REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789
VOL. I Nº 3 DEZ/2010
Vera Mascarenhas de Campos
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TRANSCULTURAÇÃO E SINCRETISMO NA ARTE DE CÁSSIO M’ BOY
Profª Drª Vera Mascarenhas de Campos1
http://lattes.cnpq.br/9987472046709170
RESUMO – Com certeza, não será possível, no breve espaço deste artigo, uma análise mais profunda das composições de Cássio do M’Boy que possam discutir a duplicidade de seu caráter aparentemente contraditório: o de arte primitiva, ingênua, caipira, mas que vai ser construída, por meio de apurada forma técnica, sustentando o conhecimento do erudito. Por outro lado, certamente será possível atingir o objetivo de despertar a curiosidade não apenas para a pintura, mais divulgada, mas também para a escultura e, principalmente, para o universo cultural que telas e objetos evaporam. Além disso, este espaço será porta-voz da fala do próprio artista, numa divulgação de suas Memórias – livro em que ele relata fatos marcantes de sua vida, episódios relacionados à gênese de sua arte, além de suas lembranças como introdutor de experiências culturais, na pequena Aldeia de M’Boy.
Seu livro de memórias - Cássio do M’Boy ou M’Boy do Cássio – encontra-se em poder da Prefeitura Municipal da Estância Turística de Embu, para publicação, e trechos aqui citados são completamente inéditos.
PALAVRAS-CHAVES – Pintura, Escultura, Modernismo, Cultura e Artes Plásticas. ABSTRACT – Surely it will not be possible, in the brief space of this article, to make a deeper analysis of his compositions that can discuss the duplicity of his seemingly contradictory character: the primitive art, naive, rustic, which is constructed by means of an accurate technique, sustaining the knowledge of a scholar. But, surely, it will be possible to achieve the goal of arousing curiosity not only for Cássio M’Boy’s painting, more widespread, but also to his sculpture and especially to the cultural universe that evaporates from his canvases and objects. Moreover, this space will be like a speaking trumpet of the artist’s voice itself, in a disclosure of his Memórias - a book in which he recounts important events of his life, episodes related to the genesis of his art, and his memories as an introducer of cultural experiences in the small M'Boy Village.
His memoir – Cássio do M’Boy ou M’Boy do Cássio (Cássio of M'Boy or M'Boy of Cássio) - is presently held by the City Hall of Estância Turística de Embu, for publication, and the excerpts cited here are completely unedited. KEY WORDS – Painting, Sculpture, Modernism, Culture, Visual Arts.
1 Doutora em Letras Modernas pela USP, Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.
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Cássio M’Boy (1903 – Mineiros do Tietê – 1986 – São Paulo) foi, assim como Anita
Malfatti, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, entre outros, um dos artistas modernos
responsáveis pela divulgação da arte brasileira no exterior, na primeira metade do século XX. Em
1937, foi premiado com a Medalha de Ouro, na Exposição Internacional de Artes e de Técnicas,
em Paris; em seguida, na XXVI Bienal de Veneza, expôs duas telas: Nossa Senhora do Coração e Mãe
do Ouro, tendo sido este trabalho o primeiro a ser vendido naquela Bienal; em 1950, expôs, no
Salão Nacional de Tóquio, o quadro intitulado O Saci e no Salão de Maio, em Paris – Nossa
Senhora Bonita e Mãe d’Água. Apesar disso, são poucas as pesquisas acadêmicas que se dedicaram
ao estudo de sua obra, reveladora de uma personalidade artística plurivalente e complexa. Devido
provavelmente à complexidade de sua arte, ao mesmo tempo, erudita e popular, o que se vê
publicado a respeito se restringe a dados biográficos do artista e sua ligação com Embu das Artes,
onde viveu durante muitos anos, exercendo forte influência artística que até hoje perdura.
Sabemos que, entre os traços mais marcantes da personalidade dos artistas modernos, está
o espírito revolucionário aliado à capacidade de provocar mudanças; revoltando-se contra o que
fora estabelecido como bom e belo pela tradição, abriram espaço para novas experiências. Por
outro lado, exatamente porque foram capazes de buscar formas inéditas de traduzir a realidade,
os modernos não se restringiram ao uso de um tipo específico de expressão, mas ousaram
experimentar várias formas de linguagem para concretizar sua mensagem. Portanto, o que, sem
dúvida, identifica o artista moderno é a pluralidade.
Quando se usa o termo moderno relativo às artes, no Brasil, delimitam-se mudanças que
se processaram no amanhecer do século XX, como produto de tentativas de encontrar soluções
originais para a crise provocada por uma espécie de estagnação cultural e artística. Ansiava-se por
uma arte própria, e os artistas buscaram, a princípio, seus modelos na Europa, mas logo se
desvencilhando da influência da metrópole para comemorar a identidade brasileira. A grande crise
europeia já se havia iniciado na época do Impressionismo, quando novas tecnologias,
introdutórias de uma visão mais pragmática da vida, levaram ao questionamento da finalidade da
Arte. Até ali o que prevalecera era a arte da classe dominante – da nobreza – para quem o seu
consumo era uma regalia a que ela tinha direito garantido. Mas o mundo aristocrático entrara em
decadência, com revoluções como a russa, de 1917, que já vinha sendo preparada pelos socialistas
do final do século anterior. A Europa foi sacudida pelos desentendimentos que culminaram com
a 1.ª Guerra Mundial de 1914-18, quando o horror local, conhecido nas guerras nacionais,
tornou-se o desvario em escala mundial. Num lugar tão instável, em que a própria sobrevivência
se transformara num constante risco, qual era o lugar da arte?
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Na pintura, as formas geométricas substituíram o paisagismo; a regularidade do desenho,
que projetava um mundo racional, estável, organizado foi sendo diluída, dando lugar aos
processos cromáticos, libertos da prisão das linhas fechadas em imagens reconhecíveis. O mundo
fechado em si mesmo abrirá espaço para as formas abertas, porque a arte precisou acompanhar a
velocidade, o tropel dos acontecimentos cada vez mais alucinante e buscou representar uma
realidade estilhaçada, onde, até o tempo de regularidade euclidiana, cedeu lugar ao tempo
fragmentado. O absoluto do racionalismo cartesiano cedeu lugar à relatividade, enquanto a
emoção expressionista punha traços de carvão nas faces encovadas.
