com as crianças de forma isolada, tem de estar integrada às
outras linguagens infantis. Pois para a criança, a construção do conhecimento é fruto de um
profundo diálogo entre a literatura, o jogo, a música, o teatro, a dança, enfim as cem linguagens
da criança. (EDWARDS. 1999).
E como se dá esta construção?
As crianças não aprendem música por atividades rítmicas repetitivas ou por inculcar
modelos e padrões estéticos musicais pré-determinados. Ao contrário, elas começam a perceber
a musicalidade nas brincadeiras de faz de conta, em seus jogos de roda preferidos, quando
percebem a música como um potencial criativo de expressão e movimento para integrar corpo,
(razão e emoção). A forma de explorar e organizar musicalmente o conteúdo da educação
infantil possibilita uma apreensão e percepção do real esteticamente integrada. “... o sensível e
o inteligível estão necessariamente integrados”. (BRAIT, 2013).
A brincadeira de faz de conta, se não a fantasia é o resultado da criatividade das crianças
em combinar elementos da realidade com elementos da subjetividade. É para criança o principal
recurso para o aprendizado musical (SCHROEDER & SCHROEDER, 2011).
As crianças, como seres humanos sociais, aprendem os conhecimentos culturais e as regras
de sua sociedade vivenciando experiências lúdicas, tanto fora da escola como nos espaços formais
de educação. Por meio da imaginação são capazes de recriar fragmentos realísticos dentro das suas
brincadeiras, representando os papéis dos atores sociais com os quais interagem cotidianamente,
expressando seus sentimentos e pensamentos, criando um movimento lúdico-fantasioso capaz de
promover um conhecimento potencialmente criativo e significativo da realidade.
Sendo assim, também não é a criatividade um compartimento isolado do ser humano que
brota do nada, em qualquer hora, sem algum propósito. Para sermos criativos precisamos estar
integrados com as experiências acumuladas da cultura, conhecimentos outrora construídos,
outras fantasias e recordações para potencializarmos nossa capacidade de ação no mundo, em
busca de conhecê-lo. (VYGOTSKY, 1987).
Para tanto, faz se necessário que o educador proporcione atividades musicais dentro de
contextos educativos integrados por diferentes linguagens infantis, de modo que as crianças
possam tecer uma ligação entre, por exemplo, tocar um instrumento e se sentir uma princesa,
ou cantar uma canção sendo um pirata de “verdade”, ou ainda compor uma nova canção a partir
de uma história da literatura infantil que, por exemplo, tenha marcado a turma. A criança vai se
interessar e construir um conhecimento musical quando ela significar esta música dentro de um
contexto educativo-social criado por ela mesma para apreender a realidade circundante. A
criança é um ser ávido por conhecer!
AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A APREENSÃO DO...
LINHA MESTRA, N.30, P.153-157, SET.DEZ.2016 155
Deste modo, criatividade passa a ser um instrumento-chave para o aprendizado musical
infantil. As crianças não são criativas por um dom especial da natureza. A criatividade da
criança dependerá do quanto ela irá saborear de um substrato cultural existente, social ou
particular, proposto pelo educador em cumplicidade com a criança e, das relações de
aprendizagem que ela conseguir fazer, a partir de sua subjetividade para com este substrato.
“Por isso, a conclusão pedagógica sobre a necessidade de ampliar a experiência da criança se
queremos proporcionar a elas base suficientemente sólida para sua atividade criativa.”
(VYGOTSKY, 1978, p. 18. tradução nossa).
Por fim, cabe aos educadores remar ao encontro de novas experiências musicais, cênicas,
plásticas, científicas etc, a fim de ampliar seu repertório cultural e transbordá-lo às crianças.
Isso proporcionará aos atores da educação infantil possibilidades de relações criativas entre
estas diferentes experiências de aprendizados significativos, do nosso vasto mundo do
conhecimento.
Um norte metodológico aos cursos de formação.
Quando iniciei os cursos de formação em educação musical pela Secretaria de Educação
do município de Campinas, entre os anos de 2012 a 2015, considerei, para propor uma
metodologia diferenciada ao desenvolvimento da temática em questão, todo meu conhecimento
em educação musical construído, a tempo, dentro de um processo pessoal de amadurecimento
teórico, coletivo e inacabável. Busquei aprofundar uma didática que referendasse a homologia
dos processos: aproximar os educadores de uma forma de construção do conhecimento musical
que fosse, na prática, parecido ao que eles poderiam tecer, junto das suas crianças, na aventura
do desvendar da música.
Se me pegasse preso a uma teoria tradicional do conhecimento, ao contrário do que tentei
caracterizar também nesta introdução como uma possível pedagogia sócio-construtivista à
educação musical, promoveria práticas formativas isentas de diálogos na arquitetura do
conhecimento, uma vez que este se encontraria pronto e acabado, apenas esperando ser
transmitido do professor para o aluno. Estabelecer-se-ia assim, uma relação hierárquica de
quem “ensina” sobre quem “aprende”. (FREIRE, 1996). Obtendo como processo e produto
desta formação uma contínua repetição tanto das formas, como também dos conteúdos, já
existentes sobre a educação musical. Dificilmente poderíamos encontrar uma relação de
aprendizagem criativa, na qual os conhecimentos construídos não fossem significativamente
situados e identificados pelos próprios sujeitos da formação. A ideia de um sujeito situado em
seu contexto de relação sócio-educativa impede a realização de uma ação formativa que
desconsidere o outro como fonte do conhecimento. Sendo este outro os próprios educadores
em formação, as crianças do ato educativo e o formador:
“A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu-para-si, condição
de formação de identidade subjetiva, é também um eu-para-o-outro, condição
de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que
lhe dá sentido.”
“Essa noção de sujeito implica, nesses termos, pensar o contexto complexo
em que se age, implica considerar tanto o princípio dialógico, – que segue a
direção do interdiscurso, constitutivo do discurso, mas não se esgota aí – como
os elementos sociais, históricos etc, que formam o contexto mais amplo do
agir, sempre interativo”. (BRAIT, 2014, p. 22 e 23).
AS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A APREENSÃO DO...
LINHA MESTRA, N.30, P.153-157, SET.DEZ.2016 156
Estabelece aqui, para estas definições, que a música é uma linguagem latente do
conhecimento humano, com potencialidade de emergir a realidade de cada um de nós; capaz de
compor, junto a outras linguagens, um rol de manifestações artísticas para o ser e estar dos
sujeitos no mundo. Quando nos encontramos musicalmente dentro de uma perspectiva do
inacabado, compreendemos que as formas e conteúdos sobre a matéria musical não são
verdades imutáveis. Permitir-se-á aos atores da educação musical conceber novos olhares e
valores de interpretação para uma ideia rítmica, ou frase melódica, por exemplo, e com isso,
atribuir, a tais formas e conteúdos uma matéria musical passível de resignificação e
transformação. E isto se dá tanto na subjetividade de cada um, como também nas reflexões dos
discursos coletivos, entre os pares formativos. Neste caso, a criança passa a ser o par formativo
do educador, assim como este o é para as crianças e, por demais dizer as crianças com elas
mesmas e os educadores entre eles.
Estabelece-se uma profunda tentativa dialógica entre estes diferentes atores destas
relações horizontais de aprendizagem, a fim de se chegar a uma síntese, mesmo que
momentânea, sobre o que nos possa representar como conhecido, num dado ponto da história.
Não há uma pretensão por um acabamento do conteúdo a ser desvendado. Tanto o educador
como as crianças se tornam cúmplices do processo de construção de um conhecimento,
portanto, criativo, significado, identificado, situado, coletivo e inacabado. Partimos todos para
um caminho estético inimaginável, mútuos sujeitos do ato educativo.
Essa síntese momentânea precisa ser registrada para que se efetive como um marco na
história do conhecimento encontrado. O fazer deste registro é parte constituinte da busca do
que se quer conhecer, ao contrário de mera formalização ou prova do apreendido. A forma do
registro cabe ao que se quer encontrar, na intenção final do diálogo e, assim como este não se
restringe à linguagem escrita ou oral, ainda mais para o campo da música, evade ao não-verbal,
às formas sonoras e musicais da conversa.
Para, além disso, criamos a certeza de que este educador musical dialético está, por fim,
viajando em uma contínua corrente marítima de formações, por estar sempre preso no ato
educativo se relacionando com outrem. Do seu encontro dialógico verdadeiro com seus pares
depende seu levante ao conhecimento e a visão do norte à sua navegação, no mar da música.
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PARA QUE SE LÊ EM UM SEXTO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL?
SISTEMATIZANDO ALGUNS ACHADOS DA PESQUISA
Thiago Moura Camilo1
Claudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto2
Este artigo é o recorte de uma pesquisa que teve como objetivo compreender a promoção
da leitura junto aos alunos do ensino fundamental – anos finais pelos professores das diferentes
áreas curriculares. A pesquisa sobre leitura inseriu-se no contexto de uma investigação
financiada pelo CNPq/CAPES que teve o duplo objetivo de compreender as elaborações dos
professores para o trabalho com a leitura ao mesmo tempo em que pretendeu compreender
aspectos relativos à formação de leitores e escritores na escola básica. Nos limites desse texto,
apresentaremos análises dos dados produzidos em sala de aula e sistematizados no que se
referem à finalidade das atividades de leitura de textos mediadas pelos professores de um sexto
ano do ensino fundamental.
A pesquisa foi desenvolvida em uma escola da rede pública estadual mineira, que atendia
aproximadamente 1400 alunos do Ensino Fundamental I, II e Ensino Médio, divididos em três
períodos. Como procedimentos de coleta de dados, foram utilizadas gravações de áudio,
filmagens e anotações de campo a fim de registrar as práticas de leitura em sala de aula,
especificamente nas disciplinas de Ciências, História, Geografia, Língua Portuguesa e
Matemática, durante o quarto trimestre escolar no ano de 2013.
O trabalho desenvolvido assume a perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin, por
compreender que essa abordagem possibilita a compreensão da interação verbal instaurada pela
leitura, em suas condições concretas de produção realizadas tanto pelo professor como pelos
alunos em sala de aula. Metodologicamente, analisaremos as atividades que envolviam leitura
de textos entendidos como uma sequência verbal escrita, buscando identificar a finalidade das
diferentes leituras promovidas pelos professores. Os dados produzidos evidenciaram que havia
promoção da leitura em sala de aula, mas tratava-se de uma leitura cuja finalidade se voltava
para as especificidades de cada disciplina. Esse modo de conceber a leitura evidencia uma
concepção de linguagem voltada para busca de informações no texto, quando poderia
privilegiar o processo de interação entre os sujeitos.
A leitura
O presente trabalho compreende que ler, na perspectiva bakhtiniana, é cotejar textos, uma
vez que “toda palavra (todo signo) de um texto conduz para fora dos limites desse texto”
(BAKHTIN, 1997, p. 404). E o cotejo de um texto com outros textos produz a compreensão, o
comentário, a réplica, o diálogo. Por isso considerar, com Bakhtin, que “compreender é cotejar
com outros textos e pensar num contexto novo” (Idem, p. 404). Fiorin (2008, p. 6) sintetiza as
ideias de Bakhtin quanto à leitura, considerando que ler é “colocar-se como participante do
diálogo que se estabelece em torno de um determinado texto”.
Nesse sentido, Ometto (2010), pautada em Bakhtin, ressalta que ensinar leitura é
determinar a dinâmica interlocutiva que ocorre em torno de um texto em determinadas
condições. Esse movimento “implica considerar a centralidade, mas não a exclusividade do
1 Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].
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texto como fonte de sentidos e a especificidade das condições de produção da leitura nas
relações escolares e em seus determinantes mais amplos” (OMETTO, 2010, p. 34).
Numa concepção dialógica da linguagem, é fundamental contemplar as relações entre os
sujeitos no interior do funcionamento da própria língua, uma vez que nesse processo os sujeitos
são vistos como agentes sociais, que têm no texto o próprio lugar da interação. Todavia a leitura
de um texto não deve ficar presa nos seus próprios limites; pelo contrário, o movimento em que
se instaura a leitura é dotado de cotejamento de experiências, de contextos e da realidade dos
sujeitos inseridos neste processo interativo.
Em específico à escola, a leitura está presente nas práticas de todas as disciplinas,
destacando-se como uma habilidade necessária ao desenvolvimento do aluno. Consideramos,
neste contexto, o importante papel da escola na constituição de leitores proficientes, pois ela é
uma instituição cuja função consiste na socialização do saber sistematizado, do conhecimento
elaborado e da cultura erudita (SAVIANI, 2005).
Assim, entendemos que a escola é um lugar de ensino e, por isso, fundamental para o
desenvolvimento da linguagem. Britto (1997) considera que a função da escola deve ser a de
garantir ao aluno o acesso à escrita e aos discursos que se organizam a partir dela, mas para que
isso ocorra é preciso inserir o sujeito em um ambiente onde a escrita prevalece em seu meio.
Alguns dos achados da pesquisa
Tematizada a leitura, apresentamos uma análise dos dados produzidos em sala de aula e
sistematizados no que se refere às atividades que envolviam leitura de textos entendidos aqui
como “uma sequência verbal escrita formando um todo acabado, definitivo e publicado”
(GERALDI, 1997, p. 101), buscando identificar a finalidade das diferentes leituras promovidas
pelos professores.
Através dos dados produzidos, pudemos perceber que as práticas de leitura efetuadas
pelos diferentes professores se resumiam a objetivos específicos: explicar conteúdo da
disciplina; responder e corrigir exercícios; e produzir textos.
Considerada prática pedagógica escolar clássica, a leitura realizada pelo aluno para fins
de explicação de conteúdo foi comum a todos os professores como modo de ensino e
sistematização do saber. Esse movimento de apropriação do conhecimento sistematizado por
parte das novas gerações é que torna essencial o papel da escola e do professor ensinando,
explicando, assegurando a aquisição de instrumentos que facilitem o acesso ao saber elaborado,
bem como o acesso aos elementos básicos desse saber. E a primeira exigência para o acesso a
esse tipo de saber é aprender a ler e a escrever (SAVIANI, 2005).
A explicação do conteúdo específico a cada disciplina valeu-se como elemento básico do
trabalho docente, pois já é uma prática comum a transmissão oral do conteúdo pelo professor.
Isso porque os alunos estão habituados à “explicação” do professor logo após a leitura de um
determinado texto. Essa “explicação” pode se referir ao esclarecimento de uma informação ou
de termos específicos a cada disciplina e também ao acrescento de informações não presentes
no texto lido.
Esta forma de “explicação” foi verificada na disciplina de História, em que um aluno,
espontaneamente, realizava a leitura do texto em voz alta. Ao término de sua leitura, o professor
iniciava a explicação do conteúdo, explicitando o contexto histórico (Igreja Medieval),
esclarecendo alguns termos lidos ― como clero, hierarquia e heresia ―, e acrescentando
informações ao texto, como definindo e exemplificando, a pedido de um aluno, o termo feudo,
que não constava no texto lido.
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Essa forma de utilização da leitura para explicação de conteúdo também foi observada na
disciplina de Ciências. Além dos textos dispostos no material didático, a professora incentivava
os alunos a buscar informações complementares em outros livros e, até mesmo, na internet.
Esses textos pesquisados também eram lidos em voz alta pelos alunos em sala de aula e também
contribuíam para a explicação e ampliação dos conteúdos.
Também nas disciplinas de Língua Portuguesa, Geografia, e Matemática os professores
fizeram uso da leitura de texto para fins de explicação do conteúdo, no entanto esses professores
não acrescentavam informações aos textos. Por exemplo, em Língua Portuguesa, os alunos
receberam cópia do conteúdo referente à classe de palavras dos numerais. A professora revisou
as classes já estudadas (substantivo, adjetivo e artigo) e disse aos alunos que os numerais seriam
estudados “por alto” porque eles já os teriam aprendido na disciplina de Matemática. Assim,
como forma de explicação, a professora apenas repete as informações presentes no texto lido
pelo aluno. Mesmo movimento que ocorre nas disciplinas de Geografia e Matemática, em que
cada aluno lia um trecho do texto e os professores repetiam as informações sem definir ou
comentar os termos destacados.
A leitura também foi utilizada com o propósito de responder aos exercícios de
interpretação ou de corrigir as atividades propostas. Isso porque esse modelo de leitura também
se constitui modalidade tipicamente escolar. Geraldi (1997) classifica esse movimento como
“leitura – busca de informações”, em que o leitor vai ao texto para extrair dele informações (ou
respostas) com ou sem roteiro previamente elaborado (os exercícios de interpretação). Essas
informações podem ser extraídas a partir da superfície do texto, com uma simples leitura, ou
em um nível mais profundo desse texto, em que as informações/respostas dependem não só da
leitura desse texto, como também do cotejamento com outros textos ou com outras informações,
assim como proposto por Bakhtin (1997).
No que tange às práticas de leitura nas aulas observadas, normalmente após a explicação
de conteúdo, o professor pedia que os alunos respondessem às atividades a título de
interpretação, como em Matemática, Geografia e Ciências; e na sequência realizavam
novamente a leitura das atividades a fim de corrigi-las oralmente, como em Língua Portuguesa
e História. Embora seja uma prática de leitura comum aos professores, entendemos que a
mesma não determina a dinâmica interlocutiva em torno do texto, bem como não contribui para
que o aluno replique ao texto, pois refere-se a uma prática de leitura cujo foco se direciona,
essencialmente, à interpretação, à localização de informação em textos e de sua repetição ou
cópia em respostas de questionários, orais ou escritos. A compreensão, que deveria ser o foco
da leitura, envolve conhecimento de mundo, conhecimento de práticas sociais, conhecimentos
linguísticos para além dos fonemas (ROJO, 2004) e réplicas ao texto, conforme já exposto com
Bakhtin (1997).
