Seleção de Artigos
Olavo de Carvalho
retirado de http://www.olavodecarvalho.org
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Índice
Motivação ........................................................................................................... 4
O poder da burrice ............................................................................................. 6
Pobreza e grossura ............................................................................................ 8
Assassinato da oportunidade ........................................................................... 11
A avó de todos os crimes ................................................................................. 12
Mamar e sofrer ................................................................................................. 14
Antifascismo hitlerista ....................................................................................... 15
Para uma antropologia filosófica ...................................................................... 17
A vitória do fascismo ........................................................................................ 19
Fórmula da Minha Composição Ideológica ...................................................... 22
Casta de malditos ............................................................................................. 27
Alquimia da islamização ................................................................................... 33
O império da vontade ....................................................................................... 39
Algo de limpo no reino da Dinamarca .............................................................. 40
Malditos imperialistas ....................................................................................... 42
Poesias de Antonio Machado ........................................................................... 43
Redescobrindo o sentido da vida ..................................................................... 45
Dois estudos sobre Aldous Huxley ................................................................... 47
1. Admirável Mundo Novo ............................................................................. 47
2. A Ilha......................................................................................................... 53
Intelectuais orgânicos ....................................................................................... 61
O imbecil juvenil ............................................................................................... 63
Sto. Tomás, a vaca voadora e nós ................................................................... 65
Tocqueville e o totalitarismo ............................................................................. 75
Educação Liberal .............................................................................................. 78
Um título de Dostoievski ................................................................................. 101
Provas científicas ........................................................................................... 103
Viver sem culpas ............................................................................................ 105
Dinheiro e poder ............................................................................................. 107
Que é ser socialista? ...................................................................................... 108
Que é o fascismo? ......................................................................................... 110
A velha alucinação ......................................................................................... 112
Origens do comunismo chique ....................................................................... 113
Vocabulário da insensatez ............................................................................. 115
Passado e futuro ............................................................................................ 117
Lembrete de Natal .......................................................................................... 118
Aprendendo a escrever .................................................................................. 120
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Motivos da filosofia ......................................................................................... 122
Sutilezas da fala brasileira ............................................................................. 125
Língua e nacionalismo ................................................................................... 126
Destino e Estado ............................................................................................ 129
Confronto de ideologias ?............................................................................... 131
Dica para os esquerdistas .............................................................................. 132
Lições de moral .............................................................................................. 134
A mão direita da esquerda ............................................................................. 136
Racismo, aqui e em Cuba .............................................................................. 138
Da ignorância à loucura ................................................................................. 140
Benfeitor ignorado .......................................................................................... 142
Fora do universo ............................................................................................ 143
O poder de conhecer ...................................................................................... 145
Doença existencial e fracasso econômico-social ........................................... 147
Crítica social e História ................................................................................... 152
Jesus e a pomba de Stalin ............................................................................. 153
Guerra de religião? ......................................................................................... 156
Lições de obviedade ...................................................................................... 157
Fantamasgoria verbal ..................................................................................... 160
História marxista é charlatanismo .................................................................. 162
O comunismo depois do fim ........................................................................... 164
Do marxismo cultural ...................................................................................... 166
Almas Escravas .............................................................................................. 169
Psicologia do fanatismo ................................................................................. 170
Ainda o fanatismo ........................................................................................... 172
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Motivação
Fiz esta seleção de artigos do professor Olavo de Carvalho para que sirva de
“Guia de Conversão” para os meus amigos – ou para qualquer outra pessoa
que a tenha em mãos. Mas, ao contrário do que possa ser dito por aí, essa
conversão não implicará rituais iniciáticos secretos, adesão a doutrinas
políticas, tietagem fanática, obediência cega ou nem mesmo que você goste
pessoalmente do portador da conversão. Se você se converter, saiba, meu
amigo, que você ganhará algo totalmente novo e desconhecido: você mesmo.
Embora isso possa parecer meio o estilo “auto-ajuda”, que, dizem por aí, não
funciona porque você está sendo ajudado por um idiota, trata-se de algo muito
diferente. Vou tentar me explicar melhor contando minha própria experiência.
Em certo ponto da minha vida, eu tive a certeza de que precisava me dedicar a
algo, digamos, mais “intelectual” – embora eu não possuísse a menor
capacidade de definir melhor essa percepção. Como eu já conhecia o professor
por intermédio dos meus irmãos, e por falta de outro lugar no qual começar,
resolvi ler os artigos do professor, presentes em publicações variadas e
disponíveis em seu website pessoal (www.olavodecarvalho.org).
Essa empreitada foi um estouro! Passei dois anos rasgando minhas vestes
diariamente. O professor realmente ia no sentido inverso de tudo o que eu
acreditava que uma pessoa deveria acreditar.
De início tomei aquela posição de filósofo de Jornal Nacional: o professor
poderia até estar certo em alguns pontos, mas era muito extremista e
intolerante. Foi só depois de ler todos os seus artigos (por três vezes) é que eu
pude, como a criancinha que aprende a segurar o lápis e manter o traço, ligar
os pontos da figura toda e chegar à espantosa conclusão de que aquilo tudo
fazia muito sentido. Depois disso, sabendo que havia algo de bom, belo e
verdadeiro a que eu poderia me dedicar, me tornei aluno do professor Olavo no
seu Seminário de Filosofia (www.seminariodefilosofia.org) e tenho tentado me
educar da melhor maneira possível. Com o tempo me livrei, pelo menos de
uma parte, daquela autopiedade, rancor generalizado e confusão paralizante
que reina nesta sociedade que, para ser um intelectual, é preciso considerar a
verdade como um “conceito ultrapassado” e a militância política a mais alta
prova de amor ao próximo.
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Pode ser que você não tenha nenhum conflito relevante ou nenhuma pretensão
diferente do curso que a sua vida já está tomando; pode ser que você já
estabeleceu suas metas e esteja confiante na direção delas; ou pode ser que
você saiba, de algum modo, que está num vale de lágrimas, não aquele de que
falam as Sagradas Escrituras, mas, um outro, criado para transformar as
lágrimas em ácido que não nos dá nenhuma chance de pensar em outra coisa
que não a nossa própria dor; pode ser, até mesmo, que você esteja achando
muito difícil de entender o que eu estou tentando explicar (e isso pode ter muito
a ver com minha incapacidade de expressão). Seja qual for o caso, peço que
você se esforce para ler esta seleção e que, então, saiba que não precisamos
olhar apenas para os lados ou para nossos umbigos, mas também podemos
olhar para cima.
Marcos Alcântara
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O poder da burrice
O Globo, 4 de outubro de 2003
Numa discussão, a superioridade intelectual nem sempre é vantajosa. Quando
excessiva, torna-se um inconveniente, pela simples razão de que nada pode
fazer um debatedor render-se a um argumento que esteja acima da sua
compreensão. Quanto mais esmagado sob montanhas de fatos e provas, mais
ele se sentirá imune e vitorioso, saindo do debate persuadido de que foi vítima
de injustiça. Se há uma força invencível neste mundo, é a burrice. Por isso os
demagogos e cabos eleitorais que fazem as vezes de professores não
procuram desenvolver em seus alunos a inteligência, que arrisca torná-los
sensíveis a objeções, e sim a burrice, que faz deles criaturas invulneráveis e
coriáceas como rinocerontes.
Num recente debate sobre as quotas raciais, fiz o que pude para explicar a
meus interlocutores a diferença -- que mencionei em artigo anterior nesta
coluna -- entre o compactado emocional pré-analítico da doxa e o discurso
analítico do conhecimento, mostrando em seguida que a argumentação da
“affirmative action” estava no primeiro caso e não podia ser levada a sério
como descrição da realidade. Mal terminei de falar, e um militante se levantou
indignado:
-- Quer dizer que o senhor nega a existência do apartheid?
Eu não poderia ter solicitado um exemplo mais didático. No uso vulgar do
termo apartheid comprime-se uma multidão de significados heterogêneos: um
regime jurídico de separação formal entre as raças acompanhado de
perseguição genocida, a mesma separação sem violência genocida, a
segregação informal pacífica ou violenta sem suporte jurídico, o ódio racial
explícito sem segregação formal ou informal e acompanhado ou não de
condutas agressivas, o ódio incubado e implícito, o vago desprezo cultural sem
expressão em atos e até mesmo o famoso “racismo sutil”, cuja presença ou
ausência depende da subjetividade do observador que atribui intenções mesmo
quando negadas com veemência pelo próprio agente. Tudo isso, no
vocabulário dos quotistas raciais, é apartheid.
Responder “sim” ou “não” à existência de tudo isso em bloco é uma
impossibilidade. Por que, então, formular a pergunta com termo tão elástico e
enganoso? Simples: para dar ares de delito a qualquer resposta que não seja a
desejada pelo interrogante. É obrigatório, aí, não só admitir como fato líquido e
certo a onipresença do alegado “racismo sutil”, mas ver nele um crime tão
grave quanto a segregação explícita e o genocídio. Qualquer hipótese que
fique abaixo disso, que não consinta em igualar o Brasil à Alemanha nazista,
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torna-se ela própria um crime de racismo. Para isso serve a confusão de
significados: para mudar à vontade o sentido das objeções e recobri-las de
uma aura criminosa mesmo quando são conclusões lógicas elementares ou a
expressão de fatos notórios. Trata-se de atemorizar para inibir, de vetar a
possibilidade da discussão racional por meio da intimidação psicológica.
Isso começa como um ardil premeditado, um truque de erística concebido por
técnicos em manipulação de consciências. Mas, ao propagar-se, perde toda
intencionalidade consciente e torna-se um automatismo introjetado, um cacoete
mental. As pessoas já não o usam para confundir os outros, mas para
expressar, com tocante candura, sua proibição interna de compreender o que
elas mesmas dizem, seu temor e incapacidade de abandonar por um momento
sequer o círculo dos chavões sagrados e examinar a realidade sob outros
aspectos, ainda quando a omissão destes esvazie de significado o seu próprio
discurso por falta de pontos de comparação. No fim das contas, já não
verbalizam senão um sistema de tabus destinado a bloquear o acesso ao
significado de qualquer objeção possível, tornando repulsiva e criminosa a
simples tentação de examiná-la. Imantado da ilusão de santidade e
interiorizado ao ponto de tornar-se um substituto do senso de identidade para o
seu portador, o sistema reage com violência à destruição de qualquer das suas
partes e se recompõe como um rabo de lagartixa.
É evidente que mentalidades assim formadas estão intelectualmente
danificadas, e por isso mesmo imunes à persuasão racional: querer fazê-las
perceber o que quer que seja é como exigir que um paralítico saia andando.
Para voltar ao exercício da inteligência normal, precisam de um milagre.
A distribuição democrática dessa lesão mental é a finalidade essencial da
educação neste país.
Alguns observadores desatentos imaginam que, para produzir um mal tão
profundo, seja preciso toneladas de doutrinação e propaganda. Nada disso.
Basta usar a técnica do “ato comprometedor”, descoberta por J. L. Freedman e
S. C. Fraser em 1966 e hoje incorporada à pedagogia oficial. Se um grupo de
pessoas é induzido a imitar, ainda que a título de mera experiência, uma
determinada conduta que não compreendam bem ou que seja contrária às
suas convicções, em 76 por cento dos casos elas mudarão suas convicções
para adaptá-las retroativamente à conduta imitada. Basta portanto um
professor enviar seus alunos uma vez, uma única vez, a uma manifestação em
favor de qualquer “causa” que não estejam em condições de julgar por si
próprios, e 76 por cento deles aderirão automaticamente a essa causa,
qualquer que seja. Ora, enviar alunos a manifestações políticas, reforçando a
incitação por meio de recompensas e castigos às vezes nada sutis, tornou-se
entre os professores brasileiros do ensino médio quase uma obrigação, mesmo
porque eles próprios tiveram suas convicções formadas mais ou menos assim
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e não vêem nada de mau naquilo que fazem. Consolidada a estupidez por
algumas repetições, resta para o ensino universitário apenas a tarefa de
embelezá-la com uns toques de vocabulário pedante.
Platão considerava que, após o homicídio, o segundo delito mais grave era o
de arruinar a alma de jovens e crianças. E Jesus Cristo dizia que o melhor a
fazer com os culpados desse crime era amarrar-lhes uma pedra no pescoço e
jogá-los ao fundo do mar. Mas não creio que na baía da Guanabara haja
espaço bastante para todos eles.
Pobreza e grossura
Bravo!, julho de 2000
Neste país você não pode pedir emprego e muito menos dinheiro emprestado a
um conhecido sem que ele instantaneamente assuma ares paternais e comece
a lhe dar conselhos, a ralhar com você chamando-o de irresponsável, leviano e
miolo-mole. E dê graças a Deus de que ele o faça em tom bonachão e não
transforme a humilhação sutil em massacre ostensivo. Finda a cena, ele sai
todo satisfeito com a consciência do dever cumprido e considera-se
dispensado de lhe arranjar o emprego ou o dinheiro. E você? Bem, você sai
duro, desempregado... e culpado.
Esse mesmo sujeito é capaz de, na mesma noite, oferecer um jantar tomando
o máximo cuidado para que a arrumação da mesa e a distribuição dos
convidados obedeçam estritamente às regras da mais fina etiqueta.
Um indício seguro de barbarismo num povo é a atenção excessiva concedida
aos sinais convencionais de boa educação e o desprezo ou ignorância dos
princípios básicos da convivência que constituem a essência mesma da boa
educação.
O bárbaro, o selvagem, pode decorar as regras e imitá-las na frente de quem
ele acha que liga para elas. Mas não capta o espírito delas, não percebe que
são apenas uma cartilha de solicitude, de atenção, de bondade, que pode ser
abandonada tão logo a gente aprendeu o verdadeiro sentido do que é ser
solícito, atencioso e bom.
Meu pai era um sujeito relaxado, que às vezes ia de pijama receber as visitas.
Mas ele chamava de "senhor" cada mendigo que o abordava na rua, e sem que
ele me dissesse uma palavra aprendi que o homem em dificuldades
necessitava de mais demonstrações de respeito do que as pessoas em
situação normal. Quanto mais respeitoso, mais cuidadoso, mais escrupuloso
cada um não deveria ser então com um amigo que, vencendo a natural
resistência de mostrar inferioridade, vem lhe pedir ajuda! Esta regra elementar
é sistematicamente ignorada entre as nossas classes médias e altas,
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principalmente por aquelas pessoas que se imaginam as mais cultas, as mais
civilizadas e – valha-me Deus! – as mais amigas dos pobres.
Fico horrorizado quando vejo alguém enxotar um flanelinha como se fosse um
cachorro, e nunca vi alguém fazê-lo com a desenvoltura, o aplomb, a
consciência tranqüila de um intelectual de esquerda! Nos anos 60, corria o dito
de que ajudar os pobres individualmente era "alienação burguesa", ópio
sentimental, sucedâneo da revolução salvadora. Passaram-se quarenta anos, a
revolução salvadora não veio (onde veio, os pobres ficaram mais pobres ainda)
e duas gerações de necessitados apertaram ainda mais os cintos em
homenagem à prioridade da revolução. Mas não conheço um só militante
comunista do meu tempo e do meu meio que não esteja com a vida ganha, que
não ostente como um sinal de maturidade triunfante a segurança financeira
adquirida graças ao apadrinhamento da máfia política que, até hoje, domina o
mercado de empregos na imprensa, na publicidade, no ensino superior e no
mundo editorial.
Hoje não precisam mais do pretexto revolucionário para enxotar flanelinhas.
Seu discurso tornou-se palavra oficial, as prefeituras e governos estaduais nos
advertem, em cartazes piedosos, para não dar esmolas. Sim, a caridade
individual está em baixa. Os frutos da bondade humana não devem ir direto
para o bolso do necessitado: devem ir para as ONGs e os órgãos públicos,
sustentando funcionários e diretores, financiando movimentos políticos,
pagando despesas de aluguel, administração, publicidade e transporte, para no
fim, bem no fim, se sobrar alguma coisa, virar sopa dos pobres, diante das
câmeras, para a glória de São Betinho.
Há quem neste país tenha nojo da corrupção oficial. Pois eu tenho é da
caridade oficial.
Ainda há quem diga: "Mas se você dá dinheiro o sujeito vai beber na primeira
esquina!" Pois que beba! Tão logo ele o embolsou, o dinheiro é dele. Vocês
querem educar o pobre "para a cidadania" e começam por lhe negar o direito
de gastar o próprio dinheiro como bem entenda? Querem educá-lo sem
primeiro respeitá-lo como um cidadão livre que atormentado pela miséria tem o
direito de encher a cara tanto quanto o faria, mutatis mutandis, um banqueiro
falido? Querem educá-lo impingindo-lhe a mentira humilhante de que sua
pobreza é uma espécie de menoridade, de inferioridade biológica que o
incapacita para administrar os três ou quatro reais que lhe deram de esmola?
Não! Se querem educá-lo, comecem pelo mais óbvio: sejam educados. Digam
"senhor", "senhora", perguntem onde mora, se o dinheiro que lhes deram basta
para chegar lá, se precisa de um sanduíche, de um remédio, de uma amizade.
Façam isso todos os dias e em três meses verão esse homem, essa mulher,
erguer-se da condição miserável, endireitar a espinha, lutar por um emprego,
vencer.
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Na verdade, a barreira que impede o acesso de pobres e mendicantes
brasileiros a uma vida melhor é menos econômica que social. Façam um teste.
Quanto custa um frango? Assado, com farofa. Cinco reais no máximo, em geral
menos. Quer dizer que um mendigo, pedindo esmola em qualquer das grandes
capitais do Brasil, pode comer pelo menos um frango por dia, se não dois, e
ainda lhe sobra o dinheiro da condução. Para você fazer uma idéia de quanto
um país onde isso é possível é um país rico e generoso, tente esta
comparação. Quando Franklin D. Roosevelt lançou o New Deal, um dos
objetivos principais do ambicioso plano econômico foi assim anunciado pelo
rádio: "Assegurar que cada família deste país tenha em sua mesa um frango
por semana." Ouviram bem? Um frango por semana para quatro ou cinco
pessoas. Na época pareceu um ideal quase utópico. Pois bem: estamos numa
terra onde velhas desamparadas que se arrastam pelas ruas comem um frango
por dia, onde os meninos de rua pedem esmola em frente ao MacDonald’s para
completar o preço de um BigMac com fritas de três em três horas, onde os
bebês famintos exibidos pelas mães em prantos usam fraldas descartáveis,
onde as casas dos bairros miseráveis têm antenas parabólicas e os catadores
de lixo se comunicam com seus sócios por telefones celulares.
Em contrapartida, façam outro teste: peguem um sujeito sujo e esfarrapado,
encham-no de dinheiro e façam-no entrar numa loja de roupas – não digo uma
loja elegante, mas qualquer uma -- para comprar um terno. Será enxotado. E,
se gritar: "Eu tenho dinheiro!", vai terminar na polícia, com holofote na cara,
tendo de se explicar muito bem explicadinho, isto se não for obrigado a
escorregar "algum" para a mão do sargento.
O mesmo pobre que pode comer um frango por dia tem de comê-lo na calçada,
com os cães, porque não tem acesso aos lugares reservados aos seres
humanos. Está certo que você, gerente do restaurante, fique constrangido de
botar um sujeito estropiado e fedido no meio dos seus clientes distintos. Mas
não vê que mandá-lo comer na rua é mais falta de educação ainda? Pelo
menos dê-lhe de comer num cantinho discreto, converse com ele sobre as
dificuldades da vida, ofereça-lhe uma camisa, uma calça. Seja educado,
caramba! Pois se você, que está bem empregado e bem vestido, tem o direito
de ser grosso, que primores de polidez pode esperar do pobre? Se um dia,
cansado de levar chutes, ele o manda tomar naquele lugar, não se pode dizer
que esteja privado do senso das proporções. E não me venha com aquela
história de "Se eu tratar bem um só mendigo, no dia seguinte haverá uma fila
deles na minha porta". Isso pode ser verdade em casos isolados, mas não no
cômputo final: se todos os restaurantes tratarem bem os mendigos, logo haverá
mais restaurantes que mendigos. Conte os mendigos e os restaurantes da
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Avenida Atlântica e diga se não tenho razão. Isto sem que entrem no cálculo os
bares e padarias.
O brasileiro de classe média e alta está virando uma gente estúpida que clama
contra a miséria no meio da abundância porque cada um não quer usar seus
recursos para aliviar a desgraça de quem está ao seu alcance, e todos ficam
esperando a solução mágica que, num relance, mudará o quadro geral. Sofrem
de platonismo à outrance: crêem na existência de um geral em si, dotado de
substância metafísica própria, independente dos casos particulares que o
compõem.
Por isso é que quando a propaganda do Collor inventou aquela coisa de "Não
votem em Lula porque ele vai obrigar cada família de classe alta a adotar um
menino de rua", eu me disse a mim mesmo: "Raios, se isso fosse verdade eu
ficaria satisfeito de votar no Lula." Só acredito é em gente ajudar gente, uma
por uma, não na mágica platônica das "mudanças estruturais", pretexto de
revoluções e matanças que resultam sempre em mais pobreza ainda.
Na verdade, quem acredita nelas erra até ao dar nome ao problema geral.
Quando, revoltados ante a desgraça do povo brasileiro, gritamos: "Fome!", algo
está falhando na nossa percepção da realidade social. No mais das vezes, o
que falta não é comida, não é dinheiro: é as pessoas compreenderem que a
pobreza não é um estigma, não é uma desonra, é uma coisa que pode
acontecer a qualquer um e da qual ninguém se liberta só com dinheiro, sem o
reforço psicológico de um ambiente que o ajude a sentir-se novamente normal
e, em suma, um membro da espécie humana.
Entre as causas culturais da pobreza, a principal não está nos pobres: está na
falta de educação dos outros.
Assassinato da oportunidade
Época, 15 de julho de 2000
Discursos fingidos contra a pobreza estão matando, de modo egoísta, nossa
chance de sair dela
As demonstrações de escândalo ante a pobreza neste país são tão enfáticas,
tão hiperbólicas, que se diria que um padrão de vida de Primeiro Mundo é coisa
simplesmente natural e sua ausência, em qualquer lugar do planeta, é uma
absurdidade inaceitável para a razão humana. Na verdade, a pobreza tem
acompanhado o Homo sapiens desde seu surgimento, e a floração
extraordinária de riquezas em alguns pontos da Terra nos últimos séculos é
que é um fenômeno estranho, carente de explicação satisfatória até o
momento. A profusão de livros que prometem elucidar as “causas do
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subdesenvolvimento” só tem servido para camuflar o fato de que o
desenvolvimento ainda não foi compreendido de maneira alguma. Só um
maluco pode pretender explicar o que não aconteceu quando não entende
sequer o que aconteceu.
Há três hipóteses básicas para explicar o sucesso econômico: a teoria de Karl
Marx, segundo a qual a riqueza capitalista se forma pela extração da mais-valia
(diferença entre o salário e o valor objetivo do trabalho), a de Max Weber,
baseada na concentração de esforços propiciada pela ética protestante, e a de
Alain Peyrefitte, na qual o desenvolvimento nasce de certas condições culturais
e psicológicas que favorecem a criatividade econômica, a livre negociação e a
fidelidade aos contratos. A primeira foi desmoralizada por seus erros de
previsão, por suas falhas lógicas e pela revelação de que usara estatísticas
manipuladas. A segunda entrou em pane porque o próprio autor morreu sem
ter conseguido confirmá-la. A terceira me parece a mais certa, mas isso é o
máximo que posso dizer.
Se simplesmente não sabemos como um fenômeno se produz, por que nos
sentir revoltados por ele não se reproduzir a nosso bel-prazer? Proclamar o
direito de todos a algo que não se sabe como lhes dar é puerilismo. Mas é um
hábito de nossa cultura elevar meros objetivos desejáveis à categoria de
“direitos”, punindo o fracasso como se fosse um delito. Todos queremos uma
vida melhor para os brasileiros, mas quem pretenda nos induzir a crer que a
conquista dessa vida é coisa fácil por natureza, que não a havermos alcançado
é uma anormalidade, uma injustiça, um crime, esse é um mentiroso, um
farsante que busca subir na vida pela indústria da intriga e ainda tem o
desplante de insinuar que os demais ramos da indústria é que são desonestos.
A teoria de Peyrefitte não é absolutamente segura, mas é a que melhor tem
resistido às objeções. Se no Brasil não querem prestar atenção nela é por um
motivo muito simples: ela afirma a necessidade imprescindível de uma
atmosfera geral de confiança, em que os controles jurídico-policiais e
monopolísticos cedam lugar a mecanismos unicamente culturais de incentivo à
livre iniciativa popular. Ora, no Brasil isso é impraticável porque nossos
políticos e intelectuais estão empenhados em aumentar o próprio poder
mediante campanhas de disseminação da suspeita que induzam o povo a
aceitar mais leis, mais controle, mais burocracia. Eles chamam isso de “ética”,
de “luta contra a miséria”, até de “cristianismo”. Eu chamo de liquidação
maldosa e egoísta de uma oportunidade de sucesso.
A avó de todos os crimes
Época, 5 de agosto de 2000
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A crença de que a miséria produz a violência é, ela própria, geradora de
violência
Na sucessão memorável de lições sobre as causas sociais do crime, destacou-
se a do secretário da Segurança do Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol: a
onda de violência é criada por um “estado de necessidade” que torna essas
ações moralmente legítimas.
O doutor Bisol, caso o leitor não recorde, é aquele cérebro prodigioso que, na
CPI do Orçamento, apreendeu 40 quilos de documentos e, 24 horas depois, já
apresentava suas conclusões da leitura, só não entrando para o Guinness
porque não há justiça neste mundo. Mas raciocinemos, nós, em velocidade
humana. Em dois sentidos pode-se dizer que a miséria produz o crime. Num
sentido direto, o homem a quem falta o pão para os filhos vai e rouba um pão.
No outro sentido, a miséria geral e difusa pode induzir ao crime, por contágio
psíquico, um cidadão que não seja diretamente afetado por ela; um cidadão
que tenha não somente o indispensável à vida, mas ainda o excedente para a
compra de armas e drogas.
Os crimes cometidos no primeiro sentido não são crimes. A premência da
situação desconfigura o delito e o acusado sai livre, sem entrar nem mesmo
nas estatísticas. O doutor Bisol, leitor voraz, não pode ignorar esse detalhe
penal. Mas, numa discussão sobre a violência brasileira, a menção a esses
pseudocrimes, não sendo alegação extemporânea de um ignorante, só pode
soar como argumentação implícita em favor da segunda hipótese: a escusa do
estado de necessidade deve ser estendida àqueles casos em que a ligação
entre miséria e crime é indireta. Para justificar o delito não é preciso que seu
autor seja compelido por uma necessidade pessoal. Basta a miséria geral. A
miséria dos outros. Eventualmente, a miséria das vítimas.
Mas, onde a ligação entre miséria e crime não é direta, também não é
necessária, forçosa, inescapável: é casual e probabilística. Premido pela
necessidade pessoal, qualquer um roubaria. Sugestionados pela miséria geral,
uns roubam, outros não. Depende. Depende de quê? Depende de uma escolha
– daquela escolha, justamente, que o homem necessitado não podia fazer.
Necessidade é impossibilidade de escolha. Se há escolha, não há
necessidade. A miséria, aí, não é causa: é simples ocasião do crime.
Escolhas dependem de crenças. O homem livre rouba ou se abstém de roubar,
mata ou se abstém de matar, conforme creia que deve ou não fazê-lo, que é
certo ou errado fazê-lo. A doutrina Bisol parece lhe dizer que é certo. Não o diz
claramente, mas o insinua com aquela nebulosidade que, confundindo o
ouvinte e o próprio falante, mais facilmente ainda os induz a aceitar o que
despertos e atentos rejeitariam.
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Hoje essa doutrina não apenas é aceita em muitos meios, mas todo impulso de
rejeitá-la é aí recebido com exaltadas demonstrações de escândalo que inibem
as objeções, ao mesmo tempo que, reprimindo a discussão franca, adensam
ainda mais a névoa cataléptica da indistinção entre necessidade e escolha,
entre causa e ocasião. E a névoa, ao se expandir sob os auspícios da classe
culta, amortece no criminoso potencial os últimos escrúpulos de consciência.
Filha do lusco-fusco, mãe da escuridão, ela é a avó de todos os crimes.
Mamar e sofrer
Época, 26 de agosto de 2000
Quem não chora não mama: por isso, nem todos têm acesso aos benefícios da
discriminação
Se a atual efusão de bondade para com os discriminados fosse sincera, ela
procuraria socorrer primeiro os grupos que sofrem discriminação mais aberta e
mais violenta, em vez de ficar rebuscando indícios de “racismo sutil” para
favorecer os grupos que, longe de ser os mais discriminados, são apenas os
mais protegidos pela Nova Ordem Mundial e os mais aptos a desferir um golpe
mortal na unidade cultural brasileira.
Esses são os discriminados oficiais. Mas nenhuma discriminação, no Brasil,
supera aquela que se volta contra as pessoas apegadas às tradições de sua
cultura religiosa, caso não tenham a sorte de essa cultura ser indígena ou
africana. Contra os católicos e os evangélicos, tudo é permitido: excluir suas
doutrinas do universo intelectual respeitável; falar deles numa linguagem feita
para humilhar e ferir seus sentimentos; achincalhar publicamente seu Deus,
sua moral, seus profetas; fazer paródias grotescas de seus ritos, símbolos e
preces; anatematizar o empenho proselitista que lhes foi ordenado pelo próprio
Cristo; obrigá-los a aceitar, com presteza solícita, leis hostis a suas crenças;
subestimar como detalhe irrelevante o massacre de milhões deles nos países
comunistas; depreciar seus gestos de generosidade e auto-sacrifício mediante
explicações pejorativas e atribuição maliciosa de intenções; esmagá-los no
torniquete das cobranças contraditórias, acusando sua igreja de repressiva
quando pune as condutas imorais e de corrupta quando as tolera.
Quem move esses ataques não são indivíduos isolados ou grupos
clandestinos: é o establishment, é a mídia chique, são os professores nas
cátedras, são os artistas nos palcos e nas telas, diante dos olhos do mundo,
com a aprovação risonha das autoridades e dos bem-pensantes. As provas
não têm de ser desentranhadas mediante tortuosas conjeturas estatísticas:
15
elas estão diante de nós. Quem deseje investigá-las não terá dificuldade senão
o embarras de choix.
E, se querem estatísticas, digam: qual a porcentagem de cristãos tradicionais
na população brasileira e nas cátedras das universidades? No ministério FHC?
Nos cargos de chefia da mídia? Façam essas contas e saberão o que quer
dizer exclusão. Ainda bem que o reino dos cristãos não é deste mundo; porque
até na cadeia “os bíblias” são um grupo à parte, alvo de chacotas dos demais
detentos.
Quem diga ou faça contra gays um milésimo do que se diz e se faz contra os
seguidores de Cristo será punido e exposto à execração universal. Mas quem
ouse sugerir que cristãos também têm direitos já é virtualmente um réprobo,
um inimigo do povo. Toda palavra em favor deles – inclusive as deste artigo –
será recebida com protestos, com um brilho silencioso de ódio frio nos olhos
ou, na mais branda das hipóteses, com um sorriso desdenhoso.
Por isso essa palavra não será dita nas reuniões com que o Brasil se prepara
para o congresso mundial que, em 2001, se manifestará contra “todas” – entre
enfáticas aspas – as discriminações. Omitindo-a, essas reuniões provarão
apenas a discriminação dos mais quietos e resignados pelos mais barulhentos
e ambiciosos. Só estes têm direito ao título de “discriminados”, outorgado pelas
potências que regem o mundo. É a lei: quem não chora não mama. E quem
chora escondido que mame as próprias lágrimas.
Antifascismo hitlerista
O Globo, 2 de setembro de 2000
Por que os comunistas vivem chamando os outros de fascistas? Já vi esse
rótulo colado nas figuras mais díspares: cristãos, liberais, conservadores,
maçons, militares latino-americanos, anarquistas, social-democratas,
muçulmanos - todo mundo. Nem judeus escapam: Menachem Begin e Arthur
Koestler levaram essa carimbada umas dúzias de vezes.
De onde vem essa mania, essa necessidade compulsiva de dar a cada
desavença, por mais mesquinha e estapafúrdia, o ar de um épico combate
antifascista?
Detesto conjeturas psicológicas. Prefiro o método genético do velho Aristóteles.
Em quase cem por cento dos casos, contar como as coisas começaram já
basta para a plena elucidação de causas e motivos.
Até o princípio dos anos 30, os comunistas não ligavam muito para fascismo ou
nazismo. Papai Stalin ensinava-lhes desde 1924 que esses movimentos eram
apenas a radicalização suicida da ideologia capitalista, prenunciando o fim do
império burguês e a vitória final do socialismo. "O nazismo, dizia-se, é o navio
16
quebra-gelo da revolução." De repente, em 1933, partindo de Moscou sob o
comando de Karl Radek, uma onda de antifascismo varreu a Europa sob a
forma de livros, reportagens, congressos, passeatas, filmes, peças de teatro.
Intelectuais independentes apareciam nos palanques ao lado dos poetas
oficiais do Partido. Manifestos antinazistas traziam as assinaturas de estrelas
do cinema.
Entre essas duas épocas, algo aconteceu. Adolf Hitler, eleito chanceler,
preparava-se para grandes conquistas que requeriam o poder absoluto.
Ansioso de eliminar concorrentes, e não podendo abusar do apoio recalcitrante
do exército alemão, recorreu à ajuda da instituição que, no mundo, era a mais
informada sobre movimentos subversivos: o serviço secreto soviético. A
colaboração começou logo após a eleição de Hitler. Em troca da ajuda militar
alemã, vital para o Exército Vermelho, Hitler era informado de cada passo de
seus inimigos internos. O sucesso da "Noite das Longas Facas" de 1934
inspirou Stalin a fazer operação idêntica no Partido soviético: tal foi a origem do
Grande Expurgo de 1936, no qual o serviço secreto alemão, já disciplinado por
Hitler, retribuiu os favores soviéticos, descobrindo e forjando provas contra
quem Stalin desejasse incriminar. O famoso pacto Ribentropp-Molotov foi
somente a oficialização exterior de uma colaboração que já era bem ativa fazia
pelo menos seis anos.
A onda mundial de histrionismo antifascista foi inventada por Karl Radek, em
primeiro lugar, como vasta operação diversionista. No auge da campanha, ele
escrevia a um amigo: "O que ali digo (contra o fascismo) é uma coisa. A
realidade é bem outra. Ninguém nos daria o que a Alemanha nos dá. Quem
imagina que vamos romper com a Alemanha é um idiota."
De Paris a Hollywood, idiotas pululavam entre os escritores e artistas.
Arregimentá-los como "companheiros de viagem", criando a cultura do
comunismo chique que até hoje dá o tom nos meios pedantes em países
periféricos, foi o segundo objetivo da operação. Eram pessoas importantes,
formadoras de opinião, que conservavam sua identidade exterior de
independentes, ao mesmo tempo que serviam obedientemente ao comunismo
porque suas vidas eram controladas através de suborno, envolvimento e
chantagem. Um exemplo entre centenas: André Gide, que era homossexual,
durante anos não teve um companheiro de cama que não fosse plantado ali
pela espionagem soviética. Quando se recusou a colaborar, a sujeira
colecionada nos arquivos despencou em cima dele. Por análogos
procedimentos, a espionagem soviética colocou a seu serviço André Malraux,
Ernest Hemingway, Sinclair Lewis, John dos Passos e muitos outros, como
também atores e atrizes de Hollywood, que, além do glamour, garantiam para
Moscou um regular fluxo de dólares, moeda indispensável nas operações
internacionais. O controle dos intelectuais era feito diretamente por agentes
17
soviéticos, em geral à margem dos partidos comunistas locais, que por isto
foram pegos de surpresa pelo pacto de 1939.
A terceira finalidade do "antifascismo" foi recrutar espiões nas altas esferas
intelectuais. Alguns dos mais célebres agentes soviéticos, como Kim Philby,
Guy Burgess, Alger Hiss e Sir Anthony Blunt, entraram para o serviço por meio
da campanha. Conforme o combinado com Hitler, nenhum dos então
recrutados foi usado contra a Alemanha nazista, mas todos contra os governos
antinazistas ocidentais.
Comunistas, espiões e "companheiros de viagem" carregam pesada culpa pela
mais sórdida fraude já montada por uma parceria de tiranos. Em suas mais
notórias expressões, toda a cultura antifascista da época, o espírito do Front
Popular, matriz do antifascismo cabotino que ainda subsiste no Brasil, foi a
colaboração consciente com uma farsa, sem a qual as tiranias de Hitler e Stalin
não teriam sobrevivido a suas oposições internas; sem a qual portanto não
teria havido nem Longas Facas, nem Grande Expurgo, nem Holocausto.
Neurose, dizia um sábio amigo meu, é uma mentira esquecida na qual você
ainda acredita. A compulsão comunista de exibir antifascismo xingando os
outros de fascistas revela o clássico ritual neurótico de exorcismo projetivo, no
qual o doente se desidentifica artificialmente de suas culpas jogando-as sobre
um bode expiatório. Nos velhos, é hipocrisia consciente. Nos jovens, é
absorção simiesca de um sintoma ancestral que acaba por neurotizá-los
retroativamente, fazendo deles os guardiães inconscientes de um segredo
macabro.
Por isso, amigo, quando um comunista chamar você de fascista, não se
rebaixe tentando explicar que não é. Ninguém neste mundo deve satisfações a
um colaborador de Hitler.
Para uma antropologia filosófica
O Globo, 19 de julho de 2003
A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por trás de toda
variação local e histórica, pode-se resumir em seis interrogações básicas,
articuladas em três eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas
sim temporais e variáveis, dão as coordenadas da orientação do homem na
existência.
O primeiro eixo é "origem-fim". Ninguém jamais soube onde e quando o
conjunto da realidade começou nem como ou quando vai terminar. Pode-se
arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmogônico ou a
imagem do "big bang", uma teologia da criação ou um atomismo materialista,
cada qual com sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve
18
aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão, pois dela depende
o nosso senso de orientação no tempo, a possibilidade de conceber projetos e
dar forma narrativa às nossas experiências.
O segundo eixo é "natureza-sociedade". Todo homem vive entre dois campos
da realidade, um anterior e independente da ação humana, o outro criado por
ela. A diferença e a articulação desses campos aparecem no contraste entre o
geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss
entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo contra os
animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de
encontrar na natureza um abrigo contra os males do convívio social. A natureza
pode aparecer como um pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A
sociedade pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da
natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou
naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas
tentativas só revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo
seu contrário, seja de articulá-los numa equação definitiva, seja de
compreender um deles sem referência ao outro.
O terceiro eixo é "imanência-transcendência". Cada ser humano sabe que ele
próprio existe, que tem um "mundo" interior de experiências, recordações,
desejos, temores. Mas sabe também que esse poço é sem fundo, que ninguém
pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro
de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se
desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o
abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na
esposa, a proteção contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é
próximo e estranho a si mesmo. Por outro lado, para além de tudo o que se
pode conhecer da realidade, para além de toda experiência alcançável, cada
homem e cada cultura pressente um fator "x", que, desde acima ou desde o
fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que são e
não de outro modo. "Por que existe o ser e não antes o nada?": assim
formulava Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la pela
concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade ordenadora ou de
uma fantástica auto-regulação de coincidências. Podemos até expulsá-la da
discussão pública, deixando-a à mercê do arbítrio privado, com a abjeta
covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que
não escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias articulações
são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos conceber o transcendente
à imagem do nosso ser íntimo, como divindade bondosa que nos compreende
e nos ama -- mas isso fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza
fria e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços impessoais e
mecânicos de uma fórmula matemática -- mas isso não nos impedirá de
19
amaldiçoar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade
humana quando nos oprime ou nos reconforta.
Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de ignorância e
conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um articula-se com seu
oposto, num mútuo esclarecimento -- ou multiplicação -- de tensões. E no
ponto de interseção dos três eixos, como no das três direções do espaço,
fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano.
Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que
estabelecem entre os seis fatores por meio de assimilações e reduções. Muitas
culturas arcaicas privilegiavam o fator "origem", explicando sociedade e
natureza por um mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência.
A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando poder deduzir
dela uma ordem intelectual completa e definitiva. A modernidade absorveu tudo
na oposição natureza-sociedade, esperando não menos utopicamente reduzir
os mistérios da transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões
de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística. Preparou
assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram da sociedade a razão
última da origem e do fim, colocando entre parênteses a natureza, sufocando a
imanência e vedando o acesso à transcendência. Cada um desses arranjos,
mesmo o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório, como
experimento de sondagem numa certa direção que os interesses de um
momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza
numa proibição de olhar para além da articulação admitida. Só a abertura da
alma para a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá acesso
à experiência realista da condição humana e, portanto, à possibilidade da
sabedoria. Todas as explicações que, para enfatizar uma articulação em
particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis.
Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola analítica, o
nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, -- todas aquelas, enfim,
que ocupam o espaço inteiro do ensino acadêmico neste país -- são doenças
espirituais, obsessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma
resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências que dá sentido
à pergunta.
A vitória do fascismo
O Globo, 26 de julho de 2003
Tom Jobim dizia que no Brasil o sucesso é um insulto pessoal. Sem querer,
explicava assim a ampla aceitação da ideologia socialista entre nós. Para o
cidadão normal de uma democracia, o êxito de quem quer que seja é resultado
20
do talento e da sorte. Para frustrados e invejosos embriagados de mitologia
socialista, é o efeito de uma planificação maligna das classes dominantes, o
produto diabólico de uma máquina de exclusão social inventada e controlada
por astutos engenheiros sociais burgueses.
Na imaginação socialista, os capitalistas não fazem outra coisa senão reunir-se
na calada da noite para premeditar a ruína dos pobres. Para isso, criam todo
um aparato ideológico de “reprodução” dos padrões sociais existentes,
contratando intelectuais e técnicos para estudar meios de não deixar mais
ninguém subir na vida.
O capitalismo, nesse sentido, é uma sociedade administrada, um mecanismo
racional calculado nos seus mínimos detalhes para bloquear o progresso
social.
Só que, após ter descrito e acusado essa máquina com requintes de análise
corrosiva, no instante seguinte o socialista aparece condenando a “anarquia do
mercado” e fazendo a apologia da economia planejada como solução para
todos os males...
Já tenho me perguntado como é possível uma criatura mudar de discurso tão
radicalmente, sem nem perceber que se contradiz. Cinismo ou inconsciência?
Maquiavelismo ou burrice?
Observem a rigidez da disciplina no PT ou no MST, e obterão a resposta. O
militante socialista ou comunista sacrifica tudo à hierarquia partidária, mesmo a
moralidade, mesmo as exigências mais íntimas da consciência pessoal. É
natural que projete essa conduta sobre a fisionomia do inimigo, concebendo-a
à sua própria imagem e semelhança. Mas toda fantasia projetiva é
necessariamente paradoxal, é ao mesmo tempo direta e inversa. De um lado, o
capitalismo aparecerá aos olhos do socialista como uma hierarquia maquinal
análoga à do seu partido, apenas com signo ideológico oposto. De outro, a
atmosfera partidária, com aquele seu unanimismo que dá a cada um dos
militantes um sentimento tão vivo de participação, de proteção mútua, de
“comunidade solidária”, é vivenciada como o embrião de sociedade ideal, em
contraste com a qual a realidade do capitalismo aparecerá como pura confusão
e lei da selva.
Basta olhar o capitalismo diretamente, sem o viés projetivo da disciplina
socialista, para ver que ele não é nem uma coisa nem a outra, mas apenas a
integração de várias premeditações parciais -- os cálculos dos vários interesses
privados -- num ambiente geral frouxamente atado pelas regras da convivência
democrática.
Mas a idéia mesma de “regra” tem sentido diferente para socialistas e
capitalistas. Numa democracia capitalista, as regras do jogo são fixas, ao
passo que as finalidades gerais do esforço social vão mudando conforme as
inclinações da opinião pública a cada momento. Numa sociedade socialista --
21
ou nos partidos que lutam por ela --, é o contrário: as finalidades são
constantes, cristalizadas no símbolo utópico do “ideal”, e as regras do jogo é
que mudam segundo as conveniências estratégicas e táticas vislumbradas
pelos líderes em cada etapa da luta.
Por isso é tão difícil um socialista compreender o capitalismo quando um
homem formado nas regras do capitalismo entender a mentalidade socialista.
Esta último tentará explicar a conduta socialista pela racionalidade de
interesses econômicos, acreditando que tais ou quais vantagens obtidas no
caminho aplacarão os ódios e as ambições da militância enragée. O segundo
enxergará o capitalismo por meio de uma grade de fantasias projetivas
macabras, e acabará acusando a classe burguesa de ser ao mesmo tempo
uma maçonaria racionalmente organizada para saquear o mundo e um
aglomerado caótico de egoísmos incapazes de organizar-se.
Não espanta que toda tentativa de fusão entre capitalismo e socialismo resulte
numa contradição ainda mais funda: quando os socialistas desistem da
estatização integral dos meios de produção e os capitalistas aceitam o princípio
do controle estatal, o resultado, hoje em dia, chama-se “terceira via”. Mas é,
sem tirar nem pôr, economia fascista. De um lado, burgueses cada vez mais
ricos, mas -- como dizia Hitler -- “de joelhos ante o Estado”. De outro, um povo
cada vez mais garantido em matéria de alimentação, saúde, habitação, etc.,
mas rigidamente escravizado ao controle estatal da vida privada.
Também não espanta que os socialistas, não entendendo o capitalismo,
procurem descrevê-lo com a fisionomia hedionda do fascismo, que, por
afinidade, entendem perfeitamente bem. E muito menos espanta que,
abominando então o capitalismo como uma espécie de fascismo, acabem
sempre lutando em favor de reformas econômicas e políticas que o
transformarão exatamente nisso. Como a economia socialista em sentido
integral é inviável, como nunca se chega lá, e como por outro lado os
burgueses raramente têm fibra para resistir à investida socialista contra o
liberal-capitalismo, o resultado é sempre o mesmo: a vitória do fascismo.
A única diferença entre as economias fascistas dos anos 30 e a de agora é que
aquelas eram de escala nacional e, para impor-se, recorreram muito
logicamente a um discurso carregado de mitologia patrioteira e racista. A de
hoje é mundial, devendo portanto usar de pretextos simbólicos que, ao
contrário, sirvam para dissolver as identidades nacionais e os valores morais e
religiosos a elas associados. Daí o pacifismo, o feminismo, o multiculturalismo,
o desarmamentismo civil, o casamento gay, etc. Ideologia, já definia o velho
Karl Marx, é um “vestido de idéias” em torno de objetivos que nada têm a ver
com idéias. Hitler confessava, em privado, não acreditar nem um pouco na
discurseira racista que usava para infundir nos alemães um sentimento de ódio
travestido de amor à justiça. Os próceres do globalismo progressista também
22
não acreditam no besteirol politicamente correto que injetam nas massas de
militantes idiotizados. Tanto quanto o comunismo e o fascismo de velho estilo,
o “socialismo democrático” ou “terceira via” de hoje é um compactado de maus
sentimentos numa embalagem de belas palavras.
Fórmula da Minha Composição Ideológica
Alguns leitores cobram-me uma autodefinição ideológica. Outros, mais
solícitos, apressam-se em fazê-la por mim, catalogando-me seja como
neoliberal, seja como anarquista, seja como conservador, seja até como
fascista e o diabo a quatro. Surdo às demandas dos primeiros, que me
parecem artificiais e de puro capricho, não posso, no entanto, permanecer
insensível ante os esforços dos segundos, que traduzem, a olhos vistos, um
anseio genuíno e profundo de suas almas, e, mais que um anseio, uma
necessidade vital absoluta, a qual, se não atendida, acaba por se atender a si
mesma como um estômago de pobre que, desprovido de alimento, se
autodigere mediante uma úlcera. Essas pessoas, com efeito, não sabendo o
que fazer de suas vidas sem um catálogo ideológico de tudo, e não dispondo
de informações cabais sobre a minha personalidade política, acabam por
construí-la com pedaços de si mesmas, colhidos nos bas fonds dos seus
respectivos subconscientes e constituídos substancialmente de temores,
suspeitas, fantasias macabras e uma vasta coleção de demônios.
Não suportando mais ver tanto sofrimento inútil, nem me conformando com
tamanho desperdício de criatividade que mais utilmente se empregaria no
hobby literário, ao qual algumas dessas criaturas aliás se dedicam nas horas
vagas de seu penoso mister catalogante, decido-me, pois, a fornecer enfim
meu perfil ideológico, e não apenas meu perfil de ambos os lados mas também
meu auto-retrato de frente e de costas. Direi, em suma, o que vocês querem
saber, que não é necessariamente o que vocês querem ouvir.
Infelizmente, não posso me definir com uma só palavra, como seria do gosto
de tantos, pela simples razão de que não acredito haver algum conceito
abrangente capaz de juntar, numa só unidade compacta, as diferentes atitudes
e opiniões de um indivíduo ante os diversos setores da vida. O tipo assim
descrito teria a coerência em bloco de uma caricatura, de um Idealtypus
weberiano ou de um arquétipo platônico, mas nada teria de um ser humano1.
Toda fórmula ideológica pessoal compõe-se de um amálgama de preferências
e repulsas variadas, umas referentes à política, outras à moral, outras à
religião, outras à vida econômica e assim por diante. Esses vários elementos
não formam quase nunca uma unidade coerente, embora tendam à coerência
como numa assíntota, aproximando-se dela sem jamais alcançá-la. Tal esforço
23
de coerenciação denomina-se, precisamente, filosofia, uma atividade que, pela
própria natureza, é constante e sempre inacabada.
Não podendo, portanto, me definir com um termo unívoco, limito-me a dar uma
lista dos vários elementos que compõem, como podem, minha ideologia
pessoal.
1. Em economia, sou francamente liberal. Acho que a economia de mercado
não só é eficaz, mas é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a
concorrência é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que não gostam
da concorrência: os comunistas e os monopolistas. Às vezes é difícil distingui-
los. Quem foi que disse: "A concorrência é um pecado"? O Dr. Leonardo Boff
adoraria ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E, como
se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria (ou de Esaú e Jacó), a
concorrência não é pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D.
Rockefeller ou o Dr. Leonardo Boff.
Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma de Estado
corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico. Acredito, com Sto.
Tomás, que há um preço justo para cada coisa. Mas, como observavam os
conimbricenses, o número de variáveis a levar em conta no cálculo do preço
justo é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é deixar que as pessoas
discutam livremente e admitir que, de algum modo, vox populi, vox Dei. O
Estado existe apenas para impedir que os concorrentes se comam vivos, para
assegurar as condições logísticas da prática do liberalismo e para, last not least
amparar in extremis quem não tenha a mínima condição de concorrer no
mercado.