Mas no Brasil de 1920, mais precisamente, na Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade,
ou, na São Paulo aristocrática dos barões do café, aos quais pertencia Cássio M’Boy, ainda a
tônica estava num comportado conservadorismo; reverenciavam-se os óleos sobre tela que
retratavam a natureza melhor do que as máquinas fotográficas.
Nesta época, o jovem Cássio, contrariando a vontade do pai que o queria plantador e
exportador de café, veio para a capital paulistana, para saber o que era arte e fazer-se artista.
Embora ainda fosse muito moço, já era exímio desenhista, e, aproveitando um senso artístico
inato, inicialmente trabalhou como vitrinista, a fim de manter-se. Para concretizar o sonho de ser
artista, tentou adquirir formação técnica com um mestre afamado na época. O professor, adepto
do classicismo greco-latino, decepcionou-o; havia no conceito do belo e nas tendências estéticas
daquele mestre um tradicionalismo que não servia aos ideais do discípulo. Decepcionou-se, sem
conseguir entender por que obras tão conceituadas na época lhe pareciam meras cópias da
natureza. Cássio não entendia seu anseio por uma nova maneira de expressar o mundo, nem a
preferência de todos pelo consagrado modo de reproduzi-la.
Em 1921, desiludido, Cássio mudou-se de São Paulo para um pequeno povoado,
que
nesse tempo, era denominado oficialmente Vila de M’Boy, sede do Subdistrito do mesmo nome, pertencente ao Município de Itapecerica, mas toda a população o chamava de Aldeia de M’Boy. Fora fundado pelo jesuíta Padre Belchior de Pontes para ser um aldeamento indígena que funcionou até a expulsão desses religiosos pelo drástico decreto do Marquês de Pombal, que, banindo os jesuítas do Brasil, confiscou-lhe os bens. (M’BOY- Memórias)
Comprara aí um sítio e, calejando as mãos no uso da enxada, tentou achar a solução para
o conflito que o perseguia: o que é arte? Não achara a resposta junto aos mestres, nem junto a
artistas consagrados! Não foi, portanto, no meio acadêmico, mas, no contato com os vizinhos,
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pessoas simples e também sitiantes, que encontrou a resposta para suas indagações, quando
aceitou a incumbência de uma sitiante, que queria a pintura de um santo – Santo Amaro – para a
bandeira, a ser erguida num mastro para a festa de comemoração do dia do santo, como era
costume na região rural da Aldeia de M’Boy. Cássio procurou a estampa, com a figura, para saber
como representá-la e, no melhor estilo acadêmico, pintou a imagem que comporia a bandeira.
Porém, quando a vizinha chegou, ela lhe disse que não era aquilo que desejava – ela não queria
retrato, mas, sim, pintura. Mas o que seria pintura para ela?
Cássio pediu que a senhora lhe levasse uma estampa antiga, feita pelo santeiro que havia
morrido, segundo o que ela lhe informara, e
Analisada aquela primeira pintura caipira que vi, e depois de ter aprendido que, pintura, para aquela gente, não deveria ser a reprodução da verdade, como a que havia feito na bandeira de Santo Amaro, usando o estilo acadêmico, passei a receber numerosas encomendas. Aquela expressão do mais puro primitivismo era para mim uma nova arte, pois nunca tinha visto coisa nem ao menos parecida. Fiquei, então, sabendo que, para eles, os caipiras, tudo que existe na natureza já está criado, pronto, portanto deixa de interessar. Se eu pintasse um cravo, o caipira dizia: - Ora, o senhor fez uma flor de jardim!... Se pintasse uma orquídea: - Ora, o senhor fez uma flor do mato!... Exigiam sempre uma recriação. Toda a natureza deveria ser fantástica. Um cachorro roxo. Uma aranha com cinco pernas de um lado e sete do outro, e outros absurdos possíveis, que, futuramente, passei a aproveitar, na interpretação de lendas, na criação das personagens dos mitos, como a Mãe d’Água, a Mãe do Ouro, a Mãe do Mato, o Pai do Fogo, o Saci e a legião de entidades, criação e invento populares, que habitam o mundo dos caipiras simples. Minha invenção tornou-se semelhante à de um ator que, indo ao palco, deveria interpretar um caipira para uma plateia caipira. Toda vez que ele tivesse uma atitude, usasse uma frase ou mesmo uma palavra erudita era vaiado... Assim sendo, a perfeita adaptação ao conceito de beleza deles acabou por me tornar o mais célebre santeiro de todos os tempos, naquela região. (ibidem)
Como se pode notar, Cássio, pelos seus próprios meios – aguçada sensibilidade e
inteligente observação – descobriu o princípio norteador da arte moderna: para Oswald de
Andrade, esse princípio chamou-se Antropofagismo; para Tarsila do Amaral, gerou o Abaporu;
para todos modernistas, esse gerador de força passou a compor a criação de uma outra realidade
que, extrapolando o referente, revivificava velhos significados, tornando-os adamicamente novos,
na confluência de contornos, cores e texturas mágicas.
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A atitude antropofágica de Oswald de Andrade originou um movimento de
transculturação, porque, para este canibal moderno, o artista deveria, no contato com culturas
alienígenas, obter a apreensão do exótico, do inusitado. Sabemos da viagem precoce de Oswald
de Andrade à Europa, já em 1912, de onde trouxe brisas cosmopolitas que vão purificar os
velhos recantos paulistanos. As aragens estão impregnadas do desejo de ruptura, com as estéticas
consideradas ultrapassadas, e vão produzir o verdadeiro maremoto que foi a Semana de Arte
Moderna de 1922. Os artistas, a partir de então, perceberam o que a Europa descobrira: a ordem
fora abolida e reinava o caos e isto seria capturado pela ênfase na forma, porque o próprio gosto
do usufruidor de arte tinha mudado. Ele, agora, já não era um nobre ocioso, sobrevivendo com
as rendas de suas terras, mas um trabalhador cuja vida árdua devia ser representada, cujo
sofrimento teria de ser valorizado pelo artista. A arte passou de fruto de uma abstrata inspiração
para consequência de árduo esforço na manipulação do concreto – a sua forma.
