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EDGAR CZAR NOLASCO

RESTOS DE FICO:A CRIAO BIOGRFICO-LITERRIA DE CLARICE LISPECTOR

EDGAR CZAR NOLASCO

RESTOS DE FICO:A CRIAO BIOGRFICO-LITERRIA DE CLARICE LISPECTORTese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras Estudos Literrios, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Letras: Literatura Comparada. Orientadora: Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury

Faculdade de Letras da UFMG Belo Horizonte 2003

Tese de Doutorado aprovada pela banca examinadora constituda pelos professores:

__________________________________________ Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury (UFMG) Orientadora

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__________________________________________ Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios FALE/UFMG

Belo Horizonte, ....... de ........................ de 2003

AGRADECIMENTOS

Profa. Maria Zilda F. Cury, pela orientao segura e amizade constante, com gratido. Professores Doutores da Banca Examinadora, pela leitura crtica, obrigado. Fernando Paiva e Marcos de Oliveira, pela amizade incondicional, sempre. Programa de Ps-Graduao em Letras: Estudos Literrios, na pessoa da Coordenadora, Profa. Dra. Maria Zilda F. Cury. Agradecimento Especial vai para Letcia. Alda Lopes Dures Ribeiro, amiga e decifradora incansvel de meus restos manuscritos. Profa. Dra. Eneida Maria de Souza, pelas disciplinas do Doutorado que nortearam minha pesquisa, pela carta presenteada e sobretudo pela amizade. CNPq, pela concesso de bolsa para a realizao da pesquisa.

RESUMO

A relao entre vida e obra de Clarice Lispector motivou e conduziu esta pesquisa. Valendo-se da visada mais contempornea da crtica biogrfica, a tese toma como ponto de partida o romance de estria da autora, Perto do corao selvagem, para investigar os meandros e restos textuais que vo constituir o projeto literrio clariciano.

SUMRIO

INTRODUO QUANDO A VIDA VIVE NA FICO ............................. CAPTULO 1 PERTO DO CORAO SELVAGEM E A CRTICA .............. 1. Perto do corao selvagem longe da crtica ................................................... 1.1. Mais perto de Clarice .................................................................................... CAPTULO 2 CLARICE E A CRTICA BIOGRFICA ............................... 1. A escrita biogrfica de Clarice ........................................................................... 2. As relaes literrias de Clarice ...................................................................... 2.1. Clarice e Lobato: as reinaes de uma leitora perversa ............................... 2.2. Clarice e Autran Dourado: a cumplicidade pela literatura ........................... 2.3. Clarice, Katherine e Virginia: a escrita do xtase ........................................ 2.3.1. O amor leitura ......................................................................................... 2.3.2. Leituras traduzidas ..................................................................................... 2.3.3. Clandestina felicidade da leitura ............................................................... CAPTULO 3 CLARICE E A TRANSMIGRAO TEXTUAL ................. 1. Nos limiares da vida e da fico ...................................................................... 2. As crnicas alheias .......................................................................................... 3. As folhas soltas do texto .................................................................................. 4. Outras pginas soltas .......................................................................................

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CONCLUSO PARA ALM DOS RESTOS ................................................. 225 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 231

O resto o resto eram sempre as organizaes de mim mesma, agora sei, ah, agora eu sei. O resto era o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu nome. E acabei sendo o meu nome. Clarice Lispector. A paixo segundo G. H.

INTRODUO QUANDO A VIDA VIVE NA FICO

(Uma vida: estudos, doenas, nomeaes. E o resto? Os encontros, as amizades, os amores, as viagens, as leituras, os prazeres, os medos, as crenas, os gozos, as felicidades, as indignaes, as tristezas: em uma s palavra: as ressonncias? No texto mas no na obra.) Barthes. Roland Barthes por Roland Barthes.

Antes de Clarice Lispector se chamar Clarice, seu nome foi Haia, que em hebraico significa vida.1 A pequena que nascera trazia em seu nome a esperana de um futuro melhor para a famlia judia que emigrava pelo mundo e tambm a promessa de curar sua me de doena. Se a esperana se cumpriu com a famlia chegando e se instalando em terras brasileiras, o mesmo no aconteceu com a me, que fica cada vez mais enferma, vindo a falecer poucos anos depois. Foi no Brasil que a menina recebeu o nome de Clarice. A partir da tudo foi feito de forma tal que aquele passado fosse esquecido, aquela condio de famlia nmade fosse apagada, ou pelo menos foi assim que Clarice agiu: no se tem notcia de que ela tenha confessado ou escrito que seu primeiro nome fora Haia; procurou, a todo custo, esconder sua condio de judia, ou pelo menos no tratou da questo; evitou, o quanto pode, falar de sua me, como forma de esconder algo que a incomodava, como uma culpa; deu inmeras justificativas e explicaes sobre si mesma como forma de esconder seu estrangeirismo, como, por exemplo, o fato de ter lngua presa. Entretanto, nada disso adiantou muito: o fato de pertencer quele passado fez com que o mesmo continuasse ensombrando sua vida e sua escrita, por meio de algumas imagens e gestos da autora que acabaram tendo efeito contrrio. A questo da culpa/da me um exemplo de imagem do passado inscrito no presente da escrita.

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Cf. FERREIRA. Eu sou uma pergunta, p. 26.

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A culpa se torna uma temtica recorrente de fundo da escrita de Clarice. Seu conto Resto do Carnaval um exemplo dessa temtica biogrfico-literria. Nele, lem-se passagens como esta:o jogo de dados de um destino irracional? impiedoso (...) minha me de sbito piorou muito de sade, um alvoroo repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remdio na farmcia. (...) Na minha fome de sentir xtase, s vezes comeava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha me e de novo eu morria.2

O conto, a escrita do conto, assim, nos levam a inferir que a escritora, adulta, retoma o cotidiano daquela menina alegre, aquela infncia cortada por um carnaval to melanclico (eu era to alegre que escondia a dor de ver minha me assim.) como forma de mostrar para si mesma que est curada daquela culpa irremedivel. Talvez a escrita exera exatamente este papel: o do reparo dos restos, das perdas.3 Na crnica Pertencer, ao falar de seu novo estado de solido de nopertencer (apesar de reconhecer que pertence literatura brasileira por motivos que nada tm a ver com literatura), Clarice mostra-nos, mais uma vez, o quanto seu nascimento est intrinsecamente ligado sua culpa: s que no curei minha me. E sinto at hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma misso determinada e eu falhei.4 Sua escrita, por conseguinte, de certa forma, busca redimi-la dessa misso falhada, quando deixa entrever que a culpa (sentida na vida) serve como que de estofo para a fico: pudesse eu um dia escrever uma espcie de tratado sobre a

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LISPECTOR. Felicidade clandestina, p. 26.

Escrever desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor um desequilibrado que utiliza essas fices que so as palavras para se curar. Quantas angstias, quantas crises sinistras venci, graas a esses remdios insubstanciais! (CIORAN. Exerccios de admirao, p. 124) LISPECTOR. A descoberta do medo, p. 153.

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culpa. Como descrev-la, aquela que irremissvel, a que no se pode corrigir? (...) A culpa em mim algo to vasto e to enraizado que o melhor ainda aprender a viver com ela.5 Na esteira da pergunta de Clarice, reiteramos que pelo menos uma parte de sua escrita trata basicamente do trabalho de descrever essa culpa mesmo que saiba de antemo que ela incurvel e se no de corrigi-la, pelo menos de torn-la mais suportvel para a prpria autora. Ou seja, a escrita, enquanto exerccio de cura, porque escrever estar em anlise, torna possvel que a escritora aprenda a viver com a culpa6 e, em parte, a escrita de Clarice representa, metaforicamente, uma espcie de tratado sobre a culpa. De um modo geral, a figura da me na escrita clariciana inabordvel, esttica, morta e, no entanto, sempre to presente. Exemplo significativo dessa imagem encontra-se no conto Os desastres de Sofia, de matria eminentemente biogrfica, onde a menina de nove anos encontra-se totalmente desamparada diante da figura do professor: mas meu passado era agora tarde demais. (...) meu pai estava no trabalho, minha me morrera h meses. Eu era o nico eu.7 Mas talvez ainda o melhor exemplo seja o ttulo do terceiro captulo do romance Perto do corao selvagem. Esse captulo tinha originalmente como ttulo ...A me.... A partir da terceira edio, passou a chamar-se ... Um dia.... Consideramos que tal mudana foi uma interveno da prpria Clarice.8

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LISPECTOR. A descoberta do medo, p. 312. A crnica chama-se Aprender a viver. LISPECTOR. A legio estrangeira.

Marlene Gomes Mendes, na reviso que fez do livro, mesmo reconhecendo que a mudana foi feita pela autora, opta por manter o texto da primeira edio, o que, de nosso ponto de vista, parece discutvel. (Cf. MENDES. Nota prvia. In: LISPECTOR. Perto do corao selvagem. 15 ed.).

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Numa leitura metafrica, diramos que, se, por um lado, Clarice substitui o ttulo primeiro para esquecer-se de que tal passagem de sua vida ainda se apresentava para ela malresolvida, a ponto de reaparecer fantasmaticamente em sua escrita, por outro lado, Clarice esquece de que o captulo continua intacto, denunciando a presena da me pela mania da ausncia (Ela morreu assim que pde, diz o pai de Joana), uma quase-falta, uma culpa incurvel. Detemo-nos agora em torno do nome da escritora e da imagem fabricada que o circunda. Se o nome Clarice Lispector, diferentemente de seu primeiro nome, Haia, no significa mais vida, lembra-nos, contudo, da imagem desolada do morto sobre o tmulo. Em sua ltima entrevista, respondendo de onde teria vindo o Lispector, diz a escritora: um nome latino, n? E eu perguntei ao meu pai desde quando havia Lispector na Ucrnia. Ele disse que geraes e geraes anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, rolando... Perdendo algumas slabas e se transformando nessa coisa que . Parece uma coisa... lis no peito ou em latim flor de lis.9

A etimologia que Clarice fornece a sobre seu sobrenome a de que lis lrio e pector peito, isto , lrio sobre o peito. A imagem que ela mesma cria e fornece sobre seu nome remete-nos para a do morto, sustentando flores no peito. Lembramos de que a escritora fez o jornalista Jlio Lerner prometer que uma sua entrevista s iria ao ar depois de sua morte, e encerrou a mesma dizendo: por enquanto eu estou morta... Estou falando de meu tmulo....10 interessante notar que essa imagem criada em torno de seu nome remete-nos tambm para uma imagem ficcional criada por Clarice/Joana em Perto do corao selvagem:

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LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 453. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 460.

