Um saber insurgente ao sul do Equador
Richard Miskolci*
RESUMO: Neste artigo, exploro o que faz dos estudos queer parte do conjunto de saberes insurgentesque passaram a problematizar a produo cientfica disciplinar por meio das diferenas. Inicio comuma anlise histrica da passagem das cincias s disciplinas at a insurgncia dos saberes sujeitadosno final da dcada de 1960. Depois discuto a especificidade da Teoria Queer entre os saberes dasdiferenas. Por fim, analiso as condies em que criamos um saber queer no Brasil: externamente, sobuma economia-poltica do conhecimento que privilegia a produo do Norte e, internamente, sob apresso disciplinar e normalizadora de nosso contexto acadmico.
PALAVRAS-CHAVE: estudos queer; economia-poltica do conhecimento; saberes das diferenas
ABSTRACT: In this paper, I explore what makes queer studies part of that set of insurgentknowledges that started to question scientific production through diferences. I start with a historicalanalysis of the passage from sciences to disciplines until the event of the insurgence of subjugatedknowledges in the end of 1960s. After that, I discuss the specificity of Queer Theory among theknowledges of differences. Finally, I analyse the conditions in which we create a queer knowledge inBrazil: externally, under a political-economy of knowledge that still priviledges the North productionand, internally, under the disciplinary and normalizing pressure of our academic context.
KEYWORDS: queer studies; political-economy of knowledge; knowledge of differences
RESUMN: En este artculo, voy a explorar lo que hace que los estudios queer hagan parte delconjunto de conocimientos insurgentes insurgentes que comenzaron a cuestionar la produccincientfica disciplinaria a travs de las diferencias. A partir de un anlisis histrico que va desde elpasaje de las ciencias a las disciplinas hacia la insurgencia de los saberes sujetados en el final de ladcada de 1960. Luego discuto la especificidad de la Teora Queer entre los saberes de las diferencias.Por ltimo, analizo las condiciones en que creamos un saber queer en Brasil: externamente, bajo unaeconoma-poltica del conocimiento que privilegia la produccin del Norte e, internamente, bajo lapresin disciplinaria y normalizadora de nuestro contexto acadmico.
PALABRAS-CLAVE: estudios queer; economa-poltica del conocimiento; saberes de las diferencias
A Teoria Queer um daqueles saberes que emergiram no movimento histrico
que Michel Foucault definiu como sendo a insurgncia dos saberes sujeitados.
Trata-se de um movimento em processo e negociao na esfera acadmica constituda
no modelo do pensamento disciplinar vinculado formao profissional. Em outras
palavras, a Teoria Queer s pode ser compreendida quando situada como parte de
uma inflexo histrica recente na maneira de produzir conhecimento, aquela que
vinculou o saber s demandas polticas de grupos historicamente subalternizados por
suas diferenas de gnero, sexualidade e/ou raa.
Com isso em mente, necessrio recapitular criticamente a formao das
cincias sociais para compreender como principalmente em relao a elas, nos
* Departamento e Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFSCar/Pesquisador do CNPq.Revista Peridicus 1 edio maio-outubro de 2014
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pases centrais, que saberes outros passam a se insurgir desde o final da dcada de
1960. De forma geral, entre o final do sculo XIX at o presente, possvel
reconhecer ao menos trs inflexes histricas na produo do conhecimento sobre o
social. Considero aqui inflexo o momento em que a relao entre saber e poder
reconfigurada ou, melhor, abalada e transformada a partir das lutas polticas de cada
poca.
As trs inflexes que abordarei brevemente na primeira parte do artigo so: a
emergncia de uma cincia do social vinculada aos interesses de elites intelectuais,
polticas e econmicas na Europa do final do sculo XIX; depois, nos Estados Unidos
do Entre-Guerras, sua reconfigurao como cincias sociais na expanso da formao
acadmico-profissional das classes-mdias brancas e heterossexuais associadas a
interesses estatais e mercadolgicos e, por fim, no tero final do sculo XX, a
insurgncia dos saberes sujeitados vinculados s demandas da sociedade civil
organizada na forma de movimentos sociais.1
A partir desta breve digresso histrica, na segunda parte do artigo,
apresentarei uma anlise sobre o que h em comum nesses saberes insurgentes. Minha
interpretao a de que compem, a despeito de tudo o que os distancia, um conjunto
de saberes das diferenas. Tratam-se de vertentes de conhecimento que tensionam e
at mesmo colocam em xeque o que constituiu, por dcadas, o que a teoria social
definia como a sociedade ou a cultura.
O tensionamento acima mencionado se d por meio da nfase nos eixos de
diferenciao social que historicamente constituram formas de desigualdade
como o sexismo, o racismo e o heterossexismo. No que toca contribuio queer a
esse conjunto de saberes, sublinharei a forma como ela traz ao centro da anlise o que
antes nem era considerado parte da vida social ou, para ser mais preciso, lhe constitua
pelas bordas, como um exterior marginalizado sem o qual o hegemnico no poderia
existir tampouco ser objeto privilegiado de conhecimento.
Na ltima parte do texto, focarei no desafio presente de enfrentar a hegemonia
do Norte na produo de teorias sociais e em sua disseminao assim como a presso
disciplinarizante em nosso prprio pas. Apresentarei algumas crticas internas s
1 Alguns analistas europeus os chamaram de novos movimentos sociais, pois como se tivessemsurgido aps o operrio, classificao eurocntrica e parcial que deixa de reconhecer a existnciahistrica prvia de movimentos contra a escravido em pases como Brasil e Estados Unidos,movimentos anti-colonialistas em vrias partes do mundo e a primeira onda do movimento feministado sculo XIX na prpria Europa. Em suma, os movimentos sociais da dcada de 1960 foramcaracterizados no exatamente por serem novos, antes pelo fato de que, em conjunto, abalaram asformas institucionalizadas de representao poltica com demandas antes ignoradas (inclusive pelomovimento operrio). Sobre o tema consulte Adelman, 2009.
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disciplinas e suas propostas de reforma do conhecimento disciplinar contrastando-as
com as que propem super-lo por meio de tores de formas hegemnicas na
produo de conhecimento, as quais reconheo em saberes como os feministas,
descoloniais e queer.
O objetivo deste artigo apresentar alguns dos desafios que envolvem aquelxs
que investigam afinados com uma perspectiva queer, especialmente a partir do Sul
Global, dentre os quais destaco a necessidade de refletir criticamente sobre a atual
economia-poltica do conhecimento que mantm a hegemonia da Teoria Queer como
um saber do Norte quer sobre as tentativas de fechar a rea de pesquisa em
sexualidade no Brasil dentro de um enquadramento disciplinar.
Trs Inflexes na Produo do Conhecimento
Em sua instigante e provocativa obra intitulada Southern Theory (2007),
Raewyn Connell reconstitui as relaes entre a ascenso de uma cincia do social em
fins do sculo XIX europeu e o contexto imperialista. No por acaso, as cincias
sociais emergiram em um momento histrico marcado pela ascenso e consolidao
de um modelo de organizao social e poltica que tinha na Europa, em particular na
Inglaterra e na Frana, a quinta-essncia da cultuada civilizao e do que se
consolidaria como sendo o Ocidente.2
A cincia social conectava os interesses imperialistas europeus com os desejos
das elites da parte colonizada do mundo de seguirem o caminho do progresso. O
evolucionismo era uma linguagem comum cuja gramtica garantia a hegemonia
europeia ao mesmo tempo que acenava para o resto do mundo com a promessa de
que, algum dia, tornar-se-ia como a metrpole. Na Europa e na Amrica, sociologia e
antropologia adquiriram autoridade e reconhecimento dando aura de neutralidade a
uma viso de mundo comprometida com os interesses e as alianas entre elites dos
dois lados do Atlntico, o que fatos como o fascnio brasileiro e mexicano pelo
positivismo comprova. Uma aliana cultural e poltica entre elites de vrios
continentes adquiria status de cincia, mas era uma espcie de discurso pblico
difundido pelas classes letradas, uma fonte de formao para os bacharis, mdicos e
engenheiros que as formavam em pases como o Brasil.