Por outro lado, Cássio, que desejara ter ido à Europa, mas não foi, vindo para o M’Boy,
alimentou-se do banquete oferecido pela cultura popular, onde a forma ingênua e simples de
observar os fenômenos da natureza alterou, com seus temperos telúricos, a conformação dos
objetos, gerando uma nova ordem. O contato de Cássio com os modernos da Semana de 22 deu-
se muito posteriormente, portanto suas descobertas são pessoais e isentas de influências. Na sua
aldeia, ele ouve ecos distantes de uma revolução que acirrava ânimos:
Certo dia, o jornal trouxe uma notícia alarmante. Ele, o mais comedido e reservado periódico do Estado e talvez mesmo do país, falava de uma horrível revolução que estava havendo em São Paulo, fazendo referências pejorativas, recapitulando Monteiro Lobato que, há anos passados, escrevera um artigo, afirmando ser Anita Malfatti uma paranoica e chamando atenção para a necessidade de providências, sem as quais nossa cultura e, especificamente, as artes plásticas, seriam destruídas! A previsão de Monteiro Lobato havia-se concretizado. Tinha chegado a nossa pátria o Futurismo. Mário de Andrade havia sido influenciado por Anita Malfatti e um espetáculo horrível aconteceu no Teatro Municipal, onde, mesmo com a presença de Guiomar Novaes, tentaram destruir Chopin... Procurei, por portadores, mandar buscar outros jornais na capital e, lendo-os, acabei com uma ideia confusa de tudo, mesmo porque as notícias também eram desencontradas, desconexas. – As autoridades constituídas, por que não proíbem a tal Semana de Arte Moderna? – perguntavam os jornais mais conservadores. Semanas depois, retirei minhas roupas de cidade da canastra, montei no cavalo e fui para São Paulo, ver afinal o que era a tal revolução. Encontrei uma exposição de artes plásticas, numa casa velha da Rua Barão de Itapetininga. Representavam-se mulheres azuis, mulheres com cabelos verdes, cabeças com
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dois narizes, cabeça de metal amarelo brilhante, sem olhos, porém com bocas de negro... E mais uma porção de manifestações artísticas completamente contrárias às que existiam na capital, quando me transferi para o M’Boy! Não entendi coisa alguma do que vi e não tinha nem mesmo a quem perguntar, mas estava na minha mente tudo o que havia lido nos jornais. Incontestavelmente, foi esse o dia mais feliz da minha vida! Verifiquei que estava absolutamente certo, quando reagira contra a arte do alemão e de Pedro Alexandrino. Não precisava mais me refugiar na arte dos caipiras para ser, ao menos um santeiro, cumprindo, assim, meu destino de artista!... Havia o Futurismo! Abria-nos todas as portas, permitindo que, nós, os artistas, encontrássemos a beleza, onde ela nos parecesse estar presente, sem que fôssemos apontados como desequilibrados. A partir daí, passei a executar a arte caipira e o Futurismo, nome com o qual se convencionou chamar todas as modalidades de arte moderna daquela época. (ibidem)
Cássio descobrira o que era arte. Difícil foi saber que tipo de material empregaria, que
linguagem seria mais adequada como meio de expressão. Antes de pintor, Cássio foi escultor;
antes de escultor, tornou-se um dos maiores expoentes da Art Déco, no Brasil, utilizando como
suporte de sua arte a tapeçaria, onde, no desenho, predominavam linhas retas ou circulares
estilizadas, formas geométricas e o desenho abstrato, que passou a agregar influências do
Cubismo, do Construtivismo e do Futurismo. Este tipo de arte, cujo nome é abreviatura do
francês Arts Décoratifs, concretiza-se, numa tendência que surgiu nas artes plásticas, artes aplicadas
(design, mobiliário, decoração etc.) e arquitetura, no período compreendido entre as duas guerras
mundiais. A Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, realizada em
Paris, em 1925, é o corolário do estilo, que teve em John e Regina Grass e Cássio M’Boy seus
mais refinados seguidores, na década de 30. E decorando ambientes é que Cássio passou a ganhar
a vida, tornando-se conhecido, como decorador, nos meios paulistanos endinheirados, que
desejavam seguir a moda europeia do que chamavam Futurismo.
Por outro lado, jamais ele deixou de executar o que chamava de arte caipira. A visão de
mundo dos caipiras está em consonância com a natureza em que vivem e esta, na nossa latitude, é
de uma exuberância hiperbólica! Cores em profusão nas flores, nos pássaros, na pele da
suçuarana, das serpentes, no crepúsculo e na aurora! Formas de exotismo raro nos insetos, nas
cadeias de cipós! Trata-se de uma realidade mágica, em cujo caldo se alimenta a imaginação que
antropomorfiza o inanimado, dando-lhe a vida do mito ou da lenda. Muito depois de Cássio ter
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vivido seu momento de revelação, de Gabriel García Márquez2, o famoso autor colombiano, se
dirá:
Lo que García Márquez describe y que parece pura invención, no es otra cosa que el retrato de una situación peculiar, vista con ojos de la gente que la vive y la crea, casi sin alteraciones. El mundo criollo está lleno de magia en el sentido de lo inhabitual y lo extraño. (PIETRI, 1990, p. 125)
2 O que G. Márquez descreve e que parece pura invenção, nada mais é que o retrato de uma situação peculiar, vista com os olhos dos que a vivem e acreditam nela, quase sem alterações. O mundo mestiço está cheio de magia no sentido do que é inusual e estranho. (Poderíamos dizer o mundo caipira, em que entram os mesmos ingredientes.)
Figura 1
A Fundação de Embu
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Esta estranheza é o ingrediente das narrativas, chamadas fantásticas, onde entra o
realismo na apresentação dos episódios; mas, ao real, acrescentam-se situações mágicas ou
extraordinárias, rompendo-se os limites entre aquele e a fantasia. Como isto é conseguido pelo
autor colombiano? Usando como matéria-prima os estranhos “causos”, contados pelo povo,
lendas regionais, mitos que explicam o surgimento das sociedades a partir de suas crenças.
