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Reflexo sobre o Conceito de Servio Substitutivo em Sade Mental: a
Contribuio do CERSAM de Belo Horizonte- MG
Felisa Anaya
Orientador: Prof. Dr. Paulo Amarante
Rio de Janeiro2004
Ministrio da SadeFundao Oswaldo Cruz -FIOCRUZ
Escola Nacional de Sade Pblica -ENSP
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Felisa Anaya
Reflexo sobre o Conceito de Servio Substitutivo em Sade Mental: a
Contribuio do CERSAM de Belo Horizonte- MG
Rio de Janeiro2004
Dissertao de Mestrado apresentada Escola Nacional de Sade Pblica daFundao Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro
para a obteno do ttulo de Mestre em SadePblica.
rea de Concentrao: Planejamento eGesto de Sistemas e Servios em SadePblica.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Amarante.
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Ao pessoal do CERSAM Noroeste e Nordeste, que me
acolheu com tanto carinho, permitindo-me compartilhar de
seu cotidiano, de suas dificuldades, do trabalho bonito e
rduo que vem exercendo. Aos usurios desses servios,
que aceitaram minha presena em momento no to fcil
para alguns, fazendo-me aprender mais sobre eu mesma e
deixando muitas marcas de saudade.
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AGRADECIMENTOS:
s Flvias, Helena, Mendes e Neves (Bico) pela amizade e por fazerem deste percurso
um momento muito especial na minha vida. E Mari, claro!
Ao meu orientador Paulo Amarante, que tem lugar muito especial no meu corao,
aceitando generosamente me auxiliar na pesquisa, me ensinando ser uma pessoa melhor,
menos institucionalizada e mais apreciadora das coisas boas da vida.
Ao Slvio Yasui, com quem sempre aprendi muito e por quem tenho muita
considerao. Obrigada por acolher minhas dvidas e meus pedidos de socorro.
A Andra Guerra, obrigada pela fora contagiante que sempre passou, me incentivando
desde o incio a ir em frente, e sem a qual este trabalho talvez no se realizasse. Mais
uma vez apostando em mim, hoje posso ter a felicidade de ser sua parceira de profisso.
A Cidinha e Rubens Nascimento, meus eternos professores. Marcos divisores no meu
percurso.
A Tnia Ferreira, minha gratido por todo o processo que se disps a trabalhar comigo
coisas que so somente minhas.
A Nina Isabel Soalheiro por me honrar com sua participao na banca.
A Jos Luiz Telles, pelas preciosas sugestes que acompanharam este projeto desde a
qualificao at o resultado final.
A todos os informantes-chaves que concordaram emparticipar do trabalho.
A Clodomiro Rojas e ngela Canado, pessoas to queridas, me apoiando e
incentivando durante o processo, cada um a seu modo. Pessoas que me fizeram rir muito
e aprender muito tambm. Sempre do meu lado, mesmo quando no estavam certas
disso.
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A Rodrigo Rojas, meu irmo, por quem cada vez tenho mais admirao e afeto.
Compartilha momentos bons na vida, me apia quando a coisa aperta e enfrenta com
coragem e cada vez com mais desenvoltura a condio de ser o primeiro de uma boa
ninhada, modstia parte.
A Rogrio Rojas, pelas boas lembranas do que j vivemos e pelos dias que viro, pois
a esperana a ltima que morre. Porque, ainda meu irmo querido.
A Tnia Anaya, que sempre me mostrou outras referncias na vida, povoando minha
imaginao desde criana, enchendo meu mundo de colorido, de ndios, de quilombolas,
de gente como a gente, de amizade e de David.
A Cludia Anaya, por abraar este trabalho como se fosse seu. Agradeo pela presso
para eu termin-lo, pela convivncia diria, pelo corao grande, por aceitar a Mina e
me possibilitar compartilhar do seu crescimento a cada dia. Ah! Por tudo isso agradeo
tambm Dra. Solange, sua analista.
E aos meus compadres Graciela e Marcelo, sempre generosos em me ajudar e por me
confiarem o Raulzito.
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Con un hisopo entintado marc cada cosa con su nombre: mesa,
silla, reloj, puerta, pared, cama, cacerola. Fue al corral y marc
los animales y las plantas: vaca, chivo, puerco, gallina, yuca,
malanga, guineo. Poco a poco, estudiando las infinitas
posibilidades del olvido, se dio cuenta de que poda llegar el da
en que se reconocieran las cosas por sus inscripciones, pero que
no se recordara su utilidad. Entonces fue ms explcito.
(MARQUEZ, Gabriel: 1970, 213)
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SUMRIO
RESUMO ...................................................................................................................... ix
NDICE DE ILUSTRAES..................................................................................... xi
LISTA DE ABREVIAES...................................................................................... xii
APRESENTAO...................................................................................................... 01
1 Metodologia: o andar da pesquisa....................................................................... 05
2 Fundamentos, crise e transio do paradigma da cincia moderna ................. 13
2. 1 O paradigma da cincia moderna .........................................................................16
2. 2 Crise e transio do paradigma da cincia moderna .............................................20
2.3 O problema epistemolgico da complexidade de Edgar Morin e o paradigma
emergente de Boaventura de Souza Santos: desafios para o campo da Cincia............ 22
3 Constituio do saber mdico, o paradigma psiquitrico, a instituio asilar e
suas reformas
3 . 1 O paradigma da cincia moderna na constituio do campo da medicina ......... 27
3 . 2 Fundamentos do paradigma psiquitrico e a instituio asilar............................ 30
3 . 3 As reformas asilares ou a psiquiatria reformada................................................. 37
4 O paradigma da desinstitucionalizao ............................................................... 42
4. 1 Desinstitucionalizao enquanto desospitalizaao ...............................................424. 2 Desinstitucionalizao enquanto desconstruo ...................................................46
4. 3 Os caminhos da desinstitucionalizaona na experincia italiana: a histria de
Gorizia ........................................................................................................................... 50
4. 4 A desinstitucionalizao em Trieste.....................................................................54
4. 4. 1 Primeiro momento: a desmontagem do manicmio (1971-75) ............54
4. 4. 2 Segundo momento: a instituio inventada (1975 em diante) ..............61
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5 A reforma psiquitrica no Brasil, a constituio dos novos servios de ateno
psicossocial e a noo de servio substitutivo ............................................................ 67
5 . 1 Reforma psiquitrica: um processo social complexo ......................................... 68
5 . 2 A configurao dos novos servios de SM no Brasil e suas normatizaes ...... 73
5. 3 Servio substitutivo: natureza e conceitos ........................................................... 835 . 3 . 1 O territrio como recurso aos servios substitutivos.......................... 88
6 Histria da reforma psiquitrica em Minas Gerais e a nova poltica de sade
mental de Belo Horizonte ............................................................................................ 97
7 Anlise dos resultados: o CERSAM e a noo de substitutivo a partir da
produo de sentidos no cotidiano........................................................................... 1107. 1 Caracterizao dos CERSAMs ..........................................................................110
7. 2 O projeto de sade mental ..................................................................................114
7. 3 A definio do CERSAM e concepo de substitutivo pelos coordenadores de
sade mental de BH e gerentes dos CERSAMs.......................................................... 116
7. 4 O lugar da clnica na organizao do CERSAM ................................................121
7. 5 Princpios identificados pelos trabalhadores que orientam as prticas substitutivas
do CERSAM ................................................................................................................ 125
8 Consideraes finais ............................................................................................ 136
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................... 142
ANEXOS..................................................................................................................... 151
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RESUMO
Propiciada por um contexto de crise e transio paradigmtica, ocorrido nocampo das cincias, a Reforma Psiquitrica, a partir dos anos 80, operou importantes
transformaes conceituais, sociais, ticas, jurdicas e institucionais no que se refere
ateno psiquitrica no Brasil. Sob a insgnia Por Uma Sociedade sem Manicmios,
formulada pelo Movimento dos Trabalhadores de Sade Mental, produziu rupturas com
o paradigma asilar e suas formas de excluso. Em conseqncia a estas transformaes,
surgiram novos servios com experincias inovadoras, orientados por uma tica de
incluso social e afirmao do direito de cidadania das pessoas com transtornos mentais.Chamadosservios substitutivospelas rupturas operadas com o modelo manicomial e
seus referenciais, abriram novo campo de construo de outros saberes, prticas, cultura
e formas de se relacionar com a loucura.
A produo e a proliferao dos novos servios ou servios substitutivos no
contexto do SUS se configuram como um dos mais importantes desafios aos princpios
da Reforma Psiquitrica, em vista das rupturas que operam em oposio a uma simples
reforma tcnico-assistencial. A problematizao do seu significado, a identificao de
sua genealogia e de suas propostas tornam-se objeto desta investigao, uma vez que a
utilizao do seu termo pouco identificada ao seu significado. Nessa perspectiva,
procuramos atravs da experincia dos Centros de Referncia em Sade Mental
(CERSAM) de Belo Horizonte MG, uma contribuio para este dilogo acerca da
noo desubstitutivo, tendo em vista o reconhecimento de sua experincia no campo da
sade mental e sua autodefinio enquanto tal, investigando os sentidos produzidos
acerca do servio substitutivo, a partir das prticas discursivas de coordenadores do
municpio e gerentes, e da observao em campo da prtica dos trabalhadores do
servio.
Tendo como referencial terico a desinstitucionalizao enquanto desconstruo
da Psiquiatria Democrtica Italiana, buscamos apresentar as experincias dos Centros de
Sade Mental de Trieste e dos Ncleos de Ateno Psicossocial (NAPS) de Santos, na
busca de elaborar e refletir sobre as principais temticas para a noo de servio
substitutivo.
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ABSTRACT
The Psychiatric Reform, which was responsible for important conceptual, social,
ethical, legal and institutional changes in the psychiatric attention in Brazil, was
favoured and influenced by the context of crisis and paradigmatic transition in the
sciences field since 80 years. With the slogan For A Society without Madhouses
proposed by the Movement of the Workers of Mental Health, this Reform caused
ruptures with the madhouse paradigm and its exclusion characteristics. As a result of
theses changes, were generated new services with innovative experiences, guided by an
ethics of social inclusion and affirmation of the citizenship rights of the people with
mental disorders. Entitled substitutive services because of the ruptures with the
madhouses model and its references, they opened a new field of construction of other
knowledge, practices, cultures and ways of relationship with the insanity.
