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SRGIO ADORNO
MEMORIAL
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SRGIO ADORNOSrgio Frana Adorno de Abreu
MEMORIAL
APRESENTADO COMO EXIGNCIA PARCIAL PARA O CONCURSO DE
TTULOS E PROVAS VISANDO PROVIMENTO DE UM CARGO DE
PROFESSOR TITULAR, NO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, REA DE
SOCIOLOGIA DA VIOLNCIA.
(D.O.E. V.113, NO. 123, 03/07/2003)
SO PAULO, DEZEMBRO 2003
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PRIMEIRA PARTE
Os anos de formao (1952-1984)
asci em So Paulo, no bairro da Bela Vista, no ano de 1952.
Meu pai provinha de uma famlia numerosa, doze irmos.
Famlia de origem espanhola, meus avs tinham sido
trabalhadores do campo. Pobres, haviam migrado por inmeras cidades do
interior do estado de So Paulo, como apanhadores de algodo e de caf. Em
algumas cidades interioranas, fixavam-se por algum tempo. Tendo meu av
morrido muito cedo, todos os filhos desde a pr-adolescncia tiveram que
cooperar com o sustento da famlia numerosa. Posteriormente, foram, pouco
a pouco, migrando em direo capital do estado de So Paulo. Meu pai foi o
primeiro a vir. Como havia concludo o curso primrio, coisa rara entre os
cidados de sua classe social, conseguiu emprego em um cartrio. No servio
N
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burocrtico, em cartrios de registros e em tabelionatos de notas fez sua
carreira profissional como escrevente, at aposentar-se, diga-se contra sua
vontade, por motivo de sade. Por volta de meados da dcada de 1940,
conheceu minha me, no crculo de amizades comuns. Curiosamente, minha
av materna e minha tia, irm de minha me, tambm eram escreventes em
cartrio, aspecto que foi marcante em minha formao familiar.
As origens sociais de minha me eram diferentes. Minha av materna
era filha de imigrantes italianos cujo pai, engenheiro civil, havia deserdado do
exrcito italiano, o qual poca, ltimo quartel do sculo XIX, estava
envolvido com as lutas pela unificao do territrio italiano. No Brasil, meu
bisav paterno conheceu sua esposa, italiana de Triestre, que chegara ao
Brasil muito jovem. Casados, tiveram nove filhas, a maior parte nascida em
Itu, no interior do Estado de So Paulo. Algumas delas inclusive chegaram a
completar sua educao no famoso Colgio Nossa Sra. do Patrocnio,
poca importante instituto de formao escolar de jovens procedentes das
famlias de grandes proprietrios rurais. Mais tarde emigraram para So
Paulo. Minha av materna, a penltima das nove filhas, teve uma educao
esmerada, na escola da praa, como era conhecido nas primeiras dcadas
do sculo passado o Instituto Caetano de Campos, uma das escolas pblicas
mais prestigiadas da capital. No chegou a se formar professora primria.
Desistiu para casar-se com meu av materno, jovem proprietrio de uma
auto-escola, que morreu com trinta anos de idade, aps oito anos de
matrimnio. Viva, com trs filhos - minha me, a filha mais velha, tinha
poca sete anos -, foi trabalhar em um escritrio no bairro do Bom Retiro.
Posteriormente, empregou-se como escrevente de cartrio, em um
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tabelionato de notas da capital, onde permaneceu at aposentar-se. Minha
me concluiu o curso primrio e prosseguiu sua formao profissional na
rea de comrcio. Ainda adolescente, empregou-se em um escritrio, de onde
se desligou por ocasio de seu matrimnio, em 1948. Meus pais tiveram seis
filhos, apenas quatro vivos. Na ordem sucessria, sou o segundo; porm o
primeiro do sexo masculino. Esta , como se sabe, uma circunstncia muito
marcante em famlias extensas, com algumas heranas patriarcais perdidas
no tempo.
Conclui o antigo curso primrio em uma escola da rede particular de
ensino, Externato Jardim So Paulo, situado no bairro onde morvamos,
pertencente ao distrito de Santana, zona Norte da capital. No perodo de 1964
a 1970, realizei meus estudos secundrios em escolas da rede pblica.
Realizei o antigo ginsio (5aa 8asries) no Colgio Estadual Padre Antnio
Vieira. Graduei-me no extinto curso Clssico, no Instituto de Educao Dr.
Octvio Mendes que, em fins da dcada de sessenta, gozava de prestgio nos
crculos estudantis e pedaggicos.
A passagem para a escola pblica deveu-se fundamentalmente a duas
razes. Como famlia, gozvamos do bem-estar prprio da classe mdia
expandida durante o desenvolvimentismo dos anos 50 do sculo passado.
Passamos a enfrentar enormes dificuldades para garantir o mesmo padro de
bem-estar quando sobreveio a crise econmico-social e poltica que resultou
no golpe de 1964. Entre outros, os negcios imobilirios estavam como que
parados. O dinheiro rareava, os juros eram altos e, de modo geral, a incerteza
fazia com que as pessoas evitassem se desfazer de seu patrimnio imobilirio;
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poca, considerado, entre as modalidades patrimoniais, o mais seguro,
menos sujeito s intempries do mercado, a despeito das enormes
desconfianas de que o eventual advento do comunismo no Brasil pudesse
liquidar com a propriedade privada. Como no havia negcios imobilirios,
no havia escrituras e, conseqentemente, os rendimentos de meu pai, o
nico provedor familiar, estavam se tornando cada vez mais escassos. O
caminho para a escola pblica, pelo menos para os meninos mais tarde
para as meninas tambm foi necessrio e natural. Mas, no insuportvel.
Pelo contrrio, grande parte da escola pblica secundria gozava de imenso
prestgio e o acesso s vagas disponveis exigia que o candidato se submetesse
a um rigoroso e concorrido exame de admisso. Desta forma, aquilo que hoje
possa parecer a muitos jovens um sinal de decadncia na hierarquia social,
em minha adolescncia foi vivido como sinal de ascenso e de orgulho
pessoal.
O ambiente intelectual na escola pblica secundria, em especial no
curso clssico, era estimulante: professores competentes, debates em salas de
aula, incentivo pesquisa bibliogrfica, leituras de textos em ingls e/ou
francs, trabalho em grupo, seminrios. Foi nesse clima intelectual que tomei
contato com Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodr e Celso Furtado, quando
se cuidava de interpretar nosso passado colonial e os rumos que assumira a
sociedade brasileira em sua etapa moderna e contempornea. Os nomes e
obras de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso e de Octavio
Ianni tambm no eram estranhos. No plano da histria universal, lia-se
Pirrene, Pierre Mantoux e Hobsbawn. No mbito da literatura, recordo-me
com prazer de haver lido Doroty Parker e mesmo LEtranger, de Albert
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Camus, lado a lado dos grandes clssicos da literatura brasileira, em especial
Alencar, Machado de Assis, os modernistas paulistas e os romancistas
regionalistas. Aprendia-se muito sobre o pas debruando-se sobre seus
literatos.
Nunca demais lembrar, essa foi uma poca de intensa efervescncia
poltica e cultural a que no estiveram imunes os estudantes secundrios. O
apelo participao era grande. Havia o desejo de contribuir para a
mudana, para a construo de um mundo melhor, mais justo, onde as
diferenas no acentuassem to profusamente as desigualdades sociais e
onde reinassem paz e felicidade. Esse desejo estava do lado da juventude,
concebida quela poca como uma fora mpar capaz de levar frente esses
propsitos. No tinha medo das mudanas, no firmara compromissos com o
passado e com o status quo, via com desconfiana e suspeita tudo o que
sugerisse continuidade e conservao. Ademais, era movida pelo mpeto
revolucionrio de derrubar pilastras para construir novos e modernos
edifcios sociais.
Julgo que as influncias familiares os interesses humanistas
provenientes da herana paterna e o cultivo da sociabilidade ldica e
igualmente responsvel, legado materno aliado ao contexto social, poltico
e cultural da poca que incitava ao encontro com as utopias respondem por
minha inclinao para o curso de cincias sociais. Ingressei nesse curso,
proporcionado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, em 1971, tendo me submetido a concorrido
vestibular. No prestei outro vestibular o da PUC, por exemplo pois no
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teria como pagar faculdade. Hesitei entre direito e cincias sociais. Por um
lado, as influncias burocrticas normativas e a busca de um futuro
profissional seguro (como assim esperava minha me, alis, como todas
esperam!) inclinavam-me para o campo do direito. Todavia, a vontade de
compreender o mundo e o que se passava no pas, de experimentar algo novo,
no convencional numa famlia pequeno-burguesa, alm de uma vontade
imensa de poder ensinar foram decisivos para minha escolha pelas cincias
sociais. Bacharelei-me no ano de 1974. No ano seguinte, obtive licenciatura
pela Faculdade de Educao da USP.
O curso de Cincias Sociais, no incio da dcada de setenta,
comportava uma estrutura curricular algo distinta da estrutura atual. Havia
como disciplinas bsicas: Sociologia I e II, Cincia Poltica I e II,
Antropologia I e II, Estatstica I e II, Mtodos e Tcnicas de Pesquisa I e II,
Economia I e II, e Geografia. As disciplinas das reas de Sociologia,
Antropologia e Cincia Poltica ocupavam a maior carga horria semanal. As
disciplinas de Sociologia eram ministradas, via de regra, segundo um modelo
pedaggico no qual eram dedicadas duas horas semanais de aulas
expositivas, oportunidade em que o docente responsvel pela disciplina
dissertava sobre tema determinado, com base em bibliografia bsica e
complementar. As exposies eram verdadeiras conferncias, nas quais se
deixavam entrever, entre outras qualidades, a reflexo crtica refinada, o
modo como o docente articulava proposies, idias, teses e argumentos, a
par dos rigores conceitual e metodolgico. Eram aulas ministradas para
grande auditrio, em anfiteatros. Como carga didtica complementar,
despendiam-se quatro horas com seminrios, com base em textos
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previamente indicados, sob a orientao de um docente e um pblico de
alunos que no excedia a vinte e cinco. O aproveitamento era bastante
satisfatrio, limitado apenas pela capacidade dos discentes em cumprir um
volume aprecivel de leituras bem como de assimilar, em curto espao de
tempo, contedos diversificados e formas argumentativas complexas.