O terceiro objetivo das práticas de leitura, nas aulas observadas, compreendia a produção
de um outro texto, fosse ele um cartaz, um resumo ou uma síntese. Esta forma corresponde, de
acordo com Geraldi (2011), à “leitura-pretexto, aquela em que um texto serve de pretexto para
o desenvolvimento de outras atividades, como produção de outros textos, dramatizações de
narrativas, ilustrações de histórias e desenhos. Embora este autor considere plausível que a
escola utilize a leitura como pretexto, a fim de dessacralizar os textos com nossas leituras,
verificamos que esta não é uma prática tão comum na escola, visto que não exige apenas
capacidades de decodificação como o discernimento entre a escrita e outras formas gráficas,
domínio das convenções gráficas, conhecimento do código utilizado, fluência e rapidez na
leitura. Requer também capacidades de compreensão, como ativação de conhecimentos de
mundo do aluno, a pesquisa, a localização e a comparação de informações importantes,
resultantes daquele determinado texto lido ou de outros textos. Para produção de texto, como
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resumo ou síntese, esta comparação de informações é fundamental para se determinar quais
informações serão retidas (ROJO, 2004).
Considerações acerca do vivido
No contexto da pesquisa, constatamos que a leitura para produção de texto ocorria,
principalmente, na disciplina de Ciências, uma vez que os alunos liam não só textos presentes
no material didático, como também liam textos dispostos na internet e em diferentes edições da
revista Ciências Hoje para Crianças. A partir dessas leituras, os alunos elaboravam resumos
para posterior leitura na sala de aula; elaboravam também a escrita das pesquisas sobre assuntos
previamente escolhidos pela professora; anotavam entrevistas que faziam com parentes ou
amigos acerca de determinado assunto, como remédios naturais; e também produziam cartazes
para exposição de temáticas diferentes, como o sedentarismo, por exemplo.
Outra disciplina em que a leitura para produção de textos foi utilizada, porém em menor
intensidade, foi na disciplina de História. Após a leitura silenciosa de um texto da seção
“História e Reflexão”, presente no material didático, o aluno, orientado pelo professor, deveria
elaborar uma síntese, selecionando e organizando as principais ideias do texto lido. Em outros
momentos, o professor também solicitava a pesquisa por escrito de um assunto, como a honra
na Idade Média, e sua posterior leitura em sala de aula.
Posto isto, reiteramos que a leitura para produção de textos não é uma prática muito
frequente, visto que esta modalidade de leitura foi verificada apenas nas disciplinas de Ciências
e História que, mesmo superficialmente, apresentaram o querer-dizer dos alunos através de
diferentes gêneros como o resumo, o cartaz, a entrevista, a pesquisa e a síntese. Estas escolhas
foram determinadas, como nos aponta Bakhtin (1997), em função das especificidades das
atividades de leitura propostas pelos professores dessas disciplinas e do intuito de seus locutores
que se adaptaram aos gêneros previamente definidos.
Consideramos, a partir das práticas de leitura observadas, que os professores tentam
promover a leitura, mas é uma leitura cuja finalidade se volta para explicação do conteúdo
específico a cada disciplina, para responder ou corrigir exercícios ou mesmo para produzir
textos. Esse modo de conceber a leitura evidencia uma concepção de linguagem voltada para
busca de informações no texto, quando poderia privilegiar o processo interlocutivo que ocorre
em torno de um determinado texto (OMETTO, 2010).
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PERSPECTIVAS DE LEITURA, ESCRITA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO
INFANTIL: AFINAL, O QUE QUEREM AS CRIANÇAS?
Maria Clara de Lima Santiago Camões1
Cristiane Gomes de Oliveira 2
A Educação Infantil é um campo relativamente novo
que ainda se encontra refém de um passado marcado
por inconsistências herdadas de uma tradição de
cisões ainda não resolvidas.
(HADDAD, 2012, p. 57).
O reconhecimento da Educação Infantil (EI) como primeira etapa da Educação Básica no
cenário brasileiro, tem gerado discussões e fomentado produções acadêmicas que denotam
tensões enunciadas em diferentes tendências e dilemas ao aproximar dois campos de estudo:
Currículo e EI. Tangenciadas por questões da leitura e escrita e o processo de alfabetização, tais
tensões giram em torno de abordagens antagônicas: de prontidão à escola ou de busca de uma
identidade própria à EI.
Nesse contexto, o Colégio Pedro II, Instituição Pública Federal de Educação Básica do
Rio de Janeiro, anunciou ação de antecipação à LEI nº 12.796 (BRASIL, 2013)- que tornou a
EI obrigatória no ano de 2016 a partir dos 4 anos de idade – e passou a ofertar pela primeira
vez, em 2012, após 174 anos de existência, as primeiras vagas para 4 e 5 anos, expandindo
oferta para 3 anos em 2014.
Trazemos neste trabalho reflexões sobre o lugar da leitura e da escrita na produção
curricular da EI nesta Instituição, problematizamos o impacto da produção curricular na EI,
numa perspectiva de polarização de sistematização da linguagem escrita, de um lado, e de outro,
uma prática asséptica. Partimos do pressuposto de que uma discussão reducionista pautada em
alfabetizar ou não na EI compreende a existência de uma estrutura fixa que determina discursos
e práticas e posiciona a criança no lugar da subalternidade.
A polarização acerca das concepções de práticas de leitura e escrita na EI é evidenciada na
coexistência de diversas trajetórias docentes e diferentes experiências nas formas de perceber o
trabalho e sua função social, tensionada pelas expectativas relacionadas à alfabetização no ensino
fundamental. Tais experiências vão sendo enunciadas através de posições que apontam para uma
produção curricular que não está dada, mas é construída nos discursos docentes em torno da prática
cotidiana, expressos em encontros e reuniões pedagógicas de reflexão em torno delas.
Compreendemos as crianças como sujeitos políticos, histórica e socialmente situados,
produzidos e produtores de cultura. Tradicionalmente encontramos a infância caracterizada em
oposição à sabedoria, cabendo ao adulto a tarefa de ensinar a criança a crescer, a dizer, a ler, a
escrever. Ao contrário, porém, do que define a própria etimologia “in-fans” (sem voz), a
infância é, na verdade, a primeira condição de linguagem. Nela realiza-se a experiência primeira
de acesso a linguagem. Spivak (2010), ao discutir a subalternidade, destaca a ausência do sujeito
1 Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ) e professora de Educação
Infantil na Rede Federal de Ensino. Atualmente exerce a função de Orientadora Pedagógica na Unidade de
Educação Infantil do Colégio Pedro II. E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ), professora dos Anos
Iniciais do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ) e Técnica em Assuntos
Educacionais na Rede Federal de Ensino. Atualmente exerce a função de Coordenadora Setorial da Unidade de
Educação Infantil do Colégio Pedro II.
PERSPECTIVAS DE LEITURA, ESCRITA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INFANTIL: AFINAL, O QUE...
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subalterno no lócus da enunciação. Assim, embora a infância inaugure a experiência com a
linguagem, é preciso destacar sua existência dialógica não como mera produção sonora, mas
no reconhecimento da criança como outro.
A linguagem como troca de experiências, comunicação e criação, foi nos dando a
possibilidade de ver/ouvir a criação de sentidos dadas pelas crianças ao mundo da leitura e da
escrita e numa perspectiva que desfaz a polarização entre assepsia e sistematização, fomos
buscar palavras que as crianças enunciam, nos dando pistas sobre as experiências e práticas.
Bakthin (1992) nos auxilia na compreensão sobre o sujeito que se faz na enunciação, mais
do que elementos normativos do discurso, situamos a linguagem na arena de disputas e
negociações. Compreendemos que é na situação da troca social que os sujeitos produzem
enunciados concretos, incluindo gestos, afetos, vontades, os ditos, os não-ditos. Trazemos
alguns eventos que nos ajudam a perceber que ao narrar, dramatizar, ilustrar, brincar, as crianças
vão se arriscando, lendo e escrevendo. A linguagem escrita constitui-se, assim, como mais uma
possibilidade de as crianças se dizerem.
O lugar que ocupamos na instituição (Diretora e Orientadora Pedagógica), longe de
constituírem um olhar de regulação, nos aproximaram das crianças. Com frequência nos
permitiam participação nas atividades, nas brincadeiras ou rodas de conversa. Algumas vezes
ouvimos: Por que quando eu acabo de falar você escreve aí? Fomos assim, ocupando este lugar
de quem se aproxima, ouve, se envolve e retorna para registrar.
Eu escrevo a nossa conversa. Falávamos diante dos questionamentos sobre os registros
e neste movimento fomos surpreendidas por Samuel: Então eu quero que você escreva aí quatro
letras para anotar: EU GOSTO DA ESCOLA, e para cada palavra ia levantando um dedo.
Montando palavras no jogo, Matheus disse: eu estou muito feliz porque eu já sei ler! Eu
já estou lendo e escrevendo, consigo ler o calendário, ver os meses e mudar o canal da TV.
Samuel e Matheus nos convidam a pensar sobre a compreensão que as crianças vão tecendo
acerca da função social da leitura e da escrita, assim, mais do que se apropriar de codificação e
decodificação do sistema alfabético, envolve a criança numa gama variada de práticas sociais com
o texto escrito. A escrita precisa entrar na escola, antes de mais nada, como prática social.
A turma estava em roda e Miguel, destacado do grupo, de posse de uma folha A3 (usada
para registrar o planejamento do dia) escrevia, quando foi chamado para voltar à roda. Espera,
estou fazendo o planejamento, respondeu, fazendo linhas onduladas, de baixo para cima,
imitando um movimento de escrita. Ao terminar, juntou-se ao grupo, apontando para o rodapé
da folha que iniciava com o numero um: vamos à sala de leitura escolher um livro, pátio e
almoço. A professora perguntou se ele não poderia acrescentar o que o grupo havia planejado
e Miguel foi escrevendo e falando em voz alta: aula de música e aula de artes.
Na casinha, Samara dizia aos amigos: eu gosto de ler a palavra de Deus no capítulo II e
no capítulo IV. Por isso que eu estou aprendendo a ler e eu já sei assinar. Assinar é fazer o
nome e a gente faz isso todo dia. Esta turma adotou a prática de, diariamente, escrever o nome
numa lista de presença.
Miguel e Samara falam de um saber que representa uma cultura comumente associada ao
contexto escolar, mas não parece encarcerado nela. Um movimento em que podem, muito mais
do que representar graficamente as letras, constituírem-se como sujeitos que produzem e são
produzidos pela linguagem. Numa dimensão dialógica, a escrita se processa na interação com
o outro. O planejamento de Miguel e assinatura de Samara expressam o sentido do vivido
carregado de significados, uma escrita de palavras vivas.
Luiza brincava de modelar as letras de seu nome com massinha e quando terminou olhou-
nos e disse: eu consigo ler o meu nome e foi apontando para as letras, falando L-U-I-Z-A.
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Brincando com um teclado de computador, Miguel ia apertando as letras e dizendo: I, O,
L, G, J. Isso que eu escrevi foi COMPUTADOR!
Na área externa Giovana corria, subia, descia, movimentava-se e passava a mão em
diferentes pontos do brinquedo e assim percebeu palavras escritas em alto relevo. Tratava-se da
marca escrita em inglês. Ao perceber minha presença perguntou: o que está escrito aqui? e
aqui? E novamente... E aqui? Sem notar que um deles estava de cabeça para baixo, foi fazendo
sua leitura, dessa vez “lendo” letras e números. Correu para outra ponta do brinquedo e
passando a mão nas letras, disse: aqui eu sei ler GIOVANA.
Luiza, Miguel e Giovanna mostram que a linguagem possibilita a entrada na brincadeira,
as palavras somam-se aos gestos e vão construindo as narrativas. Não há um momento para ler
e outro para brincar, corpo e mente juntos, rompendo com as fronteiras entre dentro e fora da
sala. É brincadeira viva, presente em todos os momentos.
Maria Luiza chegou acompanhada de sua mãe, que segurava pequenas maquetes com
mudinhas de plantas feitas por ela a partir das sobras de trabalho do irmão mais velho. Maria Luiza
pediu ajuda a mãe para entregar aos colegas. A mãe entregou na mão dela que perguntou: pra quem
é esse? A mãe mostrou o fundo do objeto com o nome e sugeriu: olha aí! Veja para quem é! Maria
Luiza esbravejou: ô mãe! Você está maluca? Esqueceu que eu ainda não sei ler?A mãe aproximou
o objeto etiquetado dos olhos da criança, que fez uma cara de espanto ao perceber que identificava
o nome de um colega da turma, devolveu um breve sorriso à mãe e foi entregar o objeto ao colega.
Voltou para buscar um a um, identificando os nomes dos colegas.
Maria Luiza liberta a leitura e a escrita das amarras do didatismo, num movimento em
que é convidada a ler sem ter ainda o domínio da leitura no sentido estrito, antecipa sentidos e
surpreende-se ao perceber que pode entregar a cada amigo seu presente etiquetado.
O que querem (para?) as crianças?
[...] cabe-nos como pesquisadores e profissionais
que atuam junto a estes sujeitos concretos, crianças,
não superpor o nosso discurso ao discurso infantil,
retomando a origem etimológica que, ao nomear a
criança define uma infans: a dos sem fala.
Parafraseando Freud, cabe-nos, em nossas práticas,
indagar este intrigante sujeito: afinal o que quer uma
criança?
(SARMENTO; GOUVEA, 2008)
Assim, nós também questionamos: Afinal, o que quer uma criança? ao partir da compreensão
de políticas curriculares como prática político-discursiva, enfatizamos a inexistência de um
currículo dado a priori. Entendemos que o currículo não se aplica, mas é prática enunciativa e
produção híbrida, desarticulando a ideia de cultura totalizada. Ancoradas nos estudos de Bhabha
(2001) o convidamos ao diálogo para pensarmos o currículo como produção cultural e
argumentamos em favor da produção curricular como campo de enfrentamento entre diferentes
discursos, o que significa que não há um fechamento total, mas provisório.
Argumentamos em favor da produção curricular como uma prática discursiva e o ato de
enunciar como espaço de elaboração de sentidos. Neste movimento, trouxemos a criança para
o foco questionando: “Afinal, o que querem as crianças?” Pensar em pedagogias
descolonizadoras nos aproxima da valorização das infâncias e toda complexidade que envolve
os processos educacionais. Situa-nos, também, numa perspectiva que valoriza alteridade e as
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relações híbridas, num movimento em que surge o “terceiro” em oposição à ideia de polaridade.
O terceiro espaço da enunciação, como sugere Bhabha (1998) é ambivalente e deslizante,
condição primeira para articulação da diferença cultural, o torna insustentável a reivindicação
de originalidade e pureza cultural. É, portanto, na não fixidez dos significados e símbolos da
cultura que surge o terceiro espaço.
Discutir uma outra forma de educação, nos desafia a subverter a lógica escolar da
previsibilidade em direção a experiência da infância que valorize a narrativa, o tempo, a
imaginação, a brincadeira, a leitura e a escrita, nos convoque a uma acepção da educação na
infância, problematizando todas as formas de colonialismo e extremismos. Não se trata,
contudo, de negação total das tradições, mas de formas de agenciamento, traduções, construções
enunciadoras em constante negociação com o outro.
Nesse contexto, cabe-nos o desafio de atentar, na produção curricular, às negociações e
articulações necessárias a partir do que as crianças e suas experiências enunciam, expandindo
experiências que as compreendam como sujeitos sócio-históricos que pertencem a grupos
sociais, possuem ideias, necessidades e desejos próprios, que se “constituem por um olhar
atento ao mundo e constroem diferentes formas de (re)criá-lo”.(FLORES & ALBUQUERQUE,
2015, p. 27). Assim, pensar em currículo na EI implica pensar:
Nas possíveis linguagens que ainda não são expressas por palavras, mas
potencialmente pelo corpo, pelo choro, pela gestualidade e principalmente
pela brincadeira [...]As práticas possibilitadas pela Educação Infantil têm
priorizado a presença das linguagens orais e ainda também das escritas,
assemelhando as vivências às pensadas para o Ensino Fundamental e àquelas
vividas pelos adultos, que sofreram as limitações do modo de viver a vida
moderna e passaram a esquecer-se da existência das demais linguagens [...]
(BARBOSA, ALBUQUERQUE, FOCHI, 2013, p. 15).
É possível constatar ainda outros apelos, que não necessariamente se opõem às atenções
mencionadas acima, mas justamente, não levarem há um outro extremo, ressignificando
práticas de leitura e escrita, sendo necessário, para tanto,
abandonar a hora do conto como única porta de acesso ao texto, como única
prática de leitura aceita, como principal elemento na formação de leitores –
isso parece ser uma imperiosa necessidade; abandonar o impedimento da
escrita (e da alfabetização) como um saber “não” autorizado para a criança da
Educação Infantil. (KAECHER, 2013, p. 109)
Acreditamos, nesse sentido, que enquanto nossas discussões estiverem centradas
essencialmente na polarização entre assepsia e sistematização estaremos assumindo a infância
como categoria única, universal e subalterna.
Referências
BARBOSA, M. C. S.; ALBUQUERQUE, S. S.; FOCHI, P. Linguagens e crianças: tecendo
uma rede pela educação da infância. Revista Aleph, ano VII, n. 19, p. 5-23, jul./2013.
Disponível em: <http://www.revistaaleph.com/edicao-19/>. Acesso em: abr. de 2016.
BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 2007.
PERSPECTIVAS DE LEITURA, ESCRITA, CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INFANTIL: AFINAL, O QUE...
LINHA MESTRA, N.30, P.163-167, SET.DEZ.2016 167
BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FLORES, M. L. R.; ALBUQUERQUE, S. S. de. Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil: algumas interfaces entre as políticas e as práticas. In: FLORES, Maria Luiza
Rodrigues; ALBUQUERQUE, S. S. de. Implementação do Proinfância no Rio Grande do
Sul: perspectivas políticas e pedagógicas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, p. 17-38.