Resgate de histórias, onde se mesclavam as tradições negras, índias e brancas; onde as
superstições dos povos formadores das populações latino-americanas se enriqueciam umas ao
contato com as outras, formando um amálgama. Era um material sempre presente, mas velado,
que, finalmente, se libertava para ser conhecido, modificado pela imaginação criadora.
Anita Malfatti foi à Europa estudar com grandes mestres, para descobrir o que era arte e se
ela era artista, conforme nos conta Cássio que manteve com ela uma estreita amizade de muitos
anos. Tarsila do Amaral também buscou do outro lado do Atlântico o aperfeiçoamento de sua
inspiração. Embora elas tivessem aprendido lá fora a maneira de romper o casulo que aprisionava
a liberdade de criar, foi aqui, no contato com a realidade brasileira que cada uma pôs em prática o
seu protesto, criando a arte do cotidiano, das coisas costumeiras que foram rearrumadas de forma
insólita.
Os modernistas foram levados primeiramente por um movimento de expansão que os
empurrou para fora e, depois, por um movimento de interiorização, que os fez voltarem à
atenção para o seu próprio habitat. Cássio embrenhou-se profundamente na vida do caipira da
região do M’Boy e de tal forma incorporou a identidade local que lhe adotou o nome, além de
reunir um profundo conhecimento da tradição oral da região, composta de relatos de gente como
Nhô Nino, por exemplo, patriarca morador da Aldeia de M’Boy, que assim conta a origem da
atual Embu:
Dizia a lenda que, recebendo ordens, na localidade praiana de Itanhaém, para fundar um convento, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário, o quase menino Padre Belchior de Pontes subiu a Serra do Mar pelo caminho do Padre José. Já no planalto de Piratininga, chegou a uma região pantanosa, onde se atolou e teria morrido, se não fosse o socorro de um índio, que o carregou, sem sentidos, para sua oca. Voltando a si, o padre que era bom língua, ou seja, falava correntemente o tupi, soube pela mulher do índio que o marido, levando um pote de barro, já há muito tinha descido até o rio, com o fim de apanhar água de que precisava para remover a lama que sujava o padre, mas o marido não tinha voltado. Os dois resolveram descer até o rio e, lá chegando, depararam com o índio morto, envolto por uma enorme cobra que o estava triturando. O padre tirou do cinto o seu facão e matou a cobra. Em seguida, eles subiram com o cadáver para a oca, no outeiro, onde sepultaram o índio, de acordo com o ritual da igreja católica. No momento em que Belchior de Pontes fincava, na
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cabeceira da sepultura, a cruz de madeira por ele improvisada, elevou os olhos para o céu e disse: – Se Nossa Senhora do Rosário fez com que se levantasse, neste lugar, pela primeira vez, o símbolo da nossa fé, que é a cruz, é porque é aqui que ela quer que eu fique! Sobre a sepultura, o Padre Belchior de Pontes levantou uma humilde capela, que depois se tornou igreja e convento; dizem que o altar de Nossa Senhora do Rosário sempre foi mantido no mesmo lugar e debaixo dele está enterrado aquele anônimo índio. (M’BOY- Memórias)
Como se pode ver, no quadro, denominado A Fundação de Embu (fig. 1), Cássio procede a uma
tradução interssemiótica, transpondo a linguagem verbal de Nhô Nino para a pintura, conservando
Figura 2
A Fundação de São Paulo
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os elementos da natureza do lugar, que assinalam a época do fato: a onça pintada, o pássaro da
mata; signos de uma realidade agreste convivem com os signos da civilização: a tosca construção do
telheiro e animais domésticos que pastam no alto da colina. O sacro e o profano convivem: a
imagem do padre rivaliza com a figura da Iara, ou Mãe d’Água. Como símbolo supremo dessa terra
jovem, no alto, está a Mãe do Ouro. Segundo a versão indígena, contada pelos antigos da aldeia, ela
habitava no Pico do Jaraguá, de onde saía a passear pelas cercanias.
A crença na sua existência e na possibilidade de desencantá-la para arrancar dela sua riqueza
impeliu os homens a transpor a grande barreira representada pela serra. E assim chegaram ao
planalto de Piratininga, onde fundaram São Paulo.
Figura 3
A lenda de São Denis
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Na tela Fundação de São Paulo (fig. 2), a Mãe do Ouro transporta uma grande peça desse metal, -
chamariz para os bandeirantes que usavam os índios como guias, para enfrentar a escalada da serra,
dentro da fechada mata atlântica.
De Cássio M’Boy, disse Luiz da Câmara Cascudo:
“A ideia em Cássio M'Boy é imaginação espontânea e tarefa de investigações complexas. Toda realização sua é obra clássica e de artesanato tradicional. Instintivo. Poderoso. Original, porque sobe das Origens.” (op. cit. Apresentação das Memórias)
Por remontar às origens, nunca, nesse artista, a linguagem pictórica é veículo de apenas
um significado, mas representa a somatória de uma transculturação. Nos anos 40, inicia as
grandes telas hagiológicas, das quais A lenda de São Denis (fig 3) é exemplo. Compõem-se as telas
cenas da vida dos santos, transplantadas para o cenário caipira, foco que o artista escolheu para
observar e traduzir o mundo.
Cássio se define como “um pintor erudito, dentro do caipirismo. Fora de minha área
cultural eu posso ser classificado como primitivo (...)”. Se nas suas telas prevalece o motivo
religioso, ele o explica, dizendo que “não se pode fazer pintura caipira sem sentir o religioso. O
caipira gosta do religioso, de imagem, de santinho, de festa religiosa.” Assim como gosta das
cores vibrantes, que aparecem com abundância nas telas!
