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Doce? Doce e a

Dona Terezinha

Doce? Doce e a

Dona Terezinha

O doce perguntou pro doce qual doce era o mais doce. O doce respondeu pro doce que só a Dona Terezinha, que muitos consideram como a

maior doceira de Atibaia é quem poderia dizer, com toda a certeza qual o doce que era o mais doce. E foi então que Terezinha de Jesus Arruda Scarelli respondeu: “Eu não sei se sou a maior doceira da cidade. O pessoal fala isso, mas, repito, não sei. Sei também que o doce que é mais doce é aquele que leva mais carinho e mais açúcar...”

E foi assim que dona Terezinha, que já completou 80 anos bem vividos, casada com Hermínio Scarelli, casal que teve quatro filhos, Claudio, Cleonice, Carlos e Cleide, uma porção de netos e bisnetos, começou a contar a sua histó-ria. Doce história. “Faz 40 anos que eu faço doces aqui em casa. Isso começou com minha avó. Ela fazia esses doces na fazenda onde morava. Quando minha avó morreu, minha mãe seguiu a tradição de fazer a tal da goiabada cascão. De-pois a missão sobrou para mim. Continuei a fazer doce em casa, só que aí aumentei o leque de ofertas, além da goiaba-da comecei a fazer bananada.”

Dona Terezinha nasceu em Itatiba e veio com os pais para Atibaia. “Viemos porque meu pai passou a ser o adminis-trador da Fazenda Santana, que pertencia ao Monsenhor Bastos, vigário da Igreja da Consolação, em São Paulo. O monsenhor comprou a propriedade em 1943. Cinco anos depois vendeu para um médico. E comprou a Granja Ma-ristela.” Ela aproveita e corrige a história. “Fizeram uma gruta lá em cima na Pedra e passaram a chamar de “Gruta do Monge”. Só que não tinha monge nenhum, a gruta é do monsenhor mesmo.”

Hermínio Scarelli, o marido, ri enquanto observa a en-trevista, quando Dona Terezinha e o repórter começam a

falar ironicamente das fortunas de padres e monsenhores... E aos risos, todos concordaram que seria melhor mudar de assunto. Até porque, segundo Dona Terezinha, o tal monse-nhor só vinha de vez em quando para conferir os resultados obtidos pela fazenda. Deus ajudava... Mais risos.

Quando chegou por aqui Dona Terezinha tinha sete anos. E cinco irmãos. “Tive que estudar fora, Bragança e Itatiba, porque a fazenda ficava longe do centro e das melhores es-colas. Seis ou sete quilômetros de distância.” Foi estudar em Bragança e em Itatiba. As famílias eram grandes naque-le tempo. “Só fiz o curso primário, ninguém queria que eu ficasse tão longe mais tempo. Quando vim de vez tinha uns dez, doze anos.”

Até hoje Dona Terezinha mora no mesmo lugar, ao pé da montanha, no final da avenida Santana, sete quilômetros distante do centro da cidade. “Se hoje é assim, imagine na-quele tempo. Isto aqui era isolado do mundo. As charretes e os cavalos é que salvavam. Depois vieram as bicicletas. Sempre que podia a gente ia a cavalo para a cidade. Deixáva-mos os animais numa chácara que ficava atrás do Museu, ali onde hoje existe um estacionamento. Era de um amigo da família. A gente deixava os cavalos e charretes e ia passear na cidade. Naquela época só existiam dois automóveis por aqui, um deles era do sr. Elizeu Mariano. Tinha vezes que a gente ia e voltava a pé da cidade.”

Esse “a gente” que Dona Terezinha fala eram os amigos das quatro famílias que moravam na região. “Tinha a minha família, a do sr. Matias, a família do tio do meu marido e a do meu marido. O Hermínio ia sempre junto. Nem preciso jurar, não havia nada entre nós até aquele ponto”, sorri. “Só resolvemos casar quando eu tinha 21 anos e ele 25. Naque-le tempo o namoro era mais respeitoso. Tudo era mais ro-mântico, os pais mais exigentes. Era lindo aquele clima de troca de olhares.”

O jovem Hermínio trabalhava na roça de sua família. “Meu

pai continuava como administrador da fazenda, mesmo depois do monsenhor ter vendido. Naquele tempo, como administrador meu pai não podia ter contato com os em-pregados. Era tudo tratado à distância, tudo muito formal.” Nem Terezinha nem os irmãos podiam conversar , muito menos brincar com filhos dos trabalhadores. “Aos poucos a gente quebrou essas barreiras. A discriminação racial era total. Por mais que se quisesse não se podia fazer nada. Eu não gostava.”

Já se disse a avó é que gostava de fazer doces. “Como so-brava muito doce ela dava para os empregados. Depois mi-nha mãe assumiu. Tinha muita goiaba na fazenda. Aí quem começou fui eu. Na época fazia só goiabada. Vinham paren-tes e a gente dava doce pra todo mundo. As pessoas come-çaram a dizer que não ficava bem aceitar, pois aquilo tudo tinha um custo. Insistiam que eu cobrasse ou não levariam. Comecei a vender e ganhar um dinheirinho. Nem sei quan-to. Naquele tempo a moeda era outra, mil réis, cruzeiro, cruzado, real...”