Lembro-me, com satisfao, das dificuldades que enfrentei ao ler o primeiro
captulo de Les Aventures de la Dialectique, de Merleau-Ponty [Paris,
Gallimard, 1977 (1955)], onde h belssima crtica do mtodo de tipos ideais de
Weber; ou um complicadssimo texto de Adorno, Sobre esttica e dinmica
como categorias sociolgicas, captulo da coletnea de ensaios Sociolgica
[Barcelona, Ed. Taurus], no qual o autor explora as dimenses a-histricas do
positivismo.
Por essa poca, aprendi a diferena entre ler e estudar um texto.
Aprendi a gostar de revisitar o texto, apreender-lhe o contexto, seu tecido e
tessitura, a olhar nas entrelinhas como se, tal como na msica, a escritura
comportasse diferentes compassos, distintos andamentos e diversos ritmos,
sugerindo mltiplos coloridos sonoros e imaginrios.
Os demais crditos eram preenchidos com disciplinas optativas
oferecidas pelas reas, ou por outros cursos de responsabilidade de outros
Departamentos ou Unidades da USP. Compus meu currculo escolar,
privilegiando as disciplinas optativas de sociologia e secundariamente as de
cincia poltica. Creio haver freqentado quase todas as especialidades
sociolgicas oferecidas pelo Departamento de Cincias Sociais quela poca:
teoria e metodologia, sociologia urbana, sociologia rural, sociologia do
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desenvolvimento, sociologia da cultura, sociologia poltica. Esta opo
inclinou-me, dentre as cincias sociais, para a sociologia. Minha formao
acadmica, a despeito de slida, comportou lacunas, sobretudo, no mbito da
histria, da antropologia e da teoria do conhecimento. A primeira delas
procurei superar no curso de ps-graduao, onde tambm reforcei meus
conhecimentos em teoria poltica clssica e contempornea. Posteriormente,
busquei suprimir lacunas no terreno da antropologia, seja estudando algumas
contribuies tericas contemporneas, como as de Lvi-Strauss e de Geertz,
por exemplo, mas tambm acompanhando, ainda que de modo parcial e
espordico, algumas contribuies no domnio da antropologia urbana, em
especial dos problemas culturais em sociedades complexas. No posso, sob
qualquer hiptese, considerar-me antroplogo, mesmo porque no domino o
trabalho etnolgicocomme il faut. Penso, contudo, que os antroplogos me
sensibilizaram para a complexa problemtica da cultura, dos universos
simblicos e da produo do sentido em suas articulaes e conexes com o
mundo das instituies e com os processos de dominao e de sujeio
prprios da sociedade moderna.
Durante o curso de cincias sociais, participei de algumas experincias
de pesquisa que foram decisivas em minha formao. Em algumas disciplinas
optativas, era exigido, como avaliao, um pequeno trabalho de campo o que
nos levava a exercitar nossa sensibilidade sociolgica para alm das leituras e
das discusses de sala de aula. Lembro-me de haver realizado um
levantamento de dados sociais, para a disciplina de metodologia de pesquisa
quantitativa, junto a famlias de trabalhadores de baixa renda, moradoras em
bairros operrios. Foi uma experincia inesquecvel. Lembro-me tambm de
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haver realizado, com um grupo de colegas, um enorme levantamento de
dados sobre a questo agrria nas Assemblias Constituintes de 1934 e 1946,
que resultou posteriormente em publicao [Cf. Adorno, S. e outros. A questo
agrria nas Assemblias Constituintes de 1934 e 1946. Cadernos de Poltica Comparada. So
Paulo: Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, FFLCH/USP, v.3, no. 1, pp. 10-34,
1987].
Mas, sem dvida, a experincia mais significativa e que, em grande
parte, influenciou minhas opes temticas no interior da sociologia poltica,
foi ter participado de um projeto coletivo de pesquisa sobre egressos
penitencirios, sob a orientao da Profa. Dra. Maria Clia Paoli, com apoio
da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP (1973-
1974). Durante dois anos, uma equipe de quatro estudantes de cincias
sociais desenvolveu um programa de leituras, realizou levantamentos
documentais bem como entrevistas com egressos que participavam de
programas de reinsero social, patrocinados, por exemplo, pelo Rotary Club.
O envolvimento em projeto coletivo de pesquisa fez com que o aprendizado
em sala de aula adquirisse um sentido novo, para alm da aquisio de
informaes especializadas ou do conhecimento dos modelos e escolas de
pensamento sociolgico. Essa foi uma experincia mpar que fincou razes
definitivas em minha formao. Mais propriamente encaminhou-me para o
aprendizado de um segredo cientfico (e por que no, profissional?) qual
seja o modo sociolgico de pensar. Foi um privilgio ter participado desse
projeto e de ter desfrutado da generosidade e da inteligncia da Profa. Maria
Clia Paoli. A pesquisa resultou no relatrioPlos de Agresso na sociedade
urbana: anlise sociolgica da criminalidade e de suas formas de
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conteno [Relatrio de Pesquisa, FAPESP, 1976]. Resultou ainda em artigo
publicado [Adorno, S. e outros: Preso um dia, preso toda a vida: a condio de
estigmatizado do egresso penitencirio. TEMAS IMESC. Soc.Dir.Sade. So Paulo, 1(2): 101-
07, 1984]. Considero esse um dos estudos pioneiros sobre a questo da
violncia urbana no Brasil, mais particularmente em So Paulo, ao lado dos
estudos igualmente pioneiros de Antonio Luiz Paixo (UFMG) e Edmundo
Campos Coelho (IUPERJ), na esteira dos quais foram realizados e publicados
estudos certamente mais amadurecidos de Alba Zaluar, Teresa Caldeira,
Vinicius Caldeira Brant, Rosa Fischer, Maria Victria Benevides e PauloSrgio Pinheiro.
Uma vez Bacharel em Cincias Sociais, fui trabalhar em um rgo
estatal: Instituto de Medicina Social e de Criminologia de So Paulo (IMESC).
Trata-se de uma autarquia vinculada Secretaria de Estado dos Negcios da
Justia, que realiza percias mdicas para o Poder Judicirio, bem comopromove pesquisas e congressos. No perodo de 1976 a 1980, produzi
pequenos estudos nesse terreno controvertido e pouco assptico da
criminologia. Dirigi um grande projeto de investigao sobre o uso de drogas
na populao escolar no municpio de So Paulo do qual conservo alguma
frustrao. O trabalho de campo foi adequadamente planejado em seus
mnimos detalhes, assim como executado segundo convenes cientficas
rgidas. O levantamento de dados compreendeu uma amostra
estatisticamente representativa de cerca de seis mil escolares, tanto na rede
privada quanto na pblica, treinamento de quinze coletores de informaes,
elaborao de manual de instrues, superviso de qualidade etc. Por razes
alheias minha vontade, no foi possvel acompanhar o processamento
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eletrnico de dados, que me pareceu conter vcios insanveis. Produzi o
primeiro e nico relatrio de pesquisa [Investigao sobre farmacodependncia na
populao escolar de So Paulo. 1. Relatrio. Aspectos Epidemiolgicos. IMESC Ilustrado.
So Paulo: IMESC, Secretaria de Justia do Estado de So Paulo, ano II, v. II, no. 3, 1979],
cujos resultados foram divulgados de modo equivocado e com interesses
escusos. Esse fato, conjugado ausncia de horizontes futuros no IMESC no
incio dos anos oitenta, estimulou-me a pleitear uma licena sem
vencimentos por dois anos.
Desde 1978, havia ingressado no Programa de Ps-Graduao em
Sociologia sob orientao do Prof. Dr. Gabriel Cohn. Entre 1978 e 1981,
freqentei disciplinas e participei de seminrios. No incio de 1980, meu
orientador sugeriu-me que preparasse projeto para candidatar-me a uma
bolsa de mestrado ofertada pela FAPESP. Elaborei o projeto O Liberalismo
na Formao da Ordem Social Competitiva que, aprovado, me permitiuconcentrar, durante dois anos, na pesquisa que, afinal, acabou resultando em
uma tese de doutorado em Sociologia, sob o ttulo A Arte da Prudncia e da
Moderao O Liberalismo e a Profissionalizao dos Bacharis na
Academia de Direito de So Paulo (1827-1883). [cf. Diploma registrado sob no.
006337, no Livro Ps-Graduao, fls. 23, processo no. 30.026/85]. Ao final de dois
anos, retornei ao IMESC e passei a dar aulas, no perodo noturno, em uma
instituio de ensino superior da rede privada Faculdades Integradas
Alcntara Machado FIAM, no curso de Comunicaes. Neste nterim,
escrevi, a convite da Editora Global, um pequeno ensaio intitulado O que
todo cidado deve saber sobre Constituio [So Paulo: Global, 1983], que
alcanou at quarta edio.
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A pesquisa que fundamentou a tese de doutorado em sociologia teve
por objeto a ideologia liberal no Brasil ps-independncia, baseado em
estudo de caso sobre a formao dos bacharis na Faculdade de Direito de
So Paulo, no perodo compreendido entre 1827 e 1883. Defendi a tese em
dezembro de 1984 perante banca constituda pelos Profs. Drs. Gabriel Cohn
(presidente da banca e orientador), Maria Victria Benevides, Dalmo de
Abreu Dallari, Clia G. Quirino dos Santos e Regis S. de Castro Andrade,
tendo obtido a nota 10,0 (dez) com distino. Com essa mesma tese, obtive,
em 1985, o primeiro prmio no concurso de teses universitrias, rea de
sociologia, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, fazendo jus
publicao do texto. A Secretaria de Cultura no honrou seu compromisso e o
texto no chegou a ser publicado. Felizmente, no ano de 1987, acolhendo
simptica sugesto de Paulo Srgio Pinheiro e de Michel Hall, a Editora Paz e
Terra props sua publicao, concretizando-a no ano seguinte, sob o
sugestivo ttulo Os Aprendizes do Poder (O Bacharelismo Liberal na Poltica
Brasileira)[Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988], que mereceu referncias e resenhas
em jornais de So Paulo, do Rio de Janeiro e Braslia.