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(...) nem todas as coisas que se pensam passam a existir da em diante... Porque se eu digo: titia almoa com titio, eu no fao nada viver. (...) Mas se eu digo, por exemplo: flores em cima do tmulo, pronto! eis uma coisa que no existia antes de eu pensar flores em cima do tmulo.11

Assim, a partir da metfora flores em cima do tmulo podemos inferir que paralelamente trajetria da personagem Joana se inscreve tambm a vida/morte da personagem Clarice Lispector, construo biogrfico-literria que s vai se completar muito depois quando, em A hora da estrela, o autor assume que na verdade Clarice Lispector. Este livro, por sinal, traz o nome/assinatura da autora em um de seus quatorze subttulos.12 Deixa-se entrever, ainda, entre o imaginrio criador que Joana d s palavras (flores em cima do tmulo) e o puro verossmil (titia almoa com titio), o lugar mesmo onde se instaura o ato criativo de Clarice: entre o mundo cotidiano da vida, do real, e o mundo da fico, que pode ser sem volta. entre ir e vir que se d, segundo a prpria Clarice, seu ato de criao:pode ser um sofrimento. perigoso. O ato criador perigoso porque a gente pode ir e no voltar mais. Por isso eu procuro me cercar na minha vida de pessoas slidas, concretas; de meus filhos, de uma empregada, de uma senhora que mora comigo e que muito equilibrada. Para eu poder ir e voltar dentro da literatura sem o perigo de ficar. Todo artista corre grande risco. At de loucura. (...) O cotidiano como fator de equilbrio das incurses pelo desconhecido da criao.13

A imagem das flores-de-lis reaparece e dessa vez em seu prprio leito de morte: sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito (...)

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LISPECTOR. Perto do corao selvagem, p. 40. (Grifo nosso)

Como todo signo, eu inclusive, o nome prprio admite a possibilidade necessria de poder funcionar em minha ausncia, de destacar-se de seu portador: e segundo a lgica que j conhecida, deve-se poder portar esta ausncia e um certo absoluto, a que chamamos morte. Dir-se- portanto que, mesmo em vida, meu nome marca minha morte. Ele j portador da morte de seu portador. J nome de um morto, a memria antecipada de um desaparecimento. (BENNINGTON. Jacques Derrida, p. 108) LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 461.

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Lrios brancos encostados nudez do peito. Lrios que eu ofereo e ao que est doendo em voc.14 Estas foram as ltimas palavras escritas por Clarice, com Olga Borelli j segurando sua mo. Um texto sobre a vida e sobre a morte um texto sobre Clarice Lispector. Conta-nos ainda Borelli que na vspera da morte a escritora tentou deixar o quarto, sendo impedida pela enfermeira. Com raiva e transtornada, Clarice disse a ela: Voc matou meu personagem!15 Vida e fico. Talvez como forma de no-morrer, Clarice se v como personagem de si mesma, e ficcionaliza a morte, at mesmo nos ltimos restos de vida. Restos de fico d ttulo a um dos dezesseis quadros pintados por Clarice entre 1975 e 1976. Esse ttulo, lavrado num dos quadros, no completamente legvel, a ponto de alguns estudiosos anotarem outros. Ndia Gotlib e Eliane Vasconcellos,16 por exemplo, registram Raiva e [reintificao]. Lcia Helena Vianna registra Raiva e restos de fico,17 em seu texto sobre a pintura de Clarice. Desse modo, apesar de optarmos por restos de fico, pensamos mesmo que reintificao bem mais ao gosto da escritora. De tudo, entretanto, interessa-nos essa confuso bablica em torno do nome que acaba espelhando o processo biogrfico-literrio de criao da autora. Porque uma vida se diz, no texto, com todos os seus restos possveis, conforme deixa entrever a epgrafe barthesiana aposta a este texto.

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LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 61. BORELLI, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 484.

Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 477. Ver tambm VASCONCELLOS (Org.). Inventrio do Arquivo Clarice Lispector, p. 14.17

Ver ainda VIANNA. O figurativo inominvel: os quadros de Clarice (ou restos de fico).

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Da podermos dizer, nessa relao vida x obra, que uma se constitui enquanto tal imitando a outra, porque ambas nada mais so do que um tecido de signos imaginariamente criado e vivido.18 De acordo com Barthes, o romancista inscreve-se em sua fico como uma personagem desenhada em sua escrita, fazendo de sua vida uma fbula concorrente com a obra.19 Do nosso ponto de vista, fazer da vida uma fbula concorrente com a obra mais do que ler a vida da escritora Clarice Lispector como um texto (bio-grafia), mas perceber o valor em si de vida e obra e l-las simultaneamente. Seria, assim, o design dessa relao que nos ajudaria a entender o desdobramento da vida na fico, e desta naquela conseqentemente, e ainda a esboar os contornos fugidios da identidade fingida da escritora. Privilegiando tal relao, nosso escopo se resumir, grosso modo, em retraar o trao biogrficoliterrio que sustenta e mantm o projeto escritural e, por conseguinte, a escrita clariciana. Trabalhar com o Arquivo de Clarice Lispector (que se encontra na Fundao Casa de Rui Barbosa20) e, principalmente, com sua escrita enquanto (des)arquivstica de si mesma , de certa forma, focalizar os pequenos momentos muitas vezes desprezados pela historiografia literria, interessada privilegiadamente nos grandes relatos.21 Sua correspondncia, os recados, bilhetes, pintura, fragmentos, citaes alheias, pedaos de frases manuscritas, tradues, dados biogrficos, documentos

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Cf. BARTHES. A morte do autor. Ver BARTHES. Da obra ao texto. Ver VASCONCELLOS (Org.). Inventrio do Arquivo Clarice Lispector. Cf. CURY. A pesquisa em acervos e o remanejamento da crtica.

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pessoais, fotografias, livros, enfim, restos da vida e da fico, que compem o arquivo da escritora, trazem sua assinatura sob o vu de uma impresso clariciana.22 A palavra arquivo, segundo Derrida, designava inicialmente uma casa, um domiclio, um endereo, a residncia dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam.23 Fundao, casa, arquivo, museu, morada, passagem do privado ao pblico guardam e classificam os documentos/monumentos da escritora de acordo com a topologia institucional do lugar. Porque h a no arquivo pblico uma idia forte de consignao, isto , de reunir um nico corpus em um sistema articulado em que todos os elementos visam a unidade de uma configurao do sujeito para sempre disperso: o princpio arcntico do arquivo tambm um princpio de consignao, isto , de reunio.24 Tal idia , de certo modo, desconstruda por Derrida, quando mais adiante continua: os limites, as fronteiras, as distines tero sido sacudidas por um sismo que no poupa nenhum conceito classificatrio e nenhuma organizao do arquivo. A ordem no est mais garantida.25 Da Derrida dizer tambm que o arquivo trabalha contra si mesmo, e que a pulso de morte destruidora do arquivo, de todo seu premiado arcntico e de todo desejo de arquivo. O mesmo pode ser pensado com relao ao processo de criao literria de Clarice e com a prpria escrita enquanto tal. Durante toda sua vida literria, a escritora reiterou que no reescrevia seus textos.26 O estudo de sua obra comprova o

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Parodiamos aqui o subttulo do livro Mal de arquivo, de Derrida, que uma impresso freudiana. CF. DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 12. DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 14. DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 15. Cf. BORELLI. Clarice Lispector: esboo de um possvel retrato, p. 87.

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contrrio. A j se esboa uma de/negao quanto a no mexer no j-feito, jconcludo. Mas onde esto os manuscritos de sua vasta obra? curioso que uma obra extensa, mltipla e variada, fragmentada e, como se no bastasse, levada a cabo por uma escritora que s escrevia o que queria e quando queria, sofra da escassez de manuscritos. Seu prprio processo de criao fazia supor grande nmero de manuscritos: j demandaria uma quantidade de material manuscrito que pelo menos equivalesse ao dobro de sua escrita:S trabalhava como inesperado, o que podia acontecer at mesmo quando estava no cinema. Escrevinhava ento, nas costas de um talo de cheques, em lenos de papel ou em envelopes vazios, frases ou trechos inteiros.27

Tal escassez corrobora o postulado da escrita-arquivo que se apropria de seus prprios restos, pondo-os em movimentao, restos que ela mesma se encarrega de devorar. Seria, na esteira de Derrida, uma escrita que sofre do mal de escrita (pulso de morte) e que, por isso mesmo, procura destruir os restos, devorando seu prprio arquivo. Da dizermos que a escrita de Clarice se arquiva/constri tingindo, maquiando, rasurando sua prpria forma (des)arquivstica de criao. Enquanto escrita-arquivo, no deixou nenhum monumento, nenhum documento que lhe seja prprio, nenhum manuscrito, nenhum resto e nenhum rastro que fosse exterior ao seu prprio corpo ou corpus matizado pelo trao biogrfico que estaria dentro da categoria das belas impresses de que fala Derrida. Nessa escrita-arquivo no so apenas pedaos de textos e de escritas, notas, papis pessoais e alheios, citaes com e sem aspas que circulam compondo a criao, mas tambm retratos e retratos da autora (pessoais e ficcionais) que se encenam, multiplicam-se na tentativa

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Ver BORELLI. Clarice Lispector: esboo de um possvel retrato, p. 82.

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insana de ludibriar o outro, o leitor. Tal arquivo literrio aberto ao mundo que resume e diz a obra, que desmitifica, inclusive, o que literatura e aceita de bom grado o paraliterrio, no se intimida em provocar no estudioso que se prope a mexer em tais restos um certo mal-estar justamente por no saber o que poder encontrar no fundo sem fundo desse arquivo-texto: pedaos aleatrios de textos pessoais e alheios e conversas se despregam do corpus da escrita desarquivstica e se encenam ao olhar do visitante do arquivo dos restos. Da advm tambm mscaras e personae que se dizem e se multiplicam, textos e no-textos se desfazem e se completam, cpias, modelos e retratos se banalizam neste mundo simulado e de simulacros que fazem a literatura da autora. Tal escrita traz a marca de um esquecimento (in)voluntrio da escritora, aproxima-se, mais uma vez, da pulso de morte que, segundo Derrida, leva o arquivo a sofrer de um esquecimento, de uma aniquilao da memria, isto , a sofrer de um mal de arquivo. Tal pulso tem a vocao de levar o arquivo amnsia, arruinando o arquivo como acumulao e capitalizao da memria. Da o arquivo no ser jamais a memria nem a anamnese em sua experincia espontnea, viva e interior. Bem ao contrrio: o arquivo se instala no lugar da falta originria e estrutural da chamada memria.28 Clarice Lispector jamais assumiu uma vida verdadeiramente intelectual, jamais se considerou uma profissional, de certa forma desmitificando a imagem aurtica de escritora.

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DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 22.