2. Em religião, sou tradicionalista e conservador. Não, não sou eu que sou
assim. Religião é tradição e conservação. É o fator de imutabilidade que faz
contraponto à História, e sem o qual o movimento não seria sequer percebido.
Por isto, o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial:
o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas para o ar,
apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário, como por exemplo
o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções, o Concílio
tornou a Igreja uma instituição insensata e ridícula, que condena seus próprios
santos enquanto se prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a
imutabilidade só do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra
do Corão, da Torá ou dos Vedas.
3. Em moral, sou anarquista. Acredito que há princípios morais universais,
permanentes, que a inteligência discerne por baixo da variação acidental das
normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado. Mas, por isso
mesmo, impor o certo é errado, a não ser em caso de vida ou morte. O sujeito
que faz o certo só por obediência e sem compreendê-lo acaba por transformá-
lo no errado. "Experimentai de tudo e ficai com o que é bom", recomendava S.
24
Paulo Apóstolo, meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas
como podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar? Por
isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e a
autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência,
sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem os religiosos, que
por sua dedicação à vida interior têm autoridade para falar dessas coisas,
devem impor regras morais à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que
afinal não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana e
prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações
práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito corriqueiras, e jamais
em motivos pretensamente elevados de ética, que terminam por fazer da
burocracia estatal um novo clero, e do Código Penal um novo Decálogo. A
coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal.
4. Em educação, sou mais anarquista ainda: não acredito em ensino obrigatório
do que quer que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de ensino,
público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo. Acho que a
educação deveria ser livre, que cada um deve buscá-la na medida de suas
necessidades, e considero uma monstruosidade totalitária que, após proclamá-
la um direito, o Estado moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás que
o mesmo se dá com muitos outros "direitos", que você acaba exercendo a
muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que as mulheres não pudessem
trabalhar, mas é um absurdo maior ainda que, obrigadas a trabalhar, não
possam ficar em casa para criar seus filhos. Complementarmente, é um crime
que se obrigue uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior
ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo, se quiser,
um trabalho que esteja à altura de suas capacidades e que, no fim, há de
educá-la muito mais do que qualquer escola. Tornei-me jornalista ainda quase
um menino, aos dezessete anos, e aprendi na redação o que três décadas de
escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje me tiraria
de lá e me poria numa escola para aprender português nos livros de Paulo
Coelho.
5. Em política internacional, e sobretudo em comércio internacional, sou
radicalmente nacionalista, protecionista e tudo o mais que os globalistas
odeiam. Isso não quer dizer que eu seja contra a globalização da economia.
Muito menos há aí qualquer contradição com a crença liberal acima subscrita.
Apenas, entendo que globalismo não é o mesmo que monopolismo das
grandes multinacionais, e que, assim como estas se associam umas com as
outras – e com certos Estados – para ficar mais fortes, é justo que o
empresário nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio
governo para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí a
intervenção do Estado não é contra o liberalismo ou a concorrência: ela é, ao
25
contrário, o fator equilibrante que impede a extinção do liberalismo e sua
substituição pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o
socialismo dos ricos.
6. Em filosofia, sou realista, meus gurus sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz,
Husserl e Xavier Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer
as coisas como são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos
filósofos realmente grandes deste século, e perto deles um Foucault ou um
Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que marxismo, estruturalismo,
desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo, neopositivismo, etc. etc., são
filosofias boas para analfabetos funcionais e portanto atendem a uma autêntica
necessidade social criada pela rápida expansão do ensino universitário, onde é
preciso fabricar professores cada vez mais rápido e cada vez mais barato. Ler
o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée Sauvage ou Richard Rorty já é esforço
bastante para essa gente, que morreria de congestão cerebral após meia
página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.
7. Em História, acredito na relatividade do progresso e acho que todo
progresso se paga com perdas que nem sempre valem a pena. É claro que
aprecio os computadores e os direitos constitucionais, mas penso nos milhões
de vidas humanas que foram sacrificadas no altar do progresso e me pergunto
se nós, sobreviventes, não saímos diminuídos moralmente pelos próprios
benefícios que recebemos2. Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não
tem Internet mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos.
O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem a dignidade de um
genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência prática, e quando procura se
enfeitar com uma ideologia autoglorificadora, com as pompas de uma utopia
futurista, sobretudo "científica", aí, meus filhos, é que ele se encarna num
Robespierre, num Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os
séculos antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não nego.
Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por ele, a vida de um cabrito. O
progresso tanto mais vale quanto menos custa.
8. Em todos os domínios e circunstâncias, sou contra o governo mundial.
Ninguém deve governar o mundo, senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco
Mundial, as grandes corporações multinacionais, a Internacional Socialista e
todas as entidades do gênero são para mim a encarnação mesma da
megalomania e do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os
Estados nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia, "os anjos
das nações são demônios". Quer dizer apenas que o chefe mundial dos
demônios é muito pior do que todos eles somados.
Que as pessoas acostumadas a identificar globalização e liberalismo não
vejam aí contradição alguma. A unificação política e administrativa do mundo
não beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre, instituindo a
26
"Terceira Via". Que é a Terceira Via? É aquela síntese de capitalismo e
socialismo que, resguardando a liberdade de movimento para as grandes
empresas que apoiam o governo, planeja, controla e determina tudo o mais.
Essa síntese não é nova. Surgiu na década de 20 e se chama fascismo.
Naquela época o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um
fascismo mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os
remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias, os mais
autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar o governo
mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal, democrático, inteligente,
capaz de tomar parte no jogo da globalização sem deixar que transformem
nosso país numa província ou numa colônia de férias para turistas sexuais. E
para isso é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um lado,
exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento global e,
de outro, incentivando maliciosamente reivindicações socialistas malucas e
toda sorte de ressentimentos doentios, divide o povo, desorienta os
intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa, a todos, à mercê do poder
multinacional.
Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita, segundo as
várias exigências que me parecessem mais razoáveis no momento e na
situação, que já tive a ocasião de votar em Lula e em Roberto Campos, em
Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães e em Delfim Netto, em Franco Montoro
e em Fernando Henrique Cardoso. Não votei em Collor: tomei um Engove e
votei no Lula. Na eleição seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei
em FHC. Mas escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse
em discussão e não conforme aquela linearidade rígida de quem é "direitista"
ou "esquerdista" como se torce pelo Coríntians ou se crê em Jesus Cristo: de
uma vez por todas e por toda a vida. Pois esta coerência só se pode ter nas
coisas profundas, duráveis e do coração, e não nessa agitação epidérmica que
é a política, onde, sem aviso prévio, de repente as pessoas, idéias e coisas se
convertem em seus contrários.
23/12/98
NOTAS:
1 - Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na
história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como
Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais
durável justamente porque se permitiram ajustes e combições "pragmáticas".
2 - Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da "culpa coletiva". O
que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos
27
custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios
levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por
nós.
Casta de malditos
Diário do Comércio, 30 de abril de 2007
Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e
sofrimento por toda parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a
um reino de justiça igualitária. Não há genocídio, não há violência, não há
brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável desses tagarelas
iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns
contra os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes
históricos principais, dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de
todos os crimes.
O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do
escritor, embora possa atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis
sociais, confundindo a platéia. A diferença é que, enquanto estes se esforçam
para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa de condená-
la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de
si um mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre
cabecinha. O intelectual ativista tem na cabeça inchada um projeto de mundo,
o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha infinitamente superior
a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a
sua grandiosa imaginação.
Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual
ativista às vezes estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio
num domínio especializado para depois poder falar com uma tremenda
autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe pouco ou nada e dos
quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como
expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para
depois posar de guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua
erudição era sofrível ou nula. Karl Marx estudou razoavelmente Epicuro e
Demócrito para depois entrar na história como reformador da filosofia de Hegel,
da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão
barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando
palpites sobre religiões que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam
Chomski dedicou alguns anos aos estudos lingüísticos para depois poder
orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política, direito e
28
relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que
qualquer um pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.
A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam
durante a primeira parte da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É
apenas uma fase temporária de conquista de credenciais que depois serão
usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se chamam
intelectuais ativistas e não intelectuais tout court . O objetivo de suas
existências é o ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles
não querem compreender a realidade. Querem modificá-la, e não apenas em
algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem modificá-la no todo, de alto
a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer as
coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e
Richard Dawkins.
Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas
tivessem alguma religião pode ser facilmente explicado pela razão de que as
religiões são universalmente necessárias para dar abertura a uma dimensão da
realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard Dawkins prefere
atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das
espécies, que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão
inteligente quanto Richard Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de
crendices e superstições bárbaras.
Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo,
não resisto a observar que a simples redução da questão religiosa a uma
matéria de “crença” ou “descrença” já é uma simplificação intelectualista que
jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão complicado e
exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a
mínima condição de compreendê-lo.
Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico –
judaísmo, cristianismo e islamismo. Não se fala disso no budismo, no
hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas do Egito, da Babilônia,
da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode, com
alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor
das religiões em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não
significa “crença”, muito menos crença irracional, mas apenas confiança numa
presença divina cujas provas iniciais tendem a ser esquecidas na agitação e
dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a uma
recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria
ser autorizado a participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só
como ouvinte atento e mudo.
Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície
intelectual das suas “crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na
29
sua percepção da realidade. O materialista identifica-se com o seu corpo
porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber sua pessoa
como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como
possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois
da morte. “ Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change ”, dizia Mallarmé ante o
túmulo de Edgar Allan Poe: a eternidade o transforma enfim naquilo que ele
sempre foi. Esse nível de percepção de si é inacessível ao indivíduo
sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o
discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que
transcendem a sua esfera de experiência. Ele só pode compreender esse
discurso como seqüência de afirmativas sobre o universo físico, as quais, não
podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem ser
objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade
olímpica de um Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência
humilhante e dolorida de uma deficiência psíquica, de um handicap espiritual
deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma teoria, é uma
atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de
eliminá-las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que
corrói as almas desses indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que
poderia resultar de qualquer discriminação meramente social ou cultural: o
homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-se em vida
um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma
inveja espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.
Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham
engrossar as fileiras dos intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos
excluídos sociais. Incitando estes últimos ao ódio e à revolta contra uma
condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles buscam
alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e
insanável.
Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem
de ostentar o título de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros
excluídos da sociedade. Essa acepção é falsa, porque em geral eles não são
excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do sistema,
paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem
irônica: eles sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo.
São malditos espiritualmente, excluídos da experiência do divino no mundo.
É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas
quanto Dawkins ou Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem
assimilar o conteúdo da religião como “crença”, na esperança de alcançar
algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais consistente da
30
realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num
desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas
“crença” e ainda não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas
aquele que pensa que toda fé é crença, esse é o mais ignorante de todos os
ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto mais infalível quanto menos
concebe a realidade de que fala.
Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram
da maneira mais enfática o espírito que anima essas criaturas.
O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto
Mangabeira Unger aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente
rotulando – aliás com razão -- de “o mais corrupto da nossa história”.
Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de Harvard prontificou-
se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na mídia
antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber
por que o arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite
para o ministério, nem um minuto antes.
O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua
atividade intelectual é apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem
qualquer significado em si mesmo. Não li toda a obra do prof. Unger, mas a
parte que li não continha uma só página de análise da realidade: só a
expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que
as pessoas deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger
e se o mundo não fosse injusto ao ponto de ter feito desse profeta iluminado
um simples professor universitário e não uma reencarnação de Júlio César ou
Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever ser”, com
profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que
uma migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido,
situado na extrema periferia do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas
ante o chamamento divino. Mais que depressa, atirou ao lixo a camuflagem de
estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios para
“transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.
Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a
oportunidade de me arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito
ou escrito em louvor do prof. Unger fica nula e sem efeito a partir da sua
nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às vezes
radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com
um sorriso, deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria
interpretar sua teoria da vida eterna. Integrando o establishment que antes ele
fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua filosofia: mero discurso de
autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo objetivo.
31
O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura
Inglesa, Nikki Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às
vítimas de Cho Seung-hui. “Nós somos a Virginia Tech! Nós não seremos
derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica de triunfalismo
retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e
sendo instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda
do assassino sul-coreano, a encarnação da vida invencível da coletividade em
contraste com a morte de uns quantos indivíduos.
Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem,
nas suas aulas, deu sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui,
infundindo-lhe o ódio assassino aos protestantes, aos judeus e aos brancos em
geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias medonhas nas quais o
criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam
pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é
explícito e enfático o apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do
pejorativo “nigger”. Num deles, “ The True Import of Present Dialog, Black vs.
White ” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro versus branco”), ela
não deixa por menos: “ We ain't got to prove we can die. We got to prove we
can kill ” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de
provar que somos capazes de matar.”) E, num convite direto: “ Do you know
how to draw blood? Can you poison? Can you stab-a-Jew? Can you kill huh? ”
(“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe esfaquear um
judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar
numa cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao
espirito das revoluções, ela propõe um kit especial para crianças, com gasolina
e instruções sobre como montar um coquetel Molotov. Seus ensaios estão
repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos brancos.
Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos
seja a tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em
homenagem a Tupac Shakur, um delinqüente raper assassinado num tiroteio
por outros rapers em 1997.
A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser
lida no artigo de Steve Sailer, “Virginia Tech's Professor of Hate” (“A professora
de ódio na Virginia Tech”, publicado na revista de David Horowitz, Front Page
Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos leitores que enviaram
comentários ao blog de Sailer: “ Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na Virginia
Tech as palavras ‘privilégio branco'? ” Não dá para contar, mas, só no website
da escola essa expressão aparece 33 vezes.
Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente
se estiver dopado. E a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era
bom da cabeça. Mas que importa? Os intelectuais ativistas, por definição, são
32
sempre inocentes das conseqüências de seus atos e palavras. Se o prof.
Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o
enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que
uma professora lhe inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do
capitalismo, do mundo mau – de todos, menos dela.
Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical
dos outros é uma herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja
continuidade nas ideologias revolucionárias modernas é hoje uma realidade
histórica bem provada.
Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no
instante mesmo em que se comete o crime. É uma inversão total da relação de
atacante e atacado. Se querem um exemplo, vejam o projeto de lei PLC
122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao homossexualismo. A
desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é
mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana,
nos países islâmicos e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada
vez mais privados do direito de expor sua fé em público? É contra eles que
essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos seus direitos
mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais
temível do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste
país ou em qualquer outro. O que esse projeto consagra como lei é a inversão
de nomes entre o perseguidor e o perseguido, entre o opressor e o oprimido,
fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.
Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público,
este reconheceria imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou
no discurso da profa. Nikki Giovanni, a mesma velha pretensão demencial dos
cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo direito de condenar
o universo.
Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as
velhas reivindicações de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do
progresso e das luzes, a objeção racional às suas pretensões se torna
“fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.
***
Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:
(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo,
Editora Peixoto Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um
clássico de 1927 em que o filósofo judeu, um dos homens mais lúcidos que a
França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da inteligência por
33
parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não
o vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-
alunos quando estão fazendo um belo trabalho.
(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed.
Alexandre Skirda, Les Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que
escrevia em russo, foi militante esquerdista e conheceu bem os meios
revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas
observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe
revolucionária efetiva não eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não
eliminariam o capitalismo, mas o modificariam até que ele começasse a
trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas. Batata. Não deu
outra.
Alquimia da islamização
Diário do Comércio, 21 de novembro de 2005
Um vício generalizado da nossa época é o abuso das figuras de linguagem.
Abuso não quer dizer uso excessivo, mas uso errado. Figuras de linguagem
existem para três finalidades: expressar de maneira compacta um aglomerado
de significações, enfatizar no objeto um valor ou nuance que o seu simples
conceito não enuncia, dar voz à primeira impressão de um objeto ainda mal
apreendido, na esperança de que esse artifício provisório ajude a apreendê-lo
melhor. O primeiro desses usos é poético, o segundo retórico, o terceiro
dialético ou propriamente filosófico. Em cada um deles as relações entre o
objeto apreendido e sua expressão verbal formam uma equação diferente. Em
todos o emissor do discurso tem o domínio consciente da equação. A prova
disto obtém-se pela análise que torna claro o que parecia obscuro: o
aglomerado poético pode ser decomposto nas suas várias camadas de
significado (se não pode, então não é poesia, é macumba); a qualidade
retoricamente acentuada pode ser distinguida do objeto que a ostenta; a
primeira impressão pode ser completada por impressões subseqüentes,
expressas em outras tantas figuras de linguagem, até que da confluência das
várias impressões e respectivas figuras surja, numa síntese intuitiva, a forma
essencial do objeto visado.
A figura de linguagem é usada de maneira abusiva quando não serve para
nenhuma dessas operações. As palavras não expressam então nem uma
riqueza de significações simultâneas, nem uma ênfase valorativa consciente,
nem um esforço de chegar à realidade através do véu do discurso. Expressam
a paralisia do pensamento que, não sabendo resolver a equação, isto é, passar
34
do discurso à percepção intuitiva por meio da análise, se detém na repetição
hipnótica do discurso mesmo, fazendo dele um substitutivo da realidade.
Se tantos intelectuais europeus não tivessem se habituado a pensar assim --
se é que isso ainda é pensar --, jamais teria surgido uma escola como o
desconstrucionismo, que nega a realidade em nome do discurso. O
desconstrucionismo não é uma análise filosófica: é a simples transposição
metalingüistica da própria patologia verbal que o alimenta. Mais ou menos
como aquelas especulações complexíssimas, intermináveis e
desesperadoramente fúteis com que um esquizofrênico letrado, acreditando
analisar seus sintomas, não faz senão produzir alguns novos – ou, pior ainda,
um upgrade dos anteriores.
A doença, surgida na Europa, chegou até a América e, aqui, fez vítimas nos
lugares mais inesperados. A metonímia – ou mais precisamente metalepse --
“guerra contra o terrorismo”, que algum iluminado soprou para dentro da
cabeça do presidente Bush, prova que conservadores americanos são capazes
de pensar tão esplendidamente mal quanto qualquer maoísta do Quartier Latin.
Guerra contra o terrorismo é guerra contra quem? Terrorismo não é o nome de
um inimigo, mas de uma de suas formas de ação. Adotaram essa expressão
desastrada por dois motivos. Primeiro, por covardia: não queriam dizer
“islamismo” para não ser politicamente incorretos, nem “marxismo” para não
parecer “nostálgicos da Guerra Fria”, nem muito menos “islamomarxismo” ou
“marxo-islamismo” (nomes horríveis, mas tecnicamente apropriados,
descrevendo com exatidão os elementos do composto) porque os exporia à
rotulagem fácil de “teóricos da conspiração”. O segundo motivo, derivado do
primeiro, é a pseudo-esperteza de usar um chavão publicitário em vez do nome
da coisa. É fácil ser contra o “terrorismo” porque é um meio de ação hediondo,
só aceitável naquele estado alterado de consciência que revela, precisamente,
o “fanático”. Como ninguém quer ser carimbado de fanático, todo mundo adere,
pelo menos da boca para fora, à “guerra contra o terrorismo”. E tão
reconfortados se sentem ao ver que concordaram em lutar, que já nem ligam
de continuar sem saber contra quem. Só que, sendo impossível combater por
meios invariavelmente lícitos um inimigo tão protéico e evanescente, alguma
violência com aparência de terrorismo todo mundo está sujeito a cometer a
qualquer momento, e no instante seguinte estarão todos, em nome da
concórdia, se acusando uns aos outros de terroristas. Toda a chamada “ordem
internacional” baseia-se, hoje, nessa absurdidade completa. E desta nascem
muitas outras.
Os franceses, por exemplo, ficaram contentíssimos com a fatwa – decreto
inspirado – com que a autoridade religiosa islâmica amorteceu em cinco
minutos a baderna ante a qual o governo tivera de se contentar com
gesticulações impotentes adornadas de palavreado pomposo. Nem de longe
35
percebem que refrear as manifestações é demonstração de força ainda mais
eloqüente do que produzi-las. Se os jovens muçulmanos rebelados se
mostraram capazes de criar em poucos dias mais confusão e terror do que os
meninos enragés de 1968, um único mufti , com umas poucas linhas escritas,
provou ter mais autoridade do que o governo, a polícia, a mídia e a opinião
pública da França, todos somados. Criar o caos, qualquer bando de
irresponsáveis pode, com um pouco de ousadia. Mas produzir o caos e em
seguida transfigurá-lo em ordem é o máximo de controle que seres humanos
podem ter sobre o fluxo dos acontecimentos. É a arte da transformação, como
em alquimia: Solve et coagula . Primeiro a substância deve ser dissolvida e
transformada numa pasta caótica pela ação corrosiva do “mercúrio” (entre
aspas porque não corresponde ao mercúrio químico; designa a força
dissolvente e desorganizante em geral). Quando está no ponto, joga-se nela o
“enxofre”, que a cristaliza, produzindo o “sal” – a nova ordenação interna
desejada. Há séculos – documentadamente, pelo menos desde Ibn Khaldun
(1332 - 1406) -- os muçulmanos sabem que esses símbolos alquímicos podem
designar também forças histórico-culturais, cujo manejo sutil está então ao
alcance de uma ciência política infinitamente mais fina do que aquilo que leva
esse nome nas universidades ocidentais. A dialética de Hegel e Marx é uma
caricatura de alquimia política em linguagem pedante. A superioridade
intelectual dos muçulmanos, nesse ponto, é arrasadora (leiam Henry Corbin e
Seyyed Hossein Nasr), e é nela – não na pura brutalidade do terrorismo, ou na
força passiva da multiplicação genética -- que reside o segredo da expansão
islâmica. Por isso é que, por trás de sua aparência de imigrantes bárbaros, os
muçulmanos têm manipulado os Estados ocidentais com a facilidade de quem
tapeia crianças. Querem um exemplo?
Com o apoio da British Advertisings Standards Authority, desde janeiro de 2005
os muçulmanos ingleses lançaram uma campanha para proibir outdoors que,
pela exibição ou insinuação de nudez, fira os seus sentimentos religiosos. O
Canadá foi um pouco além: está discutindo seriamente, por sugestão de um
ex-procurador geral, a hipótese de adotar a shari'a (conjunto de mandamentos
corânicos) como lei reguladora para os residentes muçulmanos, que assim
teriam direitos e deveres diferentes daqueles que pesam sobre o restante da
população (com a conseqüência inevitável de que, com o crescimento
demográfico desproporcional, logo a shari'a dominará todo o Canadá). Nos
EUA, inúmeras escolas oficiais – notem bem: oficiais – punem qualquer crítica
ao Islam submetendo o faltoso a um estágio obrigatório de “reeducação da
sensibilidade”, que inclui horas e mais horas de recitações do Corão e audição
de pregações islâmicas.
Ou seja: uma comunidade carente, que chegou anteontem trazendo nada mais
que sua miséria e seu ódio ao país hospedeiro, em pouco tempo conquista
36
direitos especiais e uma posição privilegiada na sociedade, e sua religião é
tratada com a deferência devida a uma prima-dona autoritária e ranheta.
Enquanto isso, o que se passa com a religião local, cujos santos e mártires,
mediante sofrimentos e trabalhos indescritíveis, criaram a civilização e a cultura
desses Estados e lhes ensinaram os primeiros princípios da moralidade que
fundamentam suas leis?
Em várias cidades da Europa e dos EUA, a exibição pública de um crucifixo é
banida por lei como atentatória aos direitos dos ateus; o professor ou aluno que
entre numa escola oficial portando uma Bíblia corre o risco de ser suspenso ou
expulso; a prece em voz alta é vetada em certos edifícios estatais, os festejos
de Natal são proibidos nas praças públicas, e inscrições com os Dez
Mandamentos são arrancadas por iniciativa da autoridade ciosa de não ferir os
sentimentos politicamente corretos.
Não vou me prolongar na descrição do estado de coisas. Digo apenas que é
aviltante e criminoso. Quem quiser saber mais – e tiver estômago para isso –
que leia “Persecution”, de David Limbaugh (Harper Collins), “The
Criminalization of Christianity”, de Janet L. Folger (Multnomah Publishers), “The
ACLU Versus America”, de Alan Sears e Craig Osten (Broadman & Holman) ou
simplesmente acompanhe as notícias diárias sobre anticristianismo militante no
site www.wnd.com .
A religião declaradamente inimiga do Ocidente (v. “The West's Last Chance.
Will We Win The Clash of Civilizations?”, de Tony Blankley, Regnery, 2005) é
tratada nos países ocidentais como se fosse senhora do espaço inteiro,
enquanto as religiões-mães da nossa civilização, judaísmo e cristianismo, são
escorraçadas como cães sarnentos, por iniciativa das próprias autoridades
governamentais que, por outro lado, se dizem em “guerra contra o terrorismo
islâmico”.
Cada vez mais a posição da religião cristã e judaica no Ocidente,
principalmente na Europa e nos Estados americanos governados pela
esquerda, se torna a mesma que têm nas ditaduras islâmicas -- como por
exemplo o Irã, onde todo culto não-muçulmano só pode ser praticado em
recinto fechado, sendo proibida toda pregação pública, distribuição de livros,
etc. – ao mesmo tempo que o Islam se coroa dos direitos e privilégios de uma
religião hegemônica.
Mas, partindo daquela premissa inicial incongruente, muitas análises da
situação, correntes na mídia e nos meios universitários, conseguem inverter os
termos do problema, seja por maquiavelismo cínico, seja por ignorância:
“A batalha subjacente (à luta contra o terrorismo) será entre a civilização
moderna e os fanáticos antimodernistas; entre aqueles que acreditam no
primado dos indivíduos e os que acreditam que os seres humanos devem
obediência cega a uma autoridade mais alta; entre os que dão prioridade à vida
37
neste mundo e aqueles que acreditam que a vida humana não é senão a
preparação para uma existência além da vida...”
Quem escreveu isso foi o ex-secretário do Trabalho do governo Bill Clinton,
que se gaba de ser um grande “analista simbólico” das mudanças
civilizacionais. Movido por seu ódio à “direita religiosa” americana, ele descreve
um campo mundial dividido entre “fundamentalistas” ou “transcendentalistas”,
como George W. Bush e Bin Laden, e “modernistas” ou “laicistas” como ele
próprio, e conclui: “O terrorismo rompe e destrói vidas. Mas o terrorismo não é
o único perigo que enfrentamos.”
Não é. O “perigo que enfrentamos” são inscrições dos Dez Mandamentos, são
crianças cristãs cantando canções de Natal, são padres, pastores e rabinos
recitando Salmos, são famílias religiosas que não aceitam o casamento gay e o
abortismo em massa, é, enfim, tudo aquilo que se opõe à ética materialista,
atéia e politicamente correta.
Só há um problema: essa ética é que, em nome do “multiculturalismo”, concede
direitos especiais à minoria muçulmana enquanto sufoca tradições ocidentais
milenares. Como poderia então ser ela a grande inimiga do radicalismo
islâmico? Ela é o instrumento mesmo de que este se serve para debilitar a
cultura da Europa e da América e subjugá-la ao seu ímpeto revolucionário e
destruidor.
E não há nisso nenhuma estranha coincidência. A origem dessas modas
culturais é bem conhecida: remonta, através de uma cadeia de intermediários
fiéis, à Escola de Frankfurt e ao filósofo húngaro George Lukacs. Elas são o
chamado “marxismo cultural” em estado puro – a arma mortífera concebida
dentro do próprio Ocidente para destruir sua civilização.
Impressionados com o fracasso da revolução socialista na Europa Ocidental no
começo do século XX, e especialmente com a defecção geral dos proletários
que foi a sua causa imediata, os frankfurtianos e Lukacs começaram a
especular se, além da resistência político-militar da “burguesia”, não haveria
outro fator, como direi, astravancându us pogréssio do çossializmu. Chegaram
à conclusão de que havia: eram milênios de herança judaico-cristã, o universo
simbólico inteiro da civilização Ocidental. “Quem nos livrará da civilização
Ocidental?”, perguntava Lukacs.
A resposta não demorou a vir de Moscou. Stalin, transferindo para as nações a
teoria da luta de classes, dividiu o mundo em Estados proletários e Estados
burgueses. Os primeiros estavam, evidentemente, no chamado “Terceiro
Mundo”. A ideologia do terceiromundismo começou a nascer aí, entre as duas
guerras, com o intuito de levantar contra o Ocidente burguês todas as forças
políticas, culturais, psicológicas e psicopáticas da Ásia, da África e da América
Latina. Os “condenados da Terra” libertariam da civilização Ocidental o pobre
Lukacs por meio do intenso trabalho dos partidos comunistas para
38
arregimentar, treinar e armar a grande “nação islâmica” para a guerra mortal
contra o Ocidente. A história é longa para contar em detalhes, mas a leitura do
segundo volume de “The Sword and the Shield. The Mitrokhin Archive”, de
Christopher Andrew e Vassili Mithrokin, recém publicado sob o título “The
World Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World” (Basic
Books, 2005), é um bom começo para compreendê-la.
A invasão física e cultural do Ocidente por hordas de imigrantes ao menos
implicitamente solidários com o terrorismo é a bomba de efeito retardado
plantada pela estratégia global estalinista. É claro que, nisso, o Islam não teve
o papel passivo de massa de manobra. Elites islâmicas versadas tanto nas
tradições muçulmanas quanto nas doutrinas ocidentais, especialmente o
marxismo, o positivismo (no sentido amplo da palavra), o existencialismo e o
estruturalismo-desconstrucionis mo, tinham suas próprias ambições e um plano
de longo prazo.
Nos anos 50, um suíço islamizado, Frithjof Schuon, voltou da Argélia,
transfigurado por uma longa imersão nas ciências espirituais islâmicas, àquela
altura praticamente desconhecidas no Ocidente fora de um reduzido círculo de
interessados. Sua promessa ao chegar foi: “Vou islamizar a Europa.” Disse e
fez. Sem comícios nem bombas. Tornou-se o guia espiritual de eminentes
intelectuais, milionários e homens de governo europeus. Almas de elite, que
haviam perdido a conexão íntima com o cristianismo, recuperaram um sentido
de ordem islamicamente moldado. Não se “converteram” ao Islam, pelo menos
exteriormente. Apenas, suas almas foram dissolvidas e recristalizadas no forno
da alquimia espiritual islâmica. Discípulo do principal discípulo de Schuon -- o
lituano naturalizado britânico Martin Lings – é, por exemplo, o futuro rei da
Inglaterra, o príncipe Charles. Só por essa amostra vocês imaginam o poder da
coisa. O rombo por onde o Islam invadiu o Ocidente não está em baixo, entre o
povão revoltado e estudantes furiosos. Está acima do que o comentário político
usual enxerga.
Pode parecer absurdo que altas doutrinas espirituais convirjam com o
marxismo, mas a identidade do alvo – a destruição do Ocidente – é patente
demais para que a diversidade de inspirações originárias constitua problema.
Ademais, inúmeros teóricos marxistas e muçulmanos vêm fazendo há décadas
um profundo trabalho de harmonização das duas grandes utopias: o socialismo
planetário e o califado global. A orientação mais geral é tomar o islamismo
como um coroamento espiritual do socialismo meramente “terrestre”.
A visão monstruosamente invertida que Robert Reich apresenta da invasão
islâmica – visão hoje compartilhada por quase todos os defensores
“modernistas” do Ocidente, é, como a expressão mesma “guerra contra o
terrorismo”, produto de um pensamento auto-impugnante que toma figuras de
39
linguagem como objetos reais. “Fundamentalismo” é figura de linguagem.
“Modernidade” é figura de linguagem. “Fanáticos” é figura de linguagem.
“Choque de civilizações” é figura de linguagem. Nenhuma delas usada como
utensílio provisório para a investigação da verdade, mas todas como fetiches
verbais com que a confusão mental se camufla a si própria, fazendo-se passar
por discurso de conhecimento.
O império da vontade
Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 2006
Se há um esforço inútil, embora inevitável, é o de contestar o relativismo. É
inevitável porque objeções relativistas são fáceis de aprender, fáceis de repetir
e acessíveis gratuitamente a qualquer bobão interessado em debater o que
ignora. Não importa o que você diga, elas começarão a saltar por todo lado
como sapinhos histéricos, e você não terá remédio senão sair caçando uma a
uma ou admitir que teria sido melhor ficar quieto desde o início.
Não que a dificuldade de caçá-las seja notável. Superar o relativismo é a
escola maternal da filosofia (ingressar nele é o berçário). O problema é que,
sendo meras combinações automáticas de juízos, prescindindo de qualquer
apreensão da realidade, elas têm uma facilidade enorme de reproduzir-se em
formatos variados, diferentes só em aparência, sem a menor chance de o
interlocutor fazer parar a proliferação mecânica de ranhetices mediante o apelo
à percepção dos fatos. É como você discutir online com um programa de
computador, sem nenhuma consciência humana para lhe responder do outro
lado da linha.
Pior ainda: por serem imunes ao teste da realidade, as objeções relativistas
não podem ser objetos de crença. Crer num juízo é crer na realidade do seu
conteúdo. Abstraída a realidade, a mente opera num espaço separado onde
pode haver apenas autopersuasão hipotética, como num teatro. Não crença
efetiva. No mundo real, essas objeções só podem funcionar como atenuantes
de crenças positivas, nunca tornar-se elas próprias crenças positivas. Nesse
sentido, todo mundo é um pouco relativista quando revê suas idéias (ou as
alheias) e as hierarquiza segundo o grau de certeza que parecem ter. Mas
ninguém é relativista além desse ponto. Nenhum relativista acredita em
relativismo, exceto de maneira experimental e provisória. Debater com ele só
pode servir para treinamento ou diversão e para nada mais.
O corolário é incontornável: se ele insiste muito nas objeções, se as defende
com o ardor de quem acreditasse nelas positivamente, está fingindo. Ele crê
em alguma outra coisa, e usa as investidas relativistas como barreira de
proteção para que sua própria crença não seja posta em exame. Todo ataque
40
relativista muito enfático encobre um autoritarismo secreto que mantém o
adversário ocupado na defensiva só para poder em seguida triunfar sem
discussão. Reparem na presteza com que esse tipo de relativista, ao sair do
exame das opiniões adversárias para a defesa das suas próprias, passa do
discurso dubitativo às afirmações intolerantes que se ofendem até às lágrimas,
até à apoplexia, ante a simples ameaça de objeções. O relativismo militante é
um véu de análise racional feito para camuflar a imposição, pela força, de uma
vontade irracional. Sua função é cansar, esgotar e calar a inteligência para
abrir caminho ao “Triunfo da Vontade”. É um método de discussão
inconfundivelmente nazista.
Se você estudar Nietzsche direitinho, verá que toda a filosofia dele não é senão
a sistematização e a apologética desse método, hoje adotado pela tropa inteira
dos ativistas politicamente corretos. Por trás de toda a sua estudada
complexidade, a estratégia do nietzscheísmo é bem simples: trata-se de
dissolver em paradoxos relativistas a confiança no conhecimento objetivo, para
que, no vácuo restante, a pura vontade de poder tenha espaço para se impor
como única autoridade efetiva. Descontada a veemência do estilo
pseudoprofético, não raro inflado de hiperbolismo kitsch , não há aí novidade
nenhuma. É o velho Eu soberano de Fichte, que abole a estrutura da realidade
e impera sobre o nada. É a velha subjetividade transcendental de Kant, que
dita regras ao universo em vez de tentar conhecê-lo. É o velho mestre Eckart,
proclamando modestamente que Deus precisa dele para existir. É o velho
sonho alemão de ser o umbigo do mundo, ou melhor, de fazer do mundo um
apêndice do umbigo. Adolescentes vibram com coisas assim. Só alguns deles
crescem para perceber a diferença entre essas frescuras e a autêntica filosofia.
Algo de limpo no reino da Dinamarca
Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 2006
A onda de indignação islâmica contra as caricaturas dinamarquesas é tão
forçada, tão tardia, tão histericamente exagerada, que se torna quase
irresistível buscar para ela uma causa racional por trás dos pretextos aparentes
que a legitimam. Se ninguém faz isso, é porque o dogma imperante na mídia
chique reza que, no mundo, só quem tem interesses ocultos e planos secretos,
invariavelmente sinistros e gananciosos, é o governo americano. O resto da
humanidade é transparência pura, sinceridade transbordante que raia a
candura angélica.
Nessas condições, não é de espantar que mesmo condutas patentemente
farsescas como essa de agora sejam aceitas a priori como expressões
ingênuas de motivos literais, mesmo quando isso implique apostar na hipótese
41
de que estrategistas capazes de intimidar o Pentágono sejam apenas os
fanáticos extravagantes e idiotizados que eles fingem ser.
Se você consentir em deixar essa hipótese de lado por cinco minutos, posso
lhe fornecer, para explicar a epidemia de ódio anti-dinamarquês, um belo
motivo racional que você não lerá em parte alguma e que aliás não tem nada a
ver com charges nem com religião.
A Dinamarca é, na Europa, a campeã absoluta da pesquisa de fontes
renováveis de energia -- fontes que, quando saírem da fase experimental para
entrar no mercado, podem libertar o Ocidente da escravidão ao petróleo árabe
(e venezuelano).
Em 1998, uma pequena ilha de 114 quilômetros quadrados, Samsoe, foi
escolhida pelo governo dinamarquês como sede de um experimento inédito:
criar uma comunidade integralmente servida por energia renovável, limpa e
barata. Soren Hermansen, gerente do projeto, afirmou na ocasião que
precisava de uma década para isso. Transcorridos oito anos, o sucesso passou
na frente do cronograma: cem por cento dos 4.400 habitantes da ilha, mais os
turistas, têm suas moradias e locais de trabalho servidos por energia renovável
produzida no local. O complexo de recursos tecnológicos desenvolvido em
Samsoe deve ser lançado no mercado mundial por volta de 2008.
A União Européia já começou a investir no projeto. Uma coisa era falar de
energia renovável nos anos 60, quando o único motivo para buscá-la era o
temor ecopsicótico de que os recursos da Terra se esgotassem a breve prazo.
Outra coisa é colocar esse produto no mercado num momento em que só dos
EUA a gangue petrolífera internacional arranca 600 milhões de dólares por dia.
Os donos do petróleo sabem o que o possível sucesso da Dinamarca significa:
é a sua sentença de morte. É o fim da OPEC. É o fim dos potentados árabes.
E, cá entre nós, é o fim de Hugo Chavez.
Daí a urgência de acossar e intimidar por todos os meios o governo
dinamarquês. É a reação de um gigante moribundo contra o pigmeu
assustadoramente saudável que ameaça acabar com a sua festa obscena. O
futuro pode estar nascendo em Samsoe -- e a massa islâmica enfurecida,
ludibriada para imaginar que luta por altos valores religiosos, foi convocada
para estrangulá-lo.
***
Segundo Tim Rutten, colunista do Los Angeles Times , a quase totalidade da
grande mídia americana decidiu não publicar as charges dinamarquesas, para
não ferir suscetibilidades. Tirou do público o direito de julgar por si próprio,
obrigando-o a curvar-se à sentença ex cathedra das autoridades islâmicas.
Enquanto isso, os muçulmanos europeus reproduzem as charges
42
abundantemente nos seus jornais, para incitar o ódio ao Ocidente; a Sony
promete para breve, sob aplausos gerais, um filme baseado na obscena
invencionice anticatólica de Dan Brown, “O Código Da Vinci”; e a mídia islâmica
mundial, inclusive nos países ocidentais, continua publicando cartoons anti-
semitas brutais sem ser perturbada por ninguém. A chantagem emocional é
fonte de privilégios.
***
Moralmente, o caso dos cartoons não tem significação nenhuma. Um jornaleco
empenhado em cantar louvores ao laicismo moderno e levando pauladas de
bandidões islâmicos não é coisa que me comova. Dinamarqueses fazem até
campanhas em favor das FARC. Pedem para apanhar.
Malditos imperialistas
Zero Hora, 19 de fevereiro de 2006
(RICHMOND, VIRGINIA) - Querem saber como funciona o odioso imperialismo
americano? Vou lhes mostrar.
Até os anos 60, o governo dos EUA era obrigado, por lei, a estocar reservas de
comida suficientes para, no caso de guerra ou crise mundial, alimentar cada
cidadão do país por três anos.
Então alguém convenceu o Congresso a dar comida de graça para as
populações pobres de outros países.
Desde então, as remessas ao exterior não cessaram de aumentar, e as
reservas não cessaram de diminuir.
Em 1996, o governo anunciou que o estoque restante bastava para apenas três
dias.
Em 11 de setembro de 2001, os silos do governo estavam quase vazios. Povos
que tinham se alimentado do estoque durante anos saltavam nas ruas,
festejando a morte de três mil americanos.
E quantidades cada vez maiores de comida continuaram sendo doadas aos
pobres da Ásia, da África e da América Latina.
Em 2003, o Departamento de Agricultura parou de medir a reserva estatal em
dias, porque restava menos que o suficiente para um dia por pessoa. Logo
depois, parou completamente de medir a reserva estatal, que era irrisória, e
começou a somar a totalidade da comida circulante no país, incluindo as
prateleiras de supermercados. Todo o alimento de consumo diário passou a ser
computado como reserva de emergência. Somado, dava 34 quilos por pessoa:
43
o total da comida disponível era dezoito vezes menor que o estoque de
emergência de 1960.
E as remessas para os países pobres continuavam aumentando.
Em 2005, com ameaças de guerra pipocando por toda parte, metade do mundo
unida numa feroz campanha anti-americana, o estoque total baixou para 7,1
quilos por pessoa. Uma queda de 80 por cento em dois anos.
Militarmente, o ponto mais vulnerável da defesa americana é a comida. Mas
ninguém pensa em reduzir a ajuda ao exterior.
Quando vocês me apontarem um caso análogo em toda a história universal,
quando me mostrarem alguma nação que tenha se prejudicado a si mesma,
consciente e deliberadamente, para socorrer aqueles que em retribuição a
xingam e sonham com a sua destruição, então talvez eu comece a desconfiar
que os americanos sejam um povo tão ruim quanto qualquer outro.
Até o momento, vivendo aqui desde maio do ano passado, só tenho motivos
para acreditar que são melhores. Logo na semana em que cheguei, entrei
numa igreja protestante do interior. Só caipira. Sabem o que os malditos
rednecks estavam fazendo? Coleta para as crianças pobres... do Brasil.
Cinqüenta entre cada cem americanos fazem trabalho voluntário – a favor de
“minorias” locais ou, em geral, de populações do Terceiro Mundo. Claro, de
outras nações também sai dinheiro para o mesmo destino. Mas vem de
governos, de instituições, de empresas. Um povo, mães e pais de família
largando seus afazeres para cuidar de gente que nunca viram – isso nunca
houve em parte alguma. Só aqui. O advento de uma sociedade capaz de criar
esse tipo de pessoas é o acontecimento mais notável da história moral da
humanidade.
Os brasileiros não podem entender isso porque, como se sabe, eles se dividem
genericamente em dois tipos: adultos ricos e remediados que, da janela de
seus carros, espantam com gritos e ameaças as crianças pobres que lhes vêm
pedir dinheiro; e crianças pobres que, descrentes da caridade pública, vão
trabalhar para o narcotráfico ou, armadas de faças ou lascas de garrafas,
assaltar os ricos e remediados. Com essa tremenda autoridade moral é que
falamos dos americanos.
Poesias de Antonio Machado
Primeira Leitura, novembro de 2004
Poucas obras poéticas são dignas do nosso amor como a do espanhol Antonio
Machado (1875-1939). Cabe num pequeno volume, e é do tamanho do mundo.
Ali estão os problemas da metafísica ocidental e oriental, a fé e a dúvida, as
paixões e a sabedoria, o sentido do tempo e da eternidade, tudo comprimido
44
em versos de uma simplicidade fulgurante, cuja perfeição ninguém sabe dizer
se é musical ou geométrica.
Don Antonio viveu humildemente num quarto de pensão e morreu num quarto
de hotel, fugindo da polícia política sem jamais ter sido político. Abençoou a
pobreza digna (“a mi trabajo acudo...”) e, vendo aproximar-se a morte, fixou
num pedaço de papel seu último pensamento: “Estos días azules y este sol de
la infancia.” O fluxo do tempo que pelo milagre da luz se transfigura em
eternidade na presença é uma de suas visões recorrentes: “Tedio infantil, amor
adolescente, / como esta luz de otono os hermosea! / ¡Agrios caminos de la
vida fea / que también os doráis al sol poniente!” O ontem e o amanhã fundem-
se no eterno presente: sob a claridade de Sevilha emerge do passado a
imagem do pai que, passeando no jardim, lança um olhar no vazio e enxerga
os cabelos brancos do filho poeta que no mesmo instante o evoca em seus
versos. Um olmo seco, derrubado por um raio, renasce na imortalidade do
poema antes que o serrem para queimá-lo nas lareiras. Amo tanto esse poema
que, buscando nele dois versos para epígrafe de um capítulo, acabei por
transcrevê-lo inteiro.
O espaço, por sua vez, se transfigura em memória e profecia. O poeta caminha
pelos campos de Castela. As paisagens em sucessão tornam-se glórias e
misérias da Espanha histórica (“Castilla miserable, ayer dominadora, envuelta
em sus andrajos desprecia cuanto ignora”) e despertam a antevisão do castigo:
“Al declinar la tarde, sobre um remoto alcor, / veréis agigantar-se la forma de
um arquero, / la forma de um inmenso centauro flechador.” Mas nem tudo é
perdição e morte. Sobre os campos paira, ante os olhos de Deus, “Castilla la
gentil, humilde y brava”.
E, quando passam os anos, Don Antonio, que já era a clareza e a simplicidade
encarnadas, torna-se ainda mais simples e claro, condensando sua mágica
sabedoria em epigramas:
“Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.”
“Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.”
Jamais serei grato o bastante ao poeta que inundou de luz tantos momentos
sombrios da minha vida.
Trechos de “Retrato” de Antonio Machado
¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
45
mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.
Converso con el hombre que siempre va conmigo
—quien habla solo espera hablar a Dios un día—;
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.
Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.
Y cuando llegue el día del último vïaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.
Redescobrindo o sentido da vida
Primeira Leitura, novembro de 2005
Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia
sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza,
comportando-se como um bicho. Victor Emil Frankl, psiquiatra, judeu e
austríaco como Freud, não acreditava nisso, mas não teve de inventar uma
resposta ao colega: encontrou-a pronta no campo de concentração de
Theresienstadt durante a II Guerra Mundial. Ali, reduzidos a condições de
miséria e pavor que no conforto do seu gabinete vienense o pai da psicanálise
nem teria podido imaginar, homens e mulheres habitualmente medíocres
elevavam-se à dimensão de santos e heróis, mostrando-se capazes de
extremos de generosidade e auto-sacrifício sem a esperança de outra
recompensa senão a convicção de fazer o que era certo. A privação despia-os
da máscara de egoísmo biológico de que os revestira uma moda cultural
leviana, e trazia à tona a verdadeira natureza do ser humano: a capacidade de
autotranscendência, o poder inesgotável de ir além do círculo de seus
interesses vitais em busca de um sentido, de uma justificação moral da
existência.
Uma recente viagem a Filadélfia, onde a Universidade da Pennsylvania
comemorava com um ciclo de conferências o centenário de nascimento do
46
criador da Logoterapia, trouxe-me a lembrança animadora de que na história
das idéias tudo se dá como na vida dos indivíduos: mesmo a extrema
indigência espiritual consolidada por séculos de idéias deprimentes não impede
que, de repente, a consciência do sentido da vida ressurja com uma força e um
brilho que pareciam perdidos para sempre. A evolução do pensamento
moderno, de Maquiavel ao desconstrucionismo, é marcada pela presença
crescente do fenômeno que denomino "paralaxe cognitiva": o hiato entre o eixo
da experiência pessoal e o da construção teórica. Cada novo "maître à penser"
esmera-se em criar teorias cada vez mais sofisticadas que sua própria vida de
todos os dias desmente de maneira flagrante. A "análise existencial" de Frankl,
a contrapelo do "existencialismo" de Heidegger e Sartre que é uma apoteose
da paralaxe, recupera o dom de raciocinar desde a experiência direta, que ao
longo da modernidade foi renegada pelos filósofos e só encontrou refúgio entre
os poetas e romancistas.
O que Frankl descobriu em Thesienstadt foi que além do desejo de prazer e da
vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a
"vontade de sentido": a alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de um
significado para a vida. Ao contrário, dizia Frankl, "se você tem um porquê ,
então pode suportar todos os comos ". A privação de sentido origina um tipo de
neurose que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de
sofrimento psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica
, isto é, de causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade.
A análise existencial é a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a
reconquista do estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida.
A logoterapia é a técnica psicoterápica que faz da análise existencial uma
ferramenta prática para a cura das neuroses noogênicas.
Uma pesquisa da Biblioteca do Congresso mostrou que "Man's Search for
Meaning", a mistura de autobiografia, análise filosófica e tratado psicoterápico
em que Frankl expõe as conclusões da sua experiência no campo de
concentração, é um dos dez livros que mais influenciaram o povo americano.
Se, a despeito disso, a obra de Frankl ainda não alcançou o lugar merecido nas
atenções do establishment acadêmico, é simplesmente porque este é o templo
da paralaxe cognitiva.
* * *
Livros de Victor Frankl no Brasil:
Em Busca de Sentido (Vozes-Sinodal)
Psicoterapia Para Todos (Vozes)
A Questão do Sentido em Psicoterapia (Papirus)
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Um Sentido para a Vida (Santuário)
Sede de Sentido (Quadrante)
Psicoterapia e Sentido da Vida (Quadrante)
A Presença Ignorada de Deus (Vozes-Sinodal)
Dois estudos sobre Aldous Huxley
Prefácios a Admirável Mundo Novo e A Ilha,
escritos para a reedição dessas obras pela Editora Globo, São Paulo, 2001.
1. Admirável Mundo Novo
Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao
tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo
conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos
de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica
sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley.
Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a
medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus
recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um
achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a
suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo
público, foi com freqüencia visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o
nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e
não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e
de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em
particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os
críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de
sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.
Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele
empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visáo a
aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente
o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade,
ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade
de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que
acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais
interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto.
Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os
exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano
48
cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um
inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade
que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito
de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual
e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância
filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças
aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais.
A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o
soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes
filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa
kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e
sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é,
inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência
senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três século de idealismo
filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz
Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma
“coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente,
o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como
diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real.
Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a
difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista),
chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A
“arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo
que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de
instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que
quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que
as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi
intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção
contemplativa ante a realidade do mundo.
A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios
ópticos, filia-o a uma tradiçao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e
praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do
mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz --
luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A
ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida
objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas,
simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto
remonta à “filosofia iluminativa” de Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo
persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e
longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253).
Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem
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em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em
The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera
inconfundivelmene sohrawardiana.
Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo
interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior
ao da média dos romancistas do seu tempo.
Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a
algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em
“Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma
atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados.
Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com
mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus
emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um
significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma
realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados”
atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz,
cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.
Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo
Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças
para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da
disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo
do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam
confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade
futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às
vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por
Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos
para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas
dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria
uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na
realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a
estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem
Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se
pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química
(as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma
auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições
genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala
limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo
terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e
intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma
utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema.
50
Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais
tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.
Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma
especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo
interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que
floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz
unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo
em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi
perceber a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que
geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato,
determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G.
Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos
outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro,
que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do
que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de
pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às
cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da
Nova Ordem Mundial.
O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é
mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da
Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de
hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto
já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A
Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de
uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e
Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que
representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo
moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus
clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa
senão a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o Sr.
Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet.
As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas
concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o
Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido
possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto
cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells,
nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar
mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real,
mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para
esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis.
Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem
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não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas
pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser,
transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à
psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em
teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como
pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de
produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil,
às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas
teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida
que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou
quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber
a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas
constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se
aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.
A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da
mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo”
eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma
terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera
cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada --
erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio
Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em
1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou
ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios
sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e
outras técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século
VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX.
Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas
técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala
mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no
livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme
Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as
técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de
governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu
exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje
despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao
adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem
Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o
que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem
essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente
a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada
para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um
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poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de
higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a
humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é
coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de
um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo
crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.
No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo,
com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os
“selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na
sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia,
rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se
encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de
quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas
grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam
nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus
pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade
tediosa das cidades de Huxley.
Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário
do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado.
Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes
de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que
separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A
presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de
destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os
selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente
para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição
dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita:
qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se
preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a
ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos
confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.
Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente
uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas
sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn
viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do
ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Sta. Teresa ou Jacob
Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se
estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells
e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa
tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para
fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril.
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Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou
Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do
comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World
Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele
caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de
contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.
Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição
global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista
a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que
tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não
fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços.
Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do
mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante
do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da
consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de
um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da
verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos
no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley.
Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a
serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley,
malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente
de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.
26/03/01
2. A Ilha
Os críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não
ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias.
Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:
1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a
reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a
Swift e Voltaire.
2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do
gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as
principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo
que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de
copiado e de mecânico.
3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas
do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O
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Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o
embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são
encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas
se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos
interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que,
no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as
idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre
os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais
criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das
pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações
pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são
realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são
cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é
ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de
sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los
definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos,
macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem
moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos
que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque
era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que
possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao
homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou
menos copiados.
É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica,
entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus
personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de
fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um
drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se
categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do
drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas
idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão
intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar
profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances
é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de
madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus
pensamentos.”
Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das
idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais
midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do
privilégio maior da mediocridade -- falar a linguagem média -- e que por isto
dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas.
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Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias
interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII
não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar
sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não
pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada
num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma
parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do
intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da
sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao
mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de
todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem
recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras,
deduzir o que “o público” pensava.
O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas
culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor
uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo
a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os
une.
Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos
intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o
“espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões
sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-
se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do
mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que
de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30.
A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos
anos 50-60.
Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na
cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo
de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das
drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas.
Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é
precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance.
Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do
Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma
sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha
sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era
como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power:
amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais,
incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de
reverência pela natureza.
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Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo
final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo,
encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo,
militarismo, religião tradicional, lei e ordem.
Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de
lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New
Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração
mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia,
em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra
destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado
pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os
julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus
Cristo.
Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros
na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o
auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico
da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria
exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas
ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos
anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da
narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais
importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um
sábio.
Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio
príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe
militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela
força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com
efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de
expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria,
um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose
de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis
em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de
Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que
produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala.
A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua
autocontradição congênita.
Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do
Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de
conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho
Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime
da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe,
57
a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a
influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se
devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi -- figura
inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional -
- , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala
e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi
são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um
tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop
com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da
sociedade Ocidental.
Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a
direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder
comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro
de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez
avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da
ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos
Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus
inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os
tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia
encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo
“um, dois, três, muitos Vietnãs”.
Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do
regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo
tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado,
por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na
ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do
“magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e
magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame
Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo
autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma.
Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky
foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer
as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais
vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente
pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1]
Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos
fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo
do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de
seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia
improvisada... por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota,
neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de
58
educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para
fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de
“sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen,
Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O
festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império
mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil
(e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época,
porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as
crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão
simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os
tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-
encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos
católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos
amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias
ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação”
psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o
cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas
mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da
expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de
idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A
imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser
medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado
profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas,
nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas,
sobretudo ao longo da Costa Oeste americana -- o lugar onde nasceria,
segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor. [2]
Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz
têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa
militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus
pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a
pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir
mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz
Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década
de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”.
Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle
comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as
técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos
praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute
de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa
quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda
sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o
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mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”. [3] Por uma
coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake
dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o
príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.
Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de
Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro
Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros
da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito.
Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.”
Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de
dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de
Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído
pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma
utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.
No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido
aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a
moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o
consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável
Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos
primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num
estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De
repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes
horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A
visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião
de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e
elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o
substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao
cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do
exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo
que a falsa visão espiritual.
Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito
da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas
de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e
rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o
totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O
diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser
compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na
mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas
cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens
idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do
consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de
60
grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos
se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da
reforma psicológica”. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança,
submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas
desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os
resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os
índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas
escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa,
enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a
violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo
superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas
basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação
para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente
sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos
“grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal,
firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã.
Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua
identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como
aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá
suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos
imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da
cartola um novo projeto de “mundo melhor”.
Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa
que se oculta por trás da inocência dos idealistas.
22/4/01
[1] V. Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski, trad. Antônio
Machado, Rio, Record, 2000, assim como René Guénon, Le Théosophisme.
Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles, 1929 (reed.
1978).
[2] Um documentário impressionante da devastação psíquica resultante dos
experimentos psíquicos da década de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim
Siegelman, Snapping. America’s Epidemic of Sudden Personality Changes.
New York, Lippincott, 1980.
[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political
Control, South Bend, St. Augustine’s Press, 1999.
61
[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue ou le Ministère de la Réforme
Psychologique, Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1995.
Intelectuais orgânicos
O Globo, 26 de maio de 2001
Só agora li uma entrevista que o prof. Carlos Nelson Coutinho deu ao jornal
“Valor”, na qual, forçando até onde é possível o sentido das palavras, ele me
incluiu entre os que teriam “preconceito contra o marxismo”. Apesar da data já
um pouco longínqua, vale a pena examinar o documento, que ilustra o peculiar
modus pensandi de um “intelectual orgânico”.
“Preconceito”, caso alguém ignore, é opinião prévia a um exame racional. Na
deterioração geral da língua, no entanto, a palavra tornou-se um estereótipo
infamante que os mais preconceituosos usam para rotular qualquer conclusão
adversa a seus preconceitos, à qual alguém tenha chegado após longo estudo
e ponderação.
O prof. Coutinho aderiu ao marxismo militante na entrada da juventude, antes
de ter examinado senão um fragmento infinitesimal da bibliografia marxista, e,
passadas quatro décadas, ainda é marxista sem ter mais que um
conhecimento periférico da argumentação antimarxista; ao passo que eu, tendo
feito idêntica escolha prematura, coloquei minha opção entre parênteses uns
anos depois e, abstendo-me por duas décadas de emitir opiniões políticas
enquanto pesava criteriosamente os argumentos pró e contra o marxismo,
emergi enfim do silêncio dizendo coisas que contrariam os sentimentos juvenis
em que se fossilizaram a pessoa, a vida e os neurônios do prof. Coutinho.
Entre nós dois, obviamente, o preconceituoso é ele, que nunca escreveu uma
linha senão para dar retroativamente ares de requinte intelectual às crenças a
que já tinha aderido de corpo, alma e carteirinha antes de fazer qualquer uso
revelante do intelecto.
Isso não quer dizer que hoje ele faça desse instrumento um uso mais intenso
do que na aurora da sua militância. Pelo menos ele não o utiliza o bastante
para perceber que não tem sentido afirmar que entrei na mídia “com grande
respaldo” e logo em seguida referir-se a mim como “uma voz isolada”, que “não
é representativa de nada”... Ou bem eu, isolado, falo com a minha própria voz,
ou alguém que me respalda fala pela minha boca. O prof. Coutinho que trate de
decidir se quer me chamar de pau-mandado ou de excêntrico solitário. Se entre
les deux, son coeur balance, isto só prova que ele quer me rotular de alguma
coisa, qualquer coisa, não importa o quê.
62
Quando digo que o marxismo imbeciliza, é a esse tipo de fenômeno que me
refiro. Nenhum esquerdista, até hoje, conseguiu dizer contra mim algo de
inteligente. Ante a “voz isolada” que os atemoriza, todos têm dado um show de
inépcia, de covardia e de maledicência sussurrante. Tempos atrás desafiei para
um debate sobre Gramsci, inclusive oferecendo troca de links entre nossas
respectivas páginas na internet, o prof. Coutinho e seus oitenta fiéis escudeiros
de um site devotado à beatificação do fundador do Partido Comunista Italiano.
Fugiram, como de hábito, afetando ares de dignidade ofendida, e, em pleno dia
de Natal, redigiram uma carta enfezada na qual denunciavam como imposição
ditatorial a oferta do intercâmbio de links.
É sempre aquela coisa do “1984”: democracia é ditadura, ditadura é
democracia. Discussão é imposição, imposição é discussão. Conceito é
preconceito, preconceito é conceito.
O leitor desacostumado ao trato com comunistas pode estranhar a
desenvoltura, a tranqüilidade de consciência com que posam de vencedores
após uma debandada tão ostensiva. Mas, creia-me, o fenômeno não se explica
pela simples cara-de-pau. Eles conservam na fuga um ar triunfante porque não
são intelectuais como os outros. São -- e gabam-se de ser -- “intelectuais
orgânicos”, células de um vasto corpo combatente. Nunca agem sozinhos. Têm
sempre o apoio logístico de uma rede inumerável de militantes obscuros,
anônimos, que podem prosseguir o combate nos bas fonds da intriga e da
calúnia quando os porta-vozes mais respeitáveis do “coletivo” se saem mal nos
confrontos públicos. Quando as vozes de cima se calam, as de baixo começam
o zunzum nos porões.
Agora mesmo, enquanto meus detratores mais notórios se recolhem para
lamber as feridas das últimas refregas, um jornalista de São Paulo, mais
comunista que a peste, deplorável farrapo humano que busca no ódio político o
alívio de sua indescritível miséria de alma, está espalhando na internet avisos
segundo os quais eu, Olavo de Carvalho, não trabalho há trinta anos e... vivo
da exploração de mulheres. Dito em voz alta, numa tribuna acessível aos olhos
do público, isso exporia o fofoqueiro ao desprezo de todos. Sussurrado no
mundo virtual, pode até funcionar. A intriga propaga-se por reflexo
condicionado, não por adesão consciente. Não é preciso acreditar nela para
passá-la adiante, repeti-la por automatismo e acabar tomando-a como
premissa implícita de julgamentos e decisões.
A manipulação de automatismos mentais torna-se ainda mais fácil numa
atmosfera infectada de ódios e temores coletivos contra alvos mais ou menos
distantes, só conhecidos por ouvir-dizer. O ambiente de esquerda é o caldo de
cultura ideal para esse tipo de bactérias.
63
É por sempre contar com esse fundo de reserva que o “intelectual orgânico”
pode se sentir vitorioso mesmo quando perde. Ele perde, mas o Partido não
perde nunca. Não adianta nada você derrubar um desses sujeitos no ringue.
Enquanto você recebe sua medalha, eles já fizeram a sua caveira entre os
vizinhos. E quando você, imbuído de seu prestígio de campeão, vai pedir fiado
um quilo de feijão no armazém da esquina, o português, desviando os olhos,
lhe explica que os negócios vão mal e que você não tem mais crédito.
O mais pérfido em tudo isso é que o comunista famoso pode sempre sair
bonito, alegando que desaprova os métodos imorais usados por seus
companheiros anônimos. Mas, a partir do momento em que aceita ser um
“intelectual orgânico”, ele não pode mais deixar de beneficiar-se dos métodos
que desaprova. Não é uma questão de escolha. O Partido trabalha para ele
como ele trabalha para o Partido, na unidade orgânica e indissolúvel da bela
imagem pública com a safadeza escondida.
A imoralidade da militância comunista é intrínseca e independe de aprovação
pessoal. E o máximo da imoralidade consiste precisamente em que o sujeito
pode permanecer limpo no instante mesmo em que tira vantagem da sujeira
praticada por outros, da qual ele nem precisa saber. É a síntese perfeita da boa
consciência com a falta de consciência.
O imbecil juvenil
Jornal da Tarde, São Paulo, 3 abr. 1998
Já acreditei em muitas mentiras, mas há uma à qual sempre fui imune:
aquela que celebra a juventude como uma época de rebeldia, de
independência, de amor à liberdade. Não dei crédito a essa patacoada nem
mesmo quando, jovem eu próprio, ela me lisonjeava. Bem ao contrário, desde
cedo me impressionaram muito fundo, na conduta de meus companheiros de
geração, o espírito de rebanho, o temor do isolamento, a subserviência à voz
corrente, a ânsia de sentir-se iguais e aceitos pela maioria cínica e autoritária, a
disposição de tudo ceder, de tudo prostituir em troca de uma vaguinha de
neófito no grupo dos sujeitos bacanas.
O jovem, é verdade, rebela-se muitas vezes contra pais e professores,
mas é porque sabe que no fundo estão do seu lado e jamais revidarão suas
agressões com força total. A luta contra os pais é um teatrinho, um jogo de
cartas marcadas no qual um dos contendores luta para vencer e o outro para
ajudá-lo a vencer.
Muito diferente é a situação do jovem ante os da sua geração, que não
têm para com ele as complacências do paternalismo. Longe de protegê-lo,
essa massa barulhenta e cínica recebe o novato com desprezo e hostilidade
64
que lhe mostram, desde logo, a necessidade de obedecer para não sucumbir.
É dos companheiros de geração que ele obtém a primeira experiência de um
confronto com o poder, sem a mediação daquela diferença de idade que dá
direito a descontos e atenuações. É o reino dos mais fortes, dos mais
descarados, que se afirma com toda a sua crueza sobre a fragilidade do
recém-chegado, impondo-lhe provações e exigências antes de aceitá-lo como
membro da horda. A quantos ritos, a quantos protocolos, a quantas
humilhações não se submete o postulante, para escapar à perspectiva
aterrorizante da rejeição, do isolamento. Para não ser devolvido, impotente e
humilhado, aos braços da mãe, ele tem de ser aprovado num exame que lhe
exige menos coragem do que flexibilidade, capacidade de amoldar-se aos
caprichos da maioria - a supressão, em suma, da personalidade.
É verdade que ele se submete a isso com prazer, com ânsia de
apaixonado que tudo fará em troca de um sorriso condescendente. A massa de
companheiros de geração representa, afinal, o mundo, o mundo grande no qual
o adolescente, emergindo do pequeno mundo doméstico, pede ingresso. E o
ingresso custa caro. O candidato deve, desde logo, aprender todo um
vocabulário de palavras, de gestos, de olhares, todo um código de senhas e
símbolos: a mínima falha expõe ao ridículo, e a regra do jogo é em geral
implícita, devendo ser adivinhada antes de conhecida, macaqueada antes de
adivinhada. O modo de aprendizado é sempre a imitação - literal, servil e sem
questionamentos. O ingresso no mundo juvenil dispara a toda velocidade o
motor de todos os desvarios humanos: o desejo mimético de que fala René
Girard, onde o objeto não atrai por suas qualidades intrínsecas, mas por ser
simultaneamente desejado por um outro, que Girard denomina o mediador.
Não é de espantar que o rito de ingresso no grupo, custando tão alto
investimento psicológico, termine por levar o jovem à completa exasperação
impedindo-o, simultaneamente, de despejar seu ressentimento de volta sobre o
grupo mesmo, objeto de amor que se sonega e por isto tem o dom de
transfigurar cada impulso de rancor em novo investimento amoroso. Para onde,
então, se voltará o rancor, senão para a direção menos perigosa? A família
surge como o bode expiatório providencial de todos os fracassos do jovem no
seu rito de passagem. Se ele não logra ser aceito no grupo, a última coisa que
lhe há de ocorrer será atribuir a culpa de sua situação à fatuidade e ao cinismo
dos que o rejeitam. Numa cruel inversão, a culpa de suas humilhações não
será atribuída àqueles que se recusam a aceitá-lo como homem, mas àqueles
que o aceitam como criança. A família, que tudo lhe deu, pagará pelas
maldades da horda que tudo lhe exige.
Eis a que se resume a famosa rebeldia do adolescente: amor ao mais
forte que o despreza, desprezo pelo mais fraco que o ama.
65
Todas as mutações se dão na penumbra, na zona indistinta entre o ser e
o não-ser: o jovem, em trânsito entre o que já não é e o que não é ainda, é, por
fatalidade, inconsciente de si, de sua situação, das autorias e das culpas de
quanto se passa dentro e em torno dele. Seus julgamentos são quase sempre
a inversão completa da realidade. Eis o motivo pelo qual a juventude, desde
que a covardia dos adultos lhe deu autoridade para mandar e desmandar,
esteve sempre na vanguarda de todos os erros e perversidade do século:
nazismo, fascismo, comunismo, seitas pseudo-religiosas, consumo de drogas.
São sempre os jovens que estão um passo à frente na direção do pior.
Um mundo que confia seu futuro ao discernimento dos jovens é um
mundo velho e cansado, que já não tem futuro algum.
Sto. Tomás, a vaca voadora e nós
Caderno de Cultura do IDEAS – Instituto de Estudos e Ações Sociais – da
UniverCidade. Ano I, número I, Outubro de 2001.
A Antônio Donato Rosa e Júlio Fleichman.
Nenhum historiador profissional do mundo aceita hoje em dia a lenda
setecentista que deprecia a Idade Média como "Idade das Trevas", mas ela
continua firmemente arraigada no credo universitário brasileiro e é repassada
de geração em geração por sociopatas militantes e analfabetos funcionais aos
quais um abuso de linguagem confere o estatuto de intelectuais acadêmicos.
Só isso já bastaria para ilustrar a imensidão do abismo mental que se alarga
dia a dia entre as nações cultas e aquelas onde a negligência ou cumplicidade
dos governantes permitiu que as instituições de ensino fossem monopolizadas
por propagandistas e demagogos a serviço de grosseiras ambições de poder.
O discurso de depreciação da Idade Média foi criado por beletristas e
agitadores do século XVIII como expediente de ocasião para a propaganda
anti-religiosa, destinada a minar as bases morais e ideológicas da monarquia.
Malgrado a imensa penetração que obteve na mitologia popular, graças ao
respaldo de toda sorte de organizações políticas e sociedades pseudo-
iniciáticas, o fato é que ela jamais existiu como teoria histórica aceitável nos
meios científicos e hoje subsiste apenas em círculos de ativistas semiletrados
do Terceiro Mundo, à margem das correntes vivas do pensamento mundial.
No Brasil ou na Zâmbia, "medieval" ainda pode ser usado como termo
pejorativo nas polêmicas da mídia, mas quem quer que se deixe impressionar
por isso mostra que é escravo de uma atmosfera mental provinciana, sem a
mínima abertura para o horizonte maior da cultura universal.
66
Em contrapartida, não há estudioso sério que hoje possa contestar a afirmação
de Schelling, segundo a qual a transição da filosofia medieval para a atmosfera
moderna inaugurada por Descartes assinala a queda do pensamento filosófico
para um nível pueril. (2)
Essa queda revela-se da maneira mais escandalosa na simples perda da
técnica filosófica cujo domínio distingue o filósofo do beletrista e do ideólogo.
A longa prática da disputatio nas universidades havia dotado os intelectuais
europeus de uma habilidade lógica extraordinária, capaz de apreender num
relance o sentido dos conceitos, a distinção entre vários níveis de abordagem,
os pressupostos embutidos nas discussões, o senso das relações entre a parte
e o todo, a hierarquia de credibilidade das premissas, enfim, todas as
condições indispensáveis para uma investigação filosófica consistente.
De repente, tudo isso se perdeu. Descartes, malgrado sua alegação de
aprendizado escolástico, recai em erros lógicos primários que nenhum
estudante medieval cometeria, como o de não perceber que uma noção
puntual do ego pensante é um conceito abstrato e não uma intuição direta. (3)
O show de inépcia prossegue ao longo de dois séculos com a disputa de
racionalistas e empiristas, que qualquer escolástico treinado resolveria em vinte
minutos.
Malgrado a introdução meritória de novos temas e a persistência de alguma
habilidade escolástica notada em casos esparsos, o ciclo filosófico moderno é
em geral de uma grosseria sem par e o pouco que dele se aproveita reside
precisamente nos sistemas que, nadando a contracorrente, conservam o
essencial do legado escolástico, como é o caso dos de Leibniz e Schelling. Não
por coincidência, esses sistemas foram os que encontraram menos
compreensão entre seus contemporâneos, tendo de esperar o século XX para
que o mundo acadêmico percebesse sua importância incomum.
Também não é de estranhar que, em plena ascensão do estilo moderno,
algumas antecipações geniais feitas pelos escolásticos remanescentes,
especialmente na Espanha e em Portugal - como a teorização da economia de
mercado dois séculos antes de Adam Smith e a formulação do indeterminismo
físico três séculos antes de Heisenberg -, passassem completamente
despercebidas, enquanto a moda mecanicista, hoje totalmente desmoralizada,
posava como a encarnação mesma do espírito científico em oposição às
"trevas" escolásticas.
Tudo isso revela o quanto a história da filosofia, como a história de tudo o que
é humano, está sujeita a oscilações inteiramente irracionais e fortuitas, e o
quanto é imprudente tentar enxergar na sucessão temporal das filosofias algo
como uma progressiva vitória da luz sobre as trevas. Habet mundus iste noctes
suas, "este mundo tem suas noites", dizia S. Bernardo de Clairvaux, e nada o
ilustra melhor do que as crises de regressão e de esquecimento que pontilham
67
a história da filosofia, obrigando cada geração de estudiosos a desencavar dos
escombros os tesouros que suas antecessoras, imbuídas da ilusão de estar no
pináculo da evolução humana, atiraram ao esquecimento.
Um desses tesouros, ciclicamente esquecido e reencontrado, sempre diferente
a cada reencontro, é a filosofia de Sto. Tomás de Aquino.
O que ela tem a dar ao mundo de hoje já não coincide exatamente com
aqueles aspectos seus que foram trazidos à luz pelo renouveau tomista
inspirado pelo Papa Leão XIII. O neotomismo do século XX, com todas as
contribuições esplêndidas que trouxe à reconquista de uma perspectiva cristã
na filosofia, talvez constitua, hoje em dia, até mesmo um obstáculo a uma
tomada de consciência dos ângulos da filosofia tomística que mais
urgentemente a atual geração necessita redescobrir.
Mas algumas outras dificuldades, mais elementares, se apresentam desde logo
ao estudante que se aventura nas páginas de Sto. Tomás. Examinarei aqui
duas delas.
A primeira é que a filosofia de Tomás não pode ser facilmente resumida em
alguma fórmula como "Penso, logo existo", "Todo o real é racional e todo o
racional é real" ou "A existência precede a essência", com que o público
moderno se acostumou a gravar na memória a imagem vulgar dos sistemas
mais badalados. Nenhuma filosofia verdadeiramente grande se deixa aprisionar
nesses rótulos. Eles servem para condensar universos filosóficos pobres ou
fictícios - pobres como o de René Descartes ou fictícios como os de Hegel e
Sartre --, mas não servem para Aristóteles, Leibniz, Schelling ou Husserl, cujos
sistemas não se fecham nas fórmulas de uma geometria imaginária mas
permanecem abertos à complexidade do real vivente, cheio de surpresas.
Também não servem para Tomás de Aquino, pela mesmíssima razão. É
relativamente fácil conceber, a partir de certas fórmulas resumidas, o que
Descartes ou Hegel teriam dito sobre isto ou aquilo quando não se conhece o
que disseram efetivamente. Mas o que Tomás tem a dizer não é nunca
inteiramente previsível, porque seu sistema tem a complexidade orgânica de
uma criação da natureza, que não é linearmente coerente mas contém sempre
incoerências superficiais absorvidas numa coerência mais profunda.
Essa dificuldade leva muitos estudiosos a simplificar o pensamento do grande
santo, espremendo-o numa logicidade um tanto estereotipada que, se o torna
mais digerível desde os princípios do próprio intérprete - freqüentemente mais
interessado numa apologética paroquial do que em filosofia -, acaba por
eliminar a variedade e o elemento surpresa que constituem um dos encantos
maiores da obra tomística.
Um exemplo característico é a eliminação habitual do componente astrológico,
essencial à obra e à sua compreensão. A justa rejeição magisterial da
astrologia como técnica preditiva levou com freqüência a jogar a criança fora
68
junto com a água do banho, e no caso de Tomás a "criança" era nada menos
que toda uma filosofia da natureza e da liberdade. Para ele, Deus move os
corpos inferiores por meio dos superiores; logo, todos os fenômenos da ordem
natural terrestre são reflexos dos movimentos dos astros. Como o corpo
humano faz parte da ordem natural, ele está tão sujeito às influências dos
astros quanto qualquer outra coisa que se mova sobre a Terra; e como as
mutações sofridas pelo corpo interferem na conduta por intermédio dos
sentidos e das paixões, está claro que tudo quanto na conduta humana seja de
ordem puramente passional, isto é, independente da influência ordenadora da
inteligência e da vontade racional, pode muito bem ser compreendido com
base na influência dos astros. Essa clara reivindicação de uma astrologia
natural soa demasiado escandalosa aos ouvidos dos crentes, e por isto foi
freqüentemente suprimida das exposições "oficiais" da filosofia tomista, o que
se tornou no entanto indefensável depois do estudo definitivo de Thomas Litt.
(4) Não obstante, a edição eletrônica da Summa Contra Gentiles no site do
Jacques Maritain Center omite ainda os capítulos concernentes à influência dos
astros, que se contam entre os mais notáveis da filosofia tomística da natureza.
(5)
Esses arranjos e supressões, criando uma facilidade enganosa, acabam por
dificultar a compreensão do que existe de mais característico no pensamento
de Tomás, que é precisamente a coexistência de uma poderosa inteligência
metafísica com a boa-fé quase simplória com que sua alma santa se abria aos
dados do real e da ciência do seu tempo, sem nenhuma prevenção dogmática.
A história da vaca voadora é provavelmente fictícia, mas reflete bem o espírito
de Tomás. O santo estava estudando quando um monge o chamou às pressas
para ver uma vaca que passava voando diante da janela. Tomás saltou da
cadeira e, reclinado ao parapeito, vasculhou os céus em busca da vaca,
enquanto em torno os outros monges explodiam numa gargalhada coletiva.
Surpreendido, o santo se explicou: "É que achei mais razoável uma vaca voar
do que um monge mentir." O que é certo é que Tomás, alertado para qualquer
fenômeno, por mais esquisito e alheio a suas crenças, jamais recusaria
examiná-lo com a maior boa fé, mesmo que isto o levasse a conclusões bem
diversas das esperadas. Nada poderia contrastar mais enfaticamente com a
imagem de um sistema hierárquico fechado, que se consagrou na imaginação
do leitor contemporâneo por obra de apologistas ingênuos e adversários
astutos. Diz Eric Voegelin: "Esse sistema frouxamente atado, em certos pontos
repleto e abundante de excessos de digressão, é o perfeito símbolo de uma
mente que não é nem apriorística nem empirista, mas em si mesma um ser
histórico vivente, experienciando sua harmonia com a manifestação de Deus
no mundo histórico." (6) Não por coincidência, prossegue Voegelin, algumas
69
das idéias mais interessantes de Tomás se encontram espalhadas nas
digressões e não no corpo central dos argumentos.
Entre perder-se na riqueza inesgotável do sistema vivente e recortá-lo segundo
um esquema didático prévio, o leitor moderno optará, decididamente, pela
última alternativa, preferindo antes conformar-se com "manuais de tomismo" -
quando não com aquelas reduções pejorativas tão caras à mentalidade
uspiana (7) -- do que lançar-se a uma leitura direta que o atemoriza e
confunde.
Uma segunda dificuldade, diretamente ligada à primeira, é a resistência
obstinada que a mente moderna oferece a uma proposta filosófica que
pretenda ser ao mesmo tempo realista e cristã. Mentes forjadas no molde do
preconceito kantiano segundo o qual Deus, por estar infinitamente separado da
esfera da nossa experiência sensível, só pode ser objeto de crença e não de
conhecimento -- preconceito que se incorporou na cultura universitária
contemporânea com uma autoridade dogmática intolerante a avassaladora --,
dificilmente podem conceber que a referência a Deus seja senão o apelo a um
artigo de fé, totalmente separado do conhecimento dos fatos da ordem sensível
e até da especulação filosófica racional. Essa mente acabará por dividir a
filosofia de Sto. Tomás em dois compartimentos estanques, separando
"filosofia" de "teologia" segundo noções estereotipadas de uma e da outra.
Com isso, perderá justamente o essencial dessa filosofia, que é a unidade
tensional e viva do imanente e do transcendente.
Tomás, embora rejeitando a convicção de seu amigo S. Boaventura de que
Deus é um dado intuitivo imediato, e embora subscrevendo tudo quanto a
doutrina da Igreja afirma sobre o papel decisivo da fé para a salvação das
almas, jamais se conformou com um Deus que fosse simples objeto de crença
ou mesmo a pura conclusão de um silogismo. Deus para ele é ineludivelmente
uma presença, e esta presença se manifesta de maneira prioritária nos dados
do mundo sensível. Ele estava persuadido de que os fatos da ordem sensível,
sendo expressões diretas do Verbo criador, jamais poderiam mentir. Por isto
ele não hesita em sacrificar a coerência superficial do sistema em favor da
variedade dos fatos, que têm para ele uma autoridade divina. Daí seu realismo,
inseparável do seu cristianismo. No universo tomístico, o verso do salmista,
Coeli enarrant gloriam Dei -- "Os céus exibem a glória de Deus" -- significa, da
maneira mais enfática, que astronomia, geologia, zoologia e demais ciências
da ordem sensível não são, em última instância, senão teologia simbólica. Na
Summa Contra Gentiles ele enuncia a fórmula mesma da hermenêutica
simbólica da natureza: "Nós falamos por meio de palavras, Deus fala por meio
das coisas." Logo, a transmissão da mensagem divina, para Tomás, não se
esgota no conteúdo verbal explícito da Bíblia e na doutrina formal que dele
extrai o magistério da Igreja; ela prossegue, diante de nós, no desdobramento
70
inesgotável dos fatos da ordem natural e histórica. Entre a verdade que "desce"
na revelação do Sinai e na encarnação de N. S. Jesus Cristo e a verdade que
"sobe" dos fatos sensíveis ao sentido eterno que neles se manifesta, aí
residem precisamente o desafio e a tarefa do filósofo, erguido assim ao
estatuto de pontifex, de construtor de pontes entre os dois mundos que o
homem habita simultaneamente. Que a construção seja trabalho inesgotável e
altamente problemático, que ele seja sistêmico e orgânico por vocação mas
jamais redutível a um sistema perfeito e fechado, eis o que dá à filosofia
tomística a peculiar tensão intelectual que o torna, para nós, de uma rara força
estimulante.
Essa tensão reaparece, sob formas diversas, em mil e um pontos da doutrina
tomística. Um deles, realçado no belo estudo que Luiz Jean Lauand antepôs à
sua tradução (de parceria com Mário Bruno Sproviero) de duas "questões
disputadas" do mestre, é que a noção mesma de "conhecimento", nessa
doutrina, tem seu fundamento último na teologia da criação: "Não é possível
apreender o núcleo da expressão 'verdade das coisas' - ele simplesmente nos
escapa - se nos recusarmos a pensar as coisas expressamente como criaturas,
projetadas pela intelecção de Deus, que pensa-o-ser... O ser-pensado das
coisas por Deus fundamenta a sua inteligibilidade para o homem." (8)
Na entrada do ciclo moderno, Descartes, ignorando por completo esse item da
doutrina tomística, retornará à noção de Deus como fundamento do
conhecimento, mas compreendendo-O apenas como garantia externa da
conexão entre o ego pensante e o mundo físico. Que diferença entre essa
justaposição mecânica de três fatores e a reabsorção tomística de sujeito e
objeto na sua condição originária de criaturas!
Por isso mesmo é puramente metonímica - e, se tomada ao pé da letra, até
insultuosa - a noção vulgar que apresenta Tomás como o homem que se
dedicou a "harmonizar teologia cristã e filosofia grega". Harmonizar doutrinas
seria antes trabalho de um erudito de gabinete, não de um filósofo. Tomás é
um filósofo, e não menor do que seu mestre Aristóteles, justamente porque o
que ele busca não é a harmonia entre doutrinas prontas, mas o elo perdido
entre dois universos de experiência: a experiência do apelo divino, a
experiência do mundo sensível. O que ele busca é a absorção de toda a
realidade num sentido espiritual, e não a solução de um problema dogmático-
administrativo.
Que esse empreendimento tivesse também, no contexto histórico imediato,
uma tremenda importância política que passou despercebida a seus
contemporâneos, os quais por isto precipitaram a Igreja numa longa sucessão
de quedas e humilhações que ainda está longe de ter-se esgotado, é um
desses casos de engano geral ante um acerto individual, que mostram, acima
de toda possibilidade de dúvida, que a verdade aparece com mais facilidade à
71
alma do homem singular empenhado em conhecê-la do que à autoridade
coletiva, mesmo quando respaldada em garantias divinas de última instância.
Tomás compreendia, mais que ninguém, que da tensão harmônica entre o
espiritual e o sensível dependia a sobrevivência da própria Igreja enquanto
instituição, e mais ainda a do sacrum imperium que deveria representar a forma
histórica por excelência da civilização cristã, a encarnação da Igreja na história.
Por isso ele insistia na compreensão simbólica da natureza, que integra as
ciências do mundo físico numa visão metafísica que é, em essência, a mesma
que se depreende da revelação evangélica. (9)
A dissolução da síntese civilizacional da Idade Média e a quebra da unidade da
Igreja acompanham pari passu a divisão irrecorrível de "ciências sagradas" e
"ciências profanas", que, a partir do século XIII, e contra a intenção manifesta
de Tomás, foi suprimindo destas últimas toda significação espiritual, até torná-
las independentes e hostis a qualquer consideração de ordem metafísica, para
não dizer teológica, de modo que não resta ao apologeta cristão senão tentar
harmonizar a posteriori ciência e teologia, num esforço vão de reduzir a uma
linguagem comum conclusões obtidas por métodos incompatíveis e
mutuamente excludentes. No século XIX, a ciência da natureza já se declara
inimiga aberta da religião cristã. Acuados, os cristãos mal conseguem resistir,
no século seguinte, à tentação de apegar-se, in extremis, à conciliação falsa e
oportunista elaborada pelo Pe. Teilhard de Chardin, prostituindo a religião no
leito da ciência e vice-versa. (10)
Ao mesmo tempo, o simbolismo da natureza, expelido do mundo católico
"oficial", era açambarcado pelas seitas heréticas e gnósticas, que o
modificaram a seu belprazer -- embaralhando as criteriosas distinções que nele
Tomás havia estabelecido entre o racional e o supersticioso, entre o divino, o
natural, o humano e o demoníaco -- e fazendo dele a base de não sei quantas
concepções mágicas e loucas que deram origem às sociedades secretas
revolucionárias do século XVIII, (11) ao florescimento mórbido de pseudo-
espiritualismos no século XIX (12) e por fim à grande farsa da New Age nos
anos 60 do século XX. (13)
Tal como a divisão de racionalismo e empirismo - cuja unidade dialética, no
entanto, transparece tão nitidamente na filosofia do próprio Tomás --, a ruptura
entre religião e ciência solapava a base mesma do sacrum imperium e da
inserção da Igreja no mundo como Mater et magistra do devir histórico.
Perdido o elo essencial entre o espiritual e o sensível, era inevitável que se
rompesse mais cedo ou mais tarde a unidade da Igreja com o corpo político da
sociedade, como de fato veio a acontecer com o advento das monarquias
nacionais, condenadas à morte já no nascedouro, e, em seguida, do moderno
Estado leigo, no qual a autoridade religiosa recua para o domínio privado
enquanto a esfera pública é entregue à guarda daquela mistura inextricável de
72
cientificismo, ocultismo e ideologias revolucionárias milenaristas, que compõe a
fórmula da típica mixórdia mental do intelectual moderno.
Paralelamente, o credo cristão, ao perder sua função orgânica na sociedade,
perde também, sobretudo no meio protestante, a flexibilidade e a sabedoria
medievais, enrijecendo-se num moralismo incompatível com a vida prática
moderna e impondo às almas uma carga pesada demais, que elas acabam por
rejeitar ante as ofertas tentadoras de uma vida mais fácil e confortável no seio
do agnosticismo e da indiferença espiritual.
O humilde pároco de aldeia de Bernanos, encarnação de valores da França
medieval no seio do clero moderno, compreendia ainda, como a Igreja de São
Luís e de Joana d'Arc, que numa paróquia -- e a paróquia simboliza o mundo
humano em geral --, o pecado e a graça vivem num estado de equilíbrio
instável cujo centro de gravidade, no entanto, é "baixo, muito baixo". Ele
compreende isso, mas não consegue transmitir essa verdade a seus
superiores, típicos representantes do clero moderno, tão enrijecidos numa
moral monástica incomunicável com a complexidade do mundo quanto, por
outro lado, flácidos e complacentes ante o atrativo intelectual de idéias
modernas cuja periculosidade lhes escapa porque elas não ofendem
diretamente o receituário moral em que se resume o seu cristianismo.
Estudando a história dos costumes medievais, (14) surpreende-nos observar o
quanto a Igreja daqueles tempos era tolerante e compassiva com fraquezas
humanas que, num período posterior, bastariam para expor um pecador à
execração geral, principalmente no ambiente protestante cujo advento
condensa simultaneamente as duas tendências opostas e inseparáveis
nascidas da quebra da unidade medieval: o recuo da religião para a esfera
privada e a adoção de rígidos critérios de moral monástica para toda a
sociedade civil. Um caso como o de Jimmy Swaggart, o pregador fervoroso
submetido a humilhação pública e obrigado a abandonar o magistério por conta
de um simples pecado carnal, seria impensável na Idade Média: o pecador
confessaria seu erro e voltaria ao púlpito com mais entusiasmo ainda,
arrebatado pela efusão da Graça. Seu arrependimento seria propagado de
cidade em cidade e, no ambiente fortemente emocional da época, suscitaria
lágrimas de comoção entre os fiéis.
É um erro enorme, criado pela propaganda anticristã, imaginar a "igreja
institucional" como sede do moralismo autoritário e portanto a supressão da
autoridade pública da Igreja como uma libertação da consciência pessoal. A
religião medieval, justamente por sua participação imediata no mundo social e
político, podia ser mais compreensiva e flexível justamente porque arcava com
parte da responsabilidade pela esfera mundana, onde o centro de gravidade é
"baixo, muito baixo". Recuando para a esfera privada, ela se imbui de um
monasticismo deslocado e intolerante, ao mesmo tempo que, para piorar as
73
coisas, o Estado, prevalecendo-se de seu prestígio de libertador e progressista,
se aproveita da ocasião para impor a populações desmemoriadas toda sorte de
exigências tirânicas que elas aceitam porque não vêm sob a chancela de um
dogma religioso, mas sob a bandeira da liberdade e das luzes. Qualquer papa
medieval consideraria um pecado contra a ordem divina do mundo humano
tentar derrubar um governante bom e eficiente sob a acusação de vida
dissoluta ou corrupção pessoal, pois sabia que, na paróquia como no mundo, o
bem comum está acima das exigências de perfeição individual. Uma igreja sem
responsabilidade de governo não tem por que se preocupar com isso, e pode,
a pretexto de moral, ajudar a desequilibrar a ordem social e facilitar a ascensão
de insensatas ambições revolucionárias.
Tudo isso já estava, de certo modo, previsto e remediado na filosofia de
Tomás. Quando ele sonda os "processos ocultos da natureza", (15) admite a
existência de fundamento na quirologia e na alquimia, (16) distingue entre
adivinhação natural e demoníaca (17) ou estabelece os limites entre um estudo
científico e uma abordagem supersticiosa da influência dos astros na conduta
humana, (18) só a extrema covardia ante a hegemonia do cientificismo
moderno pode levar um intérprete cristão a depreciar tudo isso como meros
passos obscuros de um precursor canhestro da ciência materialista. Bem ao
contrário, esses aspectos que muito tempo foram tidos como menores e
marginais na interpretação do tomismo representam, para nós hoje, a mais
bela promessa de um resgate cristão do simbolismo da natureza, que já por
tempo demasiado permanece refém de feiticeiros, gnósticos e heréticos,
parceiros ocultos do cientificismo dominante.
Felizmente, ainda está em tempo de reconquistar o terreno perdido. Para isso,
é preciso apenas reencontrar o sentido da filosofia cristã da natureza, sem a
qual uma filosofia cristã da sociedade e da política não passará nunca de um
arranjo improvisado ex post facto e sempre sujeito a ser explorado em
benefício de ideologias anticristãs. Mas essa reconquista pressupõe
inteligências capazes de inspirar-se no exemplo de Tomás - capazes de
suportar a tensão criadora entre o imanente e o transcendente, entre o natural
e o espiritual, e de se abrir à variedade dos fatos com a certeza absoluta de
que, malgrado suas aparências contrastantes e assustadoras, por eles fala a
voz do Divino Salvador. Muitos dizem que a Igreja de hoje precisa de santos.
Mas o próprio Tomás dizia que um pouco de santidade com muita sabedoria
era preferivel a muita santidade com pouca sabedoria. Talvez o que a Igreja de
hoje precise é de inteligências desassombradas, capazes de não recuar nem
mesmo ante a hipótese da vaca voadora.
19 de maio de 2001
74
1 Diretor do Seminário de Filosofia do Centro Universitário da Cidade
(UniverCidade). Autor de Aristóteles em Nova Perspectiva (Rio, Topbooks,
1998), O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (Rio, Faculdade
da Cidade Editora, 1997), O Futuro do Pensamento Brasileiro (Rio, Faculdade
da Cidade Editora, 1998), Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão: a
Dialética Erística de Arthur Schopenhauer (Rio, Topbooks, 1999), O Jardim das
Aflições. De Epicuro à Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a
Religião Civil (Rio, Diadorim, 1995; 2a. ed., São Paulo, É Realizações, 2000) e
outras obras. Colunista dos jornais O Globo (Rio de Janeiro), Zero Hora (Porto
Alegre) e Jornal da Tarde (São Paulo) e das revistas Época e Bravo!. Website:
http://www.olavodecarvalho.org.
2 F. W. J. von Schelling, On The History of Modern Philosophy, transl. Andrew
Bowie, Cambridge University Press, 1994, p. 42.
3 V. Olavo de Carvalho, "René Descartes e a Psicologia da Dúvida",
comunicação apresentada no Colóquio Descartes da Academia Brasileira de
Filosofia, Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 9 de maio de 1996. Transcrição
completa no website do autor.
4 Les Corps Célestes dans l'Univers de Saint Thomas d'Aquin, Louvain,
Publications Universitaires, 1963.
5 Jacques Maritain Center:
http://www.nd.edu/Departments/Maritain/etext/gc.htm.
6 Eric Voegelin, History of Political Ideas, vol. II, The Middle Age to Aquinas, ed.
Peter von Sievers, Columbia, University of Missouri Press, 1997, p. 215.
7 V. a propósito Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições. De Epicuro à
Ressurreição de César: Ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil, 2a. ed.,
São Paulo, É Realizações, 2000, Cap. I, §§ 2-3.
8 "Introdução" a: Sto Tomás de Aquino, Verdade e Conhecimento. Questões
Disputadas "Sobre a Verdade", "Sobre o Verbo" e "Sobre a Diferença entre a
Palavra Divina e a Humana", trad. Luiz Jean Lauand e Mário Bruno Sproviero,
São Paulo, Martins Fontes, 1999.
9 V. Seyyed Hossein Nasr, The Encounter of Man and Nature. The Spiritual
Crisis of Modern Man, London, Allen & Unwin, 1968.
75
10 V. Wolgang Smith, Teilhardism and the New Religion. A Thorough Analysis
of the Teachings of Pierre Teilhard de Chardin, Rockford (Illinois), Tan Books,
1988.
11 V. James H. Billington, Fire in The Minds of Men. Origins of the
Revolutionary Faith, NewYork, Basic Books, 1980.
12 V. René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d'une Pseudo-Réligion, Paris,
Éditions Traditionnelles, réed. 1978, e Peter Washington, O Babuíno de
Madame Blavatski. Místicos, Médiuns e a Invenção do Guru Ocidental, trad.
Antônio Machado, Rio, Record, 2000.
13 V. Russel Chandler, Compreendendo a Nova Era, trad. João Marques
Bentes, São Paulo, Bompastor, 1993, assim como Olavo de Carvalho, A Nova
Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL e Stella
Caymmi Editora, 2a. ed., 1997 (há transcrição completa no website do autor).
14 V. Life in the Middle Ages, selected and annotated by G. G. Coulton,
Cambridge University Press, 4 vols., 1954.
15 Cf. De occultis operibus naturae, Opera, 27, 504-7.
16 Meteor., III, 9.
17 Summa, II, ii, 95, art. 5.
18 Contra Gentiles, III, 82-87.
Tocqueville e o totalitarismo
Caro Olavo,
Resolvi comprar o livro Democracia na América após ler os seus elogios sobre
ele, mas já na primeira parte, surgiu uma dúvida: Tocqueville fala que a religião
protege os homens contra paixões insensatas de tudo conhecer, portanto de
tudo mudar, acabando assim com a paixão pela igualdade que ameaçava a
liberdade. Mas só que a religião impedia a tirania da igualdade para instaurar a
tirania dos costumes. Pois eram os costumes religiosos que influenciavam as
76
leis como a pena de morte para os adúteros, separação das crianças dos pais
que não as colocavam na escola, passando a guarda para a sociedade, e até
leis que proibiam o tabaco! (Code 1650).
Estas leis não eram impostas mas sim votadas pelo livre concurso dos
interessados. Não acho que podemos isentar a religião neste caso, culpando
só o estado civil da época, já que "O puritanismo era quase tanto uma teoria
política quanto uma teoria religiosa, e que ele se confundia em vários pontos
com as teorias democráticas e republicanas mais absolutas."(Pág.43) A política
e a religião eram tendências diversas, mas não contrárias. Os costumes
religiosos influenciavam as leis de caráter tirânico, que eram realmente
cumpridas, como mostra o autor. Como eu já li a sua apostila Humanismo e
Totalitarismo,eu pergunto pro senhor: Será mesmo que as outras épocas não
conheceram o totalitarismo? Com certeza era um totalitarismo em menor
escala, mas não deixa de ser uma semente do totalitarismo vindouro. Será que
a religião não está isenta de culpas pelo totalitarismo na América de outra
época? Podemos dizer também que as leis da sociedade puritana não
influenciaram em nada o totalitarismo posterior? Segundo uma dedução do
próprio Tocqueville, é bem capaz, já que "As leis conservam seu caráter
inflexivel,quando os costumes já se submeteram ao movimento do tempo." Há
por acaso uma data ou um período que mostra que os costumes religiosos
deixaram de ditar as leis? Se há, será que durante essa transição não houve
influência do espírito tirânico dessas leis sobre o novo sistema legislativo? Se a
igualdade exagerada é uma ameaça à liberdade, até que ponto também é a
religião? Fico por aqui, agradecendo desde já pela atenção.
Um abraço,
Marcelo Wick
Resposta de Olavo de Carvalho
Sua pergunta é enormemente complicada, pois não existe "a" religião, e sim
uma multidão de fenômenos diversos e às vezes heterogêneos que recebem
nome. Já no próprio exemplo que você cita, o puritanismo é uma dissidência de
uma dissidência, uma espécie de cristianismo de terceiro grau, e como tal
evidentemente haverá pontos de semelhança e de diferença entre ele e o
tronco remoto do qual proveio.
De modo geral, a idéia de um controle total do governante sobre os indivíduos
só aparece realizada nos antigos impérios "cosmológicos" ~ Egito, Babilônia,
China. Já em Platão (República), a vaga recordação de um Estado "perfeito" na
qual parecem flutuar resíduos do modelo egípcio é projetada para o futuro, ou
77
para um tempo abstrato: a u~topia é também u~cronia. A idéia reaparece no
Renascimento, insuflada pela onda de nostalgia platônica e pitagórica. Vem
tingida de três novas nuances: a ciência matematizante da natureza, a
autoconfiança prometéica no poder do homem e a influência de seitas
gnósticas persuadidas de que o mundo criado é o mal e deve ser substituído
por um mundo inventado pelo homem. Eric Voegelin (History of Political Ideas)
assinala ainda o impacto que as vitórias de Tamerlão tiveram sobre a mente
ocidental, promovendo a imagem do governante todo-poderoso que, pela sua
força, engenho e sorte, se coloca acima do bem e do mal (tal a origem do
Príncipe de Maquiavel). A influência conjugada das seitas gnósticas e da nova
mitologia do rei onipotente está na origem das idéias modernas de absolutismo
e de razão-de-estado, sem as quais a possibilidade de um controle oficial sobre
as vidas dos indivíduos não é sequer pensável.
Daí por diante, fica difícil distinguir, na ascensão do domínio oficial sobre os
homens, o que é de origem estatal, o que vem das autoridades religiosas. O
que é certo é que tanto aquele quanto estas já estavam sob o domínio de
concepções que não têm nada a ver com o cristianismo tal como conhecido
antes disso. Também é certo que, pelo lado oficial, o "ancien régime", mesmo
intoxicado de razão-de-estado, conservou muitas das liberdades medievais
pelo menos até a Revolução Francesa. Ninguém compreenderá a brutal
diferença entre a liberdade antiga e a tirania moderna se não souber que a
idéia mesma de uma lei uniforme para todos os habitantes de um território
nacional só se implantou com a Revolução; que, antes disso, a diversificação
em direitos regionais e municipais, prerrogativas de casta, de ofício, de família,
etc. era tão complexa que nenhum governante nacional podia sequer sonhar
em ter sobre a população o controle que desde então se tornou coisa banal e
corriqueira; é à luz de uma ilusão retroprojetiva que "leis como a pena de morte
para os adúteros, separação das crianças dos pais que não as colocavam na
escola, passando a guarda para a sociedade, e até leis que proibiam o tabaco",
para citar os seus exemplos, adquirem alcance comparável aos controles
exercidos por governos modernos, seja ditatoriais, seja mesmo democráticos.