Atendendo sugestões e pedidos começou a fazer outros doces: banana, abobora, figo. Os doces são vendidos na casa dela mesmo. “Vem muita gente comprar. Eu vendo mais no supermercado da minha filha, em Piracaia e no supermercado de minha neta em Batatuba.”

Agora ela está pensando em legalizar a “empresa”, ins-crevendo no “Simples”. “Logo vou tirar nota fiscal, tudo direitinho”, revela. Dona Terezinha faz trinta, quarenta quilos de goiaba e o mesmo tanto de bananas. O que dá uns cinquenta quilos de cada doce por causa da adição do açú-car. Geralmente faz uns 150, 200 quilos de doces por mês. E vende a 15 reais o quilo para os supermercados. Quem compra em sua casa, leva aqueles potinhos de vidro médio de palmito por dez reais. “Tenho freguesia em todo o lado. Meu doce já foi para os Estados Unidos, para a Europa e até para o Japão...”

O segredo do doce? “É saber tirar o doce na hora certa, no ponto certo, com consistência nem muito mole nem muito dura. O ponto certo. A goiaba tem que ser muito bem lim-pa, livre de bichinhos ou qualquer impureza. Eu tiro as se-mentes, bato num liquidificador, passo numa peneirinha bem fina, coloco goiabas bem grandonas no meio. Alguns chamam de goiabada cascão, mas na verdade o nome é goia-bada em pedaços... Meu marido sempre me ajudou. E tem uma senhora que me ajuda. É muita fumaça. Tenho um fo-gão a lenha, um tacho muito grande, um fogão industrial.”

Uma boa doceira tem mãos, braços, pernas, todos quei-mados ou pinicados, como se diz. “Qualquer desses doces ferve, espirra, pula mesmo. Não tem jeito. Pode usar luvas, mas sempre vem um punhadinho de doce e acerta a gente...”

Hoje Dona Terezinha compra frutas do Maeda. E a laran-ja para os doces vem de São Sebastião do Paraíso, “É a laran-ja caipira”, explica. Goiabada, bananada, tudo em compota. Figo, abobora em pedaços, em compota, e aqueles docinhos cortadinhos. Ela não usa conservantes. Posto na geladeira o doce dura um mês na geladeira. “Tem fregueses que vem de longe, compram e colocam no freezer. Não, não vivo dis-so. Sou aposentada. Uma vez atendendo ao ex-prefeito Gil-berto Santana coloquei meu doce na festa do morango. Tive que fazer inscrição na prefeitura. Um dia eu recebi um avi-so que tinha que pagar uma taxa. Fui ver e fiquei sabendo que se referia justamente à inscrição que eu tinha feito. Co-mecei a ficar brava, mas a moça que me atendeu alertou que eu poderia começar a pagar um X por mês para a aposen-tadoria. Bendita hora, paguei todo mês e hoje ganho meu dinheirinho.” Dona Terezinha ri.

Sua aparência tranquila engana. “Não sou tranquila não, sou agitadona. Sempre fui feliz. Cada época da vida tem a sua felicidade. A felicidade no namoro, a felicidade dos pais. A felicidade do casamento. A felicidade de jogar tombola em família e com os amigos quando a gente é jovem. A fe-

licidade de flertar com o Hermínio. Felicidade de curtir os filhos. Ver crescerem, casarem, ver os netos, os bisnetos. Foi muita felicidade, muitas fases. Eu ia sendo feliz com cada fase. Eu fui feliz e continuo feliz. A gente tem que procurar a felicidade. Eu gosto, por exemplo, de colaborar com a so-ciedade, com o meu bairro, com as pessoas. Gosto de estar presente, estou sempre presente.”

De repente Dona Terezinha assume a aparência de uma pessoa meio brava. “Sou meia brava sim. Sou capricórnio. Sou teimosa.” Chorou em uma ou outra trombada da vida, nas coisas que deveriam ser choradas, foi tocando em fren-te. Hoje não só pertence ao Rotary Clube, como frequenta assiduamente e trabalha muito pela instituição.

Volta a falar da felicidade. “Fora as brigas da gente”, diz, olhando sorrindo para Hermínio que está ao lado. “Tantos anos de casado, virou, mexeu sempre tem uma coisinha no meio pra gente brigar mesmo...” O repórter se mete na briga para perguntar: “Quem ganha?” Dona Terezinha é enfáti-ca: geralmente eu.” Depois para, pensa e acrescenta: “Não, quem ganha é ele. Ele ganha sempre porque sai de perto e me deixa falando sozinha...”

Dona Terezinha ri. Riu muito. E ninguém saiu de perto, pois ela estava rindo gostoso. Quem sabe estivesse rindo da vida, rindo do mundo, quem sabe rindo das autoridades que deixam de olhar pelos mais carentes da sua cidade. A luta-dora Terezinha já tem até um centro comunitário que leva o seu nome, fruto de sua luta. No final, um conselho: se um dia você quiser ganhar uma discussão com Dona Terezinha não é bom ficar por perto quando ela está brava. Fora isso ela é um doce. Muito doce. ■