The production and increasing of new servicesor substitutive servicesin the context of
SUS (Sistema nico de Sade) appear as one of the main challenges to the principles of
the Psychiatric Reform, considering the important ruptures in the madhouses model in
opposition to a simple technical and assistance reform. The discussion of the meaning of
these services, the identification of its genealogy and of its proposals were the object of
this study, once the use of its terminology is not much related to its meaning. In this
perspective, the objective of this study was to contribute to the discussion around the
concept of substitutive, based in the recognition of the experience of the Centers of
Reference in Mental Health (CERSAM) of Belo Horizonte MG in the mental health
sector and in its definition as substitutives. The research involved the investigation of
the produced literature about the substitutive services, the discursive practices of
regional coordinators and managers and the observation of the practice of the serviceworks in the field.
Using as theoretical reference the deinstitutionalisation while deconstruction of the
Democratic Italian Psychiatry, the study showed the experiences of the Centers of
Mental Health of Trieste and of the Nucleus of Psychosocial Attention (NAPS) of
Santos, trying to elaborate and to reflect about the main concepts related tosubstitutive
services.
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NDICE DE ILUSTRAES
Rede de sade mental de Trieste .................................................................................. 64
Rede de sade mental de Santos ................................................................................... 81
Servios territoriais e servios tradicionais ................................................................... 89Rede de sade mental de Belo Horizonte .....................................................................109
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LISTA DE ABREVIAES:
AIH Autorizao de Internao Hospitalar
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CERSAM Centro de Referncia em Sade Mental
(C1, C2 e C3) _ Gestores de Sade Mental do municpio de Belo Horizonte-MG
(G1, G2, G3, G4, G5, G6 e G7) _ Gerentes dos CERSAMsCID Classificao Internacional de Doenas
CSM Centro de Sade Mental
FHEMIG Fundao Hospitalar do estado de Minas Gerais
HGV Hospital Galba Veloso
IRS Instituto Raul Soares
NAPS Ncleo de Ateno Psicossocial
OMS Organizao Mundial de Sade
OPAS Organizao Pan-americana de Sade
PDP Programa de Desospitalizao Psiquitrica
PBH Prefeitura de Belo Horizonte
SES Secretaria Estadual da Sade
SIA/SUS Sistema de Informaes Ambulatoriais do SUS
SIH/SUS Sistema de Informaes Hospitalares do SUS
SMSA Secretaria Municipal de Sade
SUS Sistema nico de Sade
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APRESENTAO
Em conseqncia do movimento da Reforma Psiquitrica brasileira no final da
dcada de 70, importantes mudanas ocorreram no campo da sade mental. A proposta
de nova poltica de assistncia psiquitrica apontava para um novo projeto, que deveria
transcender a noo de assistncia, procurando intervir no espao social e delinear outro
lugar para a loucurana nossa tradio cultural.
Diferentemente de outras reformas institucionais anteriores, esse processo
marcado por um contexto de crise epistemolgica do paradigma da cincia moderna,
colocando em cena suas limitaes em conhecer o real, sua retrica sobre a neutralidade
e a reduo da complexidade do objeto. Nesse contexto, a psiquiatria, enquanto saber
especfico e legitimado pela cincia mdica para lidar com a loucura, se insere na crise
dos saberes; o que possibilitar transformaes estruturais nesse campo, permitindo
rupturas que apontam para a emergncia de outro paradigma que vem se constituindo na
contemporaneidade.
As transformaes desse campo foram caracterizadas pelo surgimento de novos
servios e prticas, fertilizadas pelo referencial terico-prtico de desinstitucionalizao
da Psiquiatria Democrtica Italiana. Esse novo paradigma em construo permitiu
rupturas e transformaes no saber psiquitrico, nas suas formas asilares de assistncia,
na legislao referente aos portadores de sofrimento mental e a toda uma cultura de
relaes da sociedade com a loucura. Inseridos nesse processo, surgem os denominados
servios substitutivos, freqentemente chamados de novos serviosou novos modelos,
em oposio ao modelo asilar e s suas prticas excludentes.
Osservios substitutivosso definidos na leitura de Amarante & Torre (2001:33), pela
operacionalizao de rupturas com o modelo manicomial e a negao de seus
referenciais, abrindo a possibilidade da construo cotidiana de outros parmetros,
saberes, prticas e relaes para com a loucura.Leonardis (apud Niccio, 1994:IX), considera esses novos servios como a
concretizao do que se poderia chamar a produo de uma nova realidade, ou seja, o
que torna esses servios substitutivos ao manicmio, seriam as novas concepes
prticas sobre a doena, a sade e o teraputico, as diversas formas de sociabilidade e de
cultura que eles produzem. A sade passa a ser compreendida como produo de vida e
no mais em oposio doena, reparao do dano ou como o genrico bem estar bio-
psicossocial. As inovaes desses servios esto, justamente, nas desconstruesconceituais com as quais operam, transformando prticas e cultura.
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Nesse contexto do processo da Reforma Psiquitrica, surgiram vrias
experincias locais e servios como os CAPS (Centros de Ateno Psicossocial) os
NAPS (Ncleos de Ateno Psicossocial) e os CERSAMs (Centros de Referncia em
Sade Mental). O primeiro CAPS (Luiz da Rocha Cerqueira), surgiu no ano de 1987,
em So Paulo, e os NAPS em 1989 em Santos; considerados as principais refernciaspara se pensar o novo contexto das experincias atuais no campo da sade mental.
Sabemos que os servios evoluram, incorporaram novas questes e sofreram
transformaes, mas marcaram certo campo de interveno. O percurso de mudana do
modelo assistencial em sade mental pode ser observado pela evoluo e o aumento
desses novos servios nomeados de CAPS/NAPS pelo pas, deixando de ser nomes
prprios para se tornarem modalidades de servios, de acordo com as portarias
ministeriais que surgiram posteriormente.Por um lado, essas portarias possibilitaram o avano na construo e
proliferao dos chamados novos servios, proporcionando o aumento dos recursos
financeiros repassados aos municpios. Por outro, ao normatizarem os novos servios
como CAPS/NAPS, atualmente somente CAPS, homogeneizaram experincias e
propostas distintas, onde a mais significativa referncia ao modelosubstitutivo retirada
de vez do texto ministerial. Nesse sentido, a ampliao e o fortalecimento desses
servios, propostos na perspectiva da Reforma Psiquitrica, constituem um dos
principais desafios para a sua efetivao no contexto do SUS.
Nem sempre pautados pelas diretrizes da Reforma Psiquitrica e suas polticas
de sade mental, os novos servios vm freqentemente se colocando ao lado e em
paralelo aos hospitais psiquitricos. O que Amarante & Torre (2001:33) consideram um
risco quanto a se tornarem atualizaes da psiquiatria, metamorfoses, roupagens
novas para velhos princpios.
No momento atual, poucas so as discusses sobre o movimento da Reforma
Psiquitrica no Brasil e sobre os servios substitutivos como operadores de
transformao desse movimento, introduzindo mudanas que vo alm de mera reforma
do servio ou aperfeioamento e humanizao da tcnica. Da a importncia da reflexo
sobre o seu significado, como se organiza, o que vem substituir, por quais caminhos
vem determinando-se. Assim como os trabalhadores de sade mental compreendem e
trabalham com essa noo, trazida pela prtica do servio.
Com tal objetivo, procuramos atravs da experincia do Centro de Referncia
em Sade Mental (CERSAM), no municpio de Belo Horizonte-MG, uma contribuio
para a definio desse conceito, uma vez que os CERSAMs, definidos como
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substitutivos, constituem uma importante referncia no contexto da Reforma
Psiquitrica no Brasil. A escolha do CERSAM no tem como objetivo a realizao de
uma avaliao do servio ou o julgamento de sua prtica, mas identificar caractersticas
que possibilitem a construo dessa noo, seja na abordagem conceitual, nos conceitos
operacionais que esses servios esto adotando a partir das falas dos seus trabalhadores,ou na prtica exercida cotidianamente pelos mesmos.
Para tanto, no primeiro captulo introduz-se discusso sobre a metodologia
utilizada nesta pesquisa, refere-se ao andar da pesquisa, como diria Ceclia Minayo.
Sero debatidos os critrios de seleo dos servios pesquisados, os aspectos
metodolgicos (entrevistas e observao participante) e os resultados, com o objetivo de
contextualizar a questo do servio substitutivo, a partir do CERSAM.
No captulo dois sero abordados os fundamentos epistemolgicos, a crise e omomento de transio paradigmtica no campo da cincia moderna, a partir de autores
como Ilya Prigogine, Edgar Morin e Boaventura Souza Campos, entendendo-se, a
priori, que a inovao dos servios substitutivos e do contexto atual da Reforma
Psiquitrica no se produzem a partir de uma transformao exclusiva do campo da
medicina, mas se insere num contexto de crise e transio paradigmtica que vem
ocorrendo no prprio modelo da cincia moderna.
No captulo trs, esse debate ser remetido ao campo da cincia mdica e da
psiquiatria, rediscutindo o objetivo que propiciou seu nascimento e o modelo que o
fundamentou e como ele, hoje, traz as caractersticas dessa crise. Seguindo um pouco o
modelo de Boaventura Souza Campos ao articular o paradigma dominante, sua crise e o
paradigma emergente, identifico o paradigma clssico da psiquiatria e suas crises, que
so as tentativas de reformas nesse campo.
No captulo quatro, caminharemos para o que seria o paradigma emergente, a
partir da constituio da experincia de desinstitucionalizaoda Reforma Democrtica
Italiana, contextualizando sua origem a partir da desospitalizao americana at sua
evoluo e transformao na experincia de desconstruo/inveno na Itlia e fazendo
uma reviso da experincia de Franco Basaglia em Gorizia e Trieste, com objetivo de
identificar os aspectos importantes para a constituio dos servios substitutivos.