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Na crnica As trs experincias, diz que apesar de escrever ser uma coisa extremamente forte pode tra-la e abandon-la a qualquer momento, de modo que no tem nenhuma garantia.29 Logo no incio de sua vida literria, Clarice leu de tudo, desde Dostovski at romances para mocinhas e livros cor-de-rosa: eu bebi demais na literatura.30 Para depois, j no final da vida, concluir: no sou grande leitora. No tenho pacincia de ler fico.31 A impacincia da leitora repercute tambm numa escritora impaciente que, a qualquer momento, pode deixar de escrever. Ou ento escrever cada vez menos, como acontece com ela mesma. Durante toda sua vida, mostrou-se cansada com relao ao seu ofcio e no entanto escreveu incansavelmente at o fim da vida. Exemplo disso seu livro A hora da estrela, escrito em agonia. Nele, talvez no por acaso, o narrador-escritor Rodrigo S. M. confessa: estou absolutamente cansado de literatura; s a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte.32 Assim, escrevendo aqum e alm dela mesma, Clarice se encarrega de delatar que escreve cada vez mais com menos palavras: meu livro melhor acontecer quanto eu de todo no escrever.33 A crise sentida por ela com relao ao escrever tambm representa, de forma especular, a crise vivenciada pelo sujeito com relao a si prprio e ao mundo: como se, agora, escrever fosse a forma mais atual de a escritora se confessar: o que farei de mim? (...) No vou escrever mais

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LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 136. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 112. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 31. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 80. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 85.

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livros. Porque se escrevesse diria minhas verdades to duras que seriam difceis de serem suportadas por mim e pelos outros. H um limite de se ser. J cheguei a esse limite.34 Mesmo encontrando-se nesse estado de limiar confessional, continuou a escrever, como sempre fizera, alis. Tal condio bem expressa em um texto confessional de Cioran: escrever um vcio de que podemos cansar-nos. Na verdade, escrevo cada vez menos e acabarei sem dvida no escrevendo mais, por j no achar a menor graa neste combate com os outros e comigo mesmo.35 Ressonncia perfeita encontramos na escritora brasileira: eu queria saber o que pretendem de mim os meus livros. Escrever um fardo. A minha libertao seria poder no escrever.36 Como se v, ela se traveste de antiescritora. E justamente esse fingimento, esta mscara que contribuem para pr seu arquivo literrio em movimento, dilatando e fazendo circular restos pessoais e ficcionais de uma obra que se desarquiviza movida por uma denegao (in)consciente de sua prpria mentora: no sei mais escrever, porm o fato literrio tornou-se aos poucos to desimportante para mim que no saber escrever talvez seja exatamente o que me salvar da literatura.37 Corrobora ainda essa idia o fato de Clarice dizer que no seguia nenhum plano para escrever, nenhuma teoria, que no conseguia planejar sua vida: tudo me vem impulsivo e corrosivo. Brota de mim.38 (Quero ser bio, disse ela em gua viva). Fundo e forma sempre foram uma coisa s para Clarice, porque a frase solta j vem feita. De modo que a ela s competia o trabalho do

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LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 103. CIORAN. Exerccios de admirao: ensaios e perfis, p. 124. Ver GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 434. LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 154. Cf. S. A escritura de Clarice Lispector, p. 212.

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qual no gostava que era o de reunir tais pensamentos e idias nascidos aos pedaos.39 Reunio de pedaos, escrever como lembranas do esquecimento, fundo e forma, arquivamento, consignao, tcnica de repetio, acumulao e capitalizao da escrita trabalho praticado incansavelmente por Clarice Lispector; zerar a memria, apagar a origem, queimar o arquivo, viver de seus prprios restos constitui o trabalho da sua escrita desarquivstica. Da s restar a essa escrita, geradora de suas prprias cinzas, restos e destroos, sofredora de seu prprio mal, arder de paixo e buscar o arquivo com um desejo compulsivo, repetitivo e nostlgico, um desejo irreprimvel de retorno origem, uma dor da ptria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do comeo absoluto.40 Este trabalho encontra-se dividido em 3 captulos. No primeiro, Perto do corao selvagem e a crtica, detenhamo-nos na importncia do livro de estria dentro do projeto literrio da escritora e na primeira leitura crtica a seu respeito. Fazendo uma leitura revisionista, ou seja, a crtica da crtica, mostramos alguns equvocos em sua fortuna crtica e procuramos chamar a ateno para a importncia que o livro j tinha enquanto projeto de tudo o que a autora ainda viria a produzir. Diferentemente da leitura de crticos proeminentes, como lvaro Lins, Srgio Milliet, Antonio Candido, Luiz Costa Lima, dentre outros, nossa leitura busca aproximar-se mais de sua criao literria, quando priorizamos, para a compreenso de sua obra de estria, a inscrio do biogrfico enquanto trao caracterizador de seu

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Ver BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 82. DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 118.

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processo de criao. O dilogo que a escritora manteve com o amigo Lcio Cardoso, bem como sua leitura crtica do escritor mineiro foram decisivos para este captulo. J o segundo captulo, Clarice e a crtica biogrfica, trata das relaes de amizade literria entre a escritora e seus comparsas literrios. Esclarecemos que amizade, nesse contexto, no foi pensada tomando-se o conceito de famlia. Ou seja, aqui amizade foi pensada para alm da amizade propriamente acontecida, da a possibilidade de nossa leitura crtica imaginar metforas e imagens literrias para as relaes de amizade de Clarice. Do leque de relaes de amizade que a obra da autora possibilita, acabamos por privilegiar ora aquelas que ela fez questo de tornar pblicas, como a de Monteiro Lobato, por exemplo, ora aquelas que mais encontram ressonncia com sua prpria escrita, como as de Katherine Mansfield e Virginia Woolf. H casos de amizades mais diretas, como Fernando Sabino, Autran Dourado e, principalmente, Lcio Cardoso. Tais relaes ainda foram atravessadas, na sua maioria, por outras amizades comuns a ambos. A literatura me trouxe muitos amigos sinceros, gente preciosa que se aproximou de mim e me deu o calor de uma amizade completa41 disse certa vez Clarice Lispector. Diramos, na esteira do que postula Ortega, em Para uma poltica da amizade, que ela acompanhou suas amizades de-dentro de seu silncio, em seu invlucro, no esquecimento, de forma a tirar algum proveito para si mesma e para sua fico. Talvez tenha sido por entender a amizade como mais um instrumento para o ofcio do escritor que Borges tenha dito que um dos temas da literatura a amizade: h muitas amizades na literatura, que tecida de amizades. (...) A

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LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 48.

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amizade um tema comum, mas em geral os escritores costumam recorrer ao contraste entre os dois amigos.42 Em Clarice e a transmigrao textual, ltimo captulo, procuramos mostrar a movimentao textual que caracteriza a obra clariciana. Quer sejam fragmentos alheios, quer sejam prprios, ambos so postos em circulao de forma a alicerar o processo de criao. Por conseguinte, procuramos mostrar ainda que tal transmigrao textual assemelha-se prpria origem de vida errante e dispersa que sustenta a famlia judia e de fora da autora. Da termos dito que a forma arquivstica como se organiza a escrita clariciana traz imbricada nela mesma a inscrio de sua autodestruio, seu mal de escrita radical. Dessa escrita-arquivo, folhas soltas e mais folhas se separam, formam outros textos, multiplicam-se, fragmentam-se e, mesmo assim, parecem estar condenadas a pertencer ao arquivo pessoal e mltiplo da escritora, por trazerem a marca de suas paixes secretas, de sua correspondncia, de sua vida.43

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BORGES. Obras completas III, p. 232. Cf. DERRIDA. Mal de arquivo: uma impresso freudiana, p. 129.

CAPTULO 1 PERTO DO CORAO SELVAGEM E A CRTICA

Nunca se conhece a histria antes que ela seja escrita. Antes que tenham desaparecido as circunstncias que levaram o autor a escrev-la. E, sobretudo, antes que tenha sofrido no livro a mutilao do passado, do corpo, do seu rosto, da sua voz, antes que ela se torne irremedivel, que adquira um carter fatal. Eu diria tambm: que num livro ela tenha se tornado exterior, carregada para longe, separada de seu autor e para ele perdida pela eternidade por vir. Duras. Ian Andra Steiner.

1. Perto do corao selvagem longe da crticaImpossvel explicar. Afastava-se aos poucos daquela zona onde as coisas tm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome slido e imutvel. Cada vez mais afundava na regio lquida, quieta e insondvel, onde pairavam nvoas vagas e frescas como as da madrugada. Lispector. Perto do corao selvagem.

A obra de estria de Clarice, Perto do corao selvagem, hoje, entre todos os demais, um livro mais memorvel do que lido. Terminado o projeto de criao literria da autora, com o livro pstumo Um sopro de vida (1978), apresenta-se de modo mais completo a possibilidade de que no s aquele livro de estria seja revisto, como tambm a de rediscutir na tentativa de rever seu valor dentro do projeto autoral a crtica inicial sobre ele. Assim, ao nos determos aqui nos primeiros ensaios sobre tal obra, s vezes recorrendo a alguns outros sobre obras posteriores, tentamos mostrar que o romance de estria j revelava um projeto completo de escrita, sobretudo com relao ao que a crtica subseqente viria a dizer sobre os livros de Clarice.1 A escritora, preocupada e interessada pelo que a crtica poderia dizer sobre seu livro, em pouco menos de um ms para deixar o pas, enviou uma carta para Mrio de Andrade, praticamente cobrando dele o silncio que fez em torno do livro.

Pensamos, sobretudo, nos seguintes textos: No raiar de Clarice Lispector (1943), de Antonio Candido; A experincia incompleta: Clarisse (sic) Lispector (1944), de lvaro Lins; Dirio crtico, v. II, p. 27-32 (sobre Perto do corao selvagem), de Srgio Milliet; Perto do corao selvagem (1944), de Lcio Cardoso; Dirio crtico, v. VII, de Srgio Milliet; Perto do corao selvagem (1969), de Roberto Schwartz; Clarice Lispector (1970), de Luiz Costa Lima; O dorso do tigre (1969) e O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector (1973), de Benedito Nunes.

