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Lutas contra o Um: notas do dilogo entre uma antropologia e umMarx contra o Estado
Jean Tible*
Resumo
Este artigo prope um dilogo entre duas abordagens; de Marx, por umla do; da antropologia de Cla stres e Viveiros de Castro, por outro. Trata -se detrocas acerca do Estado a partir das respectivas concepes de extino e
recusa deste. Inicia-se com uma apresentao e justificativa desse dilogo,al m de explanar tambm acerca de que Marx se est fal ando. Aps colocarde modo inicial ambos os conceitos-chave e seus elos, tal encontro ganhaoutros desdobramentos, gra as aos Mil Pla ts de Deleuze e Guattari . Enfim,
a anlise de certas lutas, antigas e contemporneas, que ambas asperspectivas trabalham do ponto de vista terico, permite aprofundar talproposta.Palavras-chave: Estado, Poltica, Karl Marx, Pierre Clastres, Eduardo Viveiros
de Castro
Dilogo
Este artigo prope um encontro entre certas leituras de Karl Marx, por um lado,
e da antropologia de Pierre Clastres e Eduardo Viveiros de Castro, por outro lado.Encontro que conta com a ajuda de Gilles Deleuze e Flix Guattari para materializar-se.
E, igualmente, de diversas lutas. Trata-se de um dilogo a partir dos conceitos de
abolio e recusa do Estado e, tambm, de um dilogo no mbito das cincias sociais
principalmente entre teoria antropolgica, poltica e sociolgica.
Tal questo central, por ser uma instituio-chave para apreenso do nosso
modo de organizao poltica e suas relaes sociais. Isto se refora ao pensar que a
existncia e perenidade do Estado frequentemente o ponto de partida no
problematizado das reflexes sociais, permanecendo assim naturalizado.
Antes de prosseguir nessa proposta, cabe problematizar se esta possvel. No
se situam as teorias em mundos radicalmente distintos, inviabilizando tal dilogo? No
tratam uns dos coletivos indgenas e outros da sociedade-mundo capitalista?
Existem pontos de contatos reais? Em que se sustenta esse dilogo? Ou, ainda,
* Doutor em Sociologia (Unicamp) e professor de Relaes Internacionais da Fundao Santo Andr,Mestre em Relaes Internacionais (IRI/PUC-Rio) e Bacharel em Relaes Internaci onais (PUC-SP). Emai l:
jtible@gmai l.com.
mailto:[email protected]:[email protected]7/25/2019 TIBLE, Jean [2013]. Lutas Contra o Um.
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perguntar com Deleuze e Guattari, porque voltar aos primitivos, j que se trata de
nossa vida (1980, p. 254, traduo minha)?
Primeiro e sobretudo, intui-se um potencial terico, ilustrado pelos conceitosde recusa e abolio do Estado, para apreenso das relaes sociais contemporneas
e que encontra um desenvolvimento inicial no decorrer do texto.
Alm disso, tal dilogo concretiza-se nas prticas (e debates) de certos
movimentos polticos e sociais latino-americanos, como veremos na ltima seo
deste texto.
Ademais, sempre houve um elo ainda que pouco desenvolvido entre certos
clssicos da antropologia e Marx. Pode-se pensar tanto em Claude Lvi-Strauss e suas
origens marxistas (Lvi-Strauss; Eribon, 2005, e Pajon, 2000, 2001), quanto em Marcel
Mauss e seu Ensaio sobre o Dom, que pretendia ser uma contribuio teoria
socialista (Graeber e Lanna, 2005). Marx mostrou, igualmente, forte interesse pela
antropologia, documentado em seus cadernos etnolgicos com anotaes dos
trabalhos de quatro pesquisadores (Krader, 1974). a partir desse material (do fim da
vida de Marx) que Engels escreve sua Origem da famlia, do Estado e da propriedade
privada. Enfim, em Marx mas tambm Engels, Lnin, Rosa Luxemburgo, Benjamin e
Maritegui existe igualmente uma inspirao no indgena para pensar e buscar
concretizar a proposta comunista1.
o prprio capitalismo contemporneo que coloca tal questo em seu mpeto
de permanente expanso atingindo todas as populaes do planeta. Ningum mais
est fora e inclusive os chamados conhecimentos tradicionais alcanam hoje cotaes
considerveis nos mercados futuros do capitalismo dito cognitivo vide a
coleta/roubo de sangue dos Yanomami para pesquisa biotecnolgica. Os processos de
1Engels termina seu livro Origens da Famlia, da propriedade privada e do Estado citando Morgan, aoafirmar que a prxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experincia ,a razo e cincia. Ser uma revivescncia da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, massob uma forma superior (1974, p. 201). Enquanto Rosa Luxemburgo diz que o comunis mo primitivo e
o futuro socialista esto ligados por uma necessidade histrica (Loure iro, 2004, p. 113), Lnin colocaque impossvel passar do capitalismo ao socialismo sem um certo retorno ao democratismoprimitivo (poi s enfim, como fazer de outra forma para que as funes do Estado sejam exercidas pela
maiori a) (1972, p. 65, traduo minha). Por sua vez, Jos Carlos Maritegui (2005) busca nas tradiesindgenas caminhos para o socia li smo indo-americano e Walter Benjamin (1991) um fio comum nasresistncias de tempos distintos.
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globalizao levam as relaes sociais capitalistas a penetrar todos os espaos do
planeta e a interferir ou a poder interferir no modo de vida de todos, inclusive das
populaes mais isoladas e refratrias, como os povos indgenas (Santos, 2003, p. 10),
lembrando a ideia de um capitalismo como sistema imanente que no para de afastar
seus limites (Deleuze, 2003).
No se trata de buscar uma sntese entre as perspectivas citadas que seria
empobrecedora , mas de faz-las dialogar, em suas semelhanas e diferenas, em
suas questes abertas e mal resolvidas. Como dito por Deleuze, em outro contexto,
que em vez de permanecerem compartimentos estanques, eles no parem de se
misturar um com o outro, de interferir mutuamente, de se comunicar entre si, de se
tomar um pelo outro (Deleuze, 2004, p. 7).
Evidentemente, tal proposta passa por qualificar qual leitura de Marx
efetuada e principalmente por buscar pensar o que acontece com este pensamento ao
defrontar-se com uma antropologia contra o Estado e sua insistncia na diferena, no
devir, nas relaes e na falta de transcendentes. Pensa-se e espera-se mostr-lo ao
longo do presente texto afinidades e interessantes problemas colocados por esta
proposta de dilogo.
Cabe, assim, antes de poder adentrar no dilogo, situar qual Marx mobilizado
neste trabalho e, igualmente, em que medida este encampa o grande divisor entre
civilizados e primitivos ou, ainda, se possvel efetuar uma leitura de Marx que
permita o encontro sugerido.
Pierre Clastres formulou duras crticas a Marx e, sobretudo, a Engels e aos
chamados etnomarxistas. Tais apreciaes, longe de inviabilizarem o dilogo, ajudam a
efetuar uma leitura produtiva de Marx para alm de certas dificuldades deste depensar, analisar e afetar-se (no sentido deleuze-guattariano) pelas organizaes sociais
e polticas amerndias (e suas mediaes antropolgicas).