Em junho de 1996, submeti-me ao concurso de Livre-Docncia, em
Sociologia, rea de Sociologia Poltica, da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas FFLCH/USP, perante comisso julgadora constituda
pelos Profs. Drs. Paulo Srgio Pinheiro (Presidente, DCP-USP), Helosa
Fernandes (DS-USP), Maria Victria Benevides (Faculdade de Educao
USP), Jos Eduardo Faria (Faculdade de Direito USP) e Sylvia Leser de Mello
(Instituto de Psicologia USP). Alm de provas convencionais (didtica, escrita
e de argio de memorial), apresentei a tese A gesto urbana do medo e da
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insegurana (violncia, crime e Justia Penal na sociedade brasileira
contempornea), baseada no conjunto de pesquisas que vim desenvolvendo
at dezembro de 1995, reunindo alguns textos anteriormente publicados e
revisados e captulos novos. A tese nunca foi publicada sob a forma de livro,
em grande parte devido a hesitaes pessoais e ao desejo, sempre renovado,
de atualizar os dados empricos, j que se tratava de uma tese concentrada na
anlise da conjuntura ps-transio e consolidao democrticas. No
entanto, sob a forma de captulos e de artigos em revistas especializadas, o
texto foi quase integralmente publicado. Sobre a natureza deste texto, falarei
mais adiante, no item dedicado pesquisa. [Vide documento em anexo].
Esses anos de formao deixaram um lastro do qual no consigo mais
me desvencilhar e que continuam influenciando minha vida acadmica,
cientfica e profissional. Em primeiro lugar, persisto acreditando no primado
das cincias sociais sobre as disciplinas especializadas. Acho que a boa
formao sociolgica no pode prescindir, sobretudo, de uma formao,
mnima que seja porm slida, em antropologia e cincia poltica.
Certamente, no pode prescindir tambm dos conhecimentos
proporcionados pela filosofia, pela psicologia social, pela psicanlise, pela
histria, pela economia poltica, pelo urbanismo, pelo estudo das artes, em
especial da literatura. Embora eu me reconhea como socilogo cujas
razes espero sustentar ao longo deste memorial , no me sinto
completamente desconfortvel ao transitar por terrenos mais propriamente
antropolgicos ou mais afinados com a cincia poltica. Gosto
particularmente de ler etnografias bem conduzidas, de acompanhar o olhar
antropolgico em sua inquirio pelo aparente non-sensede nossos universos
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simblicos, das descobertas inusitadas e do exerccio rigoroso do princpio da
alteridade como fundamento epistemolgico do conhecimento. Os temas do
poder, do estado e suas instituies, da formao das ideologias polticas e,
em especial, da governabilidade (no sentido mais propriamente foucaultiano)
continuam a suscitar meu interesse. Gosto de reler os clssicos da filosofia e
da cincia poltica. Acho que esse foi um perfil favorvel para que eu fosse
convidado a me candidatar ao cargo de secretrio executivo da Associao
Nacional de Ps-Graduao em Cincias Sociais ANPOCS.
Uma outra marca em minha formao foi a indissolubilidade entre
teoria e fundamentao emprica, um legado da tradio europia das
cincias sociais fundadas e desenvolvidas na USP e que encontrou em
Florestan Fernandes um de seus mais ardorosos defensores. Aprendi que no
h boa sociologia sem slida fundamentao terica, assim como sem
rigoroso trabalho de investigao emprica. Da porque o estudo
parcimonioso das obras de referncia, a anlise crtica da bibliografia
especializada, o exame minudente de modelos e escolas de pensamento
impem-se como requisitos indispensveis construo dos objetos de
investigao e, em particular, traduo de problemas sociais em problemas
de investigao sociolgica. justamente a solidez da fundamentao
terico-metodolgica que agua uma sorte de sensibilidade intelectual a que
o socilogo americano C. Wright Mills nomeou de imaginao sociolgica.
A teoria institui um alcance, um olhar, uma perspectiva; institui um campo
de visibilidade e de luminosidade; torna dizvel o aparentemente indizvel.
Nada disso, porm, resulta em avanos sem a experimentao sensvel. No
h como decodificar nossa contemporaneidade, sem a possibilidade de
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observar sujeitos concretos em suas relaes concretas, em suas dimenses
de trabalho, vida e linguagem o que torna possvel articular as palavras s
coisas [Cf. Foucault, M.Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966].
H igualmente outras marcas. Entre elas, o peso da crtica terico-
metodolgica. Durante o perodo de minha formao na graduao um
perodo, como j mencionado, de intensos conflitos estimulados pelas
arbitrariedades cometidas pela ditadura militar, eu testemunhei uma sorte de
crtica terica que, em parte, parecia se confundir com crtica poltico-
ideolgica, no sentido dos clssicos debates entre capitalismo versus
socialismo, reforma versus revoluo, modernizao versus
desenvolvimento. Esse tratamento da questo poderia ser resumido na
indagao, presente em inmeros autores, em especial em Reich, Benjamin e
Brecht:para qu e para quem servem suas idias? Sob este prisma, a crtica
terica estava como que subsumida na crtica aos compromissos das idias
com interesses de classe e com dominao poltica. medida que o processo
de transio democrtica avanava, a crtica terica foi se distanciando pouco
a pouco desta ordem de questo; todavia, passou a ser atravessada pelo
debate poltico em torno da reconstruo da vida democrtica. Certamente,
foi um momento muito criativo de que resultaram importantes estudos e
pesquisas sobre sociedade civil, movimentos sociais, cultura poltica,
participao e mobilizao social que introduziam uma espcie de novo
movimento terico, para lembrar aqui um dos ensaios mais lidos no incio
dos anos 80 [Cf. J. Alexander, O novo movimento terico.Revista Brasileira de Cincias
Sociais, 4 (2), junho de 1987].
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Penso que presentemente estamos diante de um novo movimento da
crtica terica, no tanto atravessada pelo debate poltico-ideolgico, como no
passado recente, todavia nem por isso uma crtica cientificamente neutra.
certo que o debate entre neoliberalismo, comunitarismo, ps-modernidade,
ps-sociedade industrial e globalizao, para lembrar algumas das
nomeaes mais recorrentes, esto presentes ora com maior ora com menor
peso. Mas, seguramente, ocupam um lugar menos central do que o esforo de
crtica imanente, de exame criterioso dos fundamentos conceituais,
epistemolgicos, axiolgicos dos modelos de explicao cientfica, inclusive e
mais precisamente os modelos sociolgicos. Acho que este novo estatuto da
crtica terica vem conduzindo a um debate de outra natureza: no mais a
disputa pela verdade no sentido dos valores polticos intrnsecos s teorias
(afinal, aps Foucault, o que a verdade?), contudo o esforo por fazer da
crtica terica um instrumento para decifrao do tempo presente. Mais do
que isto, um esforo para novas aberturas, para a instituio de novas
luminosidades e novas formas para recompor sob caminhos diversos e sob
eixos distintos da tradio e dos hbitos herdados da experincia intelectual
do sculo XVIII o trabalho, a vida e a linguagem daqueles que aparecem
como os sujeitos de nossa contemporaneidade. Seja o que forem essas
digresses em torno desse objeto, a fundamentao terica slida constitui
um objetivo sempre perfilado.
Ao lado dessa questo, outro legado diz respeito ao mtodo. Meus
professores insistiram sempre na indissocivel relao entre teoria e mtodo.
Em primeiro lugar, aprendi que a questo do mtodo no se resumia, sob
qualquer hiptese, aplicao de tcnicas especficas ao levantamento de
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dados empricos. A questo do mtodo, antes de tudo, compreende as
relaes entre sujeito e objeto do conhecimento. Sem enfrentar esse
espinhoso problema, ao menos em suas formulaes clssicas na teoria
sociolgica, a investigao cientfica fica como que ausente de seus alicerces
fundamentais. Como se sabe, o modo como se constroem essas relaes
determina, em grande parte, o foco que o investigador dirige aos problemas
sociais e a traduo desses problemas em objetos de conhecimento
sociolgico. em torno desta questo que se coloca, para as cincias sociais,
o problema da validade do conhecimento. Em torno dela esto atrelados
outros tantos problemas relacionados construo dos conceitos, escolha
das tcnicas de levantamento de dados, ao emprego ou no de tipologias, s
mltiplas formas de tratamento qualitativo de distintas fontes de informao,
inclusive emprego de tcnicas projetivas, s formas de administrao da
prova cientfica e as relaes entre mtodo de investigao e mtodo de
exposio dos resultados. No sem razo, aprendi ainda que a formulao de
um projeto de pesquisa requer a observncia de uma lgica imanente ao
processo de produo de conhecimento: a relao de adequao lgica entre
construo do objeto sociolgico, fundamentao terico-metodolgica,
formulao de hipteses, escolha dos mtodos e tcnicas de levantamento de
dados, plano de anlise e sntese de resultados. Tudo isso secundado pela
observncia, o mais rigorosa possvel, da linguagem prpria comunicao
cientfica, o que igualmente compreende o respeito s formalidades e
convenes vigentes em nossa comunidade acadmica de origem. Ao final,
entendi por que motivos, desde os clssicos da formao do pensamento
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sociolgico, o momento privilegiado neste processo de conhecimento a
passagem, por vezes sutil, da descrio explicao sociolgica.
Meus professores ensinaram-me tambm afinar o ouvido isto , terpacincia para escutar as diferentes vozes sociais. Mas, no somente. Parar
para ver, ou como nos ensinava uma velha professora de antropologia, sentar
e esperar acontecer. Estar com o ouvido atento e esperar acontecer so
meios necessrios para a abertura da imaginao, para captar e experimentar
os sinais do novo e da novidade, que cotidianamente desfilam nos jornais,
nas conversas comuns, nas ruas, nas filas, no comrcio, nos momentos de
sociabilidade, nas caminhadas silenciosas pela cidade, nas reunies
acadmicas (inclusive at burocrticas!), na circulao nervosa do trfico, e
mesmo nos momentos de tenso diante de um conflito, da iminncia de ser
vtima de uma agresso ou de um mau trato por quem quer que seja, na
indignao para com nossa poltica e nossos polticos. Todo esse universo
sonoro, tico e imaginrio o que encoraja a renovao, ora a substituio de
velhas questes por novas, ora a retraduo de velhas questes sob novas
configuraes, ora a descoberta de recortes temticos antes impensveis. Dito
de outro modo, fazer sociologia o esforo por decifrar o curso das mutaes
sociais, no importa de onde provenham ou em que lugar privilegiado se
instalem. Por isso, a histria para o socilogo uma espcie de tear cuja
fiao est no tempo (ou nas distintas temporalidades) e cujo acabamento
cunhado nos mais distintos espaos sociais e impresso em tecidos tambm
sociais com cor sombrias, sbrias ou quentes; com tessitura ora spera ou
macia; e com flexibilidade, vez ou outra to acentuada que arrisca romper-se.
