UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS
Curso de Graduação em Farmácia-Bioquímica
Autismo no Brasil: Análise dos tratamentos farmacológicos disponíveis e novas perspectivas
Rafaela Sanchez Damiani
Trabalho de Conclusão do Curso de
Farmácia-Bioquímica da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas da Universidade de
São Paulo.
Orientador(a):
Profa. Dra. Lígia Ferreira Gomes
Co-orientador(a):
Profa. Mira Wajntal, MSc
São Paulo
2020
LISTA DE ABREVIATURAS
ABA Applied Behavioral Analysis
ADTs Antidepressivos tricíclicos
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CAPSI Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil
CDB Canabidiol
CERSAMI Centro de Referência à Saúde Mental Infantojuvenil
CID Classificação Internacional de Doenças
CSA Comunicação Suplementar e Alternativa
DA Dopamina
DSM Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
EAs Eventos Adversos
ECs Sistema endocanabinóide
FDA Food and Drug Administration
5-HT Serotonina
IRSN Inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina
IRSs Inibidores da recaptação de serotonina
NAICAP Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica
NE Norepinefrina
OMS Organização Mundial de Saúde
PDDs Transtornos invasivos do desenvolvimento
RUPP Research Units in Pediatric Psychopharmacology
TDAH Transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
TEA Transtorno do Espectro Autista
TEACCH Treatment and education of Autistic and Related
THC Tetra-hidrocanabinol
TOC Transtorno obsessivo compulsivo
RESUMO
DAMIANI, R.S. Autismo no Brasil: análise dos tratamentos farmacológicos disponíveis e novas perspectivas. 2020. no. 37fl. Trabalho de Conclusão de
Curso de Farmácia-Bioquímica – Faculdade de Ciências Farmacêuticas –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020.
Palavras chaves: Autism Spectrum Disorder (Transtorno do Espectro Autista);
Drug Therapy (terapia farmacológica); Molecular Mechanisms of
Pharmacological Action (mecanismos moleculares de ação farmacológica); Non
pharmacologic therapy (terapia não farmacológica); autism AND evolution
International Classification of Diseases (autismo e evolução das classificações
internacionais); Autism AND multidisciplinary intervention (autismo e trabalho
multiprofissional).
O tratamento do Transtorno do Espectro Autista é complexo e multidisciplinar, incluindo abordagens farmacológicas e não-farmacológicas. O objetivo desta pesquisa foi analisar as terapias farmacológicas atualmente disponíveis na prática clínica, bem como novas terapias consideradas promissoras. Devido a controvérsias a respeito do tratamento farmacológico da TEA e à falta de evidências, torna-se complexo definir qual abordagem é mais apropriada e benéfica ao paciente. Atualmente a conduta terapêutica para TEA é definida com base na sua eficácia relativa a sintomas e manifestações do transtorno, nenhuma terapêutica é dirigida à etiologia ou aos mecanismos da doença, que também não é passível de prevenção, apesar do sucesso de intervenções a tempo, com abordagem interdisciplinar e dirigida à primeira infância. Este trabalho de pesquisa bibliográfica se propôs a avaliar os fármacos aprovados para TEA, bem como, a grande variedade de fármacos com potencial farmacológico para a redução de sintomatologia associada ao TEA utilizados na prática clínica sem comprovação científica (off-label) e discutir temáticas importantes como benefícios vs. riscos, EAs, diagnóstico precoce, medicalização e importância do trabalho multiprofissional.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 5 2 OBJETIVO (S) 9 3 MATERIAIS E MÉTODOS 9 3.1 Aspectos éticos 9 3.1.1.1 RESULTADOS 9 3.2 Importância do trabalho multidisciplinar 9
3.2.1 ABA 11 3.2.2 TEACCH 11 3.2.3 Integração Social 12 3.2.4 CSA 12 3.2.5 Tratamento Clínico de base psicanalítica 12
3.3 Conceito de medicalização e TEA 12 3.4 Abordagem psicofarmacológica 13
3.4.1 Antipsicóticos típicos e atípicos 16 3.4.2 Uso off label18
3.4.2.1 Antidepressivos 19 3.4.2.2 ISRS 19 3.4.2.3 IRSN 19 3.4.2.4 ADTs 19 1. 4.3.2.5 Antiepiléticos e anticonvulsionantes 20 2. 4.3.2.6 Antagonista de receptor de glutamato 20 3. 4.3.2.7 Inibidores de Colinesterase 20 4.3.2.8 Psicoestimulantes 21 4.3.2.9 Agonista de receptor alfa adrenérgico 21 4.3.2.10 Antagonista de opioides 22 4.3.2.11 Mediadores do SNC 22
4.3.3 Riscos e EAs 22 4.3.4 Abordagens Psicofarmacológicas: Novas perspectivas 23
4.3.4.8 Estudo do TEA em nível molecular 24 4. 4.3.4.2 Uso de cannabis no tratamento de TEA 25 5 DISCUSSÃO 26 6 CONCLUSÃO (ÕES) 28 5. REFERÊNCIAS30
5
1 INTRODUÇÃO
Em meados de 1800, iniciou-se o interesse por problemas psiquiátricos em
crianças (VOLKMAR; JAMES, 2014), entretanto apenas em 1943, o conceito
diagnóstico de autismo foi proposto por Leo Kanner. Em seu artigo publicado, Kanner
descreve 11 crianças afetadas com o que o autor nomeia de “Distúrbios autísticos do
contato afetivo”. Esta síndrome é caracterizada por interesse diminuído ou ausente
em interação/comunicação social e uma notável insistência em comportamentos
restritos e repetitivos (VIVANTI, BOTTEMA-BEUTEL, TURNER-BROWN, 2020).