HADDAD, L. Currículo para a educação Infantil: dilemas, tensões e tendências em debate. In:
GARMS, G. M. Z.; RODRIGUES, S. A. (Org.). Temas e dilemas pedagógicos da educação
infantil: desafios e caminhos: Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012, p. 37-59.
KAECHER, G. E. P. da S. As linguagens, a formação do leitor e a ação pedagógica cotidiana
na educação infantil: apontamentos. In: FLORES, M. L. R.; ALBUQUERQUE, S. S. de.
Implementação do Proinfância no Rio Grande do Sul: perspectivas políticas e pedagógicas.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, p. 101-109.
SPIVAK, C. G. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
LINHA MESTRA, N.30, P.168-170, SET.DEZ.2016 168
DAS (IM)POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO ORIENTADOR PEDAGÓGICO
NO COTIDIANO ESCOLAR: DOBRAS DA FORMAÇÃO DOCENTE
Patrícia Regina Infanger Campos1
Introdução
O objetivo deste texto é compartilhar conhecimentos sistematizados por meio da
experiência profissional na função de orientadora pedagógica2 na Rede Municipal de Ensino de
Campinas atrelados aos resultados da dissertação de Mestrado, concluída em dezembro de
2010, e da pesquisa de Doutorado, em andamento, que apresentam algumas leituras sobre as
(im)possibilidades de tecer relações entre orientação pedagógica e formação docente no
cotidiano escolar.
As (im)possibilidades do cotidiano escolar e a pesquisa sobre a própria prática
Ao longo de mais de uma década de trabalho na função de orientadora pedagógica na
Rede Municipal de Ensino de Campinas, muitos foram os desafios que encontrei no cotidiano
escolar. Boa parte deles voltada para o cumprimento de demandas externas à escola,
geralmente, de qualificação da Política Pública Municipal. Muitos outros desafios, no entanto,
eram advindos de questões internas à escola e que tocavam profundamente no desenvolvimento
das atribuições da orientadora pedagógica. Tarefas como: organização de bilhetes para diversas
finalidades, atendimento às famílias dos alunos, avaliação de alunos novos, sistematização e
digitação de atas de reuniões, agendamento de atividades e estudos de meio, planejamento de
reuniões pedagógicas, atendimento a professoras, dentre tantas outras, consumiam o dia a dia
de atuação como orientadora pedagógica.
Ao me deparar com as muitas impossibilidades apresentadas pelo cotidiano escolar, encontrei
na pesquisa sobre a própria prática e na interlocução com gestoras e professoras possibilidades para
a construção de caminhos que favorecessem a construção de um projeto pedagógico comum e que,
ao mesmo tempo, proporcionassem a formação docente no espaço escolar.
Ao assumir como pressuposto que o trabalho da orientadora pedagógica deve ser voltado para
a promoção da formação no cotidiano escolar, “um trabalho de formação continuada em serviço”
(GARRIDO, 2003, p. 9), passei a organizar os tempos e os espaços escolares com foco na promoção
de encontros entre professoras e orientadora pedagógica vislumbrando gerar discussões e reflexões
que desencadeassem o reconhecimento da autoria sobre o próprio trabalho.
Ao olhar para o cotidiano escolar com intencionalidades pedagógicas voltadas para a
promoção da formação docente, compreendi que
O comum na escola somente pode acontecer quando existe espaço de
discussão e trabalho coletivo, quando o pedagógico é debatido pelo OP e pelos
docentes e quando a colaboração nas definições parte dos dois lados, numa
relação de respeito e admiração recíprocos. (CAMPOS, 2014, p. 52).
As reuniões semanais de Trabalho Docente Coletivo e as reuniões trimestrais de Conselho
de Classe passaram a ser encaradas como momentos potencialmente formativos.
1 Doutoranda em Educação; UNICAMP; Campinas, São Paulo. E-mail: [email protected]. 2 A opção pela utilização do feminino ao referir-me aos profissionais da educação justifica-se pela marcante
atuação das mulheres nesta área.
DAS (IM)POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DO ORIENTADOR PEDAGÓGICO NO COTIDIANO...
LINHA MESTRA, N.30, P.168-170, SET.DEZ.2016 169
Os resultados da pesquisa de Mestrado revelaram que tais reuniões apresentavam
potencial formativo quando organizadas com intencionalidade voltada para essa finalidade. Por
meio do trabalho coletivo, professoras e orientadora pedagógica aprenderam a desenvolver o
trabalho em parceria, o que gerou diferentes leituras sobre a organização dos tempos e espaços
escolares. Estudos, partilha de saberes, troca de experiências, planejamento, execução e
avaliação em conjunto de situações específicas de aprendizagem dos alunos, e reflexões
coletivas foram algumas ações desenvolvidas pela orientadora pedagógica em parceria com as
professoras que contribuíram para tornar as reuniões pedagógicas, potencialmente formativas.
As impossibilidades do cotidiano escolar tornaram-se possibilidades quando passou a
existir a valorização do trabalho coletivo, que gerava confiança e o exercício da crítica nos
atores escolares. Existia, quando o grupo era incentivado a criar, inovar e participar ativamente
da elaboração do Projeto Político Pedagógico da escola.
Ampliando as discussões
Na pesquisa do Doutorado, visando à ampliação das discussões em torno das relações
entre orientação pedagógica e formação docente, propus um curso de Difusão pela
EXTECAMP para orientadoras/coordenadoras pedagógicas interessadas em refletir sobre o
próprio trabalho, discutir sobre os desafios de sua função na escola e tecer possibilidades de
atuação voltadas para a formação docente,
O curso teve duração de 20 horas. Dele participaram 31 coordenadoras pedagógicas de
diferentes municípios ao redor de Campinas, com atuação nas redes Municipal, Estadual e
Particular de ensino e também de Ensino Profissionalizante, atuando na Educação Infantil, no
Ensino Fundamental e no Médio.
O curso foi baseado em princípios por mim expostos, como fundamentais para minha atuação
profissional e trabalho acadêmico. Princípios aprendidos no exercício da profissão entrelaçado ao
desenvolvimento das pesquisas. Sendo eles, a compreensão de que: teoria e prática são
indissociáveis na perspectiva da formação continuada; a aprendizagem acontece por meio das
relações entre sujeitos; a profissional pode ser pesquisadora de sua própria prática; a pesquisa que
se realiza no cotidiano escolar é importante por vislumbrar conhecimentos produzidos por sujeitos
da ação; o espaço escolar é potencialmente formador dos sujeitos que dele fazem parte; a
orientadora pedagógica é importante articuladora do trabalho que se desenvolve na escola.
Com base nesses princípios, diferentes estratégias foram realizadas com o objetivo de
promover a reflexão constante da coordenadora sobre sua atuação profissional no cotidiano
escolar, por meio de leituras, vivências, discussões e participação ativa na organização dos
encontros, pela responsabilização na proposição de dinâmica de acolhimento de cada encontro,
pelo registro geral dos encontros em caderno próprio e pela escrita e partilha de narrativas
individuais a respeito das aprendizagens desenvolvidas.
As temáticas abordadas no curso giraram em torno de discussões sobre a constituição
profissional da coordenadora pedagógica; a atuação voltada para a formação docente no
cotidiano escolar; a importância da organização intencional dos tempos e espaços escolares; e
a potencialidade formativa das reuniões pedagógicas semanais e as reuniões de Conselho de
Classe quando planejadas pelo viés da formação docente.
De início, foi interessante constatar que as coordenadoras encaravam sua atuação partindo
das impossibilidades apresentadas pelas condições de trabalho. Fizeram uso de imagens como
polvo e aranha para demarcar a condição tarefeira de sua atuação. Ao refletirem coletivamente sobre
verbos que poderiam dizer da atuação da coordenadora, perceberam que muitos deles
direcionavam-se à condição tarefeira, tais como: agendar, registrar, organizar, atender, telefonar,
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LINHA MESTRA, N.30, P.168-170, SET.DEZ.2016 170
listar, passear. Mas também discutiram sobre verbos que auxiliaram na ampliação dessa visão:
coordenar, planejar, comunicar, formar, articular, transformar, avaliar, aprender. A atuação da
coordenadora pedagógica vai muito além das tarefas impostas pelo cotidiano. Ela precisa ter clareza
de sua atuação para planejar o trabalho e não se deixar engolir pelas urgências diárias.
Vários exercícios reflexivos proporcionaram movimentos interessantes de leitura sobre a
qualificação da atuação da coordenadora e vislumbraram, ao final dos encontros, possibilidades
de atuação direcionadas às relações de ensino e aprendizagem no cotidiano escolar, revelando
dobras e possibilidades da formação para os atores envolvidos.
Apesar da curta duração do curso, foi intensa a troca de conhecimentos sobre: filmes,
sites e dinâmicas que poderiam auxiliar as coordenadoras no desenvolvimento de seu trabalho;
também a percepção da importância da partilha de conhecimentos entre as participantes as fez
perceber que a aprendizagem acontece por meio de encontros com outros sujeitos da ação. A
atuação com olhar instigador e pesquisador para o cotidiano permitiu e permite a reflexão sobre
o trabalho e a definição de inúmeras possibilidades de atuação nas dobras da formação.
Referências
CAMPOS, P. R. I. Ensinar e aprender: coordenação pedagógica e formação docente. São
Paulo, Loyola, 2014.
GARRIDO, E. Espaço de formação continuada para o professor-coordenador. In: BRUNO, E.
B. G.; ALMEIDA, L. R. de; CHRISTOV, L. H. (Org.). O coordenador pedagógico e a
formação docente. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2003. p. 9-15.
LINHA MESTRA, N.30, P.171-174, SET.DEZ.2016 171
“CUIDADO DE SI E A BELEZA EM GESTOS COTIDIANOS”:
PARTILHANDO SABERES SOBRE O CUIDADO COM O CORPO
Elisabete Cardieri1
Introdução
Neste trabalho apresentamos uma das atividades desenvolvidas por bolsistas do Programa
PIBID/CAPES, do Subprojeto UNESP/ Botucatu – Ciências Biológicas, com alunos do Ensino
Fundamental II de uma escola da rede pública estadual, do município de Botucatu (SP). A
temática assumida foi a higiene pessoal, que está presente no currículo de Ciências, e era cada
vez mais solicitada diante de algumas situações específicas e comentários indelicados. A Escola
Estadual Prof. Francisco Guedelha está localizada numa região periférica de Botucatu, e atende
crianças e adolescentes oriundos de famílias com baixo poder aquisitivo, moradoras em bairros
com infraestrutura muito precária. Diante desse contexto, e com o compromisso de desenvolver
ações significativas para os estudantes, o grupo de bolsistas – oito licenciandos em Biologia,
juntamente com a professora supervisora (da escola)2 e orientadora (docente da universidade)
– dedicou-se a elaborar propostas para tratar a temática de uma forma científica, mas que fosse
capaz de envolver os adolescentes e, ao mesmo tempo, evitar possíveis comentários maldosos,
chacotas ou mal-estar entre eles (frequentemente constatados no cotidiano). Desenvolvemos,
então, durante seis semanas, ações de planejamento e preparação que culminaram em uma
atividade diferenciada que envolveu todos os estudantes da escola.
Cuidado de si: Planejamento das ações
Quando assumimos o tema e iniciamos o processo de planejamento, optamos por tratar a
questão da higiene pessoal como cuidado de si, de modo a enfatizar o reconhecimento do próprio
corpo e a importância dos gestos e atitudes de zelo e cuidado consigo. Nossas discussões em grupo
nos levaram a configurar a atividade como uma “super aula”, termo assumido entre nós para uma
ação ampliada, que integre várias turmas (e/ou disciplinas), organizada com práticas distintas da
aula expositiva. Nesse sentido, atentamos por destacar temas relativos ao cuidado de si que
estivessem relacionados ao conteúdo previsto pelo Currículo de Ciências Naturais (SEE/SP) e
convidar cada turma a preparar uma apresentação que seria partilhada com os outros colegas da
escola, de modo que pudessem perceber a importância de partilharmos o que aprendemos.
Assim, com o acompanhamento da professora supervisora e dos bolsistas, os estudantes
de cada ano escolar (e suas turmas A, B, C) ficaram responsáveis por um tema específico:
6º ano Higiene Bucal
7º ano Higiene e prevenção de doenças
8º ano Cuidados com o cabelo, as axilas e os pés;
9º ano O poder dos sabonetes
1º ano E. Médio Higiene íntima de meninos e meninas
1 UNESP – Instituto de Biociências. Botucatu, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Licenciandos em Ciências Biológicas (Instituto de Biociências de Botucatu): Caroline S. Cézar, Érika T. Sterde,
Euler M N. F. Molina, Jéssyca Araújo Borro, Larissa P. Rodrigues, Luane M. Meneguessi, Matheus N. Fioretto,
Mayara G. F. Mazzoni, Suellen C. S. Santos (voluntária). Professora Supervisora: Rosana T. D. Cruz (EE Prof.
Francisco Guedelha), Orientadora e Coordenadora do SubProjeto: Elisabete Cardieri, docente do Departamento
de Educação (Inst. Biociências de Botucatu/UNESP).
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Preparando as apresentações: pesquisa e organização do material
Durante três semanas, os bolsistas, com o acompanhamento da professora supervisora,
dedicaram-se a orientar as atividades de pesquisa e organização do material para a apresentação
aos colegas. A utilização da biblioteca consultando livros didáticos, o uso dos computadores na
sala de informática, buscando informações e imagens, foram os primeiros movimentos
realizados em grupos. Nesse processo, pudemos reconhecer o desenvolvimento de ações e
habilidades nem sempre vivenciadas quando nos concentramos apenas em aulas expositivas.
Como salienta Zabala (1998), constatamos uma articulação inevitável na aprendizagem de
conteúdos conceituais e procedimentais: a identificação de conceitos que se realiza na busca de
material significativo (conceitos e imagens) realizada tanto nos livros quanto no acesso aos
sites, o confronto das informações disponibilizadas, a seleção do que é mais relevante (e
compreensível), a organização do material e a preparação das apresentações. Mas também
verificamos a aprendizagem de ações que nos surpreenderam: muitos não sabiam utilizar o
editor de textos (Word) e Power Point e ali aprenderam e criaram documentos.
Aos poucos, cada turma foi delineando o que aprenderam com as leituras e assim
decidiram a forma de apresentação, a saber:
6º ano: optou por elaborar uma peça teatral para falar dos cuidados com a Higiene Bucal, a
importância da escovação após as refeições, o uso do fio dental e do anticéptico bucal, a
visita regular ao dentista... e a recomendação da mãe para tudo isso.
7º ano: integrados a discussão sobre bactérias (conteúdo que estavam estudando), os alunos
escolheram preparar e organizar um Jornal Mural, apresentando selecionando informações
que ressaltavam a importância da higiene diária para o combate às bactérias e a prevenção
de doenças.
8º ano: as turmas assumiram vários aspectos e se organizaram em subgrupos para apresentar
informações importantes sobre o cuidado com os cabelos (uso de shampoo e condicionador,
a atenção para não ferir o couro cabeludo com gestos fortes), com as axilas (o uso de
sabonetes, a diferença entre desodorantes e antitranspirantes) e com os pés (cuidados ao
secar para evitar fungos), e para isso utilizaram cartazes, demonstrações e paródias.
9º ano: Também vinculados ao que estavam estudando sobre reações químicas, os alunos
explicaram a importância e o poder dos sabonetes. Realizaram uma oficina de sabonete
artesanal, e prepararam cartazes e ilustrações para explicar a diferença de sabonetes, a
questão do Ph e a importância do uso diário e adequado para evitar doenças.
1º ano Ensino Médio: Os estudantes do 1º ano assumiram a reflexão sobre os cuidados com
a higiene íntima, pois estavam estudando temas vinculados à sexualidade. Logo que a
professora e bolsista apresentaram a proposta, os alunos ficaram receosos, mas depois,
conversando melhor, aceitaram o desafio e decidiram: as apresentações seriam distintas para
meninos e meninas, e que “era preciso tomar cuidado com o que seria dito para os alunos do
6º ano, pois eles ainda são pequenos.” (foi muito emocionante ouvir isso). E assim, optaram
por apresentar as informações em Power Point, mas de uma forma diferente, com perguntas,
discussão e respostas... e assim eles preparam.
Cuidado do si: aprendizagens partilhadas
Concluída a fase de preparação, a “Super Aula” foi realizada durante a semana de 22 a
26 de junho de 2015, sendo que a cada dia da semana um dos temas foi apresentado pelos
estudantes para todos os colegas da escola. A preparação da sala (cuidadosamente limpa e
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LINHA MESTRA, N.30, P.171-174, SET.DEZ.2016 173
decorada), a organização do espaço para receber os colegas, a atenção a cada grupo que chegava
foram aspectos marcantes que, a nosso ver, destacavam o compromisso dos estudantes com a
atividade revelando dimensões de conteúdos atitudinais suscitados na vivencia (nem sempre
valorizados na escola): compromisso, colaboração, trabalho em grupo, participação,
responsabilidade, resolução de impasses, etc.
E, por fim, os momentos das apresentações foram organizados em horários distintos, de
modo a que cada turma (aproximadamente 25 alunos) se deslocava até a sala dos expositores.
Para além do nervoso (natural) no momento da exposição, foi muito gratificante perceber o
empenho de cada estudante para partilhar seu saber sem se vincular às anotações (‘colinhas’)
que traziam. Por outro lado, também da parte dos colegas visitantes, foi encantador acompanhar
o respeito e a atenção oferecidos ao que o colega que apresentava. Cada dia, cada momento foi
vivenciado com muita alegria, responsabilidade e dedicação, gerando um sentimento de
participação, compromisso e realização em todos, pois cada qual contribuiu de uma forma.