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No h boa sociologia que no esteja fundada em fatos histricos; nem boa
histria que no seja, em alguma medida, sociolgica.
Sem esses requisitos, no h imaginao sociolgica, no h comofazer sociologia.
Essas marcas influenciaram profundamente minhas atividades de
pesquisa, docncia e formao, divulgao de conhecimento, extenso e as
atividades de direo acadmica, que sero descritas na segunda parte deste
memorial.
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SEGUNDA PARTE
Uma gerao em transio e o
mal-estar de sua poca
inha gerao conheceu o fim da ditadura militar e o processo
de transio democrtica. Foi uma gerao espremida entre
dois cenrios opostos: a herana do passado autoritrio, das
feridas deixadas pelas lutas contra o regime militar entre as quais, astorturas, a clandestinidade, a suspeita de delao, o medo, a insegurana, a
incerteza, o exlio, as mortes; e as expectativas de um futuro cujo horizonte de
abertura poltica pareciam estreitos, sobretudo, porque apelavam para a
velha frmula da conciliao.
M
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Como aluno de graduao, experimentei o peso das cassaes e a
responsabilidade que caa sobre os ombros de jovens doutores. Por um lado,
a ausncia do pai fundador, o Professor Florestan Fernandes; por outro, para
aqueles que ficaram, o compromisso de prosseguir as tarefas do mestre, de
no trair seus princpios polticos, de manter a universidade pblica,
militante, crtica.
Quando ingressei no quadro do Departamento de Cincias Sociais
tomei conhecimento das agruras a que muitos estavam submersos. Ao
mesmo tempo em que se mantinha, a ferro e fogo, a qualidade dos cursos, a
excelncia da pesquisa, o mesmo padro de reconhecimento externo, a
desorientao interna era acentuada e os conflitos inter-reas muito
flagrantes. Era uma poca de profundas hesitaes e de mal-estar;
pressentia-se um futuro sombrio face s incertezas dos rumos que a
democracia tomaria. Na universidade, os dissensos poltico-partidrios
ganhavam novos coloridos, inclusive com a rapidez com que muitos docentes
e pesquisadores estavam engrossando as fileiras das novas agremiaes
partidrias e passavam a integrar quadros governamentais ou se
candidatavam aos cargos polticos. Se, como afirmam alguns analistas, a crise
da universidade data da reforma de 1968, o processo de transio
democrtica acelerou processos em curso, entre os quais o declnio das
lideranas acadmicas e a ascenso das lideranas executivas e burocrticas.
Minha gerao enfrentou inmeros dilemas quanto aos novos
desgnios da universidade pblica. Fortes presses externas foram
impulsionando reformas atrs de reformas, introduzindo muito rapidamente
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novas formas de organizao do trabalho acadmico e cientfico, com
repercusses nas agendas de ensino tanto em nvel de graduao quanto de
ps, nas agendas de pesquisa e no fortalecimento de novos quadros diretivos,
convencidos de que mudanas na gesto acadmica, administrativa e
financeira da universidade deveriam coloc-la em compasso com os novos
tempos.
Talvez o resultado mais dramtico desse quadro tenha sido a
constituio de grupos, dentro da universidade, com perfis muito distintos e
com muita dificuldade de negociao. Por um lado, o apego resoluto ao
passado e tradio. Toda mudana vista com muita suspeio. Da o peso
das resistncias e a recusa a qualquer outro projeto de universidade e tudo
o que isso possa significar que no fosse o herdado da tradio crtico-
reflexiva. Por outro, aqueles ciosos para passar por cima do passado, demolir
sem grandes esforos tudo o que parecia slido, inaugurando uma nova
universidade, adequada aos novos ventos modernizantes, capazes de fazer
valer o peso desta USP no cenrio nacional e internacional. Durante muito
tempo, o dilogo entre essas duas tendncias esteve bloqueado, gerando uma
vida departamental tediosa e puramente administrativa.
Foi neste contexto que ingressei no quadro docente do Departamento
de Sociologia e passei a exercer minhas atividades de pesquisa, docncia e
formao, divulgao de conhecimentos, inovao, extenso universitria e
funes diretivas, que passo a seguir a repertoriar.
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Pesquisa
procura de uma identidadeacadmica e profissional (1982-1991)
IMESC (1982-1985):Permaneci ainda, no perodo de 1982 a 1985, no
IMESC. Em 1983, fui indicado, pela nova superintendncia daquele Instituto,
diretor tcnico do centro de estudos. Nesse cargo, iniciei um programa de
investigao cientfica sobre a problemtica da reincidncia criminal e
penitenciria. Esse projeto constituiu-se, em verdade, um programa
continuado de pesquisa. Inicialmente, junto com outros pesquisadores,
consultamos o cadastro criminal da Secretaria de Segurana Pblica de 1920
a 1982, com base em amostra estatisticamente representativa. O estudo
revelou que, considerado o perodo como um todo, a taxa de reincidncia
criminal era da ordem de 29% no Estado de So Paulo. Confirmamos, porm,
que as taxas eram significativamente mais altas (em torno de 45%) para os
reincidentes que haviam sido condenados a penas supressivas da liberdade
(recluso ou deteno). Em outras palavras, como j largamente apontado
pela literatura especializada e sublinhado por Foucault em seu clssico Vigiar
e Punir (1975), a priso agrava a reincidncia. Os resultados foram
publicados [Adorno, S. e outros. Estimativa da reincidncia criminal. Temas IMESC. Soc.
Dir. Sade. So Paulo, 1(1): 49-69,1984; Adorno e Bordini. Estimativa da reincidncia
criminal: variaes segundo estratos ocupacionais e categorias criminais. Temas IMESC.
Soc. Dir. Sade. So Paulo, 2(1): 11-29, 1985].
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O passo seguinte consistiu, por conseguinte, no estudo da reincidncia
penitenciria, conforme projeto de pesquisa publicado [Adorno e Bordini.
Homens persistentes, instituies obstinadas: a reincidncia na penitenciria de So Paulo.
Temas IMESC. Soc.Dir.Sade. So Paulo, 3(1): 87-109, 1986]. Aprovado pela
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, este
projeto representou o primeiro de uma srie contnua de apoio que vim
recebendo desta agncia de fomento h quase vinte anos. Este estudo foi
realizado em duas etapas. Na primeira etapa, identificamos, dentre o
movimento de entradas e sadas de presos, na Penitenciria de So Paulo, noperodo de 1974-1985, 116 reincidentes de um total de 252 egressos. Uma
rigorosa comparao entre o perfil jurdico-social de ambas categorias de
presos permitiu verificar que as nicas diferenas significativas residiam na
submisso tecnologia punitiva, no interior da priso aquela sorte de
tcnicas que Foucault denominou mini-tribunal interno capaz de modular a
sentena judiciria. De fato, os reincidentes penitencirios eram justamente
aqueles mais submetidos punio prevista no regimento da Penitenciria,
cuja execuo se fundava (ou ainda se funda) na mais resoluta arbitrariedade
na distribuio de sanes. Os reincidentes penitencirios eram aqueles que
proporcionalmente aos no-reincidentes recebiam maior volume de
advertncias, bem como cumpriam, em mdia, mais dias de cela comum e de
cela disciplinar. Com esse estudo, tive, pela primeira vez, a oportunidade de
publicar resultados de pesquisa em um dos veculos nacionais de maior
prestgio nas cincias sociais brasileiras: A Revista Brasileira de Cincias
Sociais RBCS [Adorno e Bordini. Reincidncia e reincidentes penitencirios em So
Paulo, 1974-1985. RBCS, 9(3): 70-94, fev. 1989].Igualmente, resultou em publicao
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na qual contestamos a hiptese, corrente no senso comum, de que so as
correntes de migraes do Norte e do Nordeste para o Sudeste que
inflacionam a violncia e o crime nas regies metropolitanas mais ricas e
desenvolvidas [Cf. Adorno e Bordini. Migrao e criminalidade. So Paulo em
Perspectiva. Revista da Fundao SEADE, 1(2): 36-38, 1987].
Finalmente, encaminhei a pesquisa para um estudo qualitativo dos
reincidentes na Penitenciria de So Paulo. Infelizmente, logramos localizar,
na Penitenciria do Estado, apenas oito reincidentes remanescentes dos 136
anteriormente identificados. Embora entre a segunda e a terceira etapa da
pesquisa no tivesse havido um extenso lapso de tempo, fui surpreendido
com uma das caractersticas do sistema penitencirio paulista: a excessiva
mobilidade dos presos pelas Cadeias Pblicas e Penitencirias quer da
capital, quer do interior. Como meus recursos de pesquisa no possibilitavam
ir atrs de cada um dos 136 reincidentes, optei por concentrar a investigao
nas histrias de vida dos oito remanescentes, ao invs de aplicar entrevistas
dirigidas. Foi por volta desta poca que aprendi a distinguir estudos baseados
em perfis de carreirade histrias de vida, estes fundados em procedimento
metodolgico que torna a pesquisa mais complexa e mais densa. As
concluses desta etapa foram apresentadas em Encontro Anual do Centro de
Estudos Rurais e Urbanos CERU, cuja direo ainda estava quela poca
sob responsabilidade da Profa. Maria Isaura Pereira de Queiroz [Adorno e
Bordini. A socializao na delinqncia: reincidentes penitencirios em So Paulo. Cadernos
CERU, 3: 113-147, 1991]. Com a concluso do programa de estudos, tive ainda a
oportunidade de realizar uma reflexo de ordem metodolgica que percorreu
toda a trajetria do programa de pesquisa, deteve-se em suas dificuldades
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bem como nas solues metodolgicas e tcnicas adotadas, alm de haver
proporcionado uma excelente ocasio para refletir sobre as relaes sujeito e
objeto do conhecimento, sob situaes no to convencionais, como so
aquelas que envolvem triangulao entre pesquisador, presos e agentes
penitencirios.