Nas primeiras décadas após a descrição de Kanner, houve uma tendência em
equiparar distúrbios psiquiátricos graves na infância a manifestações iniciais de
psicose e esquizofrenia (VOLKMAR, 2014). Segundo RN MA, et al (2018) “fuga da
realidade, auto isolamento e desenvolvimento de relações precárias são
características comuns à esquizofrenia e autismo. Como consequência destas
similaridades, até 1970, houve resistência por parte dos profissionais de saúde em
reconhecer a validade do autismo como uma categoria diagnóstica distinta.
Ressalta-se que Kanner foi cuidadoso em diferenciar o autismo da
esquizofrenia infantil e outras deficiências sociais (MINTZ, 2016) ao reconhecer que a
criança esquizofrênica apresentava algum desenvolvimento normal antes de seu
comportamento ser alterado, diferente do autista que apresenta deficiências desde o
nascimento (IRWIN, MACSWEEN, KERNS, 2011). Apesar disso, os dois primeiros
Manuais de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-I e DSM-II),
publicados pela Associação Americana de Psiquiatria, respectivamente em 1952 e
1968, não incluem o autismo como um transtorno, essas crianças, por sua vez, eram
diagnosticadas como exibindo uma reação esquizofrênica infantil (IRWIN,
MACSWEEN, KERNS, 2011).
Em sequência, pesquisas adicionais apontaram diferenças críticas entre
autismo e esquizofrenia. Rutter (1978) acrescenta em seu modelo diagnóstico
deficiências de linguagem e pré-linguagem como características essenciais ao
diagnóstico do autista, bem como mantem as deficiências nas relações sociais e as
estereotipias como sugeridas por Kanner.
Apenas na terceira edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais (DSM-III), publicado em 1980, o autismo foi incluído como uma
categoria diagnóstica individualizada, denominado como “autismo infantil” (VIVANTI,
6
BOTTEMA-BEUTEL, TURNER-BROWN, 2020). Além disso, nesta edição o autismo
foi codificado no Eixo II, que incluía os distúrbios de desenvolvimento e de
personalidade, e foi listado como um dos dois “transtornos invasivos do
desenvolvimento”, PDDs (IRWIN, MACSWEEN, KERNS, 2011). Dessa forma, o
autismo foi retirado permanentemente da classificação de uma forma de
esquizofrenia.
Em uma nova revisão do DSM-III, em 1987, DSM-III-R, a terminologia “autismo
infantil” foi alterada para “transtorno autista” (APA, 1987). Esta alteração refletiu em
uma ênfase na abordagem do desenvolvimento, não se restringindo às crianças mais
novas com autismo.
Por sua vez, o DMS-IV, publicado em 1994, caracterizou o autismo por meio
de três grupos de deficiências básicas – linguagem, comunicação social e
comportamentos repetitivos. Além disso, outras síndromes, como a Síndrome de Rett,
Síndrome de Asperger e Transtorno Desintegrativo da Infância foram classificadas,
juntamente com o autismo, como formas de “Transtornos Globais ou Invasivos do
Desenvolvimento (RN MA, et al, 2018), e passaram a ser frequentemente referidas
como “Transtorno do Espectro Autista” (TEA) em literatura, entretanto, não estava
presente em nenhuma revisão do DSM até o momento, as quais seguiram a
denominação de PDD (IRWIN, MACSWEEN, KERNS, 2011).
Em 2013, a quinta edição do DSM foi publicada. Nesta edição, os critérios de
diagnóstico para autismo foram agrupados em apenas dois grupos – déficits de
comunicação social e interesses fixos/comportamentos repetitivos. Além disso, todas
as Síndromes classificadas juntamente com o autismo foram agrupadas em uma única
denominação de diagnóstico “Transtorno do Espectro Autista” – TEA (VIVANTI;
BOTTEMA-BEUTEL; TURNER-BROWN, 2020).
Em paralelo a publicação das versões do DSM, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) promoveu a Classificação Internacional de Doenças (CID), entretanto,
apenas na revisão do CID-8, publicado em 1968, a Seção de Doenças Mentais foi
incluída. Assim como no DSM, o autismo também era classificado juntamente com a
esquizofrenia. Apenas em 1975, no CID-9, o autismo foi considerado uma entidade
individualizada, porém, os critérios de diagnóstico ainda não estavam descritos, e o
autismo foi classificado como uma psicose (RN MA, et al, 2018).
A Classificação Internacional de Doenças (CID), publicada pela OMS e
aprovada em 1989, CID-10, entrou em vigor em 1993 e é a versão oficialmente
7
adotada pela legislação brasileira. Nesta classificação, oito transtornos foram
agrupados no código F84, sob a denominação “Transtornos Globais do
Desenvolvimento”: Autismo infantil (F84.0), Autismo atípico (F84.1), Síndrome de Rett
(F84.2), Outro Transtorno Desintegrativo da Infância (F84.3), Transtorno com
Hipercinesia associada a Retardo Mental e a Movimentos Estereotipados (F84.4),
Síndrome de Asperger (F84.5), Outros Transtornos Globais do Desenvolvimento
(F84.8) e Transtornos Globais Não Especificados do Desenvolvimento (F84.9)
(TAMANAHA, PERISSINOTO, CHIARI, 2008).