P. Clastres coloca que a histria dos povos que tm uma histria , diz-se, a
histria da luta de classes. A histria dos povos sem histria , dir-se- com ao menos
tanta verdade, a histria de sua luta contra o Estado (2003, p. 234). As sociedades
indgenas contra o Estado so sociedades indivisas, sem classes; no conhecem nem
exploradores nem explorados; no existe um rgo separado de poder. Desta forma,
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cabe perguntar qual seu significado, assim como se esta se situa fora da poltica e da
evoluo. A tais indagaes, segundo P. Clastres, o pensamento evolucionista
incluindo o marxismo e, notadamente, a influncia de Engels contesta afirmando queso sociedades ainda na
primeira idade de sua evoluo, e, como tais, incompletas, inacabadas (...). Odestino de toda sociedade sua diviso, o poder separado da s oc iedade, oEstado como rgo que sabe e diz o bem comum a todos, que ele seencarrega de impor (2004, p. 149).
P. Clastres coloca, ainda, que o marxismo no apenas a descrio de um
sistema social particular (o capitalismo industrial), igualmente uma teoria geral daHistria e da mudana social (Op. cit., p. 192). H uma racionalidade da Histria, que
depende em ltima instncia, das determinaes econmicas do jogo e
desenvolvimento das foras produtivas que determinam o ser da sociedade (Op. c it.,
p. 193). Neste mbito, no h nenhuma razo para que as sociedades primitivas, por
exemplo, sejam uma exceo lei geral que engloba todas as sociedades: as foras
produtivas tendem a se desenvolver (Op. cit., p. 193). No entanto, a economia no
central para as sociedades indgenas, conforme, no prefcio ao livro de Marshall
Sahlins ge de Pierre, ge dabondance, P. Clastres coloca, pois estas negam um
funcionamento autnomo da economia, j que esta inseparvel da vida social,
religiosa, ritual. Assim, a sociedade quem determina o lugar da economia e mesmo
sua vontade de subproduo, sendo mquinas antiproduo (Op. cit., p. 194).
Reforando a crtica acima de P. Clastres, pode-se levar em conta a seguinte
passagem de Origem da Famlia, do Estado e da propriedade privada. Engels afirma
que
ao chegar a certa fase de desenvolvimento econmico, que estavanecessariamente ligada diviso da s ociedade em classes , ess a diviso tornouo Estado uma neces sidade. (...) As classes vo desaparecer, e de maneira toinevitvel como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes,desaparecer inevitavelmente o Estado (1974, p. 195-6).
Como Marx apreende as sociedades primitivas? Eric Hobsbawm distingue
dois momentos nos quais Marx dedica-se s sociedades pr-capitalistas. A dcada de
1850, quando escreve as Formen (Formaes econmicas pr-capitalistas, parte dos
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Grundrisse) e a dcada de 1870, depois da publicao do volume I do CAPITAL e de
substancialmente esboados os volumes II e III, quando Marx parece ter retornado aos
estudos histricos, especialmente sobre a Europa Oriental e a sociedade primitiva
(1991, p. 29).
No primeiro perodo, Marx (1991) estuda as questes da evoluo histrica,
buscando os mecanismos das transformaes sociaisdo desenvolvimento das foras
produtivas materiais. So tratadas, assim, quatro vias alternativas de desenvolvimento
oriental, antiga, germnica e eslava. Um aspecto importante situa-se no fato de
existirem caminhos multilineares pr-capitalistas e destes desenvolvem-se a partir do
sistema comunal primitivo e sua propriedade comum da terra.
O historiador britnico coloca, neste contexto, duas limitaes nessas
apreenses das formaes pr-capitalistas por parte de Marx (e Engels). De um lado,
estas baseiam-se em estudos bem menos profundos do que a descrio e anlise do
capitalismo feitas por Marx (Hobsbawm, 1991, p. 23). De outro lado, no momento de
elaborao destes escritos, seus conhecimentos sobre a sociedade primitiva eram
apenas esquemticos. No se baseavam em qualquer investigao profunda sobre as
sociedades tribais, pois a moderna antropologia estava em sua infncia (Op. cit., p.
27-28).
Tais limites se articulam aos escritos de Marx sobre a ndia que evocam
imagens eurocntricas. Os horrores do colonialismo no so olvidados, a Inglaterra
sendo guiada pelos interesses mais abjetos e mostrando sem vu na ndia a
barbrie inerente civilizao burguesa. Tampouco deixa de estar presente o
carter, em ltima instncia, positivo da expanso capitalista, j que a Inglaterra tem
uma dupla misso a exercer na ndia: uma destrutiva, outra regeneradora. Em suaviso, uma futura revoluo redimir estes processos; ento somente o progresso
humano cessar de parecer a esse ignbil dolo pago que s queria beber o nctar no
crnio de suas vtimas (Marx, 2002, p. 81).
Pode-se afirmar que exista uma ambivalncia de Marx: por um lado, certo
eurocentrismo, por outro, respeito e inspirao nas organizaes polticas e sociais
indgenas. Apesar dos conhecidos trechos de Marx que decantam o progresso, a
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evoluo e o carter civilizatrio do capitals vezes contra os povos sem histria ,
este tambm possui outra faceta, de crtica ao progressismo linear e ingnuo da
sociedade burguesa, as contradies do progresso capitalista e mesmo enfatizandoaspectos de recuo, no ponto de vista social e humano, da organizao poltico-social
capitalista. Em Marx, encontramos tanto textos evolucionistas quanto no-
evolucionistas2. De acordo com Michael Lwy e Robert Sayre,
nem viso apologtica da civilizao burguesa, nem cega s s uas realizaes,[Marx] visava uma forma superior de organizao social que integrasse tantoos avanos tcnicos da sociedade moderna, quanto algumas das qualidadeshumanas das comunidades pr-capitalistas (1995, p. 148).
Isso nos leva, ao segundo momento dos estudos de Marx sobre as sociedades
pr-capitalistas, da dcada de 1870. Seus textos sobre a Irlanda, Rssia e China
marcam, para Jos Aric (1982), uma ruptura com sua viso eurocntrica presente em
documentos anteriores. Um exemplo disto situa-se em sua resposta a Vera Zasulich
(Shanin, 1984). Questionado sobre a possibilidade da comuna rural russa ser a base de
uma nova organizao social (isto comunista), sem passar pela etapa capitalista,
Marx aps intensificar seu estudo acerca do mundo rural russo concordou com
essa possibilidade. Reforou, ainda, que o que havia escrito nO Capital sobre a
inevitabilidade histrica s era vlido para os pases da Europa ocidental, indicando
2 Neste contexto, dois autores marxistas efetuam contribuies singulares, ao situarem-se contra a
ideologia do progresso. De acordo com Maritegui, contra o respeito supersticioso pela idia deProgresso (2005, p. 51). Benjamin prope uma nova compreenso da histria humana, cambiando a
concepo usual da histria e do tempo. Apreende, assim, a revoluo como a interrupo de umaevoluo his trica levando catstrofe, tendo um sentimento de recorrncia do desastre, um temor de
um eterno retorno das derrotas. Seu objetivo o de aprofundar e radicalizar a oposio entremarxismo e filosofias burguesas da histria (Lwy, 2001, p. 15). Na Tese II s obre o conceito de Histria,Benjamin afirma que o marxismo no tem sentido se no for herdeiro de sculos de lutas e sonhos
emanci padores. Ness e contexto, cada l uta dos opri midos questiona no somente a dominao de hoje,mas igualmente as vitrias de ontem. Bem diferente de um certo evolucionismo marxista, buscaarra ncar a tradio do conformismo (junto com Maritegui), recusando-se a se juntar ao cortejo triunfal
de acordo com a tradi o dos oprimidos. Ainda, no ope civi lizao e barbri e; ao contrri o, h uma
unidade contraditria, afinal no tem documento de cultura que no seja tambm documento debarbrie (Tese VII). A perspectiva de Benjamin permitea Michael Lwy propor uma leitura indgenade suas teses. Para Lwy, o equivalente profano desse paraso perdido do qual esse progresso nos
afasta cada vez mais, so, para Benjamin, as s ociedades s em clas ses primitivas , o que citado em seuartigo sobre Bachofen ac erca de uma sociedade comunis tademocrtica e iguali tria na alvorada dahistria (2001, p. 74).
