UFC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CURSO DE PSICOLOGIA
SONHO E SAUDADE DIVIDINDO A MESMA MALA: COMO JOVENS DE DIFERENTES CULTURAS ENCARAM AS DIFICULDADES DECORRENTES DE
UMA FORMAÇÃO ACADÊMICA LONGE DE CASA
Iara MouraJoara Maria
Priscilla Vasconcelos
Sobral
2013
No dia em que eu saí de casa Minha mãe me disse:
Filho vem cá!Passou a mão em meus cabelos
Olhou em meus olhos Começou falar
Por onde você for eu sigoCom meu pensamento
Sempre onde estiverEm minhas oraçõesEu vou pedir a Deus
Que ilumine os passos seus
Eu sei que ela nunca compreendeuOs meus motivos de sair de lá
Mas ela sabe que depois que cresceO filho vira passarinho e quer voar
Eu bem queria continua aliMas o destino quis me contrariarE o olhar de minha mãe na porta
Eu deixei chorando a me abençoar
A minha mãe naquele dia Me falou do mundo como ele é
Parece que ela conheciaCada pedra que eu iria por o pé
E sempre ao lado do meu paiDa pequena cidade ela jamais saiu
Ela me disse assim:Meu filho vá com Deus
Que este mundo inteiro é seu
(Zezé di Camargo e Luciano)RESUMO
O presente trabalho se propõe a analisar as dificuldades e sentimentos desencadeados durante a formação acadêmica de jovens que precisam distanciar-se do lugar de origem e da família para a realização daquele objetivo. A partir de entrevistas com acadêmicos dos cursos de Psicologia, Engenharia da Computação e Medicina da Universidade Federal do Ceará no Campus de Sobral, com idades entre 18 e 25 anos, procedentes de diferentes lugares dentro e fora do país e com permanência aproximada de 1 a 3 anos na cidade, foram observados vários aspectos motivadores e dificultantes dessa situação e percebeu-se que a cultura e o contexto histórico também estão intimamente relacionados à forma como se dá esse processo para cada indivíduo.
METODOLOGIA
Foram entrevistados acadêmicos dos cursos de Psicologia, Engenharia da Computação e Medicina da Universidade Federal do Ceará no Campus de Sobral, com idades entre 18 e 25 anos. Procuramos analisar a situação em diferentes contextos e fazer um comparativo, por isso escolhemos jovens que vieram tanto de perto e têm oportunidade de ver a família com frequência, (Parnaíba, Fortaleza), quanto de longe e se limitam a visitarem o lugar de origem apenas semestralmente ou anualmente (Minas Gerais, Angola).
Com a crescente competitividade no mercado de trabalho, é cada vez maior o
número de jovens buscando uma formação profissional, e para isto, muitos destes
necessitam afastar-se de casa e da família, dando o primeiro passo para uma
independência que nem de todo é satisfatória, tendo em vista os obstáculos e
dificuldades enfrentados quando se está em um lugar que não é seu e longe dos
seus. Além de todos esses fatores, há ainda o agravante da saudade, que oscilante,
ora se comporta como estímulo para a realização de um sonho que não pertence
somente àquele indivíduo, mas a todos que o incentivaram e acreditaram na sua
capacidade de estar ali, e ora como um fardo quase insuportável de ser carregado,
fazendo com que o sujeito queira desistir.
Para Coelho e Rezende (2010), a saudade é uma forma de relacionar-se com
o passado:
Esse passado, contudo, não é pensado como etapa de um tempo concebido cronologicamente, como algo que “passa” inelutavelmente em um ritmo regrado e constante, mas sim como algo que, do ponto de vista subjetivo, pode ser recuperado, revivido, por meio da ação da memória. (COELHO E REZENDE, 2010, p.67).
É interessante pensar como na maioria das vezes que sentimos saudade,
sentimos falta do que passou; e então lembranças começam a passar em nossa
mente e nesse retrospecto, temos a sensação de reviver todas essas memórias.
Isso ocorre de maneira tão intensa que às vezes algumas sensações como cheiro
ou sabor, acabam provocando esse sentimento, pois no remetem algo que nos faz
falta, como foi relatado por uma das entrevistadas: “Cada lugar tem seu cheiro.
Sobral tem um cheiro, Angola tem outro. Como eu sinto falta do cheiro do meu
país...” ou mesmo outro que falou: “A comida daqui é muito diferente.” Esse último
jovem relatou também o costume que tivera de almoçar aos domingos na casa dos
avós. Aqui podemos perceber então que as diferenças enormes percebidas por ele
talvez não tivessem relacionadas apenas com o tempero ou ingredientes da comida,
mas também com a ausência do ritual que envolvia a degustação da mesma, a
reunião da família, que de uma forma subjetiva, oferecia aquele alimento um paladar
especial.