Sustentei, neste artigo, uma sorte de terceira via nesta ordem de
relaes. Como se sabe, para algumas tendncias terico-metodolgicas no
h como fazer cincia se a radical separao entre observador e observado
no esteja assegurada. Na poca em que realizei esse programa de estudos,
havia um intenso debate, sobretudo no interior da antropologia, que
questionava os rigores daquele procedimento em nome de uma outra ordem
de relacionamento, a partir do qual o pesquisador, de algum modo, se coloca
na posio do outro (o observado), escuta-o e procura decifrar a originalidade
do seu modo de ser, sentir e expressar. Lembro-me que a referncia
bibliogrfica que suscitou acirrados debates foi um ensaio de Sidney Mintz
[Encontrando Taso, me descobrindo inDados Revista de Cincias Sociais, 27(1): 45-58,
1984], autor que considerava a proximidade entre observador e observado um
requisito de objetividade do conhecimento cientfico e no o contrrio.
Considerando as especificidades do objeto a que eu estava me dedicando,
pareceu-me que ambas perspectivas continham limitaes. Uma radical
separao entre observador e observado certamente acentuaria as
desconfianas em um mundo social e institucional caracterizado pela
suspeio de todos contra todos, estimulando a existncia de silncios e
barreiras na reconstruo das histrias de vida. Por outro lado, uma
proximidade do tipo daquela descrita por Mintz, em seu ensaio, certamente
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faria com que o observador se tornasse submisso ao observado, sujeitando-se
inclusive a possveis pequenas chantagens morais, do tipo leva e traz
informaes de dentro para fora da priso ou vice-versa, em troca da fala. Foi
necessrio chegar terceira via. E o fiz em parte inspirado no trabalho
psicanaltico, mais propriamente nas relaes entre analista e analisado. Por
um lado, preciso penetrar na interioridade (seja l o que isso signifique)
do analisado, tornando-se familiar a seus problemas e angstias; contudo, ao
mesmo tempo, preciso transcender essa ordem de relaes, para que um
olhar externo possa consumar a relao psicanaltica. Inspirado nesse
modelo, cuidei de fazer com que o observado compreendesse que eu, na
qualidade de observador externo, no fazia parte nem do mundo da
delinqncia, nem pertencia aos dirigentes do sistema penitencirio ou
policial. Com isso, acho que fui ganhando pouco a pouco confiana e
simultaneamente estabelecendo uma sorte de barreiras morais imaginrias.
Assim, pude estar dentro da priso e de seu universo sem ter que ficar; pude
sair, sem ter que cortar amarras [Cf. Adorno. A priso sob a tica de seus
protagonistas. Itinerrio de uma pesquisa. Tempo Social. Rev. de Sociologia da USP, 3(1-2),
7-40, 1991].
No final de 1988, a convite do Prof. Dr. Jos de Souza Martins
coordenador do Projeto Crianas sem Infncia no Brasil, financiado pela
Fundao Internacional Llio Basso pelo Direito e pela Libertao dos Povos
colaborei desenvolvendo estudo sobre crianas e adolescentes envolvidos
no mundo do crime urbano. A proposta do Prof. Martins era no sentido de
que eu aprofundasse as pesquisas que vinha realizando no domnio da
reincidncia penitenciria, concentrando ateno sobre a construo social
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da delinqncia juvenil. Retornei ento Penitenciria do Estado e aos
reincidentes penitencirios. Em especial, explorei a memria da socializao
juvenil no mundo do crime e da violncia. Este estudo revelou no poucas
descobertas. Questionou o argumento, presente com muita fora no senso
comum e em alguns segmentos da opinio pblica, segundo o qual a
desorganizao familiar, caracterstica freqente entre classes trabalhadoras
urbanas pauperizadas, causa da derivao de crianas e adolescentes para o
mundo do crime. Os jovens adultos cumprindo pena na Penitenciria do
Estado provinham de famlias muito heterogneas, inclusive famlias
evanglicas, com numerosos filhos educados sob rgida disciplina moral.
Identifiquei tambm que os laos familiares no necessariamente se
desfazem. Quando se desfazem, esses adolescentes o logram aps sucessivos
ensaios de sada e retorno, at o abandono definitivo dos laos familiares.
Observei tambm uma sorte de socializao incompleta (um conceito
certamente no explorado com maior densidade). Refiro-me a uma sorte de
inveno do clssico processo de socializao em que as geraes mais velhas
transmitem a herana cultural s geraes mais novas. Constituindo famlias
cada vez mais precocemente, os pais muito jovens tendem a constranger suas
crianas e pr-adolescentes a experimentarem vivncias na rua, inclusive a
obteno de renda para sustento de irmos, pais e parentes. Deste modo,
crianas e adolescncias acabam socializando seus pais. Mas, experimentam
esse processo de modo perverso. Por um lado, essas crianas e adolescentes
acabam precocemente assumindo responsabilidades adultas. Por outro lado,
so infantilizados no mundo adulto. Dessa incompatibilidade, resultam
corpos indceis, incapazes de serem crianas e pr-adolescentes. Finalmente,
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observei que a deriva para a delinqncia no uma espcie de destino ao
qual esto inexoravelmente condenadas crianas e adolescentes pobres,
habitantes dos bairros carentes de infra-estrutura urbana e qualidade de
vida. A socializao da delinqncia juvenil , antes de tudo, um processo,
inicialmente espordico, cada vez mais freqente, de contato entre crianas e
adolescentes com problemas de desvio de conduta e autores de infrao penal
com as agncias encarregadas do controle social. Vale dizer, no h como
explicar a produo de delinqncia juvenil sem examinar o modo como se
cruzam a histria pessoal de alguns jovens e a histria da punio e do
controle social exercidos pelos agentes e agncias incumbidas de assegurar lei
e ordem. Este estudo resultou em trs publicaes [Adorno, S. La precoce
esperienza della punizione. In: Martins, J. de S. (org). LInfanzia negata. Omicidi,
protituzione, malattia e famine del bambini brasiliani. Chieti Scalo: Vecchio Faggio, 1991, pp.
201-33; b) Adorno, S. A experincia precoce da punio. In: Martins, J. de. S. O massacre
dos inocentes. A criana sem infncia no Brasil. So Paulo: Hucitec, 1991; c) Adorno, S. A
socializao incompleta: os jovens delinqentes expulsos da escola. Cadernos de Pesquisa.
Revista de Estudo e Pesquisas em Educao. So Paulo, Fundao Carlos Chagas, 79: 76-80,
nov. 1991].
Esse programa de pesquisas ensinou-me muito sobre o universo
penitencirio. Descobri a importncia do silncio, da reticncia, da
desconfiana, da mentira, da suspeio permanente contra tudo e contra
todos, os mecanismos de manipulao interna de amplas massas carcerrias
entre os quais a mobilidade interna que, j na dcada de 1980, representava
um instrumento de controle da ordem no interior do sistema penitencirio.
Descobri mais, o quanto a vida de cada preso objeto de negociao subjetiva
a cada momento e em cada espao da priso. Se viver perigoso, como dizia
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Guimares Rosa, mais ainda o em situao sociais onde predominam
absoluta incerteza, ameaas de morte, punio arbitrria, despotismos de
toda espcie, violncia e crueldade, alm do pior de todos os vcios a
corrupo que degrada a autoridade, mina a disciplina e promove as mais
graves violaes de direitos humanos. Foi deste modo que fui, pouco a pouco,
me acercando mais e mais do estudo das relaes entre direitos humanos,
controle da violncia e consolidao da democracia.
Prises e Justia Penal
CEDEC (1985-1988): No incio de 1985, convidado pelo Centro de
Estudos de Cultura Contempornea (CEDEC), passei a coordenar, junto com
Rosa Maria Fischer, atualmente professora associada da Faculdade de
Economia e Administrao da USP, uma pesquisa que teve por objeto a
expanso do sistema penitencirio paulista no perodo de 1950 a 1985. O
contato com Rosa Fischer permitiu-me experimentar e reforar um certo
ethos e estilo profissionais, que ampliaram meus horizontes acadmicos. No
CEDEC, encontrei um ambiente intelectual acolhedor, tendo desfrutado e
testemunhado importantes discusses cientficas em seminrios com
Francisco Weffort, Lcio Kowarick, Gabriel e Amlia Cohn, Jos lvaro
Moiss, Regis de Castro e sobretudo com Maria Victria Benevides, cuja
presena intelectual era e cada vez mais ainda to incandescente que
impossvel no se deixar tocar pela sua inteligncia, pelo seu brilhantismo e
por sua tica profissional, acadmica e poltica.
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Minha passagem pelo Centro de Estudos de Cultura Contempornea -
CEDEC (1985-1988) e o posterior ingresso no quadro docente do
Departamento de Sociologia da USP redirecionaram os rumos da pesquisa no
domnio da violncia urbana. No segundo semestre de 1985, recebi chamado
da direo do CEDEC. Convidavam-me para substituir Boris Fausto e Rosa
Maria Fischer, impossibilitados por razes pessoais de manterem-se frente
da coordenao de um projeto de pesquisa sobre polticas pblicas penais.
quela poca, o CEDEC desenvolvia linha de pesquisa na rea de violncia e
direitos civis, a qual tambm contava com a participao de Maria Victria
Benevides. Aceitei o convite, no sem antes convencer a Profa. Rosa Fischer
de dedicar algumas horas coordenao do projeto. Decidimos ento co-
coordenar o Projeto Anlise do Sistema Penitencirio do Estado de So
Paulo: o Gerenciamento da Marginalidade Social. Durante dois anos,
fizemos uma anlise das polticas pblicas penitencirias, formuladas e
implementadas pelo poder Executivo, no perodo de 1950 a 1985. Com base
em farto e rico acervo documental estatsticas oficiais, relatrios tcnicos,
mensagens governamentais, debates parlamentares, notcias extradas da
imprensa, legislao -, a pesquisa teve por objetivos: a) analisar o discurso
poltico que, no curso do perodo observado, se props a reformar e
racionalizar o sistema penitencirio do Estado; b) examinar as diretrizes
polticas formuladas e implementadas por sucessivos governos estaduais
identificando as foras sociais e polticas capazes de influenci-las; c)
conhecer as condies sociais e polticas que tornaram possvel a expanso do
sistema penitencirio; d) identificar e analisar as prticas de gerenciamento
da massa carcerria.
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Os principais resultados da pesquisa revelaram que, ao longo do
perodo observado, a tnica dominante das polticas pblicas penitencirias
tem sido a de promover a segregao e o isolamento dos presos, mediante um
programa deliberado de aumento progressivo da oferta de novas vagas no
sistema penitencirio, poltica de mo-nica porque no acompanhada de
outras iniciativas e que no ataca pontos tradicionais de estrangulamento.