Dessa forma, é possível identificar que o autismo sofreu várias reformulações
ao longo do tempo e que seu diagnóstico conta atualmente com dois instrumentos
oficiais – CID e DSM, tais instrumentos são bastante similares, visto que há tentativa
de unificá-los, entretanto, algumas diferenças são verificadas. O DMS-V, atualmente
vigente, agrupa o autismo sob a denominação de Transtorno do Espectro Autista, já
o CID-10 mantem o autismo como um subtipo de Transtorno Global do
Desenvolvimento. Para este trabalho, seguiremos com a denominação de Transtorno
do Espectro Autista (TEA), adotada pelo DSM-V.
Na maioria dos casos, o TEA manifesta-se inicialmente na infância, durante os
cinco primeiros anos de vida, e se estende pela adolescência e fase adulta. Dados
epidemiológicos descritos pela OMS em 2019, demonstram um aumento global da
prevalência da doença nos últimos 50 anos, 1 a cada 160 crianças são afetadas. A
epidemiologia do TEA sofre forte influência pelas constantes modificações nos
critérios para o diagnóstico do transtorno, além disso, variações geográficas podem
ser observadas (OMS, 2019).
A fisiopatologia do TEA não é completamente elucidada, entretanto,
consideram-se os fatores genético e ambiental como os principais fatores causais.
Dentre os ambientais, são destacados infecções pré-natais por influenza, rubéola e
citomegalovírus, stress materno durante a gestação, uso materno de talidomida,
misoprostol e ácido valpróico durante a gravidez (PRETI; et al., 2014, p.54-68), idade
paterna e materna avançada (MURPHY et al., 2016), baixo peso ao nascer
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION et al., 2013), complicações pré-natais,
perinatais e neonatais, como a hipóxia (MURPHY et al., 2016), e exposição a fatores
mutagênicos, como mercúrio, cádmio, bem como deficiência de vitamina D (KIM,
2015). Dentre os fatores genéticos, interações multigene, efeitos epigenéticos e
8
imprinting genômico são descritos, implicando forte componente hereditário e
susceptível a interações ambientais.
Atualmente não há uma cura para o autismo, o controle dos sintomas é
baseado na associação de intervenções não farmacológicas e terapia farmacológica
(OMS, 2019). A intervenção farmacológica, por sua vez, não corresponde a primeira
escolha de tratamento, as intervenções psicoterápicas, psicossociais e educacionais
são adotadas com o objetivo de maximizar a aquisição da linguagem, melhorar as
habilidades sociais e comunicativas e diminuir os comportamentos mal adaptativos
(ROTTA e RIESGO, 2005).
Embora os únicos medicamentos aprovados pelo United States Federal Drug
Administration (FDA) para TEA sejam Risperidona e Aripripazol, dois antipsicóticos
atípicos, diversas classes de medicamentos são utilizadas na prática clínica para
tratamento de sintomatologias associadas, entretanto, através de seu uso off-label
(MURPHY et al., 2016). As principais classes de medicamentos utilizados são:
Antipsicóticos típicos e atípicos (clozapina, olanzapina, quetiapina, ziprazidona);
Inibidores da recaptação de serotonina (IRSs) (fluoxetina, sertralina, paroxetina);
Antidepressivos tricíclicos (clomipamina, imipramina e amitriptilina); Estimulantes
(metilfenidato); Estabilizadores de humor – anticonvulsivantes (carbamazepina e
ácido valpróico); Antagonistas Opióides (naltrexona) (LACIVITA et al., 2017). Além
disso, recentemente tem sido verificado o uso de canabidiol (LOPES, 2014). Além da
discussão crítica sobre o uso dos medicamentos aprovados e não aprovados para o
tratamento do TEA, o seu uso em nível molecular, com o intuito de identificar alvos
potenciais para intervenção terapêutica (LACIVITA et al., 2017) será abordado no
presente trabalho.
A identificação precisa do TEA e a questão da intervenção a tempo permeiam
fortemente a clínica e requerem abordagem interdisciplinar e treinamento de
profissionais para escaparem da hiperdiagnosticação das crianças e de suas famílias
(JERUSALINSKI, 2008).
Dessa forma, o presente trabalho pretende analisar de forma crítica as
informações e evidências científicas sobre as terapias farmacológicas atualmente
disponíveis na prática clínica ou em pesquisa clínica para TEA. Para tanto, foram
realizadas pesquisas de literatura médica em bases de dados bibliográficos, como
PubMed, SciELO e LILACS.
9
2 OBJETIVO(S) O objetivo do presente trabalho é descrever e analisar criticamente evidências
científicas sobre as terapias farmacológicas atualmente disponíveis na prática clínica,
o uso off-label de medicamentos disponíveis no mercado e terapias farmacológicas
em desenvolvimento para TEA.
3 MATERIAIS E MÉTODOS
Para coleta dos estudos acerca deste tema serão utilizados os bancos de
dados ISI WEB OF SCIENCE, PUBMED e GOOGLE ACADÊMICO. Somente serão
analisados artigos de licença livre ou disponíveis para a Universidade de São Paulo.