Ser levantada, no captulo cinco, uma discusso sobre o movimento da Reforma
Psiquitrica no Brasil, mediante a reedio de experincias importantes para a
constituio dos novos servios de sade mental, como os CAPS e os NAPS, com
reflexes sobre a questo da noo do servio substitutivo em si, suas caractersticas,
inovaes e rupturas operadas com o modelo asilar.
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O captulo seis abordar o percurso da Reforma Psiquitrica em Minas Gerais
at a constituio dos Centros de Referncia em Sade Mental (CERSAMs) em Belo
Horizonte, identificando o nascimento desse movimento em Minas Gerais, que se
configura com a visita de Franco Basaglia em 1979 e propicia que o municpio de Belo
Horizonte construa polticas e uma rede pblica de sade mental que faz frente aomodelo asilar e tem nos CERSAMs o principal meio de articular prticas substitutivas.
No captulo sete, ser feita a anlise dos resultados com base no referencial das
prticas discursivas e produes do cotidiano, apresentando-se o CERSAM como
servio substitutivo, a partir de suas rupturas com o modelo tradicional da psiquiatria,
buscando delinear e refletir sobre as principais temticas construdas no seu cotidiano e
no campo conceitual.
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CAPTULO 1
METODOLOGIA: O ANDAR DA PESQUISA
Tendo em vista a preocupao com o rigor metodolgico, apresentamos neste
captulo a escolha do mtodo da pesquisa. Optamos por uma metodologia de trabalho
em pesquisa qualitativa, pela natureza mais conceitual do objeto em questo. Pois, para
Minayo (1994:22), a pesquisa qualitativa privilegia o trabalho com um universo amplo
de significados, de motivos, de aspiraes, de crenas, de valores e de atitudes, o que
corresponde ao espao mais profundo das relaes, dos processos e dos fenmenos que
no podem ser reduzidos operacionalizao de variveis.
Nessa perspectiva, utilizamos recursos como entrevistas e observao
participante para a coleta de material; e o uso das prticas discursivas e produes desentido para a interpretao dos resultados. Abordaremos tambm a apresentao de
alguns aspectos metodolgicos, tais como o processo de aprovao pelo comit de tica,
a escolha do mtodo, os passos da pesquisa, a seleo dos informantes-chaves, a
elaborao do roteiro de entrevistas e da observao em campo. Aspectos fundamentais,
que foram cuidadosamente planejados com o objetivo de investigar a noo acerca dos
servios substitutivos.
Diferentemente da arte e da poesia, que se consubstanciam atravs da inspirao,Minayo (1994) considera que a pesquisa no depende somente desta. Apesar de no
prescindir de criatividade para se realizar, ela feita por meio de um grande labor
artesanal, utilizando linguagem fundada em conceitos, proposies, mtodos e tcnicas.
Essa linguagem, construda durante o trabalho, se faz atravs de um ritmo prprio e
particular, denominado pela autora ciclo da pesquisa. De acordo com Minayo (1994),
esse ciclo da pesquisa se faz por um processo de trabalho em espiral, que comea por
uma fase exploratria, seguida pelo trabalho de campo e finalizada com o tratamento domaterial recolhido.
Portanto, retomando a idia de ciclo da pesquisa, proposto por Minayo (1994),
elaboramos o trabalho da seguinte forma:
A Fase exploratria
B Trabalho de campo
C Anlise do material coletado
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A Fase exploratria
Reviso e sistematizao bibliogrfica
Para MINAYO (1994), essa fase da pesquisa envolve disciplina, crtica e
articulao na aplicao de conceitos, buscando aproximao dos conhecimentos sobre
os quais se questiona, se aprofunda ou critica.
Essa fase compreendeu a sistematizao e organizao de conceitos com os quais
iramos trabalhar, a partir do paradigma da desinstitucionalizao, tais como: Reforma
Psiquitrica, Ateno Psicossocial, Servio Substitutivo, Territrio, Responsabilizao,
etc. Momento em que, como pesquisadora, me esforcei pela sistematizao dos dados
que vinha coletando, priorizando e definindo o valor das informaes a serem utilizadas,
no apenas no sentido proposto pelo marco terico do projeto de pesquisa, mas na
prpria reconstruo e fundamentao do mesmo.
B Trabalho de campo
Para investigar a questo do servio substitutivo nos CERSAMs, foi necessriaminha insero em campo, por meio da realizao de entrevistas e observao
participante, com a finalidade de identificar, na prtica do servio e no modo como os
profissionais trabalhavam no cotidiano, as possveis contribuies para meu objeto de
pesquisa. Portanto, em um primeiro momento, optamos pela entrevista e,
posteriormente, pelo trabalho de observao dentro de dois CERSAMs, que chamarei de
(X) e (Y).
Selecionamos os informantes-chaves, buscamos seus consentimentos informados
e apresentamos a documentao necessria requerida pelo comit de tica da ENSP-
FIOCRUZ, juntamente com o projeto de pesquisa e a autorizao dos entrevistados.
Esses passos so mais bem abordados abaixo.
1 - Identificao de informantes-chaves para entrevistas e solicitao de autorizao do
comit de tica para a realizao das mesmas
Definido por Tobar (2001:98) comoa pessoa com a qual o pesquisador mantm
uma relao especial no que se refere ao intercmbio de informaes,o informante-
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chave e sua escolha foram definidos seguindo a sugesto do autor de considerar alguns
aspectos, tais como:
ser um participante ativo do grupo,
conhecer sua rea de conhecimento to bem, que no precise pensar nela, estar consubstanciado em uma cultura particular, mediante estudos
especializados,
o melhor informante aquele que deve estar interessado em falar com o
pesquisador, dispor de tempo e utilizar sua prpria linguagem e conceitos para
descrever acontecimentos e aes.
Para a execuo da pesquisa, os informantes-chaves foram escolhidos pela eleiode algumas caractersticas relevantes, tais como: profissionais que j tinham um
percurso no processo da Reforma Psiquitrica de Belo Horizonte, na elaborao do
projeto de sade mental, na construo dos CERSAMs, podendo, dessa forma,
contribuir com o objeto proposto. Podemos categoriz-los em: coordenadores de sade
mental, responsveis pela implantao da nova rede de sade mental do municpio e a
conduo de suas polticas, gestores responsveis pelo trabalho prtico e gerncia dos
CERSAMs, e pessoas que produziram materiais tericos relevantes nessa rea.
2 - Entrevistas com os informantes-chaves
Entendendo a entrevista como uma ao ou interao situada e contextualizada,
que permite a produo de sentidos e construindo verses da realidade, consideramo-la
a partir de uma perspectiva construcionista, ou enquanto uma prtica discursiva, como
prefere Spink (2002), entendendo que os integrantes, tanto o pesquisador quanto os
informantes, so pessoas ativas nesse processo.
Optamos pela entrevista do tipo semi-estruturada (anexo 1) por basear-se num
guia flexvel, com perguntas disparadoras, propiciando abordar temas e objetivos
pretendidos, sem, no entanto, se manter rigidamente preso a eles. Assim, d-se maior
liberdade ao entrevistado de abordar outras informaes ou pistas que surjam
eventualmente durante a entrevista. Com esse objetivo elaboramos um roteiro, com as
perguntas que poderiam nos auxiliar na definio de nosso objeto.
Foram realizadas, ao todo, nove entrevistas, sendo uma com o ex-coordenador de
sade mental do municpio, o primeiro coordenador na poca da implantao dos
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CERSAMs e do projeto de sade mental (atual coordenador de SM do municpio), uma
com um representante do Frum Mineiro de Sade Mental e autor de livros relevantes
sobre o tema em Minas, e sete com os gerentes dos sete CERSAMs existentes na rede
do municpio.
Anteriormente a esse processo, levando em considerao preocupaes de ordem
tica, conforme determina a portaria 196/96, foi pedida autorizao coordenao de
sade mental do municpio no sentido de obter apoio na realizao da pesquisa. Isso foi
feito atravs de um Termo de Consentimento (anexo 2), entregue coordenao de
sade mental do municpio e aos entrevistados.
As entrevistas foram realizadas no perodo de agosto de 2003 a janeiro de 2004,
nos locais de trabalho dos entrevistados, ou seja, na coordenao de SM do municpio,
no Frum Mineiro de Sade Mental e nos sete CERSAMs. O tempo mdio de cadaentrevista foi de uma hora e meia. Na maior parte das vezes, as perguntas
disparadoras cumpriram sua funo no sentido de trazer para a investigao vrias
informaes que se desdobraram a partir das respostas, sem, no entanto, induzir a isso.
3 - Campo de investigao
A definio do campo de investigao a ser contemplado foi feita a partir da
anlise de algumas caractersticas relevantes dos servios, levando em considerao a
sugesto dos informantes-chaves entrevistados; porm dando nfase, aps o
conhecimento dos servios e a realizao das entrevistas, aos que poderiam melhor
contribuir para os objetivos desta pesquisa.
Dos sete CERSAMs, foram escolhidos dois, um mais antigo e outro mais recente,
apresentando particularidades bastante diferentes na forma de se organizarem e
trabalhar. A seleo dos dois nicos CERSAMs que tm funcionamento 24 horas no
foi possvel no perodo destinado coleta em campo, pois j havia outras pesquisas
sendo realizadas nos servios, o que dificultaria minha incluso e a prpria organizao
deles para estarem recebendo mais pesquisadores. Uma vez escolhidos os dois servios
para coleta de material, optamos pela observao participante como recurso
metodolgico naquele momento.
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4.1- Observao Participante
A observao participante tem como objetivo buscar auxlio para a caracterizao
do objeto da pesquisa, pela insero do pesquisador no campo, proporcionando a
observao da prtica desses servios e seus tcnicos. Pois, ao entrarmos em contato
direto com os CERSAMs eleitos e a serem observados, buscamos por meio dessa
tcnica obter informaes sobre a realidade dos trabalhadores desses servios em seus
prprios contextos.
Como roteiro de observao, levamos em considerao vrios aspectos: desde a
estrutura do servio, o funcionamento e a rotina, forma de atendimento, o
relacionamento de usurios e profissionais, horrios, relao com outros recursos da
rede, o planto, a utilizao de palavras por tcnicos e usurios, etc.