E, ao concluir a semana, ficou para todos a imensa satisfação pelo processo realizado, por
mais de um mês que culminou numa semana diferenciada, com atividades muito envolventes e
significativa. Em nossas reflexões, reconhecemos o valor e a importância do investimento em
ações para o tratamento diferenciado de um tema que, a partir de práticas diversificadas,
possibilitou o desenvolvimento integrado de conteúdos conceituais, procedimentais e
atitudinais, em busca de uma formação mais ampla e integral, mais crítica e cidadã. Na sexta-
feira, ao final das apresentações, passamos um questionário para coletar informações sobre
como os alunos avaliaram as atividades da semana... e foi unânime a resposta: ÓTIMA!
Considerações finais
O desenvolvimento dessa Super-Aula suscitou inúmeras reflexões nos diversos âmbitos
de atuação: o grupo PIBID, os estudantes e o contexto da escola. Para o nosso grupo, foi um
momento ímpar de ousadia ao assumirmos a realização de uma atividade num formato inédito,
num movimento de invenção, de criação. Nesse sentido, foi um momento precioso de formação
docente em vista da busca de novos caminhos, novas estratégias e práticas que estejam atentas
à comunidade, às características dos estudantes, e que trabalhem os conceitos científicos de
forma envolvente e significativa. As reuniões realizadas semanalmente foram espaço e tempo
fundamentais dessa aprendizagem do novo, da partilha de ideias que se transformam e se
ampliam na prática do planejamento e na organização das atividades. Nesse sentido,
potencializaram o trabalho a ser realizado com os estudantes, sempre com muita colaboração
entre os bolsistas, favorecendo as atividades de preparação, a organização das apresentações e
o acompanhamento de cada turma no ‘grande momento’ de partilha dos saberes. Para todos, ao
avaliarmos todo o processo, foi marcante o sentimento de superação: ao ousar inventar uma
nova proposta, ao buscar atividades mais significativas, ao envolver efetivamente os estudantes
em cada momento do projeto e ao vivenciar e valorizar a importância da partilha do que
aprendemos e, assim, todos aprenderam uns com os outros.
Nessa perspectiva, articulamos os efeitos percebidos nos estudantes: a participação em
cada etapa, a colaboração na preparação das apresentações, e a presença com os colegas no dia
estabelecido, podem ser sintetizados na palavra: envolvimento. Aqui também é nítido (e
emocionante) destacar a dimensão de superação, em especial, a superação de ‘estereótipos’
cultivados que fazem com aqueles adolescentes desconfiem de seu potencial, não acreditem
que são capazes e muitas vezes desistem... a atividade demonstrou que eles são capazes de
aprender e ensinar, e realizaram isso de forma encantadora.
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LINHA MESTRA, N.30, P.171-174, SET.DEZ.2016 174
Para ilustrar um pouco mais, vale partilhar aqui duas situações: 1) a atuação de dois
estudantes do Ensino Médio, da turma responsável por refletir sobre a higiene íntima: de algum
modo todos ajudaram, mas os dois assumiram o compromisso diferente na preparação do
material, no cuidado para elaboração das perguntas, respostas e imagens expostas nos slides, e
foram os protagonistas no dia da apresentação, inclusive, adequando a linguagem quando
explicavam para alunos do 9º ano e para os ‘pequenos’ do 6º ano. Os dois tinham inúmeras
queixas de não participação em aula, e após a atividade desenvolveram interesse e passaram a
contribuir com a bolsista e a professora. 2) Durante o segundo semestre, um aluno foi conversar
com a Prof. Rosana (supervisora), que estava numa sala distinta da sua, e ao ver o tema que
estava sendo debatido em aula pela turma disse: “Nossa, ‘Pro’, que legal! Depois eles podiam
ensinar a nossa turma”. Esse comentário confirmou a riqueza da experiência proposta e vivida.
E por fim, no contexto da escola, entendemos que a atividade marcou por oferecer a
possibilidade de um reconhecimento do potencial que os estudantes têm e trazem, e o quanto é
possível propor ações diferenciadas que promovam o envolvimento, o compromisso, em vista
de uma aprendizagem significativa que se realiza com alegria, com a colaboração e a partilha.
A escola, a prática docente e o processo de aprendizagem são espaços vivos, dinâmicos,
intensos, que comportam emoção, histórias, vivências... Quanto mais estivermos atentos e
reconhecermos as especificidades das pessoas com quem nos encontramos no fazer educativo
(como nos recorda Paulo Freire), mais estaremos dispostos a propor e elaborar atividades que
contemplem a diversidade, que favoreçam a aprendizagem significativa pois foi construída e
elaborada a partir de si. A experiência vivenciada no Projeto PIBID nos certifica de que o
processo de invenção de novas práticas, inspirando-se em técnicas, mas adequando-as às
condições reais da escola, se faz com maior riqueza quando realizado num espaço de reflexão
vivenciada na partilha de concepções, experiências, contribuições gerando algo completamente
inédito, pois é fruto de uma construção coletiva a partir da qual todos ganham.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
VEIGA, Ilma P. A. (Org.). Técnicas de Ensino: Por que não? 12. ed. Campinas: Papirus, 2001
VEIGA, Ilma P. A. (Org.). Técnicas de ensino: Novos tempos, novas configurações. São
Paulo: Papirus, 2006.
ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
LINHA MESTRA, N.30, P.175-180, SET.DEZ.2016 175
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
Cíntia Maria Cardoso1
Introdução
Este trabalho propõe discutir a tipologia textual presente nos livros didáticos de História
e suas características. Conduzida numa abordagem descritiva e interpretativa, a análise foi
realizada da perspectiva da Gramática Sistêmico-Funcional (doravante GSF), com ênfase nos
gêneros textuais. O intuito é oferecer instrumentos que possibilitem auxiliar o trabalho do
professor de História na leitura, na compreensão e na produção de textos históricos para melhor
entendimento e compreensão do conhecimento histórico.
Concepção de gênero na perspectiva da GSF
Embora a questão dos gêneros seja abordada de várias perspectivas2, neste trabalho,
restringimos nossa investigação à perspectiva da GSF. Ciapuscio (2005) afirma que a questão
do gênero foi assumindo aos poucos uma centralidade crescente no âmbito dos estudos da GSF,
a partir de Halliday, a ponto de se tornar uma das principais controvérsias internas que acabaram
dando feição particular a duas vertentes, representadas, de um lado, por Hasan e, de outro, pelo
grupo que integra a ‘Escola de Sydney’.
Halliday supõe uma correlação essencial entre a organização linguística e os aspectos
contextuais: para o autor as opções de significado que configuram o sistema linguístico se
organizam nas três metafunções (ideacional, interpessoal e textual), postulando um modelo de
linguagem ou de texto que se relaciona de maneira “natural” com a organização do contexto de
situação. Para o autor, existe uma relação sistemática entre as categorias da situação e as do
sistema semântico: em termos gerais o campo está refletido nos significados experienciais do
significado do texto, as relações, nos significados interpessoais e o modo, nos significados
textuais. Na teoria hallidayana, é importante o conceito de registro, que, para o autor, permite
dar conta da relação entre os textos e os processos sociais. Halliday assim define registro:
Um registro é um conceito semântico. Ele pode ser definido como uma
configuração de significados que são tipicamente associados a uma
configuração situacional particular de campo, modo e relações. Mas, sendo
uma configuração de significado, um registro deve também incluir as
expressões, os traços léxico-gramaticais e fonológicos, que tipicamente
acompanham ou realizam esses significados. E algumas vezes vemos que um
registro particular também tem traços indexicais/indiciais, índices em forma
de palavras particulares, sinais gramaticais particulares, ou mesmo algumas
vezes sinais fonológicos que têm a função de indicar aos participantes que se
trata de um registro em questão. (...) (HALLIDAY, 1989, p. 38 apud
CIAPUSCIO, 2005, tradução nossa).
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP), docente da
Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). E-mail: [email protected]. 2 Entre essas perspectivas, destacam-se as abordagens que encontram seu fundamento nos estudos de M. Bakhtin,
que leva em consideração o processo de produção e não o produto, ou seja, há um interesse não com aspectos
formais e sim com aspectos constitutivos do discurso plasmados nos gêneros. Por não se coadunar com a
perspectiva adotada pela GSF, não trabalharemos com essa vertente.
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.175-180, SET.DEZ.2016 176
De acordo com Vian Junior (1997), Hasan, fundamentada em Halliday, conceitua gênero a
partir da noção de campo, relações e modo do discurso, aspectos sociais presentes no uso da
linguagem e que são denominados por Hasan de configuração textual, composta por uma estrutura
textual que se realiza através de combinações possíveis de escolhas, realizadas pelos usuários.
Martin (2003, p. 7) defende que gênero são os diferentes tipos de textos que
representam vários tipos de contextos sociais, que se desenvolvem em práticas linguísticas,
interpretadas pelo autor como uma forma de ação social (MARTIN, 2000), que desenvolve
muitos modos de intervir em vários processos sociais. Por exemplo, quando criança, o
homem aprende a reconhecer e distinguir os gêneros típicos de sua cultura por conviver
constantemente com significados e interagir com outros indivíduos em várias situações e,
como os padrões de significados são relativamente consistentes para cada gênero, aprende
a prever como cada situação provavelmente acontecerá e aprende também como interagir
nela (MARTIN, 2003). Assim, padrões previsíveis de significados podem variar de acordo
com a variedade de recursos da linguagem que o usuário domina, a complexidade da
situação de interação e o contexto.
Para Martin (2002; 2003), dentro da GSF, gênero representa um sistema de estágio,
metaorientado nos processos sociais através dos quais os sujeitos sociais em uma dada cultura
vivem suas vidas, havendo, nesse ponto, claramente uma ênfase na dimensão social.
O conceito de gênero defendido por Eggins (1994) origina-se nos estudos de Martin,
Hasan e Ventola. Sua definição parte do contexto situacional em que o texto foi produzido,
isto é, o registro, que, Vian Junior (1997), com base em Eggins, afirma ser determinado
pelas variáveis do campo do discurso, de suas relações e de seu modo. A partir da descrição
do registro, descreve-se o gênero, localizado numa esfera mais ampla que é o contexto da
cultura em que o texto é produzido. Isto significa que um mesmo gênero pode variar de
cultura para cultura, pois, pode apresentar diferenças em culturas diferentes (EGGINS,
1994).
Eggins e Martin (2003) desenvolvem um trabalho com uma visão holística e consideram
que o ensino da língua deve ter um propósito social daí a importância atribuída ao
contextualismo. Por isso, propõem um programa de ensino baseado no estudo do gênero, que
explore uma variedade de possíveis textos e que enfoque diferentes situações (relatos,
narrativas, explicativos, informativos, instrucionais, descritivos...).
Uma cultura pode reconhecer um número bastante grande de gêneros, mas não
incontroláveis. Na cultura ocidental contemporânea, existem gêneros que os padrões de
significados são mais ou menos previsíveis, como cartão, conversas casuais, argumentos,
informações telefônicas, instruções, palestras debates, brincadeiras, anedotas, jogos e assim por
diante; e dentro de cada um desses tipos, em geral, nomeiam-se outros gêneros mais específicos
(MARTIN, 2003).
Um aspecto importante nos estudos mais recentes dessa linha é o parentesco entre os
gêneros. Pela determinação de suas similaridades e diferenças, dois enfoques são propostos
para o exame da filiação dos gêneros: o tipológico e o topológico. A abordagem tipológica
baseia-se nas distinções categóricas entre os gêneros, a partir de oposições e similaridades.
A abordagem topológica busca a determinação de terrenos comuns (sobreposições) e
similaridades e localiza os graus de proximidade e distanciamento; mais do que impor
fronteiras absolutas de diferença, essa abordagem mapeia graus de similaridade, modelando
escolhas em termos de tendências e graus, mais do que de dicotomias disponíveis dentro de
uma rede tipológica. As duas abordagens oferecem perspectivas complementares na
classificação e filiação dos textos.
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.175-180, SET.DEZ.2016 177
Os gêneros nos textos de História
Da raiz da questão de gêneros, emerge uma indagação: qual forma mais eficiente de
exprimir o passado: narrativa ou análise? Segundo Coffin (2000), os estudantes de História
tendem a construir explanações mais lineares e com isso, constroem mais a narração,
enquanto os historiadores, geralmente, explicam os eventos históricos no nível mais
estrutural, ou seja, utilizam mais a análise e a argumentação, para melhor expor o passado.
Particularmente, para a autora, as narrativas causais são criticadas pela impossibilidade de
vincular relatos em vários níveis de discussão simultaneamente com diferentes elementos
que afetam outros níveis e graus de interpretação, por exemplo, o socioeconômico, o
cultural e o ideológico.
Considerando a perspectiva da GSF, Schleppegrell (2005) defende que as diferentes
tarefas ou formas de escrita histórica são representadas por diferentes gêneros, identificados
pelos objetivos particulares de organização de cada texto. O quadro 1 mostra alguns dos tipos
de gêneros históricos identificados pela GSF e o propósito de cada gênero ilustrado pelas
funções e as questões que podem ser respondidas.
GÊNERO O QUE FEZ ISSO QUESTÃO PARA RESPONDER
Narrativa
Histórica
Estabelece a sequência dos eventos com raciocínio
causal sobre porque coisas aconteceram
Por que isso aconteceu? (analisar)
Explanação
Histórica
Define e avalia; explana e interpreta os fatores que
resultaram ou as consequências dos eventos
históricos
O que levou a isso? Ou qual foi o
resultado disso? (explanar e interpretar)
Argumento
Histórico
Promove uma posição ou interpretação sobre os
eventos
Qual é seu julgamento do que aconteceu?
(avaliar)
Quadro 1 – Alguns gêneros de História – Fonte: Baseado em Martin, 2002 apud Schleppegrell, 2005.
Os gêneros narração, explanação e argumentação são relevantes para este estudo. Estes
gêneros são discutidos nos estudos de Achugar e Schleppegrell (2003; 2005) e Schleppegrell
(2005) e demonstram a importância de se compreender a noção de gênero e dos tipos de textos
que operam nos textos de História para reconhecer as relações causais relevantes que explanam
fatos e eventos no discurso histórico.
Entre os estudiosos que têm se destacado nesse campo, encontra-se Coffin (2000,
2004), cujos trabalhos aprofundam esse tema. A autora afirma que o gênero é a maneira
como os textos são estruturados para cumprir suas finalidades, tais como contar uma história
(um gênero de relato), dar instruções (um gênero de procedimentos), explicar eventos
passados (um gênero explicativo), e assim por diante. Assim, diferentes gêneros apresentam
diferentes “começos”, “meios”, e “fins”, no dizer da autora, e estes estágios podem ser
identificados através dos padrões lexicais e gramaticais que se correlacionam a diferentes
funções, como, por exemplo, fornecer os antecedentes em um relato que focalize as causas
pelas quais eventos ocorreram em uma sequência particular. Coffin aponta ainda que, a
despeito da centralidade da narrativa e da análise do passado, em textos de história, há outras
finalidades mais específicas nesse universo, tais como recontar eventos no passado,
esclarecer por que os eventos aconteceram em uma sequência particular, explicar os fatores
que contribuíram para um resultado particular no contraste ou explicar as consequências
que levaram a uma determinada situação. O quadro 2 apresenta o grupo de gêneros, suas
finalidades e seus estágios nas categorias narrativa e analítica.
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.175-180, SET.DEZ.2016 178
Família de
Gênero
Gênero Finalidade Social Estágios
Gêneros de
registro
(narrativa)
Narrativa
autobiográfica
Narrar os acontecimentos de
sua própria vida
Orientação, registro de
eventos (reorientação)3
Narrativa
biográfica
Narrar os acontecimentos da
vida de uma pessoa
Orientação, registro de
eventos (avaliação de pessoa)
Narrativa
histórica
Narrar acontecimentos do
passado
Antecedentes, registro de
eventos (dedução)
Relato histórico Relatar os motivos de
eventos acontecerem numa
sequência particular
Antecedentes, justificativa de
eventos (dedução)
Gêneros
explicativos
(análise)
Explicação dos
fatores
Explicar as razões ou fatores
que contribuíram para um
resultado em particular
Resultados, fatores, reforço
dos fatores
Explicação das
consequências
Explicar os efeitos ou
consequências de uma
situação
Dados, consequências,
consolidação das
consequências
Gêneros
argumentativos
(análise)
Exposição Propor para consideração
um ponto de vista ou
argumento
(Antecedente), tese,
argumentos, reforço da tese
Discussão Discutir um assunto por dois
ou mais pontos de vista
(Antecedente), assunto,
argumentos/perspectivas,
posição
Desafio Argumentar contra uma
visão
(Antecedente), posição
desafiadora, argumentos,
antítese
Quadro 2 – Gêneros-chave de História: Estágios e propósitos sociais – Fonte: Traduzido de COFFIN, 2004, p. 70.
A partir das descrições de suas finalidades e estágios, observa-se também o papel da
causalidade em cada gênero. Assim, no relato histórico (um dos gêneros narrativos), o estágio
principal é um relato dos eventos, por meio do qual um escritor explica por que uma sequência de
eventos particulares ocorreu. Nos gêneros explicação dos fatos e das consequências (que pertencem
aos gêneros explicativos de análise), os estágios são fatores e consequências, com destaque para o
papel central da causalidade. Nos gêneros argumentativos, por contraste, a causalidade não é
colocada como um dispositivo preliminar de organização, entretanto, em seu estudo, a pesquisadora
mostra que as relações causais têm um papel importante no gênero argumentativo, mesmo que as
explanações causais tendam a ser encaixadas como parte da evidência para um argumento.