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novos olhares e propostas para problemas postos por movimentos oriundos de outros
horizontes.
, ademais, intenso o impacto da leitura de Ancient Society de Lewis Henry
Morgan. Engels chega a dizer em carta a Karl Kaustsky, que Morgan tornou po ssvel
vermos as coisas de pontos de vista inteiramente novos (Rosemont, 1989, p. 210,
traduo minha). Pontos de vistas novos; pela primeira vez, Marx tem contato com
relatos detalhados da existncia concreta de uma sociedade livre. Marx transcreve
fartas passagens de Ancient Society (Krader, 1974), sobretudoos trechos que tratam
da organizao poltica dos iroqueses, certamente pensando nas implicaes
revolucionrias disto, em algo como as contribuies dos iroqueses para as lutas como
um todo.
Ademais, pode-se dizer que ocorre uma mudana em Marx que passa a
valorizar mais experincias e formas de resistncias, lutas-criaes, que ocorrem fora
dos pases da Europa ocidental. Segundo Franklin Rosemont, nos ltimos anos de sua
vida, e de uma forma bem mais forte que antes, ele prestou ateno nas pessoas de
cor (people of color); nos colonizados, camponeses e primitivos (1989, p. 207,
traduo minha). Marx manifesta, ainda, uma hostilidade crescente ao colonialismo e
ao capitalismo e passa a fazer uma apreciao distinta das foras potencialmente
revolucionrias desses sujeitos outros.
Dito de outro modo, alm do interesse nas lutas amerndias, existe em
Marx uma capacidade de transformar-se em contato com estas e outras lutas. Estas
confirmam a existncia de um dilogo em curso e permitem prossegui-lo e aprofund-
lo.
O Um e o contra o Um
Pierre Clastres exps um relato j clssico acerca da questo do poder poltico
nas sociedades indgenas. Suas configuraes poltico-sociais indicam prticas prprias,
autnticas. O autor empreende dura crtica s concepes etnocntricas ocidentais
acerca das sociedades indgenas e do poltico, j que existe neste contexto at mesmo
uma impossibilidade epistemolgica do poltico nestas. Deste modo, na viso da
antropologia por P. Clastres criticada, estas sociedades so apreendidas como
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sociedades sem Estado, ou seja, sem poder poltico, com ausncia da esfera poltica.
Estas, assim, encontram-se margem da histria universal, pois permanecem num
estgio inferior da evoluo e do progresso.O poltico define-se, nessa viso, pela relao comando-obedincia e encarna-
se na instituio estatal; logo, se no h Estado, tampouco existe a poltica. A evoluo
significa passar de uma sociedade sem Estado para uma com Estado, pois o que separa
civilizados e selvagens a existncia ou no deste. P. Clastres, por sua vez, prope-se a
levar a srio as sociedades indgenas, o que o leva, concomitantemente, a criticar as
concepes eurocntricas. Sua constituio poltica centra-se na recusa ativa do
Estado e no na sua suposta ausncia ou baixo nvel de desenvolvimento. No so
sociedades sem Estado, mas contrao Estado.
Em sua dmarche, P. Clastres afirma a universalidade do poltico, despindo
simultaneamente a pretensa universalidade da resposta particular ocidental. O poder
poltico analisado como universal, sendo imanente ao social e comportando dois
modelos: coercitivo e no-coercitivo. O primeiro configura-se como uma resoluo
particular, sendo a realizao concreta tal como ocorre em certas formaes polticas.
No segundo, o poder poltico encontra-se presente, ainda que no haja instituio
polticaalguma coisa existe na ausncia, diz P. Clastres (2003, p. 37).
Isto se manifesta concretamente na ausncia quase completa de autoridade do
chefe indgena. A dimenso do poder no eliminada, mas trabalhada de todo um
outro modo, j que existe um chefe, diferenciado formalmente dos demais. Logo, no
h um espao vazio a ser ocupado. Este tem o poder de falar, da oratria, mas
colocado num lugar sem comando e, ainda, serve comunidade, ao no poder recusar
pedidos desta. O chefe uma espcie de cunhado universal est sempre devendo
sociedade.
Existe, assim, de acordo com P. Clastres, uma resoluo sutil da questo
poltica, uma intuio e prticas contra a coero. Assim, como ocorre uma recusa do
excesso intil (contra a economia), h uma recusa do Estado. Recusa para impedir o
encontro de antemo fatal entre instituio da chefia e exerccio do poder (...), impedir
que a desigualdade entre os homens instale a diviso na sociedade (2003, p. 150 -1).
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Ao se colocar contra o Estado, a sociedade amerndia contrape-se violenta
subordinao das diferenas a uma unidade falsamente homognea.
As relaes sociais de parentesco, analisadas em sua vertente poltica,
constituem-se como lutas contra a forma-Estado. P. Clastres coloca, em sua etnologia
dos Guayaki (2000), que a aliana poltica entre dois coletivos rivais concretiza-se no
batizado (nomeao) de um beb por um membro do grupo adversrio, criando assim
laos de parentesco. As estratgias polticas amerndias passam, desse modo, pela
construo de relaes de parentesco.
Neste mesmo sentido argumenta Eduardo Viveiros de Castro, ao pensar as
relaes de parentesco a partir das cosmologias amaznicas. No ensaio O problema da
afinidade na Amaznia, este investiga as redes-relaes de parentesco e o
englobamento dessa dimenso por outros circuitos de troca simblica (2002, p. 107).
Um ponto importante nesta discusso situa-se na importncia atribuda
diferena em detrimento da identidade. Isto nos coloca a articulao entre redes
regionais de comrcio e casamento, entre a dimenso do parentesco e a esfera
poltico-ritual (Op. cit., p. 104). Segundo Vivei ros de Castro, para os amaznicos,
a diferena, cujo esquema sociolgico bsico a afinidade, aparece aomesmo tempo como necessria e perigosa, como condio e limite do socius,e portanto como aquilo que preciso tanto instaurar quanto conjurar. Aafinidade revela-se, com isso, o elemento por excelncia do poltico, e ohorizonte negativo de utopias ideolgicas e es catolgicas (Op. cit., p. 103).
Tal organizao social funciona na forma de o que une justamente o que
distingue. Em contraposio ao Outro ocidental considerado como irmo o que
supe uma transcendncia dos dois elementos conectados pelo parentesco (uma
nao, um Estado, uma instituio) , o Outro amaznico define-se como cunhado,
criando uma alteridade horizontal e imanente. Nos mitos amaznicos, a referncia dos
protagonistas no se situa numa figura paterna caso das mitologias do chamado
Velho Mundo , mas s im nos sogros ou cunhados.