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Alm da informao de que Clarice tinha lido o escritor modernista, no se tinha notcia de que os dois chegaram sequer a se falar pessoalmente. Mesmo assim, Clarice no se fez de rogada e enviou-lhe tal carta. Motivada, talvez, pelo conhecimento de que Mrio era poca o mestre de todos os jovens escritores que surgiam, e por conta, sem dvida, da amizade que ela nutria por Fernando Sabino, amigo pessoal com quem Mrio manteve uma correspondncia significativa. O mais curioso de tudo que no foi s a carta-resposta de Mrio a Clarice que se extraviou; porque a dela para ele no foi, at ao presente momento deste trabalho, sequer mencionada, nem mesmo por seus bigrafos. A escritora comea a carta dizendo ter se acostumado de tal forma a contar com o senhor Mrio de Andrade, justificando-se, assim, por t-la escrito. Diz que o fato de ele no ter criticado seu livro servia de resposta, o que s restava a ela compreender. Na verdade, no vemos tanta compreenso assim; antes, vemos uma Clarice com raiva de ter de se submeter ao julgamento crtico do outro, neste caso Mrio de Andrade. Por ltimo, confessa que gostaria de bem mais do que o silncio, mesmo que para sair deste sejam necessrias certas palavras duras.2 No menos curioso, e significativo, o

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A carta, na ntegra, a seguinte:

Belm, 27 de junho de 1944 Mrio de Andrade Acostumei-me de tal forma a contar com o senhor que, embora temendo perturb-lo e no lhe despertar o menor interesse, escrevo-lhe esta carta. O fato de o senhor no ter criticado meu livro serve evidentemente de resposta, e eu a compreendo. No entanto gostaria de bem mais do que o silncio, mesmo que para sair deste sejam necessrias certas palavras duras. Peo-lhe que interprete minha carta como quiser mas no veja nela falsa humildade. Desejo muito sinceramente que sua sade esteja boa. Clarice Lispector Meu endereo agora Belm, onde estou por tempos: Clarice Gurgel Valente Central Hotel Belm do Par. Fonte: Arquivo Mrio de Andrade IEB/USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo). Sobre a correspondncia da escritora, vale a pena conferir MONTERO (Org.). Correspondncias: Clarice Lispector. Agradeo pesquisadora Eneida Maria de Souza por ter me presenteado com a referida carta de Clarice Lispector a Mrio de Andrade.

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silncio que Clarice faz em torno dessa carta escrita a Mrio. Porque, quando mais tarde, Fernando Sabino lhe escreve contando da alegria de poder vir a encontrar a carta extraviada de Mrio, por nenhuma vez ela confessa a ele ter escrito a Mrio de Andrade. No confessa nem a Sabino e nem a ningum mais, por toda sua vida. Por fim, lembramos que Clarice escreve a Mrio em 27 de junho de 1944, e embarca para a Europa em 19 de julho do mesmo ano. Mrio de Andrade falece em fevereiro de 1945. E a carta de Fernando Sabino a Clarice, na qual diz que procurou no hotel a carta de Mrio e no a encontrou, de 10 de junho de 1946. Talvez a Sabino ainda, de alguma forma, se ressentisse da perda do amigo; enquanto Clarice, em sua carta-resposta (Berna, 19 de junho de 1946), mesmo fazendo referncias a vrios crticos (Milliet, Lins, Escorel, Moura etc.) e a outras cartas e jornais recebidos, sequer se lembra de fazer aluso a Mrio de Andrade o que nos leva a concluir que desde ento Clarice Lispector j fazia questo de esquecer-se e de negar at o que ela mesma pedira a outrem (Mrio de Andrade).3 Mrio de Andrade, entusiasmado com o livro de estria e com a carta recebida, envia escritora sua carta-resposta, para sempre extraviada. A informao dada por Fernando Sabino, que volta ao lugar (Hotel Central, em Belm) na tentativa de encontrar a preciosa carta para sempre perdida, esquecida num escaninho qualquer.4 Assim, se por um lado, nem Clarice nem a crtica puderam tomar conhecimento das impresses de leitura do escritor modernista sobre Perto do

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Cf. SABINO. Cartas perto do corao, p. 20-23.

Ver SABINO. Cartas perto do corao, p. 19. Clarice, em Belm eu procurei no hotel uma carta do Mrio para voc, no encontrei. Eu delirava se pudesse te dar essa alegria. Tinha certeza de encontrar e no encontrei. (SABINO. Cartas perto do corao, p. 19). Assis Brasil, no livro Clarice Lispector: ensaio (1969), afirma que Mrio de Andrade escreve contra o livro. No temos como comprovar tal informao. (BRASIL. Clarice Lispector: ensaio, p. 140).

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corao selvagem, por outro e o tempo se encarrega de avaliar e de julgar , a correspondncia entre Sabino e Clarice, sobretudo, forou uma carta to boa que parecia uma carta de Mrio de Andrade e isso elogio.5 A imagem da carta extraviada, o desencontro entre Mrio de Andrade e Clarice Lispector podem servir de metfora para o desencontro entre a obra de estria da autora e a crtica. Porque ler uma obra tomando por base o trao biogrfico que a constitui, assim como ler uma correspondncia,no significa conhecer um autor como ele de fato foi mas formar uma imagem acrescida de outros tons e enriquecida por certos ngulos. No se trata de criar um retrato definitivo mas entrever gestos e traos que relampejam em um momento de ansiedade, de dvida ou de bem-estar. (...) No a histria de uma vida, com comeo e fim determinados. um processo aberto, sujeito s vicissitudes do tempo e s influncias do cotidiano.6

O texto literrio s se d a conhecer a posteriori de sua produo, embora nunca por inteiro. Considerando, principalmente, que o texto crtico datado e histrico, esclarecemos que o ensaio biogrfico aqui privilegiado, quando se referir primeira crtica da obra de Clarice, pretende um dilogo crtico-biogrfico inventivo e produtivo. Desse modo, resenhar e comentar as falhas crticas pode ser entendido como uma forma terica pertinente de jogar luz revigorada sobre os assuntos ali abordados, como tambm rediscutir a pertinncia dos mesmos com relao obra analisada. Esta, inclusive, e a talvez esteja a finalidade do objetivo proposto, passada a limpo, atualizando-se pela releitura que a suplementa.

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Cf. SABINO. Cartas perto do corao, p. 120. Na verdade, ao dizer isso, Sabino est se referindo carta de Clarice enviada a ele de Washington em 25 de setembro de 1954. SANTOS. Ao sol carta farol: a correspondncia de Mrio de Andrade e outros missivistas, p. 287.

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Antonio Candido, em texto mais recente sobre Clarice, afirma que em 1943, a jovem escritora, surgida do mais completo anonimato, no apenas modificava essencialmente as possibilidades da escrita literria no Brasil, mas obrigava a crtica a rever a sua perspectiva.7 Assim, passados mais de 50 anos, podemos reler tal crtica para postular quais de suas impresses devemos rever. Principalmente porque a obra de estria, que se apresentou como isolada, deslocou a visada realista da literatura e da prpria crtica produzidas na poca. Desse modo, o prprio texto de Candido, No raiar de Clarice Lispector, que naquele momento significava a estria de uma nova forma crtica, agora pode ser revisto criticamente. Antonio Candido foi um dos primeiros a escrever sobre a obra de estria da escritora. Comea dizendo que teve verdadeiro choque ao ler o romance que uma tentativa impressionante para levar a nossa lngua canhestra a domnios pouco explorados, adaptando-a a um pensamento em que a fico um instrumento real do esprito.8 Afirma a seguir que a autora aceita a provocao das coisas sua sensibilidade e procura criar um mundo partindo das suas prprias emoes, da sua prpria capacidade de interpretao.9 Criar um mundo partindo das suas prprias emoes , do nosso ponto de vista, levar em conta o trao biogrfico que a diferencia dos demais e marca a inscrio de uni(ci)dade de sua escrita, tingindo-a com um timbre que revela as obras de exceo.10 No por acaso, ento, que Candido prefere qualificar o romance de estria entre os romances de aproximao,

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CANDIDO. No comeo era de fato o verbo, p. XIX. (Grifos nossos). VER CANDIDO. Vrios escritos, p. 127. CANDIDO. Vrios escritos, p. 128. CANDIDO. Vrios escritos, p. 128.

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por entender que o seu campo ainda a alma, so ainda as paixes.11 Aproximao e esclarecimento da identificao do escritor com o problema, ou seja, momento de revelao e de encobrimento dos desejos da escritora na escrita, lugar onde vida e fico se aproximam e se afastam. Lugar tambm de paixes por leituras confessas e inconfessas, que aceleram o ritmo de procura do prprio romance. Podemos aproximar Clarice de Joana, personagem da obra de estria. A escritora, assim como sua protagonista, entrev a zona mgica onde tudo se transmuda e a conveno dos sentidos cede lugar viso essencial da vida.12 Assim, e na esteira do que disse Candido, se esse romance, como a vida, um romance de relao, porque estabelece relao de Clarice com a sua prpria vida e com a vida dos outros de sua vida, sobretudo com aqueles que comporiam definitivamente sua famlia literria. Veja-se pargrafo do ensaio de Candido que merece ser transcrito:se no valesse por outros motivos, o livro de Clarice Lispector valeria como tentativa, e como tal que devemos julg-lo, porque nele a realizao nitidamente inferior ao propsito. Original, no sei at que ponto ser. A crtica de influncias me mete certo medo, pelo que tem de difcil e sobretudo de relativa e pouco concludente. Em relao a Perto do corao selvagem, se deixarmos de lado as possveis fontes estrangeiras de inspirao, permanece o fato de que, dentro da nossa literatura, performance da melhor qualidade.13

No entanto a produo posterior da escritora e, conseqentemente, a efetivao de seu projeto literrio s vieram mostrar que a obra de estria j era um todo compsito, sntese das obras posteriores. Alm disso, os comentrios original, no sei at que ponto ser e se deixarmos de lado as possveis fontes estrangeiras

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CANDIDO. Vrios escritos, p. 129. CANDIDO. Vrios escritos, p. 129-130. Mais adiante, voltaremos relao Clarice e Joana. CANDIDO. Vrios escritos, p. 128. (Grifo nosso)

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de inspirao nos mostram que o olhar crtico j comeava a correr por fora do domnio da crtica da influncia crtica esta, alis, que passa a ser mal vista ainda quando praticada naquele momento.14 Meses antes do texto de Candido, lvaro Lins havia publicado o ensaio A experincia incompleta: Clarisse (sic) Lispector, com o qual o primeiro parecia no concordar totalmente. Categoricamente, Lins afirmava que era um romance original nas nossas letras, embora no o seja na literatura universal.15 Apesar, de modo geral, de o texto de Lins ser muito discutvel, justamente por evidenciar no estar preparado para receber um romance daquela natureza e estrutura, no tocante questo das relaes literrias estrangeiras da autora, foram muito pertinentes suas colocaes, sobretudo quando afirma:no tenho receio no afirmar, todavia, que o livro da sra. Clarisse (sic) Lispector a primeira experincia definitiva que se faz no Brasil do moderno romance lrico, do romance que se acha dentro da tradio de um Joyce ou de uma Virginia Woolf. Apesar da epgrafe de Joyce que d ttulo ao seu livro, de Virginia Woolf que mais se aproxima a sra. Clarisse (sic) Lispector.16

Valendo-nos to-somente dessa afirmao do crtico e pensando na idia de romance de aproximao usada por Candido, podemos, paralelamente a uma rediscusso dos textos crticos sobre a autora, rever o contexto literrio no qual sua obra emergia e dialogava, bem como sua possvel famlia literria que a partir dali se esboava, como tambm o trao biogrfico, tingido de pessoalidade/personalidade mpar, que no s estruturava sua escrita como ainda a diferenciava das demais.