Essa atualidade deixa entrever um projeto deliberado de controle da massa
carcerria que ignora as regras mnimas de tratamento do preso,
preconizadas pelos organismos especializados da ONU desde a dcada de
1950, o que, na prtica, significa reconhecer o absoluto desprezo das polticas
pblicas penitencirias adotadas nesta sociedade pelo respeito aos direitos do
cidado condenado pela justia penal a penas privativas de liberdade.
Seus efeitos podem ser repertoriados: ampliao da rede de coero;
superpopulao carcerria; administrao inoperante; enrijecimento da
disciplina e da segurana sem quaisquer conseqncias no sentido de deter a
escalada da violncia e a sucesso de rebelies a que o sistema penitencirio
veio assistindo at meados da dcada de 1980; timidez das medidas de
alcance tcnico, incompatveis com o programa de expanso fsica elaborado
independentemente de avaliaes e projees dotadas de confiabilidade; falta
de explicitao de objetivos, o que se manifesta, sobretudo na ausncia de um
programa articulado, integrado e sistemtico de interveno, seja no mbito
das polticas organizacionais administrativas ou de ressocializao;
confrontos entre grupos que disputam poder e influncia sobre o poder
institucional, expressos na eficcia da ideologia da ordem e da segurana, da
vigilncia e da disciplina. Todos esses aspectos confluem para um mesmo
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ponto: a reconhecida incapacidade e incompetncia do poder pblico em
gerenciar amplas massas carcerrias, bem assim de lograr uma poltica
efetivamente coordenadora da execuo penal.
o que se procurou demonstrar em dois grossos volumes de relatrio
de pesquisa [Adorno e Fischer. Anlise do sistema penitencirio do Estado de So Paulo:
o gerenciamento da marginalidade social. Relatrio final de pesquisa. So Paulo: CEDEC,
1987. mimeo. 2v. 299p]. At o momento, esta pesquisa indita. Embora se
possa dizer que ela seja contempornea de outros importantes estudos sobre
prises no Brasil, como o promovido pela Fundao Joo Pinheiro
[Caracterizao da populao prisional de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Belo
Horizonte: Fundao Joo Pinheiro, 1984, mimeo] e o promovido pelo Centro
Brasileiro para Anlise e Planejamento - CEBRAP [Brant, V.C. e col. O
trabalhador preso no Estado de So Paulo. So Paulo: Cebrap, 1986, mimeo], nenhum
deles se deteve na anlise de volumoso acervo documental nem cogitou uma
imerso nas polticas pblicas penitencirias como a que fizemos. Convm
ressaltar que a estratgia de investigao adotada permitiu percorrer todas as
foras sociais e polticas capazes de influenciar a formulao e
implementao de polticas penitencirias, como: a opinio pblica manifesta
atravs da imprensa cotidiana, alm de delegados de polcia, promotores de
justia e promotores pblicos, magistrados, polticos profissionais,
planejadores e administradores pblicos, governantes. Desse modo, foi
possvel observar as foras de conservao e resistncia s polticas pblicas
de gesto de massas penitencirias minimamente compatveis com o modelo
democrtico de exerccio do poder poltico.
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Embora o relatrio seja bastante requisitado por pesquisadores,
lamentavelmente, no foi possvel public-lo na ntegra, como teria sido
desejado. Presentemente, estamos desenvolvendo eu, Rosa Fischer e
Fernando Salla projeto de atualizao da pesquisa, bem como reviso
crtica do texto para sua definitiva publicao. Alm do relatrio, o projeto
resultou em pequenas publicaes [Adorno e Fischer. Polticas penitencirias, um
fracasso? Lua Nova. Cultura e Poltica. So Paulo, 34; 70-9. abr./jun. 1987; Adorno e
Fischer. Sistema penitencirio de So Paulo: o gerenciamento da marginalidade social.
Informaes. S. Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contempornea CEDEC, no. 1, out.
1989. pp. 1-2; Adorno, S. O sistema penitencirio no Brasil (problemas e desafios). Revista
USP. So Paulo: Universidade de So Paulo, 9: 65-78, mar/mai, 1991.; Adorno, S. Sistema
Penitencirio no Brasil. Problemas e Desafios. Revista do Conselho Nacional de Poltica
Criminal e Penitenciria. Braslia, Ministrio da Justia, 1(2): 63-87, 1993, jul./dez. (Re-
publicao); Adorno, S. Impasses e desafios administrao carcerria. In: Machado, M.L. e
Azevedo Marques, J.B.Histria de um massacre. Casa de Deteno de So Paulo. So Paulo:
Cortez; Braslia: OAB, 1993. pp. 99-106].
Concluda a investigao, fui convidado a permanecer e apresentar um
novo projeto de investigao. Por volta dessa poca, julgava oportuno iniciar
um estudo sobre a justia penal, pois que as agncias policiais e o sistema
penitencirio j estavam merecendo estudos. Elaborei o projeto Justia
Penal e Violncia Urbana. Minha primeira incurso no domnio do PoderJudicirio, mais propriamente a justia penal.
Parti de uma constatao emprica: a despeito das aceleradas
mudanas, de toda ordem, que incidiram na sociedade brasileira a partir do
processo de transio democrtica, por que as instituies de controle social
resistiam aos novos tempos, ao Estado de direito e ao respeito aos direitos
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humanos? Por que o legado autoritrio permanecia forte, no obstante o fim
do regime autoritrio e a abolio progressiva de todos os rgos para-
militares que haviam sido atuantes durante a ditadura? Algo a respeito j
vinha sendo deslindado nos domnios das agncias policiais, das prises e
mesmo das instituies de bem-estar do menor. Pouco se conhecia o
comportamento do Poder Judicirio, seguramente um dos mais
conservadores do pas. Se havia resistncias, como identific-las? Enfim, qual
o modelo de justia penal compatvel com a democracia e com uma poltica
de respeito aos direitos humanos?
A pesquisa procurou responder a este elenco de questes com base em
estudo de caso sobre o Tribunal do Jri. Esta instncia judiciria foi escolhida
como objeto de observao emprica por, ao menos, duas razes: por um
lado, por se tratar de uma instncia tradicionalmente reconhecida como uma
esfera de interveno leiga na justia penal, aspecto considerado um exemplo
de democratizao no mbito do direito de punir; por outro, em virtude de
estar sob acirrado debate, atravs do qual havia vozes dissonantes que
pretendiam a extino deste instituto sob a alegao de que o direito penal e
sua justia haviam se tornado excessivamente tcnicos e complexos, muito
alm da capacidade dos cidados leigos de compreend-los. Portanto, o
Tribunal do Jri parecia uma boa porta de entrada para responder s
questes propostas.
Do ponto de vista sociolgico, a pesquisa residiu na anlise de prticas
de produo da verdade jurdica [Cf. Foucault, M. (1980). La verdad y las formas
juridicas. Barcelona: Gedisa] tendentes a promover a condenao ou absolvio
de sujeitos sobre os quais recai a imputao de crimes contra a vida, que
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configuram matria dos tribunais do jri. A pesquisa teve por universo
emprico de investigao 297 processos penais, instaurados para apurao de
responsabilidade nos crimes dolosos contra a vida (artigos 121 a 128 do
Cdigo Penal), julgados por um Tribunal do Jri da capital, no perodo de
janeiro de 1984 a junho de 1988. Foram coletados dados a respeito do perfil
social de vtimas, de agressores, de testemunhas e do corpo de jurados bem
como dados a propsito da dinmica dos acontecimentos, desde a deteco
do fato passvel de confisco punitivo at proclamao de deciso pelo
tribunal.
A pesquisa privilegiou a comparao entre o perfil social dos
condenados e o dos absolvidos, com vistas a verificar: os mveis extralegais
que interferem nas decises judicirias; o contraste entre a formalidade dos
cdigos bem assim da organizao burocrtica e as prticas orientadas pela
cultura institucional; o entrecruzamento entre os pequenos acontecimentos
que regem a vida cotidiana e os grandes acontecimentos que regem a
concentrao de poderes no sistema de justia criminal; a interseo entre o
funcionamento dos aparelhos de conteno da criminalidade; a construo de
trajetrias biogrficas e as operaes de controle social.
Promoveu-se uma primeira incurso nesse universo emprico
buscando identificar alguns dos dilemas e desafios que se colocam justia
criminal em uma ordem democrtica. Nesse momento, observou-se que o
desfecho processual resulta da conexo de duas ordens de motivao da
conduta institucional: por um lado, motivaes de ordem burocrtica, presas
aos cdigos e aos procedimentos formais e que se atinham s posies
previamente demarcadas de vtimas, agressores ou acusadores. Sob esta
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tica, o objeto do litgio gravitava em torno do crime, das informaes
processuais, dos documentos anexados aos autos, do estrito cumprimento
dos dispositivos legais. Deficincias certamente poderiam ser detectadas,
porm se deviam s imprecises tcnicas e s divergncias nas interpretaes
dos estatutos legais.
Quando, todavia, se dirigiu a ateno para os mveis subjetivos, o
interesse processual se deslocou do mbito do crime para o comportamento
criminoso. Nesse deslocamento, iluminou-se objeto distinto: o mundo dos
homens com seus comportamentos, seus desejos, suas virtudes e vcios, suas
grandezas e fraquezas, os pequenos dramas da vida cotidiana, a violncia
endmica entre iguais, a pobreza de direitos que caracteriza a vida dos
protagonistas, alguns dos quais incidentalmente convertidos em agressores,
enfim a trama que enreda homens comuns e agentes da ordem em uma
esquizofrnica busca de obedincia a modelos de comportamento
considerados dignos, justos, normais, naturais, universais e desejveis. Sob
este prisma, os embates do tribunal concentravam-se menos na proteo da
vida enquanto um dos valores capitais de nossa cultura ocidental, porm
gravitavam em torno de dilemas entre moralidade privada e pblica, cujo
desfecho podia convergir arbitrariamente para a condenao ou absolvio.
Neste terreno, estavam criadas as condies para promover a injustia. Esta
etapa resultou em duas publicaes [Adorno, S. Violncia urbana, justia criminal e
organizao social do crime. RevistaCrtica de Cincias Sociais. Coimbra: Centro de Estudos
Sociais, 33: 145-156, out. 1991; Adorno, S. Urban Violence, criminal justice and social
organization of crime. Current Legal Sociology. A periodical publication of abstracts and
bibliography in law and society by the Documentation Centre and The Library of The
International Institute for the Sociology of Law. Oati, Espanha, 1992, no.6, p. 21].