Essa tcnica se tornou importante, uma vez que permitiu captar uma variedade de
fenmenos ou situaes que no poderiam ser obtidas somente pela entrevista, pois,
dessa forma, pude observar diretamente o modo como esses trabalhadores
operacionalizam os conceitos a serem trabalhados na pesquisa. A minha insero em
campo foi estabelecida por intermdio dos gerentes dos servios, formalizada na
reunio de equipe que ocorre semanalmente, onde tive a oportunidade de falar sobre a
pesquisa, meus objetivos e buscar consentimento e apoio por parte da equipe. Tudo
que observei foi anotado no meu dirio de campo, durante a ocorrncia mesma dos
acontecimentos, ou posteriormente, guiada pelo bom senso.
4. 2 - Dirio de campo
Nesse sentido, a utilizao do dirio de campo, com o registro dos dados do
trabalho que realizei, me auxiliou na descrio do CERSAM e das relaes cotidianas,importantes para a anlise do objeto estudado. Demandando certo rigor, o dirio de
campo exigiu seu uso sistemtico desde o primeiro dia de ida a campo at o ltimo. De
carter pessoal, o dirio de campo uma tcnica muito rica em informaes, trazendo
em suas anotaes as percepes do pesquisador. Nesse sentido, se tornou um elemento
muito importante pesquisa, pois me deu a possibilidade de ter acesso direto aos
servios, aos profissionais, aos usurios e s dinmicas de funcionamento.
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C Anlise do material coletado
Para a anlise do material coletado, trabalhamos com base na perspectiva
construcionista, que no entender de Spink (2002) incorpora a noo de que os critrios e
conceitos que utilizamos para descrever e explicar a realidade so construes humanas.Logo, a realidade no existiria de forma independente do nosso modo de acess-la, pois,
ao interpret-la, conferimos-lhe sentidos. Estes sentidos so produtos de nossa poca, de
nossas convenes, prticas e peculiaridades, reconhecendo na linguagem um processo
de objetivao dessa realidade, considerada por Spink (2002), fundamentalmente, a base
da sociedade humana, pois a forma como a utilizamos nos permite sustentar prticas
sociais e produzir sentidos.
Por produo de sentidos Spink (2002,41) compreende
uma construo social, um empreendimento coletivo, mais precisamente
interativo, por meio do qual as pessoas na dinmica das relaes sociais
historicamente localizadas constroem os termos a partir dos quais
compreendem e lidam com as situaes e fenmenos a sua volta.
Nesse aspecto, as maneiras pelas quais as pessoas se posicionam e produzem
sentidos dizem respeito s prticas discursivas, que podem ser pensadas enquanto
momentos ativos do uso da linguagem, o que Spink nomeia linguagem em ao, ou
seja, seriam os momentos de ruptura e de ressignificao de sentidos. Assim, a anlise
das prticas discursivas, entendida como ruptura com o habitual, torna possvel dar
visibilidade aos sentidos, permitindo situ-los como uma forma de conhecimento.
A partir dessa argumentao, utilizamos esse tipo de anlise para interpretar os
dados coletados nos CERSAMs, buscando as diferentes maneiras de como as pessoas,
por meio dos discursos, produzem realidades, e como os gestores do municpio e os
gerentes dos CERSAMs esto construindo o conceito de servio substitutivo em suas
prticas cotidianas.
Com o objetivo de apresentar as estratgias utilizadas para dar visibilidade ao
processo de interpretao na pesquisa e dessa forma garantir o rigor na anlise, cabe
esclarecer que o processo de interpretao realizado no captulo seguinte concebido
como processo de produo de sentidos.
Nessa perspectiva, Spink & Lima (2000:105) do ao sentido um estatuto de meio e
fim de nossa atividade de pesquisa.
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Como atividade-meio, propomos que o dilogo travado com as
informaes que elegemos como nossa matria-prima de pesquisa nos impe a
necessidade de dar sentido: conversar, posicionar, buscar novas informaes,
priorizar, selecionar so todos decorrncia dos sentidos que atribumos aoseventos que compem o nosso percurso de pesquisa.
A interpretao surge como um elemento do prprio processo de pesquisa, no
havendo distino entre o levantamento das informaes e da interpretao, e
entendendo como atividade-fima explicitao dos sentidos resultantes do processo de
interpretao de nossa anlise. Ou seja, nesse momento que as vrias tcnicas de
visibilizao, que ser no nosso caso realizada pelos Mapas de Associao de Idias,iro se constituir como estratgias para assegurar o rigor da pesquisa.
Na perspectiva construcionista, o rigor passa a ser compreendido como a
possibilidade de explicitar os passos da anlise e da interpretao de modo a propiciar o
dilogo, ressituando uma objetividade possvel no mbito da intersubjetividade. Assim,
a anlise parte de um conjunto de informaes coletadas, permitindo o confronto entre
os sentidos construdos nos processos de pesquisa e de interpretao; dispomo-nos ento
a analisar o material, como entrevistas, dirio de campo, textos, etc. e construir, a partir
deles, nossas categorias de anlise. Entretanto no devemos ficar presos somente aos
contedos dessas categorias com o fito de fazer os sentidos aparecerem, precisamos
tambm entender o uso feito desses contedos.
Buscando sistematizar esse processo de anlise das prticas discursivas,
lanamos mo da construo de mapas de associaes de idias, proposto por Spink
& Lima (2000:107) como instrumento de visualizao que permite duplo objetivo: dar
subsdios ao processo de interpretao e facilitar a comunicao dos passos
subjacentes ao processo interpretativo.
Portanto, a construo desses mapas iniciou-se pela definio de categorias
gerais de natureza temtica, refletindo sobretudo os objetivos da pesquisa que vo ao
encontro da noo de servio substitutivo, compreendido pelos gerentes dos CERSAMs
e coordenadores da poltica municipal de sade mental de Belo Horizonte. Organizamos
os contedos a partir de temas, preservando a seqncia das falas com o objetivo de
conservar seus contextos e identificar os processos de interanimao dialgica a partir
da esquematizao visual de trechos selecionados das entrevistas como um todo. Para
a consecuo desse objetivo, o dilogo foi mantido intacto, sem fragmentao, apenas
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sendo deslocado para as colunas previamente definidas em funo dos objetivos da
pesquisa.(SPINK & LIMA: 2000,107).
Portanto, os mapas no constituem tcnicas fechadas, uma vez que representam
um processo interativo entre anlise dos contedos (dispostos em colunas) e a
elaborao das categorias, cuja definio foi iniciada de forma terica; buscandoalcanar os objetivos da pesquisa, seu prprio processo de anlise nos levou a redefinir
essas categorias, o que propiciou a aproximao com os sentidos vistos como
atividades-fim.
Nessa pesquisa, o CERSAM foi escolhido como cenrio para o estudo da noo
de substitutivo, tanto pela autodefinio do servio enquanto tal (atravs de seus
trabalhadores, textos, projeto de sade mental), como pela sua forma de articulao
diferenciada em relao a servios como Trieste e Santos, nos quais se inspirou, comoainda pelo destaque que tem ocupado na proposta da Reforma Psiquitrica brasileira,
contribuindo com questes e crticas constantes a si e a outras modalidades de servios.
O objetivo principal da pesquisa analisar os repertrios disponveis para dar
significado a essa noo de substitutivo e as possibilidades de ao decorrentes dos
sentidos produzidos. Partindo do pressuposto de que as possibilidades de sentido eram
semelhantes entre gestores e gerentes (trabalhadores do CERSAM), por se identificarem
na construo do projeto de sade mental do municpio, havia interesse de verificar esse
entendimento. Assim, com o objetivo de analisar os repertrios utilizados e a produo
de sentidos, as entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente inseridas em
mapas de associao de idias, tendo como eixos temticos:
O projeto de sade mental
A definio e conceituao do servio (o uso do termo substitutivo)
O lugar da clnica no CERSAM
Os princpios e diretrizes que orientam o trabalho do CERSAM
Interessou-nos sobretudo, nesta pesquisa, entender o que esses entrevistados
compreendiam por substitutivo e como os trabalhadores dos CERSAMs operavam isso
na prtica atravs da observao participante.
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CAPTULO 2:
FUNDAMENTOS, CRISE E TRANSIO DO PARADIGMA DA CINCIA
MODERNA
Se uns parecem sustentar, de modo convincente, que a
cincia moderna a soluo dos nossos problemas, outros
parecem defender, com igual persuaso, que a cincia moderna
ela prpria parte dos nossos problemas. (SANTOS, B.
2001:58).
No final do sculo XX, iniciou-se uma srie de transformaes histricas noscampos da poltica, da economia, da cincia e da cultura. Para Carvalho (1996:104) as
mudanas ocorridas na poltica e na economia so denominadas globalizao`; por
outro lado, as mudanas ocorridas no campo da cultura e das cincias so chamadas de
ps-modernidade`. O autor atribui essas mudanas a uma suposta crise da
modernidade, entendida como o esgotamento ou enfraquecimento do iluminismo como
matriz da cultura moderna. Samos de um passado de certezas para uma poca de
polmica, de transio e de novas aberturas necessrias ao pensamento moderno.
As premissas de evoluo e progresso enfatizadas pela razo instrumental1,
aliados a uma sociedade em que o capitalismo dominou de forma rpida e devastadora,
so desmistificadas no mundo contemporneo diante dos prprios limites e problemas
que esse pensamento gerou. A cincia, usada a servio de combinaes tcnicas mais
produtivas apontadas como as que convinham melhor a toda sociedade serviu de
base a uma poltica econmica que justificou a dominao, o poder e a explorao
excessiva do homem e de seu meio ambiente.
A promessa de dominao da natureza, e do seu uso para o
benefcio comum da humanidade, conduziu a uma explorao excessiva
e despreocupada dos recursos naturais, catstrofe ecolgica, ameaa
nuclear, destruio da camada de oznio, e emergncia da
biotecnologia, da engenharia gentica e da conseqente converso do
1 A razo instrumental que os frankfurtianos, como Adorno, Marcuse e Horkeimer tambmdesignaram com a expresso razo iluminista nasce quando o sujeito do conhecimentotoma a deciso de que conhecer dominar e controlar a natureza e os seres humanos.CHAU, Marilena. 2002. As Cincias. In: Convite Filosofia. So Paulo: tica, Unidade 7. p.247-287.