Serão realizadas pesquisas de literatura médica em bases de dados
bibliográficos e clínicos. Serão consideradas as expressões: Autism Spectrum
Disorder (Transtorno do Espectro Autista); Drug Therapy (Terapia farmacológica);
Molecular Mechanisms of Pharmacological Action (Mecanismos moleculares de ação
farmacológica); Non pharmacologic therapy (Terapia não farmacológica); Autism AND
Evolution International Classification of Diseases (Autismo e Evolução das
classificações internacionais); Autism AND Multidisciplinary intervention (Autismo e
Trabalho multiprofissional)
Os registros de literatura médica considerados de interesse que apresentarem
essas expressões em qualquer um dos campos da base de dados – por exemplo:
título, resumo ou palavras chave - serão identificados, armazenados e tratados.
3.1 Aspectos éticos Trata-se de uma revisão bibliográfica não havendo, portanto, maiores
impedimentos éticos a realização do projeto.
4 RESULTADOS 4.1 Importância do trabalho multidisciplinar no autismo e terapias não
medicamentosas: Segundo Onzi e Gomes (2015), o TEA é definido por deficiências na
comunicação e interação social, assim como em comportamentos que incluem
interesses e padrões de atividade. Este é caracterizado por certas manifestações
clínicas: déficit cognitivo; estereotipias; interação social e variedades
comportamentais prejudicadas, manifestando-se em graus variados, sendo não-
verbais ou verbais.
10
É um grande desafio interdisciplinar e multiprofissional a avaliação de um caso
infantil e o estabelecimento, de forma cuidadosa, do momento e da forma em que há
o deslocamento deste paciente dentro de um espectro que caminha entre a criança
típica, atípica, transtorno e doença. Disso, a clínica da primeira infância se ocupa.
Entretanto, o TEA no Brasil, foi desconsiderado do eixo da saúde durante grande parte
do século XX. Este foi assistido, sobretudo, por redes filantrópicas (APAE; Sociedade
Pestalozzi), assistência social ou serviços prestados por associações familiares.
Alguns poucos indivíduos tinham acesso a tratamento na área de Saúde Mental dentro
de Hospitais psiquiátricos privados ou Universitários, outros eram acompanhados por
regime ambulatorial tradicional, executado por psiquiatras ou neurologistas, seguindo
tratamento estritamente medicamentoso (COUTO, 2004), sedativo ou
enclausuramento com eletrochoques com o objetivo de cura (SILVA, 2020).
Apenas a partir da década de 90, através do surgimento do Núcleo de Atenção
Intensiva à Criança Autista e Psicótica (NAICAP), do Centro de Referência à Saúde
Mental Infantojuvenil (CERSAMI) e dos Centros de Atenção Psicossocial
Infantojuvenil (CAPSI), o TEA adquiriu presença oficial na saúde pública brasileira.
Ao longo do tempo, tornou-se evidente a importância da adoção de práticas
multiprofissionais para o diagnóstico e tratamento do paciente autista, não se limitando
à aplicação de testes, exames e tratamento exclusivamente farmacológico. A
ausência de consenso na hipótese diagnóstica e a variedade de formas clínicas e/ou
comorbidades que acometem o paciente com TEA, exigem a interdisciplinaridade
(Brasil, 2015).
Dessa forma, os tratamentos para o TEA visam proporcionar melhora nas
habilidades cognitivas, desenvolver estímulos e garantir o descobrimento do novo
(alteração da rotina presente nos portadores de TEA). Diversas terapias são utilizadas
na reabilitação e tratamento do portador, e incluem a participação de equipe
multiprofissional com experiência clínica para o estabelecimento do diagnóstico, assim
como a identificação das potencialidades do paciente e de suas famílias, através da
expertise do profissional em seu campo de atuação específico e da interação entre as
áreas (Brasil, 2014). A equipe multidisciplinar pode contar com a participação de
médicos (neurologistas, psiquiatras, pediatras e geneticistas), psicólogos,
nutricionistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, e outros profissionais se
necessário (SCHWARTZMAN, 2018).
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O Ministério da Saúde possui apenas dois documentos norteadores das
políticas públicas brasileiras voltadas para pessoas diagnosticadas com TEA:
“Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do
Autismo (TEA)” (2014) e “Linha de cuidado para a atenção às pessoas com
Transtornos do Espectro do Autismo e suas famílias na Rede de Atenção Psicossocial
do Sistema Único de Saúde” (2015), nestes são abordados a importância do
diagnóstico precoce na reabilitação do portador de TEA. Além disso, são fornecidas
instruções para a identificação de sinais por parte da equipe multiprofissional para
iniciar um diagnóstico diferencial para TEA.
A avaliação médica de possíveis portadores de TEA inclui anamnese e
avaliação física, bem como, exames laboratoriais e de imagem. Em casos de
alterações emocionais e comportamentais expressivas, como, alteração do sono e do
apetite, excesso de agressividade, agitação psicomotora, é recomendada a atuação
específica de psiquiatras e neurologistas. A avaliação psiquiátrica envolve entrevistas
com o paciente, familiares, cuidadores e professores, e a avaliação neurológica visa
verificar os aspectos do sistema nervoso central. Além disso, psicólogos e
fonoaudiólogos avaliam desvios qualitativos na linguagem e interação social, bem
como avaliação cognitiva e neuropsicológica (Brasil, 2014).