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Um segundo momento da investigao procurou justamente examinar
o sentido e o alcance dessa injustia. Tratou-se de explorar as relaes entre
justia, igualdade jurdica e juzo, mediante exame das sentenas
condenatrias ou absolutrias decretadas naqueles processos penais
anteriormente observados. Um propsito dessa ordem insere-se grosso modo
no horizonte dos estudos que se convencionou chamar de sentencing. As
principais concluses desta etapa sugerem arbitrariedade na distribuio das
sentenas, identificam grupos preferencialmente discriminados (pobres,
negros, nordestinos, cidados incorporados ao mercado informal de
trabalho) e apontam algumas evidncias de desigualdade no acesso justia
penal.
No entanto, segundo sugere Foucault, evidente que a justia penal
no foi concebida para neutralizar as diferenas de classe. Longe do que
sonhavam, no final do sculo XVIII e ao longo do sculo XIX, os
reformadores europeus da justia penal, a universalidade do tratamento
legal, dispensada a quem quer que fosse, permaneceu apologia do discurso
jurdico-poltico liberal. No h mesmo quaisquer evidncias que o princpio
tenha efetivamente se consolidado sequer nas tradicionais democracias
ocidentais. Ao contrrio, em distintas sociedades, o funcionamento
normativo do aparelho penal tem tido, por efeito, a objetivao das diferenas
e das desigualdades, a manuteno das assimetrias, a preservao das
distncias e das hierarquias. Assim, no h por que falar na existncia de
contradies entre justia penal e desigualdade jurdica. O mais relevante no
parece ser o carter de classe das sentenas judicirias. Sequer as operaes
normativas da justia penal que promovem diferenas e as hierarquizam.
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Tudo releva de outra origem: a de uma justia penal incapaz de traduzir
diferenas e desigualdades em direitos, incapazes de fazer da norma uma
medida comum, isto , incapaz de fundar o consentimento punitivo em meio
s diferenas e desigualdades e, por essa via, construir uma sociabilidade
fundada em solidariedades. Razes dessa ordem concorrem para que o
privilgio da sano punitiva sobre determinados grupos se transforme de
drama pessoal em drama social.
O projeto permitiu-me substantivo avano e aperfeioamento
metodolgicos. Como se sabe, no havia tradio de pesquisa, na rea de
cincias sociais, sobre a justia penal, menos ainda no que concerne s
prticas judicirias, na dcada de 1980. Salvo o pioneiro estudo de Mariza
Correa [Morte em famlia. Representaes jurdicas de papis sexuais. Rio de Janeiro:
Graal, 1983], na esteira do qual vieram alguns outros estudos sobre prticas
judicirias, inexistia experincia metodolgica acumulada na observao de
um espao institucional to peculiar como so os tribunais de justia, em
particular os de jri, sequer quanto ao tratamento de uma fonte igualmente
peculiar como so os processos penais. Esse cenrio mudou recentemente
com os estudos de Sadek, Werneck Viana, Joana Vargas, Andrei Koerner,
Wnia Izumino. Mas, h ainda muito que fazer nesta seara.
De incio, foi preciso uma imerso nos rituais institucionais, em seus
cdigos secretos, em sua diviso nem sempre explcita de trabalho, em uma
linguagem cujo excessivo hermetismo convida desistncia. Penetrar nos
meandros do tribunal tambm penetrar na intimidade dos processos
penais. Neste terreno, h requisitos que no podem ser ignorados. No se
pode dispensar um conhecimento prvio, at certo ponto minudente, dos
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cdigos penais (Cdigo Penal e do Processo Penal), sem o que impossvel
compreender o andamento das investigaes e dos procedimentos judiciais.
De igual modo, impe-se antecipado estudo exploratrio da estrutura e
funcionamento do sistema de justia criminal para saber algo a respeito de
seus principais protagonistas, em especial de suas estratgias formais de
ao. Como os processos buscam descobrir verdades, recomendam-se
sucessivas leituras para que se possa perfilar o recontar infinito de verses
sobre um mesmo fato. Alis, foi justamente esta ltima circunstncia
responsvel por um dos desfechos de anlise, aquele que sugeriu uma linha
de interpretao dos processos que transita do fato- a morte de uma pessoa -
para o acontecimento- o complexo jogo de operaes institucionais reunidos
em torno do direito de punir. Foi justamente por ter podido desfrutar desta
aventura metodolgica que adquiri maior confiana e segurana face aos
projetos que posteriormente empreendi neste campo institucional. Esta
segunda etapa deste projeto ofereceu-me a oportunidade de organizar, para a
Revista USP, um dossi sobre o judicirio, reunindo contribuies de vrios
autores, entre os quais Trcio Sampaio Ferraz, Maria Teresa Sadek, Mariza
Correa, Andrei Koerner, Oscar Vilhena, Eduardo Faria, Celso Campilongo.
Aproveitei a oportunidade para publicar os resultados finais deste estudo.
Este trabalho, que me conferiu satisfao pessoal, ainda bastante
referenciado e acabou inclusive sendo re-publicado [Adorno, S. Crime, justia
penal e desigualdade jurdica. Os crimes que se contam no tribunal do jri. Revista USP. So
Paulo, 21: 132-51, 1994, mar./mai.; Adorno, S. Crime, justia penal e desigualdade jurdica.
In. Falco, J. e Souto, C.Sociologia e direito: textos bsicos para a disciplina de sociologia
jurdica. 2.ed. So Paulo: Pioneira, 1999].
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Meus vnculos com o CEDEC encerraram-se com o final desta
pesquisa, embora eu tivesse convite para permanecer e mesmo houvesse
apresentado projeto para continuidade. No entanto, desde 1987, meus
compromissos com a Universidade de So Paulo USP, na qual eu havia
ingressado, por concurso no ano anterior, se tornaram mais intensos,
ganharam uma amplitude e diversidade antes desconhecidas em minha
carreira de pesquisador. sabido que as incumbncias burocrticas
constituem fardo doloroso e enfadonho o qual nos rouba horas que melhor
poderiam ser dedicadas em outras atividades produtivas como preparar
cursos, ministrar cursos, atender alunos, orientar trabalhos acadmicos, a par
da pesquisa cientfica tudo compondo uma agenda de atribuies bastante
exaustiva. Concili-la com as atribuies em outra instituio pareceu-me
temeroso, porquanto no conseguiria desempenh-las bem em qualquer
delas. Optei por concentrar-me na universidade com a qual guardo profunda
identidade.
Departamento de Sociologia USP (1986): Ingressei no
Departamento de Cincias Sociais em virtude de processo seletivo, em maro
de 1986. [PROFESSOR ASSISTENTE DOUTOR, rea de Sociologia, do Departamento de
Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de
So Paulo. Admisso a partir de 01/03/86, conforme ato publicado no D.O.E. - Executivo, de
08/03/86.]
O ingresso nos quadros do prestigiado Departamento de Cincias
Sociais abriu-me novos horizontes de investigao, docncia e extenso
universitria. Na USP, desejei retomar minhas inclinaes para o
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desenvolvimento da sociologia histrica, que haviam sido seladas com a tese
de doutoramento. Mas, ao mesmo tempo, no queria me distanciar desse
objeto emprico que vinha me seduzindo: a violncia, o crime, o controle
social. Em particular, estava interessado em compreender o modo pelo qual
foi possvel, em uma cidade como So Paulo, transitar para uma ordem social
contratual em direo ao capitalismo enfrentando problemas de desordem
urbana, em parte associados transio do trabalho escravo ao trabalho livre.
Certamente, o livro de Boris Fausto [Crime e cotidiano, a criminalidade em So
Paulo, 1880-1924. So Paulo: Brasiliense, 1984] deixou-me profundas impresses e
me estimulou a propor um projeto de pesquisa no qual, embora no
explorasse diretamente o mesmo objeto emprico, trabalhava com temas que
lhe eram muito caros como o funcionamento das agncias de controle social.
Ademais, o tema da desordem urbana e das formas de disciplina social me
levava de encontro ao estudo da obra de Michel Foucault que se tornou um
objeto de interesse terico e de prazer intelectual.
Desordem urbana, Controle Social
e Filantropia (1986-1991)
A pesquisa A Cruzada Filantrpica: A Assistncia Social
Institucionalizada em So Paulo, 1880-1920 foi realizada com apoio do
CNPq [processos nos. 303889/86-1, 804014/86-4 e 824009/88-6] e da FAPESP [proc.
90/2451-6]. A pesquisa teve por objeto o processo de transformao da
filantropia, na cidade de So Paulo, no ltimo quartel do sculo passado e
incio do sculo XX. Buscou-se explicitar a mutao nas regras de ao
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prtico-normativa das instituies de assistncia social, processo pelo qual a
filantropia caritativa se converteu em filantropia higinica, orientada por
princpios procedentes da medicina social. Pretendeu-se abordar o objeto
mediante o cumprimento de objetivos especficos. Primeiro, verificar quais as
relaes existentes entre a diversificao do perfil urbano e a conseqente
emergncia da estrutura de classes na cidade de So Paulo e as alteraes que
se operam nas instituies de assistncia social. Segundo, identificar as
instncias de produo discursiva, de produo de poder e de produo de
saber [Cf. Foucault, M. (1979). Histria da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de
Janeiro: Graal] sobre os desamparados sociais, verificando os efeitos do
funcionamento dessas instncias nas prticas institucionais. Terceiro,
identificar os servios de assistncia social, nos setores pblico e privado,
destinados s diversas categorias de desamparados: enfermos, invlidos,
mendigos, crianas abandonadas, alienados mentais, leprosos, presos etc.,
mapeando a rede de relaes sociais entre as diversas modalidades de
assistncia prestada. Quarto, explicitar as relaes entre a filantropia pblica
e a privada. Por fim, caracterizar as prticas discursivas e no-discursivas,
promotoras da eficcia da interveno tcnica nas instituies de
assistncia social.