Tanto as relaes de parentesco quanto as polticas so trabalhadas a partir
dessa economia simblica amaznica. Neste contexto, a afinidade potencial exerce
importante funo, pois a
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necessidade da afinidade a necess idade do canibalismo. (...) Do parentesco,via afinidade potencial, pela inimizade; da ordem local do casamento pelaordem global das trocas simblicas, onde circulam partes de corpos e
propriedades metafsicas; da sociologia em sentido estrito pela cosmologia
em sentido lato em geral, e em suma, da semelhana pela diferena. (...)Afinidade e canibalismo so os dois esquematismos sensveis da predaogeneralizada, que modalidade prototpica da Relao nas cosmologiasamerndias (Op. cit., p. 164).
A predao canibal indica a forma generalizada das redes-relaes sociais
amaznicas e, como parte dessas, uma teoria do parentesco como diferena e
multiplicidade. Tais afinidades e alianas colocam-se
contra a filiao: no no sentido de ser a representao recalcante de umafiliao intensiva primordial, mas porque impede a filiao de funcionarcomo germe de uma transcendncia (a origem mtica, o ancestral fundador, ogrupo de filiao identitrio. Toda filiao imaginria, dizem os autores doMil plats. Eu acrescentaria: e toda filiao projeta um Estado, filiao deEstado. A aliana intensiva amaznica uma aliana contra o Estado(Viveiros de Castro, 2007, p. 122-23).
O parentesco e as relaes sociais amaznicas colocam-se, assim, contra a
forma-Estado. No sentido clastreano das sociedades-para-a-guerra e contra o Estado,
possuindo na vingana a motivao da antropofagia (Carneiro da Cunha; Viveiros deCastro, 1985).
Ademais, de acordo com Viveiros de Castro, todo Estado aspira a ser universal e
busca encarnar o absoluto este o ponto de vista e nunca um ponto de vista, tendo
em vista sua pretenso de absoluto. Assim, os cidados podem ter pontos de vista,
mas eles no podem ter um ponto de vista sobre o ponto de vista. Eles podem ter
ponto de vista a partir do Estado, mas no podem ter ponto de vista sobre esse ponto
de vista, o Estado (Viveiros de Castro, 2008, p.229).
Isto se liga, igualmente, ao perspectivismo e sua afirmao da multiplicidade
radical do mundo, sua insubmisso a qualquer forma de monarquia ontolgica, que
isso que o Estado . Assim, o mundo indgena um mundo ao mesmo tempo
politesta, perspectivista e contra o Estado (Op. cit., p. 231).
Aps esta breve exposio de uma recusa amerndia do Estado, cabe fazer o
mesmo no que toca apreenso marxiana do estatal e sua extino. Em Crtica da
filosofia do direito de Hegel, Marx efetua uma crtica teoria hegeliana do Estado e
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tambm a seus fundamentos filosficos. Para Hegel, a liberdade concreta manifesta-se
na identificao dos interesses particulares (famlia, sociedade civil) com o sistema de
interesse geral (o Estado). Desta forma, este pensa o Estado como realizao da
vontade livre e racional, representando a resoluo da relao do particular com o
universal. O soberano , por sua vez, a encarnao em abstrao dos muitos unos, da
diferena. A universalidade da constituio e das leis encontra-se no poder soberano.
Em sua perspectiva, o Estado como soberano deve ser Uno, Um Indivduo, deve
possuir individualidade (2005, p. 45), ilustrando a famosa frase atribuda a Lus XIV,
lEtat, cest moi.
Ao criticar a perspectiva hegeliana, Marx contrape sua apreenso distinta da
questo estatal. Trata-se, igualmente, de uma crtica ao idealismo, j que ele procura
investigar as condies materiais que sustentam as formas de Estado e suas
relaes. Enquanto Hegel parte da Ideia, do conceito, Marx intenta faz-lo a partir dos
sujeitos sociais. Do seu ponto de vista, Hegel busca conciliar os extremos que so o
Estado e a sociedade civil no mbito do primeiro, de acordo com as caractersticas da
monarquia constitucional prussiana.
Marx, assim, questiona os pressupostos ontolgicos que privilegiam o Estado
em detrimento da sociedade civil. Ocorre, tambm, na esfera do Estado poltico e sua
constituio uma separao do povo em relao sua criao. Ou seja, no a
constituio que cria o povo, mas o povo a constituio (Op. cit., p. 50). O povo o
todo, o poder constituinte; a constituio, parte, poder constitudo. O poder soberano
e o executivo no so submetidos vontade geral, pois se trata de um poder
independente. O fundamento do Estado, de acordo com Marx, a pessoa abstrata,
privada, pois o prncipe a nica pessoa privada na qual se realiza a relao da pessoaprivada em geral com o Estado (Op. cit., p.60).
Frente a isso, Marx questiona-se por que a universalidade alienada no
Estado abstrato e como superar e suprimir essa alienao? (Lwy, 2002, p. 80),
encontrando a resposta na essncia privada da sociedade civil, tendo o universal
exteriorizado no cu poltico enquanto a constituio poltica liga-se terrena
liberdade do comrcio e da propriedade. Dito de outro modo, a constituio poltica
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em seu ponto culminante , portanto, a constituio da propriedade privada (Marx,
2005, p. 144).
Segundo a perspectiva marxiana, na democracia a vontade geral no aliena seupoder no Estado poltico. Sua realizao como universal concreto implica a superao
da diviso entre Estado poltico e sociedade civil, selando a unidade do universal e do
particular. Em suma, na verdadeira democracia, o Estado poltico desaparece (Op.
cit., p. 51), assim como o que se entende por sociedade civil.
Marx define o poder constituinte como os trabalhadores, criadores de riqueza
apesar de sempre se recusar a hastear uma bandeira dogmtica e criticar
duramente os pensadores que propunham sistemas acabados. Ao considerar como
tarefa principal a explicao dos mecanismos e sem separar ser e dever-ser, Marx
busca o sentido imanente do movimento histrico (Lwy, 2002, p. 91), no tendo
utopias prontas para introduzir por decreto (Marx, 2008, p. 161, traduo minha).
A forma da abolio deveria, assim, encontrar-se na prpria prtica criativa do
proletariado, dando sentido prtico s concepes de quebra do aparelho de Estado,
ausncia de autoridade suprema e autogoverno. Nesse sentido, Marx coloca (1997,
2008) que as revolues anteriores s aperfeioaram a mquina estatal, sendo a
Comuna de Paris, a primeira manifestao histrica e concreta dessa potencial
revoluo comunista.
Marx caracteriza a Comuna como o governo da classe operria (...), a forma
poltica enfim encontrada que permite realizar a emancipao econmica do trabalho
(2008, p. 160, traduo minha), sendo a anttese da monarquia. Frente opresso de
classe e a uma ordem poltica situada acima da sociedade, a Comuna toma uma srie
de medidas concretas visando a extinguir o Estado, trocando-o pela autogesto.
Suprime o exrcito permanente em seu primeiro decreto, substituindo-o pelo povo em
armas. Organiza-se em conselhos municipais eleitos pelo sufrgio universal. Enfim,
concretiza a eletividade e revogabilidade de todos os funcionrios, sem exceo,
ademais de todos passarem a receber salrios de operrios. Ou seja, ocorre uma
substituio das instituies, antes situadas acima da sociedade, por outras,
radicalmente distintas.