Nesse mesmo discurso, Coelho e Rezende afirmam que a saudade também
estabelece conexões com o presente e com o futuro, estando nesse sentido, em
sintonia com outros sentimentos como ansiedade e esperança:
É assim que poderíamos, por exemplo, pensar na ansiedade e na esperança como formas de relação com o futuro, a primeira falando de uma “ânsia” pelo porvir, a segunda remetendo a uma sensação – pertencente, ela mesma, ao momento presente de quem sente – de otimismo. (COELHO E REZENDE, 2010, p.67).
Saudade, tédio e esperança, assim, entre outros sentimentos, expressam uma maneira de o indivíduo relacionar-se com a temporalidade, reanimando um passado, debatendo-se com o presente, apostando no futuro. (COELHO E REZENDE, 2010, p.69).
Nota-se nesses indivíduos que o que os sustenta, fazendo com que relutem
diante do desejo de desistir, além do sonho da graduação, é a esperança e a
certeza de que sua permanência ali tem data marcada para findar. Tanto é, que
todos os entrevistados, sobretudo os de mais distante, afirmaram que pretendem
retornar as suas terras assim que concluírem o curso. Uma forma de enfrentar a
saudade e abreviar os entediantes dias que parecem não passar é sonhar com o
futuro e com as coisas boas que o sacrifício de hoje lhes proporcionará. E dessa
forma, a definição de Rubem Alves para este sentimento faz todo sentido: “A
saudade é a nossa alma dizendo para onde ela quer voltar”.
Sentimentos como medo, alegria, ciúmes, tristeza são vistos como universais,
como se as pessoas dos mais diversos lugares os experimentassem de forma igual.
A perspectiva que se tem das emoções, a princípio, é que são extremamente
naturais, e que fazem parte da “essência” humana, que o que se sente é próprio de
cada um. No entanto, a partir de uma observação mais detalhada e um olhar mais
sensível sobre as sociedades, percebemos facilmente que a forma de sentir e
expressar essas emoções ocorre de forma diferente, podendo variar de acordo com
o lugar e o tempo. “Essas diferenças se explicam, antes de tudo, pela história
cultural de cada grupo.” (LARAIA, 2001, p.18).
Em nossa sociedade, por exemplo, antes se expressava de forma clara e
imperativa o que se esperava dos indivíduos, hoje, entretanto, apenas o olhar do
outro já é capaz de nos oprimir, de mudar a forma natural como expressaríamos
nossos sentimentos. Aos homens é oferecida uma menor tolerância que às
mulheres no que diz respeito a se mostrar frágil, chorar em público, se mostrar
apaixonado, receber ordens de sua parceira, etc. David Le Breton fala sobre isso ao
escrever sobre a representação das emoções em sociedade, no livro As Paixões
Ordinárias:
O indivíduo fica por vezes desorientado e dividido entre alternativas que não consegue escolher, hesitante sobre a natureza daquilo que sente. Colocando-se no olhar do outro ou tomando os olhares alheios como referências suscetíveis a guiá-lo no caminho certo, ele procura ir em direção à emoção adequada de acordo com a opinião ou, ao menos, na direção de sua expressão social. (LE BRETON, p.143)
Nas entrevistas, notou-se que as respostas dos homens são concisas, mais
objetivas e que utilizam menos expressões faciais que as mulheres, no entanto, o
rapaz de Minas Gerais, mostrou-se exceção. Este não hesitou em demonstrar suas
emoções e dificuldades em estar longe da família, tanto é que de todos os
entrevistados, foi o único que admitiu já ter cogitado desistir do curso e voltar para
casa. Seria necessário um grupo maior de entrevistados oriundos desse mesmo
lugar para afirmar com aproximada precisão a relação entre a cultura mineira e esta
maior permissividade para que os homens expressem seus sentimentos, mas
embora o senso comum aponte que existam diferenças entre aqueles e os ditos
“machões” cearenses, assim como homens de outras regiões, Roque de Barros
Laraia, em sua obra “Cultura, um conceito antropológico”, afirma a partir de outros
estudos que esse “determinismo geográfico” é deturpado até certo ponto:
A partir de 1920, antropólogos como Boas, Wissler, Kroeber, entre outros, refutaram este tipo de determinismo e demonstraram que existe uma limitação na influência geográfica sobre os fatores culturais. E mais: que é possível e comum existir uma grande diversidade cultural localizada em um mesmo tipo de ambiente físico. (LARAIA, 2001, p.21)
Laraia aborda também uma questão interessante, que é no mínimo curiosa,
quando ele faz uma análise do riso: “Todos os homens riem, mas o fazem de
maneira diferente por motivos diversos.” (LARAIA, 2001, p.69). Ele afirma que para
homens de uma mesma cultura são nítidas as diferenças entre as maneiras de rir de
cada um, mas para alguém de fora fica difícil determinar essas diferenças entre cada
indivíduo, ficando ele limitado a conseguir identificar somente as discrepâncias entre
a forma de rir deste povo e das pessoas de sua própria cultura. Ele conseguirá fazer
essa análise apenas de forma abrangente, pois para ele, aqueles sujeitos riem da
mesma maneira. Uma das entrevistadas, que é angolana, apontou para essa
questão e podemos perceber em seu relato que sua apreciação foi generalizada,
como era de se esperar: “As pessoas no Brasil sorriem mais. Em Angola as pessoas
só demonstram sua alegria através de palavras, mas não sorriem”.