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Um dos crticos que mais soube fazer uso da crtica da influncia no Brasil talvez tenha sido Eugnio Gomes que, no s soube tirar proveito atravs de suas vises comparativas, como tambm deslocar a carga semntica negativa do conceito de influncia. Sobre Gomes, ver ALVES. Leituras inglesas: vises comparatistas. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 187-188. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 188. (Grifo nosso)

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Sobre a assertiva de Lins a respeito da aproximao com Joyce e sobretudo com Virginia Woolf, a escritora brasileira negou qualquer parentesco, qualquer aproximao literria: escrevi para ele [Lins] dizendo que no conhecia Joyce nem Virginia Woolf nem Proust quando fiz o livro, porque o diabo do homem s faltou me chamar de representante comercial deles.17 Mais importante para nossa leitura do parentesco estabelecido por Lins a constatao de que a partir dessa poca a escritora vai negar toda e qualquer influncia literria. Numa carta endereada a Lcio Cardoso, na qual tenta explicar ao amigo que seu segundo romance, O Lustre, no em nada mansfieldiano, nem mesmo no ttulo, ainda sob o impacto da crtica de Lins, diz: o diabo que naturalmente eu venho sempre por ltimo, de modo que eu sempre estou no que j est feito. Isso muitas vezes me deu certo desgosto.18 Diz que se no momento da criao do livro estivesse lendo Proust algum pensaria num lustre proustiano (meu Deus, ia escrevendo proustituto!).19 No tocante s suas relaes literrias, podemos pensar que assim, meio proustitutamente, que sua escrita se relaciona sempre de forma a de/negar as contribuies literrias advindas das relaes. Um lustre proustituto. Um lustre que se vendia a si prprio. Uma escrita que, inconscientemente, reifica, coisifica pela compra o corpo do outro, a escrita do outro. Ainda tomada talvez por esse lado da crtica que a ligava a toda uma tradio literria, a autora no perde a oportunidade, atravs de cartas enviadas ao Brasil, de Npoles, de Berna, de comentar o assunto que a incomodaria para o resto da vida: a crtica de lvaro

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LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 105. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 198. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 198.

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Lins me abateu bastante, tudo o que ele diz verdade, causada ou no por uma inimizade que ele tem por mim, seja, ou no uma crtica escrita em cima da perna. Ao lado disso o que ele diz verdade, ele no me compreendeu.20 Concordamos que Lins no a compreendeu, mas no que diz respeito ao todo de sua obra, porque no tocante s possveis influncias ele no poderia ter sido mais coerente. E justamente isso que a abala profundamente, a ponto de ela falar numa possvel inimizade. O fato que tal atmosfera nos lembra todo um mundo de relaes literrias que poderiam ser estabelecidas a partir da leitura de seu livro de estria. Ou seja, se ela no era uma representante comercial dos escritores mencionados quando fez o livro, agora, ao contrrio, estando em Berna, e lendo-os, quem sabe, pela primeira vez e no original, se estabelece um mundo de leituras e de parentescos literrios que podem ser recriados, tambm atravs das cartas enviadas ao Brasil. Conforme se constata nelas, naquele momento a escritora lia, entre outros, Proust, Kafka, K. Mansfield, Emily Bront, e tambm Lcio Cardoso. E assim parece-nos que o desconforto causado pela crtica de lvaro Lins, o silncio inexplicvel em torno da publicao de O Lustre no Brasil, tudo enfim contribuiu para o estado de esprito da escritora e repercutiu em sua forma de ver e perceber a realidade estrangeira que a circundava. Desse modo, o retrato que ela vai fazendo da cidade de Berna, das obras que l e principalmente o comentrio de seu auto-retrato revelam o possvel estado de amizade/inimizade, relao difcil com a escrita, saudades do Brasil. Numa carta de 29 de abril de 1946, constata: Berna de um

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LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 115. Grifos nossos. Nesta mesma carta, Clarice pergunta se Antonio Candido escreveu alguma coisa sobre o livro (O lustre), porque gostaria muito de ler uma crtica de Antonio Candido. (LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p. 115.)

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silncio terrvel: as pessoas tambm so silenciosas e riem pouco. Eu que tenho tido acesso de risos.21 E se v como um esprito cansado e blas, pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura, e afirma: no caminho em que eu entrei eu tenho que aprofundar ao mximo at meus defeitos, quanto mais tempo passar mais enfronhada eu deverei estar no que eu fao s assim conseguirei um arremedo de perfeio.22 Como se v, est totalmente imersa no mundo da literatura: cheguei mesmo concluso de que escrever a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.23 E, no por acaso, escreve, mesmo que mal ou bem, porque falta ainda o sentido do livro, uma razo mais forte para ele existir,24 e l e descobre aqueles escritores com os quais j tinha sido comparada, talvez antes mesmo de os ler:eu pensava que ia gostar de Proust como se gosta das coisas esmagadoras; mas com grande surpresa vejo que tenho um prazer enorme e sincero em l-lo, acho-o naturalssimo, nada cacete, nada imponente, pelo contrrio, de uma modstia intelectual que nunca se sacrifica por um brilho, por uma imagem.25

E l tambm os poemas de Emily Bront, traduzidos por Lcio Cardoso e enviados por sua irm Elisa. Transportada pela leitura da escritora inglesa, escreve ao amigo dizendo como ela me compreende. Em vrias cartas reitera que tem lido bastante, procurando atravs dos livros chegar a uma concluso sobre as coisas que me parecem to

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LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p.110. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p.112. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p.114. Cf. LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo para um possvel retrato, p.114. Cf. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 199.

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confusas como nunca.26 Diz que material escrito tem sempre e em abundncia, faltando-lhe apenas o tino da composio.27 Foi em Npoles que termina O Lustre, que comeara no Brasil antes mesmo de Perto do corao selvagem.28 Terminado o livro, Clarice se muda para Berna, e ali permanece espera de notcias sobre a recepo da crtica brasileira e j comea a recolher impresses para o seu romance bernense A cidade sitiada. Sobre seu segundo livro, dizia que foi o que lhe deu maior prazer em escrever, apesar de ser um livro triste.29 O gesto de dedicar o livro a sua irm Tnia talvez, metaforicamente, externasse mesmo sua solido, sua condio de estrangeira e de exilada. No por acaso que o livro seguinte abordaria a questo da mulher/ Clarice/escritora sitiada nela mesma. Assim, o retrato meio impressionista que faz da cidade e de si mesma acaba refletindo, de modo especular, as impresses/ sensaes que, de alguma forma, estruturam O Lustre. Enquanto sobre a cidade italiana diz que tudo aqui tem cor esmaecida, mas no como se tivesse um vu por cima: so as verdadeiras cores,30 sobre sua pessoa diz que tirou um retrato em que sorria para voc [para a irm Elisa] e acontece que o sorriso no iluminou meu rosto... Eu posso estar rindo por dentro e no aparece por fora...31 E explica-se: a nostalgia que vem de uma vida errada, de um temperamento excessivamente

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LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 115. Cf. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 116. Ver GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 214. GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 214. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 190. LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 110.

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sensvel, de talvez uma vocao errada ou forada, etc.32 O retrato que vai construindo de si mesma atravs das cartas e crnicas, misturado ao cansao e a uma saudade horrvel de sua famlia, de seus amigos e de seus leitores, encontra ressonncia nos retratos mal-acabados de suas heronas Virginia, Lucrcia e Joana. O olhar, de soslaio e fabricado, o mesmo que talvez tenha levado o pintor italiano De Chirico a retrat-la como uma inexpressiva Mona Lisa, como a prpria Clarice, mais tarde, vai fazer em A paixo segundo G. H. ao comentar uma possvel fotografia sua tirada numa praia: o que eu via na sorridente fotografia malassombrada de um rosto cuja palavra um silncio inexpressivo, todos os retratos de pessoas so um retrato de Mona Lisa.33 No por acaso que o modo de ver fluido e esmaecido com o qual Clarice se v e v a cidade o mesmo pelo qual v/constri a protagonista de O Lustre: ela [Virginia] seria fluida durante toda a vida, a frase que abre o romance; e no final:a fora e a fecundidade do ritmo. Nada parecia escapar sucesso contnua, a um ntimo movimento esfrico, inspirando, expirando, inspirando, expirando, morte e ressurreio, morte e ressurreio. Afinal, tudo era a sua mais profunda sensao de existncia como se as coisas fossem feitas de impossibilidade de no o serem.34

E foi precisamente por tratar da mais profunda sensao de existncia, de forma a estruturar o mundo na impossibilidade da linguagem, que lvaro Lins tambm no compreendeu este segundo romance, cobrando, mais uma vez, estrutura

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LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 109.

LISPECTOR. A paixo segundo G. H., p. 23. Na carta do dia 9 de maio de 1945, Clarice diz: hoje de tarde posei a ltima vez para De Chirico. Ele famoso no mundo inteiro, tem quadros em quase todos os museus. O meu retrato pequeno, est timo, uma beleza, com expresso e tudo. (...) O meu retrato s da cabea, pescoo e um pouquinho de ombros. Tudo diminudo. Posei com aquele vestido de veludo azul da Mayflower. (LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 107.)34

LISPECTOR. O lustre, p. 340.

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romanesca, excesso de personalidade da escrita e verbalismo, ou seja, exuberncia verbal.35 O quase-silncio crtico em torno do livro no Brasil levou Fernando Sabino a escrever uma carta para a amiga, em Berna: por falar em lvaro Lins, soube que ele finalmente est lendo O Lustre, com ligeiras indisposies facilmente adivinhveis.36 No mesmo ms da carta, sai o artigo de Lins, advertindo queromance, porm, no se faz somente com um personagem, e pedaos de romances, romances mutilados e incompletos, so os dois livros publicados pela sra. Clarisse (sic) Lispector, transmitindo ambos nas ltimas pginas a sensao de que alguma coisa essencial deixou de ser captada ou dominada pela autora no processo da arte de fico.37

Mas tambm no diz que coisa essencial seria esta para que o romance fosse completo. E, como da primeira vez, acredita que a escritora ainda vir a escrever o seu grande romance. Diz, ainda, que h uma camada de nebulosidade envolvendo O Lustre,no lhe permitindo a completa revelao das formas e das cenas, a tal ponto que pessoas pouco experientes ou ingnuas, perturbadas pelo que h no livro de informe, de vago e de pouco caracterizado, chegam a tomar aquela camada de nebulosidade como sendo a prpria realidade essencial do romance.38

Tambm aqui o crtico com uma visada realista, por no compreender a forma como se articula a linguagem do livro, cobra mais clareza tanto da escritora quanto dos seus leitores. Ou seja, so justamente as caractersticas que constituem o estilo personalssimo da autora que Lins desaprova, no entendendo sua forma de criao. Diz, por ltimo, que o estilo da escritora representa

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Cf. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 192-193. SABINO. Cartas perto do corao, p. 14. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 192. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 192.