Este modelo de cincia do social no sobreviveu Primeira Guerra e s crises
que a sucederam. Segundo Connell, no Entre-Guerras que esse primeiro ensaio de
2 O primeiro captulo de Southern Theory foi traduzido e publicado na Contempornea Revista deSociologia da UFSCar (2012).
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constituio das cincias sociais substitudo por outro, mais poderoso e duradouro,
nos Estados Unidos da Amrica. l que, por volta da dcada de 1930, a sociologia
cria seu mito originrio atual e se transforma de um discurso poltico de elites
modernizantes para uma especializao profissional, o que tambm se passou com a
antropologia e a cincia poltica.
Nesse novo cenrio em que as cincias se tornam especializao profissional
de classes mdias, que o projeto de uma cincia do social europeu novecentista
deixado para trs em uma crescente especializao associada s demandas do
mercado de trabalho, no caso, vinculando pesquisa e prticas poltico-administrativas.
Se a primeira sociologia conectava o mundo dito civilizado aos interesses das elites
da parte colonizada do mundo, a segunda tendeu a se especializar na realidade dos
pases centrais. Isto era possvel porque o culto do progresso como meio para chegar
ao ideal de civilizao europeu cedeu espao a um culto da modernizao. Um ideal
euro-americano de modernidade se imps com demandas de anlises de seu
funcionamento, mas tambm de receitas para atingi-lo, o que marcou fortemente a
hegemonia de uma sociologia do desenvolvimento que tendia a moldar
transversalmente todas as reas de pesquisa sociolgica.
Neste mesmo contexto, o estudo da periferia do mundo tendeu a ser associado
antropologia constituda como expertise autnoma e progressivamente adquirindo
um mito de origem que buscava distanci-la dos conhecidos compromissos
colonialistas do passado. Estudar o Outro passa a ser progressivamente apresentado
como compreender a alteridade e, em alguns contextos, talvez at mesmo proteg-la.
Este saber sobre o outro, que d voz ao outro, em geral fala por ele afirmando-se
como a forma autorizada de discurso sobre a alteridade no mundo contemporneo.
Por sua vez, a emergncia da cincia poltica como outra especialidade se deu
associada ao sistema democrtico norte-americano e demanda crescente de
profissionais que permitissem seu funcionamento. Das trs subdivises de uma
cincia do social, hoje revela-se a melhor sucedida em termos de mercado de trabalho
no contexto americano, no qual o nmero de empregos disponveis se relaciona
diretamente com o nmero de estudantes em cada uma das trs disciplinas/carreiras
profissionais. De qualquer forma, a cincia poltica tendeu a perder espao no
contexto norte-americano para os estudos de reas geopolticas, ainda mais
claramente relacionados aos interesses das relaes internacionais dos Estados Unidos
da Amrica.
A to cara oposio modernidade versus tradio se imps no como um tema
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dentro de uma anlise objetiva, antes por causa de uma diviso do trabalho intelectual
vinculada a interesses geopolticos. Dentro de um momento histrico marcado pela
crescente formao universitria das classes mdias, as cincias sociais se
autonomizaram dentro da ideologia do profissionalismo. De um discurso geral das
elites intelectuais, polticas e/ou econmicas para uma expertise profissional das
classes mdias brancas e heterossexuais vinculada a interesses estatais e
mercadolgicos, a autoridade e o reconhecimento do que antes tendia a se cristalizar
em discurso pblico ou ideologia de classe foi transferida para a ideologia
profissional.
Cientistas sociais no escapam, tampouco so necessariamente conscientes de
que so formados e desenvolvem seu trabalho vinculando sua atividade a uma
concepo subjetiva de que ele tem uma origem nobre, uma misso presente e, para
alguns, at mesmo algum objetivo maior. Profissionais dedicados e identificados com
sua formao disciplinar tendem a encar-la como uma tradio consolidada da qual
seriam herdeiros privilegiados ou, ainda, continuadores responsveis por seu futuro.
Imbudos de uma compreensvel necessidade de afirmao profissional, mitos de
origem e tradies inventadas ganham densidade e contribuem para criar uma
segunda natureza, um verdadeiro ethos. Para evocar um dos aclamados clssicos,
Max Weber, a velha vocao religiosa retorna em embalagem contempornea na
forma da misso profissional.
O fato que a criao das cincias no XIX to diretamente relacionada
gestao da moderna sociedade urbana, industrial e colonizadora quanto sua
transposio para a esfera das profisses se relaciona criao da moderna sociedade
de massas, do social como esfera administrada e a substituio do colonialismo por
formas de imperialismo mais sofisticadas, ainda que no menos eficientes. Nesse
sentido, a cincia se tornou disciplina, no apenas uma forma mais
organizada/institucionalizada de produo de conhecimento, mas tambm uma prtica
de si, formadora de subjetividades e delimitadora dos limites do pensvel assim como
discreta definidora do que permanece invisvel e nas sombras.
A terceira e mais recente inflexo na produo dos saberes foi apontada por
Michel Foucault ao sublinhar a relao entre saber e poder, a produo do
conhecimento e os interesses que a regem. Em seu curso de 1976, Em Defesa da
Sociedade (2000), abordou a insurgncia dos saberes sujeitados a partir da dcada de
1960, mudana de eixo na produo do conhecimento em que sua obra se inseria
como parte de um acontecimento maior e cujas consequncias tornaram-se mais
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claras apenas hoje em dia.
Segundo Foucault, saberes sujeitados um termo que se refere a duas coisas.
Primeiro, blocos de saber histricos que estavam presentes e disfarados no interior
dos conjuntos funcionais e sistemticos, e que a crtica pode fazer reaparecer pelos
meios, claro, da erudio. (2000, p. 11). Coerentemente, o filsofo francs afirma
que mesmo dentro de ordens institucionais hegemnicas, possvel tentar a criao de
conhecimento a partir de fontes e questes negligenciadas segundo os interesses
dominantes.
Mas destaco sua outra definio de saberes sujeitados, quando acrescenta:
Por saberes sujeitados, eu entendo igualmente toda uma srie de saberes que
estavam desqualificados como saberes no conceituais, como saberes
insuficientemente elaborados: saberes ingnuos, saberes hierarquicamente inferiores,
saberes abaixo do nvel do conhecimento ou da cientificidade requeridos. (Op. Cit.:
12). Aqui o intelectual europeu formado em instituies de elite reconhece o saber dos
que tm outra origem social, outra formao e, principalmente, como suas supostas
insuficincias ou deficincias na produo do conhecimento poderiam ser um ndice
no de fraqueza terico-conceitual ou metodolgica, mas da falta de poder e, portanto,
de autoridade e reconhecimento para o que criavam.
No seria exagero identificar, entre estes saberes, a ento emergente reflexo
feminista da segunda onda, a ligada s demandas de direitos de grupos tnico-raciais
subalternizados assim como o impulso despatologizante trazido cena pelo emergente
movimento homossexual no final da dcada de 1960. Tratavam-se de saberes que se
distinguiam de verses anteriores da Teoria Crtica por sua sintonia com as
transformaes e demandas da sociedade civil organizada.3 Estas novas vertentes de
produo de conhecimento foram herdeiras de anteriores, como o marxismo, a
psicanlise e tentativas de as fundir, mas ganham formas em meio a uma
reconfigurao do sistema acadmico, das revoltas estudantis, das lutas por direitos
civis em uma reinvindicao de que o privado poltico e o corpo e a subjetividade
so parte da esfera do poder e no poderiam ser negligenciados na esfera de produo
do conhecimento.