Conclusão
A pesquisa mostrou que, quanto mais valorizados os gêneros nos textos de história (por
exemplo, os gêneros argumentativos produzidos no final do período de escolarização), mais
orientados causalmente os alunos se apresentam, relativamente aos gêneros que ocorrem no
começo da escolarização secundária.
No que diz respeito às implicações pedagógicas, os gêneros de História variaram de
acordo com a faixa etária dos estudantes. Com os alunos do ensino fundamental é trabalhado o
gênero narrativo, e com os alunos do ensino médio são trabalhados os gêneros explicativos e
3 Os parênteses abrigam os estágios opcionais.
TIPOLOGIA TEXTUAL NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.175-180, SET.DEZ.2016 179
argumentativos, pois a expectativa é que o aluno desse nível leia e produza explicações e
argumentações sobre fatos históricos.
Por isso, uma análise dos livros didáticos adotados nas escolas brasileiras que levasse em
conta a perspectiva do gênero textual, com base nos princípios da GSF, atrelada à faixa etária
dos alunos, seria, além de interessante, um conhecimento relevante para o professor, com
repercussão, inclusive, em práticas pedagógicas mais conscientes.
Referências
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DA LEITURA DE LITERATURA AO ENSINO DAS ESTRATÉGIAS DE
COMPREENSÃO LEITORA: DIÁLOGOS POSSÍVEIS E IMPRESCINDÍVEIS
Neyse Siqueira Cardoso1
Gildene Lima de Souza Fernandes2
Um dia, porém, vi da janela de um carro, um cartaz
ao lado da estrada (já não lembro qual era o destino
daquela viagem). A visão não deve ter durado muito
tempo; talvez o automóvel tenha-se detido por um
instante, talvez só tenha reduzido a velocidade, de
maneira que eu visse como uma aparição, formas de
grande tamanho, similares às do meu livro, mas
formas que eu nunca havia visto antes. De repente,
no entanto, sabia o que eram; podia ouvi-las na
minha cabeça; metamorfoseavam-se, deixavam de
ser linhas negras e espaços brancos para se
converter em realidade sólida, sonora, plena de
significado. Sozinho, fiz tudo aquilo. Ninguém
realizou por mim aquele ato de prestidigitação. Eu e
as formas estávamos a sós e, em silêncio, nos
revelávamos mutuamente, mediante um diálogo
respeitoso. O fato de ter transformado algumas
linhas simples em realidade viva me tornava
onipotente. Eu sabia ler.
Alberto Manguel
A epígrafe selecionada ratifica a importância da leitura como condição imprescindível
para que as pessoas possam agir com autonomia nas sociedades letradas, tornando-se onipotente
e transformadores de “linhas simples em realidade viva”. A relevância das práticas leitoras já
foi discutida em inúmeras publicações, as quais evidenciaram as consequências da carência ou
ausência dessas, reiterando a assertiva de que um dos múltiplos desafios a ser enfrentado pela
escola é o de fazer com que os alunos aprendam a ler e a escrever corretamente.
Assim, se a temática continua sendo alvo de constantes estudos e discussões é porque
existe a consciência de que o objetivo de formar leitores autônomos e proficientes não tem sido
atingido da maneira esperada; fato que motiva o aparecimento de diferentes hipóteses sobre as
causas desses desajustamentos.
De acordo com Solé,
O problema do ensino da leitura na escola não se situa no nível do método,
mas na própria conceitualização do que é a leitura, da forma em que é avaliada
pelas equipes de professores, do papel que ocupa no Projeto Curricular da
Escola, dos meios que se arbitram para favorecê-la e, naturalmente, das
propostas metodológicas que se adotam para ensiná-las (SOLÉ, 1998, p. 33).
1 Núcleo de Educação da Infância - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/RN, Brasil. E-mail:
[email protected]. 2 Núcleo de Educação da Infância - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal/RN, Brasil. E-mail:
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Nesse sentido, a realização da pesquisa que aqui será narrada -vivenciada com crianças
do nível II da Educação Infantil, cujo objetivo foi analisar as contribuições da Literatura para o
ensino das estratégias de compreensão leitora - fundamentou-se na concepção das professoras
de que o ato de ler é um processo que pode e deve ser ampliado para além da decodificação,
uma vez que envolve interação entre o leitor e o texto e, consequentemente, construção de
sentidos. Tais concepções foram construídas e eleitas como fios condutores das práticas
interventivas realizadas com os sujeitos, mediante o contato com as teorizações de Solé (1998),
ao afirmar que a leitura, enquanto processo de interação, construção de sentidos e objeto do
conhecimento, ocorre a partir de um objetivo previsto, cujo objetivo pressupõe intervenções
destinadas ao desenvolvimento de estratégias de compreensão.
Contribuíram como fundamentação teórica da pesquisa os ideais de Martins (1992, p. 45),
ao afirmar que:
O conceito de leitura pode ser ampliado para um processo de decodificação e
compreensão de expressões formais e simbólicas que envolvem tanto
componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, neurológios, quanto
culturais e econômicos. Os nossos cinco sentidos estão na base desse processo
que inicia muito cedo com a leitura sensorial, passa pela leitura emocional [...]
e desemboca depois na leitura racional que acrescenta à sensorial e à
emocional o fato de estabelecer uma ponte entre o leitor e o conhecimento, a
reflexão e a reordenação do mundo objetivo, possibilitando-lhe atribuir
significados.
Assim, utilizando-se do fio composto pelos ideais de Solé (1998) para compor a tessitura
da teia das estratégias de compreensão leitora junto às crianças, tomou-se como concepção de
leitura fluente aquela que envolve uma série de outras estratégias como a seleção, a
antecipação, as inferências e a verificação, sem as quais não é possível construção de sentidos
e proficiência.
Para a autora, um leitor competente busca saber, diante de tantas informações, buscar e
selecionar elementos que já conhece de cor, demonstrando, que o desenvolvimento das
estratégias de compreensão leitora pode ser estimulado ainda na Educação Infantil – etapa
escolar a ser investigada – uma vez que um dos fatores que facilita a formação de um leitor é a
multiplicidade de leituras com as quais ele mantém contato durante a sua vida e que, aos poucos,
vai constituindo a história de leitura de cada um.
Neste sentido, sendo a Literatura uma arte transdisciplinar (por permitir o diálogo com as
diversas áreas do conhecimento), de amplo potencial educativo e que proporciona momentos
de ludicidade e fruição, considerou-se essa linguagem um caminho propício para o ensino das
estratégias de compreensão leitora.
Almejando ofertar aos professores possibilidades de uma prática pedagógica mais efetiva
no ensino das estratégias de leitura, a partir das contribuições da Literatura, as seções seguintes
se detêm a narrar um recorte dessa experiência de pesquisa com e sobre crianças pequenas.
Leituras solidárias e literatura: Práticas solidárias de leitura: uma relação indissociável
A escola se caracteriza como um espaço propício à formação de leitores. Porém, apesar
dos avanços no tocante à promoção de experiências leitoras nesse espaço escolar, é perceptível
a carência de práticas de leitura coerentes no universo escolar, as quais tratem o ato de ler não
apenas como um mecanismo desenvolvido com o intuito de decodificação da linguagem escrita,
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mas como um processo de troca de sentidos entre o escritor, o leitor e a sociedade onde ambos
estão inseridos.
Diante dessas premissas, utilizaram-se as ideias de Solé (1998) como fundamentos
“chave” para justificar um trabalho “solidário” e significativo com a leitura, pautado por
práticas pedagógicas mais efetivas, as quais auxiliem as crianças na compreensão dos textos e
em suas formações enquanto leitores autônomos. Tais práticas pressupõe mediações destinadas
ao desenvolvimento de estratégias de compreensão, organizadas em três momentos distintos,
conforme apresenta Solé, (1998), no quadro a seguir:
Quadro 01: Estratégias de compreensão leitora. SOLÉ, 1998, p. 36
Para o alcance dos propósitos previstos para as sessões de leitura, as intervenções foram
elaboradas, fundamentando-se pelas ideias de Coll (apud SOLÉ, 1998, p. 76, grifo da autora),
o qual considera as construções de sentidos, a partir da leitura, como momentos de participação
guiada, os quais se aproximam da descrição dos processos de andaimes – metáfora usada pela
autora para explicar o papel do ensino em relação à aprendizagem dos alunos. A saber:
Assim como os andaimes sempre estão localizados um pouco acima do
edifício que contribuem para construir, os desafios do ensino devem estar um
pouco além dos que a criança já seja capaz de resolver. Mas, da mesma
maneira que, depois da construção do edifício – se as coisas foram bem feitas
-, o andaime é retirado sem ser possível encontrar seu ratro e sem que o
edifício caia, também as ajudas que caracterizam o ensino devem ser retiradas
progressivamente. (SOLÉ, 1998, p. 76).
No intuito de proporcionar práticas interacionistas, dialógicas e solidárias com a leitura,
convocou-se a estratégia da contação de histórias literárias, por se tratar de um grupo de crianças
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que ainda não lêem alfabeticamente (embora já sejam capazes de atribuírem sentidos ricos e
diversos às suas leituras) e por concordar com Souza (2009), quando afirma que a leitura em
voz alta delimita uma comunidade de ouvintes, permitindo um maior envolvimento e
concentração.
Além disso, segundo Souza (2009, p. 144), os potenciais criativo, afetivo e educativo [...]
interacional, dialógico, reflexivo, experiencial e transformador da Literatura, favorecem uma
perfeita interface com a leitura.
Além disso, a Literatura, segundo Amarilha (1997), por seu caráter transdiciplinar,
permite a interpretação, a análise e a aplicação de conhecimentos, como também possuem
relação com outras áreas do conhecimento. Ambas oferecem ainda, possibilidades de se
promover, de maneira lúdica, a aprendizagem e compreensão de textos.
Nesse contexto, para estas autoras, contar histórias é uma atividade lúdica de leitura que
pode reverter a relação conflituosa entre alunos e livros literários, desmistificando assim, o
caráter enfadonho e desinteressantes atribuído por crianças e adultos ao ato de ler.
Sessões de leitura: dos andaimes à edificação da casa nomeada compreensão leitora
Para o alcance do objetivo dessa pesquisa, utilizou-se da intervenção pedagógica,
procedimento central da pesquisa-ação, que é uma metodologia utilizada para intervir
diretamente no meio escolar Thiollent (2000, p. 14). Tal procedimento foi eleito com o intuito
de intervir no contexto escolar de forma a experimentar um modo lúdico e eficaz de ensinar as
estratégias de compreensão leitora às crianças. Nesse contexto, foram realizadas cinco sessões
de leituras, para as quais foram eleitas as obras que considerassem os interesses, expectativas e
particularidades das crianças que compõem o grupo pesquisado. Para implementar as sessões
de leitura, adotou-se a metodologia da andaimagem (scaffolding), estruturada em momentos de
pré-leitura, leitura em voz alta e pós-leitura (GRAVES; GRAVES, 1995, p. 90 apud COSTA;
MENEZES, 2012, p. 31 ). Essa metodologia propõe estratégias que ajudam os alunos na leitura
e na interpretação de textos.
Assim, o planejamento das sessões de leitura seguiram os princípios de Solé (1998),
sendo organizados em três momentos complementares e indissociáveis: o antes, o durante e o
depois da leitura.
O momento do planejamento, primeiro andaime, utilizado no processo de construção
das estratégias de leitura, foi o planejamento. Essa fase envolveu diversas etapas, desde a
escolha do método, à seleção dos materiais de leitura. A motivação pela necessidade de
diversificar ao máximo a experiência leitora das crianças, fez com que a pesquisadora recorresse
à diversidade de gêneros textuais.
Mais do que diversificar, pretendeu-se também, tornar significativo e acessível o encontro
com a literatura, no sentido de democratizar e promover a inserção cultural, considerando, nessa
etapa, as necessidades das crianças, seus interesses e expectativas, suas preocupações e
fraquezas que pudessem influenciar seus sucessos ao ler uma seleção de textos.
Assim, elegeram-se obras consideradas relevantes por atender aos interesses e
particularidades do grupo pesquisado (seus conteúdos terem relação com o mundo das crianças);
por apresentar um projeto gráfico de qualidade; por terem sido escritas por autores renomados da
área; por serem obras abertas à subjetividades, à argumentação e por propiciarem um contexto
favorável para o ensino das estratégias de compreensão leitora: práticas de leitura solidárias.
Esses critérios motivaram a seleção de contos clássicos e contemporâneos: Tia Januária
é veterinária, de Sívia Orthof; Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado;
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Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; A cesta de Dona Maricota, de Tatiana Belinky e o
Gato e a menina, de Sonia Junqueira.
Eleitas as obras e os métodos, partiu-se para o segundo andaime – a implementação da
experiência leitora, estruturado de acordo com os três momentos, propostos por Solé (1998):
a pré-leitura, a leitura e a pós-leitura, conforme mostra o quadro de intervenções a seguir:
Quadro 02: Planejamento das sessões de leitura. Diário de Bordo das pesquisadoras
DA LEITURA DE LITERATURA AO ENSINO DAS ESTRATÉGIAS DE COMPREENSÃO LEITORA...
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Após a implementação de cada sessão de leitura, vivenciou-se o momento de pós-leitura
– último andaime necessário à consolidação de nossa construção.
Nessa fase, oportunizou-se às crianças a realização de atividades como: construção da
síntese semântica do texto (de forma oral – recontação ou por meio da organização de imagens
em sequências); troca de impressões a respeito do texto lido; avaliação das informações ou
opiniões emitidas no texto e avaliação crítica do texto.
Considerações finais
Os resultados dessa pesquisa revelaram a metodologia da andaimagem como
possibilidades de evidenciar os aspectos da Literatura Infantil que os definem como linguagem
transdisciplinar, de amplo potencial educativo para o ensino na leitura. Essa experiência de
pesquisa foi profícua para a construção de situações formativas lúdicas, prazerosas,
motivadoras, de potencial crítico e argumentativo, na interface entre o ensino da leitura e a
formação literária.
Tendo em vista que, com este trabalho, pretendeu-se contribuir para o melhor
entendimento do ensino das estratégias de leitura (SOLÉ, 1998), por meio da Literatura Infantil,
os achados desse trabalho evidenciaram que a Literatura traz contribuições importantíssimas
para a aquisição das estratégias de compreensão leitora e apresenta-se como um instrumento
eficaz para que as crianças possam deduzir suas próprias interpretações e identificações
literárias, atribuindo aos textos lidos, vida, significados, emoções e prazer.
Referências
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THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
(Coleção temas básicos de pesquisa-ação).
LINHA MESTRA, N.30, P.187-191, SET.DEZ.2016 187
JUVENTUDE E CULTURA NO SÉCULO XXI: A LEITURA LITERÁRIA
Rosimeiri Darc Cardoso1
Nossa vida é afetada constantemente pelos efeitos da globalização, mas muitas pessoas
ainda não conseguem vislumbrar como isso acontece. A globalização é um fenômeno
desencadeado com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação – TIC,
por meio das quais é possível acompanhar grandes acontecimentos em tempo real, de forma
que as fronteiras que existiam separando os povos, as culturas, segundo limites estabelecidos
geográfica, política ou historicamente, acabaram por diluir-se, formando o que se costuma
chamar de ‘aldeia global’.
Para Souza (2008), a globalização atua na cultura, na política, na economia e na vida social,
afetando as pessoas, em função de uma série de mudanças ocorridas em valores e padrões, vindo a
desencadear o que se denomina de “Terceira Cultura” ou “Cultura Híbrida” (CANCLINI, 1998,
apud SOUZA, 2008). É comum também denominar-se de cultura global, numa tentativa de
integração e inclusão das culturas locais em uma única cultura, mais abrangente, responsável por
promover a interação das diversas culturas. Todavia, observa-se que, em função das práticas de
mercado, não ocorre a integração, mas uma convivência pacífica entre elas.
Considerando esse cenário, verifica-se que os avanços das novas tecnologias, embora não
tenham atingido a proposta de integração cultural, contribuíram para o acesso à cultura, à
literatura, de forma que pudessem chegar a todos, ficando a critério do destinatário como
experienciar as diferentes manifestações culturais. Ainda assim, torna-se fundamental um
trabalho de mediação, que passou a ser feito pela mídia, sempre voltada para o mercado. De
acordo com Souza (2008), a mídia “se constitui em agente da maior importância para a
disseminação de cultura e que, democratizada, pode vir a ser um grande fator de recomposição
e de expressão de culturas, valores e estéticas locais”.
Levando em conta o contexto exposto, este texto pretende apresentar a relação entre
juventude, cultura e leitura literária no ciberespaço, tendo como ponto de partida a proximidade
existente entre texto literário e hipertexto, bem como a familiaridade do jovem com este
produto. Pretende-se contribuir para delinear estratégias de ação para fomentar o consumo
cultural dos jovens, com destaque para a leitura de literatura.
O público em questão: a juventude
Os estudos sobre a juventude vêm ganhando espaço nos últimos tempos, em especial no
que se refere à própria discussão de uma caracterização deste público. Há várias perspectivas a
respeito, oriundas de diferentes áreas, como a psicologia, as ciências médicas e a sociologia.
De modo geral, o que se afirma é que se trata de um período de transição entre a infância e
idade adulta, marcada não só pela faixa etária como também pelos conflitos vivenciados pelo
indivíduo.
Neste trabalho, adota-se a perspectiva da sociologia de que a juventude é uma categoria
social, “[...] uma concepção, representação ou criação simbólica, fabricada pelos grupos sociais
ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para significar uma série de comportamentos
e atitudes a ela atribuídos” (GROPPO, 2000, p. 7-8). Tal conceituação leva em conta fatores
externos a essa categoria, tais como a criação das instituições modernas do século XIX e XX,
1 Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), Apucarana-PR, Brasil. E-mail: [email protected].