Só a título de comparação, note que o governante mais poderoso do "Ancien
régime", Luís XIV, para formar um exército de 140 mil homens, o maior da
Europa então, teve de ir pessoalmente de cidade em cidade implorar que as
pessoas se alistassem, ao passo que o governo da Revolução recrutou um
milhão de soldados em poucas semanas implantando o serviço militar
obrigatório e a pena de morte para os recalcitrantes. Outro exemplo: até o
Renascimento, os papas não tinham sequer a autoridade de nomear os bispos,
que eram escolhidos por negociações locais. Outro ainda: a posição dos judeus
na sociedade, durante toda a Idade Média, variava de cidade para cidade,
numas vigorando sua exclusão dos cargos públicos, noutras esses cargos
78
sendo praticamente monopolizados por eles. Não resta dúvida: o controle
central é, no Ocidente, invenção moderna. À luz desse fato, não tem sentido
atribuir o mesmo peso a uma lei moderna e a uma lei antiga cujo conteúdo
verbal seja semelhante. A idéia mesma de uma lei uniforme para toda a nação
surge por obra dos humanistas, que promovem a restauração do Direito
Romano com sua concepção de unidade sistêmica, totalmente ignorada na
mixórdia do direito local e consuetudinário vigente na Idade Média. Ora, sem lei
uniforme é contra-senso falar de totalitarismo. Não deixa de ser elucidativo que
o país europeu que mais se conservou imune a qualquer tentação totalitária, a
Inglaterra, fosse também aquele que mais conservou os direitos medievais, por
confusos que fossem, preferindo a confusão da variedade ao risco de uma
unidade tirânica.
Que pudesse haver tiranias locais e diferenças de maior ou menor
autoritarismo de época para época é um fato que não as torna de maneira
alguma "sementes" do totalitarismo moderno, pois não há relação causal ou
continuidade entre uma coisa e outra. Quando mais não fosse, pela razão
seguinte: nenhuma dessas tiranias jamais se legitimou através de uma teoria,
de uma doutrina, que pudesse permanecer após o fim do regime e influenciar
as gerações seguintes. A continuidade de um "modelo" supõe a continuidade
da sua fórmula ideal, e a fórmula ideal do governo absoluto só surge mesmo no
Renascimento, vinda da fusão do novo modelo do déspota oriental, que
enfeitiçava todas as consciências, com o princípio de ordenação racional
trazido pelo direito romano e pelas novas concepções científicas. O
totalitarismo no fim das contas é isso: despotismo científico. Quando
Tocqueville assinala o parentesco entre o totalitarismo e a ilusão de saber tudo,
ele acerta na mosca: sem a idéia da ciência total não há legislação total, nem
portanto governo totalitário.
A resposta, portanto, é não. Não há em toda a história ocidental antes do
Renascimento nada que se assemelhe ao totalitarismo moderno.
01/05/00
Educação Liberal
Palestra de Olavo de Carvalho
Rio de Janeiro, 18 de Outubro de 2001
Transcrição: Fernando Antônio de Araújo Carneiro
Revisão: Patrícia Carlos de Andrade
Sem revisão do professor
79
Agradeço comovido as palavras do deputado Carlos Dias e da minha querida
amiga Mina Seinfeld 1. E, aliás, essa é não somente uma oportunidade para
ela falar a meu respeito, mas para contar também algumas coisas a respeito
dela. A professora Mina está envolvida numa luta que é paralela à minha, onde
encontra condições muito parecidas. Nós dois estamos envolvidos na luta
contra as drogas, apenas a espécie de droga é que muda: sobre as drogas de
que ela trata, ainda há a discussão de se serão liberadas ou não, ao passo que
as drogas de que falo, não apenas estão liberadas, como são obrigatórias. A
diferença é mais ou menos esta. Mas, neste esforço monumental e meritório da
professora Mina, ela encontra a mesma resistência que encontro na minha
área, porque todos estão contra: os drogados, os traficantes, os que têm
interesse político na coisa, os indiferentes e todos aqueles que querem parecer
bonzinhos - todos os politicamente corretos. E, de fato, quando você vai para
um debate é exatamente como ela descreveu: são trinta pessoas para falar a
favor e uma contra e depois, na transcrição, ainda cortam umas frases do que
a pessoa falou e ficam lá somente três linhas, para provar que o debate foi
bastante democrático. Isto é pior do que não ter debate nenhum, é uma
falsificação.
Agradeço muito a meus alunos essa iniciativa. A idéia foi inteiramente deles,
que têm um grande mérito em fazer isto, abrir a outras pessoas a mesma
oportunidade. Nosso curso aqui no Rio tem sido quase que confidencial. Creio
que existe aqui há dezoito anos e nunca foi anunciado nem avisado; continua
existindo, não sei como. Em São Paulo há toda uma infra-estrutura montada, o
número de alunos é bem grande, e no Paraná são cento e cinqüenta alunos. É
um pouco estranho que aqui no Rio de Janeiro, que ainda é a capital cultural
do Brasil, nosso curso seja tão secreto assim. Não me incomodo se dou aula
para um, dois ou cem alunos: o problema é exatamente o mesmo. Ademais,
esse tipo de ensino requer muito tempo para dar frutos. Calculo mais ou menos
dois anos, para a pessoa começar a perceber o que está mudando em sua
vida, no seu enfoque existencial.
Agora, o tema de hoje, que é a educação liberal, é mais abrangente do que a
proposta do meu curso; o curso é uma das modalidades, um dos capítulos do
que chamaríamos de educação liberal. Liberal não se confunde com o
liberalismo político, a ideologia de Adam Smith, Herbert Spencer e outros, nem
com o sentido da palavra liberal nos Estados Unidos que quer dizer
esquerdista, mas tem a ver com a noção, hoje em dia puramente nominal, de
profissões liberais. Profissões liberais, como o próprio nome diz, se opõem às
profissões servis, que são exercidas em troca de uma remuneração. Profissões
liberais são exercidas num ato de liberalidade do indivíduo; ou seja, o
profissional liberal está de algum modo obrigado a exercer a sua tarefa
80
somente por um mandamento interno, somente por um dever interno, e ele tem
que exercer aquilo com ou sem remuneração, ou até mesmo pagando para
exercê-la. Esse é o sentido originário. Por exemplo, o médico na ética da idade
média não poderia jamais recusar um paciente que não tivesse dinheiro para
pagá-lo; o advogado a mesma coisa. E, por isso mesmo, quando havia uma
remuneração, esta se chamava honorário. Honorário é algo que damos ao
indivíduo não pela tarefa que ele desempenhou, mas em reconhecimento da
honra de sua posição na sociedade ou do mérito de seu saber. Tanto faz dar
cinqüenta centavos ou cinqüenta mil, porque o que vale é a intenção.
Hoje em dia, não é mais assim. Quando consultamos um advogado a primeira
coisa que ele faz é puxar uma tabela de honorários. A expressão tabela de
honorários é uma contradição de termos, pois se são honorários, não há
tabela. Tabelas são de salários ou de preços, tabela de honorários não é
possível.
Na idade média, a formação para as profissões liberais começava com a
absorção do que se chamava as artes liberais. Eram um conjunto de
disciplinas, das quais três tratavam essencialmente da linguagem e do
pensamento e quatro tratavam dos números, entendidos num sentido muito
mais amplo do que hoje estamos acostumados a designar por este nome, e
das proporções. O número seria o sentido geral da forma e da proporção. As
quatro disciplinas que lidavam com o número eram a aritmética, a geometria, a
música e a astronomia ou astrologia. A astrologia veio a se dividir em duas
áreas: a astrologia esférica, que era o estudo da esfera celeste, e a astrologia
judiciária, que era o que hoje chamamos de astrologia - uma especulação, seja
científica ou outra coisa, sobre as coincidências temporais entre o que se
passa no movimento dos astros e os acontecimentos terrestres. Tudo isso era
considerado parte das matemáticas, ou seja, a matemática era, de modo geral,
a ciência da medida e da proporção. As outras três disciplinas eram a
gramática, a lógica ou dialética, e a retórica.
Esta formação básica, que geralmente começava bem mais tarde do que hoje,
aos quatorze anos, visava a transmitir ao indivíduo, por um lado, o senso das
proporções, o senso da forma do mundo e, por outro lado, os meios de
compreensão, expressão e participação na cultura humana 2.
O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais
antigas, feita sobretudo por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler
3, no começo de século . Nesta adaptação, as artes liberais deixam de se
distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional.
Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades
profissionais; as artes liberais, em contra-partida, visam a formar o cidadão em
geral, o cidadão não especializado. Mais especificamente com a ênfase na
idéia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo sistema
81
onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma
possibilidade de que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de
motivos desconhecidos que uma autoridade possa ter para decidir assim ou
assado.
A discussão é evidentemente inerente à própria idéia de democracia. Mas, por
outro lado, a discussão é perfeitamente inútil se não há nenhum critério
racional para arbitragem das discussões. Se não há nenhum meio de os lados
em disputa provarem as suas razões, ou seja, se todas as razões se
equivalem, então a discussão evidentemente não vai dar em nada e a coisa no
fim será resolvida pelo meio da força. Pode ser a força física ou a força
emocional, o apelo emocional da propaganda.
Adler e Hutchins eram pessoas que pensavam politicamente de maneira muito
diferente entre si: Adler era mais conservador e Hutchins era definitivamente
esquerdista. Mas, sabendo que há um compromisso inerente entre a idéia de
democracia e a idéia de razão, achavam que podiam organizar um novo
sistema de ensino não apenas baseado na tradição das artes liberais, mas na
experiência acumulada do ensino das elites americanas. Nos Estados Unidos,
antes mesmo da independência, se formaram vários colégios para a educação
da elite que, quase instintivamente, adotaram como mecanismo básico de
ensino, a leitura e a absorção do legado dos clássicos. Entendemos por
clássico, uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado
alguma contribuição que permanece eficaz ao longo dos tempos; aquela obra
que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita, ainda tem algo
a nos ensinar. Particularmente, e mais precisamente, se designam como
clássicas obras que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos
ensinamentos, que vão formando patamares sucessivos de consciência
humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha
mais o direito de descer abaixo daquele patamar.
Por exemplo, a partir do momento em que Aristóteles formula a ciência da
lógica não é mais possível discutirem-se legitimamente as coisas, como os
sofistas e Sócrates discutiam, utilizando uma lógica rudimentar, onde os
procedimentos de prova se confundiam provisoriamente a procedimentos
destinados a impressionar o ouvinte. O próprio Sócrates, que é um crítico dos
sofistas, incorre freqüentemente nesse tipo de argumentação. Não por maldade
evidentemente, mas simplesmente porque os dois tipos de argumentação, a
que visa a impressionar e a que visa a provar, não haviam ainda se distinguido
perfeitamente. Essa distinção só veio mesmo com Aristóteles. E a partir do
momento em que essa distinção fica estabelecida, cria-se uma espécie de
patamar de consciência: não temos mais o direito de ignorar a existência dessa
distinção 4.
82
A técnica da discussão e da prova foi elevada a nível de requinte quase
inimaginável, mais tarde, pelos filósofos escolásticos, que também fixam um
novo patamar de exigência. Depois surgem os processos de investigação e
prova aceitos nas ciências naturais e isto vai se acumulando como uma série
de patamares de exigência de modo que, teoricamente, não teríamos o direito
de entrar na discussão de um assunto ignorando esses patamares já
conquistados.
Dei o exemplo de patamares conquistados em filosofia, mas temos o mesmo
processo em cada uma das ciências e sobretudo nas artes. Por exemplo, o que
vai distinguir a escrita literária da escrita vulgar, nas artes literárias, é
precisamente a consciência de uma evolução dos meios expressivos da arte,
que a primeira traz dentro de si. A escrita literária é cheia de referências aos
antecessores; referências a toda uma evolução anterior. É praticamente
impossível encontrar um único verso da literatura moderna que não tenha
dentro de si várias camadas de significado que foram sendo acumuladas pela
evolução da poesia ao longo dos tempos. É evidente que, para o leitor
perceber isso, é preciso que ele próprio tenha noção dessa evolução anterior,
de modo que na medida que vai absorvendo esta consciência da evolução da
arte literária, a leitura que faz de um poeta moderno seria imensamente mais
rica do que a que poderia ser feita pelo sujeito que chegasse lá sem ter o
conhecimento das referências. Ou seja, essa evolução vai sedimentando novas
linguagens e novos códigos, cujo conhecimento é a condição para que se
possa participar, de uma maneira consciente, do mundo cultural, do mundo das
discussões, do mundo da comunicação.
A transmissão a um estudante ou a um jovem da consciência desses
patamares é que seria precisamente a educação liberal.
O sistema político moderno é enormemente complexo. Se compararmos
qualquer país hoje - Brasil, Uruguai ou Paraguai - com a República Romana,
veremos que sua organização política é imensamente mais complexa. Para
discutirmos um problema qualquer da economia ou da política paraguaias,
precisaríamos ter um horizonte de consciência muito mais vasto que o que o
cidadão romano ou o cidadão da democracia grega teriam que ter para
compreender seus problemas locais. A acumulação desses patamares de
consciência, portanto, forma a série de condições que, num dado momento da
evolução histórica, o ser humano precisa cumprir para entender o que está
acontecendo em torno dele. Entender o que está acontecendo não é não é um
dever e não é atribuição de uma profissão especializada, mas é, de certo
modo, uma possibilidade aberta a todos os cidadãos. Não podemos tornar isso
obrigatório porque a aquisição desse patrimônio depende de uma capacidade
83
pessoal e de uma disposição; uma vocação pessoal. Torná-lo obrigatório é,
portanto, utópico.
Eu não acredito em educação universal obrigatória, de jeito nenhum. Não
acredito em educação de quem não queira se educar. Acredito em
oportunidade universal de educação. Abrir para todos, sim, mas tornar
obrigatório é absolutamente inócuo.
A aquisição da consciência desses sucessivos patamares é uma possibilidade
que está aberta aos cidadãos que desejem compreender o mundo em que
estão. Porque o mundo atual não surgiu do nada, não foi inventado ontem,
resulta de milhões de decisões e ações humanas que foram se encaixando
umas às outras e que produziram resultados que não estavam sob o controle
de ninguém. O código civil de qualquer país do ocidente e, de fato, toda a
legislação moderna, por exemplo, certamente sofrem a influência do código de
Napoleão. Napoleão chamou uma comissão de juristas que escrevia de um
modo e ele riscava e dizia que não era daquele jeito, mas de outro. Ou seja, o
código saiu da cabeça dele e, a partir desse momento, o impacto foi formidável.
Mas se não temos consciência do modus raciocinandi, das razões que
Napoleão teve para fazer isto desta maneira e não de outra, sofremos o
impacto de novas legislações cujas razões profundas não conhecemos. Ou
seja, não estamos capacitados para discutir aquilo.
Hoje em dia todo mundo acredita que existe o direito à liberdade de expressão
e o direito à liberdade de opinião. Eu não acredito porque, para haver liberdade
de opinião é preciso, em primeiro lugar, haver uma opinião. Mas a maioria das
pessoas que exercem a liberdade de opinião não tem opinião. Para ter uma
opinião, preciso ter prestado atenção em algo. Freqüentemente vemos pessoas
que falam durante dez minutos sobre assuntos nos quais não prestaram
atenção nem por dois minutos. Então não posso chamar isso de opinião: isto é
uma efusão improvisada de palavras que brotam no momento da pessoa, mas
sem nenhuma relação com o objeto do qual ela está falando. Então se
acreditamos no direito universal à expressão das opiniões, que ele é um dado
primeiro e incondicional, significa que todos têm o direito de falar pelo tempo
que quiserem e todos têm a obrigação de ouvir. Então lhes pergunto: o que é o
direito à liberdade de opinião sem a contra-partida que é o direito de não ouvi-
la, o direito de ir embora? Por exemplo, nenhum de vocês está obrigado a ficar
sentado aí. Vocês estão porque querem, mas têm o direito de ir embora a
qualquer momento.
A própria idéia de direito à liberdade de expressão, à liberdade de opinião está
condicionada ao mérito da opinião, ao valor da opinião. E esse valor é
condicionado, no mínimo, pelo interesse que o próprio opinante tem no
assunto. Imagina que o sujeito não se interessou pelo assunto o suficiente para
se informar a respeito dele por cinco minutos que sejam. Por que ele teria o
84
direito de falar sobre o assunto durante seis minutos e teríamos que escutá-lo?
A conquista de uma opinião, portanto, é o primeiro passo para o exercício
efetivo da liberdade de opinião. É evidente que quando o indivíduo expressa
sua opinião numa assembléia, ele está de certa maneira se personificando;
está dizendo: este sou eu, sou o camarada que pensa assim e assado. Dali em
diante, ele será encarado como representante daquela opinião. Mas, se o
sujeito dá uma opinião que pensou na hora e da qual não vai se lembrar nos
próximos dez minutos, ele personifica o quê?
É só reparar um pouco nas discussões públicas que acontecem no Brasil e
percebemos um fenômeno esquisito. Sabemos que as pessoas lêem pouco; os
jornais de grande tiragem vendem hoje cerca de um milhão de exemplares,
sendo que vendiam o mesmo na década de cinqüenta. Ou seja, a população
cresceu formidavelmente, o número de escolas cresceu mais ainda, e as
pessoas continuam lendo a quantidade de jornais que liam na década de
cinqüenta. Quanto aos livros, não tenho cálculos mais atualizados, mas na
década de noventa havia menos livrarias no Brasil do que na década de
cinqüenta. Apesar dessa total falta de interesse em saber das coisas, as
pessoas sempre têm interesse em opinar. Dificilmente vemos um repórter
perguntar a uma pessoa na rua o que ela acha disso ou daquilo e receber
como resposta: não sei, estou por fora do assunto. Nunca vi isso. As pessoas
consultadas sempre têm opinião sobre qualquer coisa.
Vendo isso ao longo dos tempos, vi que esse é um traço antropológico muito
estranho: uma sociedade onde as pessoas não se interessam pelo assunto,
mas têm um interesse brutal em opinar a respeito dele. Não estranhamos isso
apenas porque já nos acostumamos, mas essa é uma conduta anormal. É uma
anomalia que, repetida ao longo do tempo, acabamos achando que é normal.
Ora, se tentamos convencer as pessoas de que existe um negócio chamado
cidadania e que esta inclui o direito de opinar sobre questões públicas - e todos
estão persuadidos disso - e ao mesmo tempo não cria a percepção de que
para ter uma opinião é necessário ter prestado atenção no assunto, o que
estamos fazendo com essa cidadania? A está transformando numa espécie de
bolha de sabão, numa fantasia, numa mentira e numa paródia de si mesma. A
noção de cidadania e de exercício da cidadania faz sentido a partir do
momento em que as pessoas têm realmente opiniões, não confundindo a
opinião com uma efusão qualquer de palavras que brota do inconsciente ou
que foi ouvida num anúncio de rádio anteontem e o sujeito repete. Esse tipo de
falatório é a degradação da liberdade de opinião, ele não é a própria liberdade
de opinião. Sobretudo porque se espera que o exercício da liberdade de
opinião contenha dentro de si a possibilidade de uma repetição, de uma
reiteração e de uma luta pela própria opinião. Supõe-se que a opinião de um
indivíduo valha algo para ele e, por isso, ele luta por ela. Mas se o sujeito não
85
precisou pensar no assunto, se a opinião não lhe custou nada, quanto ela vale
para ele? E a pergunta fatídica: por que devo prestar atenção à sua opinião por
mais tempo que você levou para formulá-la? Se você levou dois minutos
pensando no assunto, por que devo ouvi-lo durante três? Quando queremos
que os outros façam o que não quisemos fazer, que sejam o que não somos,
entramos diretamente no culto à Papai Noel. E chamar isso de formação da
cidadania é achar que puerilizar as pessoas é torná-las cidadãos. Um homem
que acha que os outros têm obrigação de ouvi-lo só porque ele é bonitinho é
exatamente como aquela criança que, quando vem visita em casa, começa a
fazer palhaçada e todos têm que achar bonito e passar a mão em sua cabeça.
Qualquer cidadão que se atreva a falar em púbico com essa expectativa está
se aviltando, está permitindo que a situação lisonjeie seus desejos pueris.
Evidentemente não é esse tipo de formação do cidadão a que visamos.
Educar o cidadão em primeiro lugar não é educá-lo para falar, mas é educá-lo
para saber, quer ele fale ou não. A famosa participação é apenas um exercício
de uma força interior, de um poder que o indivíduo tem. A educação liberal
consiste em dar a ele este poder, esta força interior e não em lhe dar os meios
e as oportunidades de exercê-los.
Você já conheceu alguma pessoa que não tivesse nenhuma opinião sobre a
sociedade em que vivemos? Acho que a minha avó não tinha mas ela foi a
última pessoa. Se perguntasse isso para a minha avó ela perguntaria: " do que
está falando?" Ela nunca achou que existia essa possibilidade de ter uma
opinião geral sobre a sociedade em que estava. Mas a partir da minha geração,
ou talvez a de meus pais, todo mundo foi educado para ter uma opinião sobre a
sociedade, ou seja, exercer uma coisa que se chama a crítica social. Qual é
sua real possibilidade de ter uma visão crítica da sua sociedade? Em primeiro
lugar, para isso você precisaria ter uma idéia do funcionamento da sociedade.
Isso leva algum tempo; é um pouco trabalhoso. Mas mesmo que tivesse a
visão geral, você acredita realmente que o membro de uma sociedade
consegue colocar a cabeça para fora dela, acima dela, e julgá-la desde cima?
Se todos somos de certo modo produtos da sociedade em que estamos,
nossas opiniões, incluindo as negativas que sobre a própria sociedade, são
criações dela mesma e fazem parte do mesmo mal que denunciam. A única
possibilidade de haver uma crítica social legítima, que funcione, é a de que o
indivíduo humano de algum modo se coloque acima da sociedade e consiga
ver nela algo que ela mesma não vê. É necessário que a consciência dele
esteja acima do nível de consciência que aparece nas próprias discussões
públicas. Para criticar minha sociedade como um conjunto, preciso me colocar
numa perspectiva que me permita vê-la como objeto, e daí já não sou mais um
personagem ou um participante da coisa, mas um observador superior;
consegui uma posição acima da confusão, de onde posso ver o que está
86
acontecendo e julgar o sentido geral das coisas. Assim como para opinar numa
briga entre marido e mulher é preciso que você não seja nenhum deles.
Quando um casal com um problema vai procurar um conselheiro matrimonial
ou um psicólogo, está supondo que ele tem um ponto de vista superior a cada
um deles.
No que consiste esse ponto de vista superior? Consiste em que se tenha um
critério de julgamento que se sobrepõe às paixões e interesses em jogo
naquele momento. Supõe-se, portanto, que você tenha um conhecimento que o
restante da sociedade não tem. Dito de outro modo, você julga a situação real
à luz de uma norma, mas esta norma só será válida se não tiver sido criada
pela própria situação. Vamos voltar ao exemplo do marido e mulher: a mulher
está acusando o sujeito de não trazer dinheiro suficiente para casa e ele a está
acusando de não desempenhar as tarefas domésticas a contento. Qual a
norma que vai servir para julgar? Pode ser a opinião de um ou a opinião do
outro? Não, a norma tem que ser uma terceira coisa que sirva para arbitrar as
duas ao mesmo tempo. Ou seja, você tem que ter uma medida do justo e do
injusto e esta medida não pode ter sido criada nem pela opinião de um, nem
pela opinião do outro. No caso, trata-se de uma proporção entre direitos e
deveres. É só o conhecimento dessa norma ou dessa proporção que lhe
permitiria julgar a situação e ver qual é a cota de razão e de desrazão que
haveria nessa discussão. O problema é: de onde vamos tirar essa norma. Se
ela foi criada pela própria situação, apenas expressa um dos lados em conflito.
Então ela tem que ser transcendente à situação. Assim como no julgamento de
um processo criminal, o sujeito matou outro, roubou outro, aplicou estelionato:
o tribunal vai julgar aquela situação à luz de uma lei que transcende a situação.
Se pegarmos nossa sociedade como um todo ou a parcela da história que
conhecemos, todos temos opinião a respeito, mas raramente nos preocupamos
com o problema da norma. Se digo que a sociedade é injusta, é injusta em face
de que norma? Qual é a norma com que estou julgando? Ou tenho uma norma
que seja efetivamente superior ao horizonte de consciência da discussão
pública, ou não posso julgar. Ou, então, estou tomando partido dentro de um
conflito e em seguida sou eu mesmo um membro desse conflito. Estou
raciocinando, portanto, em circuito fechado, como um cachorro que persegue o
próprio rabo.
Existem situações, no entanto, onde aparece um sujeito que tem um
conhecimento que a sociedade não tem. A história de Moisés na Bíblia, por
exemplo: Moisés faz uma crítica da situação, a situação do cativeiro dos judeus
no Egito. Ele acha que a situação está ruim por isso, por isso e por isso. E se
lhe dissessem que a situação é assim desde que o mundo é mundo? que
sempre foi assim e sempre será assim? Que sentido faz você criticar uma coisa
que não tem remédio de maneira alguma? A crítica estaria anulada. Mas
87
Moisés podia criticar, porque ele tinha conhecimento do que veio antes e do
que viria depois - o conhecimento profético. Tinha conhecimento de que seu
povo podia ser retirado dali e ir para um outro lugar onde teria uma vida melhor.
E de fato fez isto. Como sabemos que Moisés sabia algo que os egípcios não
sabiam? Porque provou que sabia. Com a travessia do Mar Vermelho, ele
provou que enxergava a situação dos judeus no Egito desde um ponto de vista
superior ao da situação real. Sabia que podia fazer e como fazer e, de certo
modo, conhecia o futuro. Esse futuro era invisível para os participantes da
situação. Era invisível tanto para os egípcios quanto para os judeus. Eles
demoraram quarenta anos para ouvir o que aquele homem tinha a dizer. Esse
é o protótipo da crítica social válida.
Outra crítica social válida também é feita por Sócrates. Sócrates critica uma
situação estabelecida à qual ele não se considera superior. Quando Sócrates é
condenado por um tribunal ateniense, se dirige a esse tribunal do ponto de
vista de um homem que já morreu. Ele praticamente se considera morto e diz:
olha, realmente não sei se vocês ao me condenarem me fizeram um malefício
ou um benefício, porque não sei exatamente o que é a morte; tenho a
impressão de que talvez seja melhor depois, que talvez vocês tenham me feito
um benefício. A consciência do desconhecimento da morte é uma norma válida
para o julgamento de qualquer situação humana. Todos sabemos que vamos
morrer; e todos sabemos que não sabemos precisamente o que é a morte, o
que se desenrola nela e depois dela. Isto nos dá uma base firme para julgar
todas as situações humanas.
Me lembro de uma conferência brilhante que o filósofo espanhol Julian Marías
fez no Brasil, na época em que a junta militar havia instituído a pena de morte.
Durante a conferência lhe perguntaram se era a favor ou contra a pena de
morte e ele disse: "sou contra por um simples motivo: não sei o que é a morte e
não tenho o direito de condenar um sujeito a uma coisa que eu não sei o que é;
sei o que é prisão, trabalhos forçados, mas morte, eu não sei o que é e esses
senhores também não." Então, na hora em que o indivíduo emite este
julgamento, coloca-se não apenas acima da discussão pública, mas quase que
infinitamente acima dela, porque a discussão pública é feita em termos de
posições relativas, de posições que podem ter sua validade maior ou menor
numa ou noutra situação. Mas, de repente, chega o filósofo e diz algo que
independe de toda a discussão. No meio das relatividades, ele entra com o
absoluto. O absoluto é este: não sei o que é morte e vocês também não
sabem, e ponto final. Nenhum de nós morreu para contar como é. Isto é o
senso da medida. Em certos momentos, portanto, a consciência pode se
colocar infinitamente acima das questões públicas e encará-las desde uma
medida supeiror que lhe permite um julgamento justo.
88
Infelizmente isso não acontece sempre. Freqüentemente nos debatemos em
questões onde nos falta a medida e não a encontramos. A única coisa que
sabemos é que esse senso da medida universal pode ser desenvolvido nas
pessoas pela consciência da dimensão histórica, pela consciência dos
sucessivos patamares de consciência alcançados ao longo do tempo. Porém, o
indivíduo que não recebeu a informação sobre este caso de Moisés, ou
simplesmente não meditou sobre o assunto, simplesmente não tem idéia de
que uma certa situação pode ser julgada em face de uma possibilidade
concreta de mudá-la. Note bem, não é um desejo de mudá-la, mas uma
possibilidade concreta conhecida de antemão. No caso, Moisés sabia porque
Deus contou para ele. Podia ter sabido de outra maneira. Mas ele não achava
que a situação dos judeus na época era ruim apenas porque sim, mas era ruim
em face de um poder do qual Deus tinha investido esse povo antes e em face
de uma promessa que Ele tinha feito para o futuro. Então, encaixando aquela
situação numa sucessão histórica perfeitamente conhecida, podemos dizer que
Moisés podia julgar que aquela prisão era ruim, porque ele sabia onde estava a
porta.
Agora, se estudarmos a história do século XX, veremos uma infinidade de
revoluções, golpes de estado, mudanças políticas feitas por pessoas que
criticavam a situação e que diziam poder mudá-la para melhor e que
produziram situações infinitamente piores. Na década de oitenta, por exemplo,
um cidadão soviético consumia menos carne do que um súdito do czar em
1913. Isto significa o seguinte: Lenin e Trotsky não sabiam onde estava a porta;
propuseram uma mudança não porque tinham perfeito conhecimento da
possibilidade concreta de realizá-la, mas apenas porque queriam. É o caso de
a gente dizer que este tipo de crítica social não é legítima: você está criticando
uma situação mas não é melhor do que a situação, é apenas um componente
dela; ou seja, a sua crítica não é uma crítica, é apenas uma queixa, é um
sintoma da própria situação, e portanto não podemos confiar em você para
resolver a situação. Na hora em que você passa por um sofrimento e diz 'ai', o
'ai' não é uma crítica válida da situação, é apenas uma expressão dela. Tanto
que dizer 'ai' não vai curar você de maneira alguma.
Ao longo de todo o século XX, vemos que a crítica social, em sua quase
totalidade, nunca passou de expressão ou de sintoma da situação. Raramente
se viu um empreendimento vitorioso de transformação da sociedade com base
na crítica, que produzisse exatamente o resultado prometido. Isto significa que,
desde o tempo de Moisés ou Sócrates, a nossa capacidade de crítica social
diminui formidavelmente. Simplesmente não entendemos a sociedade, não
gostamos da sociedade; gostaríamos de mudá-la, mas não chegamos a
perceber que nossa revolta e nosso próprio desejo de mudar são apenas
89
sintomas da própria situação social e, portanto, impotentes não somente para
mudá-la, mas até para fazer uma crítica objetivamente justa.
São essas constatações que nos colocam a necessidade de conquista de um
patamar ou de uma medida justa e universal, em função da qual a crítica possa
ser feita. Todo ser humano tem essa possibilidade e, de certo modo, tem esse
direito porque embora seja, sob muitos aspectos, um produto, um efeito ou
uma criação de sua sociedade, há algo nele que transcende a sociedade. Há
no mínimo a estrutura biológica. Não houve nenhuma sociedade que mudasse
substancialmente a estrutura anatomo-fisiológica do ser humano. Esta é uma
constante. Portanto cada um de nós pode dizer que é fruto da sociedade
brasileira? Bom, sou fruto da sociedade brasileira, mas sou membro da espécie
humana e, como membro da espécie humana, existem em mim fatores
estruturais constantes que já existiam antes de o Brasil existir e que vão
continuar existindo depois que o Brasil acabar. Portanto, como membro dessa
espécie animal chamada espécie humana, tenho em meu próprio corpo um
dado que transcende a situação histórica em que vivo. É claro que não é só a
estrutura anatomo-fisiológica do homem que transcende a situação histórica,
existem muitos outros aspectos.
Ao longo da história humana, muitos desses elementos estruturais, constantes
e universais foram se revelando à nossa consciência. E foram registrados em
obras, depoimentos e atos desses seres humanos. A aquisição desse legado é
o que é propriamente o que chamaríamos hoje de educação liberal, que, nesse
sentido, é a formação do cidadão consciente e portanto capaz de julgar não só
fatos da sociedade, mas a própria sociedade como um todo.
Formar um homem desses não é fácil. As situações vão se tornando cada vez
mais complexas e, de repente, vêem-se emergir no cenário da história
situações absolutamente novas que, apesar de todos os dados que acumulou
em toda a sua educação, você não é capaz de compreender. Surge, por
exemplo, um fenômeno como o totalitarismo moderno, como nazismo, fascismo
e comunismo - fenômenos supremamente esquisitos, que tudo o que a
humanidade ocidental sabia até o século XIX não bastava para explicar.
A idéia de que tratados internacionais fossem feitos não para ser cumpridos,
mas apenas para ser usados como armadilhas para os inimigos: isso foi uma
novidade na história. Até o século XIX todo mundo acreditava que tratados
eram para ser cumpridos. De repente aparece um estado, a União Soviética,
que acha que não é bem assim, que não é importante cumprir os tratados, mas
sim apenas assiná-los. De um momento para outro, os tratados se transformam
em instrumentos não para limitar a ação dos contratantes mas, ao contrário,
para dar mais possibilidades de ação contra os demais contratantes. Hitler
levou essa idéia a um nível alucinante: cada compromisso que Hitler assinou
90
foi assinado com a finalidade específica de não ser cumprido. Nos
acostumamos tanto com isso que hoje achamos natural.
Certas possibilidades de uso de violência assassina contra países inimigos não
entraram na cabeça humana antes do século XX. A guerra sem declaração de
guerra é um exemplo: você está em guerra com outro país mas não sabe; de
repente soltam uma bomba no seu território. Isso foi mais uma novidade do
século XX. Outro exemplo é o ataque sistemático às populações civis: não
existe mais a noção de campo de batalha. O que é campo de batalha? É o
lugar onde você vai para fazer a guerra. No século XX isso desapareceu. Não
há mais campo de batalha, há guerra onde você estiver.
Quando começaram a suceder, esses fatos deixaram as pessoas
desorientadas; não havia como explicar. Vemos, portanto, o avanço do
totalitarismo no século XX e a impotência da inteligência humana para explicar
esse fenômeno na época, já que somente hoje temos uma compreensão mais
adequada do fenômeno totalitário. Notamos, então, que às vezes acontecem
coisas novas e que mesmo a acumulação de todo o legado desses depósitos
de consciência adquiridos ao longo dos séculos não é suficiente para nos
situar. Seria necessária uma outra abordagem e as primeiras tentativas de
diagnóstico falham, porque estão comprometidas de certo modo,
inconscientemente, com o mesmo circuito produtor de idéias que geraram o
fenômeno. Você tenta investigar o fenômeno, mas faz parte dele; tenta
diagnosticar a doença, mas também está doente. Um exemplo característico é
o livro da Hannah Arendt sobre o totalitarismo. Ela investiga, investiga e pega a
pista certa: diz que os fenômenos totalitários não querem criar uma nova
sociedade, querem modificar a natureza humana. A pista é exatamente esta.
Só que, mais adiante, escorrega e diz que acredita na possibilidade de mudar a
natureza humana, apenas não por meios violentos. E com isso aí a descoberta
influencia a visão de quem descobriu, porque se é possível para o Estado
mudar a natureza humana por meios não-violentos então, prestem bem
atenção, a diferença específica do totalitarismo deixa de ser o projeto de mudar
a natureza humana e passa a ser apenas o emprego da violência. A
especificidade do fenômeno, portanto, se perdeu. Assim, Arendt não consegue
levar o diagnóstico até o fim. Mas ela escreveu o livro no calor do momento e
não podia enxergar a situação com toda a clareza; foi um dos primeiros
diagnósticos abrangentes que se tentou. Se investigasse mais um pouco veria
que, ao longo dos séculos, não surgiu nenhuma idéia ou doutrina política que
visasse a mudar a natureza humana. Todas tomavam a natureza humana,
fosse qual fosse, como pressuposto. Consideravam-na fenômeno de ordem
natural, cósmica, biológica, no qual a sociedade não pode mexer.
Foi só no século XX que se acreditou que, através da formação de um certo
Estado, leis, burocracia, se poderia mexer na própria natureza humana. É a
91
diferença que existe entre você ser um criador de animais, como vacas e
galinhas, ou você transformá-los em outra coisa: a idéia de transformá-los em
outra coisa rigorosamente nunca tinha aparecido na mente humana até o
século XX.
Hoje, passados cem anos, temos uma compreensão um pouco maior do
fenômeno totalitário, mas para isso foi necessário remanejar todo o legado de
conhecimentos e repensar a coisa sob mil aspectos. Embora não seja sempre
infalível, esse processo de recuperação do legado é a única esperança que
temos de entender a nossa situação existencial. Não existe nenhum outro
meio. Aliás, existe um outro meio; existe o que a Bíblia chama de sabedoria
infusa: Deus e os anjos infundem em você, sem que saiba. Vai dormir sem
saber e acorda sabendo. Tirando esta hipótese, a única outra hipótese que
existe é a da acumulação do legado da consciência humana ao longo dos
séculos. A finalidade da educação liberal é exatamente esta. E isto é simples:
consiste na aquisição dos documentos necessários, no estudo desses
documentos e na revivescência das experiências cognitivas e existenciais que
estão registradas nesses documentos. Ou seja, você vai ler a Bíblia, Platão ou
Aristóteles, não no sentido apenas de adquirir informação, mas no sentido de
tornar suas as experiências cognitivas que se registraram nesses documentos.
Por exemplo, Aristóteles insiste muito numa coisa que chama maturidade.
Maturidade não no sentido fisiológico, mas no sentido intelectual. O homem
maduro é o homem que teve certas experiências e aprendeu com elas. Uma
dessas experiências é a plena experiência da norma, da existência da norma.
A maior parte das pessoas simplesmente não teve isso; vê as coisas
acontecerem e as opiniões se entrechocarem, mas nunca chegou a
experienciar as famosas leis não-escritas de que fala a tragédia grega. Por
exemplo, em Os suplicantes de Sófocles, dois jovens gregos fogem do Egito,
onde o rei queria obrigá-los a um casamento que não desejavam, e vão parar
numa ilha. Nesta ilha pedem asilo ao rei local. O rei fica num dilema porque,
por um lado, havia uma tradição de dar asilo a quem pede e, por outro, dando
asilo ele se arriscava a uma guerra contra o Egito. Ele imediatamente
argumenta para os jovens: " na legislação egípcia não há nada que impeça o
rei de obrigá-los a casar com quem vocês não querem, portanto o rei do Egito
não cometeu nenhuma ilegalidade" . E eles respondem: " é, mas acima das leis
do Egito há as leis não-escritas, há as leis divinas. A lei divina diz que ninguém
pode ser obrigado a casar contra sua vontade." O rei se toca com aquilo e, em
seguida, tem outro problema: o regime na ilha era constitucional e ele não era
monarca absoluto. Tem, portanto, que levar o problema à assembléia. Reúne,
então, a assembléia e, por meio de um longo e tocante discurso, consegue
persuadir a assembléia a aceitar o risco da guerra, para não infringir as leis
não-escritas.
92
A tragédia grega era um acontecimento cívico, não apenas um espetáculo
teatral. Era um empreendimento promovido pelo governo para a educação dos
cidadãos. Nessa tragédia e em muitas outras, qual é a mensagem transmitida?
A idéia de que um país é obrigado às vezes a se colocar em risco para não
infringir as leis não-escritas. Ou seja, esse governo argumentava contra si
mesmo, contra seu interesse, e educava as pessoas assim. É claro que o
momento da história em que aparece a tragédia grega é um momento
excepcionalmente luminoso na história da consciência humana. Há inúmeras
tragédias gregas onde se concede razão ao inimigo da pátria, o troiano. Toda a
educação recebida na escola, os discursos políticos etc., induziam as pessoas
ao patriotismo e a tragédia entrava como elemento compensador, para que as
pessoas não tomassem em sentido absoluto os valores do patriotismo, porque
esses valores eram relativizados por valores mais altos. Então, quando existe
uma comunidade política capaz desse nível de consciência, é evidentemente
um momento luminoso da história. E o milagre grego de que falamos não pode,
evidentemente, ser encarado apenas em termos de realizações estéticas ou
científicas, mas sobretudo como um momento culminante na história da
consciência humana.
Existem muitos outros momentos de consciência exemplar na história. Um é a
história que se passa com o genro de Maomé, Ali. Um excelente orador, cujos
discursos estão entre os mais belos da literatura universal, Ali foi um fracasso
total como político, mas um grande guerreiro. Conta-se que, numa das
batalhas, ele encurralou um inimigo, conseguiu desarmá-lo e encostou a
espada em sua garganta. O inimigo então o xingou; ele ficou perplexo, colocou
a espada na bainha e foi embora. Em seguida, o inimigo diz: " você está com a
espada na minha garganta, me derrotou, e só porque o xingo... venci você com
um xingamento?" Ele diz: " não, não é isso, é que fiquei com raiva de você, e
se o matasse, eu não seria mais um guerreiro, seria um assassino, porque o
teria matado por raiva pessoal e não tenho nada contra você. Isso aqui é
guerra.." Esta ética guerreira durou séculos. Até o século XIX ainda havia
amostras de um espírito de luta cavalheiresco que predominava na guerra.
Há outro episódio famoso que se passa entre príncipes muçulmanos e
espanhóis. Uma batalha estava prestes a ocorrer em determinado lugar e os
muçulmanos erraram o caminho. Em vez de parar no lugar da batalha, foram
parar no castelo do príncipe espanhol que iria combatê-los. Só que o castelo
estava vazio, só estavam lá a rainha e suas aias, mucamas e crianças. Conta-
se que a rainha saiu do castelo e passou-lhes um sabão: "não têm vergonha de
encurralar mulheres e crianças assim?" Eles pediram desculpas e foram
embora.
Se comparamos isso com o panorama do século XX, onde vemos, não massas
de população, mas elites intelectuais capazes de se fecharem completamente
93
à metade da realidade, para encarar somente a metade que lhes interessa,
então, de fato, nossa comunidade política está infinitamente abaixo do nível de
consciência daquelas comunidades.
Imaginem o que aconteceria hoje em qualquer país do mundo. O que
aconteceria com o sujeito que dissesse que não ocupou a cidade porque só
havia mulheres e crianças? Iria para a corte marcial. Seu dever militar se
sobrepõe ostensivamente às normas não-escritas, as quais não são sequer
levadas em consideração. Elas simplesmente não existem mais. O que há
hoje, não é só um fenômeno de imoralidade, mas um fenômeno de baixo nível
de consciência, porque o indivíduo acredita que aquele interesse militar
imediato é real e que a norma não-escrita é irreal. Ele infringe a norma não-
escrita, porque acredita que ela não existe, que é apenas invenção, produto
cultural, crença. Só conhece a norma não-escrita, por referência escrita ou oral,
ouviu falar que existe, mas não tem experiência pessoal dela. Não há nem a
situação do indivíduo que, através da educação, chegou a perceber que essas
normas não-escritas efetivamente existem.
Dike é a idéia grega justiça cósmica; é uma experiência que se pode fazer, não
uma invenção cultural; uma experiência que requer certo nível de maturidade.
Então, quando Aristóteles enfatiza que somente o homem maduro pode guiar a
comunidade, está se referindo aos homens que conseguiram absorver um
certo número de experiências decisivas, que colocam a sua alma um
pouquinho acima do nível de consciência de sua comunidade. Não quer dizer
que precisem ser santos ou profetas ou heróis, mas são simplesmente pessoas
que têm uma amplitude anímica um pouco mais vasta, porque chegaram a ter
certas vivências. Quando não temos isso e, não obstante, temos uma formação
universitária, um diploma, e as julgamos as situações evidentemente pelas
experiências que temos. No começo do século XX, houve uma série de
antropólogos que saíram pelo mundo fazendo recenseamentos dos usos e
costumes dos vários lugares. Quando notaram que aquilo que era proibido num
lugar era obrigatório no outro, tiraram a conclusão de que todas as normas
eram culturalmente relativas. Isto foi especialmente divulgado no mundo por
Margareth Mead e Jules Benedict. Eles fizeram um sucesso tão grande que,
hoje em dia, essa convicção do relativismo antropológico é tida como um
dogma: todas as morais são culturalmente relativas. É no mínimo curioso que
nunca ninguém tenha feito a seguinte pergunta: me aponte uma sociedade
onde o homicídio seja legítimo? Ou, me aponte uma sociedade onde o
casamento seja proibido. Ou, me aponte uma sociedade onde qualquer forma
de conhecimento seja proibido. Simplesmente não existem tais sociedades.
Isso quer dizer que, por baixo da variação acidental de normas aqui ou ali,
existe uma infinidade de normas universais que nunca foram contestadas por
civilização ou cultura alguma. A lista das regras e normas permanente é
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infinitamente maior do que a das normas variáveis. Então isso quer dizer que
esses antropólogos, baseados em sua pequena experiência acidental de ter
conhecido uma ou duas comunidades, generalizaram para a espécie humana,
de modo que a visão total da humanidade fica reduzida ao tamanhinho da
amplitude de consciência de dois ou três antropólogos, que viram meia dúzia
de coisas. Nas ciências humanas, isso se tornou norma no século XX: o
indivíduo proclama que tudo o que ele não viu não existe e tudo o que está fora
de seu círculo de experiência só pode existir como invenção, como crença ou
como criação cultural e portanto não tem importância nenhuma.
Uma educação baseada nisso seria uma deseducação, porque ela está de cara
bloqueando a possibilidade de certas experiências.
A humanidade toda deixou documentos de pessoas que conversaram com
Deus. Eles não existiram? São milhões e milhões de documentos, falei com
Deus e obtive tal resposta. Falar com Deus e obter tal resposta é uma
experiência. É algo que acontece ou não acontece. Não é uma teoria
evidentemente, é um fato, ou ele é fictício ou ele é real. Algum antropólogo de
alguma universidade já convidou alguém para fazer essa experiência e ver o
que acontece? Alguém ensinou a você: para falar com Deus é assim e assado,
a coisa tem uma lógica, requer um certo tempo, tem um vai-e-vem, tem um
feedback? Não, porque eles também não sabem. Dizem que houve pessoas
que acreditaram em Deus, Deus é uma crença e nada sabemos a respeito.
Como nada sabemos a respeito? E esses depoimentos todos? Vamos fazer de
conta que nada disso existiu? Toda essa gente estava no mundo da lua e você
foi o primeiro que descobriu a realidade? Construíram-se civilizações,
legislações, sociedades, vidas humanas, tudo em cima disso, e era ficção?
Prefiro apostar na hipótese contrária de que esse pessoal todo sabia do que
estava falando. Ou seja, algo nos aconteceu e se não temos o mínimo acesso
a esse tipo de vivência então nada sabemos a respeito, e não é uma atitude
científica rotular de crença o que você não sabe o que é.
Durante quanto tempo você é capaz de manter um fio de raciocínio dentro de
si, sem se dispersar completamente? Vamos chamar de raciocínio, o
encadeamento de silogismos - premissa maior, premissa menor, conclusão.
Quantos silogismos em linha você é capaz de fazer dentro de si, sem se
dispersar e perder o fio da meada? Um, dois e olhe lá. Isto quer dizer que a
dispersão é o seu estado habitual. Compare-se, por exemplo, a um praticante
de uma mística ascética qualquer, que aprende a se concentrar numa palavra
ou um nome que designa uma qualidade divina durante, digamos, dezesseis
horas seguidas; que aprende a afastar qualquer outro pensamento de sua
mente. Você acha realmente que a visão que o homem disperso tem pode ser
idêntica à do homem concentrado? É claro que não. Isto quer dizer que, em
95
outras épocas, houve homens muito concentrados, capazes de limpidez de
pensamento, de auto-consciência - e logo explico o que quero dizer com essa
auto-consciência - e que tiveram acesso a certas experiências e deixaram
testemunhos delas, e esses documentos são preciosos. Mais tarde, aparece
um sujeito sem concentração nenhuma, uma alma totalmente dispersa,
totalmente fragmentada, com auto-conhecimento precaríssimo, dizendo que
tudo são crenças. Ora, faça-me o favor!, isto é a anti-educação. Se queremos
entender esses documentos, temos que criar a condição psicológica para
refazer as experiências que estão subentendidas neles.
Alguém já ouviu falar da prece perpétua? É uma técnica da igreja ortodoxa.
Existe um livro extraordinário sobre isso chamado "Relatos de um peregrino
russo" - uma abreviatura de milhares de escritos dos místicos ortodoxos ao
longo do tempo. O peregrino russo é um homem simples que um dia ouve na
missa o padre dizer a sentença de Jesus: orai sem cessar. Ele diz: " como orai
sem cessar? Ninguém pode orar sem cessar, a gente reza e depois vai fazer
outra coisa." Sai então procurando, pergunta para um, pergunta para outro, até
que encontra um monge que diz: " você vai rezar junto com o ritmo de sua
respiração, vai dizer Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim; e vai dizer
isso com plena intenção; você só quer uma coisa na vida: que Jesus tenha
pena de você. Vai esquecer todo o resto e vai fazer isso, vinte e quatro horas
por dia, pelo resto de sua vida." Talvez, se conseguir prestar atenção na
piedade divina, com um pouco dessa concentração, acabe percebendo que ela
existe. Agora, pelo simples fato de ter lido sobre esse negócio de piedade
divina, você diz que isso é crença? Mas, como? Você conhece a coisa, sabe do
fenômeno que está sendo falado, ou sabe somente as palavras?
Assim como esta prática existem milhares no mundo - budistas, judaicas,
islâmicas, hinduístas e outras. Tudo isto é totalmente desconhecido do ensino
moderno. O ensino se tornou uma arte de falar sobre coisas que se
desconhece completamente. Não estou me referindo ao ensino religioso. Se
pedir ao padre, ao rabino, ou ao aiatolá, ele vai ensinar a você algumas coisas
da religião dele, o formulário de crenças dele, e vai dizer que todas as outras
não interessam. Ele também já não está falando de experiências, está falando
de uma crença determinada. Não é disso que estou falando. Estou falando de
realidades e não de formulários de dogmas que dizem que isso está certo e
aquilo está errado. Do mesmo modo, as experiências subjacentes à filosofia de
Platão ou à filosofia de Aristóteles também são condições indispensáveis para
que você as compreenda. Quando Platão falava na Academia, ou Aristóteles
no Liceu, eram literalmente homens maduros falando com outros homens
maduros. Não era uma discussão entre almas dispersas.