A lenda de São Denis, segundo Cássio M’Boy
São Denis, cuja popularidade, na França, só foi dividida com Joana D’Arc, é aclamado
pela mais antiga tradição cristã francesa, que o venera como um mártir cefalóforo, ou seja,
portador de cabeça. Conta a lenda acerca do bispo, que ele carregou a própria cabeça decepada
até o local, onde deveria ser enterrado. Aí, hoje, fica a Abadia de Saint-Denis, em Paris, local em
que, tradicionalmente, todos os reis da França eram enterrados. Denis era um jovem missionário
enviado pelo papa para levar o Evangelho à antiga Gália em 250, no século III. Formou uma
comunidade católica em Lutécia, atual Paris, sendo eleito seu primeiro bispo. Alguns anos depois,
sofreu o martírio, sendo decapitado no local hoje conhecido como Montmartre, isto é, “Colina
do Mártir”. Ao lado do bispo Denis, o sacerdote Rústico e o diácono Eleutério, seus
companheiros, também testemunharam sua fé cristã por meio do martírio.
Os habitantes mais religiosos da Aldeia de M’Boy possuíam vastos conhecimentos
hagiológicos, como é próprio das comunidades caipiras ou sertanejas. Mas, em geral, a hagiografia
conhecida nesse meio rural é fruto de um justificado sincretismo, tendo-se em vista que advém de
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tradições orais. A história de São Denis, por exemplo, muitas vezes se entretece à de São
Dionísio, o chamado areopagita, e com ela se confunde. Cássio não usou a lenda de São Denis
como se encontra nos livros, mas como a ouviu da voz popular que a foi transmitindo ao longo
do tempo. Resulta daí que sua versão pictórica, seguindo a voz popular, tornou-se diferente de
qualquer outra, tomando a representação do sagrado uma feição muito particular. Por isso
também Cássio é sempre extremamente original; bebe nas fontes locais – receptáculos de
tradições únicas. Por essa razão, temos aqui, como em outras telas de motivos religiosos, o
fenômeno da transculturação, ou seja, cruzam-se as tradições de duas ou mais culturas, gerando
um novo produto cultural. Note-se que, simbolizando a violência com que o bispo é atacado,
aparece a jarra quebrada, copos derramados, mas não são objetos franceses, e, sim, os típicos das
casas da roça. A faixa, as mangas e a barra da batina do bispo são enfeitadas com trabalhos
manuais caipiras como as franjas que se caracterizam pelo desfiamento do tecido, formando
enfeites, artesanato apreciado pelo caipira. Mas, por outro lado, a arma tem aparência de uma
cimitarra, arma branca de origem árabe, em cujo aço se vê uma inscrição – Sorocaba – com o S
escrito ao contrário, como costuma acontecer na grafia dos pouco letrados. Trata-se de uma
famosa marca de armas do interior paulista. Cássio reproduz símbolos tradicionais cristãos como
a pomba, representando o Espírito Santo.
As vinhas apontam para o sangue do mártir derramado; parece clara a associação entre
sangue e vinho, já presente na própria Eucaristia. Essa associação de ícones e símbolos de
culturas diversas que convergem para um cerne religioso – o transplante de cenas bíblicas para o
ambiente da roça revelam a erudição de que se falava anteriormente. O artista conhecia à
perfeição não apenas tradições orais caipiras, mas também as versões adquiridas pela via erudita.
Cássio iniciou a sua tradição de santeiro, acatando o pedido de vizinhos para restaurar
imagens de santo quebradas ou desgastadas pelo tempo. Sendo a pessoa mais culta da aldeia, era a
ele que o padre recorria para ajudar na organização de festas religiosas como a Semana Santa,
visto que Nhô Nino, o armador, havia falecido. Chama-se armador a pessoa que entende de
rituais litúrgicos, que incluem a montagem dos andores, a colocação de cortinas, sanefas e eças,
dos toques de sinos, de matracas e de todas as prescrições canônicas para a perfeita realização de
tais cerimônias. Porém, seu maior feito como santeiro foi a criação de um santo a partir de uma
peça de cedro.
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A Escultura de São Lázaro
Sem dúvida, o que mais surpreende, na arte de Cássio M’Boy, quer seja pintura ou
escultura, é o fato de ela ser a prova indiscutível de um talento muito especial, desenvolvido à
margem de qualquer orientação de terceiros, mais filho da intuição que de qualquer suporte
didático. A técnica da composição estatuária, Cássio descobriu-a na prática: escultura se aprende
esculpindo... E assim, meio por acaso, surgiu a escultura de São Lázaro (figs. 4 e 5) A capela que a
abriga hoje é ponto turístico obrigatório de quem queira conhecer a verdadeira arte, em Embu.
São Lázaro e também o Senhor Menino, este exposto numa Igreja do bairro do Itatuba, em
Embu das Artes, são duas esculturas que exemplificam o fenômeno do sincretismo, além de
apontarem para uma espécie de laboratório artístico de Cássio M’Boy. Neste caso, o sincretismo
seria oriundo do cruzamento de muitas versões do mesmo fato. O produto final é uma forma
convergente que sintetiza as demais.
A madeira do rosto da imagem veio de uma forquilha de cedro, encontrada na demolição de
velhas casas, do Largo 21 de Abril, de construção muito anterior a 1926. O pedreiro, sabedor que
Nhô Cássio gostava de trabalhar a madeira, e o cedro era muito velho, condição ideal para ser
esculpido, deu-lhe de presente o achado. Cássio conta que
Imediatamente, quando me mostraram o cedro, vi nele uma cara de homem barbudo, em tamanho natural! Nesse mesmo dia, realizei a máscara. A notícia correu pela aldeia e, à noite, o Nhô Quim, o subprefeito, foi até minha casa para saber se era verdade que eu havia executado a cara de um santo do mesmo tamanho que gente!
Eu tinha trazido o trabalho da oficina para dentro de casa. Minha sala de jantar era iluminada com a luz de um lampião belga, alimentado a querosene. Mesmo com essa deficiente iluminação, o subprefeito ficou entusiasmado com a máscara e me perguntou por que não a emendava a um pedaço grande de cedro, esculpindo assim um santo de tamanho natural.
Sabia pouco de escultura em madeira, a não ser a técnica usada para as pequenas imagens que fazia e pedaços de imagens que refazia, esculpindo as partes que lhes faltavam. Se uma imagem quebrada precisava de mãos, pernas, braços ou mesmo cabeça, eu as executava para corrigir a mutilação.