Esse recorte emprico requereu problematizar as interpretaes
correntes, na sociologia urbana, a respeito da cidade e de seus modos de
controle social. Pensar a vida social na cidade significa pensar uma certa
modalidade de relao de seus habitantes entre si e com os objetos -
territrios, casas, servios, mercadorias - constitudos s suas voltas. Sob esta
perspectiva, tratava-se de apreender no somente as mudanas estruturais
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que se expressam na acumulao da riqueza, na concentrao dos meios de
produo, na hierarquizao das relaes sociais, na constituio da moderna
sociedade de classes; mas tambm - e sobretudo - os novos tipos humanos
emergentes, as formas de sociabilidade, a apropriao e uso do espao, o
exerccio da sexualidade, a privacidade das famlias, a vida nos interiores das
instituies de controle e de reparao social, o mundo cotidiano das fbricas
e da reproduo da fora de trabalho.
Em sua formulao original, a pesquisa foi pensada no interior de um
quadro terico determinado: o da genealogia do poder. [Cf. Foucault, M. Vigiar e
punir. Histria da violncia nas prises. Rio de Janeiro: Petrpolis, 1977]. O universo
emprico de investigao compreendeu as instituies de assistncia social
existentes em So Paulo, no perodo considerado, de natureza pblica e
privada. O perodo escolhido justifica-se por ser aquele no qual se verificaram
substanciais alteraes no espao urbano, representadas pelo crescimento
populacional, pela diversificao de sua composio social, pela
transformao desta cidade no mais importante mercado de meios de
produo e de fora de trabalho, pela instaurao da acumulao capitalista.
A pesquisa valeu-se de fontes de informaes primrias e secundrias, entre
as quais: atas de instituies, documentos sobre a histria e costumes de So
Paulo, correspondncia oficial, coletnea de leis, relatrios do governo
provincial e das secretarias de Estado, almanach do Estado, memrias e
biografias de filantropos e imigrantes, alm de obras especializadas sobre
assistncia social e sobre a cidade de So Paulo, bem assim bibliografia
terica.
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Os resultados da investigao revelaram que o modo pelo qual a cidade
enfrentou os desafios que diante dela se colocavam criou srios obstculos
formao do social- mais propriamente de uma esfera pblica burguesa - e
consolidao do contrato. A cidade converteu-se simultaneamente no locus
privilegiado de realizao plebia, em cuja origem esto associadas as
imagens de perdio e de degradao que a elite ilustrada e culta soube
cunhar cuidadosamente, nos anos que se seguiram instaurao do regime
republicano, atravs das instncias em que se encontrava autorizada a falar:
na imprensa, na tribuna, nos crculos intelectuais de produo e de
disseminao de idias. Locus privilegiado de realizao plebia, a cidade
mostrava sua face escura: a pobreza que se espelhava na ocupao
desordenada dos espaos, em suas mltiplas dimenses; na diversidade dos
tipos humanos, dificilmente redutveis a um padro nico de contraente - o
trabalhador fabril - que se pretendia forjar; na heterogeneidade dos
costumes, que fazia da cidade um nicho de culturas muito pouco compatvel
com a cogitada universalidade da moral burguesa; na contrariedade dos
ambientes que depunha contra os propsitos reformadores urbanos de fazer
da cidade o lugar por excelncia da civilizao e do progresso.
Impunha-se, por conseguinte, o imperativo de costurar a ordem social
fraturada e fragmentada em mltiplos recortes. Era indispensvel operar o
contrato, ainda que para faz-lo se devesse recorrer a mecanismos paralelos e
subsidirios. Evidentemente, a sociedade brasileira, mais particularmente o
cenrio social concentrado em So Paulo, no se encontrava, na conjuntura
de 1880-1920, preparada para a fundao de um verdadeiro Estado de bem-
estar social - inveno recente - que protegesse a populao urbana,
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trabalhadora, das adversidades da pobreza e incorporasse o modelo
contratual de organizao societria. Outra no foi a alternativa seno colocar
em cena a filantropia. Tratava-se, em verdade, de uma operao delicada:
prestar socorro e assistncia aos pobres sem que isso se convertesse em
direito pobreza. A emergncia da filantropia higinica, na cidade de So
Paulo, no perodo enfocado, buscou fixar modalidades sui generisde relaes
hierrquicas entre micropoderes, constituindo a trama do complexo tutelar,
introduzindo uma nova arte de administrar a cidade e fazendo com que o
Estado se governamentalizasse [Adorno, S. A gesto filantrpica da pobreza urbana.
So Paulo em Perspectiva. Revista da Fundao SEADE. So Paulo, 4(2): 8-17, 1991,
abr./jun. Adorno, S. e col. A cruzada filantrpica: a assistncia social institucionalizada em
So Paulo, 1880-1920. Banco de referncias bibliogrficas. Dossi NEV. So Paulo:
NEV/USP, no. 1, 1991. 157p. Adorno, S. Educao e patrimonialismo. In: O pblico e o
privado na educao brasileira contempornea. Cadernos CEAS. Campinas: Centro de
Estudos de Educao e Sociedade: Ed. Papirus, 1991, no. 25. pp. 9-26. Adorno, S. e col.A
cruzada filantrpica. A assistncia social institucionalizada em So Paulo. 1880-1920.
Relatrio de Pesquisa. CNPq e FAPESP. So Paulo: NEV/USP, 1992. mimeo. 133p. e anexos].
Do controle social
ao obsessivo direito de punir (1991-1996)
NEV (1987): Minha carreira de pesquisador comeou a ganhar uma
dimenso diferente a partir da criao do Ncleo de Estudos da Violncia
NEV/USP, informalmente a partir de 1987 e oficialmente como um Ncleo de
Apoio Pesquisa NAP, desde setembro de 1990, ligado Pr-Reitoria de
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Pesquisa. As particularidades desta histria constituem captulo a ser
rememorado mais frente. Por ora, vou me ater ao significado do NEV em
minha carreira de pesquisador.
Desde j, convm sublinhar, o NEV foi uma escola de aprendizado do
trabalho cientfico sob modalidades no habituais nas cincias sociais.
Refiro-me ao trabalho realizado coletivamente sob a coordenao de um
pesquisador titulado e mediante uma diviso de tarefas segundo graus
distintos de complexidade confiados a pesquisadores em distintas fases de
formao. certo que no se trata de nenhuma novidade. Em vrias capitais
do Brasil, em especial So Paulo e Rio de Janeiro, grupos de excelncia foram
se constituindo desde os anos 60 do sculo passado, consolidando sua misso
em torno das formas organizadas do trabalho intelectual. Sem querer ser
exaustivo e desculpando-me, desde j, por eventuais injustias e
esquecimentos, no h como desconhecer a importncia de centros como o
CEBRAP, o CEDEC, o IDESP, a Fundao Carlos Chagas, em So Paulo; o
ISER, o IUPERJ e a Fundao Getlio Vargas, no Rio de Janeiro. Todos eles
fizeram escola. Porm, a criao de ncleos nas universidades pblicas, em
especial na UNICAMP e na USP veio introduzir algo novo nesse cenrio. Mais
propriamente fez com que uma nova diviso de trabalho intelectual passasse
a competir com as tradicionais formas artesanais de produo nas cincias
sociais e nas humanidades, formas que foram responsveis por uma
criatividade quase sem limites e que resultaram em obras e autores de
referncia para todos ns.
O NEV foi criado no contexto desse segundo momento da histria da
diviso social do trabalho intelectual nas universidades pblicas brasileiras,
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ao menos no que se refere s humanidades. No domnio da pesquisa, o NEV
guarda suas particularidades. Em primeiro lugar, um esforo sempre
renovado de realizao de um trabalho de pesquisa internamente articulado,
em torno de duas ou trs linhas de investigao, a despeito das
especificidades dos distintos projetos de pesquisa em andamento. As linhas
conversam entre si, os projetos alimentam o conjunto da produo cientfica,
o solo terico-metodolgico comum. Deste modo, preciso estar sempre
disponvel para ouvir o outro, compreender seus argumentos, ler bibliografia
nem sempre prpria de seu campo disciplinar de formao. A pesquisa acaba
resultando de um efetivo intercmbio. Os programas no refletem interesses
exclusivamente pessoais, porm lacunas que precisam ser preenchidas e
tarefas que necessitam ser enfrentadas.
Mas, para alm desse esforo, o maior aprendizado tem a ver com a
prpria natureza dos objetos com que lidamos. Estudos no campo da
violncia e dos direitos humanos no podem ficar encerrados nos limites dos
gabinetes e dos laboratrios cientficos. A dinmica dos conflitos sociais, os
acontecimentos da vida cotidiana que agridem direitos humanos
fundamentais, a profuso de modalidades violentas de superao das tenses
sociais, nos seus mais distintos aspectos e dimenses tudo isso faz que com
a dialtica entre movimento social e produo de conhecimento seja muito
estreita. Para alguns, esse trao pode soar como uma espcie de militncia
poltica que se esconde sob a capa de pesquisa cientfica, j que dois dos
requisitos necessrios produo do conhecimento no estariam
efetivamente garantidos, quais sejam: a neutralidade cientfica e a distncia
face s presses da sociedade. De fato, uma pesquisa como a desenvolvida
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pelo NEV no consegue, por mais que o queira, virar as costas s presses
sociais e s demandas por maior segurana e maior proteo de seus direitos
fundamentais. No entanto, nossos instrumentos de investigao continuam a
ser aqueles prprios da comunidade cientfica: rigor terico-metodolgico,
atualizao bibliogrfica, crtica ao senso comum, aplicao de meios e
instrumentos, quer de levantamento de dados empricos quer de anlise
segundo os procedimentos legtimos no interior das cincias sociais e das
humanidades. Por isso, o timing da investigao cientfica no coincide
necessariamente com a urgncia de interveno no debate pblico e na
formulao de polticas pblicas. No raro, oferecer uma resposta
convincente sociedade e s suas lideranas civis e polticas demanda um
percurso longo e muitas vezes pleno de sinuosidades, quase sempre
escondido sob a aparente simplicidade da comunicao pblica atravs dos
meios proporcionados pela mdia impressa e eletrnica.
Esta dialtica entre eventos e investigao no tarefa fcil de ser
alcanada com xito. Por um lado, requer do pesquisador pacincia para
escutar minudentemente as diferentes falas sociais, por mais que lhe paream
bizarras, sofridas, emocionadas, srdidas, cnicas enfim seja l o que for.
Por outro, se esta escuta indispensvel para aguar a imaginao
sociolgica, ela no pode ser o norte do pesquisador. Da a necessidade
permanente de adensar a reflexo crtica, de inovar na capacidade de oferecer
respostas aos problemas sociais e dar um salto de qualidade no conhecimento