JUVENTUDE E CULTURA NO SÉCULO XXI: A LEITURA LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.187-191, SET.DEZ.2016 188
a saber: a escola, o Estado, o direito; as quais se valeram das estruturas de classes e da
cronologização do curso da vida (GROPPO, 2000).
De acordo com o autor, duas considerações devem ser levadas em conta, quando se trata de
juventude. A primeira delas está relacionada ao uso dos termos adolescência e juventude, fases
sucessivas do desenvolvimento individual; esta como fase mais próxima da idade adulta e aquela
como mais próxima da infância. Para fins deste estudo, não será feita distinção dos termos por
considerar que tanto uma como outra fase se fazem representar social e culturalmente.
A segunda consideração diz respeito à diversidade que abarca o termo juventude, de modo
que se tem muitas facetas de uma mesma categoria social, considerando o recorte sociocultural:
classe social, estrato, etnia, religião, mundo urbano e mundo rural, gênero, e tantos outros
recortes possíveis. Desta forma, segundo Groppo (2000, p. 15), “cada juventude pode
reinterpretar à sua maneira o que é “ser jovem”, contrastando-se não apenas em relação às
crianças e adultos, mas também em relação a outras juventudes”.
Observa-se, portanto, que não se trata apenas de limites baseados em critérios objetivos,
mas em representações e situações sociais, cujas formas e conteúdos influenciam na sociedade.
Como bem aponta o autor, a juventude é simbolizada e vivida na diversidade do cotidiano, a
partir de combinações com outras situações sociais e tantas outras diferenças com as quais
ressignifica objetos, experiências, linguagens, a fim de se incluir em determinado grupo social
ou determinada sociedade.
Hobsbawm (1995) defende a ideia de uma “cultura juvenil”, a partir das mudanças
ocorridas nas famílias, marcando uma mudança profunda na relação entre as gerações, fazendo
a juventude emergir como agente social independente.
A nova “autonomia” da juventude como uma camada social separada foi
simbolizada por um fenômeno que, nessa escala, provavelmente não teve
paralelo desde a era romântica do início do século XIX: o herói cuja vida e
juventude acabavam juntas. [...] O surgimento do adolescente como ator
consciente de si mesmo era cada vez mais reconhecido, entusiasticamente,
pelos fabricantes de bens de consumo, às vezes com menos boa vontade pelos
mais velhos, à medida que viam expandir-se o espaço entre os que estavam
dispostos a aceitar o rótulo de “criança” e os que insistiam no de “adulto”
(HOBSBAWM, 1995, p. 318)
A justificativa para tal afirmação tem por base três aspectos. O primeiro se baseia na
crença de que a juventude não era vista como um estágio preparatório para a vida adulta, mas
como o estágio final do pleno desenvolvimento humano. Neste sentido, expõe a contradição de
que o mundo, governado por uma gerontocracia, detentora de poder, influência e realização,
contrastava com o vigor, a força e a determinação dos jovens, o que significava uma
organização de forma insatisfatória.
O segundo aspecto, derivado do primeiro, leva em conta o fato de a juventude ter se
tornado fator dominante nas economias de mercado desenvolvidas. Considerando que as novas
gerações de adultos foram socializadas como integrantes de uma cultura juvenil autoconsciente,
além de conviverem muito mais próximos às mudanças tecnológicas, representavam uma massa
concentrada de poder de compra. “O que os filhos podiam aprender com os pais tornou-se
menos óbvio do que o que os pais não sabiam e os filhos sim.” (HOBSBAWM, 1995, p. 320).
Por fim, o terceiro aspecto da nova cultura juvenil nas sociedades urbanas está ligado ao
seu internacionalismo. As fronteiras diluíram-se e as preferências juvenis encontraram na
cultura espaço para a expansão: o blue jeans, o rock, a indústria cinematográfica, o surgimento
da televisão, possibilitaram que as “minorias” se tornassem “maiorias”. O estilo juvenil
JUVENTUDE E CULTURA NO SÉCULO XXI: A LEITURA LITERÁRIA
LINHA MESTRA, N.30, P.187-191, SET.DEZ.2016 189
difundiu-se através da distribuição mundial da imagem, dos contatos internacionais, das
universidades, pela força da moda na sociedade de consumo, que atingia às massas, dando
origem a uma cultura jovem global.
Segundo Groppo (2000), a multiplicação dos grupos juvenis informais contribuíram para
o crescimento dos espaços de lazer, da cultura de consumo e da indústria cultural no século XX.
Os jovens se constituem nesses espaços; a conexão entre cultura e diversão reforça a identidade
do jovem. A relação entre juventude e lazer favoreceu o crescimento da indústria cultural,
mediatizada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação.
É na ocupação de espaços próprios, na prática de atividades diferenciadas que os jovens
se constituem; a conexão entre cultura e diversão reforça a própria identidade do jovem que,
muitas vezes, afirma que “ser jovem” é “aproveitar / curtir a vida”. Neste sentido, os jovens são
visto, por muitos, como despreocupados, alienados, descompromissados com as questões mais
sérias. Todavia, é nesse espaço que os jovens podem socializar-se, elaborando identidades
individuais e coletivas, permitindo que sejam realizadas trocas de descobertas e preocupações,
vivenciadas experiências mais livres que nos espaços escolares ou familiares. Nessa
perspectiva, é possível dizer que a relação entre juventude e lazer veio favorecer o crescimento
da indústria cultural, mediatizada pelo desenvolvimento crescente das tecnologias de
comunicação.
A cultura e a literatura mediatizadas pela tecnologia
Morin (1977, p. 14) destaca que uma cultura “orienta, desenvolve, domestica certas
virtualidades humanas mas inibe ou proíbe outras”. Assim, é possível dizer que há, de um lado,
uma cultura que define as qualidades humanas e, de outro lado, culturas definidas pela época e
pela sociedade. Neste sentido, cabe estabelecer o que se entende por cultura de massa,
considerando a influência que exercem as novas tecnologias de comunicação e informação:
Cultura de massa, isto é, produzida segundo as normas maciças da fabricação
industrial; propagada pelas técnicas da difusão maciça (que um estranho
neologismo anglo-latino chama de “mass media”); destinando-se a uma massa
social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém
e além das estruturas internas da sociedade (classes, família, etc.). (MORIN,
1977, p. 14)
Neste aspecto, compreende-se que o desenvolvimento de uma cultura juvenil esteja
intrinsicamente ligada ao desenvolvimento de uma cultura mediatizada pelo avanço
industrial, pela sua difusão e circulação entre um grupo social, denominado juventude, que
se identificam com os novos produtos. Ao longo dos tempos, as novas tecnologias de
informação e comunicação colaboraram com a formação de uma rede de produção e difusão
dos produtos culturais, tornando-os presentes em todos os lugares do mundo. Para Oliveira
(2010, 96), “A forma como a informação, o conhecimento e a cultura são produzidos e
intercambiados em nossa sociedade afeta a maneira como percebemos o mundo, como
vislumbramos perspectivas futuras e como agimos para que se consubstanciem”.
Por essa razão, torna-se importante compreender a leitura literária mediada pela
tecnologia, visto que as inovações na produção literária bem como as práticas leitoras precisam
ser compreendidas em relação aos elementos de ruptura, que instigam a criatividade e a
inventividade, mas também devem ser compreendidas nos aspectos de continuidade do texto,
no comprometimento com os processos históricos (SALDANHA, 2006). Significa dizer que o
texto literário no ciberespaço também dialoga com outros textos e tradições da cultura, de forma
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que neste diálogo a literatura se constrói, transpondo barreiras geográficas, étnicas, históricas e
culturais.
De acordo com Saldanha (2006), a linearidade do texto impresso, bem como a
hierarquização, desaparecem; possibilitando ao leitor tornar-se coprodutor no hipertexto, o que
representa um avanço, podendo dizer até mesmo um tipo de vanguarda sem precedentes. Nesta
direção, o texto literário em meio digital teria o poder de formar leitores-produtores, livres e abertos
ao diálogo, criando comunidades descentradas que possam fruir uma experiência estética e literária
que não se prenda a imposições ou limitações de qualquer natureza. Para o autor, as condições de
formação de leitores/produtores em meio digital podem proporcionar a democratização do ensino
de literatura, contribuindo para uma sensibilidade estética que a escola ou o saber literário formal
podem não ter alcançado, considerando as possibilidades e limitações do livro impresso. Sobre este
aspecto, Santos (2003) afirma:
Em resumo, esse esboço de leitor do ciberespaço mostra-nos como
atores/organizadores que lêem, representam, atormentam, desfocam,
deformam e tocam adiante um texto que, vindo de outros leitores e loci,
recebe inflexões e significações de que talvez nem suspeitássemos.
Construímos um texto tramado e tecido em um espaço coletivo, um texto
dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplaude, vaia,
contesta, aceita, recolhe, mas participa sempre, evidentemente, dessa
construção coletiva de significações e de textos. A navegação pelo
ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização de nós
próprios, do hipertexto e de outros leitores/atores, poderá mostrar um
caminho efetivo em que, definitivamente, não precisaremos mais nos
curvar a essa melancolia de significações excessivas ou de mistificações
tecnológicas.
Diante das considerações acima, entende-se que o estudo da literatura no ambiente virtual,
para o momento, é de fundamental importância, uma vez que o ciberespaço oferece
oportunidades com as quais o público juvenil tem familiaridade. Aliada à familiaridade do leitor
ao ambiente, o estudo do consumo cultural dos adolescentes é fundamental para subsidiar um
trabalho que tenha em vista a formação de leitores de literatura, não só como entretenimento
mas, sobretudo, como forma de conhecimento do homem e do mundo.
Verifica-se que o desenvolvimento das novas tecnologias trouxeram impactos
significativos na cultura e na literatura e isso pode ser observado nas possibilidades de leitura e
vivência estética que a literatura em meio digital pode proporcionar, ou ainda, pela liberdade
na diluição de qualquer barreira que possa existir entre autores e leitores/produtores. Seguindo
este percurso, pode-se pensar na formação de leitores críticos e autônomos, capazes de transitar
por diferentes suportes da leitura literária.
Referências
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6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 33-67
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(Rumos Itaú Cultural Transmídia).
SOUZA, Valmir de. Cultura e literatura: diálogos. São Paulo: Editora do Autor, 2008.
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ERA UMA VEZ... JOÃO E MARIA EM UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
Andréia Nascimento Carmo1
Introdução
Este trabalho apresenta a possibilidade de se trabalhar com a narrativa literária de maneira
interdisciplinar, mais especificamente com o conto João e Maria. Para tanto, serão expostos
alguns pressupostos teóricos à respeito da interdisciplinaridade. Em seguida, serão elencadas
algumas abordagens interdisciplinares que podem ser feitas por meio do conto citado acima.
O conto é um gênero textual e literário que também está ligado aos fatos sociais. Desta
forma, podemos utilizá-lo como ferramenta de ensino da língua, leitura e conhecimentos gerais,
pois, a leitura também é uma forma de compreender o mundo através do texto. Nesse sentido,
a narrativa João e Maria sugere um estudo aprofundado das questões sociais e econômicas, nas
quais o professor pode desenvolver atividades interdisciplinares utilizando-se de passagens do
texto para contextualizar temas transversais como: a pobreza, a fome, compulsão alimentar e
questões familiares.
É comum encontrarmos enredos variantes referentes a um mesmo conto da tradição oral.
Desta forma, convém esclarecer que o conto João e Maria estudado neste trabalho, faz
referência à versão dos irmãos Grimm. A proposta aqui apresentada, não se faz única verdadeira
forma de se trabalhar a interdisciplinaridade com narrativas, mas uma alternativa de atividade
possível à aqueles que buscam um norteamento para a tão discutida questão da abordagem
interdisciplinar em sala de aula.
Nos dias atuais, os contos são uma maneira de ajudar a formar a personalidade das
crianças. Segundo Bettelheim (2002), eles se referem a um ciclo de iniciação de uma fase da
vida, e também por vezes a representação da morte. No conto João e Maria, por exemplo, é
possível perceber a iniciação de uma vida longe do seu lar, os irmãos vão a partir dali enfrentar
sozinhos problemas sem a ajuda dos pais, a fome é um deles, fato que abre oportunidade para
um olhar de natureza interdisciplinar, objetivo deste texto.
Interdisciplinaridade e educação
Para que haja produção de conhecimento mais qualitativo uma sentença comum entre as
disciplinas far-se-á necessária, o que nos conduz à interdisciplinaridade. Para Moraes (2011, p.
97), “se pretendemos educar de acordo com o modelo científico atual, já não podemos continuar
promovendo a fragmentação disciplinar em que se encontra a educação”. A
interdisciplinaridade, com base em Alvarenga et al. (2011), indica um trabalho primário de
atuar nas fronteiras entres as disciplinas e na ligação de saberes que deem conta de fenômenos
complexos de diversas naturezas. De acordo com a autora:
A interdisciplinaridade busca responder, assim, a problemas gerados pelo
próprio avanço da ciência moderna disciplinar quando esta se caracteriza
como fragmentadora e simplificadora do real; fato que resulta na
multiplicação espetacular de novas áreas de conhecimento (...).
(ALVARENGA ET AL. 2011, p. 21).
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL): Ensino de Língua e Literatura da Universidade
Federal do Tocantins - Campus de Araguaína. E-mail: [email protected].
ERA UMA VEZ... JOÃO E MARIA EM UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
LINHA MESTRA, N.30, P.192-196, SET.DEZ.2016 193
A proposta da interdisciplinaridade se apresenta como nova forma de conhecimento
alternativa ao disciplinar, “alternativa e complementar, e igualmente inovadora, por
contemplar, em termos de princípio geral, a proposta de um saber que busca relacionar saberes”
(ALVARENGA ET AL. 2011, p. 26), sendo a interdisciplinaridade, nesta visão, um saber que
habita no saber complexo.
A interdisciplinaridade sugere uma relação de reciprocidade, para Fazenda (1992),
implica a substituição de uma concepção fragmentária por uma concepção unitária do ser
humano que assume uma atividade diferente diante do conhecimento. Segundo a autora (1992,
p. 8), “é uma atitude de abertura, não preconceituosa, em que todo conhecimento é igualmente
importante”.
Para Piaget (1972) a interdisciplinaridade,
trata-se de um ‘segundo nível’ de colaboração entre disciplinas diversas, ou
entre setores heterogêneos de uma mesma ciência que conduz a interações
propriamente ditas, isto é, certa reciprocidade dentro das trocas, de maneira
que aí haja um total enriquecimento mútuo. (PIAGET, 1972, p. 142 – 143).
A interdisciplinaridade aborda então uma maneira de análise e de classificação de
diversos tipos de interação. De acordo com Piaget (1972), isso não é uma tarefa fácil, pois estas
interações concordarão com as variedades de múltiplas relações entre as estruturas que estão
sendo abordadas. Desta forma, é preciso que se delimite uma hierarquização entre os elementos
que interagem entre si.
Por meio da interdisciplinaridade, o professor é conduzido a agir e decidir de tal forma,
que possa redefinir novos pressupostos teóricos para a educação em sua própria atuação em
sala de aula com base no caminho já percorrido e, em sua tarefa pedagógica diante dos impasses
da sociedade atual.
“É possível afirmar que a trajetória interdisciplinar possibilita ao indivíduo a integração
de conhecimentos e de modos de pensamento de duas ou mais disciplinas ou práticas
profissionais” Steil (2011, p. 218). É por meio da associação desses elementos que se pode
compreender ou resolver problemas práticos de forma mais sistemática.
Isto implica dizer que na trajetória interdisciplinar se pode criar e aplicar o conhecimento
criado, isto é, utilizar-se da criação de ideias inovadoras e destiná-las para a resolução de
problemas.
A interdisciplinaridade no conto João e Maria
A história de João e Maria se trata de uma família composta pelo pai, dois irmãos e a sua
madrasta.
Impossibilitados de criar os filhos “os pais” resolvem abandonar as crianças na floresta,
sabendo disso, João esconde pedras no bolso para marcar o caminho de volta para casa e assim,
ele e Maria conseguem retornar para o seu lar. Novamente os irmãos são abandonados e desta
vez João deixa migalhas de pão, que seria o seu jantar, para marcar o caminho de volta. No
entanto, os pássaros comem tudo, e as crianças não conseguem voltar para casa. Então seguem
seu caminho até chegarem à casa da bruxa onde inicialmente são bem tratados, mas logo João
é posto para a engorda e Maria é obrigada a ser sua escrava. Um belo dia, Maria engana a bruxa,
prende-a no forno aceso até que ela morra queimada. Após libertar o irmão, eles decidem pegar
o tesouro que a bruxa guardava e voltaram para a casa do pai. A madrasta havia morrido de
ERA UMA VEZ... JOÃO E MARIA EM UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
LINHA MESTRA, N.30, P.192-196, SET.DEZ.2016 194
fome. Com o tesouro não precisaram mais se preocupar com dinheiro e comida e foram felizes
para sempre.
O conto logo inicia com uma triste realidade dos pais – entenda-se aqui “pais” o pai das
crianças e sua madrasta – pobres que não têm condições de criar seus filhos, e que por isso,
mostram-se perversos diante da atual situação em que se encontram. Para Bruno Bettelheim
(2002, p. 172) “a pobreza e a privação não melhoram o caráter do homem, mas, sim o tornam
mais egoísta e menos sensível aos sofrimentos dos outros, e assim sujeito a empreender feitos
malvados”.
João e Maria, ao ouvirem a conversa dos pais, acreditam que os mesmos planejam deixá-
los morrer de fome, quando na verdade o que eles querem é evitar que isso aconteça. Para tanto,
a separação do seio familiar foi vista como única saída para a resolução deste problema. Esta
atitude reduz a capacidade de se resolver uma dificuldade, fugindo da mesma. Concordando
com Bettelheim (2002, p. 173), “implicitamente, a estória fala sobre as consequências
debilitantes de tentar lidar com os problemas da vida por meio da regressão e da fuga”.