Todos aqui já sentiram, por exemplo, acessos de tristeza ou de desespero que
não sabiam de onde vieram. Todo mundo já teve isso. Ora, se existe algo na
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sua própria alma que você não sabe de onde veio, existe um conteúdo que é
estranho a você. Ou seja, a sua alma é tão conhecida sua, quanto uma cidade
onde acaba de desembarcar pela primeira vez; você está perdido dentro de
você. Sua alma é o instrumento pelo qual você conhece o mundo, mas se ela
própria é tão desconhecida assim, quantos metros espera avançar no caminho
do conhecimento, antes de ter limpado as lentes com que vai olhar este
mundo? Uma certa limpidez da alma, portanto, um certo conhecimento do
indivíduo por ele mesmo, de modo que ele saiba de onde vêm suas emoções,
de onde vêm seus desejos e o que o compõe efetivamente por dentro, são
condições sine qua non da verdadeira educação. Não existe a educação sem o
efetivo auto-conhecimento. Mas, se num curso de filosofia universitário, você
levantar este problema, dirão: "se quer auto-conhecimento, que vá procurar um
padre ou um psicanalista, que nós estamos aqui para estudar filosofia." Que
raio de filosofia é esta que não se preocupa nem em saber se a alma do sujeito
está habilitada para aquilo? Que raio de ensino é este que não cumpre a
condição da maturidade que o próprio Aristóteles e o próprio Platão colocam
como condição básica para o estudo da filosofia? Isto quer dizer que, ao longo
dos tempos, a noção de educação foi sendo perdida. Ela é conservada apenas
em núcleos muito limitados; há grupos de pessoas que sabem e continuam
cultivando aquilo, como sempre. Mas o ensino de massas, público e privado,
não está dando às pessoas senão um grosseiro simulacro de educação. Não
cabe a mim julgá-lo ou modificá-lo; não sou ministro da educação, nem quero
ser. Se me pedissem um projeto de educação nacional, me esconderia debaixo
da cama e pedir socorro à minha mãe. Esse problema está acima da minha
capacidade, como está acima da capacidade do ministro da educação ou de
qualquer outro que ocupe o lugar dele.
A educação requer sobretudo essa situação: há o professor e os alunos.
Querem um plano de educação para vocês? Esse, eu sou capaz de inventar,
dentro de um universo operacional abarcável. O professor conhece seus
alunos, sabe até onde pode levá-los e sabe o que pode fazer, isto é o máximo.
A idéia de um plano de educação que abarque toda uma nação, isto para não
falar em toda a humanidade, como faz a ONU hoje, é evidentemente simulacro,
não existe. Os planos atuais de educação que estão sendo impostos no mundo
inteiro pela ONU, que é para a formação do cidadãozinho perfeito da Nova
Ordem Mundial, foram inventados na década de cinqüenta por um sujeito
chamado Robert Muller, que era discípulo de uma pseudo-esoterista chamada
Alice Bailey, uma mulher completamente maluca, da doutrina dos raios
cósmicos, que conversava com extra-terrestres; esse cara pega as obras de
Alice Bailey, adapta para a formação de um plano educacional mundial e este
plano está sendo implantado. Evidentemente isto é uma caricatura grotesca.
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Quando falo dessas coisas, estou falando de mística verdadeira, coisas que
foram acumuladas ao longo de cinco mil anos de judaísmo, dois mil anos de
cristianismo, mil e quinhentos anos de islamismo, quase dez mil anos de
hinduísmo, não de uma doida americana que conversou com extra-terrestres.
Então, o sujeito que aprendeu com esta visionária de extra-terrestres pode
fazer um plano para educar o mundo e eu, que aprendi coisa melhor, só tenho
um plano para educar vocês. É porque sei o que é educação e esse sujeito
evidentemente não sabe. Sei quanto é complexa a educação, o quanto ela
requer de contato direto e comprometimento total do professor com seus
alunos, porque se trata não apenas de transmitir certos conhecimentos, mas de
elevar o indivíduo para a possibilidade de certas experiências interiores, que
darão poder à sua inteligência e poder à sua capacidade cognitiva. Educar é
transmitir um poder. E esse poder, não posso injetar em você; posso dizer mais
ou menos onde ele está e você pode procurar, posso dizer como você pode
abrir a caixa e pegar o que é seu. É a partir desse enriquecimento da
experiência interior e a partir da idéia de concentração, de continuidade da
consciência, que o indivíduo se abre à possibilidade de compreensão desses
documentos deixados ao longo das eras. Informar simplesmente a existência
disso já é fazer alguma coisa. Mas, além de informar, podemos de vez em
quando dar alguma dica de como o indivíduo se torna capacitado para pegar
esse legado.
Durante muito tempo, o ensino ocidental esteve consciente disso. Se lemos os
escritos dos grandes educadores da idade média como Hugo de São Vitor,
Santo Alberto Magno, vemos que o começo das universidades preservou ainda
a consciência disso aqui. Por volta do século XV, mais ou menos, a
universidade se torna objeto de disputa entre Vaticano e estados nacionais. A
partir daí, as universidades vão se tornando, cada vez mais, meios para fins
que não são os de seus estudantes. Ainda pertenço à escola antiga: acredito
que a finalidade da educação é o estudante, é o indivíduo humano, um cara
real. O que ele vai fazer com isso depois simplesmente não é da minha conta.
Acho um assinte a promessa de educação para o desenvolvimento, porque
estará pressuposto que se vai educar o sujeito para fazer determinada coisa, e
que essa coisa vai ter um resultado global x. Ou seja, programa-se a vida
inteira do cara. Educação para a paz, educação para o desenvolvimento,
educação para a cidadania, tudo isto, no fim das contas, é educar o indivíduo
para uma finalidade que não é necessariamente a dele. Então isto não é
educação, é programação. A finalidade da educação, tal como entendo e tal
como foi entendida ao longo de todos os tempos, é a maturidade. O que o
homem maduro vai fazer com o que ensinei é problema exclusivamente dele,
ele vai exercer a maturidade dele, não a minha. Quando ele tiver um problema
na mão a situação será outra, os dados serão outros e não existe nenhuma
98
possibilidade de um professor antever tudo isso. Isso significa que, uma vez
conquistada a maturidade, a finalidade da educação está terminada, acabou,
seu educador tem que ir embora para casa. E você se transforma num
educador, se quiser, ou vai fazer outra coisa, pois não é só na educação que
homens maduros são necessários.
Mas essa total desatenção ao fenômeno da maturidade, aliada a uma atenção
excessiva aos usos que a pessoa supostamente vai fazer da educação, faz
com que praticamente toda a educação do século XX faça do aluno um meio e
nunca a finalidade. Ou seja, a educação se torna serva da política, serva da
economia, serva da guerra, serva de qualquer outra coisa e o aluno por sua
vez se torna servo desse processo. Acho isso uma imoralidade. Não gostaria
de praticar isso. A possibilidade de uma educação que não se encaixe nisso é
evidentemente aberta, dentro do próprio sistema democrático, pela
possibilidade da educação livre. É claro que a democracia, como qualquer
outro regime, também programa as pessoas para serem servas de um plano já
dado de antemão, mas ela tem uma vantagem: não cerca o indivíduo por todos
os lados, deixa aberta algumas possibilidades. A democracia induz o indivíduo,
mas não o obriga completamente. O problema é que geralmente as pessoas
não sabem das possibilidades que a democracia deixa em aberto. Ou não
sabem, ou as desprezam. As possibilidades de auto-educação e de educação
livre são coisas preciosas que existem no regime democrático, das quais temos
que tirar proveito de algum modo.
A idéia mesma de que essa proposta educacional se encaixasse de algum
modo dentro do esquema educacional vigente é contraditória, afinal de contas
o sistema educacional vigente tem a sua finalidade também, a formação
profissional e o adestramento das pessoas para a mecânica da democracia.
Mas é claro que a educação de massas - pública ou privada - visa a formar
massas e não indivíduos, o que quer dizer que se trocarmos todos os alunos,
não faz diferença alguma. Mas na educação verdadeira, cada indivíduo é
precioso. E, até por isso, pode existir na educação efetiva o fenômeno do
aborto pedagógico. Eu mesmo já tive uma boa coleção de abortos
pedagógicos, em que vi que, num determinado momento, o florescimento da
consciência é totalmente obstaculizado pelo meio. O meio coloca no indivíduo
certos conflitos que, ou o paralisam, ou o fazem até recuar. O meio social no
qual estamos trabalhando não é inteiramente hostil à educação: deixa uma
certa margem em aberto. Mas a capacidade de desestímulo que o meio
brasileiro tem para a educação é absolutamente fantástica. A curiosidade é
desestimulada e o simples fato de o sujeito querer saber alguma coisa não é
considerado normal;
99
Outro dia estava conversando com meu irmão sobre como, quando pequeno,
ele gostava de fazer rádios de pilha. Gostava de eletrotécnica. Inventou isso
sozinho, da cabeça dele, foi tentar fazer e aprendeu. E todas as pessoas em
torno achavam aquilo muito esquisito e diziam: "por que você está mexendo
com isso? Tem que se preparar para ganhar dinheiro."Em muitos meios, não
necessariamente nos mais pobres, é assim até hoje.
Vamos pensar na idéia de que o máximo de realismo que se pode ter na vida é
pensar apenas em ganhar dinheiro. Ótimo, você se dedica a algo apenas para
ganhar dinheiro. Vamos supor que você fabrique copos, mas não porque goste
e sim para ganhar dinheiro. No dia seguinte pega o dinheiro que ganhou com
os copos e vai comprar água mineral. Mas acontece que o sujeito que abriu a
mina e engarrafou a água também fez para ganhar dinheiro. E com o que
ganhou, também vai comprar uma outra coisa que só foi feita para dar dinheiro.
Então se você compra um sapato, este foi feito para quê? Não para fazer
sapato, mas para ganhar dinheiro, o sapato não é finalidade, a finalidade é o
dinheiro. Enfim, todas as ações do processo produtivo são exclusivamente
meios, e não há uma única coisa que se possa comprar, que valha a pena ser
comprada. Ninguém fez nada para que aquilo valesse. A idéia de que a atitude
realista e madura na vida é pensar apenas no dinheiro esquece que é
necessário que exista algo que se possa comprar com o dinheiro. Que se este
algo nunca é a finalidade, é sempre secundário, é sempre sacrificado ao
dinheiro. Se eu fizer um objeto ou outro, de um jeito ou de outro, e ganhar a
mesma coisa que se fizesse um determinado bem feito, então para que fazer
este bem feito? Você faz o seu produto mal feito, ganha seu dinheiro e vai todo
contente comprar outro produto que também é mal feito. Isto é uma radical
incompreensão do processo econômico. Mas isso é uma coisa que se vê no
Brasil. Viajando pelo mundo, não vemos as pessoas agindo assim.
A visão negativa que temos do processo capitalista faz com que o pratiquemos
de maneira negativa. Não gostamos dele e por isso o corrompemos. Se fosse
socialismo, faríamos exatamente a mesma coisa.
Esse rebaixamento geral das expectativas, dos valores da vida, é um dado
constante na sociedade brasileira e é um tremendo desestímulo. Faz com que
haja no processo educacional muitos fenômenos de aborto, de indivíduos que
vão se desenvolvendo até certo ponto e de repente têm uma crise, um pânico.
Uma crise muito comum é a do indivíduo que percebe que, quando está
percebendo algo, sabendo algo que os outros não sabem ou não percebem,
cria-se uma dificuldade de comunicação. Por exemplo, se você é muito
apegado a seu grupo de amigos de juventude, não pode se educar, porque ou
você os educa a todos juntos ou vai amadurecer mais do que eles e eles vão
se tornar uns chatos para você e não vão gostar mais de você. A educação tem
esse preço, aquele que sabe não é facilmente compreendido pelo que não
100
sabe. Muitas pessoas, quando constatam isso, recuam ou caem no seu
processo educacional e se castram espiritualmente, para não perder amizades
ou apoio familiar, que evidentemente não valem a pena.
Mas é essencial entender, para encerrar, que a definição de educação liberal é
a preparação da alma para a maturidade. O homem maduro é o único que está
capacitado a fazer o bem para o meio em que está. Porque o bem também tem
que ser conhecido. O discernimento entre o bem e o mal não vem pronto; não
adianta ter um formulário, os dez mandamentos ou ter o código civil e penal.
Isto não resolve muito. O bem e o mal são uma questão de percepção, que tem
que ser afinada para cada nova situação que você vive, porque costumam
aparecer mesclados. Jesus disse: na verdade amais o que deveríeis odiar, e
odiais o que deveríeis amar. Este é todo o problema da educação, desenvolver
no indivíduo, mediante experiências culturais acumuladas, a capacidade de
discernimento para que ele saiba em cada momento o que deve amar e o que
deve odiar. Ninguém pode dar essa fórmula de antemão, mas a possibilidade
do conhecimento existe e está consolidada em milhões de documentos. Uma
educação bem conduzida pode levar o indivíduo à maturidade do verdadeiro
julgamento autônomo.
Notas
1. Diretora do programa Drug Watch International.
2. Aliás, a idéia corrente, abundantemente repetida por jornalistas e intelectuais
brasileiros, de que o ensino na época fosse limitado aos nobres, é talvez a
mais idiota que alguém já meteu na cabeça, porque o característico da nobreza
durante toda a idade média era precisamente não estudar. O estudo era
considerado uma ocupação imprópria para os nobres e só própria a dois tipos
de pessoas: aqueles que se dirigiam ao clero e as mulheres. Portanto as
mulheres eram privilegiadas no ensino medieval. Aproximadamente 60% ou
70% do público escolar eram compostos de mulheres.
Este é um detalhe que qualquer estudioso da idade média sabe, mas que você
nunca vê mencionado em parte alguma. É como se houvesse um escotoma,
um ponto preto que impede as pessoas de saberem disso. Esse detalhe por si
basta para derrubar toda uma visão da história, que é aquela visão de que a
história transcorre de um estado de escravidão, dominação e autoritarismo
para um estado de maior liberdade e democracia. Esta visão está subentendida
em praticamente tudo o que se discute nesse país e em metade do mundo. E é
evidente que basta um pouquinho de estudo efetivo da história para ver que as
coisas realmente nunca se passaram assim. Na verdade, idéias como as
101
modernas ditaduras e os modernos autoritarismos são coisas que, na
antiguidade e na idade média, nem passariam pela cabeça de um governante.
A hipótese, por exemplo, de haver um cadastro eletrônico onde estão todos
registrados, onde se pode acompanhar a conduta de cada um, saber quanto o
sujeito gastou, onde ele esteve e, em caso de dúvida, poder usar tudo contra
ele, é uma idéia que se fosse dada a Gengis Kahn, ele acharia monstruosa. Ou
seja, Gengis Kahn não pretendia ter tanto poder assim, poder que hoje em dia
qualquer governante ditatorial, e até democrático, tem sobre as pessoas.
A História, portanto, ao contrário do que diz o famoso clichê, tem seguido no
sentido de um crescimento da autoridade. A autoridade vai conquistando meios
de ação sobre os indivíduos de que nunca antes dispôs e, ao mesmo tempo,
surgem mecanismos compensadores como a liberdade de imprensa e o ensino
universal. Mas, elas por elas, o autoritarismo tem ganhado a corrida.
3. Mortimer Adler é autor do livro "Como ler um livro" (pegar referências).
4. Ora, não termos o direito de fazer alguma coisa não significa que não a
façamos. Na prática, a mistura de procedimentos legítimos e ilegítimos é um
fato do nosso dia-a-dia. A maneira mais prática e fácil de fazer prevalecer sua
tese, é fazer como fizeram no debate mencionado por Mina Seinfeld, em que
você desaparece com a tese do adversário e a sua, por ser a única existente,
acaba prevalecendo.
Um título de Dostoievski
Jornal da Tarde, 16 de abril de 1998
O ciclo de palestras que começou dia 13 na Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) sob o título "Globalização: o fato e o mito" apresenta-se com a
finalidade declarada de combater o "pensamento único". Quem o diz, na sua
edição do dia 12, é o Jornal do Brasil , o qual, co-patrocinador do evento, deve
naturalmente saber do que se trata. Consultando, pois, o venerável periódico
para averiguar que raio de coisa seria o "pensamento único" descubro que, nas
palavras do repórter Cláudio Cordovil, sujeito fidedigno a mais não poder, é
"um pensamento dominante entre as elites tecnocráticas, políticas, econômicas
e jornalísticas que, basicamente, busca assegurar que, nos domínios da ação
pública, só há um caminho". Para combater esse execrável monstro
empastelador de consciências, reuniu-se na UERJ um pugilo de bravos
intelectuais brasileiros, sob a indispensável tutela de prestigiosos convidados
franceses.
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Esfrego os olhos, incrédulo. Teria a intelligentsia virado casaca? Teria ela, após
décadas de compressivo uniformismo coletivista - que descrevi em O Imbecil
Coletivo com meticulosidade suficiente para não ter de repetir- me agora -,
optado repentinamente pela variedade, pelo incentivo à divergência, pelo
estímulo à reflexão pessoal fora de toda subserviência à opinião da
coletividade bem pensante?
Que o responda o próprio leitor. Para tanto, basta conhecer dois detalhes sobre
o evento.
O primeiro é a alternativa que a estrela do conclave, o sociólogo Robert Castel,
diretor de pesquisas da École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris,
oferece ao "pensamento único". Para combater a maldita uniformização das
mentes, diz o professor, é preciso quatro coisas: mais união das esquerdas,
mais solidariedade coletiva, mais controle da sociedade pelas leis e, last not
least , aumento do poder do Estado, "guardião último da coesão social". Em
suma: haverá mais liberdade e variedade de pensamento quando todos
pensarem igual e, em caso de divergências, a autoridade estatal der a última
palavra sob a forma de um calaboca geral.
A maravilhosa receita consta do livro Metamorfoses da Questão Social , cuja
tradução brasileira o professor Castel entregou ao deleite de um estupefato
mundo durante o mesmo acontecimento.
Alguns podem imaginar que o professor Castel esteja brincando. Lamento
decepcioná-los, mas trata-se de um homem sério, que acredita piamente no
que diz, não havendo, portanto, nada mais a fazer por ele.
O segundo detalhe é a lista dos convidados brasileiros, em que avultam, para o
máximo abrilhantamento do simpósio, os nomes de Maria da Conceição
Tavares, José Luís Fiori, Paulo Arantes e Emir Sader. Quem não os conhece?
Antecipando-se pioneiramente na aplicação, em escala miniaturizada, das
propostas que o professor Castel oferece para a remodelagem do mundo, os
planejadores do ciclo tiveram a sábia precaução de escolher conferencistas
que estivessem de acordo no essencial, de modo a evitar aquelas situações
vexatórias nas quais pudesse se tornar necessário apelar ao poder público
para restabelecer a coesão ameaçada.
Diante desses dois detalhes, o leitor não terá a menor dificuldade para
constatar que a nossa intelligentsia universitária, como o inglês da piada, morto
e ressurgido sob a forma aparente de cocô de vaca, realmente não mudou
nada.
Tanto no conclave quanto nas doutrinas do professor Castel, a única novidade,
se é que chega a sê-lo, é de ordem retórica e semântica: após quase dois
séculos de combate à variedade anárquica do mercado e de apologia do
dirigismo entrópico cuja versão soviética George Orwell tão bem descreveu em
1984 , a intelectualidade esquerdista descobriu que o velho discurso
103
uniformista perdera todo atrativo mercadológico e decidiu apelar para o mais
desesperado e psicótico dos expedientes: inverter de vez e ostensivamente o
significado de todas as palavras. Doravante, a liberdade de mercado é que
passa a ser uniformizante, enquanto o controle estatal de tudo se torna,
magicamente, o provedor da variedade. O truque de ilusionismo verbal só não
chega a funcionar muito bem porque, no fim, a linda variedade, cansada de
representar à força o papel do seu contrário, acaba confessando que não
passa de "coesão", "solidariedade" e "controle", coisas que todo mundo sabe
perfeitamente o que são, embora, na experiência histórica do socialismo,
tenham assumido formas realmente variadas, que iam da espionagem
eletrônica da vida privada ao fuzilamento em massa nas praças públicas.
Mas o discurso alucinógeno, para ser acreditado ainda que seja por alguns
minutos, requer uma situação de discurso também alucinógena: a elite falante
que detém o poder sobre o universo cultural denuncia que o universo cultural
está sob o poder de uma elite falante - e, para a nobre finalidade de expulsá-la,
reivindica mais poder. Se a encenação aí montada parece ultrapassar por
instantes os limites de uma impostura meramente humana, também nisto não
há nada de substancialmente novo: em 1872 Fiódor N. Dostoievski já dava ao
seu livro sobre a mentalidade da intelligentsia esquerdista o título de Os
Demônios .
Provas científicas
Jornal da Tarde, 28 de maio de 1998
Os esforços devotados de intelectuais e da mídia para provar que o Brasil é um
país racista seriam desnecessários se o Brasil fosse racista. Ninguém teve de
provar cientificamente o racismo da África do Sul. Quando a prova tem de ser
obtida mediante contorcionismos estatísticos, o que fica provado é apenas o
desejo incontido que uma certa elite tem de produzir, desde cima, um conflito
racial que jamais brotaria de baixo espontaneamente, como de fato não brotou.
Mas essa política pode considerar-se vencedora desde que foi apadrinhada
pela Rede Globo de Televisão, fabricante monopolística da mentalidade
nacional. Não passa um dia sem que mensagens a atestar as supostas
inclinações racistas do nosso povo sejam marteladas e remarteladas por meio
de noticiários, entrevistas e novelas, até tornar-se, pela repetição goebbelsiana,
verdade evangélica, cuja contestação acabará por se tornar, por sua vez, crime
de racismo: está próximo o dia em que louvar a democracia racial brasileira
dará cadeia.
Não sei se a responsabilidade, no caso, incumbe aos proprietários da Rede
Globo ou aos iluminados da esquerda ali inseridos, que, agindo segundo uma
104
técnica muito conhecida nos anais da estratégia revolucionária, se aproveitam
de algum cochilo da direção e se apressam a mandar na empresa como se já
fosse propriedade do futuro Estado comunista.
Afinal, muito antes de o “politicamente correto” tomar de assalto a cultura do
Novo Mundo, já circulava a ordem do Comintern, de 1931, para que os
comunistas buscassem acirrar a luta entre as raças, dando-lhe um sentido de
luta de classes (William Waack, Camaradas , São Paulo, Cia. das Letras,
1993). Como diria Vicentinho: “A luta continua”; agora, em rede nacional de
televisão.
O novo capítulo da série vem sob a forma de mais uma mentira impingida ao
público como verdade científica. Uma pesquisa da assistente social Maria Inês
da Silva Barbosa, celebrada pela GNT como prova final (mais uma!) do racismo
brasileiro, informa que negros e brancos, em São Paulo, não morrem das
mesmas causas: os brancos sucumbem mais de enfarte (9,8%), os negros, de
homicídio (7,5%, contra 2,5% de brancos). A sociedade racista branca , conclui
a pesquisadora, está exterminando sistematicamente os negros .
Os números podem ser válidos, mas a conclusão é pura fraude. Em primeiro
lugar, a raça branca é mais sujeita a doenças cardíacas do que a negra, o que
já basta para explicar a diferença do número de enfartes. Quanto ao de
homicídios, para concluir que se deve a um racismo exterminador seria preciso
provar que foram, na maioria, cometidos por brancos. Pois caso seja maior
entre os negros não somente o número de vítimas, mas também o de
assassinos, o resultado da pesquisa sugerirá apenas, se tanto, que os negros
são mais violentos que os brancos. Ora, esta conclusão, declarada em público,
seria instantaneamente rotulada de racista, mas não o é menos a sua contrária,
que resulta em atribuir aos brancos, mediante a ocultação de um dado
essencial, a responsabilidade global pelos homicídios de vítimas negras,
mesmo os cometidos por negros. Ou não haverá racismo algum em forçar o
resultado de uma pesquisa para acusar de homicida uma raça inteira, contanto
que seja a branca?
A pesquisadora escondeu muito mal suas intenções ao declarar que o racismo
da África do Sul ou do Alabama, com seus morticínios, seus guetos, sua virtual
proibição de casamentos mistos, nunca foi nada pior que o nosso “racismo
sutil” – tão sutil, digo eu, que só se materializa sob a forma abstrata de frações
numa estatística, e mesmo assim não se torna visível senão aos olhos da fé.
“Para mim, racismo é racismo”, afirmou a entrevistada, atestando sua carência
do senso das proporções.
Ora, entre uma sociedade que diluiu tão bem as desavenças raciais que elas,
se não sumiram de todo, acabaram por se reduzir a uma vaga e evanescente
tendência subconsciente, e uma outra que as exacerbou numa cultura que
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enfatiza a identidade racial acima da unidade do gênero humano, qual a mais
racista e perversa, qual a mais justa, bondosa, sábia?
Mas há outra diferença. Foi por seus méritos próprios, pela sua sabedoria
espontânea e quase sem a intromissão do Estado que o povo brasileiro
conseguiu reduzir ao mínimo a discriminação racial neste país. Na África do
Sul, nos Estados Unidos, uma cultura arraigadamente racista teve de ser
controlada pela polícia e pelos tribunais, e, sob todo o peso da máquina
repressiva, ainda explode, de vez em quando, em descargas de uma violência
sem paralelo na nossa história.
Quem pode negar essa diferença sem uma considerável dose de cegueira
intelectual ou de interesses políticos maliciosos?
Viver sem culpas
Jornal da Tarde, 13 de maio de 1999
“É isso que eu procurei a vida inteira: alguém que me dissesse que é possível
viver sem culpas.” (Marilena Chauí, Diálogo com Bento Prado Jr. , Folha de S.
Paulo , 13 de março de 1999.)
“Viver sem culpas” é um objetivo que toda a cultura progressista oferece à
humanidade. O sentimento de culpa é condenado como um resíduo de antigas
tradições repressivas, que deve ser abandonado às portas de uma nova era de
felicidade e realização pessoal. Esse é hoje um ponto de acordo entre adeptos
das correntes mais opostas. Sacramentada pelo consenso, a condenação da
culpa tem tantas legitimações diversas, que na verdade já não precisa de
nenhuma delas e vive perfeitamente bem como uma auto-evidência que
prescinde de argumentos.
Mas o que é, propriamente, viver sem culpas? Sobretudo, qual a nuança
precisa que tem em vista aquele que nos propõe esse objetivo?
Só há três sentidos em que um ser humano pode ser dito isento de culpas. A
primeira hipótese é a da inocência, a efetiva inocência de Adão no Paraíso, do
Bom Selvagem ou da infância num filme da Disney. A Bíblia e Rousseau, com
muita precaução, remeteram essa hipótese a um passado mítico. Santo
Agostinho confessava-se perverso desde o berço, e o pouco que ainda
pudesse restar de credibilidade na imagem da inocência infantil foi
impiedosamente desmoralizado pelo dr. Freud.
O desejo de “viver sem culpas” não teria o menor atrativo para as almas se
apelasse a uma idéia desacreditada. Não pode ser portanto a inocência
primordial o que o moderno progressismo tem em mente quando nos convida a
106
“viver sem culpas”. A inocência completa e absoluta é um mito, uma qualidade
divina que ninguém pode realizar neste mundo.
Um segundo sentido em que se pode “viver sem culpas” é o da inocência
relativa, trabalhosa e periclitante em que o homem consegue se manter quando
se abstém conscientemente de fazer o mal e, se o faz, procura remediá-lo com
devotada boa-fé. É uma norma de perfeição razoável ao alcance de muitos
seres humanos.
Mas não pode ser esse o sentido de “viver sem culpas”, pois a possibilidade de
um homem corrigir o mal que fez repousa inteiramente no sentimento de culpa
que o acomete quando peca; e para refrear-se de fazer novos males ele tem de
conceber em imaginação a culpa que sentiria se os fizesse.
Nesse sentido, a inocência relativa não é de maneira alguma viver sem culpas:
é, precisamente, valorizar o sentimento de culpa como uma bússola que nos
guia para longe do mal.
Mas “viver sem culpas” pode significar ainda uma terceira coisa: pode significar
a abolição pura e simples da idéia de culpa. Neste caso, faça o indivíduo o que
fizer, seus atos não serão examinados sob a categoria da culpa, do
arrependimento, da pena e da reparação. Não importando a natureza desses
atos nem as conseqüências que deles decorram para terceiros, serão sempre
enfocados de modo a evitar o constrangimento de um acerto de contas moral.
Poderão ser explicados sociologicamente, psicologicamente, pragmaticamente,
ser avaliados em termos de vantagem e desvantagem, descritos em termos de
desejo, gratificação e frustração. Só não poderão ser julgados.
Este último sentido é, com toda a evidência, o único em que é possível, na
prática, “viver sem culpas”. É ele, evidentemente, que os ideólogos modernos
têm em vista quando oferecem à humanidade esse ideal de futuro.
Mas, no presente, já há muitas pessoas que vivem sem culpas, que não se
submetem ao exame da consciência moral, que não se sentem constrangidas
quando suas ações produzem danos para terceiros. Chamam-se sociopatas.
Não são doentes mentais, nem retardados. São indivíduos inteligentes,
capazes, não raro dotados de certa genialidade e impressionante desenvoltura
social, e apenas desprovidos de sensibilidade moral para sentir culpa pelos
seus atos. Entre eles encontram-se assaltantes, traficantes, chefes de gangues
– e todos os líderes de movimentos totalitários, sem exceção. Quem deseje ser
como eles sente seu coração bater forte, cheio de esperança, quando ouve
alguém anunciar que é possível viver sem culpas.
Nossa civilização começou quando Cristo ordenou ao apóstolo: “Toma tua cruz
e segue-me.” Dois milênios depois, o ideal que se anuncia é jogar a cruz fora,
pouco importando em cima de quem ela caia, e seguir correndo o carro da
História, pouco importando quem ele venha a esmagar pelo caminho.
107
Dinheiro e poder
Jornal da Tarde, 16 de setembro de 1999
Sempre que ouço um político de esquerda verberar em tom profético a
cobiça capitalista, pergunto-me se ele imagina mesmo que o anseio de poder é
uma paixão moralmente superior ao desejo de dinheiro, ou se simplesmente
finge acreditar nisso para se fazer de santinho. Evidentemente, não há terceira
alternativa. Nenhum militante esquerdista quer fazer uma revolução só para
depois ir para casa viver como obscuro cidadão comum da república socialista:
cada um deles é, por definição, o virtual detentor de uma fatia de poder no
Estado futuro. Essa é, entre os adeptos de um partido, a única diferença entre
o militante e o simples eleitor. Ao assumir a luta revolucionária, o mínimo que
um sujeito espera é um cargo de comissário do povo. Afinal, não teria sentido
que, após ter arcado com a responsabilidade de líder ativo na destruição do
capitalismo, ele desse menos de si à “construção do socialismo”. (O mesmo, é
claro, aplica-se, mutatis mutandis , aos militantes do fascismo ou de qualquer
outra proposta de mudança radical da sociedade. Enfatizo o socialismo pela
simples razão de que no Brasil de hoje não há um movimento de massas de
inspiração fascista.)
Toda militância revolucionária é, pois, inseparável da ânsia de poder, e é
preciso um brutal descaramento ou uma inconsciência patológica para não
perceber que essa paixão é infinitamente mais destrutiva que o desejo de
riqueza. A riqueza, por mais que as abstrações dos financistas tentem
relativizá-la, tem sempre um fundo de materialidade – casas, comida, roupas,
utensílios – que faz dela uma coisa concreta, um bem visível que vale por si,
independentemente da opulência ou miséria circundantes. Já o poder, como
bem viu Nietzsche, não é nada se não é mais poder. Isto é a coisa mais óvia do
mundo: por mais mediada que esteja pelas relações sociais, a riqueza é, em
última instância, domínio sobre as coisas. O poder é domínio sobre os homens.
Um rico não se torna pobre quando seus vizinhos também enriquecem, mas
um poder que seja igualado por outros poderes se anula automaticamente. A
riqueza desenvolve-se por acréscimo de bens, ao passo que o poder, em
essência, não aumenta pela ampliação de seus meios, e sim pela supressão
dos meios de ação dos outros homens. Para instaurar um Estado policial não é
preciso dar mais armas à Polícia: basta tirá-las dos cidadãos. O ditador não se
torna ditador por se arrogar novos direitos, mas por suprimir os velhos direitos
do povo.
Foi preciso que a inteligência humana descesse a um nível quase infranatural
para que uma filosofia – ou coisa assim – chegasse a inverter equação tão
evidente, vendo na miséria o fundamento da riqueza e no poder político o
instrumento criador da igualdade.
108
O fenômeno mais característico do século 20, o totalitarismo, não foi um desvio
ou acidente de percurso no caminho do sonho democrático: foi a conseqüência
inescapável de uma aposta suicida na superioridade moral do poder político e
na sua missão social igualitária. O resultado dessa aposta está diante dos
olhos de todos. A prometida igualdade econômica não veio, mas, em
contrapartida, a diferença de meios de ação entre governados e governantes
cresceu a um ponto que os mais ambiciosos tiranos da Antiguidade não
ousaram sequer sonhar. Júlio César, Átila ou Gêngis Khan recuariam
horrorizados se alguém lhes oferecesse os meios de escutar todas as
conversas particulares ou de desarmar todos os homens adultos. Hoje os
governantes já estudam como programar geneticamente a conduta das
gerações futuras. Não se contentam com o poder destrutivo dos demônios:
querem o poder criador dos deuses.
É uma das mais atrozes perversidades da nossa época que o homem imbuído
do simples desejo de enriquecer seja considerado um tipo moralmente lesivo e
quase um criminoso, enquanto o aspirante ao poder político é visto como um
belo exemplo de idealismo, bondade e amor ao próximo. Um século que pensa
assim clama aos céus para que lhe enviem um Stalin ou um Hitler.
Que é ser socialista?
Jornal da Tarde, 28 de outubro de 1999
O socialismo matou mais de 100 milhões de dissidentes e espalhou o terror, a
miséria e a fome por um quarto da superfície da Terra. Todos os terremotos,
furacões, epidemias, tiranias e guerras dos últimos quatro séculos, somados,
não produziram resultados tão devastadores. Isto é um fato puro e simples, ao
alcance de qualquer pessoa capaz de consultar O Livro Negro do Comunismo
e fazer um cálculo elementar.
Como, porém, o que determina as nossas crenças não são os fatos e sim as
interpretações, resta sempre ao socialista devoto o subterfúgio de explicar essa
formidável sucessão de calamidades como o efeito de acasos fortuitos sem
relação com a essência da doutrina socialista, a qual assim conservaria, imune
a toda a miséria das suas realizações, a beleza e a dignidade de um ideal
superior.
Até que ponto essa alegação é intelectualmente respeitável e moralmente
admissível?
O ideal socialista é, em essência, a atenuação ou eliminação das diferenças de
poder econômico por meio do poder político. Mas ninguém pode arbitrar
eficazmente diferenças entre o mais poderoso e o menos poderoso sem ser
mais poderoso que ambos: o socialismo tem de concentrar um poder capaz
109
não apenas de se impor aos pobres, mas de enfrentar vitoriosamente o
conjunto dos ricos. Não lhe é possível, portanto, nivelar as diferenças de poder
econômico sem criar desníveis ainda maiores de poder político. E como a
estrutura de poder político não se sustenta no ar mas custa dinheiro, não se vê
como o poder político poderia subjugar o poder econômico sem absorvê-lo em
si, tomando as riquezas dos ricos e administrando-as diretamente. Daí que no
socialismo, exatamente ao contrário do que se passa no capitalismo, não haja
diferença entre o poder político e o domínio sobre as riquezas: quanto mais alta
a posição de um indivíduo e de um grupo na hierarquia política, mais riqueza
estará à sua inteira e direta mercê: não haverá classe mais rica do que os
governantes. Logo, os desníveis econômicos não apenas terão aumentado
necessariamente, mas, consolidados pela unidade de poder político e
econômico, terão se tornado impossíveis de eliminar exceto pela destruição
completa do sistema socialista. E mesmo esta destruição já não resolverá o
problema, porque, não havendo classe rica fora da nomenklatura , esta última
conservará o poder econômico em suas mãos, simplesmente trocando de
legitimação jurídica e autodenominando-se, agora, classe burguesa. A
experiência socialista, quando não se congela na oligarquia burocrática,
dissolve-se em capitalismo selvagem. Tertium non datur . O socialismo
consiste na promessa de obter um resultado pelos meios que produzem
necessariamente o resultado inverso.
Basta compreender isso para perceber, de imediato, que o aparecimento de
uma elite burocrática dotada de poder político tirânico e riqueza nababesca não
é um acidente de percurso, mas a conseqüência lógica e inevitável do princípio
mesmo da idéia socialista.
Este raciocínio está ao alcance de qualquer pessoa medianamente dotada,
mas, dada uma certa propensão das mentes mais fracas para acreditar antes
nos desejos do que na razão, ainda se poderia perdoar a essas criaturas que
cedessem à tentação de “fazer uma fezinha” na loteria da realidade, apostando
no acaso contra a necessidade lógica.
Ainda que imensamente cretino, isso é humano. É humanamente burro insistir
em aprender com a experiência própria, quando fomos dotados de raciocínio
lógico justamente para poder reduzir a quantidade de experiência necessária
ao aprendizado.
O que não é humano de maneira alguma é rejeitar a um tempo a lição da lógica
que nos mostra a autocontradição de um projeto e a lição de uma experiência
que, para redescobrir o que a lógica já lhe havia ensinado, causou a morte de
100 milhões de pessoas.
Nenhum ser humano intelectualmente são tem o direito de apegar-se tão
obstinadamente a uma idéia ao ponto de exigir que a humanidade sacrifique,
110
no altar das suas promessas, não apenas a inteligência racional, mas o próprio
instinto de sobrevivência.
Tamanha incapacidade ou recusa de aprender denuncia, na mente do
socialista, o rebaixamento voluntário e perverso da inteligência a um nível infra-
humano, a renúncia consciente àquela capacidade de discernimento básico
que é a condição mesma da hominidade do homem. Ser socialista é recusar-
se, por orgulho, a assumir as responsabilidades de uma consciência humana.
Que é o fascismo?
O Globo, 8 de julho de 2000
Benito Mussolini resumiu a doutrina fascista numa regra concisa: "Tudo para o
Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado." No Brasil, se você é
contra essa idéia, se você é a favor da iniciativa particular e das liberdades
individuais, logo aparece um chimpanzé acadêmico que tira daí a esplêndida
conclusão de que você é Benito Mussolini em pessoa. E não caia na
imprudência de imaginar que essa conversa é demasiado pueril para enganar o
resto da macacada. Quando você menos espera, guinchados de ódio cívico se
erguem da platéia, e uma frota de micos, lêmures, babuínos, orangotangos e
macacos-pregos se precipita sobre você, às dentadas, piamente convicta de
estar destruindo, para o bem da humanidade símia, um perigoso fascista.
Cuidado, portanto, com o que diz por aí. Você não faz idéia da autoridade
intelectual dos chimpanzés na terra do mico-leão.
Na verdade, a idéia oficial de "fascismo" que se transmite nas nossas escolas
não tem nada a ver com o fenômeno que em ciência histórica leva esse nome.
É uma repetição fiel, devota e literal das fórmulas de propaganda concebidas
por Stálin no fim da década de 30 para apagar às pressas a raiz comum dos
dois grandes movimentos revolucionários do século e atirar ao esquecimento a
universal má impressão deixada pelo pacto germano-soviético. Nessa versão,
o fascismo e o nazismo surgiam como movimentos "de extrema-direita",
criados pelo "grande capital" para salvar "in extremis" o capitalismo agonizante.
É lindo imaginar aqueles banqueiros judeus de Berlim, reunidos em comissão
médica em torno do leito do regime moribundo, até que a um deles ocorre a
solução genial: "É moleza, turma. A gente inventa a extrema-direita, ela nos
manda para o campo de concentração, e pronto: está salvo o capitalismo."
No entanto as origens e a natureza do fascismo não são mistério nenhum, para
quem se disponha a rastreá-las em autênticos livros de História.
Todas as ideologias e movimentos de massa dos dois últimos séculos
nasceram da Revolução Francesa. Nasceram dela e nenhum contra ela. As
correntes revolucionárias foram substancialmente três: a liberal, interessada
111
em consolidar novos direitos civis e políticos, a socialista, ambicionando
estender a revolução ao campo econômico-social, a nacionalista, sonhando
com um novo tipo de elo social que se substituísse à antiga lealdade dos
súditos ao rei e acabando por encontrá-lo na "identidade nacional", no
sentimento quase animista de união solidária fundada na unidade de raça, de
língua, de cultura, de território. A síntese das três foi resumida no lema:
Liberdade-Igualdade-Fraternidade.
A conjuração igualitarista de Babeuf e seu esmagamento marcaram a ruptura
entre os dois primeiros ideais, anunciando duzentos anos de competição entre
revolução capitalista e revolução comunista. Que cada uma acuse a outra de
reacionária, nada mais natural: na disputa de poder entre os revolucionários,
ganha aquele que melhor conseguir limpar sua imagem de toda contaminação
com a lembrança do "Ancien Régime". Mas para limpar-se do passado é
preciso sujá-lo, e nisto concorrem, com criatividade transbordante, os
propagandistas dos dois lados: as terras da Igreja, garantia de subsistência dos
pobres, tornam-se retroativamente hedionda exploração feudal; a prosperidade
geral francesa, causa imediata da ascensão social dos burgueses, torna-se o
mito da miséria crescente que teria produzido a insurreição dos pobres; a
expoliação dos pequenos proprietários pela nova classe de burocratas que se
substituíra às administrações locais (e que aderiu em massa à revolução) se
torna um crime dos senhores feudais. A imagem popular da Revolução ainda é
amplamente baseada nessas mentiras grossas, para cuja credibilidade
contribuiu o fato de que fossem apregoadas simultaneamente por dois partidos
inimigos.
A terceira facção, nacionalista, passa a encarnar quase monopolisticamente o
espírito revolucionário na fase da luta pelas independências nacionais e
coloniais (o Brasil nasceu disso). A parceria com as outras duas transforma-se,
aos poucos, em concorrência e hostilidade abertas, incentivadas, aqui e ali,
pelas alianças ocasionais entre os revolucionários nacionalistas e os monarcas
locais destronados pelo império napoleônico.
Pelo fim do século XIX, as revoluções liberais tinham acabado, os regimes
liberais entravam na fase de modernização pacífica. O liberalismo triunfante
podia agora reabsorver valores religiosos e morais sobreviventes do antigo
regime, tornados inofensivos pela supressão de suas bases sociais e
econômicas. Ele já não se incomodava de personificar a "direita" aos olhos das
duas concorrentes revolucionárias, rebatizadas "comunismo soviético" e
"nazifascismo". Assim começou a luta de morte entre a revolução socialista e a
revolução nacionalista, cada uma acusando a outra de cumplicidade com a
"reação" liberal.
Essa é a história. O leitor está livre para tentar orientar-se entre os dados,
sempre complexos e ambíguos, da realidade histórica, ou para optar pelas
112
simplificações mutiladoras. A primeira opção fará dele um chato, um perverso,
um autoritário, sempre a exigir que as opiniões, essas esvoaçantes criaturas da
liberdade humana, sejam atadas com correntes de chumbo ao chão cinzento
dos fatos. A segunda opção terá a vantagem de torná-lo uma pessoa simpática
e comunicativa, bem aceita como igual na comunidade tagarela e saltitante dos
símios acadêmicos.
A velha alucinação
Época, 22 de julho de 2000
Cada nova geração de comunistas começa dizendo que os
antecessores não entenderam nada
Cada geração de comunistas vive de renegar as antecessoras. O próprio
marxismo nasceu de uma crítica arrasadora a seus precursores “utópicos”.
Marx prometia que daí para a frente tudo ia ser tremendamente científico, e
para isso começou por esconder os dados econômicos recentes, já que as
estatísticas atrasadas de 30 anos eram mais apropriadas a sua teoria.
Por esse rigoroso método ele descobriu que uma revolução comunista só podia
acontecer num país cheio de proletários. Não era o caso da Rússia, que só
tinha condes, camponeses, empregados públicos e estudantes – uma corja de
reacionários e oportunistas. Mas, para Vladimir I. Lênin, isso não era problema.
Se a Rússia tinha poucos proletários, tinha muitos comunistas: bastava o
Partido fazer a revolução em nome dos futuros proletários e, quando estes
nascessem, seriam informados, nos bercinhos, de que estavam no poder fazia
um tempão. O leninismo formou a classe governante mais poderosa,
organizada e implacável que já existiu (implacável até consigo mesma:
ninguém no mundo matou mais comunistas do que eles próprios). Quando a
revolução estava consolidada e os proletariozinhos começaram a brotar,
disseram-lhes que não havia mais vagas na Nomenklatura.
Todavia, a Revolução Russa não desmentiu completamente Marx. Sob um
aspecto ela lhe foi bem fiel. Ele dizia que no campo só havia reacionários, um
“lixo étnico” (sic) que devia ser varrido do higiênico mundo futuro. Os
camponeses russos confirmaram isso em toda a linha, resistindo tenazmente à
política anti-religiosa e à coletivização da agricultura, o que obrigou o governo a
liquidá-los às pencas.
Na China, porém, o exército revolucionário de Mao Tsé-tung, expulso das
cidades, teve de se embrenhar no mato e ficou sem proletários nem
funcionários públicos por perto. Daí o Grande Mao tirou a conclusão de que os
homens do campo eram os bichos mais revolucionários do planeta, a
113
verdadeira essência mística do proletariado. A nova doutrina estava tão certa
que, para tomar e exercer o poder em nome dos camponeses, Mao teve de
mandar matar apenas 60 milhões deles.
Mas, para o “eurocomunismo” que veio em seguida, todas essas estratégias
históricas não passavam de ilusões. Real, mesmo, só o esquema de infiltração
pacífica propugnado por Antonio Gramsci, segundo o qual a revolução seria
feita com potes de anestésico – sorrateiramente, sem que ninguém
percebesse. Violência, se preciso, só depois, com todos os confortos e
garantias do poder. A “revolução passiva” que ele anunciava, porém, foi tão
passiva que não aconteceu. O estoque de anestésicos foi ingerido pelos
próprios comunistas, que só acordaram com o estrondo da queda do Muro de
Berlim.
Cada geração de comunistas começa dizendo que os antecessores não
entenderam bem o espírito da coisa, mas que, agora sim, os malditos
capitalistas vão ver o que é bom para tosse. Entre fracassos hediondos e
sucessos macabros, assim caminha a humanidade: é o eterno script da novela
revolucionária. Mas não faz mal. Que são umas dezenas de milhões de mortos
como preço da mais fascinante experiência alucinógena que já se inventou?
Por isso, quando ouço falar de uma nova safra de comunistas, saco logo do
meu passaporte.
Origens do comunismo chique
Zero Hora, 10 de setembro de 2000
Já na década de 20, Stalin, julgando com razão que seria muito difícil
controlar uma revolução do outro lado do Atlântico, decidiu que o Partido
Comunista dos EUA não devia ser organizado com vistas à tomada do poder,
mas à sustentação financeira e publicitária do comunismo europeu. Por isso o
comunismo americano sempre se dedicou menos à organização do
proletariado do que à arregimentação de milionários, artistas de Hollywood e
intelectuais de renome. Para o embelezamento da imagem comunista, era
importante que esses “companheiros de viagem” não se tornassem membros
do Partido, mas conservassem sua figura de personalidades independentes, de
modo que suas manifestações de apoio, acionadas nos momentos propícios,
parecessem iniciativas pessoais e livres, ditadas pela coincidência inocente e
espontânea entre os objetivos comunistas e os altos ideais de uma
humanidade apolítica.
O sucesso do novo estilo, que contrastava com a imagem tradicional de
austeridade proletária, fez com que fosse adotado também na Europa
Ocidental, marcando toda uma época. Mais que uma época: o “glamour” do
114
comunismo chique perpetuou um modelo pelo qual ainda se recorta o figurino
da intelectualidade mundana em Nova York, invejado e imitado pela macacada
letrada do Terceiro Mundo: vão a uma exposição de Sebastião Salgado e
saberão do que estou falando.
Pessoas que ignoram esses fatos têm uma resistência obstinada a acreditar
que efeitos tão vastos possam ter sido planejados por uma elite discreta, quase
secreta. Preferem apegar-se à crença tola de que tudo acontece
espontaneamente – crença que repousa na hipótese de um fluido metafísico
em vez da ação concreta de homens atentos e espertos sobre homens
distraídos e tolos. Mas a propagação espontânea tem, sim, algum papel. Os
técnicos do Comintern, contando com a facilidade com que modas e cacoetes
se espalham entre intelectuais mundanos, usavam calculadamente esse efeito
e o denominavam “criação de coelhos”.
A própria elite às vezes tem simplesmente sorte. Ninguém poderia prever que o
estilo do comunismo norte-americano iria sobreviver à queda de prestígio do
regime soviético, perpetuando-se sob a forma da “New Left”, que nos anos 60
pôde continuar trabalhando pelo totalitarismo sem que sua bela imagem de
independência fosse contaminada pelo que se passava na URSS. Mas às
vezes também dá azar. Os dois principais responsáveis pela criação do
comunismo chique, Karl Radek e Willi Münzenberg, terminaram mortos por
ordem de Stalin, tão logo o sucesso mesmo da operação os tornou inúteis. A
idéia inicial fora concebida por Radek, um dos pioneiros da Revolução Russa, e
realizada sob a direção de Münzenberg, um gênio da propaganda.
Para vocês fazerem uma idéia da eficiência diabólica de Münzenberg, basta
mencionar que foi ele o criador do mito Sacco e Vanzetti. Décadas depois do
julgamento, demonstrada mil vezes a culpa de um e a cumplicidade de outro no
assassinato de um homem desarmado que implorava por piedade,
desmascarada a trama publicitária pelas confissões de membros da equipe de
Münzenberg, o que ainda resta na imaginação popular é a lenda dos operários
inocentes sacrificados por uma sórdida trama capitalista.
“Expert” em farsas duráveis, Münzenberg foi ainda o inventor de outros
instrumentos típicos da propaganda comunista que de tempos em tempos são
novamente retirados da cartola e sempre funcionam, como o “manifesto de
intelectuais”, a passeata de celebridades e, “last not least”, os julgamentos
simulados, eleições simuladas, plebiscitos simulados. A CNBB, portanto, tem
por quem puxar. O estilo é o homem.
Münzenberg foi também o criador daquilo a que chamava “política da retidão”.
É um elemento fundamental do comunismo chique: consiste em não bater de
frente na sociedade democrática, mas em parasitar o prestígio de seus ideais
morais, fazendo com que “companheiros de viagem” criteriosamente
selecionados posem como seus mais representativos porta-vozes. Assim o
115
apelo a esses ideais pode ser modulado e dirigido conforme os interesses de
uma estratégia que sutilmente, e como quem não quer nada, vai levando a
sociedade cada vez mais longe deles e mais perto da revolução comunista.