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um reagente da fraqueza, traies e impossibilidades. Produz em geral resultados positivos quando est a exprimir sensaes espontneas, enquanto se revela insuficiente ou impotente quando chamado a transmitir as operaes de anlise psicolgica em profundidade.39

Na verdade, o que a leitura deixa claro que o crtico no se encontra preparado para compreender o estilo, ou seja, a forma de criao literria da autora que, ao dizer-se, funda o real e obriga a prpria realidade a rever-se, e no o contrrio. Assim, fica por conta dessa sua incompreenso o rtulo da exuberncia verbal para o livro que s refora o verbalismo com o qual classificou Perto do corao selvagem. Essa questo do estilo abala fortemente o crtico, que em nota ao texto observou: pretende este Autor desenvolver, em estudo parte, tal afirmativa, que considera vlida mesmo em relao s obras posteriores da escritora.40 Lins no entendeu a forma moderna como Clarice estrutura a narrativa a histria romanesca, a reelaborao que ela provoca na linguagem literria. Da considerar uma fragilidade a estrutura da obra: li o romance duas vezes, e ao terminar s havia uma impresso: a de que ele no estava realizado, a de que estava incompleta e inacabada a sua estrutura como obra de fico.41 Lembre-se mais uma vez a opinio semelhante de Antonio Candido, que tambm afirmou que o romance valia como tentativa, j que a realizao nitidamente inferior ao propsito.42 Lins critica severamente a presena da personalidade da autora em seu texto e, mesmo

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LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 193. Ver LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 453, nota 10. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 189. CANDIDO. Vrios escritos, p. 128.

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reconhecendo que era um romance bem feminino, como se v,43 deixa transparecer em sua crtica um tom machista e preconceituoso: parece-me que, neste sentido, a sra. Clarisse (sic) Lispector no atingiu todo o objetivo da criao literria.44 De fato, poderamos contra-argumentar que a escritora logrou alcanar, em forma de romance, a reelaborao de suas circunstncias pessoais, entre elas aquelas que a levaram a se tornar escritora. Ou seja, sua herana/errncia cultural e histrica, atravessada por sua condio de mulher. Esse, sem dvida, um dos traos biogrficos (Biografemas, diria Barthes) que esteiam sua criao literria, que o crtico no entendeu: o leitor menos experiente confundir com a obra criada aquilo que apenas o esplendor de uma micante personalidade. Personalidade estranha, solitria e inadaptada, com uma viso particular e inconfundvel.45 Personalidade estranha, micante personalidade, atmosfera de sonho, confuso entre memria e imaginao, tudo isso enfim desbarata a leitura realista de lvaro Lins. Ao contrrio do que disse o crtico, parece-me que seria muito mais proveitoso que o leitor menos experiente confundisse a personalidade micante da protagonista Joana com a personalidade estranha da autora, quando se pode, pelo trao biogrfico que as une, ler a vida de uma em pano de fundo para a outra. E talvez seja justamente por no tomar o distanciamento necessrio para compreender o mascaramento das personae entre Joana e Clarice, que se completava e se multiplicava ainda mais, que Lins, tomado por suas impresses, conclui que Clarice apresenta um precoce amadurecimento de esprito, um poder de inteligncia acima de sua idade, mas no toda a experincia

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LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 189. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 189. (Grifo nosso) LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 189.

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vital que vem do tempo ou da intuio necessria ao romancista.46 O crtico, ao fazer tais observaes sobre a personalidade da jovem escritora, estava, mesmo sem o perceber, falando tambm da protagonista do romance, Joana. O crtico tinha em mos um novo tipo de romance, por apresentar caracteres da linguagem potica. Da no poder cobrar mais do plano da estrutura romanesca um descritivismo da realidade. Cobra da jovem escritora, que padece de um precoce amadurecimento de esprito, o fato de ela apelar para os recursos da poesia quando lhe faltam os recursos da estruturao ficcionista.47 Mesmo que, muito depois, lembre-se o que diz Antonio Candido: no se exigira mais, como antes se exigiria, explcita ou implicitamente, que Cortzar cante a vida de Juan Moreyra, ou Clarice Lispector explore o vocabulrio sertanejo.48 Na verdade, entender a estrutura romanesca em Clarice pensar a questo da linguagem e, por extenso, do prprio sujeito. Porque, como se sabe, impossvel pensar a questo do sujeito em Clarice tomando-se por base uma concepo voltada para o cogito cartesiano. E a linguagem, e no s a de Clarice, mas toda a que alicera a literatura moderna (Proust, Joyce, Virginia Woolf, entre outros) ela mesma a prpria estrutura que serve de substrato para o sujeito, espelhando-se, por vezes, nos fragmentos que compem a escrita. Talvez tenha sido exatamente por isso que a escritora em 1943, nas palavras de Candido, obrigava a crtica a rever a sua perspectiva. No plano da estrutura romanesca, o tratamento

46 47

Cf. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 192-193.

LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 190. Para Gilda de Mello e Souza, Clarice se defronta com o problema bastante grave, em O lustre, que foi o da limitao dos gneros: o emprstimo de processos de outros gneros raras vezes enriquecimento. (...) no teria O lustre trado, de certa maneira, a caracterstica principal do romance, que ser romanesco e discursivo? (SOUZA. O lustre).48

CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 162.

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estilstico operado multiplicava as vozes, os olhares que, ao fim, convergiam para a prpria protagonista Joana na tentativa de decifr-la. Tais olhares, segundo Rosenbaum, so desdobramentos de um mesmo eu que se mira, contempla-se ou se julga. Assim, por no se identificar com nenhum desses olhares que Joana permanece esboo aberto a um preenchimento impossvel.49 Talvez seja porque a escritora Clarice Lispector aparea identificada com Joana que Rosenbaum conclua que a fico que se arma nesse jogo de vozes desmonta as certezas factuais, imprimindo ao texto um carter inacabado, aberto, questionando a verdade nica da experincia narrada.50 Parece ter sido por no entender esse carter propositalmente inacabado que Lins afirma, de forma categrica, que a partir da segunda parte j no sabe como acabar o livro, deixando-o inacabado e incompleto como romance.51 Na verdade, como muito bem soube ver Srgio Milliet ao falar sobre a relao da autora com as palavras, tambm em seu livro de estria: no as domina mais, ento; elas que tomam conta dela.52 Da podermos dizer que a literatura de Clarice erige-se apontada para a insatisfao do mundo, porque o escritor no mais controla o efeito de sua escrita. Movida por uma tcnica pessoal, a linguagem clariciana tensiona a realidade, no sentido de exauri-la dentro do texto. Sua tcnica narrativa consiste em fragmentar o instante tensionando-o at o limite, fazendo perdurar a dramaticidade de cada cena, promove a identificao entre o leitor e a personagem.53 Foi por no entender

49 50 51 52 53

Ver ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 32-50. ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 72. LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 190. MILLIET. Dirio crtico, v. II, p. 87. ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 67.

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o desalinho dos fragmentos, as imagens criadas no romance, que lvaro Lins, j no final de seu texto, diz que a ele falta a criao de um ambiente mais definido e estruturado, e que aqueles pedaos de romance seriam fragmentos do grande romance que a autora, sem dvida, poder escrever mais tarde.54 Perto do corao selvagem, comeo da trajetria da escritora Clarice Lispector, desconstri o texto esperado, valendo-se dos restos, dos fragmentos, de sobras textuais para o processo de criao. Nesse sentido, a obra toda da autora movimenta-se, desaguando um livro no outro, disseminando origens e comeos, na tentativa de rasurar os textos superpostos em rede. por valer-se desse jogo de seduo e destruio na prpria linguagem que prende o leitor em sua teia, levando-o ao final a reconhecer-se a si prprio na empreitada. Desse modo, torna-se inevitvel pensarmos esse modelo de seduo e destruio como o prottipo da potica de Clarice, que envolve o leitor, qual marinheiro encantado pela sereia, para em seguida demolir suas convices e afog-lo nas guas de uma escrita letal,55 conclui Rosenbaum. Escrita letal e, por isso mesmo, ancorada por fragmentos, escombros e runas, constitui o pensamento da literatura clariciana que almeja a reconstruo do mundo. A escrita clariciana ela mesma testemunho de um salto sobre os fragmentos de uma intensa exploso psquica e criativa. A totalidade da obra talvez seja a nica transcendncia possvel para a luta incansvel entre a linguagem e a realidade vivida.56

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LINS. Os mortos de sobrecasaca, p. 191. ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 134. Cf. ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 177.

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Lembramos aqui de um verso de A terra estril, de T. S. Eliot: com fragmentos tais foi que escorei minhas runas. Lembramos, tambm por associao, que a escassez de enredo na obra clariciana assemelha-se sua prpria forma de viver a vida: Eu no tenho enredo. Sou inopinadamente fragmentria. Sou aos poucos. Minha histria viver.57 Regina Pontieri, ao falar do fragmento na escritura clariciana, diz que Perto do corao selvagem apresenta j uma diviso clara em captulos que, como partes dentro do todo, so dotados de relativa autonomia.58 Como se sabe, a esttica do fragmentrio ganhou dimenso peculiar neste sculo, na literatura e nas artes em geral. No toa que escritores que revolucionaram a forma como Proust, Joyce e Virginia Woolf, por exemplo, foram tomados como modelos de Perto do corao selvagem. Ainda a ttulo de exemplo dessa fragmentao no processo de criao, lembramos que ela est na gnese de Perto do corao selvagem: Clarice passava a Lcio Cardoso um amontoado de folhas soltas, uma coletnea de fragmentos, aparentemente desconexos, que, por sugesto do amigo, se transformavam no material que deu origem ao livro de estria.59 A crtica que Costa Lima fez obra da autora, a da desarticulao com o real, passa pela no-compreenso do papel que a esttica do fragmento ocupa dentro da obra. Tal leitura era tpica de romances realistas onde as personagens funcionavam como avatares de pessoas e interagiam com o mundo de forma relativamente igual. Da advinha a inverossimilhana da obra de Clarice, que, valendo-

57 58 59

LISPECTOR, apud BORELLI. Clarice Lispector: esboo de um possvel retrato, p. 15. PONTIERI. Clarice Lispector: uma potica do olhar, p. 119.