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corpo humano em mercadoria ltima. A promessa de uma paz perptua,
baseada no comrcio, na racionalizao cientfica dos processos de
deciso e das instituies, levou ao desenvolvimento tecnolgico da
guerra e ao aumento sem precedentes do seu poder destrutivo. A
promessa de uma sociedade mais justa e livre, assentada na criao dariqueza tornada possvel pela converso da cincia em fora produtiva,
conduziu espoliao do chamado Terceiro Mundo e a um abismo cada
vez maior entre o Norte e o Sul.(SANTOS, B. 1997:56)
Santos, B. (1997: 9) considera que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de
uma certa ordem cientfica que foi fermento para uma transformao tcnica e social
sem precedentes na histria da humanidade. Nesse sentido, alguns pensadorescontemporneos acreditam que vivemos em um momento de perda de confiana
epistemolgica, momento de mutaese de crisedo paradigma da cincia moderna.
Para Ilya Prigogine, prmio Nobel de Qumica em 1977, vivemos um sculo de
mutao, pois assistimos em apenas uma centria uma mudana considervel tanto na
cincia quanto nas sociedades humanas. Mesmo que no saibamos onde estamos,
encontramo-nos em pleno perodo de mutaes. (PRIGOGINE: 2001,38)
Porm, longe de considerar o fim da cincia, Prigogine (2001:101) acredita que
ela se encontra em sua infncia, tendendo a formar uma Nova Aliana: ligaes
que sempre existiram mas que foram mal entendidas durante muito tempo entre a
histria do homem, das sociedades humanas, do conhecimento humano e a aventura de
investigar a natureza.
Segundo Prigogine (2001:100) a cinciatraduz, enquanto a expresso de uma
cultura, um dilogo entre o homem e a natureza, em relao com o transcendental,
comum a outras atividades culturais, tais como a arte, a msica e a literatura. Entretanto,
as transformaes conceituais s quais fomos levados ultimamente no possuem a
marca de um dilogo, mas ao contrrio, de um solilquio da cincia, gerado pela sua
associao razo.
A partir da perspectiva de mutao, o socilogo portugus Boaventura de
Souza Santos considera a idia de estarmos vivendo um momento de crise e de
transio paradigmtica, marca da ambigidade e complexidade do tempo presente. A
noo deparadigmacom a qual trabalha orientada pelo conceito kuhniano, entendido
enquanto a formulao de um conjunto de princpios e de teorias sobre a estrutura da
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matria que so aceitas sem discusso por toda a comunidade cientfica. (SANTOS,
B. 1997:21).
Thomas Kuhn, fsico e filsofo norte-americano, trouxe importantes
contribuies sobre a discusso da mudana dos paradigmas nos processos de revoluo
cientfica. Utilizou a expresso revoluo cientfica para definir os momentos derupturas epistemolgicas e de criao de novas teorias. Rupturas como a revoluo
galileana2do sculo XVII, que subsidiou a moderna concepo de cincia.
A definio deparadigmaproposta por Kuhn remete idia de um conjunto de
pressupostos, de leis, de conceitos, de modelos, de valores e critrios utilizados para
avaliar teorias e formular problemas, dentro de uma disciplina em questo. Em suas
prprias palavras, seriam as realizaes cientficas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidadede praticantes de uma cincia. (KUHN apudPAIM. 1997:11)
Outra concepo deparadigma introduzida por Garcia apudPaim (1997: 11),
que buscou a origem do termo no grego: mostrar, manifestar. O autor associou tambm
ao conceito a idia de modelo, pensando-o como uma forma simplificada e esquemtica
de apresentar um fenmeno, expressando-o em sua realidade atravs de suas
caractersticas mais significativas.
Para Morin (1996:31), a definio de paradigma est alm da definio
lingstica originria e da definio kuhniana. Segundo Morin, um paradigma um
tipo de relao muito forte, que pode ser de conjuno ou de disjuno. Determina um
tipo de relao dominadora e aparentemente lgica entre seus conceitos-mestres,
definindo o curso das teorias e discursos que o paradigma controla. O paradigma
invisvel para quem sofre os seus efeitos, mas o que h de mais poderoso sobre as
suas idias. (MORIN.1996:31) Para ele, a noo deparadigma uma noo nuclear,
ao mesmo tempo lgica, lingstica e ideolgica.
Entretanto, a noo de paradigma3, a partir de Kuhn, apesar de sofrer crticas
pela impreciso de seu uso, o conceito mais empregado em epistemologia, sendo
retomado por Santos, B. (1997/2001), por meio da noo de transio paradigmtica
e at mesmo por Edgar Morin (1996) atravs do paradigma da simplificao e do
2 Galileu Galilei (1564-1642) foi responsvel pela superao do aristotelismo e advento damoderna concepo de cincia. Defendeu a substituio da teoria geocntrica do modeloptolomaico do mundo, pela heliocntrica, do modelo copernicano. Esse momento marcado
tambm pelo rompimento da cincia com a filosofia, procurando seu prprio caminho, isto , oseu mtodo. ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando. Introduo Filosofia. SoPaulo: Moderna, 1986, p.143.3A respeito da impreciso do uso do conceito de paradigma kuhniano, ver VASCONCELOS: 2002, 52-55.
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paradigma da complexidade. Ser tambm utilizado para o desenvolvimento deste
trabalho, uma vez que constitui noo importante para a construo de estratgias
epistemolgicas, imprescindveis s prticas interdisciplinares desenvolvidas no campo
das cincias humanas e sociais.
A idia de crise e de transio paradigmtica melhor identificada ecompreendida no campo da cincia moderna. Santos, B. (2001), identifica os
fundamentos da cincia moderna ou cincia clssica como Paradigma Dominante, j
Morin como Paradigma da Simplificao. Sem pretender aprofundar o tema,
essencial marcar as principais rupturas que esse paradigma simboliza com os que o
precederam e suas principais caractersticas, para que possamos entender o momento
atual de sua crise e transio. A partir dessa perspectiva, recorreremos a Santos, B. e
Morin para melhor descrev-lo.
2.1 O paradigma da cincia moderna
S a razo capaz de conhecer. (ARANHA & MARTINS:1986,142)
Para Prigogine (2001:39) a tragicidade do pensamento ocidental moderno foi ter
voltado as costas ao projeto grego que propunha a inteligibilidade da natureza de um
lado e, de outro, o projeto tico de uma sociedade baseada na democracia, nas escolhas
e nos valores. pelo reconhecimento dessa tragicidade que Morin(1996), tambm faz
referncia ao grande paradigma do Ocidente, denominado pelo autor como
paradigma da simplificao.
A fundamentao do paradigma da cincia moderna introduzida pelo dualismo
cartesiano, formulado pelo filsofo Ren Descartes. Descartes afirma a (...) no
comunicabilidade entre o domnio do sujeito, que era o da cogitao, da filosofia; e o
domnio do objeto, da coisa extensa, que era do domnio da cincia.
(MORIN:1996,31)Essa diviso, para Morin (1996:31), tem como conseqncia(...) a
disjuno entre o sujeito (ego cogitans) e o objeto (res extensa), remetendo o primeiro
para a filosofia e o segundo para a cincia, mutilando uma e outra: da este divrcio,
trgico para ambas, entre cincia e filosofia.
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De um lado, temos a matria, descrita por leis determinsticas e associada ao
mundo fsico, de outro, a mente, remetida aos valores humanos e associada ao mundo
espiritual.
Assim, o modelo racionalista que fundamenta a cincia moderna no se traduz
enquanto resultado de uma evoluo, mas de uma ruptura com um saber contemplativo,teocntrico, formal e finalista que presidiuo pensamento do homem at o sculo XVII,
com o advento da Revoluo Copernicana e o primado da razo cartesiana. Nessa
perspectiva, CHAU (2002:258) entende que a cincia, portanto, no caminha numa
via linear, contnua e progressiva, mas por saltos ou revolues.
Para Prigogine (2001:65),
Descartes quis atingir uma certeza que todos os seres humanos,independentemente de sua religio, poderiam partilhar. Foi isso que o conduziu
a fazer do seu famoso cogito`, o ponto de partida de sua filosofia e a exigir que
a cincia fosse fundada sobre as matemticas, a nica via segura no caminho da
certeza.
Pois foi atravs da matemtica que a cincia moderna se constituiu em
instrumento privilegiado de anlise e investigao. Conhecer significa quantificar
(SANTOS, B.: 2001, 63).
Em cincia, esta procura das certezas finalmente encontrou seu desfecho
supremo na noo de leis da natureza`, associada obra de Newton.
(PRIGOGINE:2001,65). Com a formulao das leis da natureza, pela mecnica clssica
de Newton, a ambio da verdade e da certeza cientfica foi fornecida racionalidade
humana consolidando a base de seu paradigma.
A hiptese mecnica newtoniana, traduzida na idia de mundo-mquina, prev
no futuro a repetio do passado, e na dualidade causa-efeito a idia de ordem e
estabilidade do mundo. O mundo era visto como um autmato regido por leis pr-
determinadas, onde a imagem do relgio se configura na melhor expresso dessa
concepo.
A formulao das leis da natureza por Newton vista por Prigogine (2001:23), a
partir de dois aspectos gerais: o determinismo e a reversono tempo. O determinismo
trabalha com a hiptese de que se voc souber as condies iniciais de um corpo
material, podemos calcular sua posio em qualquer momento no passado ou no futuro,
ao passo que a reverso no tempo supe que tanto o passado quanto o futuro
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desempenham o mesmo papel. Por isso, a cinciaera associada com a certeza e as leis
da fsica newtoniana foram aceitas como a expresso do ideal do conhecimento
objetivo.
Foi pela objetividade dos enunciados cientficos, estabelecida pelas verificaes
empricas e a coerncia lgica das teorias nos quais esses dados se fundavam, que oconhecimento cientfico acreditava ter conseguido a base segura para a fundamentao
do seu paradigma.