3 Historicamente, uma verso culturalizada do marxismo que passou a ser conhecida como Escola deFrankfurt ou Teoria Crtica buscou criar uma vertente de reflexo que resistisse ascenso de umpensamento utilitrio nas cincias sociais. Suas contribuies so muitas e, entre seus limites, destaca-se a descrena na sociedade civil, a qual, no contexto histrico de seus criadores, havia aderido aofascismo na Europa e parecia quietista nos Estados Unidos da Amrica. Outra vertente marxistaculturalizada, os Estudos Culturais emergem, inicialmente na Inglaterra, em meio ascenso dosmovimentos sociais e das revoltas polticas da dcada de 1960. Sobre o ponto de viragem nesta dcadaconsulte os captulos iniciais de A Voz e a Escuta: encontros e desencontros entre a sociologia e aTeoria Feminista (2009) de Miriam Adelman.
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Ganharam relevncia as questes das mulheres, homossexuais, negros,
imigrantes das ex-colnias, prisioneiros, loucos, pessoas com deficincia, todos
aqueles e aquelas que antes eram vistos como minorias ou anormais, mas que passam
progressivamente a demandar direitos e questionar as disciplinas e suas teorias
sobre eles/as. Exemplos so os de como as mulheres demandaram igualdade jurdica e
direito de escolha sobre a concepo; homossexuais contestaram o diagnstico
mdico que os qualificava de doentes; negros exigiram direitos civis no Sul dos
Estados Unidos; o movimento anti-manicomial se expandiu; e a compreenso das
deficincias fsicas e mentais exigiu uma reconfigurao dos saberes, das
instituies e, mais recentemente, a adaptao do espao pblico s suas necessidades.
Ao menos inicialmente, as demandas dos movimentos sociais que
protagonizaram as revoltas da dcada de 1960 fizeram eco na esfera acadmica em
uma chave identitria. Feministas pesquisavam em nome das mulheres, gays e
lsbicas comearam a investigar as experincias homossexuais e os tnico-raciais o de
negros, outros grupos racializados, imigrantes etc. De forma geral, aqueles que por
tanto tempo haviam sido objeto de estudo passaram a ser sujeitos do conhecimento
em uma inflexo histrica to profunda quanto ainda pouco reconhecida tampouco
suficientemente estudada em seus efeitos democratizantes na esfera cientfica.
A partir da dcada de 1980, alguns/mas pesquisadorxs dessas linhas
emergentes de investigao comearam a problematizar a compreensvel tendncia
inicial de essencializar identidades. Os estudos feministas passaram a discutir o
conceito de gnero (Scott, 1989) e, at mesmo, se o sujeito do feminismo seria mesmo
a mulher (Butler, 1990). Na esfera das pesquisas sobre sexualidade, por sua vez, a
tendncia de compreender homossexuais como minoria comeou a ser questionada
por abordagens influenciadas pelo que se convencionou denominar de ps-
estruturalismo, em especial a obra de Derrida e Foucault. Emergia a corrente de
estudos que hoje chamamos de Teoria Queer, criada predominantemente por
pesquisadorxs que no pertenciam aos estudos gays e lsbicos, tinham um dilogo
maior com o feminismo e estavam alocadxs no nas cincias sociais, mas nas
humanidades.4
De forma muito geral, os estudos queer passam a questionar a premissa de que
a heterossexualidade seria a ordem natural do sexo evidenciando seu carter
compulsrio por meio da pesquisa e anlise das relaes de poder que a instituem
como hegemnica. Assim, diferenciaram-se dos estudos minoritrios que tendiam a
4 Na esfera acadmica anglo-sax, as cincias sociais no esto na mesma diviso das humanidades(filosofia, histria, literatura, estudos culturais).
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reproduzir o modelo essencializante dos estudos tnico-raciais na forma de pesquisas
sobre homossexuais. Na perspectiva queer, a prpria hegemonia heterossexual
objeto de investigao e anlise crtica assim como a maneira como ela passa a
moldar, na forma da heteronormatividade, as homossexualidades mais convencionais.
Alm disso, a Teoria Queer tambm passou a expandir a compreenso das
homossexualidades para alm das identidades gays e lsbicas trazendo cena as
transexualidades, a intersexualidade e mesmo as sexualidades que borram a fronteira
sempre provisria e mutante entre hetero e homossexualidade. Esse feito teve um
duplo e contraditrio efeito: ao mesmo tempo que permitiu um olhar desafiador ao
enquadramento binrio da sexualidade (hetero/homo) e dos gneros
(masculino/feminino) gerou uma expanso dos estudos identitrios para alm de gays
e lsbicas, em especial os voltados para as transexualidades, retomando o carter
minoritrio e possivelmente essencializante que marcou a emergncia das pesquisas
sobre homossexuais na dcada de 1970.
A despeito das divergncias entre eles (e mesmo dentro de cada um), os
saberes insurgentes contriburam para uma mudana no eixo das anlises sobre
desigualdades, em especial nas cincias sociais. Assim, por exemplo, a agenda de
pesquisa que lidava com relaes tnico-raciais a partir de uma perspectiva que
focava na incluso dos negros, em especial no mercado de trabalho, passou a ser
tensionada por outra, a da experincia da racializao e do racismo que criou a prpria
sociedade na qual esses estudos aventavam as razes para a sua excluso. A que
buscava compreender como viviam homossexuais passou a ser tensionada pela
demanda de problematizar a heterossexualidade no como uma forma natural ou
predominante socialmente, antes como o resultado de processos sociais compulsrios
e relaes de poder que subordinam, invisibilizam e recusam a homossexualidade.
possvel compreender os saberes que se insurgiram no tero final do sculo
XX como saberes das diferenas, um conjunto heterogneo de pesquisas, teorias e
conceitos que colocaram em xeque o que a teoria social hegemnica compreendia
como seu campo/objeto de estudo: a sociedade e a cultura. Eixos de desigualdade que
desafiavam a moral corrente e iam muito alm do da desigualdade econmica e de
classe ganharam, de forma progressiva, e no sem muita luta acadmico-poltica,
maior relevncia nas investigaes sociais.
A seguir, focado na contribuio da Teoria Queer, buscarei explicitar como ela
tensionou a prpria forma de compreenso do social e da cultura sublinhando o papel
do desejo e da sexualidade no estabelecimento dos limites do (re)conhecvel, ao
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mesmo tempo que pode ser conhecido e o que digno de reconhecimento poltico.
O repdio do desejo homossexual funda a cultura hegemnica
Michel Foucault interpelou o foco das cincias sociais por meio das sombras e
dos marginalizados elegendo como objeto de estudo temas como a loucura, a
violncia e a sexualidade, mas foi Judith Butler (2004) quem evidenciou os limites do
conhecimento feito dentro da esfera disciplinar. Refiro-me aqui maneira como sua
obra tem enfatizado o exterior constitutivo das pesquisas sociais, a esfera dos
subalternizadxs ou, para ser mais claro, a da abjeo.
Abjeo, no por acaso, um dos termos mais usados por tericxs queer.
Originrio da psicanlise, foi transferido para a anlise social por feministas como
Julia Kristeva e pela antroploga Mary Douglas. A abjeo designa aquilo que causa
horror ou repulsa como se fosse poluidor e impuro a ponto do contato com aquilo ser
temido como contaminador e/ou nauseante. O abjeto simboliza, ao mesmo tempo,
perigo e poder, pois pode abalar concepes estabelecidas, ameaar a ordem, da
coletividades unidas em concepes imaginrias sobre si mesmas buscarem segrega-
lo em busca de proteo, leia-se da manuteno do status quo (Douglas, 2010, p.153).