Cf. PONTIERI. Clarice Lispector: uma potica do olhar, p. 117. Ver tambm GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 171-172. So as notas, soltas, que, em grande quantidade, e referentes ao mesmo assunto, constituiro j o seu romance, conforme observou seu amigo e conselheiro Lcio Cardoso. (GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 172)

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se do espelhamento, emprestava seus prprios sentimentos, impresses e sensaes s suas personagens, e vice-versa. O pressuposto do romance realista levou o crtico afirmao, por exemplo, de que a romancista no consegue ajustar as idias que traz s personagens que cria, que se tornam como fmulos ou mamulengos, submissos e manipulados por mo oculta.60 Para o crtico, Clarice levou tudo ao meramente subjetivo e, por isso mesmo, o fragmento, a ocorrncia no se articula com a totalidade.61 Seria, assim, essa desarticulao com o real que levaria conseqente falsificao dos personagens e dos dilogos que entretecem. E precisamente a teria falhado a escritora, pela ausncia de uma articulao intensa e concreta com o mundo.62 Continua dizendo: Trata-se de uma obra de pouco flego, por efeito da sua desarticulao com a totalidade concreta, em que a subjetivao intelectualizante preenche a falta de realidade e termina por esmagar personagens e matria novelesca.63 O crtico cobra da autora uma totalidade concreta, sem perceber o alcance do que ele mesmo conclura, isto , que a nica soluo possvel para a autora seria a de tentar um gnero mais curto, mais suscetvel de ser preenchido pela sua capacidade de apreenso potica do instante e do fragmento.64 Quer seja no romance, conto ou crnica, a linguagem de Clarice centra-se na desarticulao da idia de totalidade. Em funo desta desarticulao, sujeito, personagem, narrador e autora sobrepem-se, um ocupando o lugar do outro, sem cerimnia, e sem

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LIMA. Clarice Lispector, p. 543. In: COUTINHO. A literatura no Brasil. Ver tambm A mstica ao revs de Clarice Lispector. LIMA. Clarice Lispector, p. 529. LIMA. Clarice Lispector, p. 533. LIMA. Clarice Lispector, p. 541. LIMA. Clarice Lispector, p. 541.

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preocupao em perder a realidade concreta, uma vez que a linguagem ancora-se numa forma inovadora, poderosa e mpar no contexto da literatura brasileira. basicamente por no compreender os diferentes desdobramentos efetuados no texto da narradora, da protagonista e, por extenso, da prpria escritora (incluindo ainda Ldia e a mulher da voz, isto , todo um mundo feminino que se desenha) que Costa Lima diz que o romance padece de um sentimentalismo romntico.65 Soma-se a esta falha da autora, segundo o crtico, a falta de o romance estabelecer, como j observado, uma articulao intensa e concreta com o mundo.66 Critica veementemente tal fundo sentimental porque o mesmo empanava sua leitura que se resumia na possibilidade de uma interpretao objetiva.67 Contra tal crtica de base realista, vejamos o que diz Silviano Santiago:Nas histrias da literatura brasileira, a trama novelesca que no era passvel de ser absorvida pela aurola interpretativa do acontecimento era jogada na lata de lixo da histria como sentimental ou condenvel. Caracterizar algo como sentimental ou condenvel significava querer demonstrar que o compromisso do texto ficcional no era com a interpretao do acontecimento propriamente dito, mas com certa emoo privada que estava sendo desnudada pela escrita e, em seguida, entregue em letra impressa ao pblico.68

No mesmo texto, Santiago nos lembra de Candido, que j afirmara que Clarice procura criar um mundo partindo das suas prprias emoes, da sua prpria capacidade de interpretao.69 Conclui que numa tarefa arqueolgica, o fundamento dito literrio da prosa de Clarice s poderia ser encontrado na chamada

65 66 67 68 69

LIMA. Clarice Lispector, p. 533. LIMA. Clarice Lispector, p. 533. LIMA. Clarice Lispector, p. 534. SANTIAGO. A aula inaugural de Clarice, p. 14. Cf. SANTIAGO. A aula inaugural de Clarice, p. 28. (Grifo nosso)

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literatura sentimental, numa literatura de mocinhas e para mocinhas.70 Milliet observa que Joana/Clarice em sua capacidade introspectiva, na coragem simples com que compreende e expe a trgica e rica aventura da solido humana pertence contradio: porque para essa herona de olhos fixos nos menores, nos mais tnues movimentos da vida, no h uma realidade, mas vrias.71 Milliet percebeu argutamente que a tcnica da autora era a de captulos ajuntados desordenadamente, e que, no romance, a desimportncia relativa dos demais personagens apenas esboados, com uma displicncia, um quase alheamento que s no chegam a chocar em virtude da admirvel anlise de Joana.72 Enfim, Milliet conclua seu texto dizendo que a obra de estria de Clarice eraa mais sria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai alm, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximao; pela primeira vez um autor penetra at o fundo a complexidade psicolgica da alma moderna, alcana em cheio o problema intelectual, vira do avesso, sem piedade nem concesses, uma vida eriada de recalques.73

Desse modo, compreender o romance de estria de Clarice passa necessariamente pela considerao da articulao e montagem dos fragmentos textuais e pelo desdobramento das figuras ficcionais, incluindo-se a a presena da autora enquanto um trao biogrfico feminino da escrita. Porque s considerando isso pode-se dizer que Perto do corao selvagem

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SANTIAGO. A aula inaugural de Clarice, p. 15. Silviano usa como epgrafe de seu texto a seguinte passagem de Srgio Milliet: Raramente o crtico tem a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados no lhe trazem mais emoes. [...] Diante daquele nome estranho e at desagradvel, pseudnimo sem dvida, eu pensei: mais uma dessas mocinhas que principiam cheias de qualidades, que a gente pode at elogiar, mas que morreriam de ataque diante de uma crtica sria. E ia enterrar o volume na estante quando a conscincia profissional acordou. (MILLIET. Dirio crtico, v. 2, p. 27, 15 de janeiro de 1944.) MILLIET. Dirio crtico, p. 28. MILLIET. Dirio crtico, p. 29. MILLIET. Dirio crtico, 32.

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conta no s a errncia de uma mulher ao longo de vrios estgios de vida, mas tambm um aprendizado de escritura. E este fato justifica consider-lo como romance de formao, tanto quanto Um retrato do artista quando jovem de onde procede o ttulo de Clarice.74

Ou seja, um retrato-romance de formao da escritora e de todo seu projeto literrio futuro que ali se esboava sem cair no hermetismo nem nos modismos modernistas, como previu Srgio Milliet. Candido inclui o livro entre os romances de aproximao: os livros que procuram esclarecer mais a essncia do que a existncia, mais o ser do que o estar, com um tempo mais acentuadamente psicolgico.75 De forma simplificada, a reside a diferena entre as leituras de lvaro Lins e Costa Lima e as de Antonio Candido e Srgio Milliet. Enquanto os primeiros se voltaram para a explicao da existncia do sujeito na realidade, ou seja, seu estar de acordo ou no com o real, os segundos voltaram-se para a essncia do sujeito, isto , para o seu prprio ser no mundo. No toa que Candido situa da seguinte forma o movimento da personagem Joana em direo ao seu prprio destino:diante de Joana no h barreiras nem empecilhos que a faam desviar do seu destino; este, quase uma misso, consiste em procurar acercar-se cada vez mais do selvagem corao da vida. O corao selvagem pode ser um cu e pode ser um inferno. Como nunca o atingimos, sempre um inferno especial, onde o suplcio mximo fosse o de Tntalo; e com efeito este romance uma variao sobre o suplcio ou Tntalo. Joana passeia pela vida e sofre, sempre obsecada [sic] por algo que no atinge.76

PONTIERI. Clarice Lispector: uma potica do olhar, p. 105. No texto Perto do corao selvagem: romance de formao, romance de transformao, de Cristina Ferreira Pinto, se l: Perto do corao selvagem um pr-romance, ou prembulo de um romance que vai se realizar fora dos limites do texto. (FERREIRA PINTO. O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros, p. 77-108.)75 76

74

CANDIDO. Vrios escritos, p. 128. CANDIDO. Vrios escritos, p. 129.

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Essa busca de Joana espelha a de Clarice por uma escritura que d forma ao impronuncivel,77 acabando por instaurar uma esttica do fracasso ao acolher o irrepresentvel. Segundo Prado Jr., atravs do esforo e do malogro de sua linguagem, ela [a escritura] faz sentir que algo escapa e resta no determinado, no apresentado, ela inscreve uma ausncia, alude ao que se evola. Kant diria: ela o apresenta negativamente.78 Prado Jr. diz ainda algo que, de forma especial, move o que estamos querendo dizer aqui: o trabalho da escritura atesta que os fatos no resolvem tudo e que h um resto; e ao mesmo tempo lembra, contra a iluso metafsica, que esse resto entretanto no designvel, nem representvel. H o inominvel, o irrepresentvel.79 Assim, contra a presuno do entendimento, da interpretao, contra o realismo vigente de uma determinada crtica assentada na realidade concreta, temos o resto ou os restos de textos, os fragmentos, atrelados por uma linguagem que, por sua prpria natureza, impronuncivel. Vemos com isso que a modernidade est na raiz da linguagem de Clarice, sendo a autora partcipe de uma literatura que tem na autoconscincia sua potncia e, ao mesmo tempo, a marca de sua fratura.80 Arthur Nestrvski, ao falar da literatura moderna, registra uma caracterstica que bem poderia ser atribuda a Clarice:[...] da procura, da criao de uma linguagem absoluta, das palavras que vo dar nome s coisas, dizer o mundo como ele . Ironicamente, a literatura moderna, que existe em contradio com a prpria idia de uma ltima origem, faz por isso mesmo da origem uma de suas metforas principais.81

77 78 79 80 81

Cf. O impronuncivel: notas sobre um fracasso sublime, de Plnio W. Prado Jr., p. 24-25. PRADO Jr. O impronuncivel: notas sobre um fracasso sublime, p. 24-25. PRADO Jr. O impronuncivel: notas sobre um fracasso sublime, p. 25. Cf. ROSENBAUM. Metamorfoses do mal, p. 71. NESTROVSKI. Ironias da modernidade, p. 12.

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Acercada pelo selvagem corao da vida, que tanto pode ser cu ou inferno, lugar feito de restos, pedaos de textos e de eus, fragmentrio e em runas, Joana, obcecada por algo que no atinge, restos impronunciveis de histrias e de linguagem, presa ao seu destino, embarca numA viagem, ltimo captulo do romance, desprovida de qualquer desejo de esperana: impossvel explicar. Afastava-se aos poucos daquela zona onde as coisas tm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome slido e imutvel. Cada vez mais afundava na regio lquida, quieta e insondvel, onde pairavam nvoas vagas e frescas como as da madrugada.82 Assim como Joana, tambm a narradora do livro, a narrativa e a prpria escritora afastaram-se do que tinha forma fixa e aresta, onde tudo tem nome slido e imutvel, tornandose, por isso mesmo, formaes ficcionais que, dentro da escrita, se modificam a cada momento e a cada fragmento, promovendo, assim, por espelhamento, uma identificao entre narradora, protagonista e autora. Anatol Rosenfeld, em seu texto Reflexes sobre o romance moderno, comenta queo narrador, no af de apresentar a realidade como tal e no aquela realidade lgica e bem comportada do narrador tradicional, procura superar a perspectiva tradicional, submergindo na prpria corrente psquica da personagem ou tomando qualquer posio que lhe parece menos fictcia que as tradicionais e ilusionistas.83

E acrescenta, bem ao estilo de Clarice Lispector:a enfocao microscpica aplicada vida psquica teve efeitos semelhantes viso de um inseto debaixo da lente do microscpio. No o reconhecemos

82 83

LISPECTOR. Perto do corao selvagem, p. 194. ROSENFELD. Texto/contexto, p. 84.