Dessa forma, Laraia denomina as diferenças percebidas pelos indivíduos de
uma mesma cultura de “variações de um mesmo padrão cultural”. Outro exemplo
disso são os sotaques próprios de cada região, que podem ser facilmente
identificados pelos cidadãos daquele país, mas provavelmente passariam
despercebidos por um estrangeiro. Basta atentarmos para o fato de que para nós
brasileiros não é tarefa simples diferenciar o inglês britânico do americano.
Imaginemos então as dificuldades de um gringo em distinguir um sotaque cearense
de um paulista, o que para nós é algo tão implícito.
Esta mesma jovem declarou que certa vez ao se comunicar com a família
através de vídeo conexão, sua mãe indagou o porquê de ela estar sorrindo e ela
respondeu que estava sorrindo por estar com saudade e feliz em vê-los, mas foi
repreendida pela mãe que afirmou que bastava dizer que estava feliz, não precisava
sorrir. “Na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”.
(MONTAIGNE apud LARAIA p. 13)
O ponto fundamental de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos a estranheza, em relação aos estrangeiros. A chegada de um estranho em determinadas comunidades pode ser considerada como a quebra da ordem social ou sobrenatural. (LARAIA 2001, p.73)
Percebeu-se nessa pesquisa que o fato de a mudança ser para uma cidade
universitária, onde há uma miscigenação, mistura de culturas e de valores, e supõe-
se que as pessoas tenham uma mente mais aberta em comparação com o restante
da sociedade, há também uma maior aceitação do costume alheio. Todos os
entrevistados declararam que se sentiram totalmente acolhidos, até mesmo porque
a maioria das pessoas com quem passaram a conviver compartilha das mesmas
dificuldades, como relatou um deles: “(...) E como aqui é todo mundo carente, a
gente precisa conversar, precisa arranjar alguma fuga”. Dessa forma, o fato de saber
que muitos ali estão passando pela mesma situação, acaba facilitando esse
processo e o que poderia ser visto por eles como rejeição (implicância com o
sotaque, aparência, etc.), na verdade é levado como uma brincadeira. Participar
ativamente dos projetos e atividades proporcionados pela Universidade também tem
se mostrado uma forma de suprir essa distância e ocupar a mente a fim de “driblar”
a saudade e os pensamentos nostálgicos que a acompanham.
Outro agente facilitador é o aparato biológico da “plasticidade” do qual o
homem dispõe. A facilidade em se adaptar aos mais diversos ambientes e a
capacidade de criar meios para se adequar a eles também auxilia nessa situação.
Curiosidades interessantes foram encontradas durante a pesquisa, como o uso de
chuveiro elétrico mesmo no cálido clima sobralense, pois na dificuldade de
adaptação a prática cearense de tomar banho frio, o jovem estudante optou por
trazer esse seu hábito até aqui. E dessa forma, vão procurando “se virar”, ora
incorporando seus costumes aos locais, ora tendo que aceitar estes a contragosto.
“Não é fácil pra ninguém! Você é jogado no meio dessa cultura e tem que se adaptar
a qualquer custo, senão o seu sonho vai ser jogado fora”.
Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros. (HERÓDOTO apud LARAIA, 2001, P.11).
Vemos nessas pessoas uma forte determinação que em geral é
perceptivelmente sustentada pelo próprio sonho e pela confiança daqueles que
mesmo estando longe, exercem uma força tremenda sobre estes jovens. E apesar
das diferenças percebidas nos hábitos, jeito de falar, vestir, notamos que a saudade
tem um peso diferente para cada um deles e que não somente os fatores culturais,
mas a história individual, a criação, a subjetividade de cada um têm importância na
forma como essa emoção é sentida, de forma que até eles mesmos não conseguem
descrever: “A falta que a gente sente não tem como dizer, não tem como mensurar.
É uma saudade muito, muito, muito grande.”
REFERÊNCIAS
REZENDE, C. B. COELHO, M. C. Antropologia das Emoções. São Paulo: FGV Editora, 2010.
LARAIA, R. de B. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
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