A Teoria Queer sublinha que o desejo fora da norma heterossexual uma das
expresses do que perturba a ordem social, a qual passou a denominar de
heteronormativa no apenas por pressupor a heterossexualidade e o desejo por
pessoas do sexo oposto, mas tambm por estabelecer a heterossexualidade como
padro, inclusive, para aquelxs que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Tudo
o que foge norma reconhecido como abjeto, recusado e frequentemente
forcludo como fora dos limites do (re)conhecvel, quer como objeto de conhecimento
quer como digno de respeitabilidade moral e jurdica.
Kristeva, em Pouvoir de lhorreur (1982), sublinha a relao entre abjeto e
obsceno, ou seja, entre o abjeto e o que uma sociedade prefere manter fora de cena, o
que o olhar hegemnico busca manter invisvel. Judith Butler foi ainda mais longe ao
evidenciar que:O que permanece impensvel e indizvel nos termos de uma forma culturalexistente no necessariamente o que excludo da matriz de inteligibilidadepresente no interior dessa forma; ao contrrio, o marginalizado, e no o excludo, que a possibilidade causadora de medo ou, no mnimo, da perda de sanes. (...) Oimpensvel est assim plenamente dentro da cultura, mas plenamente excludo dacultura dominante. (2003, p.116-117, grifo da autora)
Em outras palavras, o impensvel apenas o saber marginalizado, excludo
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da cultura dominante, mas plenamente realizvel. Voltando definio de Foucault,
possvel afirmar que saberes crticos, contra-disciplinares, comprometidos com os
marginalizados sociais eram subalternizados pelo saber hegemnico. At que as
condies sociais e histricas permitiram que se insurgissem e disputassem a
autoridade que mantinha o monoplio do saber sobre a alteridade nas mos de
estabelecidos sociais.
Antes da insurgncia dos saberes sujeitados vigoravam limites inquestionveis
para o pensvel. Era como se o social fosse o que as teorias sociais definiam, espaos-
temas vinculados a especialidades profissionais e do saber, mas que hoje sabemos
tambm formavam uma diviso do trabalho vinculada a uma moral hegemnica,
concepes de mundo e, sobretudo, a uma autoridade para pesquisar/saber. A disputa
comeou h dcadas e vale lembrar como o ento emergente movimento homossexual
desafiou frontalmente o saber psiquitrico no incio da dcada de 1970, fato sem o
qual a homossexualidade no teria sido retirada do manual de diagnstico de doenas
mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM).
Entre 1970 e 1973, ativistas gays, alguns deles tambm psiquiatras,
manifestaram-se durante os encontros anuais da Sociedade Americana de Psiquiatria
at que, no terceiro ano, um acordo foi alcanado: a homossexualidade deixava
imediatamente de ser considerada uma doena mental (Greenberg, 2010, p.35). O que
se passou foi um tour de force em que o aspecto poltico das definies cientficas
sobre normalidade e desvio foi evidenciado e dobrado.
Quando gays e lsbicas encontraram condies acadmicas para pesquisar as
homossexualidades, compreensivelmente, o primeiro passo que deram foi no sentido
de tomar para si o que j fora objeto de estudo de heterossexuais, frequentemente de
forma preconceituosa e/ou patologizante. Esse movimento importante, no entanto,
constituiu a esfera de estudos gays e lsbicos como pesquisa de minorias, algo
comum no contexto racializado de sociedades como a norte-americana. De certa
forma, a compreenso da homossexualidade na academia seguia o emergente
movimento social ao adotar o modelo tnico-racial predominante historicamente nos
Estados Unidos.
O modelo de compreenso das sexualidades deu um salto ao passar do padro
que fazia da homossexualidade um desvio para o que a reconhecia como uma
orientao diversa do desejo. De qualquer maneira, ao focar apenas nas
homossexualidades, os estudos gays e lsbicos tenderam a manter a
heterossexualidade em uma zona de conforto e pressuposto para quase toda a teoria
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social. Foi apenas na dcada de 1980, em meio ao pnico sexual da aids5, que
pesquisas que mais tarde ganhariam o rtulo de Teoria Queer comearam a desafiar
esse pressuposto.
Esses estudos comearam a surgir em diversos pases, ainda que com maior
reconhecimento e disseminao a partir do poderoso contexto acadmico norte-
americano. A despeito das diferenas nacionais, a epidemia gerou um reconhecido
pnico sexual global que foi analisado por diferentes pesquisadorxs. Em comum, elxs
sublinhavam como a homossexualidade um fantasma para a vida social
(sintomaticamente compreendida como sinnimo de heterossexualidade). Essas
anlises dissidentes em relao aos estudos de minorias viam neles um contra-
discurso enredado apenas na defesa das homossexualidades, ao invs de uma
postura de problematizar a hegemonia heterossexual e os intuitos normalizantes que
faziam da aids um verdadeiro dispositivo (Perlongher, 1987; Pelcio e Miskolci,
2009).
So essas dissidncias polticas e acadmicas que emergiram em meio ao
pnico sexual da aids, em diversos pases, e que deram origem ao que hoje
compreendemos como Teoria Queer. Com isso em mente, uma reflexo histrica e
social sobre sua origem e expanso convida a questionar a narrativa dominante que a
aloca apenas nos Estados Unidos. Tal perspectiva tem uma dupla vantagem, poltica e
epistmica, ela estende a genealogia queer para outras paragens
ampliando/modificando o que se compreende como Teoria Queer no contexto norte-
americano e, ao mesmo tempo, quebrando o monoplio sobre uma corrente terica e
de estudos que, desde o princpio, surgiu a partir de fluxos internacionais e de uma
problemtica global.6
possvel compreender Teoria Queer como um termo aberto, usado
inicialmente nos Estados Unidos, diga-se de passagem por uma italiana, Teresa De
Lauretis, para apontar um olhar crtico e contra-normalizador que seria um
denominador comum de uma vasta e diversa produo acadmica que emergira em
meio ao pnico sexual da aids, na segunda metade dos anos oitenta, e j se
consolidava na dcada seguinte.
O pnico sexual marcou empreendimentos intelectuais similares em diversas
5 Propositalmente escrevo aids em minsculas como recusa poltica de transformar a designao deuma doena, portanto um substantivo, em uma sigla cuja redao em maisculas colaborou para criarum pnico sexual.6 H cerca de uma dcada j, nos Estados Unidos, a Queer of Color Critique vem questionando ocarter branco e de classe-mdia das anlises que primeiro receberam reconhecimento como TeoriaQueer. H, inclusive, uma rediscusso da genealogia queer que busca reconhecer como uma de suascriadoras a feminista chicana Gloria Anzalda (cf. Ochoa, 2011).
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partes do mundo assim como as mesmas fontes foram articuladas em diferentes
contextos nacionais para fazer frente onda moral conservadora que ganhava fora
contra o legado da Revoluo Sexual das dcadas de sessenta e setenta. No foi
apenas nos EUA que pensadores/as da esfera dos estudos de gnero e sexualidade
associaram Deleuze, Derrida, Foucault e Hocquenghem, Kristeva, Wittig, entre
outrxs, para criar um contra-discurso politicamente engajado em enfrentar o pnico
sexual que repatologizava a homossexualidade como perigo epidemiolgico
(Pelcio e Miskolci, 2009).
Na Amrica Latina, Nstor Perlongher foi uma das primeiras vozes queer, e
sua obra uma contribuio a ser reconhecida em termos mundiais (Miskolci e Pelcio,
2008). De origem operria na periferia de Buenos Aires, Perlongher formou-se na
Universidade de Buenos Aires e se envolveu em lutas anarquistas criticando o
machismo reinante na esquerda argentina e pleiteando um dilogo com o feminismo.