Em busca de tratamentos menos invasivos, com resultados a curto prazo e que
desenvolvam menos efeitos colaterais, surgiram diversas abordagens de tratamentos
não medicamentosos no atendimento de pacientes com TEA. Ressalta-se que não há
uma abordagem prioritária, a escolha deve se basear de acordo com as
particularidades de cada caso e indivíduo. Abaixo serão descritas algumas destas
metodologias:
4.1.1 Analise Comportamental Aplicada (ABA – Applied Behavioral Analysis) É um método que se baseia na avaliação, planejamento e orientação, focado
na aprendizagem de habilidades que o portador de TEA não possui, sobretudo,
motoras, sociais e de autocuidado, por meio de instruções progressivas. Esta técnica
também atua na redução de comportamentos não adaptativos (ex: estereotipias) a
medida em que os substitui por novos comportamentos socialmente aceitáveis e
eficientes que atuam com o mesmo propósito (GOMES e ONZI, 2015).
4.1.2 Tratamento e Educação Relacionados a Problemas de Comunicação (TEACCH – Treatment and education of Autistic and Related Communication Handicapped Children)
12
É um programa desenvolvido na Universidade da Carolina do Norte cujo
principal objetivo é o desenvolvimento da independência do portador de TEA por meio
do ensino estruturado e orientações para novas habilidades funcionais, dessa forma,
capacitar o indivíduo para a vida adulta (Brasil, 2015).
4.1.3 Integração Social A Teoria da Integração Social relaciona as deficiências na percepção,
organização e interpretação da informação social com as dificuldades de
aprendizagem e respostas intensificadas da criança autista perante a certos estímulos
sensoriais (gera irritabilidades, choro, desconforto), o que dificulta a execução de
atividades cotidianas e interação social. Esta técnica tem sido utilizada por terapeutas
ocupacionais (SOUZA e NUNES, 2018).
4.1.4 Comunicação Suplementar e Alternativa (CSA) Correspondem a métodos, dispositivos ou sistemas que complementem a fala
ou utilizado em casos de ausência de fala. Alguns portadores de TEA podem
apresentar atrasos na comunicação, com o intuito de estimular a comunicação
funcional, podem ser utilizados como por exemplo, a linguagem de sinais e gestos ou
a utilização de símbolos ou figuras (Brasil, 2015).
4.1.5 Tratamento Clínico de Base Psicanalítica Esta abordagem busca desenvolver a interação social, comunicação e
amenizar interesses repetitivos e restritivos, a partir da construção de uma relação de
confiança, o que estimula a socialização, acesso à aprendizagem e facilitação da vida
cotidiana. Tal técnica considera a singularidade de cada caso clínico e busca
aberturas a partir dos interesses do indivíduo (Brasil, 2015)
4.2 O conceito de medicalização e TEA O conceito de medicalização assumiu relevância nas décadas de 1960 e 1970
através de estudos realizados no campo da sociologia, sobretudo pelos trabalhos de
Freidson (1970), Zola (1972), Illich (1975) e Conrad (1975; 1992; 2005). A expansão
das ações da Medicina para cenários que não eram anteriormente considerados de
interesse médico foi denominada por Illich (1975) medicalização da vida. Em termos
gerais, a medicalização nomeia o processo em que determinado comportamento e/ou
problema que não era considerado de ordem médica passa a ser definido como
doença, transtorno ou problema médico, e, para o qual, o campo da Medicina se torna
responsável por ofertar algum tipo de intervenção ou tratamento (CARVALHO et al,
2015).
13
Ao longo do tempo o termo medicalização passou a ser associado tanto a
processos naturais da vida, como por exemplo, desenvolvimento infantil, sexualidade,
nascimento, tensão pré-menstrual, menopausa, envelhecimento e morte, bem como
a desvios do comportamento, tais como, demência, alcoolismo, hiperatividade,
dificuldade de aprendizagem, transtornos alimentares, infertilidade, dentre outros
(CONRAD, 1992). Ressalta-se que ficou definido como desvio do comportamento
qualquer conduta que diverge do que é socialmente aceitável e não necessariamente
corresponde a um quadro nosológico. De fato, grande parte destes desvios
atualmente são considerados transtornos mentais, e, portanto, se enquadram em
processo de medicalização. Um exemplo de desvio atualmente medicalizado é o TEA.
De acordo com Rose (2006), os diagnósticos psiquiátricos incluem certos
transtornos que se encontram na fronteira da normalidade (ansiedade, TDAH, TEA).
Nestes casos, a medicalização destes desvios se tornou possível de acordo com a
flexibilização dos limites de normalidade, o que ampliou os diagnósticos.
É possível verificar essa flexibilização no caso do TEA, no próprio uso do
conceito de espectro, adotado pelo DSM-V, visto que há um leque de características
que permeiam sintomas “menos intensos”, como Síndrome de Asperger, e “mais
intensos”, como em casos de comprometimentos cognitivos. Dessa forma, verifica-se
que cada portador apresenta o diagnóstico de uma maneira, com sintomas em
amplitudes e intensidades únicas (FIGUEIRÊDO, 2019).
4.3 Abordagem psicofarmacológica:
A abordagem psicofarmacológica atua conjuntamente à um programa
abrangente de tratamentos não farmacológicos a ser realizado por equipe
multiprofissional (OLIVEIRA, et. al, 2015). Eisa, et al (2018) afirma que as
intervenções farmacológicas são desafiadoras devido à heterogeneidade etiológica e
clínica do TEA. Além disso, psicofármacos atualmente disponíveis não atuam
diretamente nas causas da patologia, bem como não produzem melhora nas
características centrais que incluem deficiências na comunicação, dificuldades
sociais, desenvolvimento de novos interesses e de limitações. (OLIVEIRA et. al.,
2015).