Nossas campanhas da “ética” e “contra a miséria” foram apenas a aplicação
dessa técnica: nem elevaram o padrão moral da nação nem diminuíram a
pobreza, mas criaram a atmosfera na qual, hoje, o treinamento de guerrilheiros
é financiado por verbas do governo sem que isto suscite o menor escândalo. O
espírito de Willi Münzenberg continua baixando no terreiro político brasileiro.
Vocabulário da insensatez
O Globo, 16 de setembro de 2000
Duas habilidades que a educação deve desenvolver no estudante são o senso
das relações e proporções no mundo real e o senso das nuances e
ambigüidades na linguagem.
Daí a importância da matemática e das línguas em todo ensino. As duas estão
estreitamente ligadas: sua articulação permite perceber as coisas com nitidez e
verbalizá-las com exatidão. Não é preciso dizer que isso não serve só para os
estudos e o trabalho, mas entra na constituição da personalidade, da
consciência e dos valores pessoais.
Nem é preciso informar que esse efeito não se produz espontaneamente: sua
conquista depende de uma luta interior. Conduzir a alma nessa luta é a mais
alta finalidade da educação, que por isso mesmo recebe seu nome da raiz "ex
ducere" = "conduzir para fora": letras e números transportam a alma para além
do seu horizonte imediato de sensações e reações, abrindo-lhe o acesso à
dimensão da cultura, da História, do espírito.
Sem ter chegado até aí, ninguém está apto a participar utilmente de um debate
público. Tão logo sai do círculo da sua prática corriqueira para opinar sobre
questões maiores, a alma impropriamente educada está tão desguarnecida, tão
fora do seu elemento, que em sua performance as funções da percepção e da
linguagem se invertem.
Se a percepção normalmente serve para a orientação na realidade e a
linguagem para a articulação e expressão das realidades percebidas, no
homem mal instruído que se debate com questões elevadas a capacidade de
aprender direto da percepção torna-se muito reduzida, e desenvolve-se em seu
lugar o hábito de criar falsas impressões a partir da linguagem: ele reage às
palavras por associações emocionais diretas, sem passar pela referência aos
fatos percebidos. Daí uma atmosfera de falsa coerência, em que a simples
coordenação de emoções dentro da psique funciona como substitutivo do
116
senso de realidade: basta que a reação do indivíduo a uma idéia lhe seja
habitual e familiar para que ele creia saber toda a verdade a respeito.
Em contrapartida, a estranheza, o medo, a aversão são tomados como provas
de que a idéia é falsa e inaceitável em si. O julgamento já não se baseia no
exame do objeto, do assunto, mas na simples constatação passiva do estado
interior do próprio sujeito. Quando essa reação subjetiva é confirmada por
análogas reações de outras pessoas do seu grupo de referência, aí então a
falsa sensação de realidade é reforçada ao ponto de tornar-se uma certeza
inabalável, um dado do senso comum.
Infelizmente, boa parte da educação brasileira hoje em dia -- do primário ao
doutorado -- visa a aprisionar as pessoas definitivamente nesse estado de
auto-referência grupal.
Para averiguar quanto essa deficiência intelectual está hoje disseminada nas
classes letradas, basta analisar um pouco a linguagem da mídia e dos debates
políticos. Os termos mais carregados de valorações, os mais decisivos e de
efeito mais garantido são justamente aqueles que não designam nada,
absolutamente nada de real, mas apenas um complexo de emoções
produzidas pela pura imaginação.
O termo conservador, por exemplo, tem no linguajar midiático brasileiro um
conjunto de conotações negativas que, bem examinadas, revelam não
corresponder a nenhuma corrente política existente ou concebível, mas
expressar apenas a ojeriza mental suscitada, na mente coletiva, por uma
imagem de fantasia.
O conservador, nessa acepção, é um catolicão moralista e retrógrado, saudoso
de uma civilização agrária tradicional, mas ao mesmo tempo é um industrialista
voraz sem o mínimo respeito pela ecologia; é um adepto da Nova Ordem
Mundial e um nacionalista xenófobo; é um neoliberal que anseia por desmontar
o Estado e um fascista que sonha em instaurar o Estado autoritário onipotente;
é um fundamentalista que tem horror à teoria da evolução e um darwinista
social entusiasta do domínio tecnocrático dos fracos pelos fortes, sendo
ademais um fanático e um corrupto aproveitador sem convicções.
Eventualmente é também malufista.
É evidente que o tipo assim delineado não existe e não pode sequer ser
concebido como possível. Não obstante, o epíteto conservador é usado
correntemente para lançar sobre sua vítima todas essas suspeitas ao mesmo
tempo e torná-la tanto mais asquerosa quanto mais indefinível e envolta em
mistério. O conservador é aí propriamente um Frankenstein, composto
heteróclito de peças inconexas e sem a mínima possibilidade de encaixe. Não
podendo existir no mundo real, ele é apenas a projeção das imagens disformes
que se agitam na mente que o criou para temê-lo e odiá-lo. E é tanto mais fácil
odiá-lo quanto menos ele pode existir no mundo real.
117
Uma discussão empreendida com esse tipo de vocabulário jamais será outra
coisa senão um intercâmbio de alucinações. Alucinações, é claro, podem ser
disciplinadas e uniformizadas, de modo que, todos delirando ao mesmo tempo
segundo a mesma pauta, o geral sentimento de concordância forneça à
coletividade de alucinados uma forte impressão de realidade e todos saiam
persuadidos de que sabiam do que estavam falando.
Confúcio dizia que, para moralizar um país, é preciso começar pela
restauração do sentido das palavras. Mas no Brasil essa restauração não vai
acontecer, porque teria de começar por enviar para o hospício os
moralizadores.
Passado e futuro
Época, 2 de dezembro de 2000
O primeiro está desfigurado pela falsificação histórica; o segundo, por anúncios
de vingança
Em 1964, uma revolução comunista estava em marcha no Brasil, sob
orientação direta do governo soviético, recebida no começo do ano por Luís
Carlos Prestes em Moscou. Os arquivos da KGB confirmam isso de maneira
irrespondível. A revolução foi detida por um movimento militar apoiado na maior
mobilização popular de toda a nossa História (800 mil pessoas nas ruas, duas
décadas antes das Diretas Já). Total de mortos na operação: dois.
Os vencidos, inconformados, buscaram apoio na ditadura cubana, que lhes deu
dinheiro e treinamento para a ação armada, e desencadearam uma campanha
de terror, matando a tiros e bombas vários colaboradores grandes e pequenos
do novo regime e pelo menos um de seus próprios militantes, executado à
simples suspeita de “fraquejar”.
O governo reagiu instalando um regime policial que, além de fazer vítimas em
combate, consentiu na tortura e na morte de prisioneiros, à imitação dos
terroristas que chegaram a assassinar a coronhadas um homem amarrado. No
placar final, os comunistas mataram aproximadamente 200 pessoas; os
militares, 300. A diferença não é tão grande que justifique tratar os primeiros
como anjos, os segundos como demônios.
Em favor dos militares, resta um fato. Não há, na História do mundo, outro
exemplo de revolução armada, num país de cerca de 100 milhões de
habitantes, que fosse abortada com menos derramamento de sangue. Desafio
qualquer pessoa a impugnar, com números e provas, essa afirmação. Em
Cuba, com população dez vezes menor, a simples repressão a opositores
118
desarmados levou à morte 17 mil dissidentes. Ditadura é ditadura, mas nivelar
a brasileira e a cubana é mais que demagogia: é empulhação.
Não obstante, a violência do extinto regime repercute na mídia até hoje, em
ondas cada vez mais volumosas à medida que o tempo passa, com periódicas
efusões de tinta e lágrimas em louvor dos comunistas mortos, enquanto as 200
vítimas que eles mataram têm de repousar quietas e esquecidas na lata de lixo
da História, o lugar reservado aos que se opõem aos desígnios da Providência
revolucionária. Nos 15 anos que se seguiram ao fim da ditadura, elas jamais
foram manchete, enquanto seus algozes o são pelo menos de três em três
meses, sob variados pretextos, incansavelmente, sem contar filmes, programas
de TV e menções chorosas nos livros didáticos.
Mas, se na imprensa qualquer referência àquelas vítimas tem sido em geral
excluída das páginas noticiosas, só timidamente vazando através de colunas
de opinião, cochichá-la na internet não é menos proibido. Um único e modesto
site devotado a documentar os crimes cometidos pelos comunistas no Brasil,
www.ternuma.com.br, tão logo apareceu foi imediatamente submetido a um
bombardeio de ameaças dissuasórias, das quais cito duas por falta de espaço
para mais. A primeira anuncia: “Vocês não perdem por esperar. Os novos
tempos da revolução... virão à tona, fazendo com que paguem com a vida... A
rebelião começará nos quartéis e os comandantes cairão diante da ira do
povo”. Sublinhando a promessa de rebelião militar, a segunda assegura:
“Como prova o grande camarada Lamarca, muitos militares estão a nosso
lado... A Ditadura do Proletariado lhes (sic) espera!” Eis no que deu ajudar os
comunistas a esconder seu passado: agora eles querem suprimir nosso futuro.
Lembrete de Natal
O Globo, 23 de dezembro de 2000
A coincidência do Natal e do Eid-al-Fitr (fim do jejum) muçulmano é uma
ocasião para lembrar que os pontos de contato entre as religiões cristã e
islâmica - e também a judaica - vão muito além do que as fórmulas de bom-
mocismo ecumênico podem sugerir.
Se há uma lição definitiva a tirar do estudo das religiões comparadas é que
elas são incomparáveis: não são espécies do mesmo gênero, que possam ser
avaliadas uma pela outra. São manifestações irredutíveis - e irredutivelmente
diversas - de uma luz intelectual supra-humana que, derramando-se sobre
objetos diferentes, produz diferentes refrações. A comparação, aí, só pode
tomar duas direções: ou o confronto estéril do inconfrontável, ou a simples
inspiração que nos leva a erguer os olhos para a fonte comum, quer a
119
imaginemos como motor imóvel ou como a fonte eternamente silenciosa de
todo Verbo.
Por isso o estudo comparativo das religiões, quando toma a forma do confronto
de doutrinas prontas, desemboca na disputa dos teólogos - e esse tipo de
discussão, dizia o profeta Maomé, leva indiscutivelmente ao inferno. Muito mais
frutífera é a aproximação dos símbolos, que dizem a mesma coisa em
linguagens diversas, mas de tal modo que a mente, ao apreender a
comunidade de sentido entre elas, não pode traduzi-la numa terceira.
Compreendida como disciplina contemplativa, a ciência dos símbolos sacros é
uma introdução à clareza do indizível.
Talvez ainda mais significativa que a coincidência do Natal com o Eid-al-Fitr
seria a aproximação dele com a Laylat-al-Qadr, a noite em que o Corão
"desce" dos céus ao coração do profeta. Maomé é o analfabeto que, no silêncio
da noite, recebe em ditado angélico o mais belo livro da língua árabe, livro que
transcende as propriedades do idioma ao ponto de sua recitação em voz alta
afetar os animais, que se detêm para ouvi-la. É também à noite que a Virgem,
fecundada pelo Espírito, dá à luz a mais nobre das criaturas humanas,
indistinguível do Criador mesmo. A analogia entre esses dois sublimes
paradoxos é evidente. E, enquanto os teólogos disputam nas trevas, cotejando
Cristo a Maomé, a narrativa, em si, é "luz sobre luz": Maomé não corresponde
a Cristo, mas a Maria, o portador humano do Verbo divino; Cristo não é
Maomé, é o Verbo divino, o Logos, Kalimat’ullah.
O espírito sopra onde quer, da forma que quer. Como diz o Corão, "há nisto um
sinal, para os que entendem". Isso não quer dizer que o Papa esteja errado ao
afirmar que o cristianismo é a única via de salvação. Como poderia estar
errado, se o conceito mesmo de "via de salvação" não se aplica ao Islã ou ao
judaísmo? O judaísmo é a lei, a constituição divino-histórica do povo eleito, não
a via de salvação para as almas individuais, para os pecadores errantes e
ovelhas desgarradas. E a palavra mesma "religião" não corresponde ao árabe
din, que assim se traduz erroneamente. Din é o modo natural e primordial do
ser social humano, a constituição civil da sociedade sacra - algo sem
correspondência no evangelho, onde Deus fala às almas individuais, alheio e
indiferente ao que é de César.
Como, pois, comparar essas dimensões diferentes, achatando-as no confronto
doutrinal do certo e do errado?
As religiões, simplesmente, não falam da mesma coisa. É preciso ter
compreendido isto para atinar que é a mesma Voz que fala por meio de todas
elas. Os conflitos correm por conta da incompreensão humana, angustiada
pelos seus esforços vãos de reduzir à unidade doutrinal algo que não é
doutrina, mas que é a Presença mesma. O próprio Corão ensina-nos o limite
120
dessas especulações, e adverte judeus, cristãos e muçulmanos: "Concorrei na
prática do bem, que no juízo final Nós dirimiremos as vossas divergências."
Aprendendo a escrever
O Globo, 3 de fevereiro de 2001
É lendo que se aprende a escrever - eis o tipo mesmo da fórmula sintética que
traz dentro muitas verdades, mas que de tão repetida acaba valendo por si
mesma, como um fetiche, esvaziada daqueles conteúdos valiosos que, para
ser apreendidos, requereriam que a fórmula fosse antes negada e relativizada
dialeticamente do que aceita sem mais nem menos.
Ler, sim, mas ler o quê? E basta ler ou é preciso fazer algo mais com o que se
lê? Quando a fórmula passa a substituir estas duas perguntas em vez de
suscitá-las, ela já não vale mais nada.
A seleção das leituras supõe muitas leituras, e não haveria saída deste círculo
vicioso sem a distinção de dois tipos: as leituras de mera inspeção conduzem à
escolha de um certo número de títulos para leitura atenta e aprofundada. É
esta que ensina a escrever, mas não se chega a esta sem aquela. Aquela, por
sua vez, supõe a busca e a consulta. Não há, pois, leitura séria sem o domínio
das cronologias, bibliografias, enciclopédias, resenhas históricas gerais. O
sujeito que nunca tenha lido um livro até o fim, mas que de tanto vasculhar
índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler nos
anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha
mergulhado na "Divina comédia" ou na "Crítica da razão pura" sem saber de
onde saíram nem por que as está lendo.
Mas há também aquilo que, se não me engano, foi Borges quem disse: "Para
compreender um único livro, é preciso ter lido muitos livros." A arte de ler é
uma operação simultânea em dois planos, como num retrato onde o pintor
tivesse de trabalhar ao mesmo tempo os detalhes da frente e as linhas do
fundo. A diferença entre o leitor culto e o inculto é que este toma como plano
de fundo a língua corrente da mídia e das conversas vulgares, um quadro de
referência unidimensional no qual se perde tudo o que haja de mais sutil e
profundo, de mais pessoal e significativo num escritor. O outro tem mais pontos
de comparação, porque, conhecendo a tradição da arte da escrita, fala a língua
dos escritores, que não é nunca "a língua de todo mundo", por mais que até
mesmo alguns bons escritores, equivocados quanto a si próprios, pensem que
é.
Não há propriamente uma "língua de todo mundo". Há as línguas das regiões,
dos grupos, das famílias, e há as codificações gerais que as formalizam
sinteticamente. Uma dessas codificações é a linguagem da mídia. Ela procede
121
mediante redução estatística e estabelecimento de giros padronizados que,
pela repetição, adquirem funcionalidade automática.
Outra, oposta, é a da arte literária. Esta vai pelo aproveitamento das
expressões mais ricas e significativas, capazes de exprimir o que dificilmente
se poderia exprimir sem elas.
A linguagem da mídia ou da praça pública repete, da maneira mais rápida e
funcional, o que todo mundo já sabe. A língua dos escritores torna dizível algo
que, sem eles, mal poderia ser percebido. Aquela delimita um horizonte
coletivo de percepção dentro do qual todos, por perceberem simultaneamente
as mesmas coisas do mesmo modo e sem o menor esforço de atenção,
acreditam que percebem tudo. Esta abre, para os indivíduos atentos, o
conhecimento de coisas que foram percebidas, antes deles, só por quem
prestou muita atenção. Ela estabelece também uma comunidade de
percepção, mas que não é a da praça pública: é a dos homens atentos de
todas as épocas e lugares - a comunidade daqueles que Schiller denominava
"filhos de Júpiter". Esta comunidade não se reúne fisicamente como as massas
num estádio, nem estatisticamente como a comunidade dos consumidores e
dos eleitores. Seus membros não se comunicam senão pelos reflexos
enviados, de longe em longe, pelos olhos de almas solitárias que brilham na
vastidão escura, como as luzes das fazendas e vilarejos, de noite, vistas da
janela de um avião.
Uma enfim, é a língua das falsas obviedades, outra a das "percepções
pessoais autênticas" de que falava Saul Bellow. Muitos cientistas loucos, entre
os quais os nossos professores de literatura, asseguram que não há diferença.
Mas o único método científico em que se apóiam para fazer essa afirmação é o
argumentum ad ignorantiam, o mais tolo dos artifícios sofísticos, que consiste
em deduzir, de seu próprio desconhecimento de alguma coisa, a inexistência
objetiva da coisa. A língua literária existe, sim, pelo simples fato de que os
grandes escritores se lêem uns aos outros, aprendem uns com os outros e têm,
como qualquer outra comunidade de ofício, suas tradições de aprendizado,
suas palavras-de-passe e seus códigos de iniciação. Tentar negar esse fato
histórico pela impossibilidade de deduzi-lo das regras de Saussure é negar a
existência das partículas atômicas pela impossibilidade de conhecer ao mesmo
tempo sua velocidade e sua posição.
A seleção das leituras deve nortear-se, antes de tudo, pelo anseio de
apreender, na variedade do que se lê, as regras não escritas desse código
universal que une Shakespeare a Homero, Dante a Faulkner, Camilo a
Sófocles e Eurípides, Elliot a Confúcio e Jalal-Ed-Din Rûmi.
Compreendida assim, a leitura tem algo de uma aventura iniciática: é a
conquista da palavra perdida que dá acesso às chaves de um reino oculto.
Fora disso, é rotina profissional, pedantismo ou divertimento pueril.
122
Mas a aquisição do código supõe, além da leitura, a absorção ativa. É preciso
que você, além de ouvir, pratique a língua do escritor que está lendo. Praticar,
em português antigo, significa também conversar. Se você está lendo Dante,
busque escrever como Dante. Traduza trechos dele, imite o tom, as alusões
simbólicas, a maneira, a visão do mundo. A imitação é a única maneira de
assimilar profundamente. Se é impossível você aprender inglês ou espanhol só
de ouvir, sem nunca tentar falar, por que seria diferente com o estilo dos
escritores?
O fetichismo atual da "originalidade" e da "criatividade" inibe a prática da
imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem
da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir criativamente banalidades
padronizadas.
Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da imitação. Imitar
não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se
eleva à altura de poder imitar os grandes, segundo porque, imitando um,
depois outro e outro e outro mais, você não ficará parecido com nenhum deles,
mas, compondo com o que aprendeu deles o seu arsenal pessoal de modos de
dizer, acabará no fim das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e
enobrecido pelas armas que adquiriu.
É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler que
supõe a busca seletiva da unidade por trás da variedade, o aprendizado pela
imitação ativa e a constituição do repertório pessoal em permanente acréscimo
e desenvolvimento. Muitos que hoje posam de escritores não apenas jamais
passaram por esse aprendizado como nem sequer imaginam que ele exista.
Mas, fora dele, tudo é barbárie e incultura industrializada.
Motivos da filosofia
O Globo, 10 de fevereiro de 2001
As idéias influenciam o curso das coisas na sociedade, decerto, menos pela
validade objetiva do seu conteúdo do que por servir de símbolos que
condensam sentimentos coletivos -- desejos, ódios, temores, esperanças. É
possível, até, que toda idéia brote desses sentimentos. Mas a transformação
do sentimento em idéia tem vários graus possíveis de elaboração. O simples
desejo de expressar o anseio coletivo não é a única motivação que leva um
filósofo a criar uma doutrina. Há também o impulso de coerência e o simples
desejo de conhecer a realidade, de abrir-se à variedade dos fatos mesmo
quando contrariem os nossos sentimentos e quando não possam facilmente
ser reduzidos à unidade de uma explicação. Esses três motivos de filosofar
são, por assim dizer, naturais. A diferente dosagem com que entrem na fórmula
123
pessoal define o estilo e o modo de ser de cada filósofo. O tipo extremo, no
qual um desses impulsos se agiganta ao ponto de engolir os outros dois, é tão
raro quanto o composto equilibrado dos três. Mas "que los hay, los hay".
O tipo mesmo do filósofo "expressivo" é Nietzsche. Ele costumava comparar-se
a um perdigueiro, farejando o vento em busca do possível, do latente, que
depois ele cristalizava em símbolos literários de um poder sugestivo quase
hipnótico. É natural que este estilo de pensamento, por estar ainda muito
próximo da imaginação poética, se expresse numa linguagem descontínua,
aforística, metafórica. Por isto Nietzsche não tem propriamente uma doutrina,
mas uma massa ígnea de doutrinas virtuais, umas em conflito com as outras e
algumas em conflito aberto com os fatos. O brilho da sua forma literária
encobre e revela, ao mesmo tempo, a hesitação informe de um saber que se
anuncia e não acaba de nascer. Oscilando entre o futurismo heróico e a
corrosão decadentista, o nietzscheanismo é uma aurora vacilante que perde o
seu momento e não se levanta jamais.
No extremo oposto está Spinoza. Seu apego à coerência lógica era tanto, que
ele não apenas exteriorizou sua doutrina sob a forma acabada e plena de uma
dedução geométrica, mas ainda proclamou a absoluta soberania cognitiva da
pura dedução racional e desprezou como inútil e enganosa a experiência dos
fatos. O spinozismo é o espírito de sistema levado às suas últimas
conseqüências. Há um encanto estético também aí, mas não do tipo verbal: é a
beleza abstrata da unidade lógica, um diamante boiando no infinito, fora do
tempo, longe da "agitação feroz e sem finalidade" deste nosso mundo.
Tentativas de reintroduzi-lo no tempo, na ação, no empírico, só mostram a falta
de pudor de exegetas que se apressam a interpretá-lo às avessas para pô-lo a
serviço de fins práticos que não eram nem poderiam ser os dele.
Assim como o primeiro tipo tem algo do poeta ou do oráculo, e o segundo do
artista plástico, o perfeito respeitador dos fatos, sem deixar de ser filósofo,
aproxima-se antes do modelo do cientista empírico. É Max Weber. Weber
meteu na cabeça um problema -- o das relações entre economia e moral
religiosa -- e, na tentativa de resolvê-lo, criou instrumentos intelectuais que
perfazem, no fim das contas, toda uma filosofia das ciências. Se jogarmos a
sua obra fora e dela só conservarmos os seus escritos de epistemologia e
método, eles já bastarão para fazer dele um astro de primeira grandeza. Mas,
acumulando fatos em cima de fatos e indo buscá-los nos registros de todas as
civilizações ao alcance das suas fontes, ele ampliou de tal modo a área de sua
investigação que, tendo lançado inicialmente uma hipótese, morreu sem ter
chegado a saber exatamente se era verdadeira ou falsa. Mas seu legado
incompleto é precioso. Ele deixou-nos algo mais que um problema e um
método. Deixou-nos um exemplo de probidade intelectual levada até o extremo
do auto-sacrifício.
124
Em geral, os filósofos têm um pouco de cada uma dessas tendências,
arranjadas em padrões mais ou menos felizes. Oswald Spengler, por exemplo,
é uma mistura da imaginação simbólica de Nietzsche com a ânsia weberiana
de abranger todos os fatos. Faltando-lhe o senso da coerência lógica, não lhe
resta outro instrumento de unificação dos fatos senão o símbolo mesmo. Por
isto sua filosofia da história é antes uma metáfora, uma poética da história.
Uma combinação mais freqüente é a do segundo tipo com o terceiro: aquele
misto de investigador factual probo e sistematizador rigoroso, mas seco e sem
imaginação, que nas épocas de prestígio universitário impera do alto das
cátedras como um árbitro do razoável e do irrazoável. Penso em Victor Cousin,
em Léon Brunschvicg ou em tantos, tantos dentre os neo-escolásticos! Fazem
um bom trabalho e são importantes durante algum tempo, mas depois são
esquecidos.
A combinação mais letal é a do primeiro com o segundo tipos, sem nada ou
quase nada do terceiro. A mistura do farejador de tendências com o construtor
de sistemas, sem a humildade do cientista ante os fatos, produz o arquiteto de
desastres. Nele a possibilidade captada no ar se transmuta, pela estruturação
lógica, em projeto de ação que alia, à força arregimentadora do símbolo e à
certeza racional da ordem, o total desprezo pela realidade quando ela insiste
em contrariá-lo. É o homem que não compreende nem quer compreender o
mundo, mas transformá-lo à imagem e semelhança de um desejo enrijecido em
sistema. Infelizmente, pela própria lógica das coisas, este é, de todos os tipos,
puros ou combinados, aquele que tem mais força de ação imediata sobre o
contorno social. É Karl Marx.
O equilíbrio das três tendências é uma felicidade raras vezes alcançada. O
homem que a realiza tem a fertilidade do primeiro tipo, a coerência do segundo,
a honestidade científica do terceiro. Sua filosofia, mesmo temporariamente
ignorada pelos seus contemporâneos, é sempre uma força benéfica que
atravessa os séculos, inspirando, ensinando, civilizando. Os filósofos deste tipo
são uma bênção para a humanidade. Exemplos? Bem, não me resta muito
espaço para dizer por que, mas, prometendo me explicar melhor algum dia,
voto, para o momento, em Aristóteles e Leibniz.
PS - No meu site da internet um de meus artigos vem antecedido do aviso de
que foi rejeitado por todos os periódicos a que o ofereci. Embora a frase
obviamente não implique que eu o tenha oferecido a todos os periódicos do
país, alguns engraçadinhos parece que daí deduziram, e passaram a insinuar,
que fui censurado no GLOBO. Não leram ou fizeram que não leram a data do
artigo, muito anterior ao início de minha colaboração neste jornal. Proclamar os
méritos de uma publicação que sabe respeitar a liberdade de seus
colaboradores não é só um dever: é um prazer. Alegremente, pois, informo que
125
aqui jamais sofri censura ou restrições de espécie alguma, por mais que isto
doa a pessoas que, não gostando nem de mim nem do GLOBO, muito
apreciariam que eu as sofresse.
Sutilezas da fala brasileira
Época, 3 de Março de 2001
Graças a elas, a luta pela soberania torna-se guerra contra um inexistente
liberalismo
No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as coisas
que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos. Designam pessoas e
os sentimentos que a gente tem por elas. Os termos "liberalismo",
"neoliberalismo" e "globalização", por exemplo, são sinônimos. Empregam-se,
indiferentemente, para dizer: "Maldito FHC". Mas, como os sentimentos que os
usuários dessas expressões têm pelo maldito FHC são substancialmente os
mesmos que têm pela direita em geral, as três palavras passam a significar
também fascismo, nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem
prejuízo de que possam ser usadas ainda para designar as tradições dos
Founding Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not
least, o Lalau e o Luiz Estevão.
Não pretendo absolutamente modificar essa norma lingüística solidamente
estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o divino dom da fala como
bem entenda e, se uma nação inteira decidiu utilizá-lo como instrumento de
auto-intoxicação, quem sou eu para aconselhá-la a não fazer isso?
Não obstante, é bom informar que, no resto do mundo, liberalismo é um regime
de liberdade econômica e política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse
regime ao paladar dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura
das fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado mundial
por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses fenômenos não apenas
não são o mesmo, mas têm entre si algumas incompatibilidades essenciais.
Por exemplo, um Estado mundial, com regulamentos padronizados em escala
planetária, é absolutamente contraditório com o princípio liberal da livre
iniciativa local, não podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido
pleno. No uso brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por
completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que
fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo contra
a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que os Estados
nacionais sejam "agentes de transformação" fortes o bastante para implantar
em seus respectivos países as novas leis uniformizantes que vêm prontas de
126
Nova York e de Genebra, como por exemplo o desarmamento civil e as quotas
raciais.
Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as fronteiras da
psicose quando uma alma de nacionalista contempla com horror a
subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e chama isso de
"liberalismo", identificando independência nacional com "Estado forte", como se
o governante de um Estado forte não estivesse muito mais habilitado que o
"maldito FHC" a impor a seus governados as regulamentações globalistas que
bem desejasse.
Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do Brasil
acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto, praticamente
inexiste neste país. O The Wall Street Journal e a Heritage Foundation mantêm
há anos uma meticulosa pesquisa de índices de liberdade econômica, definida
pela ausência de fatores como intervenção estatal, impostos altos,
regulamentações restritivas etc. Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200,
os regimes mais liberais do mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda
(3), Nova Zelândia (4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7),
Holanda (8) e Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China
(114). A prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração
globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do Haiti
(137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de viver de esmolas
do Banco Mundial, mas isso então se chamará "soberania"- e quem serei eu
para dizer que não?
Língua e nacionalismo
O Globo, 3 de março de 2001
Políticos, escritores, professores advertem-nos diariamente contra a invasão
dos "deletes", dos "mouses", dos "enters" e "starts" que povoam nosso espaço
lingüístico. Até universitários incapazes de conjugar um verbo ou colocar
pronomes arvoram-se em guardiões da pureza vernácula, distribuindo nas ruas
panfletos contra o imperialismo cultural nas horas de estudo em que deveriam
estar aprendendo português. E dizem até que servem ao idioma com mais
devoção do que a Academia Brasileira.
Todos esses melindres patrióticos são demasiado posados para que cheguem
a me comover. Não vejo neles senão o oportunismo de demagogos que, em
vez de cultivar o idioma, querem usá-lo como pretexto para gerar um estado de
alarmismo xenófobo útil a seus propósitos políticos.
A desculpa a que se apegam, de que a importação vocabular predispõe à
subserviência ante o imperialismo, é a mais falsa e estúpida que se pode
127
imaginar. Se existe idioma que importa mais do que exporta, é precisamente o
inglês, o qual, de acordo com esse raciocínio, deveria ser língua dos
dominados e não dos dominadores. Segundo a "Cambridge History of English
and American Literature" (Vol. XIV, Part II, Cap. 15 § 7), o empréstimo,
sobretudo do francês e do italiano, é prática tão extensiva no inglês moderno,
que só um quinto das suas palavras dicionarizadas é de origem nativa.
Estariam os ianques sob o domínio do imperialismo franco-italiano?
Uma língua não é uma simples coleção de palavras. É um sistema. A natureza,
o espírito, o valor do idioma estão na sua estrutura dinâmica, no conjunto de
regras que dão a sua forma total, a qual está para as palavras isoladas como
as proporções e o desenho de um edifício estão para os tijolos que o
compõem. Por isso, palavras importadas não têm, por si, a força de corrompê-
lo.
A corrupção começa no momento em que os falantes dão de usar termos
nativos enxertados em construções frasais copiadas do exterior, que sejam
incompatíveis com o espírito do idioma. Aí já não se trata de inserir tijolos, mas
de alterar a planta do edifício. Mais dano traz à língua nacional quem escreve
palavras portuguesas com sintaxe estrangeira do que quem usa palavras
estrangeiras numa construção castiçamente vernácula. Este enriquece o
idioma: aquele o contamina e infecciona. Um traz alimento; o outro, um vírus.
Por isso, adverte a mesma Cambridge History: "Quaisquer que sejam os
elementos que compõem o nosso vocabulário, o modo com que se empregam
é puramente inglês."'E aí é que está o mal: não podemos dizer o mesmo dos
termos que absorvemos. Com freqüência alarmante, esquemas e maneirismos
frasais ingleses, inúteis e estritamente pedantes, têm entrado no nosso uso
corrente. Nos jornais já não se diz, por exemplo, "na semana passada" e sim
"semana passada", sem preposição, para corresponder ao inglês "last week".
Nem se escreve mais: "Não tenho dinheiro, disse ele", sugestiva inversão da
ordem de verbo e pronome com que o narrador marcava sua distância
psicológica do personagem. Escreve-se "Não tenho dinheiro, ele disse,
perdendo a nuance, só para rimar com "I have no money, he said".
Porém, se você protesta contra esses abusos, quem se levanta para defendê-
los, chamando você de "purista", de "reacionário", de "lusófilo"? Aqueles
mesmos que cinco minutos antes queriam fechar a alfândega às importações
de palavras. Sim, porque em geral essas criaturas não são verdadeiros
nacionalistas e sim marxistas, que só defendem o interesse nacional na medida
em que, ecoando uma teoria absurda inventada por Stálin, enxergam as
relações internacionais como luta de classes. Por extensão, são também
adeptos do progressismo lingüístico, segundo o qual toda construção nova é
melhor que a velha, bem como da ideologia da transgressão obrigatória,
segundo a qual toda regra lingüística é imposição tirânica das classes
128
dominantes, odioso mecanismo de exclusão social contra o qual é preciso lutar
com todas as armas, mesmo as da mentira e do achincalhe.
Assim, as forças de dissolução lingüistica entram no mercado sob a proteção
daqueles mesmos que posam como defensores do idioma.
Mas isso não vem de hoje.
Se algum fator dissolvente vem corrompendo e debilitando a língua portuguesa
do Brasil, é precisamente o transgressivismo obrigatório que, desde o
modernismo, se afirma cada vez mais como ideologia dogmática desses
corruptores de menores que hoje dominam a educação nacional. Tal é o maior
inimigo da língua pátria, tal é o agente destrutivo que há um século vem
solapando e embrutecendo o nosso idioma, despojando-o de toda precisão e
sutileza, de toda destreza e flexibilidade, reduzindo-o a um sistema de
cacoetes que limita severamente o círculo do dizível, portanto do pensável.
No começo do século XX, ele forçou a brasilianização estereotipada que,
rompendo nossos laços culturais com Portugal, foi tornando cada vez mais
inacessível às novas gerações a leitura dos clássicos lusos, favorecendo a
fragmentação do português num esfarelado de dialetos provincianos
mutuamente incompreensíveis. Graças a ele, qualquer brasileiro culto tem hoje
mais dificuldade para ler Camilo Castelo Branco ou Aquilino Ribeiro do que um
menino americano para ler Dickens ou Thackeray.
Também por conta dessa ideologia adquirimos um conjunto de preconceitos e
inibições antigramaticais, estendendo a pecha de "pedantismo" ao que quer
que vá além do tatibitate cotidiano de jovens mongolóides e privando-nos
masoquisticamente de instrumentos poderosos e originais como a mesóclise
pronominal. Na sua ânsia de vetar, de inibir, de paralisar a mente das camadas
letradas para reduzi-la à inermidade psicológica e lingüística das classes
pobres, o nacional-populismo conseguiu fazer da língua portuguesa falada no
Brasil o único idioma ocidental que, no século XX, perdeu dois pronomes e
duas pessoas verbais, estando agora obrigado a usar de circunlóquios ou a
apelar para a ajuda dos possessivos ingleses "his" e "yours" para que o ouvinte
saiba de quem se está falando. Isto já é mais que simples enfraquecimento do
idioma: é a completa destruição de seus fundamentos, por obra de
dinamitadores que entram no edifício disfarçados em funcionários da limpeza.
O nacional-populismo-transgressivismo não é um nacionalismo verdadeiro. É
uma doença, um complexo. Rebaixando os valores nacionais à condição de
instrumentos de uma estratégia política interesseira, ele destrói o que finge
defender. Se queremos preservar o idioma nacional, a cultura nacional, a honra
nacional, a primeira coisa que temos de fazer é tirá-las da guarda e tutela de
usurpadores, farsantes e aproveitadores.
129
Destino e Estado
O Globo, 10 de Março de 2001
Para compreender a mentalidade de qualquer pessoa, família, comunidade ou
tradição, é preciso conhecer, mais que as condições externas que moldaram o
cenário da sua existência, os atos e decisões livres que a distinguiram de todas
as outras e fixaram o perfil da sua identidade, o padrão das suas reações mais
típicas e duradouras. Mesmo esquecidas, mesmo recalcadas para o fundo do
inconsciente, essas marcas auto-adquiridas da individualidade acompanharão
a criatura -- ou a entidade -- até o fim dos seus dias. Positivas ou negativas,
não poderão jamais ser removidas, apenas -- se negativas -- compensadas, a
duras penas, por novas decisões livres que neutralizem até certo ponto os seus
efeitos indesejados.
"A escolha faz o destino", dizia o grande Leopold Szondi. Uma sucessão de
escolhas individualizantes marca uma história, uma biografia, uma
comunidade, um povo, muito mais do que qualquer acontecimento exterior que
lhe sobrevenha por acaso ou por iniciativa de outros.
Os portugueses, por exemplo, sofreram o terremoto de Lisboa e a invasão
napoleônica. Foram marcados por esses acontecimentos, mas não tão
profundamente quanto se haviam marcado a si mesmos pelo livre
empreendimento das navegações que os tornou, para sempre, descobridores
do mundo. O terremoto e a invasão sobrevivem apenas como marcas do
passado. Mas a epopéia das navegações é o sinal permanente da identidade
portuguesa.
Outro exemplo: os judeus sofreram o Holocausto, mas não o sofreram porque
quiseram. Ele lhes veio de fora, como um flagelo. Marcou-os profundamente,
mas não ao ponto de apagar sua identidade. Esta nasce daquilo que fizeram,
por escolha própria, ao longo do tempo. E o principal que fizeram foi aceitar,
livremente, a Lei de Moisés. Sem o Holocausto, seriam tão judeus quanto
sempre foram. Não o seriam sem a Lei que escolheram, que o próprio Deus
não lhes impôs mas apenas lhes ofereceu: "Se me aceitas, Israel, Eu sou o teu
Deus". A decisão mesma de chamar Holocausto aos sofrimentos que lhes
foram impostos na II Guerra assinala a vitória da identidade antiga, livremente
assumida, sobre o impacto dissolvente de uma força externa hostil.
Interpretando o malefício novo à luz do simbolismo bíblico, os judeus reataram
as duas pontas do fio do seu destino, que o imprevisto brutal quisera separar.
Sim, a escolha, e não o acontecimento, faz o destino.
Os dois exemplos que dei são de escolhas dignificantes. Mas as escolhas
perversas, criminosas, hediondas, marcam o destino de maneira igualmente
profunda.
130
Tal é a marca das correntes e ideologias que prometem fazer do Estado o
reformador da sociedade. Desde o berço, todas, sem exceção, escolheram
como seu principal e inconfundível meio de ação aquele que é próprio do
Estado e que, na verdade, o define e o distingue de todas as demais
instituições: o monopólio da violência física. O Estado só é Estado porque tem
a legitimidade -- extorquida ou consentida - do uso da força.
Quem quer que proponha modificar a sociedade por meio do Estado -- em vez
de fazê-lo por meio da religião, da cultura, da influência pessoal, da livre
associação dos indivíduos ou dos poderes intermediários -- sabe, desde o
princípio, que seu meio de ação essencial é a força. O Estado pode, é claro,
usar também de outros meios. Mas nenhum deles -- nem a cultura, nem a
educação, nem a propaganda, nem a riqueza - é próprio e exclusivo dele. São
empréstimos casuais. O domínio mesmo que o Estado tenha sobre eles
repousa no controle que ele exerça sobre o seu meio próprio, que é a força.
Por isso, quaisquer meios brandos e incruentos que utilize não são, a rigor,
senão substitutos provisórios da força. Tão logo falhem em dar os resultados
esperados, o Estado entra em crise ou emprega a força. "Tertium non datur":
não há terceira alternativa.
Apostar no Estado é, pois, apostar na violência. Esta aposta marca de maneira
indelével e inconfundível a vocação de todas as ideologias modernas, de índole
reformista ou revolucionária, que vêem no Estado o motor e promotor do bem-
estar social. Mas não me refiro só ao nazismo e ao socialismo. Mesmo formas
infinitamente mais brandas de estatismo não podem escapar à lógica das
coisas. Mesmo homens de convicções tão acentuadamente democráticas
como Abraham Lincoln e Franklin D. Roosevelt - ou, entre nós, os militares que
se sucederam no poder após o Marechal Castelo Branco - acabaram
promovendo o autoritarismo e cometendo violências contra seu próprio povo a
partir do momento em que, por convicção ou por falta de imaginação para
conceber alternativas, fizeram do Estado o pólo ativo da vida social e o
escolheram como meio essencial para a realização de seus ideais. Não é
significativo que o governo do grande libertador Lincoln fosse também o
inventor dos campos de concentração, que o do sincero democrata Roosevelt
instituísse contra os descendentes de japoneses a prisão por suspeita racial?
Não é significativo que o governo militar, criado para restaurar a democracia
ameaçada pelos comunistas, acabasse se cristalizando num aparato
repressivo que ele próprio não sabia desmontar, ao mesmo tempo que, jurando
defender a liberdade de mercado, expandia a máquina estatal mais que
qualquer de seus antecessores?
Mais eloqüente ainda é o exemplo dos "whigs", progressistas ingleses,
precursores do Welfare State, que inventaram, antes de Stalin, a "arma da
131
fome", com as famigeradas Leis do Milho, de 1828, as quais, aplicadas contra a
Irlanda, reduziram sua população de oito milhões para quatro em um século.
Mas se autênticos democratas foram levados a fazer essas coisas pelo simples
fato de apostarem no Estado como instrumento para melhorar a sociedade,
quanto mais malefício não farão homens imbuídos da idéia de que o Estado
deve não apenas melhorar e sim recriar ou revolucionar a sociedade? E quanto
mais vasto e duradouro não será o mal que hão de produzir se, em vez de
revolucionar apenas a estrutura de uma sociedade determinada, pretenderem
usar da força estatal para criar uma nova civilização mundial, modificar de alto
abaixo a herança cultural e os princípios morais, os valores religiosos, os
quadros elementares da percepção e, em suma, a natureza humana?
Por isso, quando intelectuais iluminados nos anunciam, como no Forum Social
de Porto Alegre, que "um outro mundo é possível", o que se deve concluir é
que os cem milhões de mortos da experiência socialista, mais quarenta do
nazifascismo, ainda não foram o bastante para saciar a ambição prometéica
dos inventores estatais de mundos.
Confronto de ideologias ?
Época, 24 de Março de 2001
Qualificar assim a luta entre capitalismo e socialismo é um vício de linguagem
Se você quer avaliar a extensão do domínio hipnótico que os cacoetes
marxistas ainda exercem sobre o sistema neuronal de pessoas que se supõem
imunes a qualquer contaminação de marxismo, basta ver que estas, quando
argumentam em favor do capitalismo, admitem colar na própria testa o rótulo
de defensores de uma determinada "ideologia".
Uma ideologia é, por definição, um simulacro de teoria científica. É, segundo a
correta expressão do próprio Marx, um "vestido de idéias" que encobre
interesses ou desejos. Ao aceitar definir-se na linguagem de seu adversário, o
liberal moderno assume o papel que ele lhe impõe: confessa-se porta-voz dos
interesses dos ricos. Que a confissão seja falsa não a torna menos eficaz.
Transferida do confronto objetivo das doutrinas para o terreno da concorrência
de interesses, a luta parece opor agora o explorado ao explorador. Por
elegante que seja a argumentação deste último, ele estará condenado a
personificar sempre o malvado da história.
Descrever o confronto entre capitalismo e socialismo como "luta de ideologias"
é aceitar um jogo viciado, no qual um dos lados dita as regras, dá as cartas e
predetermina o desenlace.
132
O capitalismo não é uma ideologia. É um sistema econômico que existiu e
provou suas virtudes desde dois séculos antes que alguém se lembrasse de
formulá-lo em palavras. E o primeiro que esboça essa formulação, Adam
Smith, não é de maneira alguma um ideólogo, um inventor de símbolos
retóricos para construir futuros no ar em favor de tais ou quais ambições de
classe. É um homem de ciência em toda a extensão do termo, esboçando
hipóteses para descrever e explicar uma realidade existente. O socialismo, em
contrapartida, milênios antes de existir sequer como estratégia política concreta
já tinha seus ideólogos, seus embelezadores de enganos, seus estilistas de
interesses de grupos ressentidos e ambiciosos. Por isso, o confronto de
socialistas e liberais não opõe ideologia a ideologia: a defesa do socialismo é
sempre a auto-atribuição ideológica dos méritos imaginários de um futuro
possível, a do capitalismo é sempre a análise científica de processos
econômicos existentes e dos meios objetivos de aumentar sua eficiência.
Malgrado tudo quanto se possa alegar contra ele sob outros aspectos (e eu
mesmo não tenho deixado de alegá-lo), o capitalismo não somente gerou
riquezas incalculáveis, mas pôs em ação os meios práticos de distribuí-las ao
povo e criou instituições como a democracia parlamentar, a liberdade de
imprensa, os direitos humanos, ao passo que o socialismo só o que fez até
hoje foi prometer um futuro melhor ao mesmo tempo que reintroduzia o
trabalho escravo banido pelo capitalismo, suprimia todos os direitos civis e
políticos conhecidos, reduzia mais de 1 bilhão de pessoas a uma angustiante
miséria e, para se sustentar no poder, recorria a meios de uma crueldade
quase impensável, como por exemplo a empalação e o esfolamento de
prisioneiros – um recurso muito usado durante o governo de Lênin.
O capitalismo não é uma ideologia – é uma realidade continuamente
aperfeiçoada pela ciência. Ideologia é o socialismo – o vestido de idéias que
encobre as ambições sociopáticas de semi-intelectuais ávidos de poder.
E uma prova a mais de que isso é assim poderá ser dada por eventuais
reações socialistas a este artigo, as quais, como todas as contestações a meus
artigos anteriores, não conseguirão e aliás nem tentarão impugnar a
veracidade de nenhuma de suas afirmações, mas se limitarão a expressar
descontentamento e revolta contra sua publicação.
Dica para os esquerdistas
Jornal da Tarde, 13 de abril de 2001
Se vocês querem "superar o capitalismo", a primeira coisa que têm a fazer é
tirar da cabeça a idéia de socialismo. O socialismo não apenas é incapaz de
133
superar o capitalismo, como na verdade é apenas uma sombra dele, sem vida
própria.
O capitalismo só será superado quando a economia, que ele transformou em
centro da existência, já não for mais aceita como princípio causal da História,
isto é, quando o último marxista foi enforcado nas tripas do último "homo
oeconomicus".
A superação do capitalismo não pode consistir na destruição da economia de
mercado, pela simples razão de que o mercado não é uma ideologia, um
regime, uma lei que um governante baixou e outro possa revogar, mas é uma
dimensão da existência humana. Algum tipo de economia de mercado sempre
existiu e, mesmo no mais burocratizado dos socialismos, continuou a existir.
Suprimir a economia de mercado é tão inviável quanto proibir as relações
sexuais. O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na
época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas
que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que
o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador
autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos
valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder
central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram
as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia
de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas
condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países
protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.
Por isso é absurdo considerar o capitalismo uma "ideologia", uma
racionalização de anseios políticos. O capitalismo surgiu como realidade
operante muito antes de que alguém o formulasse como ideologia. As
posteriores "ideologias" capitalistas jamais conseguiram dar conta da rica
complexidade do capitalismo e nem mesmo explicar suficientemente sua
eficácia.
Mas nessa origem aparecia já uma contradição fundamental. É que não só a
fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores
culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu
sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar
nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética,
ele teve de improvisar uma - e, aí, a pura "ideologia" capitalista, racionalização
esquemática, fez às vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar
certo. Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária, que a
modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde
essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos
seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas
suas ações.
134
Ora, o ponto em comum entre "ideologia liberal-capitalista" e marxismo é o viés
economicista. O primeiro parte de um recorte fenomênico abstrato - a conduta
econômica racional - e o adota, arbitrariamente, como modelo explicativo e
norma corretiva de toda a vida social. O segundo não faz senão "colocar de
cabeça para baixo" esse modelo, atribuindo a conduta econômica racional já
não ao "homo oeconomicus" individual e sim ao Estado socialista, que é ainda
mais abstrato, hipotético e artificial do que ele.
Daí a simbiose doentia de ideologia liberal e de socialismo onde quer que as
autênticas bases culturais do capitalismo falhem. Mas estas bases falham cada
vez mais num mundo onde a religião recua e o poder político se expande.
Por isto o capitalismo se descaracteriza a olhos vistos, ficando cada vez mais
parecido com o socialismo, ao mesmo tempo que o socialismo, fracassado
enquanto fórmula econômica, ganha uma sobrevida postiça na forma de
mitologia cultural do capitalismo e Ersatz de ética religiosa. Por isso, também,
será impossível irmos "além do capitalismo", mesmo em sonhos, enquanto
nossa imaginação estiver presa a essa mitologia.
"Superar o capitalismo" é retirar a economia do topo da vida social,
submetendo-a a valores supra-econômicos. Mas isso é, no mesmo ato, abdicar
do socialismo. O pós-capitalismo ainda não existe nem em teoria. Mas, quando
existir, será menos parecido com o socialismo do que com o capitalismo
originário, onde a lei de Deus era mais importante do que o progresso
econômico e por isto mesmo o progresso econômico era uma bênção e não
uma maldição.
Lições de moral
Jornal da Tarde, 10 de maio de 2001
Dentro da linha de raciocínio segundo a qual os traficantes não são
traficantes porque querem, mas porque nós os obrigamos a sê-lo, o cineasta
Breno Silveira, ao anunciar o filme que está fazendo para mostrar que a
Falange Vermelha é quase uma instituição de caridade, contou à Folha de S.
Paulo de 2 de maio que conheceu Marcinho VP durante uma filmagem no
morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. O futuro detento do presídio de
segurança máxima do Bangu tinha então 12 anos e trabalhava carregando os
equipamentos da equipe cinematográfica: "Aquela foi uma experiência que me
marcou muito. Eu me lembro de um depoimento bonito do Marcinho VP, em
que ele afirmava que gostaria de ser advogado, mas que a vida, com certeza,
não iria deixar."
Curioso. Um de meus melhores amigos, o escritor Ronaldo Alves, nasceu no
morro da Rocinha - mil vezes pior que o Dona Marta -, cresceu entre bandidos
135
e quis se tornar advogado. A vida obviamente não o deixou, mas ele foi assim
mesmo. Nunca roubou um palito de fósforo. Enquanto os meninos da
vizinhança jogavam pelada e faziam troca-troca, ele estudava.
Coisa análoga posso dizer de mim mesmo, que na infância, embora criado
entre cidadãos pacatos num bairro operário, conheci tanto quanto Marcinho VP
a miséria, a fome, a indiferença do mundo, somando-se a isso a doença que só
me largou na idade adulta.
Não consigo sentir dó desses sujeitos que dizem que ficaram pérfidos ou
burros porque tiveram um mau começo de vida. Pois em geral eles começaram
melhor que eu.