Fortemente influenciado por leituras filosficas e psicanalticas francesas e tambm
pela sociologia do desvio norte-americana, ao mudar para o Brasil encontrou
acolhimento para desenvolver suas pesquisas. Seu pensamento se desenvolveu em
trnsito, literalmente, entre a Argentina e o Brasil, entre o espanhol e o portugus, o
que resultou muitas vezes em um uso estratgico do portunhol, da tradio
humanista e poltica argentina vinculada s cincias sociais brasileiras, em suma, em
um pensamento transnacional e fronteirio que lembra, em sua singularidade-
diferena, o de Gloria Anzalda.
Seu livro O que aids (1987) um marco na forma de compreenso poltica
da sexualidade, de maneira que a homossexualidade nele no mais vista como
questo minoritria, antes como parte de uma ordem social assentada sobre o
agenciamento do desejo para formas socialmente reconhecidas e coletivamente
esperadas. Nisso reside o parentesco de suas ideias com outras manifestaes
emergentes que foram mais rapidamente reconhecidas e chamadas de queer.7
O pnico sexual da aids fez da homossexualidade um eixo de diferenas que
evocavam fantasmas do mundo ocidental em relao a seu declnio, em particular
associando doentes com imigrantes negros e elegendo antigas regies colonizadas
como frica e/ou Haiti como pontos de origem da epidemia. Depois da histrica
associao da homossexualidade com doena mental (1870-1973) e do breve perodo
7 A leitura dominante de sua obra costuma priorizar O negcio do mich (1987; 2008), livro queresultou de sua dissertao de mestrado, em especial a primeira parte dele, mais convencional ecentrada na etnografia feita de forma cartogrfica deixando em segundo plano , ou at ignorando, aforma iconoclasta como na parte final ele a refaz incorporando fontes da filosofia e dapsicanlise.
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de despsiquiatrizao (1973-1981), emergia um novo paradigma patologizante que a
tornava um problema epidemiolgico. Se antes era um problema social vinculado a
um desvio individual, agora passa a ser reconhecida como uma ameaa vida social
em uma inflexo to poderosa quanto ainda no superada.
O pnico sexual da aids evidenciou como o vnculo social se assentava na
heterossexualidade compreendida como o elo originrio e fundamento da vida
coletiva. Tal percepo crtica no era nova, pois na esteira das revoltas homossexuais
de fins da dcada de 1960 e incio da dcada seguinte haviam surgido obras como O
desejo homossexual (1972) de Guy Hocquenghem. Segundo o intelectual e ativista
francs: A atitude do que se convencionou chamar de a sociedade , sob este ponto
de vista, paranoica: sofre de um delrio de interpretao que a leva a captar, em toda a
parte, indcios de uma conspirao homossexual contra seu bom funcionamento.
(2009, p.27). Diagnstico recuperado por Gayle Rubin em seu artigo escrito em meio
ao auge da epidemia de aids, Pensando sobre Sexo (1984), no qual incorpora a
teoria sociolgica dos pnicos morais para estudar uma de suas manifestaes
especficas: os pnicos sexuais.
Quase uma dcada antes, Rubin, em seu clssico artigo A troca de mulheres:
notas para uma economia poltica do sexo (1975), demonstrara analiticamente como a
teoria antropolgica de Lvy-Strauss e sua nfase no tabu do incesto como ponto
originrio da cultura forclua a proibio anterior e primria da homossexualidade.
Assim, evidenciava como as teorias sociais se assentavam em uma ontologia do social
e da cultura validada pela recusa/proibio do desejo por pessoas do mesmo sexo. O
mesmo se passava na psicanlise, algo analisado em O Anti-dipo: capitalismo e
esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Joan W. Scott, por sua vez,
menciona que tambm na sociologia, na qual desde a concepo de solidariedade de
Durkheim o pressuposto da heterossexualidade como elo do social j se evidenciava.
O que a sociedade temia na aids era mais do que um vrus ou uma doena, era
a prpria homossexualidade. O desejo por pessoas do mesmo sexo passou a ser
encarado como ameaa sobrevivncia da cultura, o prprio abjeto e obsceno mais
temido e cujo horror passou a ser reconhecido nas faces macilentas das vtimas do
hiv. Referindo-se diretamente ao pnico sexual ou escrevendo sob seu contexto,
autorxs diversxs contriburam para criar o que compreendemos hoje como Teoria
Queer no apenas trazendo cena o obsceno/abjeto, mas, sobretudo, porque
analisaram relaes de poder que o tornavam a moldura do (re)conhecido como a
sociedade ou a cultura.
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Historicamente, a sociologia se refere sociedade como o conjunto de
relaes ou fatos sociais que investiga. Formas muito diversas e divergentes de
compreender a ontologia do social a que se refere como sociedade so alocadas na
disciplina, desde as que enfatizam o conflito, as funcionalistas, as interacionistas, as
mistas etc. O mesmo se passa com a antropologia, cujo conceito de cultura,
originariamente derivado da concepo de raa do perodo colonial, foi sendo
modificado por diferentes vertentes dentro da prpria disciplina (como o
difusionismo, o evolucionismo, o materialismo, o estruturalismo, o ps-estruturalismo
etc), mas que de forma geral pode ser descrita como modo de vida ou sistema de
significados.
Os saberes insurgentes desde fins da dcada de 1960, ao focar em eixos de
diferenciao subalternizados, operam com uma concepo de sociedade/cultura que
prioriza sua articulao constitutiva com o poder e a representao priorizando a
compreenso e interveno polticas no presente. Suas abordagens, desde os Estudos
Culturais britnicos at suas vertentes mais atuais, dialogaram criticamente com a
teoria social cannica reconhecendo seus feitos, mas sem deixar de apontar e buscar
superar suas limitaes. justamente nesse papel crtico e reavaliador que reside sua
principal contribuio para o pensamento crtico atual.
A partir do exposto, o que significa hoje, no Brasil, pesquisar de forma
comprometida com essa perspectiva crtica e politicamente engajada? Na parte final
deste artigo discutirei preliminarmente como criamos saber em uma fronteira
tensionada pela manuteno de uma geopoltica do conhecimento que tenta nos alocar
na posio de meros aplicadores de teoria do Norte a casos do Sul e, internamente,
sob a presso institucional de nos disciplinarizarmos.
Ao Sul da Teoria e sob a presso das disciplinas
Por que ainda se pensa a Teoria Queer como uma corrente de pesquisas
originria nos Estados Unidos? Qual a razo para a contnua referncia entre ns
brasileirxs aos/s autorxs do Norte como quem nos explicaria? Por que ao invs do
dilogo crtico e criativo, adaptado nossa realidade, ainda vigora uma tendncia
incorporao de temas, conceitos e teorias alheios aos nossos contextos particulares?88 Felizmente essa tendncia no geral e contamos com pesquisas que se contrapem a ela. Para umexcelente exemplar de um estudo queer brasileiro feito sem subservincia s fontes estrangeirasconsulte o artigo Queer nos Trpicos (2012), de Pedro Paulo Gomes Pereira. Desde sua tese dedoutorado, de 2004, Pereira vem pesquisando em dilogo crtico com fontes queer e, maisrecentemente, tem repensado luz das experincias brasileiras as noes de sujeito e corporalidadeem autorxs como Butler e Preciado.
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No tenho respostas cabais a essas questes, mas posso aproximar-me delas por meio
de uma reflexo sobre geopoltica do conhecimento ou, em termos mais crticos, de
um ensaio de uma economia-poltica do saber. A proposta identificar algumas das
razes econmicas e polticas responsveis pela compreenso dominante dos estudos
queer como mera aplicao nacional da teoria inventada no Norte.