A questão da fome, que fez parte da vida do homem medieval – época em que tal conto
habitava na tradição oral – e que infelizmente também faz parte da vida do homem na sociedade
atual, é uma brecha que abre a oportunidade para uma abordagem interdisciplinar em sala de
aula com o conto supracitado.
A função insubstituível da escola secundária é a de dar aos adolescentes os
elementos e as referências essenciais – não somente para a vida profissional,
seja qual for, em que especialidade, mas também – para a vida de relações
pessoais, a vida íntima, o uso sensível e prudente dos lazeres. (MORIN, 2002,
p. 273).
O homem tem avançado muito em diversas áreas do conhecimento, porém a fome ainda
persiste na vida do ser humano. Ela é um problema social que abrange o mundo todo, derivado
dentre outros fatores, da seca, de terremotos, das guerras, das desigualdades sociais. Contudo,
não podemos dizer que a fome está diretamente ligada à quantidade de produção de alimentos,
a exemplo disso em Bangladesh, em 1974, “ela aconteceu em um ano em que houve uma
disponibilidade per capta de alimentos maior do que em qualquer ano entre 1971 e 1976” (SEN,
2000, p. 194).
Para falarmos da fome e melhor compreendê-la é imprescindível também falar da pobreza
e do seu crescimento atual, que assim como a primeira, esta é fruto de desigualdades do
processo de constituição das relações de sociedade entre os homens.
Há diversas passagens no conto que frisam esta questão social, tais como, a descrição do
lar como uma “cabana pobre”, informações de que “a vida sempre fora difícil na casa do
lenhador” e de que “não havia comida para todos”.
Se pensarmos nas consequências da fome, o leque de trabalho interdisciplinar se
expandirá muito mais, pois podemos falar em desnutrição, ou ainda podemos pensar na ideia
oposta a isso: a compulsão alimentar. Neste último caso, lembremo-nos da passagem do conto
em que João e Maria incontrolados pelo desejo de matarem sua fome, logo devoram a casa de
biscoitos que encontram, sem mesmo imaginar que lá poderiam obter abrigo.
Para Bettelheim (2002), a casa de biscoitos simula os perigos de não resistir a uma
tentação. “A casa representa a voracidade oral, e como é atrativo ceder a ela” (BETTELHEIM,
2002, p. 174). Desta forma, algumas consequências surgirão em decorrência de não oporem-se
às tentações, no caso do conto as crianças foram parar dentro da casa da bruxa, enquanto à fome
voraz isso implicaria uma série de doenças como a diabetes e a obesidade. “Ceder a uma gula
desenfreada traz a ameaça de destruição” (BETTELHEIM, 2002, p. 174).
ERA UMA VEZ... JOÃO E MARIA EM UMA PROPOSTA INTERDISCIPLINAR
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Outro ponto que faz referência ao principal tema transversal proposto pelo conto é a
aparição do elemento “pão”, dado às crianças antes de serem abandonadas, o qual representa
toda a comida em geral. Para Bettelheim (2002), o medo faz as pessoas agirem com menos
inteligência e como foi dito anteriormente, elas buscam uma forma de fugir do problema quando
não sabem logo como resolvê-lo. Falo da ansiedade de morrer de fome que João teve, tanto que
para ele, a única solução para o problema de estar perdido com sua irmã, estava na comida. Por
isso usou o pão jogando migalhas no caminho sem refletir que os pássaros comeriam todas elas.
O conto também possui espaço para mais abordagens interdisciplinares, como a formação
da família e o abandono familiar. A ideia de família atualmente não é mais do modelo
tradicional composta por pai, mãe e filhos. Hoje é comum as pessoas se arranjarem em outras
estruturas, as quais serão fáceis de serem reconhecidas no contexto da sociedade em geral, fato
que poderia gerar mais sentido ao que está sendo estudado.
Outro fator relevante do conto João e Maria é que a narrativa mostra como a família é
importante. Após se livrarem da bruxa e de posse do seu tesouro, os irmãos que poderiam seguir
em frente e constituir uma vida longe de casa, sem esperar encontrar a felicidade fora do lar,
regressam para onde se encontra agora apenas o pai. Mesmo que o fato de serem crianças pode
ter os impedido de seguirem enfrentando seus próprios problemas sozinhos, o conto aborda
implicitamente que a família seja composta como for, é o porto seguro em que todos podem
ancorar-se. Fato que caracteriza o conto como educativo.
Considerações finais
A possibilidade de se trabalhar o conto João e Maria em uma abordagem interdisciplinar
mostra-nos que o texto literário vai além da leitura por prazer, por distração, pois a
interdisciplinaridade propõe a integração do conhecimento.
A literatura, além de nos alimentar da fome de ficção que corrói o “estômago” do nosso
cérebro que se alimenta de fantasia, também abre espaço para tratarmos de assuntos comuns à
nossa sociedade atual e que tanto estão inseridos em nosso contexto. A abordagem
interdisciplinar suscitaria o interesse do leitor em buscar novos textos literários que se não para
melhor atender a sua curiosidade em temas que o atravessam ou para melhor compreenderem
o mundo, o outro e a si mesmo, para a realização de puro prazer.
A narrativa que conta a história de João e Maria colhido há muito tempo da tradição oral,
igualmente retrata problemas sociais muito antigos, conta a história de uma sociedade que sofre
com a falta de recursos que lhe garantam um mínimo necessário à sobrevivência. Dificuldade
já registrada outrora, mas que perdura nos dias de hoje, o que faz com que muitos estudiosos
digam que os contos de fadas são atemporais, ainda se os mesmos trouxerem alguma referência
de seu tempo.
Referências
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metodológicos da interdisciplinaridade. In: PHILLIPPI JR., Arlindo; SILVA NETO, Antônio
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BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. 16.
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FAZENDA, Ivani. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: Efetividade e/ou
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MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. 16. ed. Campinas, SP:
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PIAGET, Jean. L’épistemologie des relations interdisciplinaires. In: APOSTEL, L. et al.
L’interdisciplinarité: problems d’enseignemente et de recherché dans les universities. Paris:
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São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
STEIL, Andrea Valéria. Trajetória interdisciplinar formativa e profissional na sociedade do
conhecimento. In: PHILLIPPI JR., Arlindo; SILVA NETO, Antônio J. (Org.);
Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole, 2011.
LINHA MESTRA, N.30, P.197-201, SET.DEZ.2016 197
POSSIBILIDADES DE LEITURA E ESCRITA A PARTIR DA MÚSICA
Agenor Francisco de Carvalho1
Este artigo relata experiência interdisciplinar com estudantes do 2º ano do Ensino Médio
do Instituto Federal de Rondônia, Colorado dOeste (IFRO/Col). Partindo da dificuldade em
leitura, compreensão, produção e interpretação em Língua Portuguesa, Biologia, Artes,
Geografia e Sociologia, propôs-se a abordagem interdisciplinar utilizando-se a música. Com
base nos estudos de Fazenda (2008), Giroux (1999), Magnani (2001), Moura (2009), Kleiman
(2007), Vigotsky (2004) e outros foi desenvolvido o projeto “música em sala”, obtendo-se
resultados significativos. O conceito de interdisciplinaridade está em voga, há décadas, na
literatura educacional. No Brasil, porém, vem sendo incorporado aos norteadores educacionais
desde a década de 1970. Articulando-se à noção de integração, na contemporaneidade, torna-se
um ponto fulcral no discurso da educação, notadamente quanto ao Ensino Médio. Observando-
se que tal conceito, é denominado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) como eixo
organizador, assim também inscrito na Lei 9.394/96 (LDB).
A LDB (art. 27) também definiu que os conteúdos curriculares da educação
básica deverão difundir “valores fundamentais ao interesse social, aos direitos
e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”.
[...] Espera-se da escola fundamental que adapte seus programas à nova visão
curricular, que enfatiza a abordagem interdisciplinar do conhecimento e
recupera as discussões sobre ética e moral, que foram afastadas do âmbito da
ciência durante a modernidade (KLEIMAN, 2007, p. 42).
Trabalhar com propostas interdisciplinares constitui um desafio permanente aos
professores na educação contemporânea. Dada às experiências solitárias, algumas tentativas
vêm sendo frustradas. Equivoca-se ao isolar o conhecimento por áreas, fragmentando-o cada
vez mais, quando o objetivo é justamente aproximar, articular, unir. Partindo-se do problema
característico das diversas áreas do conhecimento – a interpretação de textos, poderia o
educador trabalhar a leitura, análise, compreensão e finalmente a sua interpretação. De maneira
a instrumentalizar os estudantes do Ensino Médio a dominarem os textos, entretanto, incorreria
mais uma vez na fragmentação, reforçando o paradigma da existência de linguagens próprias e
herméticas de cada uma das áreas.
O termo interdisciplinaridade, embora autoexplicativo, estabelece as relações que possam
existir entre duas ou mais disciplinas ou ramos do conhecimento. Contudo, para evitar fracassos em
projetos interdisciplinares, é necessário solidificá-los numa nova estratégia de pensar a educação,
respeitando-se as peculiaridades de cada disciplina, articulando-as num diálogo integrador de
projetos coletivos. Não se trata de ceder os espaços conquistados por cada área, mas encontrar novos
caminhos que os interliguem conduzindo-os nas noções de unidade de conhecimento.
A característica que marca os estudos das práticas interdisciplinares sustenta a
afirmação de que a interdisciplinaridade é possível por sua capacidade de adaptar-
se ao contexto vivido, reafirmando o respeito às questões do que se apresenta
como realidade contextual [...]. A interdisciplinaridade se sustenta na base da
leitura da realidade tal como ela é, assumindo suas nuances e singularidades, bem
como a diversidade presente (FAZENDA, 2008, p. 118).
1 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS/CPCX. Coxim-MS. E-mail: [email protected].
POSSIBILIDADES DE LEITURA E ESCRITA A PARTIR DA MÚSICA
LINHA MESTRA, N.30, P.197-201, SET.DEZ.2016 198
A pedagogia de projetos “oferece aos professores a possibilidade de reinventar o seu
profissionalismo, de sair da queixa, [...] da fragmentação de esforço para criar um espaço de
trabalho cooperativo, criativo e participativo” (BARBOSA, 2008, p. 58) ". Dessa maneira
observa-se que o educador ao utilizar a pedagogia de projetos interdisciplinares, certamente
estará pensando nos interesses coletivos, orientando a leitura com e por prazer, como um
instrumento do conhecimento e da formação.
Uma das fortes linhas de tessitura desse emaranhado de retalhos existentes na grade
curricular da Educação Básica é justamente a Língua Portuguesa, pois é ela que permeia por
todas as áreas, é a base da leitura e escrita e, nos tempos contemporâneos vem sendo colocada
em segundo plano. “Na interdisciplinaridade escolar, as noções, finalidades habilidades e
técnicas visam favorecer, sobretudo o processo de aprendizagem, respeitando os saberes dos
alunos e sua integração” (FAZENDA 2008, p. 21). A estratégia de utilizar-se da
interdisciplinaridade não apenas oferece a possibilidade de resgate do ser humano e, com a
síntese projetando-se no mundo, mas também oportuniza a reflexão a respeito de atitudes, “e
não um simplesmente um fazer” (FAZENDA 2008, p. 66).
O ensino da Língua Portuguesa tem sido um desafio permanente. Dada às peculiaridades
da disciplina, algumas alternativas vêm sendo apresentadas, mas que ainda representam mais
uma atividade cansativa. Magnani (2001, p. 95) revela que essa é a rotina de algumas escolas,
em razão de alguns docentes usarem a leitura em atividades que se afastam do prazer, tais como:
exercícios gramaticais, questionário de leitura para repreender o aluno e até mesmo para
preencher o tempo vago. Por outro lado há alguns professores que observaram a relevância da
leitura em sala de aula e buscam trabalhar com projetos de leitura.
É sempre bom lembrar que a prática de leitura de textos, assim compreendida,
deve fazer parte de todas as disciplinas que compõem o currículo escolar. Um
texto de História ou de Ciências não é verdade imutável à qual não se aplique
o conceito de leitura antes explicitado. Usando da linguagem escrita, esses
textos também estão sujeitos às mesmas normas de funcionamento social do
signo linguístico (MAGNANI, 2001, p. 50).
Em razão dos problemas apresentados por alunos do segundo ano do IFRO, cuja
dificuldade em leitura, análise, compreensão e interpretação dos textos provocavam
desmotivação e fraco desempenho, foi idealizado o projeto em reunião pedagógica, no começo
de 2013. Verificou-se que: as questões de compreensão e interpretação causavam dificuldades
para os estudantes, eram recorrentes resultando no déficit apresentado. Propôs-se a intervenção
através de um projeto interdisciplinar utilizando-se da música. Optou-se por aprofundar a
pesquisa com base no conceito de interdisciplinaridade descrito por Fazenda (2008), pois o
considera como uma questão de atitude, justamente porque dialoga com os sentidos e
significados definidos por Gusdorf (2006) e Japiassu (1993), possibilitando ir ao encontro de
uma ação interdisciplinar. Professores das disciplinas de Língua Portuguesa, Biologia, Artes,
Geografia e Sociologia aceitaram o desafio. Realizaram-se estudos para a construção do marco
teórico, compreendendo-se a escola como espaço coletivo de construção, desconstrução e
reconstrução permanente do conhecimento,
Como locais de contestação e produção cultural, as escolas incorporam
representações e práticas [...]. Intimamente relacionada com o poder, a
linguagem funciona para posicionar e constituir a maneira pela qual
professores e estudantes definem, medeiam e compreendem sua relação uns
com os outros e com a sociedade mais ampla (GIROUX 1997, p. 205).
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Desenhou-se o projeto coletivo, optando-se em utilizar-se da música como fator
motivacional. Após diversas ideias apresentadas, definiu-se que cada disciplina trabalharia com
textos específicos da sua área, todavia haveria um amplo diálogo, com a reescrita do texto
parodiando-se alguma música de preferência do grupo de estudantes. A aula inicial seria com
os professores envolvidos no projeto, abordando aspectos arte e da música, sua história na
evolução da humanidade, diferentes ritmos, métrica, rimas, instrumentos musicais, paródia,
texto, hipertexto, bem como o entendimento do que é arte. A opção em utilizar-se da música
como base do projeto fundamentou-se em Vigotsky (2004):
Se o destino de um quadro consistisse apenas em afagar o nosso olho e o da
música em provocar emoções agradáveis ao nosso ouvido, a percepção dessas
artes não apresentaria nenhuma dificuldade e todos, com exceção dos cegos e
surdos, estariam igualmente chamados a perceber essas artes. [...] “Distrair os
nossos sentimentos”, diz Christiansen, “não é o objetivo final da intenção
artística. O principal na música é o que não se ouve, nas artes plásticas o que
não se vê nem se apalpa” (VIGOTSKY 2004, p. 332-333).
No segundo momento, haveria a leitura dos textos específicos da disciplina, com a rotina
de aulas dialogadas, análise, discussão e debate. Após, o professor desenharia um mapa textual,
utilizando-se dos conceitos indicados por cada grupo. Pois “o conhecimento do mundo o aluno
tem, e pode ser ativado [...]. Daí a necessidade do mapa textual para guiá-lo” (Kleiman, 2007,
p. 57). Divididos em grupos, no decorrer da semana buscariam uma música de sua preferência
e fariam uma paródia tendo por base o mapa textual construído.
Seria feita a produção escrita da paródia de uma música com o tema. As paródias seriam
trabalhadas nas aulas de Língua Portuguesa, analisando-se os aspectos linguísticos, semânticos
e gramaticais, indicando-se acentuação e pontuação corretas. Na sequência seriam declamadas
pelos alunos, escolhendo-se através de votação a melhor letra. Ao final de cada mês seria
realizado um concurso para escolha da música do mês. Tal música no final do semestre
concorreria para a escolha da campeã.
Os estudantes passaram a adaptar letras das suas músicas prediletas, dando preferência às
sertanejas, até por que o maior público da escola é composto por filhos de camponeses. Foram
produzidas paródias com base em obras de Lima Barreto, Euclides da Cunha, Augusto dos
Anjos e Monteiro Lobato; abordou-se a linguagem verbal e não verbal, coesão e coerência
textuais; concordância; orações coordenadas; culturas e povos indígenas; agricultura e
desenvolvimento sustentável; meio ambiente, ética e biotecnologia; hereditariedade;
biodiversidade; cultura popular e erudita; processos democráticos e movimentos sociais.
Uma das letras de maior aceitação foi da música “cuitelinho” (1932), de Bento Costa,
divulgada por Paulo Vanzolini e cantada por Almir Sater. A qual foi tema para linguagem, meio
ambiente, culturas, dentre outros. Outras músicas parodiadas foram: Vida de gado de Zé
Ramalho, Construção de Chico Buarque, Planeta água de Guilherme Arantes. Confirmando-se
o que diz Lima (2006) “ficamos realmente surpresos com a satisfação que alguns dos sujeitos
expressaram diante da tarefa de escrever [...] atividade normalmente execrada [...] como
‘odiosa` e ‘traumática` ”. Observou-se que “o equilíbrio entre o disciplinar e o interdisciplinar
é necessário, pois as áreas específicas possuem um cabedal de conhecimento acumulado ao
qual o aluno deverá também ter acesso” (KLEIMAN, 2007, P. 43). Sendo possível um projeto
interdisciplinar com base na música. Foi extremamente prazeroso ver a dinâmica e motivação
despertada nas disciplinas envolvidas, os alunos passaram a produzir paródias e cantar nos
pátios e corredores. Interessante ver que mesmo depois de terminadas as aulas, eles
continuavam a praticar os ensinamentos. Isso somado à motivação e desempenho expressivos.