Para Santos, B. (2001), uma das principais caractersticas do que nomeia
paradigmadominante a emergncia de uma nova racionalidade cientfica de carter
totalitrio, determinando que s h uma forma de conhecimento verdadeiro: pela cincia
e seus mtodos. Pois, para o autor, a cincia moderna, enquanto nova viso de mundo,
negou o carter racional de todas as outras formas de conhecimento que no sepautaram pelos seus princpios epistmicos e metodolgicos. O que conduziu aduas
distines fundamentais, entre conhecimento cientfico e conhecimento do senso
comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro (SANTOS, B:
2001, 62), introduzindo imediatamente uma hierarquia das primeiras sobre as segundas,
isto , das leis da natureza sobre as do esprito, do objetivo sobre o subjetivo.
O ideal cientfico de no interferncia do observador no objeto de seu
conhecimento, e vice-versa, supe a neutralidade da cincia, como nico meio para se
conhecer a realidade objetivamente. Pretendendo-se utilitrio e funcional, o paradigma
dominante uma forma de conhecimento, que introduz a idia de evoluo e de
progresso como o grande trunfo da era moderna. Mesmo nas cincias sociais e polticas,
o progresso deve se traduzir por uma aplicao das leis cientficas sociedade.
Para Santos B. (2001), a estruturao do mtodo cientfico do paradigma
dominante foi baseada na reduo da complexidade do objeto, simplificando o
conhecimento dos fatos e das coisas com o objetivo de garantir sua eficcia. Pois o
mundo complicado e a mente humana no o pode compreender completamente.
Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relaes
sistemticas entre o que se separou.(SANTOS, B: 2001, 63).
Nesse sentido se buscou conhecer o objeto em sua realidade, mediante solues
definitivas, em que o problema remontado a partir das solues que se encontram para
ele. Isso tem sido alvo freqente de crtica, uma vez que esse tipo de construo tem
trazido mais problemas que solues.
A questo da reduo da complexidade do objeto de conhecimento, citada por
Santos (2001), foi introduzida por Morin (1996), em sua obra O Problema
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Epistemolgico da Complexidade, para falar sobre o paradigma da simplificao e
sobre oparadigma da complexidadeque ser comentado posteriormente.
Para Morin (1996:31),
o mago do paradigma da simplificao, que guiou a cinciaclssica, o primado da disjuno e da reduo, o que determina um
tipo de pensamento que separa o objeto de seu meio, separa o fsico do
biolgico, separa o biolgico do humano, separa as categorias, separa
as disciplinas, etc. A alternativa disjuno a reduo: esse tipo de
pensamento reduz o humano ao biolgico, reduz o biolgico ao fsico-
qumico, reduz o complexo ao simples, unifica o diverso.
Dentro de tal perspectiva, as operaes feitas por esse paradigma so disjuntoras
e redutivas, mas fundamentalmente unidirecionais, pois
se se obedece apenas ao princpio de disjuno, chega-se a um
puro catlogo de elementos no ligados, se se obedece ao princpio de
reduo, chega-se a uma unificao abstrata que anula a diversidade.
Por outras palavras, o paradigma da simplificao no permite pensar a
unidade na diversidade ou a diversidade na unidade.
(MORIN:1996,31).
A fragmentao das cincias e a constituio de campos de conhecimentos no
comunicantes foram as conseqncias dessa nova viso de mundo que teve seu pice no
sculo XIX. Isso s foi possvel pela substituio de um mundo de qualidade e de
sentido de percepo, anterior concepo da cincia moderna, por um outro mundo,
quantificvel e mensurvel. Um mundo no qual h um lugar para cada coisa e nenhum
lugar para o homem. (PRIGOGINE:2001,26).
Seguindo esse mesmo raciocnio, Morin (1996) vem dizer que a fragmentao
das disciplinas em campos de conhecimentos no comunicantes impossibilita o
conhecimento do conhecimento. A epistemologia, ou seja, o conhecimento do
conhecimento, torna-se um enorme problema estilhaado, impedindo sua organizao
e desenvolvimento.
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Entre todos esses fragmentos separados h uma zona enorme de
desconhecimento e damo-nos conta de que o progresso dos
conhecimentos constitui ao mesmo tempo um grande progresso do
desconhecimento. (MORIN:1996,20).
Nesse sentido, Prigogine (2001:97) considera que a afirmao prometica que
apostava no poder da razo para libertar o homem, culminou em sua alienao. Pois, o
que pode fazer um homem em um universo determinstico no qual ele um
estrangeiro?.
2.2 _Crise e Transio do Paradigma da Cincia Moderna
A identificao dos limites, das insuficincias do paradigma
cientfico moderno, oresultado do grande avano no conhecimento que
ele prprio propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver
a fragilidade dos pilares em que se funda.(SANTOS, B: 2001,68)
SANTOS, B (2001) defende a idia de que o paradigma dominante da
modernidade, baseado no modelo de racionalidade cientfica que acabamos de
descrever, atravessa crise profunda e irreversvel. O ideal cientfico e seu discurso,
obcecado pela busca de objetividade, se apresentam insuficientes ao tentar dar conta das
complexidades do mundo que a prpria modernidade foi produzindo. Descobrimos que
os conceitos, os procedimentos e instrumentos existentes no explicam o que
observamos nem nos levam ao resultado que desejamos.
Para Santos (2001), a crise do paradigma dominante o resultado de uma
pluralidade de condies sociais e tericas. No campo terico, este ideal passa por seu
primeiro abalo estrutural quando Einstein, com a teoria sobre a relatividade e
simultaneidade, revolucionou nossas concepes de tempo e espao absolutos baseados
na fsica mecnica de Newton.
Logo depois, Heisenberg e Bohr demonstraram que no possvel observar ou
medir um objeto sem interferir nele, ou seja, no conhecemos do real seno o que nele
introduzimos. (SANTOS: 2001,69) Com isso, a dicotomia de objeto e observador
perde seus contornos, assumindo uma forma de continuum.
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O terceiro abalo no paradigma moderno surge a partir de Gdel com o Teorema
da Incompletude, demonstrando que o rigor da matemtica carece, ele prprio, de
fundamento. (SANTOS: 2001,70).
E a ltima condio terica da crise do paradigma moderno est na teoria das
estruturas dissipativas de Prigogine, que concebe a matria e a natureza como nodeterminadas mecanicamente, mas constituintes de histria, de imprevisibilidade, de
auto-organizao, de criatividade e de acaso.
Essas condies tericas propiciaram uma reflexo epistemolgica sobre o
conhecimento cientfico, buscando na filosofia e na sociologia questes importantes
para problematizar suas prticas cientficas.
As condies sociais levantadas por Santos, B (2001), dizem respeito idia da
suposta neutralidade e autonomia da cincia, que entraram em colapso com suaindustrializao. Para o autor, a industrializao moderna no trouxe nem
desenvolvimento nem progresso, quando se pensa na degradao ambiental e da
sociedade que reduz o outro a objeto. Assim como sua aplicao e suas investigaes
caminharam freqentemente compromissadas com centros de poder econmico, poltico
e social, passando a ter destaque decisivo na priorizao das necessidades cientficas.
Outro ponto identificado vem ao encontro da organizao do trabalho da comunidade
cientfica, que se tornou cada vez mais estratificada. As relaes de poder entre os
cientistas tornaram-se mais autoritrias e desiguais, bem como a desigualdade ao acesso
de tecnologia entre pases perifricos e centrais, o que contribuiu para o
aprofundamento da distncia entre pases desenvolvidos e subdesenvolvidos, ou seja,
ricos e pobres.
Segundo Morin (1996:18), h no seio das teorias cientficas um ncleo obscuro,
identificado por ele, em Habermas, de interesses. Nesse sentido, a descoberta de que
a cincia no totalmente cientfica , para ele, uma grande descoberta cientfica.
Stengers (1990), em seu livro Quem Tem Medo das Cincias, coloca em questo
as relaes de poder por trs desses interesses cientficos. A suposta identidade que a
cincia traz em si, um efeito desse poder. Ou seja, o que pode dar a impresso de se
desenvolver de maneira autnoma em relao ao contexto social, poltico e econmico,
desfeito pela autora ao colocar a cincia em histria. Pois, para ela, as cincias no
se desenvolvem em um contexto, mas criam seu prprio contexto. Elas definem
ativamente como os diferentes atores, inclusive os econmicos, polticos e culturais
sero solicitados a se interessar por tal histria. (STENGERS:1990, 146). Ao mesmo
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tempo que desconstri tal identidade, colocando-a em histria, abre tambm a
possibilidade de imaginar outras histrias para a cincia.
A crise do modelo de racionalidade, de seus princpios epistemolgicos e regras
metodolgicas, considerada por Santos, B (2002) como outra revoluo cientficano
sentido proposto por Kuhn. Porm, a grande diferena do surgimento desse novoparadigma em relao s outras revolues cientficas de carter estrutural, pois,
ocorre numa sociedade j revolucionada pela prpria cincia.
ParaSantos, B (2002:258),
uma revoluo cientfica acontece, quando o cientista descobre
que os paradigmas disponveis no conseguem explicar um fenmeno ou
um fato novo, sendo necessrio produzir um outro paradigma, at ento,inexistente e cuja necessidade no era sentida pelos investigadores.
Nesse sentido, Santos, B (2001:74) entende que as limitaes do paradigma
cientfico moderno, caracterizado por suas condies tericas e sociais, anunciam uma
transio. Com fortes traos sobre a noo de Complexidade, trazida por Morin (1996),
se vincula s lutas emancipatrias e ao desafio das prticas interparadigmticas. Assim,
vivemos em um processo de transio paradigmtica` de longo prazo, em que podemos
visualizar apenas os indcios do novo paradigma, que ocorre tanto no nvel societal
quanto epistemolgico. (VASCONCELOS: 2002,79).
2.3 O problema epistemolgico da complexidade de Edgar Morin e o paradigma
emergente de Boaventura de Souza Santos: desafios para o campo da cincia
A cincia se orienta hoje atravs de leis que no
so deterministas nem reversveis no tempo, nas quais a
realidade no nunca inteiramente dada, mas encontra-se
em criao e construo.(PRIGOGINE:2001,39).