Ao propor uma economia-poltica do conhecimento busco destacar que to
importante quanto o poderio econmico e poltico dos pases centrais seu quase
monoplio na definio e circulao das formas de conhecimento autorizadas e
reconhecidas como cincia e tecnologia. Connell destaca o corte Norte-Sul nesta
diviso desigual, associando o Norte aos polos produtores de cincia euro-norte-
americanos e o Sul, relegado ao consumo ou aplicao dos modelos tericos,
equivaleria Amrica Latina, frica, sia e Oceania. Trata-se de uma diviso
geopoltica compreensvel, mas que no d conta de outra que considero fundamental
e complementar a esta, a diviso entre saberes construdos e disseminados a partir das
demandas e interesses das classes ou grupos sociais dominantes e aqueles criados por
baixo, a partir de demandas vindas daqueles e daquelas cuja existncia social carece
de condies materiais, mas tambm de reconhecimento cultural e jurdico.
At mesmo nas melhores expresses de pesquisa e teoria feitas no Sul,
aspectos de classe, raa-etnia, gnero, sexualidade e nacionalidade raramente foram
explorados priorizando os interesses das classes subalternizadas, em especial daquelxs
cuja existncia carece do reconhecimento fundamental de sua humanidade, pessoas
marcadas desde cedo pela injria e outras formas de violncia que tornam suas vidas
quase pura e simplesmente inabitveis. plausvel que tenha sido esse eixo em
comum entre experincias vividas na abjeo que tenha criado fluxos entre a Teoria
Queer vinda do Norte com nossas criadas aqui no Sul. Trata-se de intercmbio
importante e enriquecedor, mas que no podemos negar tem sido uma via de mo
nica.
Ainda que muitos chamem os saberes insurgentes de estudos, como Estudos
Culturais e Estudos Feministas, seu reconhecimento se d enquanto teoria social.
Ainda que indisciplinados, so saberes demandados e reconhecidos dentro da
linguagem da teoria. Fato notrio no caso dos estudos frequentemente chamados de
Teoria Queer, denominao que inicialmente ironizava a autoridade e o poder
explicativo do terico associando-o a uma injria, um palavro. Quando o termo
teoria passa a ser reconhecido de forma convencional e visto como uma sntese de
conceitos aplicveis a outros contextos ento tende a fazer com que estes saberes, que
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atentam para desigualdades internas s sociedades mais diversas tendam a reproduzir,
em termos de circulao intelectual, o velho imperialismo das teorias do Norte em
relao aos estudos empreendidos no Sul Global.9
A definio do que o Ocidente ainda marca, como pressuposto, o
reconhecimento e a autoridade do conhecimento produzido no Norte do globo em
detrimento do que feito no resto do mundo. A linha histrica que levou das cincias
s disciplinas e, mais recentemente, emergncia dos saberes, no foi suficiente para
alterar esta configurao de poder e os fluxos entre reas consideradas produtoras e
consumidoras de conhecimento. O conhecimento do Norte/Centro/Ocidente, mesmo o
mais crtico e a partir de demandas de baixo, ainda tende a ser reconhecido como
teoria enquanto o do sul tende a ser ignorado, impedido de dialogar, antes alocado na
posio de interlocutor silencioso/invisvel do monlogo terico euro-americano.
No se trata de mera imposio das teorias e conceitos ao Sul, mas de uma
poderosa hegemonia poltica, econmica e cientfica que d visibilidade e privilegia o
que criado nos Estados Unidos e na Europa relegando o que feito no Sul a fontes
etnogrficas ou estudos de caso e, por isso mesmo, pouco afeitos sua disseminao
nos circuitos acadmicos hegemnicos, em especial nas publicaes especializadas.
Vale lembrar que as mais poderosas s publicam em ingls e, a despeito de serem
chamadas de internacionais, tm suas sedes, pareceristas e comits fincados nos
pases centrais e suas redes de produo de conhecimento.
No basta apenas reconhecer a existncia dessa hegemonia ou articular um
discurso de rplica ou defesa do Sul, antes analisar como ela se constitui, inclusive,
com o apoio dos que so subalternizados. Desde Orientalismo (1978), de Edward W.
Said, sabemos que interrogar o local supostamente neutro a partir do qual se criaram
as cincias e o modelo euro-americano de sociedade exige elucidar a maquinaria de
produo de saber sobre os Outros, os objetos de conhecimento, particularmente os
construdos por esses saberes autorizados como no-ocidentais. Forte crtica s
cincias sociais e humanas criadas a partir do centro e que no as exime nem mesmo
por suas supostas boas intenes presentes.
Gayatri Spivak (2010), no final da dcada de 1980, fez aquela que talvez seja a
questo mais espinhosa: qual o papel dos intelectuais (ocidentais ou no) na relao
9 No por acaso, alguns tm optado pelo uso do termo estudos queer para se referirem vasta e diversaproduo criada em uma perspectiva atenta aos processos normalizadores, em especial na esfera dasexualidade. O termo estudos evita o carter sistematizador da tradicional teoria, o que no significao abandono da compreenso dos fenmenos estudados, antes a recusa de serem tomados comomodelares, portadores de conceitos e/ou teorias que poderiam ser aplicados sem respeitar osdiferentes contextos e a proliferao de diferenas com as quais parecem estar comprometidos(committed).
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com os socialmente subalternizados? Sua crtica a Foucault e Deleuze busca sintetizar
os limites de um conhecimento crtico fincado na realidade euro-americana e mostra
que, na maior parte do mundo, os subalternizados no podem falar, e a posio social
dos intelectuais exige que eles estejam atentos s condies econmicas e polticas
desiguais, mas tambm como a produo e circulao do conhecimento se articula a
elas consolidando-as. Um saber feito a partir do que se convencionou chamar de
Ocidente ou simplesmente a partir de seus valores e conceitos ignora ou minora
fenmenos como maneiras diversas e at desesperadas, como no caso dos suicdios
de mulheres na ndia de demanda de reconhecimento poltico.
Spivak alerta que o descentramento do sujeito do conhecimento no
completo sem seu descentramento geopoltico. Segundo sua anlise, a teoria crtica
ps-estruturalista ocidental pode servir manuteno de um olhar do centro sobre o
resto do mundo em meio a um momento histrico em que isto pode ser contestado e
modificado. Crtica tambm feita pela vertente descolonial latino-americana, a qual
analisou criticamente a prpria insero dos ps-coloniais vindos da sia em uma
esfera acadmica anglicizada que ressalta as relaes do Ocidente com sua rea de
origem sem dar conta de outras relaes constitudas, por exemplo, com a Amrica
Latina e a frica.
Pensadores descolonias como Anbal Quijano, Walter D. Mignolo e Ramn
Grosfoguel buscam visibilizar a herana histrica e as particularidades de culturas
criadas por outros colonialismos, como o espanhol e portugus, assim como sua
posio no mundo os faz sublinhar que o espao lingustico ingls constitutivo dos
fluxos de produo e circulao de saber hegemnicos. Esta singularidade latino-
americana tambm problematiza o Sul Global de analistas como Connell, no qual
insere a Austrlia, por exemplo, um pas cuja histria de colonizao tambm tem
como referente a Inglaterra, e cuja rea acadmica tem insero privilegiada em
termos internacionais quando vista pelos olhos de ns, sul-americanos.
Um mapeamento das relaes entre centros produtores e consumidores de
conhecimento sobre o social mostra que o corte Norte-Sul muito impreciso j que
muitos pases perifricos academicamente encontram-se no Norte, caso do Japo, e h
excees no Sul, como a Austrlia. Como afirma Larissa Pelcio: as fronteiras
traadas entre Norte e Sul so mais porosas e penetrveis do que nos fizeram crer.