De imediato, raciocinei que seria uma temeridade para mim, que entendia alguma coisa da anatomia aprendida com o alemão e mais nada... Assumir, não somente diante do subprefeito, mas também, principalmente diante de mim mesmo, tão audacioso compromisso!
Qual seria o santo cuja imagem seria executada, caso resolvesse fazer a escultura? A riqueza de imagens do Convento e Matriz da aldeia era muito grande, sendo difícil pensar-se num santo de que não possuíssem a imagem. Finalmente, encontramos São Lázaro, de quem o acervo de M’Boy, mesmo o particular, não possuía nenhum exemplar. Sua figura era a de um leproso quase nu, apoiado numa muleta, com barbas e cabelos compridos.
Aceitei o desafio daquele inesperado acontecimento! (M’BOY- Memórias)
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Como fizera Aleijadinho, ao esculpir as figuras dos doze apóstolos, no átrio da Igreja de São
Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, Cássio foi buscar informações acerca da
vida do santo para representá-lo de acordo com a tradição. Provavelmente, para Aleijadinho a
fonte de conhecimento foram as Sagradas Escrituras e obras romanas, onde se descrevem os
apóstolos, os soldados e as competentes inscrições latinas! Fontes eruditas!
Para Cássio, a fonte hagiológica foi o relato das famílias mais antigas do local que lhe
contaram a história do santo da seguinte maneira:
De São Lázaro, sabiam que tinha sido um riquíssimo nobre, um tipo de beleza masculina, que ostentava linda cabeleira e barbas longas, tratadas com requinte e cuidados. Lázaro era
Figura 4
São Lázaro, no altar de sua Capela
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profundamente religioso e católico. Certo dia, Satanás apareceu-lhe e o intimou a renunciar a Jesus, senão, por vingança, o privaria da família. Diante da negativa do rico e belo homem, num passe de mágica, o diabo destruiu-lhe a família e sumiu. Apareceu-lhe novamente tempos depois, perguntando se, com o sofrimento que já lhe havia proporcionado, estava disposto a renunciar ao Sagrado Mestre, para não receber mais sofrimentos. Lázaro respondeu que, mesmo tendo sido privado da mulher, filhos e outros parentes, continuava feliz por possuir o incomensurável amor do seu Deus. O rei das forças do Mal não desistiu. Destruiu a enorme fortuna do inabalável religioso, tentando ainda destruir-lhe a fé, que tanto incomodava a ele, diabo. Baldados todos os esforços, mesmo depois do empobrecimento de Lázaro, Satanás disse ao religioso inabalável:
– Você que já perdeu tudo, vai perder por fim uma coisa que você não sabe que tem, que é a sua beleza física. Será acometido de uma moléstia que o deformará em chagas e será altamente contagiosa, razão pela qual todos os seus semelhantes evitarão aproximar-se de você! Será, você, Lázaro, o primeiro portador dessa moléstia, cujo doente será chamado de lazarento, ou portador do mal de Lázaro.
Mesmo assim, terrivelmente deformado e sofrendo todos os horrores da moléstia, ao ser consultado pelo diabo, que prometia minorar-lhe os padecimentos e compensá-lo pelos bens perdidos, de alguma forma, contanto que renunciasse ao seu Deus, Lázaro respondeu:
– Perdi tudo e mais teria perdido, se mais possuísse, para continuar rico como sou do amor do meu Deus, Jesus Cristo! (ibidem)
Esta história de São Lázaro pertencendo à versão local torna mais valiosa a escultura, que
a imortalizou. O relato da oralidade é controverso, principalmente devido ao sincretismo que há
entre as camadas populares; neste meio, cruzando-se várias tradições, surgem novas histórias. É o
caso da vida de Lázaro de Betânia, irmão de Marta e de Maria. Personagem bíblico, descrito no
Evangelho, segundo João, é o amigo que Jesus ressuscitou, tornando-se a prova viva do seu
maior milagre. Este não era leproso, mas, por ter sido ressuscitado, passou a ser cultuado como
protetor dos doentes de epidemias e, principalmente dos que sofrem de enfermidades como
sífilis, lepra, problemas da pele em geral e, hoje, da aids. É considerado santo curador, protetor de
animais, principalmente dos cães de rua, e ainda das plantas.
Na Idade Média, tornou-se padroeiro dos leprosos pela associação feita com o seu
homônimo, Lázaro, mendigo e leproso, cuja história é mencionada por Lucas – a do Lázaro e do
Rico. Há uma lenda que conta (a imaginação profana completa as informações da tradição sacra
bíblica) ter sido o mendigo Lázaro da parábola, um homem rico que perdera tudo.
O São Lázaro m’boyense parece ser o produto da união entre o Lázaro, amigo de Jesus, o
Lázaro leproso, a quem os cachorros lambiam as feridas (ainda associado, na tradição da
Umbanda, com o orixá ioruba, curador Obaluayé ou Omulu, senhor da cura e do mundo dos
mortos) e de São Roque, padroeiro do município do mesmo nome. Há ainda a história de Jó,
cujos aspectos se assemelham aos daquela atribuída a Lázaro. Jó era um homem rico que, por
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artimanhas do Satanás, perdeu família e bens, a fim de que fosse testada a sua paciência, diante
dos revezes sofridos.
Por outro lado, São Roque (1295 d.C – 1327 d.C), que protege contra a peste e doenças
contagiosas, é padroeiro dos inválidos, dos cirurgiões e de diversas profissões ligadas à Medicina
e ao tratamento do gado, além de outros animais domésticos. Por isso é bastante cultuado nas
regiões rurais. Conforme a lenda, de origem nobre e herdeiro de grande fortuna, Roque de
Montpellier nascera com uma cruz na testa e, desde muito cedo, dedicara-se à vida ascética.