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Este constitui o exemplo clssico dos conselhos, inaugural no seio do
pensamento marxiano. Tal forma de auto-organizao rompe os limites entre o
poltico, cultural, social e econmico a Comuna de Paris como uma proposta geral, de
vida. Uma bela antologia de Ernest Mandel (1977) indica sua presena em todos os
cantos do mundo, sua universalidade. A forma-conselho trabalhada por Marx
apreendida como uma tendncia dos trabalhadores de construrem formas de
autodeterminao nas empresas e fbricas, lutas tambm contra o Estado. Pode-se
encontrar, assim, um fio ininterrupto nos tericos marxistas (alm de Marx, Gramsci,
Lnin, Rosa Luxemburgo dentre outros) e, sobretudo, nas atividades dos trabalhadores
por todas as partesRssia, Frana, Indonsia, Arglia, Estados Unidos, Bolvia... (Op.
cit.).
Uma limitao, no entanto, chama a ateno nesta seleo de Mandel e em sua
introduo a esta; no so consideradas as formas de organizao comunais
camponesas e pr-capitalistas. Ponto que Marx analisou, como vimos acima. Formas
democrticas de organizao como, por exemplo, na Rssia antiga, onde havia, de um
lado, a assembleia do vilarejo (vtch), e, de outro lado, a comuna rural (mir) (Skirda,
2000). Formas comuns articuladas. Nesses contextos, a criao do comum une (mesmo
com as diferenas existentes) as lutas pr-capitalistas e as que ocorrem nos marcos
desse modo de produo, o que ser mais desenvolvido abaixo.
Mandel toca, ademais, nas possibilidades de ampliao das formas
estritamente operrias dos conselhos, com o exemplo de maio de 1968 e devido s
mutaes no mundo do trabalho. Isso se materializa contemporaneamente nas
mobilizaes e produes que retomam e transformam a forma-conselho como, por
exemplo, na cidade de El Alto, Bolvia, onde ndios urbanos (migrantes de origem rural)reinventam modos de democracia comunal e mobilizaes sociais ligadas s
necessidades vitais gua, distribuio das rendas advindos dos hidrocarbonetos,
universidades (Zibechi, 2006).
O encontro entre as perspectivas crticas selecionadas (Marx e certa
antropologia) permite, dessa forma, analisar o conceito de Estado como o privilegio do
Um em detrimento da multiplicidade. Desta forma, o centro da caracterizao do
Estado passa a ser a violncia do Um em detrimento da diferena, seja do ponto de
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vista de classe, seja da recusa da relao comando-obedincia, como desenvolvido
parcialmente e de modo separado acima. O dilogo leva a entender os conceitos de
sua recusa e extino como uma luta contra o Um (Abensour, 2004).Neste contexto, destaca-se a ideia de que em nossas habituais representaes
polticas, no h lugar para o diferente (Novaes, 1999). E justamente essa talvez a
maior contribuio das sociedades amerndias para a reflexo proposta. Pensando, de
acordo com Lvi-Strauss (1964-1971), numa unidade histrico-cultural da Amrica
Indgena, esta tem em seu cerne a perspectiva da alteridade, sendo a existncia do
outro no somente necessria, mas indispensvel.
Se a relao, na tica ocidental, tem por objetivo de compartilhar a semelhana
presentes no conceito de fraternidade , no mundo indgena, a relao se d por
causa das diferenas:
necessrio parir um edifcio conceitual gigantesco para justificar o coletivo.Afinal desde Descartes (...) a nica coisa de cuja existncia se pode tercerteza o Eu. No que diz respeito existncia dos outros, umademonstrao requerida (Viveiros de Castro, 2006).
Isto abre campo a uma multiplicidade de sujeitos, invertendo o polo
um/muitos: de uma realidade, vrios pontos de vista para vrias realidades, um ponto
de vista. Em detrimento do penso, logo existo, afirma-se o existo, logo penso. Em vez
de ontologia fixa e epistemologia varivel, ontologia varivel e epistemologia fixa.
Ainda, em oposio objetificao positivista em que a forma do Outro a
coisa e antes de ser apreendido abstrato e irreal, no perspectivismo amerndio
conhecer personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido, (...) a
forma do Outro a pessoa (Viveiros de Castro, 2002 , p. 358). A perspectiva, assim,
implica a alteridade. Dialogar com o Outro significa assumir sua alteridade. Em suma,
tal viso assume uma incompletude ontolgica essencial: incompletude de
socialidade e, em geral, de humanidade (Op. cit., p. 220). Desta forma, diferena e
exterior primam em detrimento da identidade e do interior, os outros sendo antes a
soluo que o problema, reforando a ideia de encontro e dilogo contra o Um3.
3Estuda-se mais abaixo como tais vi ses da diferena podem conjugar-se com uma leitura das lutas apartir de Marx.
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Deleuze e Guattari trabalham o dilogo proposto
Argumenta-se aqui que Deleuze e Guattari (1980) trabalham o dilogo
proposto nos Mil Plats. Se P. Clastres coloca importantes e perspicazes crticas a Marx
(o que, vimos, ajuda a produzir o encontro), Deleuze e Guattari nos levam a
aprofundar as questes levantadas anteriormente e para isso tanto homenageiam P.
Clastres quanto o criticam em certos pontos, alm de mobilizarem Marx e,
posteriormente, influenciarem Viveiros de Castrooutro autor-chave nesse texto.
Os Mil Plats nos interpelam a partir de um ponto decisivo: sempre houve
Estado. A partir dessa descoberta, os autores transformam uma srie de elementos do
encontro proposto.
De acordo com os autores, sempre houve Estado, j formado e perfeito, sendo
inclusive atestado pelos arquelogos. Ou seja, confirmam a hiptese do Urstaat: sua
existncia desde tempos muito remotos. Pode-se dizer que as sociedades primitivas
tinham sempre algum contato com imprios, no entanto insistem os autores a
hiptese mais fecunda seria que
o Estado mesmo es teve s empre em relao com um fora e no pens vel demodo independente dessa relao. A lei do Estado no a do Tudo ou Nada(sociedade de Estado ou sociedades contra o Estado), mas a do interior e doexterior (1980, pp. 444-45, traduo minha).
Interaes entre interior e exterior, mquinas de guerra e aparelhos de Estado,
metamorfoses e identidades. Tanto os Estados quanto as mquinas de guerra
encontram-se em toda parte.
Ademais, se, para os autores, P. Clastres desenvolve importantes questesacerca do Estado, estes o criticam por pensar as sociedades primitivas como uma
entidade autossuficiente4. P. Clastres, paradoxalmente, queda evolucionista e deixa os
primitivos numa espcie de estado de natureza. Entretanto, os trs convergem num
ponto importante: o surgimento do Estado d-se de uma vez, de um s golpe. A
concordncia segue no que toca aos mecanismos primitivos que conjuram o Estado.
4Crticas compartilhadas posteriormente por diversos autores, como Viveiros de Castro.
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O futuro projeto de pesquisa de P. Clastres sobre a origem do Estado que no
se concretizou no parecia muito promissor para Deleuze e Guattari. Para estes, a
guerra s produz Estado se uma das partes pelo menos j um Estado. (...) Estamossempre remetidos a um Estado que nasce adulto e que surge de uma vez, Urstaat
incondicionado (Op. cit., p. 532).
Deste modo, as mquinas de guerra primitivas operam mecanismos de
conjurao-antecipao, pois
as sociedades primitivas no conjuram a formao de imprio ou Estado semantecip-lo, e no o antecipam sem que j esteja l, fazendo parte de seuhorizonte. Os Estados no operam uma captura sem que o capturado coexista,resista nas sociedades primitivas, ou fuja sob novas formas, cidades,mquinas de guerra... (...) O problema da difuso, do difusionismo, malcolocado, pois pressupe um centro a partir do qual a difuso parte (Op. cit.,
p. 542).