Atualmente, a Risperidona e o Aripripazol são os únicos medicamentos
aprovados pelo Food and Drug Administration dos Estados Unidos (FDA) para
14
sintomas relacionados ao TEA (MASI et al., 2017). Em cenário brasileiro, a
Risperidona e Periciazina são fármacos que apresentam indicação em bula e
recomendação da ANVISA para uso em sintomas-alvo presentes no TEA, como
agressividade, irritabilidade, impulsividade e instabilidade psicomotora.
As demais classes terapêuticas são utilizadas na modalidade off-label no
tratamento de sintomas e manifestações do TEA. (tabela 1) Tais medicamentos
atuam apenas no alívio de comportamentos mal adaptativos que prejudicam
fortemente a interação social da criança portadora, em meio familiar, escolar ou em
outros âmbitos, como por exemplo, condutas agressivas, inquietude extrema, raiva,
descontrole, sono (BRASIL, 2015). Certas estereotipias motoras ou comportamentos
repetitivos podem também ser amenizados com o uso de psicofármacos. As
comorbidades associadas ao TEA, como, ansiedade, depressão, transtorno
obsessivo compulsivo (TOC), transtorno do déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH), epilepsia e transtorno do sono, podem ser tratadas farmacologicamente,
sendo desaconselhado o uso de muitos desses medicamentos em crianças e
adolescentes, por não haver comprovação de segurança (LOUREIRO, et. al, 2019).Os
psicofármacos utilizados, aprovados ou não, para os quais existem informações
disponíveis na literatura serão discutidos em maior detalhe a seguir.
15
(Continua)
16
Tabela 1 - Principais psicofármacos utilizados no TEA; Fonte: NETO, BRUNONI, CYSNEIROS, 2019.
4.3.1 Antipsicóticos: Típicos e Atípicos Os antipsicóticos atípicos ou de segunda geração, diferem em composição e
perfil farmacológico dos de primeira geração/convencionais (como Haloperidol,
Periciazina e Clormazepina). Apresentam maior eficácia e são comumente utilizados
em casos de resistência medicamentosa. Além disso, apresentam menor incidência
de efeitos extrapiramidais (NETO, BRUNONI e CYSNEIROS, 2019).
Os antipsicóticos típicos são antagonistas de receptor de dopamina. Apesar da
bula da Periciazina conter indicação para o uso em sintomas relacionados ao TEA,
17
seu uso é pouco descrito em literatura, sobretudo, devido a hipotensão postural e
efeitos adversos colinérgicos (retenção urinária, boca seca, constipação intestinal,
delirium), típicos de antipsicóticos de baixa potência (TAMAI, 2002).
O mecanismo de ação dos antipsicóticos atípicos envolve o antagonismo de
receptores dopamínicos D2 e serotonínicos 5-HT2A. Os principais medicamentos
desta classe são: Risperidona, Clonazepina e Aripripazol (EISSA, et. al, 2018).
Como mencionado, a Risperidona e o Aripripazol são os únicos psicofármacos
aprovados pelo FDA para TEA. Dentre estes, a Risperidona é o antipsicótico atípico
mais utilizado nos sintomas-alvo do TEA, sobretudo para o tratamento sintomático de
irritabilidade, incluindo sintomas de agressão a outros, como auto agressão
deliberada, crises de raiva, angústia e mudança rápida de humor em crianças e
adolescentes (Bula Risperdal®). Entretanto, seu uso clínico é limitado devido a seu
perfil de segurança hematológico, visto que é responsável pela elevação do risco de
agranulocitose. A possibilidade do aparecimento deste EA torna necessário o
monitoramento do paciente quando em uso deste medicamento (contagem
sanguínea) (EISSA, et. al, 2018).
Dois estudos clínicos forneceram evidências suficientes para a Risperidona
receber a aprovação em bula para o TEA, a partir da avaliação dos riscos vs.
benefícios do uso desta medicação. Estudo clínico randômico duplo-cego
multicêntrico elaborado por Research Units in Pediatric Psychopharmacology (RUPP)
Autism Network, conduzido com 101 crianças e adolescentes portadores de TEA
(idade entre 5-7 anos) com Risperidona (dose: 1.8mg/kg) durante 8 semanas,
demonstrou redução de 57% de irritabilidade vs. 14% de redução no grupo placebo
(SHARMA, GONDA, TARAZI, 2018). Este estudo contrasta com os resultados obtidos
em estudos similares conduzidos com Haloperidol (15-20% de redução de
irritabilidade) (NIKOLOV, JONKER, SCAHILL, 2006).
Além disso, a Risperidona mostrou efeito neuroprotetor e aumentou a atividade
antioxidante das células astrogliais em distúrbios como o TEA, sem a evidência de
efeitos extrapiramidais, apenas efeitos sedativos leves. Outros EAs com o uso de
Risperidona foram relatados como: aumento de apetite, fadiga, tontura, ganho de
peso, hipotensão e sonolência, os quais podem limitar seu uso (MCCRACKEN et al.,
2002; RANG et al., 2016).
Dois estudos clínicos abertos sugeriram tolerância e benefícios a longo prazo
no uso de Risperidona. Os resultados demonstraram o uso do fármaco por mais deaté
18
6 meses, entretanto, o ganho de peso foi uma limitação de seu uso (TROOST, et al.,
2005).