Decidindo fazer uma peregrinação, dirige-se da França para Roma, onde pretende orar no túmulo
de São Pedro, após desfazer-se de seus bens. Durante a viagem, dedicou-se à cura e aos cuidados
de vítimas da peste negra. Contaminando-se com a doença, refugiou-se num bosque, onde, por
milagre, criou uma fonte que lhe matou a sede. Um cão alimentava-o todos os dias, levando-lhe
um pão, até que o dono, seguindo o animal, encontrou Roque e o ajudou. Por isso, São Roque é
representado, com trajes de peregrino, com um cão a seus pés, ou com um cão lambendo-lhe a
ferida, provocada pela peste, e não pela lepra, no joelho. Os elementos semelhantes das vidas dos
vários santos favoreceram o surgimento do sincretismo e de seus subprodutos.
.
A estátua de São Lázaro representa um momento da escultura de Cássio que se pode
chamar de expressionista. Emprega-se o termo no seu sentido mais amplo: a deformação ou
intensificação da realidade para expressar mais subjetivamente a natureza e o ser humano,
enfatizando-se a expressão dos sentimentos em detrimento da descrição objetiva da realidade.
Entendido desta forma, o expressionismo não fica circunscrito a qualquer época e espaço
geográfico, mas abre-se para abrigar muitos artistas. Num deles, Aleijadinho, cujas obras, após a
manifestação de sua doença, antecipam características de um expressionismo manifesto nas
Figura 5
Detalhe do rosto de São Lázaro
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deformações das imagens, como um ato de sublimação. À medida que a doença lhe roía as mãos,
mãos e pés das imagens iam perdendo igualmente dedos, numa explosão de subjetividade.
Na estátua de Cássio, de vigor maciço, o que sobressai é a aceitação, diante do infortúnio.
Mas não se trata de uma aceitação ascética, livre de sofrimento. São Lázaro inspira piedade, ao
mesmo tempo em que irradia força telúrica, no maciço de sua forma.
Já na escultura do Jesus Menino, muito menos conhecida e praticamente não divulgada
nos catálogos para turistas, predomina uma visão barroca. Parece que o período situado entre
1926 e 1934, quando ele termina a criação do Senhor Menino (fig. 6), foi preparatório para o tipo
de escultura que viria a produzir depois.
Sabemos que o modernismo de certa forma buscou
resgatar formas do passado que apresentassem consonância
com ideias de renovação. O Barroco, na sua multiplicidade de
expressões, na época em que surgiu, rebelando-se contra o
racionalismo clássico, foi considerado movimento espúrio, de
mau gosto, pelo que apresentava de hiperbólico. No início do
século XX, com a crescente onda de nacionalismo e valorização
do regional, aliando-se às formas do irracionalismo surrealista,
pregando a revelação do mundo do inconsciente, com todas as
suas aberrações, é natural um retorno aos excessos barrocos,
criando-se um neobarroquismo. O homem moderno havia
descoberto o movimento vertiginoso das máquinas e o mundo
deformado pela velocidade podia ser facilmente associado aos
panejamentos voadores com que se representavam as figuras
barrocas. O culto da circularidade! Da ambiguidade! A própria
natureza tropical com sua exuberância continha o germe
barroco.
Quando percebemos certas características que
permitem apontar, num artista, traços de um movimento
artístico ou influências de escolas ou outros artistas, não se pode depreender disso que tais traços
tenham sido escolhas conscientes. Não se deve afirmar que Cássio quis compor uma figura
barroca, porque conhecia a tendência de seus contemporâneos. Ao artista cabe apenas criar! Dar
forma concreta a sua visão de mundo, tornar palpável uma ideia. Classificar esse produto, dar-lhe
rótulos, é papel da crítica. Cássio certamente, na qualidade de santeiro e armador, manipulando as
Figura 6
Senhor Menino do Itatuba
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relíquias da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, de onde conhecia até a mais insignificante
imagem, tendeu a entalhar um cedro, com traços semelhantes aos de alguns santos daquela
coleção. Além disso, era admirador da arte
escultórica de Aleijadinho. Dessa maneira,
também como uma forma de
experimentalismo, e sobretudo, porque a
sensibilidade artística usa de antenas para captar
o que vai pelo mundo, Cássio reproduziu traços
típicos do movimento barroco, como a
circularidade na figura do Senhor Menino! Isso
se nota principalmente nas conchas do
pedestal. No cabelo encaracolado. A ênfase
barroca aparece no gesto da mão que aponta
para o alto com dois dedos – um duplo. Um
dedo bastaria para apontar o céu. Na outra
mão, o orbe terrestre e no rosto a seriedade de
quem tem o mundo nas mãos e deve decidir
entre dois caminhos: o da elevação espiritual e o dos prazeres
mundanos.
Bem diferentes serão as famosas estatuetas que produzirá depois, durante o período em
que morou no Rio de Janeiro e que reproduzem o referente de forma estilizada (fig. 8). As
baianas, com suas barraquinhas e tabuleiros, cheios de petiscos, frutas, cocadas, despertaram o
apetite artístico de Cássio, que passará a representá-las de forma despojada.
O desenho ao lado (fig. 7), a bico de pena e de caráter experimental, mostra a baiana com
seu tabuleiro e outra figura típica carioca: o marinheiro.
E Cássio passa a produzir arte abstrata, em 1935, colocando-se como vanguarda,
antecipando um tipo de expressão cujo crescimento, no Brasil, foi marcante, mas somente a
partir do início dos anos 50, quando surgem em São Paulo e no Rio de Janeiro, movimentos de
arte concreta e pós-concreta que resultaram numa arte de alto nível, estabelecendo-se como
referência a um dos momentos mais maduros e significativos da arte no país.
Figura 7
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Em suas memórias, Cássio relata o episódio que o levou às baianas, quando essa figura
não tinha ainda ganhado o relevo que lhe deu Carmem Miranda, nem Ari Barroso.