Dito de outro modo, se todas as sociedades podem virar Estado e nem todas se
tornam, existem mecanismos que permitem conjur-lo: as sociedades-mquinas de
guerra. Isto leva a um paradoxo, pois a guerra conjura o Estado, mas nessa se refora o
perigo de seu surgimento. De origem nmade, a mquina de guerra constitui um
agenciamento contra o Estado. Neste contexto, ser um dos problemas fundamentais
do Estado se apropriar dessa mquina de guerra que lhe estrangeira, de fazer uma
pea de seu aparelho, sob uma forma de instituio militar fixa (Op. cit., p. 280).
Os autores insistem, igualmente, no fato da mquina de guerra ser tambm um
modo de pensar assim como existe uma forma-Estado de pensar. De acordo com
Deleuze e Guattari,
nunca a histria compreendeu o nomadismo, nunca o livro compreendeu ofora. No curso de uma longa histria, o Estado foi o modelo do livro e do
pensamento: o logos , o filsofo-rei, a trans cendncia da Idia, a interioridadedo conceito, a repblica dos espritos, o tribunal da razo, os funcionrios do
pensamento, o homem legislador e sujeito (Op. cit., p. 36).
Existem, logo, cincia-Estado e cincia-nmade, sendo a primeira a realizao
da Razolembrando a violncia indissocivel e constitutiva da prpria Razo (Lima;
Goldman, 2003, p. 19).
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Deleuze e Guattari aprofundam, ainda, um elemento importante do dilogo, a
saber, as mltiplas conexes entre Estado e capitalismo. Dessa forma, importa
perceber as relaes entre este princpio do Um na forma estatal e buscar conjug-lo
com uma questo fundamental para Marx, a saber as relaes sociais capitalistas.
Para os autores, pela forma-Estado (...) que o capitalismo triunfar. (1980,
p. 541). Neste mbito, com o capitalismo, os Estados ento no se anulam, mas
mudam de forma e tomam um novo sentido: modelos de realizao de uma
axiomtica mundial que os ultrapassa (Op. cit., p. 568).
A peculiaridade das relaes sociais capitalistas em relao a outras
configuraes de Estados e de classes situa-se, para Marx, na separao entre o
processo imediato de explorao e a manuteno da ordem pela coero e pelo
consensoe na explorao no-aberta, tendo em vista a livre venda e compra da fora
de trabalho, como uma mercadoria. A transio do feudalismo ao capitalismo
configurou-se na liberao da dominao das amarras estatais, tendo em vista que sua
constituio primordialmente mundial.
Por sua vez, P. Clastres coloca o mpeto de dominao do outro existente em
qualquer tipo de Estado, mas somente com o capitalismo que este mpeto se junta a
outro: o da expanso planetria. Assim,
o que a civilizao ocidental contm que a torna infinitamente mais etnocidaque qualquer outra (...), o que diferencia o Ocidente o capitalismo, enquantoimpossibilidade de permanecer no aqum de uma fronteira, enquanto
pas sagem para alm de toda a fronteira (2004, p. 91).
Deste modo, pode-se articular a compreenso das duas formas de
transcendncia, do Estado (diviso entre representante e representado) e do capital
(diviso entre o produtor e o produto). Trata-se de um desafio idia de
representao, pois os
ndios so aqueles que representam a si mesmos, no sentido que Roy
Wagner d a esta expresso, sentido que no tem nada a ver com identidade;e nada a ver, tampouco, com representao como es t indicado na formulaodeliberadamente paradoxal da expresso. Representar a si mesmo aquilo
que faz uma singularidade, e o que uma Singularidade faz (Viveiros deCastro, 2008, p. 153).
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A prpria ideia de perspectiva incompatvel com a de representao, j que o
ponto de vista est no corpo de cada um. Neste contexto, a existncia de certas
socialidades 5 indgenas e as experincias dos conselhos modelo de organizaopoltica para Marx (Tragtenberg, 2008) indicam a luta contra transcendentes e busca
da alteridade, uma forma-conselho como tentativa de constituio de uma
comunidade dos todos uns (...) contra o todos Um (Abensour, 2004, p. 12), indo
contra a unio de todos os corpos num s. Dito de outro modo, h interessantes
convergnciastanto nas lutas conceituais quanto concretas nos desafios ao Um
transcendente.
Eduardo Viveiros de Castro, ao abordar o encontro dos jesutas com os tupis,
coloca que os europeus logo perceberam que o problema epistmico (a no-crena em
Deus) era verdadeiramente poltico, possuindo como principal causa o fato de eles no
terem rei. Dito de outro modo,
os selvagens no creem em nada porque no adoram nada. E no adoramnada, no fim das contas, porque obedecem a ningum. A ausncia de podercentralizado no dificultava apenas logisticamente a converso (...); ela adificultava, acima de tudo, logicamente. Os brasis no podiam adorar e servir
a um Deus soberano porque no tinham soberanos nem serviam a algum(2002, p. 216-7)6.
Entretanto, o antagonismo Um/contra o Um est sempre presente. Deleuze e
Guattari trabalham a ideia de que os grandes imprios do Oriente, da frica e da
Amrica sempre estavam em contato e em confronto com mquinas de guerra
nmades. Isso nos introduz o que ser tratado na prxima parte, ou seja, as lutas
contra a forma-Estado.
5Apesar de um ponto i mportante do dil ogo proposto situar -se nos debates acerca da soci alidade e seuelo com a crtica de Marx ao conceito de sociedade civil e sua insistncia nas relaes, dinmicas eprocessos s ociai s, este no ser aqui desenvolvido.6No havia, ento, um sol o ins titucional para o evangelho. Logo, para converter torna -se imperativo
primeiro civil izar; para inculcar a f, era preciso dar ao gentio lei e rei (Viveiros de Cas tro, 2002, p.190). pertinente notar que a mesma fixao etnocntrica pelo divi sor entre civil izao e barbrie e seuelo com a existncia ou no de um Estado aparecem no somente em relao s lutas indgenas. Marx
(2008, p. 179) o identifica no epis di o da Comuna de Paris. Seu esmagamento, um massacre e vinganasangrentos contra a popula o parisi ense, que une os antigos adversrios, a saber os governos deVersal hes e da Prssi aocorre em nome da civi li zao e do progresso (nas pal avras mesmo de Thiers).
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Tal dilogo enriquece-se ao trabalhar as lutas, antigas e em curso, amerndias e
proletrias. Deleuze e Guattari colocam que no basta dizer Viva o mltiplo, ainda
que esse grito seja difcil a soltar. (...) O mltiplo, tem que faz-lo (1980, p. 13).
justamente isso que esta seo intenta fazer: estudar a multiplicidade em
funcionamento, com suas tenses.
Primeiro, pode-se afirmar que no incio eram as lutas. Para ambas as
perspectivas estudadas aqui, a riqueza provm das lutas, das criaes que alimentam a
reflexo terica. Marx possui, como vimos acima, a capacidade de afetar-se com as
lutas. A experincia da Comuna marca Marx a ponto de ele se autocorrigir em prefcio
de 1872 ao Manifesto Comunista, afirmando que esta demonstrou que a classe
operria no pode se contentar em tomar a mquina de Estado e faz-la funcionar por
sua conta (Lnin, 1972, p. 55). Alm disso, Marx levado a pensar novas questes a
partir dos contatos com Iroqueses (via etnologia de Morgan) e dos debates com os
revolucionrios russos. Mais ainda, sua apreenso terica pode ser definida como o
aprender das lutas. Deve-se, assim, estudar as prticas concretas dos que resistem a
esse mundo (formas-Estado e capital) e criam ao lutar outros. Esta constitui uma
compreenso, um significado de luta.