Centros sempre tiveram suas periferias, e as periferias, por sua vez, sempre tiveram
seus centros. (2012, p. 412). O que faz pensar na prpria posio do Brasil no atual
contexto das trocas intelectuais desde que passou a ganhar visibilidade na arena
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poltica e econmica internacional.10
A compreenso destes fluxos e hierarquias da produo e circulao do
conhecimento pode ser menos dependente de uma geografia fsica e mais delimitada
como resultado das desigualdades econmicas e polticas que permitiram chamar os
pases imperialistas de Ocidente e suas ex-colnias de no-Ocidentais. A diviso
geopoltica se replica em outras como a famosa oposio modernidade e tradio, na
qual vigora alocaes temporais, presente e passado, ou seja, dentro da qual sempre
ocupamos o espao/tempo do atraso.
Apesar das limitaes, a diviso entre Ocidente (West) e Resto (Rest) apontada
pelos ps-coloniais ainda parece capaz de fornecer elementos para compreender a
economia-poltica do conhecimento, mesmo porque ressalta as origens coloniais e
imperiais da configurao do conhecimento. De qualquer forma, precisa ser
expandida para incluir um Rest cuja experincia histrica e cultural do colonialismo
distinta das ex-colnias britnicas, em particular a Amrica Latina.
Os binarismos dos cortes Norte-Sul, Centro-Perifeira, West/Rest so simplistas
tambm porque nem todo conhecimento produzido no Norte-Centro-Ocidente
benfico aos seus interesses interna ou externamente assim como apenas parte da
produo do Sul-Periferia-No-Ocidental contesta ou mantm um dilogo crtico com
os interesses hegemnicos locais ou internacionais. H, portanto, um vnculo poltico
anterior ao geopoltico, que delimita os comprometimentos ou compromissos das
pesquisas. esse vnculo que fez com que ns, brasileir@s, passssemos a ler nossos
colegas queer do Norte com tanto interesse na ltima dcada. E a falta dele que nos
mantm quase ignorados por l.11
Nossa recepo e reinveno do saber queer, no entanto, se deu dentro de ao
menos dois enquadramentos problemticos. O primeiro a mencionada tendncia de
incorporao da teoria do Norte sem a devida crtica ao imperialismo da troca ou da
recepo colonizada. Nos termos de Larissa Pelcio (2012, p. 412-413):
Na geografia anatomizada do mundo, ns nos referimos muitas vezes ao nosso lugarde origem como sendo cu do mundo, ou a fomos sistematicamente localizando
10 H diversos fatos que nos fazem pensar em como nosso pas tem se deslocado da periferia para ocentro ou, ao menos, para uma posio internacional menos marginal na produo e disseminao doconhecimento cientfico. No foi por mero acaso, por exemplo, que o congresso internacional QueeringParadigms IV, o primeiro fora do universo acadmico anglo-saxo, teve lugar no Brasil. Nossaproduo na rea inovadora e, sobretudo, a esfera acadmica nacional passou por uma grandeampliao na ltima dcada tanto na contratao de novos profissionais como no aumento das verbaspara pesquisa, revistas cientficas e projetos de cooperao internacional. So fatos diretamentearticulados a um projeto de insero do Brasil na arena econmica e poltica internacional. 11 Uma das possveis solues para modificar esse cenrio a criao de projetos de pesquisacolaborativos nos quais o dilogo e as trocas sejam incentivados em uma via de mo-dupla.
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nesses confins perifricos e, de certa forma, acabamos reconhecendo essa geografiacomo legtima. E se o mundo tem cu porque tem tambm uma cabea. Uma cabeapensante, que fica acima, ao norte, como convm s cabeas. Essa metforamorfolgica desenha uma ordem poltica que assinala onde se produz conhecimento eonde se produz os espaos de experimentao daquelas teorias.
Diante do exposto, seriam vertentes disciplinares na rea de pesquisa em
sexualidade no Brasil capazes de representar uma alternativa ou resistncia atual
economia-poltica do conhecimento? Nos Estados Unidos, aqueles que j foram
saberes insurgentes e hoje em dia j se consolidam como correntes de pensamento
influentes conseguiram se institucionalizar formando departamentos prprios ou
encontrando acolhida nas humanidades. No Brasil, eles no constituram
departamentos, apenas alguns ncleos de pesquisa interdisciplinares, arranjo em que
pesquisadorxs permaneceram alocadxs nos departamentos tradicionais, o que explica
ao menos em parte a tenso entre uma identidade disciplinar/profissional e o
compromisso poltico.
O conhecimento cientfico disciplinar, por sua prpria histria institucional e
profissional, at hoje tendeu a corroborar as divises geopolticas mencionadas ou,
quando as questiona, ainda o faz em uma perspectiva fundada no corporativismo
profissional e no no compromisso poltico com os marginalizados sociais. Vale
lembrar os laos historicamente indissociveis entre disciplina e normalizao, entre
uma forma de produzir conhecimento e mecanismos de validao assentados em
bases como o culto de mitos fundadores, clssicos, associaes fechadas e
metodologias de pesquisa cuja importncia se deve menos sua eficcia analtica do
que na definio de uma diviso do trabalho, de quem autorizado a pesquisar e qual
produo ser considerada apta a circular e ser citada.
O pesquisador colombiano Eduardo Restrepo, buscando organizar de forma
sofisticada estes fluxos hegemnicos, se apropria criativamente do conceito de
sistema mundo de Wallerstein:O sistema mundo deve pensar-se no apenas nos registros mais bvios de uma ordemeconmica ou poltica mundial, mas que tambm passa por aspectos mais sutis comoas configuraes culturais ou, ampliando-o ao que nos interessa, a organizao decampos disciplinares ou transdisciplinares. A partir da perspectiva do sistema mundo,estes campos supem uma densa rede de relaes de fluxos e hierarquias, em quealguns estabelecimentos acadmicos de certos lugares do mundo se encontrammelhor posicionados que outros para definir os termos e as condies das discussesno interior de cada campo. (RESTREPO, 2012, p. 183)
Em outros termos, nesses fluxos hierarquizadores nos quais nos inserimos
para fazer pesquisa e dialogarmos. As desigualdades que denomino de econmico-
polticas marcam no apenas as relaes entre Norte e Sul, mas tambm as dentro de
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cada esfera cientfica que alguns no titubeiam em denominar de mercado acadmico.
Considero que no se trata exatamente de um mercado, mas um campo de atuao, as
disciplinas, em que a principal moeda o reconhecimento interno, esse bem escasso,
altamente disputado e injustamente distribudo.
nesse contexto que, alguns apegados formao profissional poderiam
afirmar que as disciplinas hoje so um rtulo profissionalizante sob o qual se alocam
formas as mais diversas e contraditrias de produzir conhecimento. Trata-se de uma
leitura internalista que prope uma reforma de suas respectivas disciplinas ao
invs de uma reconfigurao na produo do conhecimento que as abriria ao contato
com outras disciplinas e saberes sem o temor de dissolver suas fronteiras. Nesta linha
de contribuies crticas se inserem trabalhos recentes de talentosos socilogos como
Boaventura de Souza Santos e, em parte, tambm a j mencionada obra de Raewyn
Connell. Suas pesquisas e reflexes no temem a incorporao das contribuies
ps/descoloniais, feministas ou mesmo dos Estudos Culturais.