O Aripiprazol apresenta um perfil incomum de agonista parcial de receptor
dopamínico (apresenta capacidade de ligar-se aos receptores pré-sinápticos D2 e D3)
e seretoninérgico 5HT1A, em que atua como agonista parcial, e como antagonista
5HT2A. Além disso, se liga aos receptores alfa1A, muscarínicos e histaminérgicos
com mínimo de antagonismo. Este perfil resulta em menos EAs, como por exemplo o
ganho de peso, o qual é bastante expressivo com o uso de Risperidona. (NETO,
BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
4.3.2 Medicamentos utilizados na prática clínica, mas não aprovados para TEA (Uso off-label) O uso off label de medicamentos comumente praticado na clínica para TEA
corresponde à utilização de fármacos cuja indicação, via de administração,
apresentação e posologia carecem de aprovação de autoridades regulatórias, e,
portanto, não possui evidências científicas sobre os riscos, benefícios, eficácia e
segurança necessárias para sua autorização (NETO, BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
Além disso, há poucos estudos clínicos disponíveis envolvendo populações
vulneráveis, como é o caso da primeira infância, público alvo para o TEA, ou poucas
evidências do uso prolongado dessas medicações. Segundo Pande (2020), a revisão
realizada pelo Ministério da Saúde que analisou estudos envolvendo Risperidona e
seus efeitos sobre TEA exemplificam o tempo de coorte estreito destes estudos.
Convencionou-se chamar de longo prazo análises que não ultrapassaram 6 meses,
demonstrando a limitação longitudinal destes ensaios. Consequentemente, o
acompanhamento a curto prazo impossibilita a identificação de Eventos Adversos,
bem como a ineficácia de medicamentos com seu uso contínuo. Indícios científicos
apontam a cronificação de transtornos mentais em crianças e adultos a partir do uso
a longo prazo de psicotrópicos (WHITAKER, 2017)
Ressalta-se que o uso off label não é proibido no Brasil, visto que há um
consenso de que os médicos possuem o direito de prescrever medicamentos para
indicações não aprovadas de acordo com sua prática clínica. Entretanto, autores
como Neto, et. al, menciona que a prática de prescrição fora dos limites estabelecidos
em bula (off-label) coopera para a ocorrência de EAs.
19
Neste cenário, há na prática clínica, diversos medicamentos não aprovados por
agências reguladoras e que são comumente utilizados para tratamento do TEA
(NETO; BRUNONI; CYSNEIROS, 2019).
4.3.2.1 Antidepressivos Os antidepressivos utilizados no tratamento do TEA podem ser subdivididos
em várias classes: Inibidores da recaptação da serotonina (ISRS) (Ex: fluoxetina,
fluvoxamina, sertralina, paroxetina, escitalopram e citalopram); Inibidores da
recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN) (Ex: venlafaxina); Antidepressivos
tricíclicos (ADTs) (ex: nortriptilina, clomipramina e imipramina) (RANG et al., 2016).
4.3.2.2 Inibidores da recaptação da serotonina (ISRS) Grupo de compostos não relacionados quimicamente que inibem fortemente a
recaptação de serotonina na fenda pré sináptica. Esse grupo de fármacos é utilizado
referindo-se a melhora dos comportamentos ritualísticos, estereotipias e movimentos
repetitivos usando como base os efeitos da fluoxetina. Entre os EAs verificados,
relatam-se desinibição, agitação, hiperatividade e hipomania, que podem estar
relacionados ao aumento no comportamento suicida (DeLong et al., 2002; Hollander
et al., 2005).
Uma revisão da literatura realizada a respeito do uso de ISRS nos sintomas
mal adaptativos relacionados ao TEA demonstrou a resposta à terapia e os EAs são
individuais a cada portador. Além disso, verificou-se que até o presente momento, não
há evidências que apoiam a seleção de um ISRS em detrimento aos demais, visto que
todos apresentam benefícios e EAs semelhantes (MEDAVARAPU et al, 2019).
4.3.2.3 Inibidores da recaptação da Serotonina e Noradrenalina (IRSN) Dentre a classe de fármacos que inibe fortemente a recaptação de Serotonina
e Noradrenalina, destaca-se a utilização da Venlafaxina, a qual tem demonstrado
resultados positivos quanto à déficits sociais, hiperatividade, problemas de
comunicação e interesses restritos (EISSA et al., 2018).
4.3.2.4 Antidepressivos tricíclicos (ADTs) O mecanismo de ação desta classe de fármacos envolve o bloqueio da
recaptação de monoaminas, principalmente norepinefrina (NE), serotonina (5-HT) e
em menor proporção dopamina (DA) em nível pré-sináptico (MORENO, MORENO,
SOARES, 1999).
Nortriptilina e clomipramina têm sido descritas em literatura como benéficas ao
TEA, visto que proporcionam melhora nos sintomas de hiperatividade, agressividade
20
e comportamentos ritualísticos, enquanto a imipramina não foi bem tolerada em
crianças portadoras de TEA (EISSA et al., 2018).
Clomipramina demonstrou em estudo clínico superioridade em 58% vs. placebo
em relação a melhora dos sintomas de raiva, comportamentos compulsivos e
ritualizados (GORDON et al., 1993). Por fim, outro estudo clínico demonstrou piora
em vários EAs, como sedação e em comportamentos mal adaptativos (agressividade,
irritabilidade e hiperatividade) (SANCHEZ et al., 1996).
4.3.2.5 Antiepiléticos e Anticonvulsionantes A incidência de convulsões em indivíduos portadores de TEA tem sido
verificada. Dessa forma, esses fármacos têm sido incorporados à prática clínica.