Certa antropologia contempornea intenta partir justamente das criaes
nativas, pensando o mundo possvel que seus conceitos projetam (Viveiros de
Castro, 2002, p.123). Esta busca trabalhar a partir das perspectivas amerndias. Neste
contexto, Lvi-Strauss efetua, em Mitolgicas, a primeira tentativa de apreender as
sociedades do continente em seus prprios termos em suas prprias relaes
(Viveiros de Castro, 1999, p. 147). Seu propsito o de saber como os outros
representam os seus outros (Op. cit., p. 155). Ou seja, uma antropologia que
reconhea que suas teorias sempre exprimiram um compromisso, em contnua
renegociao histrica, entre os mundos do observado e do observador, e que toda
antropologia bem feita ser sempre uma antropologia simtrica em busca de um
mundo comum (Op. cit., 1999, p. 156). Isso se refora com a ideia de uma teoria
etnogrfica, fruto de um dilogo com as filosofias nativas (Goldman, 2006b).
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Em suma, ambos pensam a partir de uma questo-chave, ou seja, que em um
sentido propriamente micropoltico e molecular a resistncia sempre primeira em
relao captura, j que esta s pode incidir sobre formas de vida e foras vitais quelutam para preservar em seu ser (Goldman, 2006a, p. 268). Dito de outro modo, o que
ocorre primeiro so as linhas de fuga. De um lado, as fugas amerndias, de outro, as
fugas proletrias e suas conexes. Isto se manifesta concretamente em movimentos,
fugas contra o Um.
Hlne Clastres, em Terra sem Mal, estuda uma religio contra o Estado, contra
a transcendncia e a representao, na forma de deslocamentos em busca da Terra
sem Mal. Fuga de um poder poltico separando-se da sociedade. O profeta , assim,
contra a chefia e quando essas funes se encontram na mesma pessoa ocorre o
colapso do mundo guarani. De modo talvez semelhante a Deleuze e Guattari, H.
Clastres percebe movimentos contra e pelo Estado, pois
a contradio que representa em si o profeta-chefe poderia ser o sinal e, tudojunto, a soluo de uma contradio mais profunda da sociedade guarani,entre o poltico e o religioso. Sabemos que existiam certamente no plano
poltico fortes tendncias centrpetas nas sociedades Tupi-guaranis: estas so
atestadas notadamente pelo aparecimento de grandes chefes cuja autoridadeera reconhecida nas provncias (...) e pelas tentativas (...) de confederao.Ao contrrio, a religio expressa sobretudo foras centrfugas, negadoras dosocial (...): pois assim interpretada, no plano sociolgico, o significado daTerra sem Mal (H. Clastres, 1975, p. 55, traduo minha).
Por outro lado, no mbito do capitalismo, ocorre uma permanente fuga dos
trabalhadores. Um episdio clssico narrado por Marx em O Capital ilustra estes
processos:
o senhor Peel (...) levou consigo da Inglaterra ao rio Swan, na AustrliaOcidental, meios de subsistncia e de produo no valor de 50.000 libras. Osenhor Peel era to previdente que levou cons igo 3 mil pessoa s pertencentes classe operria: homens, mulheres e crianas. Assim que chegaram aodestino, no entanto , o senhor Peel ficou sem um servial que lhe arrumasse
a cama ou que lhe trouxesse gua do rio. Pobre senhor Peel, que havia
previsto tudo, menos a exportao das relaes de produo inglesas para orio Swan! (Marx, 2006, p. 859).
A fuga dos trabalhadores e dos ndios constitui, assim, o caminho de sua
liberdade. Tais exemplos indicam, assim, fugas, desejos e processos constituintes.Levar a srio tais criaes polticas e positivar sua ao, nos remete com ajuda de
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exemplos concretos s tenses discutidas por Deleuze e Guattari, do transversal
entre a verticalidade e horizontalidade, entre interior e exterior, entre grupo-sujeito e
grupo-sujeitado7.
Pode-se situar nesse campo o mpeto da ao poltica amerndia contra a
unificao, em seus diversos exemplos que mostram mecanismos que impedem o
predomnio do uniforme.
A Confederao Iroquesa constitui uma criao poltica contra o Estado, com
seu conselho onde todos tinham voz, homens e mulheres. um exemplo da ao
poltica amerndia contra o Um e seus mecanismos. A confederao ,
concomitantemente, centralizada e descentralizada, centrfuga e centrpeta; de um
lado o conselho dos sachem, de outro, a preservao das autonomias nacionais via
conselho dos ancios (Morgan, 1964).
Lendo Clastres via conceito de mquina de guerra, Renato Sztutman (2009)
situa a poltica amerndia entre aes de desterritorializao e reterritorializao,
invertendo a habitual tica de pensar em termos de falta para apreend-la em sua
capacidade de criatividade e ao polticas.
Isso tambm se manifesta em certas lutas contemporneas e na proposta que
fizeram os yanomami, no mbito do I Congresso extraordinrio da Organizao
Regional dos Povos Indgenas do Amazonas (ORPIA), no momento que ocorria um
processo de municipalizao na Venezuela. Estes tinham o desafio de apresentar uma
proposta global dos yanomami como um todo. De acordo com esta, cada setor,
comunidade ou grupo de vizinhana elegeria seus prprios delegados. Todos os
delegados se reuniriam num Conselho, com representao proporcional. Tal Conselho
no teria um prefeito, nem coordenador permanente, mas sim coordenadores
7 importante analisar a potncia de tais lutas sem cair, entretanto, em interpretaes ingnuas ouvoluntaris tas. Lembrando Deleuze e Guattari, os grupos e indivduos contm microfasc is mos que s
pedem para cristalizar-se. (...) O bom e o ruim s podem ser produto de uma seleo ativa etemporria (1980, p. 16) e as organizaes de esquerda no so as ltimas a secretar osmicrofascismos. muito fcil ser antifascista em nvel molar, sem ver o fascista que somos ns mesmo,que mantemos e al imentamos, que cuidamos ns mesmo com molculas , pessoais e coletivas (Op. cit.,
p. 262). Tambm segundo Marcio Goldman, no obstante, preciso (...) reconhecer o bvio: que emuma s ociedade dotada de Estado, o funcionamento dos mecanismos contra -Estado pode, muitas vezes,contrariar s ua prpria orientao. Ass im, no confronto entre lgicas sociais distintas, marcadas pelas
assi metrias de poder ac ima evocadas , a resul tante do choque entre concepes da pol tica moral mentenegativas e moralmente positivas tende a se infletir na direo das s egundas, ou seja, a favor do Estado(2006a, p. 296).
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rotativos. Tampouco haveria uma capital administrativa permanente, sendo esta
itinerante (Als, 2007), exemplificando a tese clastreana da precariedade do poder do
chefe, pois o lder no constitui um chefe poderoso no sentido de que ele disporia deuma fora coercitiva, (...) trata-se mais de uma questo de autoridade social e poltica
ligada ao interesse comum (Als, 2006, p. 167, traduo minha).