A problemtica da complexidade, proposta por Morin (1996), apareceu com
Bachelard, em seu livro O Novo Esprito Cientfico, sendo retomada posteriormente a
partir da ciberntica e da informtica. Entendida muitas vezes como sinnimo de
complicao, para Morin (1996) a complexidade no se reduz complicao. Para ele, o
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problema da complexidade se tornou uma exigncia social e poltica para o pensamento
contemporneo. A noo de complexidade entendida por ele como aquilo
que foi tecido junto; de fato, h complexidade quando elementos
diferentes so inseparveis constitutivos do todo (como o econmico, opoltico, o sociolgico, o psicolgico, o afetivo, o mitolgico), e h um
tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto do
conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, as partes entre si. Por
isso a complexidade a unio entre a unidade e a multiplicidade.
(MORIN apudVASCONCELOS: 2001, 62).
Tendo como funo fazer-nos tomar conscincia dos limites do conhecimento ecomunicar suas instncias separadas, prope a articulao de outras competncias,
convidando formao de um circuito, denominado por Morin (1996) anel
epistemolgico ou anel do conhecimento do conhecimento.
Foi pensando nas cincias da complexidade, que Prigogine (2001) tambm
props uma reconciliao, construindo o que ele nomeia de Uma Nova Aliana, entre
homem e natureza e entre cincia e filosofia.
Para ele, as cincias da complexidade, ao negarem o determinismo, insistem na
criatividade, na produo e inveno, encontrada em todos os nveis da natureza, que
nos ensina, bastando a ns sermos capazes de escut-la. Poiso futuro no dado.
(PRIGOGINE:2001,16). pela construo e no determinismo do futuro que, na
verdade, no podemos falar de um novo paradigma de pensamento ps-moderno.
Entretanto, h entre os pensadores contemporneos um consenso sobre o momento de
transio paradigmtica em que vivemos, devido a essa crise no pensamento atual.
A gestao do novo, na Histria, d-se frequentemente de modo
quase imperceptvel para os contemporneos, j que suas sementes
comeam a se impor quando ainda o velho quantitativamente
dominante. exatamente por isso que a qualidade do novo pode passar
despercebida. (SANTOS, B: 2000,141).
Tomando como referncia Santos, B (1997), um dos principais expositores do
mapeamento dos indcios desse novo paradigma, o prprio adverte sobre o lugar de
onde fala e da forma especulativa que o leva a predizer a emergncia de um novo
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paradigma. Uma vez que, ao falarmos de futuro, o fazemos sempre de uma perspectiva
pessoal4. Em seu caso, de uma perspectiva sociolgica, denominado por ele de
Paradigma de um Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. Pois o
paradigma emergente no pode ser apenas um paradigma cientfico (o paradigma de
um conhecimento prudente), tem de ser tambm um paradigma social (o paradigma deuma vida decente).
Na perspectiva de Santos, B (2001), esse novo paradigma traz duas estratgias
epistemolgicas: a aceitao do caos e a revalorizao da solidariedade como forma de
saber. Ao complexificar o modo de pensar a cincia, o autor prope quatro teses:
1. Todo conhecimento cientfico-natural cientfico-social remetendo
superao da dicotomia entre cincias naturais e sociais einterpretaes compostas e fixas como sade-doena, razo-desrazo,
etc.
2. Todo conhecimento local e total expressando assim a substituio
da fragmentao disciplinar das cincias modernas pelo conhecimento
multidisciplinar, onde os fenmenos especficos so percebidos em
sua totalidade.
3. Todo conhecimento autoconhecimento prope a emergncia de
um conhecimento compreensivo e ntimo, onde no h separao do
objeto, mas ao contrrio, conscientiza-se da unio pessoal ao que
estudamos, assumindo que o objeto a continuao do sujeito por
outros meios.
4. Todo conhecimento visa a constituir-se em senso comum prope o
dilogo entre o campo cientfico e o senso comum, reconhecendo,
neste ltimo, virtudes para enriquecer nossa relao com o mundo.
A partir da leitura das teses propostas por Boaventura, Vasconcelos (2001:80)
identifica os seguintes elementos que compem esse novo paradigma:
4Ilya Prigogine, por exemplo, fala da Nova Aliana e da Metamorfose da Cincia. Fritjof Capra falada Nova Fsica e do Taosmo da Fsica, Eugene Wigner de Mudanas do segundo tipo, EnrichJantsn do Paradigma da auto-organizao, Daniel Bell da Sociedade ps-industrial, Habermas daSociedade Comunicativa. SANTOS (1997, p.36).
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A ) Passagem do monoculturismo para o multiculturismo, ou seja, uma
postura que assuma o desafio de se comunicar com culturas reduzidas ao silncio;
B ) superao da crena moderna de que o conhecimento objetivo evlido independentemente das condies que o tornam possvel e dos valores, com base
em uma dicotomia estrutura-ao, gerando um conhecimento aparentemente
descontextualizado e implicando o atual padro dominante de profissionalizao;
C ) construo social e prtica da rebeldia, de subjetividades
inconformistas e capazes de indignao, e de campos de experimentao social local
onde seja possvel resistir e promover com xito alternativas que tornem possvel umavida digna e decente;
D ) valorizao de dimenses que resistiram assimilao completa na
sociedade atual, como solidariedade, participao, resistncia especializao
tcnico-cientfica;
E ) valorizao das novas discusses dentro da prpria cincia moderna
sobre o caos, como campo de saber e no de ignorncia, com suas idias de no
linearidade e complexidade, que nos conduzem noo de um conhecimento prudente;
F ) distncia da dicotomia sujeito-objeto da cincia moderna e sua
consagrao do sujeito epistmico. O pressupostos subjetivos, valorativos de crena
no esto antes nem depois da explicao cientfica, mas so parte integrante dela;
G ) superao da distino entre natureza e cultura/sociedade, na
medida em que todas as cincias naturais vo se reconhecendo como cincias sociais;
H ) ultrapassagem do carter antropocntrico e individualista da tica
liberal, centrada numa seqncia linear.
, portanto, a partir desses indcios que Boaventura, B (1997) e vrios
pensadores contemporneos se esforam na construo de um novo paradigma,
retomando o tema da complexidade, em relao ao conhecimento que se coloca
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absoluto, a-histrico, natural e nico, em relao uma busca da verdade. Momento
necessrio de desconstruo, com o objetivo de se criar uma nova familiaridade, um
novo senso comum emancipatrio, como diria Boaventura, impactando de forma
profunda sobre os vrios campos de saber.
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CAPTULO 3
CONSTITUIO DO SABER MDICO: O PARADIGMA PSIQUITRICO,A INSTITUIO ASILAR E SUAS REFORMAS
3.1 O Paradigma da Cincia Moderna na Constituio do Campo da Medicina
A influncia do paradigma moderno chega medicina antes de atingir outras
disciplinas consideradas nobres para o sculo XVII. O imaginrio mecnico
apreendido pelo campo mdico, ao conceber e tentar objetivar o corpo humano
morfologicamente como um grande engenho animado.
Luz (1988:84) demonstra que o mecanicismo ser o trao constitutivo da
racionalidade mdica moderna. E que a possibilidade de danificao desse corpo-mquina tem como resposta construo de um sistema classificatrio de doenas,
baseado na observao sistemtica, ordenatria e emprica, advindo das disciplinas da
botnica e da histria natural.
Entretanto, o espao para realizar essa prtica e constituir esse saber ir aparecer
com a transformao do hospital, no sculo XVIII, em instrumento teraputico,
inveno relativamente nova. Em O Nascimento do Hospital, Foucault (1979:99)
demonstra que o hospital se tornou uma tecnologia mdica a partir de um programade reforma. Pois, antes do sculo XVIII, o hospital era essencialmente uma instituio
de assistncia aos pobres. Instituio de assistncia e tambm de separao e
excluso. (FOUCAULT:1979, 101).
Sua funo prioritria no era a de curar o doente, mas de recolher o pobre que
est morrendo e proteger a sociedade do perigo que ele encarna. Instrumento misto de
excluso, assistncia e transformao espiritual, onde se misturam doentes, loucos,
prostitutas, devassos, criminosos, crianas delinqentes, etc.
O Hospital Geral no era um estabelecimento mdico. Era antes
uma estrutura semijurdica, uma espcie de entidade administrativa que,
ao lado dos poderes j constitudos, e alm dos tribunais, decide, julga e
executa. (FOUCAULT:1972,50).
O hospital nada mais era do que uma reao misria e moralidade,
justificando-se a ttulo de um benfico assistencial, religioso e de punio. Com a
dessacralizao que a misria sofreu no transcorrer do sculo XVII, a internao passou
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a ser assunto de polcia, onde a figura do louco, associada aos miserveis, pobres e
vagabundos, se destacou como um problema referente ordem social.
Assim, a prtica da internao, se configurou como medida econmica e
precauo social, com o valor de inveno. (FOUCAULT: 1972, 78), tornando-se ao
mesmo tempo recompensa e castigo, conforme o valor moral daqueles sobre quem eraimposta. (FOUCAULT: 1972, 61). Logo, desde sua origem, a internao funcionou
como um mecanismo social de eliminao espontnea dos a-sociais.
Mas foi atravs da disciplinarizao do espao hospitalar e pela transformao
do saber e da prtica mdica, no final do sculo XVIII, que o campo da medicina
enquanto saber se constituiu e o hospital se tornou uma tecnologia da prtica mdica.
Efetivamente, o indivduo que ser observado, seguido,conhecido e curado. O indivduo emerge como objeto do saber e da
prtica mdicos. Mas, ao mesmo tempo, pelo mesmo sistema do espao
hospitalar disciplinado se pode observar grande quantidade de
indivduos. Os registros obtidos cotidianamente, quando confrontados
entre os hospitais e nas diversas regies, permitem constatar os
fenmenos patolgicos comuns a toda a populao.
(FOUCAULT:1979, 101).
O esforo de isolar e individualizar as doenas estabeleceu nova ordem para o
conhecimento mdico, que deveria ser apreendido de forma progressiva, pelos degraus
do saber mdico: fisiologia, patologia, teraputica (MADEL:1988,85). A
conseqncia desse sistema foi a transformao da medicina num discurso disciplinar
sobre a doena e o corpo, perdendo ao longo dos sculos, principalmente at o XVIII,
com a superao do vitalismo, a teorizao sobre a sade, vida ou cura, para tematizar
cada vez mais sobre as entidades mrbidas.