Mais curioso ainda é que nem eu nem Ronaldo tivemos a chance de conviver,
logo na entrada da adolescência, com gente do show business que nos
pudesse abrir a perspectiva de uma existência mais alta. O ambiente de
compressiva mediocridade em que fomos criados não teve essa abertura
luminosa. Ali sofremos decerto mais zombaria e discriminação por nossa mania
de estudar do que Marcinho VP por sua inclinação ao crime.
Mas supremamente curioso é o critério moral com que Breno Silveira julga a
sociedade e a si mesmo. Juro que, se um garoto da favela fosse meu ajudante
por um só dia - não tenho equipamentos de filmagem, mas ele poderia,
digamos, ajeitar meus livros nas estantes -, eu não o largaria enquanto não
tivesse a certeza de haver feito por ele tudo o que estivesse ao meu alcance
para encaminhá-lo melhor na vida. Eu faria isso ainda que ele não tivesse me
contado o que queria ser quando crescesse. Se me contasse, então, eu
compreenderia no ato que não se tratava de um "depoimento", por mais
interessante que parecesse, mas de um apelo. Quando um menino pobre nos
conta seus sonhos de futuro, ele não está enriquecendo nossa memória de
artista: está pedindo socorro. Sei disso porque um dia também contei meus
sonhos - e ninguém ligou a mínima. Nem por isso achei que tinha o direito de
me vingar, mais tarde, vendendo tóxicos a crianças. Breno Silveira, com suas
câmeras e holofotes, passou pela vida de Marcinho VP e não deixou marcas.
Marcinho foi quem deixou um "depoimento bonito" para adornar as memórias
do cineasta. Substancial contribuição: Breno pode agora sacá-la do baú e, do
alto de sua autoridade moral de membro da elite esquerdista, julgar e condenar
os que não fizeram pelo menino do morro Dona Marta o que ele também não
fez. Com a diferença de que a eles o menino nunca pediu nada.
O contraste não poderia ser maior com a atitude de Walter Salles, o diretor de
Central do Brasil, que, encontrando um menino pobre que aliás não lhe pedia
nada, lhe ofereceu emprego num filme que mudou sua vida. Um filme que,
como o de Breno Silveira, também mostra miséria e sofrimento, mas não faz
dos bandidos vítimas e não transmite nenhuma lição de moral além daquela da
qual o próprio Walter Salles deu exemplo - aquela lição que, segundo Goethe,
136
resume todo o dever do homem: ser digno, prestativo e bom. A quem não quer
ou não pode ser essas coisas resta o consolo moral de falar mal da sociedade.
É isso o que, no Brasil de hoje, se chama "ética". Por isso acho que o filme de
Breno Silveira não deveria nem ser feito.
Ninguém precisa desse tipo de preleções de ética. Mas há um bocado de
Marcinhos VP em potencial que precisam do dinheiro dessa produção para ter
a chance de uma vida nova.
A mão direita da esquerda
O Globo, 9 de junho de 2001
Desde o fim da URSS, a esquerda nacional tem-se empenhado dia e noite em
advertir os nossos nacionalistas — especialmente os das Forças Armadas —
contra o perigo do mundo unipolar e em persuadi-los a tornar-se esquerdistas
por patriotismo. Há pessoas que vivem disso, e há pessoas — até nas Forças
Armadas — que acreditam nelas. Mas só um perfeito idiota não percebe que a
potência dominante que nos impõe as políticas econômicas contra as quais a
esquerda se bate é a mesma que nos impõe o politicamente correto, o
abortismo, o feminismo, o ecologismo e, enfim, todos os modelos culturais que
constituem o restante do programa da própria esquerda.
Muito menos é possível a um cérebro medianamente são deixar de notar que
as fundações e empresas multimilionárias que subsidiam a difusão desses
novos modelos de conduta são as mesmas que, por outro lado, sustentam a
implantação da Nova Ordem Mundial e das tais políticas econômicas que os
apóstolos desses modelos alardeiam execrar.
E quem quer que perceba essas duas coisas não tem como evitar a conclusão
de que o mundo unipolar é ainda mais unipolar do que os porta-vozes da
esquerda desejariam dar a entender. Tão unipolar, que dele provêm não
somente as propostas que a esquerda odeia, mas também as que ela ama e
personifica. E dele, igualmente, vem o dinheiro para subsidiar a implantação de
uma coisa e da outra.
A esquerda, em suma, utiliza-se de um vocabulário estereotipado da época da
bipolaridade para iludir os nacionalistas, desorientá-los e subjugá-los à
estratégia mundialista, atraindo seus ataques numa direção falsa para que não
atinem com a verdadeira. O componente essencial desse vocabulário é a velha
identificação do “norte-americano” com o “liberal-capitalista”, da qual decorre,
automaticamente, a confusão do nacionalismo com o estatismo, o Estado
previdenciário e, “last not least”, o socialismo.
É com a finalidade de legitimar esse brutal engano que o discurso corrente dos
homens de esquerda contra o FMI e a Nova Ordem Mundial apresenta estes
137
dois fenômenos como se fossem a quintessência do liberal-capitalismo e não,
precisamente ao contrário — como o demonstra a história — invenções
puramente socialistas destinadas a estrangular, junto com a liberdade
econômica, a liberdade política no mundo. FMI e Nova Ordem Mundial são
capítulos da história do centralismo avassalador que tudo sacrifica no altar do
controle burocrático e da economia planificada, os ídolos já mil vezes
desmascarados, de cujos poderes místicos a propaganda socialista promete,
no entanto, obter a cura de todos os males. Do primeiro, disse seu próprio
inventor, Lord Keynes, que era “essencialmente uma concepção socialista”.
Quanto à segunda, foi de ponta a ponta uma criação do famoso “think tank”
londrino do socialismo gradualista que, após passar por várias denominações,
acabou se notabilizando como Fabian Society. Foi um de seus membros mais
ilustres o escritor H. G. Wells, que delineou já em 1928 o programa inteiro da
Nova Ordem Mundial e o publicou no seu livro “Conspiração Aberta”.
“Aberta” é força de expressão. “Conspiração” também. O socialismo fabiano
jamais se envolveu em atentados, comícios, passeatas, muito menos em
conspirações de porão. Tudo o que ele faz é preparar intelectuais para colocá-
los em altos postos de assessoria desde os quais possam, discretamente, mas
sem nenhum segredo, incutir idéias socialistas nas cabeças dos governantes.
O esquema foi inventado pelo teórico Graham Wallas, que com cinco décadas
de antecedência formulou a estratégia gramsciana da “ocupação de espaços” e
da “revolução passiva” (e dizer que Gramsci ainda passa por gênio!). A
magnitude dos efeitos da coisa contrasta singularmente com a circunspecção
dos meios. Praticamente todos os grandes giros da economia moderna no
sentido centralizador e socializante do Estado previdenciário foram planejados
por socialistas fabianos. Só para dar uma idéia do alcance da sua influência, os
planos de governo de três dos mais poderosos — e dos mais estatizantes —
dentre os presidentes dos EUA, Roosevelt, Kennedy e Johnson, foram
diretamente copiados de obras de autores fabianos e adotaram até seus títulos:
o “New Deal” de Roosevelt é um livro de Stuart Chase, a “New Frontier” de
Kennedy um livro de Henry Wallace, e a “Great Society” de Johnson um livro
do próprio Graham Wallas.
Malgrado seu estilo soft, antes social-democrático que comunista, os fabianos
sempre consideraram a URSS uma valiosa aliada na sua luta contra o liberal-
capitalismo. No fundo, ela foi bem mais que isso: desertores da KGB
informaram que pelo menos um dos livros de Sidney Webb, o mais célebre
presidente da Fabian Society, não foi escrito por ele, mas veio pronto do
Ministério das Relações Exteriores soviético. É compreensível. Muito antes de
Gramsci, a URSS também já havia descoberto as virtudes do gradualismo
reformista que, pelo alto e no macio, socializa o mundo mais depressa do que
138
poderiam fazê-lo alguns milhares de Ches Guevaras — os autênticos bois de
piranha do único socialismo que sai sempre vencedor.
A suprema vantagem do método discreto é que, quando os engenhosos planos
estatizantes de intelectuais socialistas desconhecidos do povão fazem por fim
pesar sobre o bolso das massas o custo imensurável da sua tolice, nunca
faltam na praça intelectuais de esquerda radical, que, ignorando ou fingindo
ignorar tudo do trabalho de seus parceiros fabianos, lançam a culpa do
desastre... no capitalismo liberal!
Não veja a tua mão esquerda o que faz a tua direita, ensina a Bíblia. O
socialismo tem a sua própria versão demoníaca desse ensinamento: não vejam
as tuas massas barulhentas o que fazem os teus aliados silenciosos — e
assim, não sabendo quem as oprime, elas descarregarão sua fúria no bode
expiatório que melhor convenha à tua estratégia.
Resta saber apenas se os nossos nacionalistas — sobretudo os das Forças
Armadas — consentirão em reduzir-se ao papel de massas manipuladas.
Racismo, aqui e em Cuba
Época, 9 de junho de 2001
Há menos negros na elite cubana que na brasileira
Nunca houve no Brasil partido racista, militância racista, pregação racista,
imprensa racista, comícios racistas, panfletos racistas, filmes racistas,
programas de rádio ou peças de teatro racistas.
Não obstante a total ausência de meios materiais de difusão, a ideologia
racista, transmitindo-se por meios telepáticos, sutis e não identificados, parece
ser um sucesso entre nós. A acreditarmos nas altas autoridades que opinam
sobre a matéria, inclusive o presidente da República, este é um país
barbaramente racista.
Muitos intelectuais brasileiros vivem hoje de divulgar essa tese, encomendada
e paga por fundações americanas, por motivos, decerto, puramente
humanitários e de maneira alguma geopolíticos. Um dos argumentos decisivos
alegados em favor dela é que negros e mulatos, constituindo a maioria da
população, são minoria nas elites e nos bons empregos.
A diferença de nível econômico-social entre comunidades raciais pode ter
várias causas. Uma delas é que do fim da escravatura até o primeiro surto
industrial brasileiro decorreram mais de 40 anos: a população negra e mulata
cresceu vertiginosamente sem que aumentasse ao mesmo tempo o número de
empregos. A industrialização, por sua vez, coincidiu com a chegada de
139
imigrantes, que, com excelente formação profissional, levaram a melhor no
mercado de trabalho.
Mas nunca se fez um estudo científico que confrontasse as várias causas
possíveis. Uma delas foi escolhida a priori e oficializada como única explicação
permitida: a “discriminação”. Os negros e mulatos ficaram na pior porque
somos todos uns malditos racistas e não lhes damos a mínima chance. Uma
revista semanal chegou a anunciar “a prova definitiva” do racismo dominante:
numa enquete, 90% dos entrevistados disseram que sim, que existe muito
racismo no Brasil. Logo, provado estava.
Não ocorreu aos editores ponderar que, se tantos diziam isso, era
precisamente por serem contra o racismo e que os demais podiam ter negado
a existência dele por julgá-lo coisa feia demais para existir aqui. Isso
evidentemente inverteria a conclusão da pesquisa. Mas esse cuidado
metodológico foi excluído in limine como preconceito racista – e a pesquisa
chegou cientificamente ao resultado premeditado. Desde então, consagrou-se
como norma designar o fenômeno investigado pelo nome da causa a averiguar,
ficando assim dispensada a averiguação e provada a discriminação racial.
Os partidos de esquerda, sempre devotos da probidade científica, exultaram,
adotando a denúncia do racismo brasileiro em seus programas eleitorais.
Escrevo este artigo na piedosa intenção de sugerir que a retirem de lá
imediatamente, porque descobri uma coisa temível: examinada pelo mesmo
critério estatístico, Cuba é o país mais racista da América Latina. Com 60% de
negros e mulatos na população em geral, só 10% de sua elite política não é
branca. Fulgencio Batista era um ditador mulato rodeado de assessores
mulatos. Pelo método científico brasileiro, a conclusão se impõe: uma
revolução racista branqueou o governo.
Para piorar as coisas, Oscar Lopez Montenegro, um mulato que fugiu de Cuba
e hoje distribui em Miami panfletos contra o racismo cubano, informou ao
Washington Times que, quando o governo de Fidel é pressionado pela opinião
pública estrangeira para soltar prisioneiros, invariavelmente solta um branco.
Outro exilado, Manuel Questa Morna, diz que no Exército de Cuba não há
generais negros. “Cuba é um país dirigido por velhos brancos”, confirma Juan
Carlos Espinosa, diretor do Cuban Studies Center da St. Thomas University,
em Miami. E Denis Rousseau, ex-correspondente da France-Presse em
Havana, afirma que a elite cubana está preocupadíssima com o aumento do
número de mestiços na população.
Logo, das duas uma: ou vocês param de denunciar o racismo brasileiro, ou
param de louvar as qualidades excelsas da democracia cubana.
140
Da ignorância à loucura
O Globo, 23 de junho de 2001
Já assinalei mil vezes, em cursos e artigos, mas igualmente em vão em ambos
os casos, esse traço inconfundível do leitor brasileiro atual, sobretudo
universitário, que é a incapacidade de discernir entre a expressão de um
estado emocional e a referência a um fato percebido. O que quer que um autor
diga é interpretado sempre como manifestação de seus desejos, gostos,
preferências, ódios e temores, e nunca como descrição adequada ou
inadequada de um dado do mundo objetivo. Nos termos da teoria clássica de
Karl Bühler, a linguagem é reduzida à sua função expressiva, com exclusão da
denominativa. Isso configura nitidamente um quadro de analfabetismo
funcional.
O que hoje se chama “ensino universitário” neste país consiste essencialmente
na transmissão sistemática dessa incompetência às novas gerações. Se é
verdade que a incapacidade de compreender o que se lê é um sinal de
educação deficiente, então a quase totalidade da educação superior tal como
praticada no Brasil deve ser condenada, simplesmente, como propaganda
enganosa.
Esse estado de coisas não resulta apenas da “má qualidade”, genérica e
abstratamente. Ele vem de um aglomerado de influências culturais bem ativas,
constituído de marxismo gramsciano, psicanálise, relativismo antropológico,
nietzscheanismo, desconstrucionismo, mais teoria dos paradigmas científicos
de Thomas S. Kuhn. O sincretismo dessas influências, que hoje constitui a
típica atmosfera ideológica do nosso ambiente universitário, tem sobre as
inteligências juvenis um efeito embrutecedor e paralisante, agravado pelos
cacoetes do vocabulário “politicamente correto” que se impõe como idioma
obrigatório das discussões pretensamente letradas.
Cada uma dessas correntes, considerada individualmente, se caracteriza por
ser uma hipótese limitada e provisória, elaborada dentro de categorias que só
se aplicam a classes de objetos muito determinados e fundada numa base
empírica muito estreita. Mas o efeito conjugado delas, na exclusão de
quaisquer outras influências culturais de maior envergadura que pudessem
relativizá-las e reduzir cada uma ao tamanho que lhe é próprio, é produzir no
estudante uma falsa impressão de universalidade que lhe dá a ilusão de estar
muito bem orientado no horizonte maior da cultura, justamente no instante em
que suas perspectivas se comprimem até à medida do provinciano e do
gremial.
Nenhuma dessas correntes, e muito menos a soma delas, tem a universalidade
necessária para poder constituir a base de uma educação superior. Para quem
já viesse do curso secundário com essa base, o estudo delas poderia ser útil, à
141
guisa de tempero crítico e contrapeso relativizador. O que não se pode é
admitir uma bagagem cultural constituída apenas de contrapesos ou uma
alimentação constituída somente de temperos. É precisamente essa falsa
bagagem e esse falso alimento que hoje formam a substância mesma da
educação superior no país.
Quando me refiro a base, o que quero dizer é o conhecimento dos dados
fundamentais da civilização e a aquisição de um quadro de referências
histórico-cultural suficientemente amplo. Isto só se adquire pela absorção do
legado grego, cristão-medieval, renascentista e moderno, de preferência
encaixado no panorama maior das culturas antigas e orientais.
Na mente que possua essa base, aquelas modas culturais ingressam como
acréscimos de detalhe que podem exercer um efeito vivificante sobre a visão
do conjunto. Sem base, os detalhes, boiando soltos no vazio, acabam por
constituir um “Ersatz” de totalidade, preenchendo com opiniões genéricas e
frases de efeito o espaço que deveria estar repleto de conhecimentos positivos.
A deformidade intelectual daí resultante faz da mente do estudante brasileiro
uma caricatura grotesca da inteligência humana.
Caracterizam-na a completa falta do senso das proporções, a quase
impossibilidade de distinguir entre forma e matéria, a ênfase obsessiva em
detalhes de ocasião, a completa cegueira para as contradições mais patentes.
Um exemplo é a transformação que o relativismo sofreu ao tornar-se moda nos
nossos círculos acadêmicos. Ele já não é mais aquela precaução elegante que
buscava compensar a unilateralidade das afirmações mediante o
reconhecimento da verdade ao menos parcial das suas contrárias. É um
ceticismo ou negativismo militante, fanático, agressivo, irracional, que afirma
peremptoriamente a inexistência de quaisquer verdades objetivas e tem um
acesso de cólera sagrada à menor cogitação de que alguma talvez exista. Não
há nada mais ridículo do que um relativista que se apega ao relativismo com fé
dogmática e rejeita como tentação demoníaca a possibilidade de que alguma
afirmação talvez seja menos relativa que as outras.
O efeito desse hábito sobre a inteligência é devastador. Não existindo verdades
objetivas, a linguagem só pode ser compreendida como expressão de estados
subjetivos -- mas não ocorre jamais aos viciados nesse enfoque a idéia de que
também sua apreensão dos estados subjetivos alheios não poderia, nesse
caso, ser uma percepção objetiva mas somente a projeção dos seus próprios
estados subjetivos. O alardeado “pensamento crítico”, em tais circunstâncias,
torna-se apenas um tiroteio cego de imputações projetivas que se ignoram, até
o ponto de que o “objeto” em discussão, reduzido a mero pretexto de
afirmações da vontade, desaparece completamente de vista. A possibilidade de
uma “argumentação” é aí evidentemente nula, e o único fator decisivo que
condiciona a vitória ou derrota nas discussões é a maior ou menor capacidade
142
de impressionar mediante uma “performance” psicológica mais exibicionista e
mais insana, e por isto mesmo mais de acordo com as expectativas doentias
da platéia.
O ambiente dessas discussões é evidentemente psicótico, e a aquisição desta
psicose é hoje considerada não apenas um sinal de cultura, mas um requisito
indispensável para o cidadão ser aceito como pessoa normal no ambiente
universitário. A formação superior, nessas condições, consiste em passar da
ignorância natural à inconsciência militante e desta à onipotência cega que
culmina na loucura.
Benfeitor ignorado
Época, 21 de julho de 2001
Ele lutou pela verdadeira “educação para a cidadania”
O falecimento de Mortimer J. Adler, aos 98 anos, há cerca de um mês, não foi
registrado pela imprensa nacional. Duvido que não haja pelo menos uns
poucos brasileiros que devam a esse filósofo e educador o melhor do que
aprenderam nesta vida – mil vezes melhor do que poderiam ter aprendido em
qualquer curso universitário ou na leitura diária de todas as publicações
culturais impressas nesta parte do mundo. Mas, no geral, a cultura nacional
está hoje nas mãos de pessoas que ignoram Mortimer J. Adler. Se não o
ignorassem, não seriam o que são, nem a cultura nacional a miséria que é.
A diferença básica entre a classe falante brasileira e a americana que ela tanto
inveja é, simplesmente, que esta recebeu na escola uma liberal education, e
ela não. Adler foi a estrela máxima e a encarnação mesma da liberal education
nos Estados Unidos – o educador que, em última análise, fez a cabeça da elite
intelectual mais ágil do país mais forte do mundo.
Liberal education é, para resumir, a educação da mente para os debates
culturais e cívicos mediante a leitura meditada dos clássicos. Acabo de
escrever esta palavra, “clássicos”, e já vejo que não sou compreendido. A falta
de uma liberal education dá a esse termo a acepção estrita de obras literárias
famosas e antigas, lidas por lazer ou obrigação escolar. Um clássico, no
sentido de Adler, não é sempre uma obra de literatura: entre os clássicos há
livros sobre eletricidade e fisiologia animal, os milagres de Cristo e a
constituição romana: coisas que ninguém hoje leria por lazer e que geralmente
são deixadas aos especialistas. Mas um clássico não é um livro para
especialistas. É um livro que deu origem aos termos, conceitos e valores que
usamos na vida diária e nos debates públicos. É um livro para o homem
comum que pretenda ser o cidadão consciente de uma democracia. Clássicos
143
são livros que criaram as noções de realidade e fantasia, senso comum e
extravagância, razão e irrazão, liberdade e tirania, absoluto e relativo – as
noções que usamos diariamente para expressar nossos pontos de vista. Só
que, quando o fazemos sem uma educação liberal, limitamo-nos a repetir um
script que não compreendemos. Nossas palavras não têm fundo, não refletem
uma longa experiência humana nem um sólido senso de realidade, apenas a
superfície verbal do momento, as ilusões de um vocabulário prêt-à-porter. A
educação liberal consiste não somente em dar esses livros a ler, mas em
ensinar a lê-los segundo uma técnica de compreensão e interpretação que
começa com os eruditos greco-romanos e atravessa, como um fio condutor,
toda a história da consciência ocidental.
A liberal education é uma tradição nos EUA desde antes da Independência.
Adler lutou como um leão para que se tornasse patrimônio de todos os
americanos, mas seu sucesso foi só parcial. As universidades principais têm,
todas, seus programas de liberal education, mas no ensino médio a idéia não
pegou por completo. Hoje a diferença essencial entre a rede de escolas
públicas, fábricas de delinqüentes, e as escolas de elite que formam os
governantes e os líderes intelectuais americanos é que estas se atêm fielmente
à velha educação liberal e aquelas se deleitam em experimentos pedagógicos
de “engenharia comportamental” – muitos dos quais inspiram os programas de
nosso MEC.
Fala-se muito, hoje, em educação para a cidadania. Mas só há duas maneiras
de formar o cidadão: a educação liberal e a manipulação ideológica. Ou o
sujeito aprende a absorver os dados da “grande conversação” entre os
espíritos superiores de todas as épocas e a tomar posição sabendo do que
fala, ou aprende a falar direitinho como seus mestres mandaram, usando os
termos com a conotação que desejam, segundo os interesses dominantes do
dia. A opção brasileira está feita. Por isso, neste país, poucos souberam da
vida ou da morte de Mortimer J. Adler.
Fora do universo
Época, 28 de julho de 2001
A inteligência brasileira vive num espaço separado
Nada mais característico da miséria intelectual brasileira que a reserva de
mercado concedida a certos autores e a certas correntes de pensamento na
economia geral das atenções universitárias. Foucault, Derrida, Lacan, Deleuze,
Freud, Nietzsche, Marx, Gramsci e Heidegger estão entre os privilegiadíssimos.
Devem essa posição – grosso modo, é claro – a seu prestígio de críticos
144
radicais da civilização do Ocidente. O lado pitoresco da coisa é que tanta
atenção aos críticos coexista com um total desinteresse pelo objeto criticado. É
normal um intelectual brasileiro confiar piamente no diagnóstico nietzschiano
da mente de Sócrates sem ter a menor vontade de saber o que o próprio
Sócrates fez ou disse. Não conheço um único intelectual público que tenha
concedido algum tempo ao estudo de Aristóteles, mas conheço centenas que
asseguram que Aristóteles foi superado não sei onde ou quando. Quando digo
que a física de Aristóteles estava mais avançada que o mecanicismo
renascentista, porque antecipava o indeterminismo de Heisenberg, olham-me
com aquela cara de quem viu um ET. E assim por diante. Os dados, a
realidade, a consistência da civilização não interessam. Só o que interessa é
sua crítica. No fim, “pensamento crítico” vira isso: confiar na opinião de
terceiros, dispensando-se de um exame pessoal do assunto.
Se o assunto é cristianismo, então, a fantasia vai parar longe. Com a maior
seriedade, catedráticos nos asseguram que a Igreja tem “uma concepção
dualista de alma e corpo” ou que ela prega “uma ética de altruísmo”. A primeira
dessas doutrinas é puro Descartes, a segunda uma criação de Auguste Comte,
feita para desbancar o conceito cristão de caridade.
Entre o ambiente cultural brasileiro e a realidade histórica da civilização
ergueu-se um muro de preconceitos, frases feitas, indiferença e esquecimento.
Mais assustador que a ignorância do passado, porém, é o desinteresse pelo
presente. Quantas vezes, diante de públicos universitários supostamente
interessados em filosofia, constatei que nunca tinham ouvido falar de Eric
Voegelin, de Xavier Zubiri, de Bernard Lonergan, certamente os filósofos mais
criativos da segunda metade do século XX!
Haviam parado em Derrida.
Um coágulo de marxismo-estruturalismo-psicanálise-desconstrucionismo havia
obstruído definitivamente seus condutos cerebrais.
O tratamento de choque de Alan Sokal não surtiu efeito nesta parte do mundo.
Imposturas Intelectuais foi bastante lido, mas só é conclusivo para quem tenha
formação científica bastante para sentir a gravidade de seus argumentos.
Como esse não é o caso da maioria de nosso público universitário, o livro fica
com a fama de ter sido apenas uma pegadinha engenhosa.
Recomendo então dois remédios de mais fácil assimilação. O primeiro é
Thinkers of the New Left, de Roger Scruton, a demonstração inequívoca da
menoridade mental dos tótens acadêmicos ainda cultuados no Brasil. O
segundo é Mensonge, de Malcolm Bradbury, uma devastadora sátira do
desconstrucionismo. Trata da vida e das obras de Henri Mensonge, philosophe
inconnu que teria sido não somente o verdadeiro criador da celebrada doutrina
da “inexistência do sujeito”, mas também... o primeiro a praticá-la. E tão
coerente foi esse pensador que nunca foi visto em parte alguma e só deixou
145
dois escritos, inéditos e jamais lidos por quem quer que fosse: “Moi?” e “La
fornication comme acte culturel”.
Se você tem um filho na universidade, faça uma experiência: dê-lhe os livrinhos
de Scruton e Bradbury. Se depois de os ler ele continuar desinteressado de
conhecer o mundo “extra muros”, você pode ter certeza: ele fará uma brilhante
carreira de intelectual acadêmico. É verdade que o salário não será grande
coisa, mas sempre restará a esperança de que ele chegue ao cume da
profissão: a Presidência da República.
O poder de conhecer
O Globo, 4 de agosto de 2001
“Experimentai de tudo, e ficai com o que é bom”, aconselha o apóstolo.
Experiência, tentativa e erro, constante reflexão e revisão do itinerário — tais
são os únicos meios pelos quais um homem pode, com a graça de Deus,
adquirir conhecimento. Isso não se faz do dia para a noite. “Veritas filia
temporis”, dizia Sto.Tomás: a verdade é filha do tempo. Não me venham com
fulgurações místicas e intuições súbitas. “Que las hay, las hay”, mas mesmo
elas requerem preparação, esforço, humildade, tempo. Até Cristo, no cume da
agonia, lançou ao ar uma pergunta sem resposta. Por que nós, que só somos
filhos de Deus por delegação, teríamos o direito congênito a respostas
imediatas?
O aprendizado é impossível sem o direito de errar e sem uma longa tolerância
para com o estado de dúvida. Mais ainda: não é possível o sujeito orientar-se
no meio de uma controvérsia sem conceder a ambos os lados uma
credibilidade inicial sem reservas, sem medo, sem a mínima prevenção interior,
por mais oculta que seja. Só assim a verdade acabará aparecendo por si
mesma. O verdadeiro homem de ciência aposta sempre em todos os cavalos, e
aplaude incondicionalmente o vencedor, qualquer que seja. A isenção não é
desinteresse, distanciamento frio: é paixão pela verdade desconhecida, é amor
à idéia mesma da verdade, sem pressupor qual seja o conteúdo dela em cada
caso particular.
Não há nada mais estúpido do que a convicção geral da nossa classe letrada
de que não existe imparcialidade, de que todas as idéias são preconcebidas,
de que tudo no mundo é subjetivismo e ideologia. Aqueles que proclamam
essas coisas provam apenas sua total inexperiência da investigação, científica
ou filosófica. Não dando valor à sua própria inteligência — porque jamais a
testaram — apressam-se em prostituí-la à primeira crença que os impressione,
e daí deduzem, com demencial soberba, que todo mundo faz o mesmo. Não
sabem que uma aposta total no poder do conhecimento bloqueia, por
146
antecipação, todas as apostas parciais em verdades preconcebidas. Se o que
está em jogo para mim, no momento da investigação, não é a tese “x” ou “y”,
mas o valor da minha própria capacidade cognitiva, pouco se me dá que vença
“x” ou vença “y”: só o que importa é que eu mesmo, enquanto portador do
espírito, saia vencedor. Nenhuma crença prévia, por mais sublime que seja o
seu conteúdo, vale esse momento em que a inteligência se reconhece no
inteligível. Quem não viveu isso não sabe como a felicidade humana é mais
intensa, mais luminosa e mais duradoura que todas as alegrias animais.
Infelizmente, a classe intelectual está repleta de indivíduos que não conhecem,
da inteligência, senão o seu aparato de meios — a lógica, a memória, os
sentimentos, cada qual prezando mais um ou outro desses instrumentos,
conforme suas inclinações pessoais — mas não têm a menor idéia do que seja
a inteligência enquanto tal, a inteligência enquanto poder de conhecer o real. É
impressionante como o poder mesmo que define a atividade dessas pessoas
— o intelecto — pode ser desprezado, ignorado, reprimido e por fim totalmente
esquecido na prática diária de seus afazeres nominalmente intelectuais. O culto
da razão ou dos sentimentos, das sensações ou do instinto, da fé cega ou do
“pensamento crítico”, não é senão o resíduo supersticioso que sobra no fundo
da alma obscurecida quando se perde o sentido da unidade da inteligência por
trás de todas essas operações parciais. A inteligência, com efeito, não é uma
função, uma faculdade em particular: é a expressão da pessoa inteira enquanto
sujeito do ato de conhecer. A inteligência não é um instrumento, um aspecto,
um órgão do ser humano: ela é o ser humano mesmo, considerado no pleno
exercício daquilo que nele há de mais essencialmente humano.
Perguntaram-me uma vez, num debate, como eu definia a honestidade
intelectual. Sem pestanejar, respondi: é você não fingir que sabe aquilo que
não sabe, nem que não sabe aquilo que sabe perfeitamente bem. Se sei, sei
que sei. Se não sei, sei que não sei. Isto é tudo. Saber que sabe é saber; saber
que não sabe é também saber. A inteligência não é, no fundo, senão o
comprometimento da pessoa inteira no exercício do conhecer, mediante uma
livre decisão da responsabilidade moral. Daí que ela seja também a base da
integridade pessoal, quer no sentido ético, quer no sentido psicológico. Todas
as neuroses, todas as psicoses, todas as mutilações da psique humana se
resumem, no fundo, a uma recusa de saber. São uma revolta contra a
inteligência. Revoltas contra a inteligência — psicoses, portanto, à sua maneira
— são também as ideologias e filosofias que negam ou limitam artificiosamente
o poder do conhecimento humano, subordinando-o à autoridade, ao
condicionamento social, ao beneplácito do consenso acadêmico, aos fins
políticos de um partido, ou, pior ainda, subjugando a inteligência enquanto tal a
uma de suas operações ou aspectos, seja a razão, seja o sentimento, seja o
interesse prático ou qualquer outra coisa.
147
É claro que, para cada domínio especial do conhecimento e da vida, uma
faculdade em particular se destaca, ainda que sem se desligar das outras: o
raciocínio lógico nas ciências, a imaginação na arte, o sentimento e a memória
no conhecimento de si, a fé e a vontade na busca de Deus. Mas, sem a
inteligência, que é cada uma dessas funções, ou a justaposição mecânica de
todas elas, senão uma forma requintada de fetichismo? Que é uma imaginação
que não intelige o que concebe, um sentimento que não se enxerga a si
mesmo, uma razão que raciocina sem compreender, uma fé que aposta às
cegas, sem a visão clara dos motivos de crer? São cacos de humanidade,
jogados num porão escuro onde cegos tateiam em busca de vestígios de si
mesmos. Toda “cultura” que se construa em cima disso não será jamais senão
um monumento à miséria humana, um macabro sacrifício diante dos ídolos.
Só o inteligir, assumido como estatuto ontológico e dever máximo da pessoa
humana, pode fundamentar a cultura e a vida social. Por isso não há perdão
para aqueles que, vivendo das profissões da inteligência, a rebaixam e a
humilham. Cada vez que um desses indivíduos grita, seja na língua que for,
seja sob o pretexto que for, “Abajo la inteligencia!”, é sempre o coro dos
demônios que ecoa, do fundo do abismo: “Viva la muerte!”
Doença existencial e fracasso econômico-social
Instituto de Estudos Empresariais. Cultura do trabalho. Porto Alegre: IEE, 2005.
310 p. (Pensamentos liberais, vol. IX).
Muitos estudiosos já chegaram à conclusão - certíssima -- de que os principais
obstáculos ao florescimento da economia liberal no Brasil são de ordem
cultural, mas não se mostram muito eficientes em apontar que causas são
essas. Com freqüência deixam-se levar pelo automatismo sociológico que, na
esteira de Weber, atribui à religião católica uma hostilidade visceral ao
capitalismo (como se não tivessem sido padres católicos os primeiros
teorizadores da economia liberal), ou jogam a culpa de tudo na Contra-
Reforma, no positivismo ou em qualquer outro elemento doutrinal que tenha
contribuído para a formação do estatismo brasileiro culpado de esmagar as
sementes da espontaneidade econômica liberal.
Cada um desses fatores existe, mas nenhum deles, ou a soma de todos, basta
para explicar o conjunto do quadro abrangido.
A base comum das explicações insuficientes produzidas ao longo dessas
linhas é a crença de que os instrumentos conceituais e diagnósticos suficientes
para atacar a questão já existem na tradição sociológica, bastando aplicá-los
ao caso brasileiro para obter a resposta adequada.
148
Minimizar dessa maneira as dificuldades não é um bom começo para a solução
de qualquer problema. O melhor seria, ao contrário, dar por pressuposto que a
questão a ser enfrentada é uma terra incognita e que a única esperança do
investigador reside no exercício intenso de suas faculdades críticas desde os
fundamentos primeiros do problema.
Para isso é preciso, desde logo, abdicar da ilusão de que as constantes
sociológicas que definem a mentalidade de um povo possam ser captadas pelo
exame de influências ideológicas, estereótipos culturais ou vulgares
correlações econômico-culturais que constituem 80% da ciência social
brasileira. Essas abordagens partem sempre de esquemas prontos e não vão
nunca aos fundamentos.
O fundamento primeiro de qualquer investigação nessa área tem de ser uma
antropologia filosófica, isto é, uma compreensão da estrutura geral da
existência humana, seguida da meticulosa comparação com a variante local
em causa.
A característica mais geral e universal da existência humana é o seu caráter
temporal e sucessivo, isto é, o fato de que a vida do ser humano se constitui de
uma série de enfrentamentos com situações para as quais ele raramente está
preparado e que exigem dele escolhas e decisões cuja somatória se traduzirá
em fracasso ou sucesso, no mais amplo e variado sentido desses termos.
Uma sociedade, nesse sentido, é um entrelaçamento móvel de inumeráveis
percursos humanos, e a primeira pergunta a fazer para conhecer uma
sociedade nacional consiste, portanto, em saber quais são os percursos de
vida mais gerais e constantes que nela se observam.
Como a realização bem sucedida de um percurso de vida é o que se chama
habitualmente "felicidade", e o seu contrário "infortúnio", esse estudo tomaria a
forma de um mapeamento dinâmico das várias modalidades e perspectivas de
realização pessoal, isto é, de felicidade e infortúnio, na sociedade nacional
considerada.
Como a economia é um dos principais e decisivos canais de realização da
felicidade ou do infortúnio, é evidente que a conduta econômica do povo em
exame está integrada nesse mapeamento geral.
Esse estudo jamais foi feito. Sua pergunta essencial seria: Quais os padrões e
símbolos de felicidade que têm movido o povo brasileiro ao longo das épocas,
e quais os meios de ação que ele tem posto em movimento para a consecução
de seus fins essenciais?
Um breve exame da história nacional desde esse ponto-de-vista revela que,
desde os primeiros esforços de ocupação do território, as ambições de
felicidade do povo brasileiro foram as mais minguadas possíveis, em
comparação com as de outros povos.
149
Dos ocupantes do novo território, só uns poucos tinham projetos pessoais de
grande envergadura, enquanto a maioria, transformada em instrumento desses
projetos, mal ousava sonhar com algum futuro próprio, limitando-se a sua
perspectiva essencial à busca de segurança à sombra da elite de aventureiros
audazes.
O panorama desolador descrito por Capistrano de Abreu nas linhas finais dos
Capítulos de História Colonial denota que, decorridos três séculos de ocupação
territorial, uma população constituída maximamente de escravos e mestiços
vivia ainda encolhida sob as asas de seus senhores e protetores, sem ousar
lançar-se ao mínimo empreendimento pessoal.
O desarraigamento cultural - da Europa, da África ou das culturas indígenas -
contribuiu ainda mais para o ambiente geral de incerteza e temor.
A constituição do estado imperial fez da burocracia estatal a esperança de uma
vida mais segura, mais protegida, para uma população tímida que não buscava
senão proteção e segurança.
Esse encolhimento anormal das perspectivas vitais reflete-se, por exemplo, na
ocupação do território. Enquanto na América do Norte um povo ambicioso e
valente se espalhava por uma área de dimensões continentais, os brasileiros
deixavam a imensidão das terras à mercê dos bichos ou da minguada elite de
desbravadores, contentando-se em ficar encolhido numa estreita faixa
litorânea, em casinhas mirradas que se acotovelavam deploravelmente, como
se houvesse falta de espaço.
O famoso estatismo nacional, que os teóricos liberais não cessam de assinalar
como uma das causas do nosso definhamento econômico, não é pois um
fenômeno primário, uma causa sui , mas a simples expressão de uma vida
diminuída, onde a busca da segurança se sobrepôs a todos os sonhos de
vitória.
Um fenômeno tão enfatizado quanto o carnaval adquire, nessa perspectiva, um
significado bem diferente daquele que em geral se lhe atribui. O traço essencial
dessa festividade é que ela constitui, para milhões de brasileiros, o cume anual
de sua existência. E o que é precisamente que esse povo visa a realizar nessa
data privilegiada? Uma fuga de três dias para fora das realidades da vida. Ou
seja, o momento em que esse povo acredita estar vivendo mais intensamente é
quando ele se abriga da realidade numa fantasia evanescente e fugaz. Nada
poderia expressar melhor a ausência de ambição existencial. Um visitante
ilustre, o conde Hermann von Keyserling, assinalou que, a imitação sendo um
fenômeno universalmente conhecido, o modo de praticá-la no Brasil era
peculiar: enquanto em outros países as pessoas imitavam alguém porque
tinham a esperança de tornar-se iguais a ela de algum modo, os brasileiros se
contentavam com a imitação enquanto tal, visando apenas ao sucesso da
performance e não à aquisição das qualidades pessoais imitadas. Este hábito
150
denota um fundo depressivo de rendição existencial: o povo que desistiu de ser
contenta-se com parecer.
Outro sintoma desse encolhimento vital pode ser obtido no mostruário da nossa
literatura de ficção, onde a maioria dos personagens é constituída de tipos
humanamente pequenos, inseguros, tímidos, frouxos, que vivem de fingimento
por incapacidade de enfrentar o real. Ao lado desses pigmeus é quase nulo o
número de personagens ousados, valentes, ambiciosos.
Quando aparece ambição ou valentia, está geralmente associada à
marginalidade, ao banditismo, à amoralidade, denotando que a covardia
existencial é a norma e a ousadia uma ruptura que só se pode esperar dos
excluídos e anormais.
A busca permanente de proteção e segurança encontra sua contrapartida
natural na expansão dos controles estatais, que não só inibe a criatividade
econômica da população mas atrofia o desenvolvimento das personalidades
em sentido muito mais geral, produzindo um povo de carentes emocionais,
dependentes, mais inclinados a confiar na força alheia do que na iniciativa
própria. Num meio assim constituído, a iniciativa individual tende a ser
reprimida como atitude imprópria, anormal ou vagamente suspeita. Um povo
educado nessa linha tem menos um "complexo de inferioridade" do que uma
inferioridade real, introjetada ao longo dos séculos e valorizada como uma
espécie de prova de boa conduta. O fracasso ou a redução proposital das
expectativas de sucesso tornam-se, nesse quadro, a norma existencial mais ou
menos obrigatória. O proverbial mau tratamento dado pelos brasileiros a
qualquer pessoa bem sucedida em qualquer campo é a vingança
institucionalizada dos fracassados que nunca sonharam em ser outra coisa e
não admitem que alguém sonhe. O mais profundo derrotismo assume aí o valor
de uma atitude realista e adulta, toda ambição é condenada como sonho pueril,
como doença mental ou mesmo como sinal de desonestidade latente. É natural
que, nessas condições, fora os homens de gênio que são raros em qualquer
país, só os mais descarados, impudentes e amorais conseguem vencer a
barreira da inércia social. O resultado é a presença, nas classes
economicamente superiores, de um número anormalmente grande de
corruptos e desavergonhados - e, entre os intelectuais, professores e artistas,
de uma quota enorme de farsantes que alcançaram pelo alpinismo social o que
jamais conseguiriam pelo talento. Não é de estranhar que estes últimos vivam,
precisamente, de denunciar aqueles, adquirindo assim o prestígio de guardiões
da moralidade, escorados numa adesão fácil a qualquer discurso anticapitalista
apto a explorar o sentimento de inveja popular. Esse ambiente geral de farsa e
mentira torna o povo ainda mais hostil à ambição e ao sucesso. O rancor
invejoso é o sentimento normal predominante, descarregando-se em explosões
de indignação fingidamente moralista que, justamente por ser falsa e não
151
denotar senão a profunda confusão moral do povo, pode ser facilmente
explorada por movimentos políticos para gerar ainda mais corrupção a pretexto
de moralizar a ordem pública.
Não é preciso explicitar aqui o quanto essa constelação de fatores torna
inviável a economia liberal no Brasil. O anticapitalismo brasileiro está nas
raízes mesmas da conduta humana local e não na influência de "doutrinas".
Doutrinas não produzem efeitos tão profundos. Estes têm de emergir
diretamente da experiência da vida, traduzindo as impressões reais que as
pessoas colhem da sua luta pessoal pela auto-realização humana, impressões
que mais tarde determinarão até mesmo a modalidade peculiar de recepção
dada às "doutrinas". Para a quase totalidade da população brasileira, essas
impressões consistem basicamente, há séculos, em desgarramento,
insegurança, ausência de possibilidades de realização superiores, necessidade
de proteção de adaptação a um horizonte vital estreito.
O florescimento da economia capitalista requer, como condição interior na alma
de seus protagonistas, a ambição, a ousadia e a disposição de enfrentar a
realidade, e, como condição externa, um ambiente de confiança, lealdade e
moralidade. Ambas essas condições estão inviabilizadas desde a base pelos
fatores acima assinalados.
O estatismo, o burocratismo, o autoritarismo, a desorganização visceral, enfim
os vícios todos que os liberais não se cansam de assinalar entre os fatores que
inviabilizam o progresso capitalista neste país não vêm nem de doutrinas, nem
da pura ação predatória do Estado, mas de uma verdadeira doença existencial,
nascida de séculos de experiência real do fracasso, do desarraigamento moral
e da insegurança.
Por mais que o Brasil tenha mudado ao longo dos séculos, essa experiência
permanece constante: o mestiço do século XVIII, cortado de suas raízes e
jogado numa sociedade onde sua única esperança era abrigar-se sob as asas
de algum protetor idolatrado por fora e odiado por dentro, tem a mesma
experiência vital do cidadão de baixa classe média na atualidade, solto sem
referências morais ou culturais num ambiente de complexidade inabarcável,
onde não ousa delinear o mapa de um plano de vida mas busca apenas a
segurança imediata de um empreguinho sem perspectivas, passando o resto
dos seus dias a remoer a inveja disfarçada em indignação moral. Em ambos os
casos a única esperança é a do fracasso controlado, postiçamente dignificado
por ser igual ao de todos.
Não é possível, neste espaço, realizar o estudo abrangente que o assunto
requer com máxima urgência. Nas minhas aulas e conferências tenho
analisado vários aspectos desse complexo de encolhimento vital brasileiro.
Aqui, posso apenas assinalar a sua existência e sugerir que o exame do
152
assunto pode levar a conclusões bem diversas daquelas que têm prevalecido
na sondagem das causas da atrofia do capitalismo entre nós.
Crítica social e História
Jornal da Tarde, 11 de outubro de 2001
Toda crítica social tem por fundamento uma idéia do melhor. É só em
comparação com essa idéia que a sociedade existente pode parecer boa,
sofrível, má ou insuportável. Mas a idéia do melhor não surge do nada: é
pensada por homens concretos, membros da mesma sociedade que criticam.
Se considerarmos que a mentalidade desses homens é inteiramente um
"produto" da sociedade, então, das duas uma: ou eles próprios incorrem nos
males que denunciam, ou a sociedade, tendo dado a esses homens a idéia do
melhor, não pode ser tão má quanto eles dizem.
Logo, toda crítica social que pretenda ter algum fundamento só pode ser
baseada na premissa de que haja na consciência do homem uma dimensão
que transcende de algum modo a sociedade presente e na qual ele possa
instalar-se em pensamento para julgar essa sociedade desde fora ou desde
cima.
É evidente, no entanto, que o simples apelo verbal à instância legitimadora não
basta para dar validade à crítica. É preciso que esta não somente alegue, mas
prove sua filiação lógica à autoridade superior.
As críticas sociais, portanto, podem ser hierarquizadas numa escala de
validade estritamente objetiva, conforme (a) a legitimidade intrínseca da
autoridade convocada a legitimá-las; (b) a maior ou menor consistência lógica
do nexo entre a autoridade legitimadora e o conteúdo da crítica. Dito de outro
modo: (a) A autoridade da instância superior convocada a legitimar a crítica
pode ser falsa ou deficiente em si, como no caso do crítico que condena a
sociedade com base num puro modelo utópico de sua própria invenção. (b) Se
a autoridade alegada é válida em si, há ainda o risco de que a dedução que
dela extrai o crítico para validar a crítica determinada de uma sociedade
determinada não seja uma dedução válida logicamente.
Uma história das críticas sociais desde a Antiguidade até nossos dias
demonstraria facilmente que, ao longo dos tempos, as críticas sociais
formuladas no mundo ocidental vieram progressivamente perdendo validade ao
mesmo tempo que cresciam em virulência e em número de seguidores. Dito de
outro modo: à medida que passam os tempos, os críticos sociais perdem em
autoridade intrínseca o que ganham em pretensão e audiência.
Sei que esta observação é lamentável e que alguns, sem ter jamais estudado o
assunto ou sequer conscientizado minimamente a sua existência antes de ler
153
este artigo, a recusarão "in limine" e buscarão abrigo contra ela em toda sorte
de subterfúgios. Só o que tenho a dizer a esses é que não me amolem e vão
estudar. Aos demais, isto é, àqueles nos quais o enunciado de uma hipótese
suscite curiosidade em vez de indignação ou lágrimas, sugiro que comparem,
por exemplo, a crítica socrática à marxista. Esta última tem muito mais adeptos
e é muito mais feroz que a primeira, mas, ao declarar que a consciência dos
homens é "produto" da História, já não pode alegar outra instância legitimadora
senão a História mesma; mas, como a História não traz modelos para o seu
próprio julgamento e sim apenas o relato dos fatos consumados, não resta
alternativa ao crítico marxista senão deduzir da História transcorrida uma
hipótese de desenvolvimento futuro e tomá-la desde já como instância
legitimadora da crítica do presente. Nada prova que o desenvolvimento previsto
seja necessário nem que o estado de coisas dele resultante tenha de ser
melhor do que o presente estado de coisas; tudo isso é apenas hipótese e não
tem portanto autoridade legitimadora senão hipotética. Já a crítica de Sócrates,
que não angariou adeptos senão num círculo muito limitado, tinha um
fundamento muito mais sólido, pois as instâncias legitimadoras a que apelava
eram a certeza da morte e a autoridade intrínseca da razão, que nenhum
homem pode rejeitar.
Em desvantagem maior ainda fica o marxismo quando comparado à crítica
social dos profetas hebraicos, que extraíam sua autoridade do cumprimento
das profecias. A crítica de Moisés ao estado de coisas no Egito fundava-se no
seu preconhecimento dos meios concretos de levar o povo judeu a uma
situação melhor; e o sucesso do empreendimento deu plena comprovação às
suas pretensões. Esse é um argumento que nenhum marxista pode alegar em
apoio de suas críticas ao capitalismo. Bem ao contrário, as realizações
históricas do modelo socialista na URSS e na China foram de tal modo
decepcionantes, que os marxistas, após tê-las proclamado e defendido como
as mais puras e típicas expressões da superação marxista do capitalismo, hoje
se empenham "ex post facto" em explicá-las como desvios acidentais e em
limpar o marxismo de qualquer comprometimento com fracassos tão óbvios.
Jesus e a pomba de Stalin
O Globo, 20 de outubro de 2001
Quando Cristo disse: “Na verdade amais o que deveríeis odiar, e odiais o que
deveríeis amar”, Ele ensinou da maneira mais explícita que os sentimentos não
são guias confiáveis da conduta humana: antes de podermos usá-los como
indicadores do certo e do errado, temos de lhes ensinar o que é certo e errado.
Os sentimentos só valem quando subordinados à razão e ao espírito.
154
Razão não é só pensamento lógico: reduzi-la a isso é uma idolatria dos meios
acima dos fins, que termina num fetichismo macabro. Razão é o senso da
unidade do real, que se traduz na busca da coesão entre experiência e
memória, percepções e pensamentos, atos e palavras etc. A capacidade lógica
é uma expressão parcial e limitada desse senso. Também são expressões dele
o senso estético e o senso ético: o primeiro anseia pela unidade das formas
sensíveis, o segundo pela unidade entre saber e agir. Tudo isso é razão.
Espírito é aquilo que inspira a razão a buscar a chave da unidade da visão do
mundo no supremo Bem de todas as coisas e não num detalhe acidental
qualquer, tomado arbitrariamente como princípio de explicação universal, como
algumas escolas filosóficas fazem com a linguagem, outras com a História,
outras com o inconsciente etc. O espírito é o topo do edifício da razão, que por
ele se abre para o sentido do Bem infinito, libertando-se da tentação de
enrijecer-se num fetichismo trágico ou utópico.