Tais tenses entre centralizao e descentralizao, convergncias e
unificaoesto presentes, tambm em certas bolivianas.
A Bolvia de hoje com seus ndios (e no-ndios), camponeses e urbanos, em
movimento e em lutas, vive uma subverso dos paradigmas tradicionais da poltica e
da esquerda. Ao conquistarem a presidncia nacional em 2006, tais movimentos
polticos e sociais intentam pr em prtica um governo dos movimentos sociais e um
projeto de descolonizao da Bolvia. O Governo Evo Morales expresso de um
processo crescente de fortalecimento de diversas organizaes sociais, que surgem
aps o enfraquecimento do movimento operrio (principalmente mineiro). Estas
organizaes reconstroem o tecido social e sua autonomia frente ao Estado,
redefinindo sentidos para a ao poltica e democracia. As reivindicaes tambm se
transformam do salrio (movimento operrio) para uma poltica de necessidades
vitais (gua, territrio, servios pblicos, hidrocarbonetos, educao).
Se inicialmente as mobilizaes possuem um carter fragmentar e local, so,
em seguida, criados modos de articulao. Tendem a convergir no mbito do MAS-IPSP
(Movimento ao Socialismo Instrumento Poltico para a Soberania dos Povos), que
mais uma coordenao dos movimentos que um partido poltico no sentido clssico.
Com a eleio de Evo Morales, experincias de autogoverno rumam para um
autointitulado co-governo.
Ao mesmo tempo estes legitimam o Estado, por inserir um segmento que
estava fora da poltica dita oficial, e o transformam ao colocarem questes, memrias
e prticas indgenas e proletrias que vo alm do poltico no sentido ocidental por
exemplo, em termos de democracia, justia e propriedade comunitrias. Tais
organizaes polticas e sociais vivem tenses entre o governar e suas reivindicaes e
mpetos de autonomias. No entanto, se so percebidas nesses processos certas
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caractersticas da transversalidade8. como assimetria sem hierarquia, oposio ao
horizontal e vertical v-se tambm tenses e capturas estatais. Entre perigos de
capturas e interessantes construes, a Bolvia atual vive, assim, tenses entre
unificaes empobrecedoras e vitrias das multiplicidades.
Tais exemplos mostram, em diversos contextos e pocas, o mpeto dos
movimentos contra o Um. O ltimo exemplo, em particular, nos permite trabalhar a
articulao aqui proposta. As lutas bolivianas nos levam a apreender o dilogo como
criao, composio do comum. Mas, para isso, foi necessria uma ruptura.
No por acaso, lvaro Garca Linera, vice-presidente da Bolvia e um dos
idelogos do governo Evo Morales, diz que um dos debates polticos e tericos mais
duros que estes tiveram que enfrentar foi contra os marxistas ortodoxos, j que esta
narrativa modernista e teleolgica da histria, no geral adaptada dos manuais de
economia e filosofia, criar um bloqueio cognitivo e uma impossibilidade
epistemolgica sobre duas realidades os ndios e os camponeses. Assim, para esse
marxismo no havia nem ndio nem comunidade, com o que umas das mais ricas vias
do pensamento marxista clssico foi rechaada como ferramenta interpretativa da
realidade boliviana. Tais posies rechaavam e negavam a temtica comunitria
agrria e tnica nacional como foras produtivas polticas capazes de servir de poderes
regenerativos da estrutura social (Garca Linera, 2007, traduo minha).
Voltando brevemente ao debate tratado acima sobre Marx e as formaes pr-
capitalistas, os marxistas ortodoxos bolivianos tendiam a caracterizar como feudal a
estrutura econmica de seu pas, no percebendo as formas transformadas
comunitrias, inclusive em meio s relaes capitalistas o que os levou sempre a
desconhecer o papel e as tendncias revolucionrias das massas comunais quesomente eram vistas como resduos feudais que deviam ceder espao ao pujante
capitalismo (Garca Linera, 2008, p. 37, traduo minha). Garca Linera defende,
nesse contexto, que
longe de encaixar como o fazem os pseudo-marxistas locais a realidadeem esquemas pr-estabelecidos , o que [Marx] faz pensar essa realidade, seu
8Segundo Guattari, trata-se de uma dimenso que pretende superar os dois impasses, o de uma puraverticalidade e o de uma simples horizontalidade; ela tende a se realizar quando uma comunicaomxima se efetua entre os diferentes nveis e, sobretudo, nos di ferentes sentidos (1981, p. 96).
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conhecimento e caracterizao. E dessa riqueza que Marx apreende amultilinearidade e diversidade dos desenvolvimentos histricos diferentes daEuropa, Amrica, sia e frica, e encontra neles as tendncias comunistasdessas sociedades ant igas (Op. cit, p. 29).
O dilogo possui um potencial de desenvolvimento na direo de um
encontro entre lutas.
Comum: criatividades polticas e mundos em dilogo
Esboaram-se, aqui, alguns elementos de um encontro entre um Marx e uma
imaginao conceitual etnolgica amaznica. Como j colocado, as lutas concretas
mostram o dilogo em curso e permitem aprofund-lo. As lutas mobilizadas acima nos
levam a trocas de perspectivas acerca de criaes do comum contra o Um.
Marx (2007) em seu considerado primeiro texto a respeito de uma questo
material ajuda-nos a apreender este ponto. So os artigos de 1842-1843 sobre o roubo
de lenha. Estes constituem um ponto de partida para uma crtica radical da
propriedade privada, opondo a esta os direitos de costume.
Tais artigos so, tambm, uma reflexo inicial sobre o Estado, cujos
desenvolvimentos posteriores foram estudados acima. O legislativo renano discutia,
assim, acerca do roubo de lenha, anteriormente visto como prtica habitual dos
pobres na regio. Abre-se, ento, o debate: a lenha como bem natural ou propriedade
privada, o cerne da disputa situando-se numa nova definio de propriedade, numa
redefinio de suas relaes (Bensad, 2007).
De fato, tratava-se da legalizao da apropriao das terras comunais que j
ocorrera. Frente ao Estado que se coloca no lugar dos grandes proprietrios rurais,
Marx reivindica o direito de costume em favor dos pobres. Percebendo seu sentido
instintivo de direito como prtica positiva uma resistncia apropriao privada, o
alimento do capitalismo.
Posteriormente, Marx trabalha em O Capital a chamada acumulao originria
como processo-chave para um sistema em que expropriao colonial mundo afora e as
cercas (enclosures) e sua apropriao das terras comunais (commons) na Inglaterra a
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Neste contexto, a teoria liga-se s incertezas, pois as configuraes sociais tidas
como dadas so, de fato, palco de lutas entre redes de multiplicidades e sociedades
do Um. Ainda, de acordo com Viveiros de Castro, a tarefa do c onhecimento deixa deser a de unificar o diverso sob a representao, passando a ser a de multiplicar o
nmero de agncias que povoam o mundo (Op. cit., p. 96).
Em vez de submisso das singularidades individualidade, libertao da
multiplicidade, das singularidades do poder constituinte, da democracia contra o
Estado, do contra o Um. Assim como em Fernando Pessoa e seus heternimos, o que
ocorre no a multiplicao do mesmo em outros, mas o desencadeamento de uma
alteridade tal que a volta ao Um torna-se impossvel (Perrone-Moiss, 1982, p. 26).
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Tramitao do artigo na revistaSubmetido: 14/11/2010
Revises requeridas: 06/08/2011Verso revista: 30/01/2013
Aceito: 04/02/2013
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