Conta-nos Cássio que, durante o seu primeiro carnaval no Rio de Janeiro,
Quando me encaminhava para o Baile do Recreio, encontrei uma daquelas falsas baianas que vendiam bolinhos quentes, condimentados com coco, nas esquinas do Rio. Aproximei-me e sem a menor cerimônia ou receio pedi: – Baiana, quer me dar uma dessas “punhe...” e quanto custa? A velha negra, respeitosamente indignada, respondeu, quase chorando: – Eu vou falar para o padre...Onde é que se viu dar esse nome feio pros meus bolinhos de tapioca... É bolinho de tapioca, moço!... Tapioca, ouviu?... E não esse nome feio que você falou!3 Eu, que estava imerso na euforia, própria de gente moça, quando em grupo se dirige para algum lugar de diversão, senti-me abalado pela ofensa feita àquela matrona que, então, verifiquei, era pessoa responsável! Meus companheiros não tomaram conhecimento do ocorrido, coisa para eles certamente considerada fútil. No dia seguinte, em casa, após o baile, aquela negra não me saía da cabeça... Tenho que esculpir uma baiana – pensava. Desenhei alguns projetos para a realização da futura estatueta, porém nenhum deles me satisfazia. O tema era difícil, porque era indispensável que na composição estivesse presente o tabuleiro, onde a presença dos bolinhos tornava a peça artística freudiana,
3 Cássio aproveita o duplo significado da palavra para fazer uma brincadeira. Punheta pode ser um brasileirismo, significando bolinho de tapioca, e pode ser termo chulo, com o significado de masturbação masculina. Termos de baixo calão sempre são redigidos pelo autor pela metade, forma que respeitamos na íntegra. Parece denotar certo pudor do autor em utilizar os termos, como querendo evitar para o leitor o seu significado ofensivo ou grosseiro.
Figura 8
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chegando quase à imoralidade! No entanto, a ideia ficou registrada, para voltar em tempo oportuno a ser reelaborada! (ibidem)
Após muitas tentativas, finalmente foram vencidos todos os obstáculos, surgindo uma
baiana estilizada, com apenas um abacaxi no tabuleiro. Exposta a escultura numa galeria de arte
no centro do Rio, os passantes se revoltaram contra a forma arrojada, que fugia completamente
dos padrões usuais. O que causou maior celeuma entre os frequentadores foi o fato de que a
baiana tinha apenas um abacaxi sobre a cabeça. Não demorou muito, surgiu pelos lados da Lapa,
bairro boêmio que reunia artistas plásticos, músicos e literatos, a modinha: No tabuleiro da baiana
tem... Trata-se da composição de Ary Barroso, de 1936, do filão de temática nacionalista e
enumera tudo o que pode haver no tabuleiro da baiana.
Considerada arte menor, porque
executada num material friável, a escultura em
madeira oferece um desafio maior ao escultor
para dar o naturalismo desejado à figura, não só
por causa dos veios e nós da madeira, mas
também à precisão com que o material deve ser
trabalhado. Mas isto não impediu que a talha
barroca do século XVII sofresse intensa
discriminação e, apesar de sua beleza, fosse
considerada de menor valor. A verdadeira
estatuária deveria ser executada com materiais
nobres, como o mármore, o alabastro, o jade, o
marfim etc.
Por isso, quando Cássio foi convidado a
participar da exposição internacional de Paris
enfrentou verdadeira polêmica! Como ele poderia representar o Brasil com uma peça esculpida
na madeira, pensavam os conservadores? A discriminação tomou tamanho vulto que a peça,
exposta ao público, antes do embarque para Paris, juntamente com as de outros participantes
como Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral, Tomás Santa Rosa, no Salão do
Ministério do Trabalho, no Rio de Janeiro, teve de ser retirada, antes que sofresse algum
“incidente”, embarcando antes das demais. Dessa forma, Cássio, ao lado de Lazar Segal (que
desde 1929 esculpia madeira, gesso e pedra) e Victor Brecheret que também incluiu madeira
como suporte material de sua mensagem, operaram no sentido de mudar conceitos.
Figura 9
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Cássio, como processo
experimental, passou a usar, além da
madeira, o estanho para esculpir peças,
como sua Madona com o Menino que se vê
na fig. 10. A placa de metal, trabalhada pelo
“avesso”, apresenta a figura em relevo. A
placa recebe uma moldura em madeira.
Quando Cássio retornou, em 1939,
à Aldeia de M’Boy, esta, graças a seu pedido
a Mário de Andrade, naquela época, diretor
do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN), havia
recebido o nome definitivo de Embu. Em
1941, Mário de Andrade retornou a São
Paulo, depois de uma estadia no Rio de
Janeiro. Permanecendo no SPHAN, como
técnico da seção paulista, viajou por todo o
estado, fazendo pesquisas folclóricas.
Nesta época, promoveu a restauração do
Convento do Embu e da igrejinha de São Miguel Paulista.
De Cássio M’Boy, paulista que enriqueceu a arte brasileira do século XX, disse José
Geraldo Vieira, especialmente para compor a edição das memórias:
Cássio firmou-se como pintor de assuntos hagiológicos e folclóricos dos quais nunca se afastou em seu ateliê de hibernação bucólica... Há arranjo premeditado, bom gosto límpido e técnica exata, que procura em vão não ser erudita. O artista vigia-se, de modo a só cumprir sua interpretação plástica mediante módulos ecológicos de arte popular. E tudo isso se impregna de carga poética, colhida também em mananciais de origem agrária. Resulta uma arte brasileira, dirigida pela consciência dum artista inexoravelmente ligado à terra. (...)
No momento em que Cássio escolheu a linguagem pictórica para transmitir seu
sentimento de mundo abandonou a escultura. Achara finalmente o suporte perfeito para praticar
a intersecção de culturas que será o traço mais intenso de sua pintura original. Adotou o olhar do
povo simples e devoto e interpretando-o plasticamente humanizou a história de Jesus, a vida da
Virgem Maria, que vieram habitar os outeiros, ainda não devastados pelo progresso, da localidade
Figura 10
Madona com o Menino
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que é hoje Embu das Artes. E passaram a conviver pacificamente ali, com a Mãe do Ouro, com a
Mãe d’Água, participando do reino da fantasia, onde para sempre haverá lugar para o M’Boy-
Tatá, a Mãe do Mato e todos as sincréticas criações da imaginação popular.
Referências bibliográficas:
PIETRI, Uslar. Realismo mágico. in: Cuarenta ensayos. Caracas, Monte Ávila, 1990.
Agradecimentos a Arlete Dialetachi.