Nem a razão nem o espírito se impõem. Só nos abrimos a eles por livre
vontade. A abertura para a razão vem essencialmente da caridade, do amor ao
próximo, pelo qual o homem renuncia a impor seu desejo e aceita submeter-se
ao diálogo, à prova, ao senso das proporções e, em suma, ao primado da
realidade. A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere,
que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão
subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a
grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da
maturidade. O homem maduro -- o spoudaios de que fala Aristóteles -- é
aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o
seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua
comunidade para o bem. Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a
comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de
Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais ativistas são apenas homens
imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus
temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem.
A abertura ao espírito é um ato de confiança prévia no bem supremo da
existência, ato sem o qual a razão perde o impulso ascendente que a anima e,
fugindo do infinito, se aprisiona em alguma pseudototalidade, mais alienante
ainda que o egoísmo subjetivo inicial. O nome religioso desse ato de confiança
é fé, mas a confiança que eleva a razão à busca do infinito transcende o
sentido da mera adesão a um credo em particular e tem antes uma dimensão
antropológica: tudo o que o ser humano fez de bom, fez movido pela fé e por
meio da razão.
O espírito e a razão educam os sentimentos. Os sentimentos do homem
amadurecido pelo espírito e pela razão são diferentes dos do homem imaturo,
porque aquele ama o que deve amar e odeia o que deve odiar, enquanto o
155
segundo ama ou odeia às tontas, segundo as inclinações arbitrárias da sua
subjetividade moldada pelas pressões e atrativos do meio social.
Mas o que atrai a alma para a abertura ao espírito e à razão é a esperança, e o
despertar da esperança é um mistério. Homens submetidos à mais dura
opressão e aos mais tormentosos sofrimentos conservam sua esperança,
enquanto outros a perdem à primeira frustração de um desejo tolo. A
esperança não está sob o nosso controle. Seu advento depende do espírito
mesmo, que sopra onde quer. Todos os enredos humanos, da vida e da ficção,
giram em torno do mistério da esperança.
A esperança, a fé e a caridade educam os sentimentos para o amor ao que
deve ser amado. O culto idolátrico dos sentimentos é um egocentrismo
cognitivo, um complexo de Peter Pan que recusa a maturidade. Quanto mais o
homem busca afirmar sua liberdade por meio da adesão cega a seus
sentimentos e desejos, mais se torna escravo da tagarelice ambiente. O
caminho da liberdade é para cima, não para baixo. Libertar-se não é afirmar-se:
é transcender-se.
Das várias formas de escravidão a que o homem se sujeita pelo culto dos
sentimentos, a pior é a escravidão às palavras. Por meio do falatório em torno
o homem pode ser adestrado para ter certos sentimentos e emoções à simples
audição de determinadas palavras, independentemente dos fatos e do
contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam reações automáticas. Por isso
as massas imaturas aceitam com a maior credulidade os novos regimes de
governo que prometem acabar com as guerras e instaurar a paz. Mas é só
nominalmente que guerra significa morticínio e paz significa tranqüilidade e
segurança. As guerras, no século XX, mataram 70 milhões de pessoas. É
muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso, foram mortos por seus
próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O homem maduro
sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um exame
criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do mal
misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da
Paz, oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a
Pablo Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da
Pax soviética -- a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo,
prisões em massa e genocídio -- se sobrepusesse, na imaginação dos povos,
ao símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto
a Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até
missas pela paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No
dicionário, os sentidos da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o
homem maduro não se refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a
absolutos verbais.
156
Igualdade, liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras
foram também incutidas na mente das massas como programas de
computador para acionar nelas automaticamente as emoções desejadas pelo
programador, fazendo com que amem o que deveriam odiar e odeiem o que
deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e da caridade, se torna aí uma
arma contra o espírito, quando se coisifica na expectativa de um mundo
melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das contas, de ganhar mais
dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas esperanças a que
Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo Cristo,
encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só
ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de
Stalin.
Guerra de religião?
Época, 20 de outubro de 2001
Para Bin Laden, o Corão sempre foi apenas um pretexto
Em 24 de setembro Bin Laden disse que as forças americanas entravam no
Afeganistão “sob a bandeira da Cruz”. Dias depois, chamou George W. Bush
de “chefe dos infiéis”. Só isso já basta para evidenciar que sua alegação de
“guerra santa” nunca passou de um subterfúgio, de um disfarce ideológico.
Segundo o Corão, ninguém pode ser ao mesmo tempo cristão e infiel. Cristãos
e judeus estão claramente incluídos na categoria corânica de “povos do Livro”
(ahl al-kitab), reconhecidos como uma espécie de muçulmanos avant la lettre.
Sua salvação está assegurada, em termos inequívocos, na Sura V:69: “Os que
crêem (no Corão), os que seguem as escrituras judaicas, e os sabeanos e os
cristãos – e quem quer que acredite em Deus e no Dia do Juízo e faça o bem –
, esses nada temam, pois não serão afligidos”.
Um muçulmano consciente pode alegar que a mensagem recebida de Deus
pelos “povos do Livro” é incompleta, que eles não a seguiram corretamente ou
até que a deturparam, mas não que são “infiéis” ou “idólatras”.
Na verdade, o Islã, acusado de sectarismo estreito, é a mais ecumênica das
religiões: na sua doutrina da sucessão dos profetas, de Adão a Maomé, estão
incluídas e legitimadas todas as religiões monoteístas, concebidas como
patamares históricos de uma revelação única que culmina na “Laylat-al-Qadr”,
a “Noite do Poder”, quando o Arcanjo Gabriel começa a ditar a Maomé os
versículos do Corão. “Infiéis”, a rigor, são aí somente os ateus, os idólatras
(politeístas) e aqueles monoteístas que, de má-fé, radicalizem as diferenças
157
entre suas doutrinas respectivas e a mensagem corânica para denegrir esta
última, em vez de reverenciar o mistério da unidade por trás da diversidade.
Ao chamar Bush ora de cristão, ora de infiel, Bin Laden mostrou não falar como
um religioso sério, mas como alguém que quer dizer algo contra seu adversário
e, na fúria, escolhe qualquer coisa a esmo, acabando por apelar a rótulos que
se contradizem.
Seria preciso mais para provar que a oposição desse homem ao Ocidente
nunca foi inspirada em motivos corânicos válidos, mas sim em alguma outra
coisa, em cuja propaganda o Corão foi chamado a servir de ornamento retórico
para encobrir sob altas motivações religiosas uma ambição política
soberbamente má?
Porém, na mesma medida, essas considerações impugnam a tirada
antimuçulmana com que o historiador Paul Johnson deu substancial ajuda
involuntária tanto aos inimigos do Islã quanto aos de Israel e do Ocidente.
Pretendendo demonstrar a radical hostilidade do Islã às demais religiões,
especialmente ao cristianismo, Johnson citou a Sura IX:5: “Matai os idólatras
onde quer que os encontreis, e capturai-os, e cercai-os e usai de emboscadas
contra eles”. Mesmo em seu sentido mais geral possível, o termo “idólatras”
não se aplica aos povos monoteístas. Nessa passagem em especial, ele se
refere aos politeístas de Meca mencionados no versículo anterior, que “fizeram
um pacto contigo (Maomé) e depois faltaram ao combinado”. A esses Maomé
deveria perseguir, capturar e matar, como de fato ele fez e é fato
historicamente bem conhecido. Porém, mesmo nesse caso a autorização para
o uso da força não era ilimitada, pois Maomé, ao entrar vitorioso em Meca, fez
cessar imediatamente qualquer perseguição aos inimigos, condenando à morte
apenas os cinco principais e perdoando todos os outros – com certeza a mais
branda reparação de guerra de todos os tempos. Portanto, um dos dois
interpretou errado o versículo: ou Maomé, ou Paul Johnson. É verdade que
uma leitura parecida com a de Johnson foi usada às vezes por chefes
muçulmanos para incitar à violência contra os cristãos, mas é óbvio que então
se afastaram bastante da interpretação dada em atos pelo Profeta e, como no
Islã as ações e palavras do Profeta são a fonte máxima de autoridade na
exegese do Corão , é claro que esses homens, como Bin Laden, não eram
muçulmanos muito ortodoxos.
Lições de obviedade
O Globo , 01 dez 2001
158
Ao longo de seis ou sete anos de polêmicas, raramente encontrei um opositor
que evidenciasse conhecer, mesmo por alto, as exigências mais elementares
da demonstração lógica e da argumentação em geral.
Tantos foram os que tentaram invalidar meus argumentos, e tão obviamente
falhas as objeções que me apresentaram, que a coleção delas bastaria para
ilustrar um tratado como as "Refutações Sofísticas" de Aristóteles ou a
"Dialética Erística" de Schopenhauer.
Cheguei a publicar uma versão comentada desta última obra e um breve
estudo sobre a lógica de Aristóteles, na louca esperança de que meus
opositores, tomando consciência de que não discutiam com um opinador
casual, mas com um estudioso e por assim dizer quase um especialista da arte
da prova, notassem o ridículo a que se expunham e, ao menos por instinto de
autopreservação, passassem a opinar menos e a estudar mais.
Foi em vão. Continuaram vindo, com a mesma empáfia de sempre, com a
mesma autoconfiança insensata de sempre e, como sempre, sem os devidos
recursos intelectuais para enfrentar a discussão.
Convidados a assumir as conseqüencias lógicas de suas opiniões
insustentáveis, recuavam e buscavam refúgio numa afetação de silêncio
superior, acompanhada, às vezes, de tentativas de me cassar a palavra pelo
uso da influência, das amizades, dos jogos políticos, quando não da intriga e
da difamação. Paradoxalmente chamavam-me então "autoritário", confundindo
a força da lógica com a lógica da força.
Coletei amostras disso nos dois volumes de "O Imbecil Coletivo". Depois de
publicados, os casos avolumaram-se o bastante para compor três volumes
suplementares.
São tantos os exemplos que não posso supô-los desprovidos de significação
sociológica, como indícios de um estado generalizado de inépcia e
mesquinharia mental que caracteriza a fase mais negra da história da
inteligência nacional - ou, se preferem, da burrice nacional.
São os frutos da formação (ou deformação) imposta a uma geração pelos
ídolos da intelectualidade esquerdista dos anos 60-70 - não citarei nomes
porque todos os conhecem.
Esses professores, que já eram limitadíssimos, impuseram à juventude de
então limitações ainda mais estreitas, ao mesmo tempo que lhe infundiam o
despropositado orgulho de constituir "a parcela mais esclarecida da
população". Não há hoje um só "formador de opinião", de meia idade, que não
tenha conservado essa fé intacta, em formol.
Por isso é já não resta, entre eles, quase ninguém que saiba distinguir, por
exemplo, entre afirmações factuais e opiniões. Por isso, cada afirmação de fato
que apresento é respondida como "opinião extremada" ou coisa assim.
159
O apelo à moderação soa simpático. Entre opiniões extremadas e moderadas,
o brasileiro, tradicionalmente, prefere as moderadas. Moderação é sinônimo de
equilíbrio, maturidade, sensatez.
Mas até a busca do equilíbrio, quando se sobrepõe ao senso da realidade e se
enrijece num vício de percepção, pode levar aos piores desequilíbrios. E é
evidentemente um desequilíbrio aplicar os conceitos de "moderado" e
"extremado" em domínios onde não cabem de maneira alguma.
Extremismo e moderação só podem aparecer em juízos de valor, em
apreciações pessoais, em opções tomadas livremente numa gama de opções
possíveis.
A simples alegação de um estado de fato não pode ser moderada nem
extremada. Pode ser apenas verdadeira ou falsa, exata ou inexata - e só pode
ser confirmada ou impugnada pela aferição dos dados, não pela denúncia de
más qualidades psicológicas no falante. Se dizemos que um sujeito está morto,
não há nisto extremismo ou moderação: ele não poderia estar extremamente
morto ou moderadamente morto, como uma mulher não pode estar
moderadamente grávida ou um círculo ser extremamente circular.
Na mesma linha está a confusão entre os fatos alegados e as causas
aventadas para explicá-los. Fatos mostram-se pela percepção, pelos
testemunhos e pelos documentos. Causas demonstram-se por lógica e
argumentação. O modus cognoscendi é bem diverso num caso e no outro.
Basta saber disso para perceber que a afirmação de um fato não pode ser
impugnada pela negação de qualquer de suas possíveis causas. Desmentidas
todas as causas, restaria ainda o fato. Invalidada a explicação, restaria o dado
a explicar. E quantas vezes não encontrei acadêmicos, escritores, homens
públicos que acreditavam poder contestar a afirmação de um estado de fato
mediante a alegação da improbabilidade, real ou aparente, de alguma de suas
possíveis causas? Pior ainda, freqüentemente era alguma causa hipotética que
não fôra sequer aventada por mim, mas suposta por eles próprios e atribuída a
mim por autoprojeção.
Para compensar ou disfarçar a pobreza e a deformidade de suas respectivas
apreensões da realidade, esses objetores faziam amplo uso das rotulações
pejorativas ("reacionário", "paranóico"), bem como dos argumentos ad baculum
(alegar que minhas idéias eram "perigosas") , ad populum (tomar como
axiomas inquestionais os lugares-comuns da mídia ou as crenças do seu
próprio grupo de referência) e ad ignorantiam (usar a própria ignorância de um
fato como prova de que ele não acontecera) - enfim, de todo o arsenal de
falácias primárias que todo estudante teria a obrigação de conhecer e evitar.
Mais freqüente ainda eram afetações de bom-mocismo - para evitar a
discussão objetiva, saltavam para a exibição de bons sentimentos, de
"cidadania", "modernidade", "progressismo", etc., como se algum juízo de
160
existência pudesse ser impugnado ou validado por esses meios, como se não
houvesse a menor diferença entre um discurso de apreensão da realidade e
um discurso de auto-reforço psicológico. O empenho obsessivo de exibir
normalidade para dar ao adversário ares de louco é, em especial, um sintoma
de insegurança disfarçada, principalmente quando se substitui à argumentação
efetiva em vez de simplesmente sublinhá-la.
É tanta a insistência nessas atitudes que sinto que essas pessoas já não
distinguem entre a realidade dos fatos e os sentimentos autoprovocados pela
imaginação e como que treinados diante do espelho. Generalizada essa
indistinção, o ambiente intelectual nacional tornou-se idêntico ao dessas
revistas de fofocas televisivas, onde os relatos de casamentos, divórcios e
peripécias gerais vividas durante a semana pelos personagens de novelas são
acompanhados pelo povão como se fossem o noticiário de acontecimentos
reais.
Não estou, de maneira alguma, aludindo a algum contraditor em particular.
Praticamente todos os que encontrei até hoje foram debatedores que uniam, à
profunda desonestidade na argumentação, a total inconsciência dessa
desonestidade.
Se alguém em particular tivesse se destacado nisso, se o fenômeno não fosse
tão geral e repetido, eu nem me daria o trabalho de escrever a respeito.
Fantamasgoria verbal
Jornal da Tarde, 23 de maio de 2002
Há uma diferença substancial entre aderir a uma posição política, julgando os
fatos com base nela, e tomar conhecimento de fatos que, por sua força
intrínseca, e mesmo contra a nossa vontade, acabam por mudar nossa opinião
política.
Três obstáculos tornam difícil aos brasileiros de hoje perceber essa diferença
na prática, se não mesmo apreendê-la conceptualmente.
O primeiro é o tradicional verbalismo nacional. Verbalismo não é amor às
palavras. Também não é falar muito. É um mau hábito de percepção verbal,
que faz o sujeito reagir emocionalmente à simples menção de certas palavras,
sem esperar para obter uma adequada representação imaginativa das coisas e
fatos mencionados.
O segundo obstáculo é o analfabetismo funcional, endêmico nas nossas
classes superiores. Analfabetismo funcional é impossibilidade de produzir a
representação imaginativa da coisa lida ou ouvida. É um upgrade do
verbalismo. É verbalismo compulsório.
161
O terceiro é o adestramento ideológico marxista, que encobre e protege sob a
capa de um discurso automatizado os dois vícios acima, tornando-os
inacessíveis às mais engenhosas terapêuticas.
O verbalista salta direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo
trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações
imaginativas. Daí sua tendência a comover-se ante simples jogos vocabulares
que, bem examinados, não significam nada e não podem suscitar emoção
nenhuma. Todo o sucesso do movimento concretista em poesia deveu-se a
esse tipo de leitores.
O analfabeto funcional não pode alcançar a representação imaginativa: ou
permanece insensível à mensagem verbal ou tem de projetar sobre ela algum
conteúdo da memória, escolhido ao acaso das associações de idéias e
embebido de conotações valorativas deslocadas do assunto.
O sujeito ideologicamente adestrado já traz na memória todo um repertório de
conteúdos prontos para ser projetados sobre qualquer mensagem, o que o
dispensa e protege do contato intelectual com o interlocutor e lhe dá ao mesmo
tempo o sentimento tranqüilizante de estar compreendendo tudo da situação.
(Há dois tipos de adestrados ideológicos: os assumidos, cândidos ou antigos,
que crêem piamente na ideologia salvadora e não hesitam em oferecê-la como
resposta a todos os problemas, e os enrustidos, maliciosos ou modernos, que
se dizem livres de preconceito ideológico, mas, não tendo nenhum outro
sistema de referências pelo qual orientar-se, continuam julgando tudo segundo
os cânones da ideologia que pensam ter abandonado.)
No fundo, essas três doenças são a mesma, tomada em três níveis de
gravidade crescente. O sujeito começa verbalista por herança cultural
doméstica. Passa a analfabeto funcional pela consolidação do vício tornado
irreversível. Por fim, ao receber instrução universitária, reveste-se aí daquela
carapaça verbal que, consolidando e legitimando os dois vícios anteriores sob
o rótulo de cultura superior, o tornará para sempre imune ao impacto de novas
mensagens verbais. Só na educação superior o desenvolvimento da estupidez
lingüística alcançará aquele patamar de estabilidade que permitirá ao sujeito
não compreender nada e julgar tudo. O verbalista e o analfabeto funcional
ainda têm uma fresta de insegurança, por onde pode entrar um raio de luz. A
instrução universitária veda o buraco e encerra o sujeito numa escuridão
perfeitamente segura.
Por isso são as pessoas instruídas as que mais têm dificuldade de atinar com a
diferença que mencionei. Para essas, não há verdade e mentira, fato e ficção,
lógica e nonsense. Há apenas “posições políticas” -- a delas e a dos outros. Na
verdade não há nem isso, porque uma opinião política própria é conhecida
instantaneamente pelo sujeito no simples ato de inventá-la, ao passo que a
alheia requer atenção, estudo e objetividade, inacessíveis por definição a essas
162
criaturas. Então, para elas, só existe uma coisa: sua própria posição política, da
qual a adversária não é senão a inversão projetiva, produto totalmente
imaginário. Daí a facilidade com que enxergam a unidade de uma conspiração
adversa por trás dos produtos mais díspares e heterogêneos da inventividade
ideológica humana, compondo com eles o desenho de um inimigo impossível
que é ao mesmo tempo liberal e conservador, saudosista da Idade Média e
democrata burguês, católico e maçom, sionista e nazista. Que esse inimigo não
possa existir no mundo real, pouco lhes importa: se deixassem de acreditar na
existência dele, veriam que sua própria existência é fantasmal e ilusória.
História marxista é charlatanismo
O Globo, 27 de maio de 2002
Com honrosas e inevitáveis exceções, a historiografia disponível no mercado
livreiro nacional é de orientação predominantemente marxista ou filomarxista.
Por isso nossa visão da História é estereotipada e falsa ao ponto de confundir-
se com a ficção e a propaganda. A História que os brasileiros aprendem nas
escolas e nos livros é uma História para cabos eleitorais.
É que ninguém pode ser marxista também sem ler tudo com suspicácia
paranóica em busca de motivações políticas ocultas, e abster-se, por princípio,
de fazer o mesmo com aquilo que se escreve. Com a maior naturalidade um
marxista escarafunchará o “discurso do poder” nas entrelinhas dos autores
mais apolíticos e devotados à pura ciência, ao mesmo tempo que se recusará a
examinar a presença do mesmo elemento em tipos que, como ele, estão
ostensivamente empenhados na luta pelo poder.
Para o marxista, a História, por definição, não é ciência descritiva ou
explicativa, mas arma de luta por um objetivo bem determinado. “Não se trata
de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.” O passado não tem pois aí
nenhum direito próprio à existência, senão como pretexto para o futuro que se
tem em vista. Daí que deformá-lo seja, para o historiador marxista, um direito e
até um dever.
Marxismo, em suma, é inconsciência sistematizada.
E note-se que estou falando do marxismo melhorzinho, intelectualmente
“respeitável”. Decerto não é esse tipo de marxismo que se pratica
majoritariamente, no Brasil ou fora: é um marxismo de “agitprop”, que busca
antes o escândalo das denúncias anticapitalistas do que o conhecimento
histórico mesmo num sentido longínquo e metafórico do termo.
Um exemplo é esse desprezível “Genocídio americano — A Guerra do
Paraguai”, de Júlio J. Chiavenato, que consagrou por vinte anos o mito
comunista de uma luta genocida a serviço do banco Rothschild, até ser
163
completamente destroçado por Francisco Fernando Monteoliva Doratioto no
recém-publicado “Maldita guerra — Nova história da Guerra do Paraguai”.
Mesmo em obras de pura consulta o charlatanismo marxista não deixa de
introduzir as mais escabrosas falsificações. Já denunciei aqui um grotesco
“Dicionário crítico do pensamento de direita”, obra de 114 sumidades
acadêmicas, que excluía sistematicamente todos os pensadores direitistas
mais célebres — de T. S. Eliot a von Mises, de Böhm-Bawerk a Irving Kristol e
Russel Kirk — colocando em lugar deles grosseiros panfletários nazistas como
Goebbels e Streicher, para dar a impressão de que direitistas não pensam e,
quando pensam, é para premeditar crimes hediondos.
Mas o caso mais escandaloso, pelo volume e pelas ambições, é o “Livro negro
do capitalismo”, preparado às pressas por uma equipe de historiadores
filocomunistas para neutralizar o vexame do “Livro negro do comunismo”.
Neste último, um grupo de marxistas arrependidos, com Stéphane Courtois à
frente, fazia as contas e confessava que, com seu total mínimo de cem milhões
de vítimas, o comunismo tinha sido o maior flagelo de todos os tempos,
superando os efeitos somados de todas as guerras, epidemias e terremotos do
século mais violento da História.
Mais que depressa, a tropa esquerdista designou uma equipe de emergência,
com Gilles Perrault no comando, para transmutar o prejuízo em lucro. Missão:
produzir a ferro e fogo cem milhões de vítimas do capitalismo, de modo a
estabelecer, na impossibilidade do resgate da imagem comunista, ao menos
um arremedo de equivalência moral entre os dois regimes.
É verdade que países capitalistas se meteram em guerras e mataram pessoas.
Mas uma coisa é matar inimigos em guerra, outra coisa é um Estado dizimar
sua própria população civil. O total de cem milhões de vítimas apontado por
Stéphane Courtois excluía, por princípio, soldados mortos em campo de
batalha, atendo-se ao genocídio praticado pelos comunistas contra populações
desarmadas, quase sempre nos seus próprios países. Nada de semelhante
podia-se encontrar nas nações capitalistas, exceto mediante o expediente de
chamar “capitalistas” o regime nacional-socialista ou o feudalismo da China
imperial. Perrault e assessores não hesitaram em fazer isso, mas ainda assim
os números ficavam muito abaixo do desejado. Era preciso, pois, falsear mais
fundo, incluindo na soma das “vítimas do capitalismo” os combatentes mortos
em batalhas. Mas mesmo então o capitalismo saía bonito. Os EUA, por
exemplo, em todas as intervenções militares em que se meteram ao longo de
um século, não mataram mais de dois milhões de inimigos, uma quota bem
modesta para um país que se pretendia carimbar como a mais agressiva
potência imperialista de todos os tempos.
Perrault e sua turma, por fim, salvaram-se da encrenca mediante a decisão
cínica de atribuir ao capitalismo a culpa por todas as mortes ocorridas na II
164
Guerra Mundial (50 milhões no total, incluindo as efetuadas pelas tropas
nazistas e soviéticas), na guerra civil da Rússia (6 milhões, incluindo a metade
liquidada pelo governo revolucionário), na guerra do Vietnã (2 milhões,
incluindo as vítimas dos vietcongues), na guerra na Argélia (um milhão e
duzentas mil, incluindo as que foram mortas pelos rebeldes comunistas), na
guerra civil espanhola (700 mil mortos dos dois lados) e — santa misericórdia!
— no massacre de Ruanda (500 mil mortos, todos eles sacrificados pela
incitação igualitarista dos “pobres” hutus contra os “ricos” tutsis).
E assim por diante.
Resultado: debitando-se na conta capitalista os crimes cometidos pelos
comunistas, o capitalismo se revelava mesmo um regime tão violento e
maldoso quanto o comunismo, ficando assim estabelecida a equivalência
moral, quod erat demonstrandum.
Será que chamar isso de vigarice, de intrujice barata, de propaganda
enganosa, é apenas uma “opinião política”, tão discutível e moralmente relativa
quanto sua contrária? Ou é uma questão de moralidade elementar?
Mas se o leitor pensa que alguns dos protagonistas dessas façanhas sente ao
menos um pouco de vergonha do que fez, está muito enganado. Todos têm a
consciência tranqüila de trabalhar pelo bem e pela verdade. Se lhes atiramos
na cara a iniqüidade de seus feitos, eles nos viram as costas com a altivez
principesca de quem não dá atenção a qualquer um, muito menos a (vade
retro!) anticomunistas.
Mais ainda, com a mesma cara-de-pau com que deformam o conjunto eles
mentem nos detalhes. Logo atrás do sucesso de Perrault aparecia o dr. Emir
Sader, nas orelhas de um livro de Alain Besançon, falsificando com a maior
sem-cerimônia o conteúdo da obra: se no corpo do texto o autor afirmava que
os crimes nazistas eram muito mais alardeados pela mídia do que os
comunistas, o homúnculo das orelhas, mentindo duplamente, nos fatos e na
fonte, invertia a informação, alegando que todos só queriam falar do
comunismo e nunca do nazismo...
Será exagero dizer que a falsa consciência levada a esse ponto é uma forma
de sociopatia?
O comunismo depois do fim
Jornal da Tarde, 06 de junho de 2002
Imagine que, finda a II Guerra Mundial, morto o Führer nas profundezas do seu
bunker, restaurada a democracia na Alemanha, um consenso tácito universal
decidisse que os crimes de guerra nazistas não deveriam ser investigados nem
punidos, que o Partido Nazista continuaria na legalidade sob deminações
165
diversas, que uma boa parte dos campos de concentração deveria continuar
funcionando ao menos discretamente, que ninguém na Gestapo ou nas SS
seria demitido ou interrogado e que alguns bons funcionários dessas lindas
instituições deveriam ser mesmo postos no comando da nação.
Nessas condições, você acreditaria em "fim do nazismo"? Ou antes perceberia
aí um imenso "upgrade" desse movimento satânico, despido de sua aparência
mais óbvia e comprometedora, sutilizado e disseminado no ar como um vírus
para contaminar toda a humanidade?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se, preservados os meios desubsistência
e expansão desse movimento, a mídia internacional e a opiniãoelegante
decretassem instantaneamente a mais drástica repressão moral a todo
antinazismo explícito, acusando de paranóico e antidemocrático quem
ousasseespecular, mesmo de longe, sobre os riscos de um retorno do regime
nazistasob outro nome?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se, decorrido meio século desua
pretensa extinção, toda tentativa de investigar e divulgar a extensãodos seus
crimes fosse condenada publicamente como uma inconveniência, um pecado,
um maldoso revanchismo?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se, na Alemanha e fora dela, qualquer
crítica mais pesada aos que em outras épocas fizeram a apologia desse regime
genocida fosse banida e perseguida como um delito ou no mínimo como um
sinal de patologia mental?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se por toda parte os que fizeram
propaganda nazista fossem paparicados e homenageados não só como
grandes figuras da vida intelectual e artística mas como defensores da
liberdade e dos direitos humanos?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se notórios militantes pró-nazistas
estivessem subindo ao poder por via eleitoral em várias nações do Terceiro
Mundo, enquanto em outras espoucassem guerrilhas, revoluções e golpes de
Estado inspirados na pregação nazista?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se as nações que supostamente o
venceram estivessem cercadas por uma campanha de ódio internacional
apoiada por partidos e organizações nazistas?
Você acreditaria em "fim do nazismo" se todos os que se auto-rotulassem "ex"-
nazistas fizessem apenas críticas muito vagas e genéricas ao regime de Hitler,
mudando de assunto rapidamente, mas em contrapartida continuassem
atacando o antinazismo como o pior dos males?
Pois então, santa misericórdia, por que acredita em "fim do comunismo"? O
movimento comunista internacional não foi desmantelado, nem debilitado, nem
mesmo acusado do que quer que fosse. Na Rússia o Partido Comunista
conserva um bom número de cadeiras no parlamento, a KGB (com nome
166
trocado pela milésima vez desde Lênin) continua funcionando a pleno vapor
com verbas superiores às de todos os serviços secretos ocidentais somados, o
Gulag continua repleto de prisioneiros. Na China, no Vietnã, na Coréia do Norte
e em Cuba um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas vivem ainda sob
o Estado policial comunista que, a cada nova promessa de liberalização feita
para seduzir investidores estrangeiros, mais aperta as engrenagens da
repressão e estrangula qualquer veleidade de oposição organizada. Na
América Latina e na África, novos regimes comunistas ou pró-comunistas
surgem e,
diante dos olhos complacentes da mídia internacional, demantelam pela
violência ou pela chicana todas as oposições, demolem as garantias de
liberdade individual e o direito de propriedade e fomentam guerrilhas e
revoluções nos países vizinhos, com o apoio das redes de tráfico de
entorpecentes montadas pela KGB e pela espionagem chinesa desde os anos
60, hoje crescidas ao ponto de controlar a economia de países inteiros. Nas
nações capitalistas supostamente triunfantes, slogans, valores e critérios da
"revolução cultural" marxista dos anos 60 se impõem oficialmente nas escolas
e nos lares como um dogmatismo inquestionável, ao mesmo tempo que um
lobby comunista de dimensões tricontinentais controla rigidamente o fluxo do
noticiário nos principais jornais e canais de TV, e nas universidades a ortodoxia
marxista consegue calar pela intimidação e pela chantagem as poucas vozes
discordantes.
Como, em sã consciência, alguém que saiba dessas coisas pode afirmar que o
comunismo acabou ou que ele não representa mais perigo algum?
Do marxismo cultural
O Globo, 8 de junho de 2002
Segundo o marxismo clássico, os proletários eram inimigos naturais do
capitalismo. Lênin acrescentou a isso a idéia de que o imperialismo era fruto da
luta capitalista para a conquista de novos mercados. Conclusão inevitável: os
proletários eram também inimigos do imperialismo e se recusariam a servi-lo
num conflito imperialista generalizado. Mais apegados a seus interesses de
classe que aos de seus patrões imperialistas, fugiriam ao recrutamento ou
usariam de suas armas para derrubar o capitalismo em vez de lutar contra seus
companheiros proletários das nações vizinhas.
Em 1914, esse silogismo parecia a todos os intelectuais marxistas coisa líquida
e certa. Qual não foi sua surpresa, portanto, quando o proletariado aderiu à
pregação patriótica, alistando-se em massa e lutando bravamente nos campos
de batalha pelos “interesses imperialistas”!
167
O estupor geral encontrou um breve alívio no sucesso bolchevique de 1917,
mas logo em seguida veio a se agravar em pânico e depressão quando, em
vez de se expandir para os países capitalistas desenvolvidos, como o previam
os manuais, a revolução foi sufocada pela hostilidade geral do proletariado.
Diante de fatos de tal magnitude, um cérebro normal pensaria, desde logo, em
corrigir a teoria. Talvez os interesses do proletariado não fossem tão
antagônicos aos dos capitalistas quanto Marx e Lênin diziam.
Mas um cérebro marxista nunca é normal. O filósofo húngaro Gyorgy Lukacs,
por exemplo, achava a coisa mais natural do mundo repartir sua mulher com
algum interessado. Pensando com essa cabeça, chegou à conclusão de que
quem estava errado não era a teoria: eram os proletários. Esses idiotas não
sabiam enxergar seus “interesses reais” e serviam alegremente a seus
inimigos. Estavam doidos. Normal era Gyorgy Lukács. Cabia a este, portanto, a
alta missão de descobrir quem havia produzido a insanidade proletária. Hábil
detetive, logo descobriu o culpado: era a cultura ocidental. A mistura de
profetismo judaico-cristão, direito romano e filosofia grega era uma poção
infernal fabricada pelos burgueses para iludir os proletários. Levado ao
desespero por tão angustiante descoberta, o filósofo exclamou: “Quem nos
salvará da cultura ocidental?”
A resposta não demorou a surgir. Felix Weil, outra cabeça notável, achava
muito lógico usar o dinheiro que seu pai acumulara no comércio de cereais
como um instrumento para destruir, junto com sua própria fortuna doméstica, a
de todos os demais burgueses. Com esse dinheiro ele fundou o que veio a se
chamar “Escola de Frankfurt”: um “think tank” marxista que, abandonando as
ilusões de um levante universal dos proletários, passou a dedicar-se ao único
empreendimento viável que restava: destruir a cultura ocidental. Na Itália, o
fundador do Partido Comunista, Antônio Gramsci, fôra levado a conclusão
semelhante ao ver o operiado trair o internacionalismo revolucionário, aderindo
em massa à variante ultranacionalista de socialismo inventada pelo renegado
Benito Mussolini. Na verdade os próprios soviéticos já não acreditavam mais
em proletariado: Stálin recomendava que os partidos comunistas ocidentais
recrutassem, antes de tudo, milionários, intelectuais e celebridades do “show
business”. Desmentido pelos fatos, o marxismo iria à forra por meio da auto-
inversão: em vez de transformar a condição social para mudar as
mentalidades, iria mudar as mentalidades para transformar a condição social.
Foi a primeira teoria do mundo que professou demonstrar sua veracidade pela
prova do contrário do que dizia.
Os instrumentos para isso foram logo aparecendo. Gramsci descobriu a
“revolução cultural”, que reformaria o “senso comum” da humanidade, levando-
a a enxergar no martírio dos santos católicos uma sórdida manobra publicitária
capitalista, e faria dos intelectuais, em vez dos proletários, a classe
168
revolucionária eleita. Já os homens de Frankfurt, especialmente Horkheimer,
Adorno e Marcuse, tiveram a idéia de misturar Freud e Marx, concluindo que a
cultura ocidental era uma doença, que todo mundo educado nela sofria de
“personalidade autoritária”, que a população ocidental deveria ser reduzida à
condição de paciente de hospício e submetida a uma “psicoterapia coletiva”.
Estava portanto inaugurada, depois do marxismo clássico, do marxismo
soviético e do marxismo revisionista de Eduard Bernstein (o primeiro tucano), a
quarta modalidade de marxismo: o marxismo cultural. Como não falava em
revolução proletária nem pregava abertamente nenhuma truculência, a nova
escola foi bem aceita nos meios encarregados de defender a cultura ocidental
que ela professava destruir.
Expulsos da Alemanha pela concorrência desleal do nazismo, os frankfurtianos
encontraram nos EUA a atmosfera de liberdade ideal para a destruição da
sociedade que os acolhera. Empenharam-se então em demonstrar que a
democracia para a qual fugiram era igualzinha ao fascismo que os pusera em
fuga. Denominaram sua filosofia de “teoria crítica” porque se abstinha de
propor qualquer remédio para os males do mundo e buscava apenas destruir:
destruir a cultura, destruir a confiança entre as pessoas e os grupos, destruir a
fé religiosa, destruir a linguagem, destruir a capacidade lógica, espalhar por
toda parte uma atmosfera de suspeita, confusão e ódio. Uma vez atingido esse
objetivo, alegavam que a suspeita, a confusão e o ódio eram a prova da
maldade do capitalismo.
Da França, a escola recebeu a ajuda inestimável do método
“desconstrucionista”, um charlatanismo acadêmico que permite impugnar todos
os produtos da inteligência humana como truques maldosos com que os
machos brancos oprimem mulheres, negros, gays e tutti quanti, incluindo
animais domésticos e plantas.
A contribuição local americana foi a invenção da ditadura lingüística do
“politicamente correto”.
Em poucas décadas, o marxismo cultural tornou-se a influência predominante
nas universidades, na mídia, no show business e nos meios editoriais do
Ocidente. Seus dogmas macabros, vindo sem o rótulo de “marxismo”, são
imbecilmente aceitos como valores culturais supra-ideológicos pelas classes
empresariais e eclesiásticas cuja destruição é o seu único e incontornável
objetivo. Dificilmente se encontrará hoje um romance, um filme, uma peça de
teatro, um livro didático onde as crenças do marxismo cultural, no mais das
vezes não reconhecidas como tais, não estejam presentes com toda a
virulência do seu conteúdo calunioso e perverso.
Tão vasta foi a propagação dessa influência, que por toda parte a idéia antiga
de tolerância já se converteu na “tolerância libertadora” proposta por Marcuse:
“Toda a tolerância para com a esquerda, nenhuma para com a direita”. Aí
169
aqueles que vetam e boicotam a difusão de idéias que os desagradam não
sentem estar praticando censura: acham-se primores de tolerância
democrática.
Por meio do marxismo cultural, toda a cultura transformou-se numa máquina de
guerra contra si mesma, não sobrando espaço para mais nada.
Almas Escravas
Jornal da Tarde, 04 de julho de 2002
A escravidão psíquica jamais é reconhecida como tal pelo escravo.
Reconhecê-la seria pensá-la, expô-la como objeto ante os olhos da mente e,
portanto, libertar-se no mesmo instante. A objetivação é impossível para a alma
escrava, que se identifica com os desejos autodestrutivos injetados nela pelo
escravizador a ponto de tomá-los como seus próprios e personalíssimos,
rejeitando como insultuosa qualquer sugestão de desapegar-se deles por um
momento para examiná-los com alguma distância e frieza. Essa recusa
obstinada é inerente ao processo mesmo da escravidão mental e baseia-se
num motivo psicológico fortíssimo: a defesa inconsciente contra o temor da
humilhação. Não há, de fato, humilhação maior que a de tombar do alto de uma
ilusão lisonjeira, e nada mais lisonjeiro, numa época de igualitarismo e ódio a
todo princípio hierárquico, do que imaginar-se livre e autônomo. Assim, o
orgulho mesmo que a vítima tem da sua liberdade reforça as grades da sua
prisão invisível.
Não pensem que eu esteja falando de processos obscuros, nebulosos e
complexos. O uso de técnicas de escravização psíquica é rotina nos
movimentos revolucionários e totalitários desde a década de 30. Bastaria talvez
um pouco de estudo para livrar-nos de sua influência. Os livros sobre o assunto
são abundantes, desde os clássicos de Pavlov e Léon Festinger até o
notabilíssimo Machiavel Pédagoguez de Pascal Bernardin. Mas, precisamente,
esse estudo requer do sujeito a humildade preliminar de reconhecer-se
vulnerável a manipulações. E quem, desde a Revolução Francesa, está
disposto a admitir que em sua alma, como na de todo ser humano, há um
instinto de submissão? Outrora esse instinto encontrava satisfação ritual na
devoção religiosa, que, ao espiritualizá-lo, o tornava inofensivo.
Hoje em dia, quanto menos reconhecido, mais facilmente pode ser manipulado
desde fora. Por isso mesmo a era da democracia tornou-se a era da
escravização mental. Ninguém é mais sujeito à escravidão do que aquele que
acredita que a liberdade é seu estado natural, inseparável dele como sua
herança genética. Daí que a escravidão só possa ser reconhecida desde fora,
pelo observador que, consternado, vai notando o empobrecimento vital da
170
vítima, o estreitamento do horizonte de suas possibilidades de ação, a
progressiva transferência do seu centro decisório consciente para o
automatismo de uma lógica estranha e hostil que o leva à autodestruição.
Nada mais nítido, hoje em dia, do que a ação desse mecanismo na alma
daquelas lideranças políticas e empresariais que, quanto mais se prosternam
ante as exigências do esquerdismo triunfante, mais são rotuladas "de direita"
por uma esquerda assim investida do poder de criar, a seu bel-prazer, a direita
que mais lhe convenha.
A docilidade instantânea com que essas criaturas macaqueiam qualquer novo
cacoete verbal da esquerda, a presteza de sua adesão ilusoriamente esperta e
oportunista a qualquer nova corrente de força injetada no psiquismo social por
uma estratégia revolucionária cujos contornos gerais lhes escapam por
completo - tais são, inequivocamente, sinais alarmantes de enfraquecimento
vital, de passividade crescente, de perda de toda capacidade de iniciativa.
Sinais, diria Nietzsche, do desejo de morrer.
Nem falemos, por obviedade excessiva, do tal sr. Alencar. Quando, meses
atrás, assinalei que Roseana Sarney, na qual muitos viam uma pujante
liderança liberal-conservadora emergente, não passava de uma escrava mental
do esquerdismo, quantos não vieram me dizer que era exagero, paranóia,
hiperbolismo conjetural? Pois agora está aí: a ex-futura-candidata do PFL vai
aderindo velozmente à campanha de Lula, num ritual de auto-sacrifício
masoquista que já se oferece para suportar, com estóica resignação, todas as
esnobações inevitáveis, em troca de não sei que migalhas imaginárias.
Tal é a "direita" que temos - a direita com que a esquerda sempre sonhou, a
direita que, a rigor, a esquerda mesma criou para seu próprio uso e deleite.
Uma direita de pragmatistas estreitos, suicidariamente orgulhosos do
praticismo terra-a-terra que só os desarma e os torna escravos de qualquer
estratégia que transcenda seu horizonte de visão intelectual.
"Hegemonia", no fim das contas, é precisamente isso: domínio do espaço
aéreo, visão abrangente daquilo que o adversário não enxerga.
Psicologia do fanatismo
Jornal da Tarde, 21 de novembro de 2002
Victor Frankl descrevia o fanático por dois traços essenciais: a absorção da
individualidade na ideologia coletiva e o desprezo pela individualidade alheia.
"Individualidade" é a combinação singular de fatores que faz de cada ser
humano um exemplar único e insubstituível. Há individualidades mais e menos
diferenciadas. Quanto mais diferenciadas, menos podem ser reduzidas a
tipicidades gerais e mais requerem a intuição compreensiva da sua fórmula
171
pessoal. Isto se observa, mais nitidamente, na obra dos grandes artistas e
filósofos, para não falar dos santos e profetas.. É só de maneira parcial e
deficiente que a personalidade criadora se enquadra em categorias gerais
como "estilo de época", "ideologia de classe", etc., que os cientistas sociais
inventaram para falar de médias humanas indistintas, mas que o estudioso
medíocre insiste em aplicar como camisas-de-força a tudo o que vá além da
média.
Nessa insistência já se manifesta, em forma disfarçada e socialmente
prestigiosa, o fanatismo definido por Frankl. Boa parte da "ciência social" de
hoje não é senão o recorte das individualidades segundo a medida da
mediocridade-padrão. Antonio Gramsci, que limitava o papel dos seres
humanos ao de agentes ou pacientes da luta de classes -- excluindo os
incatalogáveis como aberrações ou como resíduos arqueológicos de etapas
anteriores da mesma luta --, foi, nesse sentido, um gênio da mediocridade e um
codificador-mor do fanatismo. A palavra "fanático", aplicada ao fundador do
PCI, parecerá insultuosa e inaceitável aos que, como bons medíocres, só
entendem "fanatismo" na acepção vulgar e quantitativa da exaltação frenética.
O verdadeiro fanatismo, ao contrário, é inteiramente compatível com a
serenidade do tom e enverga, não raro, convincentes sinais de "moderação". O
fanático não precisa ser irritadiço, nervoso ou hidrófobo. Apenas, ele está tão
afinado com a ideologia coletiva que ela basta como canal para a expressão de
seus sentimentos, vivências e aspirações, sem nada sobrar daquele hiato,
daquele abismo que o homem diferenciado vê abrir-se, com freqüência, entre
seu mundo interior e o universo em torno. Ele pensa e sente com o partido,
ama e odeia com o partido, quer com o partido e age com o partido. Tudo o
que no seu ser escape dessa bitola é desimportante ou doente. Nossa época e
nosso país acrescentaram a isso um trejeito grotesco que assinala a última
rendição da alma: o militante enxerta a sigla da agremiação no seu nome de
batismo, tornando-se "Joãozinho do PT", "Mariazinha do PT". Nem o velho
Partidão chegou a tanto. A filiação partidária já não é a simples aprovação
crítica e condicional que a personalidade autônoma dá a certas idéias políticas:
tornou-se o fator estruturante e a essência vivificadora da personalidade
mesma, que sem ela tombaria como um saco vazio. A função nomeante e
definidora, antes reservada às famílias, às profissões e às regiões, cabe agora
ao partido.
Ao mesmo tempo; a filiação dá ao fanático uma localização e um ponto de
apoio no espaço externo: pela ideologia coletiva ele se integra tão bem no
mundo, que nunca se sente isolado e estranho senão pelo curto intervalo de
tempo necessário a reconquistar o sentido da sua missão partidária e de seu
lugar na História, jogando fora com desprezo o momento de "morbidez".
Jamais deslocado neste mundo, ele não aspira a nenhum transmundo senão
172
sob a forma de um futuro cronológico a ser realizado neste mesmo plano de
existência. Nada o arraiga mais profundamente na temporalidade, no histórico,
do que sua rejeição do presente, contra o qual ele brada: "Um outro mundo é
possível", querendo dizer, precisamente, que se trata deste mesmo mundo, tão
logo subjugado pelo seu partido. Kant, com ironia involuntária, denominava o
espírito da Revolução "sabedoria mundana". A compressão do infinito no finito
não poderia ser mais explícita do que no verso do poeta comunista Paul
Éluard: "Há outros mundos, mas estão neste." Não poderia? Poderia. Gramsci
já apregoava "a total mundanização do pensamento". O fanático, nesse
sentido, é desprovido daquela solidão, daquela profundidade, daquela
tridimensionalidade próprias dos que "estão no mundo, mas não são do
mundo". Ele, ao contrário, pode "não estar" no mundo, mas, com toda a
intensidade do seu ser, "é" do mundo.
Num próximo artigo mostrarei como isso torna o fanático incapaz de perceber a
individualidade alheia.
Ainda o fanatismo
Jornal da Tarde, 05 de dezembro de 2002
O segundo traço da personalidade fanática, assinalado por Victor Frankl, é o
desprezo pela individualidade alheia.
A estrutura da individualidade manifesta-se antes de tudo como hierarquia de
metas vitais, diversa em cada ser humano. O que é essencial para um é
secundário para outro. Mas todas as metas refletem, de algum modo, algum
valor universal, que pode ser reconhecido e apreciado por quem não as
compartilhe. Não quero necessariamente para mim o que você quer para você,
mas reconheço que querê-lo é bom para você. O homem que deseja a riqueza
aprecia o que busca o conhecimento, este respeita o que busca a perfeição
artística, a felicidade no casamento, o sucesso político, etc. Um mesmo homem
pode, de modo simultâneo ou sucessivo, perseguir objetivos diversos, cada um
deles traduzindo, na situação do momento, os mesmos valores de base. Para o
fanático, só há um objetivo autêntico: as metas do seu partido ou seita. As
outras nada valem em si mesmas, tornando-se boas ou más conforme se
ajustem ou se afastem daquelas. Digamos, por exemplo, a caridade. Para
quem a cultue, ela é, por si, a meta, o valor e o critério supremo das ações.
Para o esquerdista fanático, ela é um símbolo inócuo, que adquire valor
positivo ou negativo conforme seu uso político. Num momento pode ser
condenada como ilusão individualista burguesa, noutro enaltecida como virtude
máxima do cidadão, conforme apareça como alternativa autônoma ou como
173
prática social integrada na estratégia de esquerda, como aconteceu com a
"campanha do Betinho".
Se, no entanto, você insiste em reafirmar seus próprios critérios,
independentemente do serviço ou desserviço que prestem às metas políticas
que ele tem em vista, o fanático tem de ignorar você como irrelavante ou
enquadrá-lo como inimigo. Reconhecer seus objetivos vitais como
independentes, ah!, isto não. Nunca. Esse reconhecimento equivaleria a fazer
do sacrossanto ideal político que ele cultua um simples valor vital entre outros,
e isto é precisamente o que ele não pode admitir de jeito nenhum. Daí que ele
seja incapaz de compreender os outros nos próprios termos deles. Ele tem de
traduzi-los na linguagem do seu próprio ideal, isto é, reduzi-los a amigos ou
inimigos do partido, e julgá-los em função disso, por menos que caibam nesse
molde pré-fabricado.
Eric Voegelin, quando jovem, não era a favor nem contra o racismo. Era a favor
da ciência histórica. Estudou a história da ideologia racista e, tendo concluído
que ela não tinha nada a ver com a realidade biológica das raças, publicou
essa conclusão num livro. Mas, para os nazistas, a ciência histórica não era um
critério autônomo admissível. A história tinha de ser a favor do partido ou
contra ele. No dia seguinte, a Gestapo estava no encalço de Eric Voegelin.
Boris Pasternak não era a favor nem contra o socialismo. Era a favor da boa
poesia lírica, da expressão genuína dos sentimentos humanos. Mas, para o
fanático socialista, isso não vale como critério autônomo. A poesia lírica, se não
serve ao socialismo, serve aos inimigos do socialismo. Pasternak foi
condenado à prisão como inimigo do Estado soviético.
O que o fanático nega aos demais seres humanos é o direito de definir-se nos
seus próprios termos, de explicar-se segundo suas próprias categorias. Só
valem os termos dele, as categorias do pensamento partidário. Para ele, em
suma, você não existe como indivíduo real e independente. Só existe como
tipo: "amigo" ou "inimigo". Uma vez definido como "inimigo", você se torna, para
todos os fins, idêntico e indiscernível de todos os demais "inimigos", por mais
estranhos e repelentes que você próprio os julgue. Eu, por exemplo, já fui
catalogado pelos esquerdistas como parceiro ideológico do sr. Lyndon
LaRouche, que por sua vez me considera um porta-voz de tudo o que ele
abomina. Haverá como explicar a ele ou a eles que não tenho nada a ver com
isso?
As intenções pessoais da vítima, aí, desaparecem por completo. Se, por
exemplo, você é contra o socialismo por motivos morais e filosóficos que nada
têm a ver com o interesse das "classes dominantes" que o socialista diz
combater, pouco importa: para ele, você é um ideólogo das classes
dominantes. E, se você responde que o que está em jogo para você é algo de
completamente diverso, ele nem lhe dá ouvidos: você já está catalogado, e
174
catalogá-lo é o máximo de gentileza que ele pode conceder a alguém que, aos
olhos dele, só serve precisamente para isso.