50

mais como tal, pois, eliminada a distncia, focalizamos apenas uma parcela dele, imensamente ampliada.84

O que nos faz pensar na tcnica narrativa fragmentria e escassa de Clarice, j posta em prtica em seu livro de estria, que vira do avesso questes de espao e de tempo e a prpria realidade: espao, tempo e causalidade foram desmascarados como meras aparncias, exteriores, como formas epidrmicas por meio das quais o senso comum procura impor uma ordem fictcia realidade.85 A tcnica narrativa posta em prtica por Clarice em seu livro de estria j mostrava sobretudo para quem estava aparelhado criticamente para entender , conforme expresso de Virginia Woolf, que a vida atual feita de trevas impenetrveis que no permitem a viso circunspecta do romancista tradicional.86 Da dizermos que Perto do corao selvagem no se alinhava realidade pura e simplesmente, como quis entend-lo parte da crtica, porque no visava explicar o real, nem muito menos o tinha como tema; antes, produzia sua prpria realidade, ou seja, sua escrita. Nesse sentido, h uma passagem de Candido sobre o livro, em ensaio da dcada de 80, que digna de reproduo:nele, de certo modo, o tema passava a segundo plano e a escrita a primeiro, fazendo ver que a elaborao do texto era elemento decisivo para a fico atingir o seu pleno efeito. Por outras palavras, Clarice mostrava que a realidade social ou pessoal (que fornece o tema), e o instrumento verbal (que institui a linguagem) se justificam antes de mais nada pelo fato de produzirem uma realidade prpria, com a sua inteligibilidade especfica. No se trata mais de ver o texto como algo que se esgota ao conduzir a este ou quele aspecto do mundo e do ser; mas de lhe pedir que crie para ns o mundo, ou um mundo que existe e atua na medida em que discurso literrio.87

84 85 86 87

ROSENFELD. Texto/contexto, p. 85. ROSENFELD. Texto/contexto, p. 85. Cf. ROSENFELD. Texto/contexto, p. 92. CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 208.

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E sendo a escrita ficcional mais histrica e menos datada que o texto crtico, retornamos aqui a ambos na tentativa de ganho crtico. Foi justamente por no perceber que o romance de estria da autora no consistia em dar unidades aos fragmentos, mas antes em produzir imagens sem nenhuma preocupao com a totalidade lembramos que os captulos do livro podem ser lidos como um todo em si, sem necessidade de unidade ntima nenhuma88 , que Costa Lima apontou como defeito de Clarice a carncia da sua forma. Ou seja, na falta de ajustamento interno do material captado.89 Passado mais de meio sculo da publicao do livro, podemos dizer que a autora, ao cumprir risca seu projeto literrio inovador, que ali se iniciava, ps por terra muitas das primeiras impresses crticas. Ao invs de vir a escrever posteriormente o seu grande romance, pelo contrrio, descentrou aqueles pedaos iniciais dando-lhes, cada vez mais, vida prpria dentro do conjunto de sua obra. Podemos dizer tambm que Clarice Lispector foi literalmente teimosa, meticulosa. Esta foi a viso que, mais tarde, como crtico mais amadurecido, teve dela Antonio Candido:ela provavelmente a origem das tendncias desestruturantes, que dissolvem o enredo na descrio e praticam esta com o gosto pelos contornos fugidios. Decorre a perda da viso de conjunto devido ao meticuloso acmulo de pormenores, que um crtico atribuiu com argcia viso feminina, presa ao mido concreto.90

88

Gotlib, ao comentar a estrutura do livro, diz que uma de suas foras est num movimento que acaba realando o momento de cada captulo, conferindo-lhes autonomia no conjunto, como se fossem contos enxertados ao longo do romance. (GOTLIB. Edio crtica de A paixo segundo G.H., p. 106.) Cf. LIMA. Clarice Lispector, p. 530. CANDIDO. A educao pela noite e outros ensaios, p. 210.

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52

Candido a alude crtica de lvaro Lins. No vamos nos deter na chamada crtica feminina sobre a autora porque grande parte dos estudos sobre a obra de Clarice nas dcadas de 80 e 90 principalmente, quer seja no Brasil ou no exterior, a ela se filia. De modo geral, muitas das crticas que tm como objeto a obra de Clarice Lispector assumiram um enfoque dito feminino, algumas delas, chegam mesmo a rotular e setorizar a obra da escritora.91

1.1. Mais perto de ClariceAgora entendo esta histria. Lispector. A hora da estrela.

Lcio Cardoso, alm de ser o melhor amigo da jovem escritora estreante,92 de ter tambm sugerido o ttulo de seu romance de estria e de ser seu conselheiro literrio, foi ainda quem melhor parece ter compreendido a sua proposta literria inicial.93 Essa amizade, a correspondncia trocada, as leituras realizadas, as confidncias e outros textos contribuem sobremaneira para a leitura biogrfica que

91

Sem nenhuma comparao crtica, penso nos seguintes trabalhos: HELENA. Nem musa, nem medusa: itinerrio da escrita de Clarice Lispector; BARBOSA. Clarice Lispector: des/fiando as teias da paixo; FERREIRA PINTO. O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros; CIXOUS. A hora de Clarice Lispector; VARIN. Lnguas de fogo: ensaio sobre Clarice Lispector. Sobre o assunto, esclarecedor o livro de Lcia Helena acima citado, sobretudo o captulo O feminino segundo Lispector, p. 99-113.

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Clarice Lispector, na crnica Lcio Cardoso, ao comentar sua visita ao amigo no hospital, relata: antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora no ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescncia. (LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 243-245.)

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Em carta a Lcio Cardoso, datada de 21 de maro de 1944, Clarice diz: Lcio, voc diz no seu artigo que tem ouvido muitas objees ao livro. Eu estou longe, no sei de nada, mas imagino. Quais foram? sempre curioso ouvir. Imagine que depois que li o artigo de lvaro Lins, muito surpreendida porque esperava que ele dissesse coisas piores, escrevi uma carta para ele, afinal uma carta boba, dizendo que eu no tinha adotado Joyce ou Virginia Woolf, que na verdade lera a ambos depois de estar com o livro pronto. Voc se lembra que eu dei o livro datilografado (j pela terceira vez) para voc e disse que estava lendo o Portrait of the artist e que encontrara uma frase bonita? Foi voc quem me sugeriu o ttulo. (LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p. 177.) (Grifos nossos)

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move este trabalho e para uma melhor compreenso do processo de criao do livro de estria, aproximando-nos da figura da escritora. Em Perto do corao selvagem,94 Lcio Cardoso mostra o valor do romance de estria da amiga. Comea por dizer quepoucas vezes temos visto um to exacerbado individualismo, uma to lenta e obstinada sondagem do seu prprio eu (...). Deste mundo essencialmente feminino, cheio de imagens, de sons (...) no h dvida de que estamos diante de uma singular personalidade que sabe captar do mundo exterior e interior, e muitas vezes da sua fuso, uma viso perfeita.95

Ficava claro no artigo que a escrita de Clarice exigia uma nova forma de leitura. Seu exacerbado individualismo, seu mundo essencialmente feminino eram traos inerentes que tambm davam sustentao sua escrita literria. Assim, sua lenta e obstinada sondagem do seu prprio eu era feita no sentido de melhor desconstru-lo, descentr-lo, multifacet-lo: fragmentos que refletiam a prpria estrutura de sua escrita. Lcio Cardoso valoriza e mostra que a autora soube tirar proveito do feminino e afirma que a escritora consegue captar do mundo uma fuso perfeita, no considerando a obra uma experincia incompleta. J Silviano Santiago, para falar da originalidade da escritora, em texto mais recente sintomaticamente intitulado Aula inaugural, diz que ela desafortunada, isto , sem precursores.96 O texto Guimares, Clarice e antes,97 de Luis Bueno, contrape-se claramente ao de Silviano. Concordamos com Bueno que o romance de estria

94 95 96 97

CARDOSO. Perto do corao selvagem. Dirio Carioca, 12 mar. 1944. CARDOSO. Perto do corao selvagem. SANTIAGO. A aula inaugural de Clarice. BUENO. Guimares, Clarice e antes.

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surge em dilogo com a tradio literria, mas dele discordamos quando diz que carece de legitimidade a afirmao de que Clarice inaugurou entre ns uma fico despreocupada de dar uma resposta imediata realidade social (...).98 Veja-se outro aspecto levantado por Silviano Santiago, que nos parece importante. O estudioso mostra que boa parte da crtica mais tradicional cobra de Clarice uma fidelidade ao gnero ficcional, talvez por no compreender a novidade de sua escrita.99 Foi o caso de Gilda de Melo e Souza, que, analisando a linguagem de O Lustre, constatou que, ao trazer as caractersticas da poesia para o romance, Clarice acabou se defrontando com o problema da limitao dos gneros:cada gnero regido por certo nmero de normas estticas que o contm. (...) O emprstimo de processos de outros gneros raras vezes enriquecimento. Esposando os processos poticos, no teria O Lustre trado, de certa maneira, a caracterstica principal do romance, que ser romanesco e discursivo?100

Resposta negativa encontramos em Lcio Cardoso quando constata que no so raros os momentos em que temos a impresso de que a histria de Joana vai se deter para se transformar num canto, num hino, tal a magia irresistvel que envolve o cenrio, os sentimentos e as sensaes.101 Uma quase-elegia, diramos, que tambm marcou o movimento e a criao de outras escritoras modernas como Virginia Woolf e Katherine Mansfield.102 Costa Lima, ao que parece, tambm no compreendeu a histria de Joana, estancada em plena narrao, sem nenhuma

98 99

Cf. BUENO. Guimares, Clarice e antes, p. 252. SANTIAGO. A aula inaugural de Clarice, p. 17.

Cf. SOUZA. O lustre, p. 172. In: Remate de males. Milliet disse o seguinte: creio que o poema em prosa mais do que o romance seria sua forma eficaz de expresso. (...) Dentro das limitaes do enredo, amarrada presena de heris diferentes uns dos outros, a autora acaba por impor a todos a prpria personalidade, homogeneiz-los, false-los, e finalmente desmantelar a composio toda. (MILLIET. Dirio crtico, v. 7, p. 34.)101 102

100

CARDOSO. Perto do corao selvagem. Ver captulo 2, deste trabalho.

55

nostalgia da forma de narrar tradicional. Em texto mais recente, O estranho comeo de Clarice Lispector, Costa Lima afirma que em vez de um corte absoluto com o relato tradicional, o romance convivia com seus restos, e explica:Lispector ento se c