A razo iluminista do sculo XVIII acreditava absolutamente no racionalismo
cientfico e no poder da tcnica. Legitimava-se o discurso da cincia para fundar a sua
infalibidade cognitiva (razo) e derivar da a sua superioridade tcnica (vontade)
frente a esses discursos tradicionais. (BIRMAN: 1992, 78).
A incidncia da constituio do paradigma moderno na medicina fez deslocar a
concepo que se tinha sobre o processo sade-doena, que anteriormente se baseava
na busca da origem dos processos da doena, para as causas a partir dos sintomas,
passando de um sistema que pensava o indivduo doente de forma holstica, para um
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sistema que o separava de sua doena, dividindo mente e corpo. A partir de ento, o
corpo humano objetivado, tornando-se sede das doenas, e as doenas, entidades
patolgicas.
Com a antomo-patologia no fim do sculo XIX, busca-se a explicao para a
origem e o fim das doenas no interior dos cadveres, no rgo lesionado. Tendo comoobjetivo derrotar a doena, ser pela interveno medicamentosa que a medicina ir
intervir no corpo individual e social. O corpo individual, tanto quanto o corpo social`,
coletivo de corpos individuais, o alvo privilegiado da interveno mdica, o grande
laboratrio vivo do progresso mdico-farmacutico.(LUZ:1988,87).
No sem fundamento que Luz (1988) observa que muitos doentes nessa poca
morriam da cura. Uma vez cobaias desse mtodo, era comum aplicar as mais diversas
drogas no mesmo doente. Porm, a medicina moderna havia conseguido separar odoente e a doena, estabelecendo critrios para o quadro classificatrio da patologia e
colocando suas regras de normalidadepara a clnica. As categorias do que normale
do que patolgicopassam a ser identificadas a partir da concepo de sade, em que
estado normal se configura pela ausncia de sintomas, e estado patolgico como o
oposto ao normal, o ponto-chave de explicao, de classificao e de combate doena.
A partir dessa perspectiva, a observao, a descrio, a classificao e a busca
das causas eficientes das doenas do corpo humano sero o objeto fundamental de
conhecimento da medicina moderna, sendo o corpo e a doena os enunciados positivos
e cientficos que daro objetividade ao seu discurso. Dessa forma, Luz (1988:91) diz
que a medicina pioneira da racionalidade cientfica, uma vez que ao criar uma
disciplina das doenas, teoriza e constri conceitos em torno desse objeto, formando os
tericos e profissionais do seu saber: os mdicos-cientistas.
Entretanto, vivenciamos na segunda metade do sculo passado uma descrena
nas possibilidades ilimitadas da cincia em controlar a natureza e vencer a doena. A
complexidade e a incerteza associadas idia de transio na sade incidem sobre suas
relaes com a prpria cincia e com o social.
Por um lado, se a modernidade proporcionou avanos tecnolgicos necessrios
sade e ao seu acesso, por outro, trouxe tambm novos problemas sanitrios-sociais,
marcados pela tecno-cincia, a urbanizao e a industrializao: agravos de natureza
social, tais como drogadio, violncia, e outros. A concepo de sade como ausncia
de doena no sustenta mais esse complexo processo sanitrio atual.
Para Carvalho (1996:110), isso se deu de forma significativa, propiciando dois
deslocamentos operados pelo pensamento contemporneo: a passagem de objetivo
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para subjetivo e de coletivo para individual. Nessa perspectiva, os dois pares
dessas categorias exigiram uma nova relao e um esforo de renovao conceitual,
metodolgica e prtica no campo da sade pblica.
Entretanto, a direcionalidade e o sentido desse processo de transio no se
mostram ainda claros, mas em vias de construo. Pois oquadro epidemiolgico atualexige um modelo explicativo e teraputico que pense os indivduos diante da doena e
da morte como o que de fato so: sujeitos sociais lidando com os resultados de suas
escolhas e intervenes.(CARVALHO: 1996,108).
3.2 Fundamentos do paradigma psiquitrico e a instituio asilar
A Psiquiatria nasce de uma reforma. (AMARANTE: 1996,37).
com essa frase que Amarante (1996), em seu livro O Homem e a Serpente,
inicia o texto a respeito da constituio do paradigma psiquitrico. Assim como ocorreu
com a medicina, sua disciplina-me, a psiquiatria nasce a partir das reformas das
instituies sociais em espao de cura, no perodo da Revoluo Francesa do sculo
XVIII. A reforma hospitalar que permite o nascimento da psiquiatria como a primeira
especialidade da cincia mdica no final do sculo XVIII, nomeada anteriormente
Medicina Mental, propiciou a instituio de uma natureza mdica para a loucura,
adequando-a as noes de conserto, reparo e correo, configurando-se para Amarante
(2000:33) enquanto um conjunto de saberes e prticas sobre o objeto construdo
doena mental.
Nesse sentido, a idia naturalizada de que a psiquiatria enquanto saber e que a
doena mental enquanto objeto de conhecimento sempre existiram se torna um
equvoco, demonstrado por Foucault (1972) em sua obra aHistria da Loucura. Pois a
percepo da loucura como doena mental ocorreu a partir de uma ruptura com o
pensamento clssico do sculo XVII. At ento, a loucurano tinha uma especificidade
prpria, era diluda e associada a um grupo homogneo de tipos morais, invalidados e
excludos socialmente, que se encontravam internados nas casas de correo e nos
Hospitais Gerais disseminados por toda a Europa.
Foi a partir da Revoluo Francesa e da ascenso da razo como matriz do
pensamento iluminista no sculo XVIII, que a loucura, como a maioria dos invalidados
socialmente que compunham a populao dos hospitais se tornou um problema para
a nova ordem burguesa que surgia. Ser na captura da verdade pela razo e pela
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emergncia de uma nova ordem social, poltica e econmica, que a loucura e as
instituies sociais foram absorvidas pela cincia, obtendo outro destino.
Assim, naHistria da Loucura, Foucault (1972) demonstra que h um gesto de
excluso da loucura quando se constri o pensamento moderno. A loucura entendida
como ausncia da razo, ou desrazo, coloca-se no caminho da dvida, do sonho e doerro. Logo, excluda desse projeto da cincia moderna; onde a liberdade reivindicada
como direito comum a todos os homens. Pois, se o louco no manifesto em seu ser: e
se ele indubitvel, porque outro.(FOUCAULT: 1972, 183).Estrangeiro em seu
prprio mundo, no poderia ser considerado sujeito da razo e da vontade. Em
decorrncia de sua alienao, no seria capaz, portanto, de reconhecer as regras sociais e
se inserir na condio de cidado. Contudo, para isso o louco deveria ser submetido
aoseqestro asilar, com finalidades teraputicas, para que pelo processo dedesalienao pudesse recuperar a sua condio de sujeito do contrato social.
(BIRMAN: 1992, 75).
Para Foucault (1972), a loucura teria sofrido uma dupla desapropriao: passa a
ser definida em referncia razo e s suas concepes de normatividade, e torna-se
excluda do corpo social determinado pela reorganizao econmica e social burguesa.
Nesse sentido, a constituio do saber psiquitrico ir se inserir em uma nova
estratgia de controle social como forma de responder aos vrios problemas que a
loucura colocava para essa sociedade emergente que se baseava no contrato social. Por
no estar apto a exercer o contrato, nem se colocar como cidado de direitos e deveres,
alm de perigoso e incapaz para o trabalho, o louco deveria ser isolado e tutelado em
um espao prprio para isso.
Birman (1992) sustenta que a perspectiva terica que configurou o louco em
doente mentalest paradoxalmente marcada pela sua condio de cidadania plena.
Se na figura da doena mental foi reconhecido ao louco o
estatuto social de enfermo, com direito assistncia e ao tratamento, sob
a proteo do Estado, foi com base no mesmo discurso da enfermidade
mental que se autorizou tambm a excluso social dos doentes mentais e
a destituio correlata de seus demais direitos sociais, isto , sua
condio de cidadania plena. (BIRMAN: 1992, 73).
Se a nova ordem poltica que marca a modernidade reconheceu a condio decidadania plena a todos os indivduos, considerados iguais perante a lei, por outro lado
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excluiu aqueles que considerava diferentes. Simultaneamente, instituiu-se um modelo
assistencial asilar centrado no Estado, legitimado pelo recente discurso da medicina
tributria dessa racionalidade naturalista.
Ser para a classificao, isolamento e ordenamento da loucura que os
classificadores iro voltar sua ateno com o objetivo de construir um saber cientficosobre ela. A partir da medida de isolamentoe sua interveno no hospital de Bictre,
Philippe Pinel, mdico, filsofo, matemtico e enciclopedista francs, elabora no sculo
XVIII o primeiro Tratado Mdico Filosfico sobre a Alienao Mental. A loucura
passou a ser descrita por sinais precisos e constantes, agrupada em classes, gneros e
espcies.5Entendendo-a como alienao mental, ao loucofoi atribudo o lugar de um
outro, aquele se encontrava em contradio a razo, a ordem e a moral.
Pinel fundou a clnica psiquitrica, considerando a loucuracomo um distrbiodas paixes, sendo seus excessos e desmedidas os responsveis pela alienao mental.
Como considerava a loucura isenta de causas fsicas, mas moral, Pinel institui o mtodo
do tratamento moral com objetivo de restabelecer a razo parcialmente perdida do
louco, educando-oatravs do castigo e da punio. Ao libertar os loucosdas correntes
dos pores dos asilos, por outro lado os excluiu da paisagem social, criando uma
instituio prpria que se constitui na prpria teraputica: o asilo.
Dentro dessa perspectiva, foi que Pinel desenvolveu um conjunto de estratgias
identificadas por Castel (1978) como tecnologia pineliana, reconhecida como uma das
principais operaes que fundaram a prtica asilar. A tecnologia pinelianaconsistia em
uma estratgia baseada na ordem, caracterizando-se pelo isolamento, pela organizao
do espao asilare pela relao de autoridadedo mdico sobre