No caso de cientistas sociais dos antigos pases colonizados, alguns afirmam
que as disciplinas em que atuam podem ser apenas um espao comum para o que
Veena Das chama de comunidades de conversao ao afirmar que a antropologia, na
ndia e no Brasil, ao invs de uma disciplina, poderia ser compreendida como um
espao de criao de conhecimento a partir de realidades locais. Outros, como o
antroplogo colombiano Eduardo Restrepo, so mais crticos com relao ao poder da
antropologia em estabelecer os limites do que possvel pensar (2012, p. 43-44)
enfatizando os processos de normalizao e subjetivao envolvidos no aprendizado
profissional-disciplinar.12
Na perspectiva de Restrepo possvel pensar em formas diversas e
alternativas de produo de conhecimento, supra-disciplinrias e, sobretudo, mais
atentas s condies polticas em que elas se inserem, o que sublinha a partir de uma
reflexo de Nstor Garca Canclini: Para saber como conhecer melhor necessrio
conhecer melhor como nos organizamos para conhecer: como se interiorizam em ns
hbitos metodolgicos e estilos de investigao que consagram as instituies e os
dispositivos de reconhecimento. (1991, p. 62)
A configurao institucional interfere profundamente na agenda de pesquisa e
na constituio de redes acadmicas. A identificao disciplinar tende a fechar reas
de investigao e direcion-las aos interesses institucionais em detrimento da12 Sobre uma perspectiva crtica da antropologia na perspectiva dos estudos culturais consulte aprimeira parte do livro Antropologa y Estudios Culturales: disputas y confluncias desde la periferia(2012), de Eduardo Restrepo, a qual intitulada Hacia una antropologa crtica de la antropologapp.21-120.
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democratizao do campo de pesquisa, a incluso de perspectivas diversas e o
compromisso poltico. Solues mistas, como a de constituio de reas disciplinares
comprometidas com um dos saberes das diferenas, por exemplo, internamente marca
posio como linha de pesquisa, mas segrega pesquisadorxs de outras disciplinas e
reas, xs quais passam a ser vistxs como competidores na esfera acadmica. O
compromisso poltico com um saber crtico reduzido a uma especialidade seguindo
a lgica do mercado profissional e da reserva de mercado.
Em seu ensaio Can the Other of philosophy speak? (2004), Judith Butler
apresenta e discute sua experincia como criadora de obras sobre gnero e Teoria
Queer e como isso a distanciou de sua suposta especialidade acadmica. Segundo
ela, o interesse que guiou seus estudos foi tico e poltico, no profissional e
especializante, da sua atuao intelectual no seguir, tampouco reconhecer, as
fronteiras disciplinares ou departamentais. Coerente com o tema do livro que encerra,
Undoing Gender, o ensaio explora o compromisso tico-poltico de Butler que, ao
invs de a disciplinar em busca de reconhecimento entre outrxs filsofxs, a desfez
como filsofa de maneira que sua obra tornou-se felizmente impura graas ao
dilogo e as trocas com outros saberes.
No contexto disciplinar brasileiro, infelizmente, h uma tendncia de seleo
de autorxs, teorias e conceitos que buscam evitar o abalo de concepes estabelecidas
sobre a disciplina de atuao,13 quer sejam seus mitos de origem, clssicos e
mtodos de pesquisa, em suma, o conjunto simblico frequentemente acionado para
justificar a autoridade sobre um objeto ou rea de investigao. Da considerar que a
apropriao seletiva do que se convencionou chamar de Teoria Queer dentro de um
enquadramento estritamente disciplinar pode at ser encarada (ou defendida) como
uma tentativa de se contrapor economia-poltica do conhecimento criticada aqui,
mas seu resultado, dentro de nosso pas, o de priorizao do corporativismo e das
demandas institucionais em detrimento do compromisso poltico e da aliana com os
saberes das diferenas.
Os saberes vieram problematizar o pensamento disciplinar, so indisciplinados
no sentido de tensionarem a epistemologia e a ordem institucional que tendem a
normalizar as disciplinas, o que no significa, de forma alguma, que abram mo do
13 Vale mencionar o reducionismo que o termo disciplina traz j que no h homogeneidade tampoucoconsenso internacional sobre as fronteiras e os fundamentos delas. H variaes enormes entre o quecada realidade nacional define como a sociologia, a antropologia ou a cincia poltica. Talvez sejamelhor pensar em cada disciplina como uma comunidade imaginada localmente. Os grupos maispoderosos dentro de cada uma definem suas fronteiras por meio da seleo de quem pode participardela, o que envolve a direo de associaes, controle dos comits editoriais e de assessoramentoespecializado nos rgos de fomento.
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rigor analtico. Uma das caractersticas das melhores criaes feministas,
ps/descoloniais e queer sua anlise crtica, a qual muitas vezes supera o de
criaes feitas dentro de enquadramentos disciplinares. Esse olhar crtico, ao mesmo
tempo poltico e intelectualmente cuidadoso, tem reavaliado a produo acadmica
criticando os comprometimentos institucionais e as restries polticas em que foram
criados.14
Alguns feminismos da diferena, estudos descoloniais e queer formam um
bloco de saberes cujo comprometimento poltico e tico os torna incmodos para as
tradies disciplinares. O dilogo deles com as disciplinas profundamente crtico
no porque aspirem substitu-las, antes abalar seus pressupostos comprometidos com
uma ordem social historicamente construda pela negao ou administrao das
diferenas. Sua incorporao seletiva tende a ser domesticada de forma que suas
maiores contribuies so deixadas de fora, ignoradas ou desqualificadas. Uma
verdadeira incorporao dos saberes das diferenas inevitavelmente abalar as
fronteiras disciplinares incentivando o contato entre diversas reas do conhecimento o
que, por sua vez, vir a modificar suas epistemologias.
Refletir sobre os estudos queer como um dos saberes insurgentes que vieram
tensionar a produo de conhecimento disciplinar vinculada aos interesses acadmico-
profissionais uma maneira de compreender o que eles trouxeram de novo e
provocador, o que, sugiro nesse artigo, vai muito alm de novos conceitos ou teorias.
Da o carter normalizador de sua mera incorporao seletiva em pesquisas
disciplinares, as quais mantm seu compromisso preferencial com as instituies
estabelecidas e as redes de investigadorxs que lhes d suporte. O comprometimento
disciplinar com o social como esfera administrvel (de)limita sua atuao enquanto
as formas emergentes de compreenso-interveno na cultura se apoiam em um
compromisso poltico contra-disciplinar, de reavaliao da ordem que permanece
ou se reatualiza como centro gravitacional em torno do qual desde o sculo XIX
gravitam as teorias sociais hegemnicas.
dentro desse contexto pressionado, externamente por uma economia-poltica
do saber, quanto, internamente, por demandas disciplinarizadoras, que estamos
criando um saber queer no Brasil. No de se estranhar que a melhor acolhida a essas
reflexes se deem em contextos interdisciplinares e entre aqueles/as que, mesmo
tendo formao disciplinar ou alocados em departamentos especializados, se
reconhecem e priorizam o pensamento crtico e o compromisso poltico com os ainda
14 Vale relembrar o rigor intelectual e a coragem de colocar em xeque sua prpria formao disciplinarde feministas como as j mencionadas Gayle Rubin, Judith Butler e Joan W. Scott.
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subalternizados. desse eixo tico que surge sua produo e atuao. Trata-se de um
espao difcil de criao para algum que enfrenta as demandas disciplinares, mas
tambm profcuo e desafiante.
Talvez seja possvel definir nosso espao criativo como o do prprio
obsceno/abjeto brevemente analisado na parte anterior deste artigo: uma posio que
exige um trabalho crtico sobre as prprias condies em que criamos conhecimento.
Pesquisamos nessa condio de alteridade interna a uma disciplina ou especialidade
criando ideias que incomodam por sua impureza. Segundo Mary Douglas, em Purity
and Danger: an analysis of the concept of pollution and taboo, o abjeto , antes de
tudo, o que incomoda a ordem, coloca em xeque sua aspirao pureza e, portanto, a
ameaa com os contatos e as trocas, por isso possvel compreender um saber queer
como o que problematiza tanto a economia-poltica do conhecimento vigente quanto
as presses disciplinadoras. entre e contra essas foras hierarquizantes e
normalizadoras que o queer encontra a sua prpria necessidade de florescer, resistir e
se insurgir.
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