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Efetivando assim, a melhoria da leitura e escrita dos estudantes com o uso da música. A música
“Cuitelinho” (1932) foi a de maior aceitação por parte do público e aclamada como campeã.
Sua letra original:
Cheguei na beira do porto onde as ondas se 'espaia'
As 'garça' dá meia-volta e senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta, que o botão de rosa caia
Aí quando eu vim da minha terra despedir da 'parentaia'
Eu entrei no Mato Grosso bem em terras Paraguaias
Lá tinha revolução, enfrentei forte 'bataia'
A tua saudade corta como aço de 'navaia'
O coração fica 'afrito', uma bate a outra 'faia'
Os 'zoio' se enchem d'água que até a vista se 'atrapaia'
A tua saudade corta como aço de 'navaia'
O coração fica 'afrito', uma bate a outra 'faia'
Os 'zoio' se enchem d'água que até a vista se 'atrapaia' (BENTO COSTA,
1936)
Foi parodiada e assim ficou:
Cheguei ao Instituto pra estudar as orações que ‘atrapaia’
As ‘traça’ comem meu livro, mas não me fazem passar raiva
E o ‘agricolino’ não gosta, de tirar uma nota baixa
Aí para que as coordenadas sindéticas não mais me “distraia”
Eu li: aditivas, adversativas, alternativas, conclusivas ou explicativas, até que
a noite caia
Lá, bem nas aditivas: Não fui ao Rio nem ao Himalaia
As adversativas: A faca é velha, mas corta como aço de ‘navaia’
Na alternativa: No coração ‘afrito’, uma bate ou a outra ‘faia’
A Conclusiva: Os ‘zoio’ se enche d`água, logo as ‘vista” se ‘atrapaia’
E as explicativas: A nota foi boa, porque estudei até que a noite caia.(2º ano
do EM/IFRO, 2013)
Os alunos puderam mergulhar no universo musical. Mas aproveitaram desse desafio,
reconhecendo a “cultura popular como uma base importante de conhecimento, dando
expressividade” (GIROUX, 1999, p. 212). Os professores puderam desenvolver uma pedagogia
que vinculasse o conhecimento da escola “com as diferentes relações de sujeito que ajudam a
constituir as vidas cotidianas dos alunos” (GIROUX, 1999, p. 212). Sem o trabalho
interdisciplinar corria-se o risco de um ensino,
[...] da língua empobrecido, restringindo-se ao formal. [...]; a comunicação
torna-se sem expressão e a expressão sem comunicação; os livros didáticos
garantem a memorização e as regras gramaticais "por elas mesmas" reprisadas
em exercícios estéreis. O som, as mãos, as formas, as cores, os espaços, os
materiais plásticos não fazem parte da programação; as expressões são vazias,
a linguagem desordenada, o corpo ausente (FAZENDA, 2003, p. 60).
“Música em sala” ajudou a eliminar barreiras entre as disciplinas. Embora ousado, por
ser uma tentativa de romper com um ensino morto, distante dos olhos e oferecer uma reflexão
(FAZENDA, 2008, p. 87), foi uma possibilidade significativa de colocar em prática a pedagogia
de projetos interdisciplinar, comprovando-se a sua importância ao observar a melhoria
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considerável do desempenho dos estudantes, não apenas nas disciplinas envolvidas, mas
também nas demais.
Referências
FAZENDA, Ivani (Org.). O que é interdisciplinaridade? São Paulo: Cortez, 2008.
GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em
educação. Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
______. Os professores como intelectuais – rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem.
Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
MAGNANI, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, literatura e escola. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
MOURA, Dácio Guimarães de. Trabalhando com projetos. 4 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
VIGOTSKY, Lev Semenovich. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
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CINEMA, FABULAÇÃO E EDUCAÇÃO INFANTIL
Janete Magalhães Carvalho1
Sandra Kretli da Silva2
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni3
Dos caminhos que buscam multiplicar os possíveis sobre o plano da expressão
O estudo objetivou, a partir de problematizações estabelecidas em redes de conversações
no encontro entre professores, alunos e cinema, fazer a máquina de expressão gaguejar, fabular,
para forçar o pensamento, colocando-o em movimento, como força estética e política da arte de
transformação do ‘impossível’, apostando no uso de imagens fílmicas como disparadoras de
modos mais potentes de viver as tramas do tempo no cotidiano escolar e, nesse sentido,
enfocando a imagem como máquina de pensar e potência do devir.
Devir que se instala e perambula entre escrita e pesquisa, de(vir) escrever e pesquisar
junto às reticências. Ambiente que se inventa no movimento do desejo que salta e mergulha
através das imagens – imagens de cinema entrelaçadas a processos de fabulação, aprendizagem,
movimento do pensamento numa pesquisa realizada junto a crianças de uma escola pública de
educação Infantil.
O cinema, segundo Deleuze (1997), é um exercício de pensamento, com a ressalva de que
não carece de conceitos, mas de sensações que produzem subjetividades, na medida em que
causa um estado de estranhamento entre o olhar e o desenrolar da estória. Assim, é uma força
que nos leva ao movimento do pensar, que propicia encontros, experiências, que nos possibilita
a surpresa, o choque, a indagação.
Nos encontros com as crianças no campo de pesquisa, usamos as imagens-cinema
como disparadoras para fazer a língua gaguejar (Deleuze, 1997), ou seja, para forçar o
pensamento, colocando-o em movimento, produzindo o novo, a diferença. Assim, a
intenção foi a de que as redes de conversações, produzidas a partir da imagem-cinema,
intensificassem a gagueira da língua, gerando outros/novos modos de pensar, fazer e de
viver a educação infantil, visto que ‘[...] a força de projeção de imagens, é inseparavelmente,
política e estética’ (Deleuze, 1997, p. 148).
Assim, o desenho dessa escrita-experiência-pesquisa foi sendo delineado a partir dos
movimentos do desejo produzidos no ‘encontro’: imagens, cinema, professores, crianças,
pesquisadores, currículo, infância, pensamento, problematizações e experimentações. É no
‘encontro’ (Spinoza, 2008; Deleuze, 2002) que um corpo se define, aumentando a potência de
ação, multiplicando os afetos e as afecções. Encontros a disparar, pelas redes de conversações,
o impensado, o fabulado e/ou em fabulação de um povo criança por meio da máquina de
expressão, provocando pensamentos, escritas, vidas em potência.
Fabular como a possibilidade de alcançar uma linha de transformação, por meio da
expressão, em situações históricas que fazem aparecer qualquer mudança como impossível.
Não a arte (técnica) do possível, mas a arte (transformação) do impossível e, portanto, também
um verdadeiro programa político em que, pelo agenciamento de novas formas de expressão,
ocorra a potencialização de um movimento de pensamento, de aprendizagem, de ação comum,
no caso da educação infantil, de um povo-criança.
1 PPGE/UFES. E-mail:[email protected]. 2 DETEPE/UFES 3 DETEPE/UFES
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“O menino e o mundo” e os movimentos de fabulações no cotidiano escolar
“O menino e o mundo” (filme de Alê Garcia) conta a história de Cuca − um menino que
mora com o pai e a mãe em uma cidade do campo que vivencia o abandono do seu pai que parte
para a cidade grande em busca de trabalho e de melhorias de vida. Mais adiante, o menino
resolve ir à procura desse pai. Pelo olhar da criança, o filme apresenta possibilidades de se
pensar a pobreza, a desigualdade social, a exploração dos trabalhadores, os processos de
colonização, a falta de perspectiva de vida, a exclusão, mas também os processos de resistência
e (re)existência...
Nesse filme-animação, o personagem principal é desenhado com um rabisco simples,
sobre espaços brancos, que remetem a folhas de papel. Cores. Formas. Traços. Sons. Linhas.
Máquinas-bicho. Tanques de guerra. São traços que, no interior da megamáquina de produção
de subjetividade (PELBART, 2011), geram a força da singularidade a partir da simplicidade e
ingenuidade. Em meio a processos de (des)territorialização, a vida insiste em perseverar numa
positividade imanente e expansiva.
A partir dos encontros, as imagens-cinema produziram afecções engendrando
agenciamentos de corpos vibráteis de professoras e crianças que habitam e compartilham o
cotidiano escolar, com intensidades e desejos, compondo multiplicidades e diferenciações
(CARVALHO; ROSEIRO, 2015). A experiência estética da imagem-cinema possibilita a
reflexão criadora por realizar uma dupla função de invenção, pois, ao mesmo tempo em que
proporciona um distanciamento, por se tratar de um filme, propicia uma aproximação:
A criança vê o mundo de uma forma tão colorida, e penso como o olhar do
adulto muitas vezes aprisiona esse pensamento infantil. Dá vontade de ser
criança sempre! É interessante quando o pai chega cansado do trabalho e o
menino o puxa para conversar, brincar. As imagens do filme também nos leva
a pensar o consumismo, a televisão, a mídia... (PROFESSORA 2).
A gente vai perdendo essa capacidade que as crianças têm de ver o mundo
com um olhar mais mágico. Tudo para a criança é uma diversão. As relações
tão desiguais em que estamos imersos nos fazem buscar o que é imediato para
nossa sobrevivência. A gente vai perdendo essa atitude da criança, vamos
endurecendo, enrijecendo (PROFESSORA 3).
Temos que ouvir as crianças. Mas, para isso, você tem que entrar em relação
com a criança. E tem tudo a ver com o que conversamos a respeito da infância
que ocupa outra temporalidade. Eu perguntei, assim que comecei a trabalhar
aqui, como que eram as aulas de Educação Física aqui, na escola. O que
trabalhavam. Uma colega respondeu: “O tempo é que vai dizer”. Ou seja, é
a criança na temporalidade dela quem vai dizer como será. Recordo-me de
que estávamos com uma proposta de trabalhar com bolinhas. A proposta era
que eles fizessem girar as bolinhas, e o que eles fizeram? Eles inventaram
uma Árvore de Natal muito antes do Natal. Além de brincar com os
movimentos das bolas, é claro! Ou seja, a professora se permitiu entrar no
jogo do tempo da criança (PROFESSORA 3).
Imagens, movimentos, devires, acontecimentos, intensidades, encontros, desencontros,
criação, desconstrução, abertura para novos devires. O que nos interessa é agarrar-nos a essas
forças e potências que inventam e fabricam o devir-criança, o devir-docência e a infância da
educação (KOHAN, 2007). E a língua pega delírio: Pássaros. Falta do pai. Bichos. Solidão.
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Peixes. Saudade. Pulos. Abandono. Voos. Borboletas. Cata-vento. Bichos que engolem gente.
Sonho. Imaginação. Criação. Invenção. E o menino cria o mundo. Invenções nômades. Cria a
vida em um processo intensivo de devir-criança: intensidades geradas na singularização, em
vibrações e fabulações.
Eu não acho que o filme aborda apenas a criança que vê o mundo de uma
forma somente colorida. O menino Cuca vê beleza, mas sente dor e se
angustia... Aí vem a sensibilidade para percebermos como a criança tem sido
invisível muitas vezes pela sociedade. Ela está ali, mas ninguém a vê, ninguém
a percebe (PROFESSORA 4).
O filme “O Menino e o Mundo” mostra que não existe um modelo... Não é só
o colorido da vida que o filme aborda. Mostra a vida, o real. A criança que
se encontra na dúvida, na tristeza, mas isso não a impede de seguir... de criar,
de inventar, de viajar. É com isso que a gente convive o tempo todo, com as
diferenças, com as múltiplas experiências que temos e como nos afetamos e
as vivenciamos (PROFESSORA 5).
Logo no início do filme, tem toda uma curiosidade presente. O menino
mergulha na água. Ele brinca. E, assim, eu questiono: como eu brinco se eu
estou enrijecida, se o meu corpo não se movimenta mais? O que me enrijece
nesse cotidiano? Como eu brinco, se eu não tenho nem forças para
acompanhar esse menino? Aqui, no nosso cotidiano, percebo brechas,
aberturas, como a proposta de romper com o modelo de relatório avaliativo
apresentado anteriormente e propor um relatório escrito e inventado por nós.
Essa proposta é um convite para eu desendurecer, para eu me movimentar.
Será que estamos abertos para outras possibilidades no nosso planejamento
diário? Eu fico me perguntando isso (PROFESSORA 7).
Vivemos em tempos de crise das antigas ordens de representações e dos saberes e
também de uma complexidade em relação às formas de produção de subjetividades. Existe uma
variedade grande de sistemas maquínicos que incidem sobre as formas de produção de
enunciados, imagens, pensamentos e afetos.
Gallo (2014) se propôs discutir a respeito da questão: “O que pode uma imagem?”. O
autor, inspirado em Deleuze, procura discutir alguma das múltiplas potencialidades das
imagens. Diante dessa enxurrada de imagens que a vida nos apresenta, não podemos deixar de
problematizar: como pensamos diante de tantas imagens? O que e como pensamos? O que é o
pensar? “Pode a imagem devir-pensamento?” (GALLO, 2014, p. 14).
É uma imagem-sensação que pode devir uma imagem-pensamento, afirma Gallo (2014).
Imagem-sensação que toca, provoca, afeta, causa, incomoda... E a língua teima em pegar delírio...
Importa, nesse sentido, questionar: como entrar em relação às crianças, fugindo de tudo
aquilo que aprisiona, que “[...] sufoca as potências de liberdade em nome de identidades,
consciência e palavras de ordem” (LINS, 2012, p. 9) para apostar em uma aprendizagem sem
recognição? Como transcriar a educação (CORAZZA, 2013), abrindo os fluxos aos devires de
um conhecimento nômade: aquele que vagueia, deambula, fabula, delira?
Hoje estávamos falando disto: como algumas escolas impedem as crianças de
brincar e experimentar outras experiências. A escola fica dedicada a apenas
um tipo de conhecimento que a impede de visualizar outras possibilidades que
o próprio aluno produz, inventa e cria (PROFESSORA 5).
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Por exemplo: em uma conversa com as crianças, perguntei: “Onde ficam as
formigas?”. E esperando que eles fossem me responder: “No formigueiro, ou
no jardim”, elas me surpreendem: “Na sua blusa, professora”. Eu já tinha
me esquecido do dia em que as formigas me pegaram. A criança usa da
liberdade e nós nos aprisionamos. A criança não nasce prisioneira; a gente é
que aprisiona a criança e nos aprisionamos (PROFESSORA 7).
O que nos aprisiona é o conhecimento único, dogmático, achar que só existe
uma verdade; quando eu não me permito ouvir a opinião do outro porque
acho que a minha opinião é a mais certa e verdadeira, porque acho que já sei
tudo. Quando eu não me permito mergulhar de cabeça como o menino Cuca
fazia, cheio de curiosidades. Quem disse que o meu conhecimento é melhor
ou pior do que o do outro? (PROFESSORA 1).
Como intensificar a vida na sua singularidade constituída no plano da imanência? Como
intensificar o exercício do pensamento de modo a alargar os sentidos que produzimos nas
escolas? Como intensificar a produção de currículos a partir do plano de imanência? O encontro
com as imagens, com corpos, leva-nos à intensificação do afetar-se por “[...] alguma coisa de
intolerável, de insuportável, de uma situação limite da vida” (MACHADO, 2009, p. 274).
Assim, ao intensificar o sensível, procuramos abrir as possibilidades para pensar além dos
clichês que nos impedem de produzir novos modos de ser, estar, fazer e de viver os cotidianos
escolares, capturando de que maneira professores e alunos tecem as rasuras nos movimentos
que os capturam, de que forma os acontecimentos cotidianos promovem o deslocamento, o
desalojar para novos devires.
E na intensidade da fabulação de um povo por vir...
Acreditamos que não há possibilidade de se concluir algo, de terminar, mas de provocar
outras composições a partir da tentativa desta escrita, que é efêmera, transitória. A intensão,
nessa provisoriedade, foi produzir uma escrita cheia de devir-intensidades a partir do encontro
com as imagens. Retomando a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político,
Deleuze (1992) não só restitui toda a sua potência à arte, mas ao mesmo tempo a liberta dos
compromissos assumidos com as filosofias da história, fazendo da mesma um problema político
da alma individual e coletiva, onde, no caso, o pesquisador, o professor, as crianças, clamam
por um povo do qual têm necessidade, e em cuja expressão uma gente dispersa nas mais
diversas condições de opressão pode chegar a encontrar um vínculo aglutinante ou uma linha
de fuga. Máquina do pensamento que provoca movimentos intensivos engendrados por força
das afecções experimentadas pelos corpos, quando em agenciamento com as imagens-cinema:
imagemcorpocomposição. Fluxos intensivos engendrados nas linhas de vida, que produzem
subjetivações desejantes, singularidades nômades: máquina de fazer delírio com a intensidade
da vida e abrir para a fabulação.
A potência da imagem-cinema possibilita a problematização do território-escola, que se
define desmanchando, pois não é estático. O plano da vida, o plano da imanência, é atravessado
por diferentes linhas, forças e formas, o que implica dizer que entrar em relação à escola é entrar
em relação à vida, o que faz a língua pegar delírio. Pensa-se, cria-se, escreve-se, menos para
assumir a expressão de certo grupo ou de uma determinada classe, que na esperança de que o
agenciamento de novas formas de expressão possa convocar a gente a uma ação conjunta, a
uma resistência comum, a um povo por vir.
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Referências
CARVALHO, Janete Magalhães; ROSEIRO, Steferson Zanoni. Inventando tempos outros com
Bergson e Deleuze em coletivos escolares: a potência da imagem-movimento e da imagem-
tempo nas produções curriculares. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, v. 25, p.
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CORAZZA, Sandra. O que se transcria em educação? Porto Alegre/RS: UFRGS; Doisa, 2013.
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.
GALLO, Silvio. Algumas notas em torno da pergunta: “o que pode a imagem”. In:
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SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.