Dentre os fármacos utilizados encontra-se a lamotrigina, desenvolvidao
recentemente, atua no bloqueio dos canais de sódio e possível inibição nos canais de
cálcio. Estudo clínico demonstrou diminuição nos sintomas convulsivos em 62% em
portadores de TEA, entretanto, não demonstrou mudança considerável entre os
pacientes que receberam placebo e o fármaco ativo (UVEBRANT, BAUZIENE,1994).
O bloqueio dos canais de sódio e cálcio dependentes de voltagem e os níveis
aumentados de GABA no cérebro, demonstraram melhoria em sintomas relacionados
ao TEA, bem como em comorbidades psiquiátricas, como por exemplo, linguagem,
instabilidade afetiva e agressividade (NETO, BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
Além disso, o fármaco levetiracetam demonstrou decréscimo em
hiperatividade, impulsividade, agressividade e labilidade emocional (Rugino and
Samsock, 2002).
4.3.2.6 Antagonista do receptor de glutamato Após estudo post mortem com amostras cerebrais de portadores de TEA, foi
verificado níveis elevados de glutamato. A partir disto, diversos estudos publicados
demonstraram a eficácia dos antagonistas de glutamato em portadores de TEA.
Memantina e amantadina são os fármacos dessa classe mais utilizados. Em estudo
clínico controlado amantadina demonstrou melhora em quadros de hiperatividade e
dificuldades na fala em crianças com TEA. Além disso, o uso clínico de memantina
demonstrou progresso terapêutico em relação à memória, hiperatividade,
irritabilidade, linguagem e comportamento social (EISSA et al., 2018).
4.3.2.7 Inibidores da colinesterase O uso de inibidores da colinesterase tem sido investigado para portadores de
TEA, visto que a disfunção da neurotransmissão colinérgica cerebral foi descrita em
21
vários pacientes diagnosticados com TEA. Estes fármacos promovem o aumento da
concentração de acetilcolina na junção das células do Sistema Nervoso pela inibição
reversível de sua inativação através da enzima acetilcolinesterase (RANG et al.,
2016).
Os fármacos desta classe que apresentam eficácia no TEA são: Donepezila,
rivastigmina e galantamina. Donepezila demonstrou eficácia para hiperatividade e
irritabilidade em portadores de TEA. Rivastigmina apresentou melhora em
comportamentos globais, entretanto, EAs foram observados (diarreia, irritabilidade e
hiperatividade). A galantamina, por sua vez, resultou em melhora na hiperatividade,
irritabilidade, desatenção, inadequação da fala e no retraimento social (NETO,
BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
4.3.2.8 Psicoestimulantes Dentre os psicoestimulantes do Sistema Nervoso Central, o uso de
metilfenidato (ritalina) foi descrito em quadros de TEA. O mecanismo de ação desse
fármaco consiste na inibição da captura de catecolaminas, inibindo os transportadores
de norepinefrina, dopamina e em menor potência da serotonina, com consequente
elevação da concentração desses neurotransmissores (RANG et al., 2016).
Recente estudo cruzado multicêntrico, com participação de 66 crianças,
envolvendo três níveis de doses de fármaco ativo e placebo, conduzido pelo National
Institute for Mental Health (NIMH), demonstrou forte evidência sobre os benefícios a
longo prazo de medicação estimulante bem administrada. Verificou-se a atenuação
de diversos aspectos comportamentais do TEA, como hiperatividade, impulsividade e
déficit de atenção. Entretanto, foi verificado que portadores de TEA e TDAH
apresentam maior risco de EAs em relação a crianças que apenas apresentam TDAH,
dentre os principais EAs foram descritos insônia, agressividade e perda de peso
(NETO, BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
4.3.2.9 Agonista de receptor alfa-adrenérgico Os fármacos clonidina e guanfacina são os principais representantes desta
classe. O mecanismo de ação destes fármacos corresponde a inibição seletiva dos
receptores alfa-adrenérgicos, e assim, agem na transmissão noradrenérgica no SNC
(EISSA et al., 2018).
Dois estudos duplo-cegos controlados por placebo vs. clonidina, indicaram
redução na hiperatividade, irritabilidade, estereotipia e impulsividade. Entretanto, foi
demonstrado alguns EAs, como sedação e hipotensão. Guanfacina também
22
demonstrou efeito moderado na redução de hiperatividade (MEDAVARAPU, et al.,
2019).
4.3.2.10 Antagonista dos opioides O principal fármaco desta classe associado ao tratamento de TEA é a
naltrexona. Tem sido associado ao TEA devido a uma possível relação com alterações
do sistema opioide endógeno, sobretudo, beta-endorfina e encefalina que atuam na
regulação do comportamento social. Estudos apontam melhorias nos distúrbios
comportamentais relacionados ao TEA, como comportamentos autolesivos,
hiperatividade, irritabilidade e dificuldade social (NETO, BRUNONI, CYSNEIROS,
2019).
4.3.2.11 Mediadores do SNC A melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina) é o fármaco representante desta
classe. Seu mecanismo de ação se dá por ação agonista dos receptores MT1 e MT2
no cérebro, e portanto, apresenta propriedades antidepressiva, antioxidante,
neuroprotetor e ação indutora do sono, esta última por ser eficaz no tratamento da
insônia, é aplicável aos portadores de TEA com esta condição (RANG et al., 2016).
Estudos apontam que portadores de TEA apresentam mau funcionamento na
glândula pineal, o que resulta em diminuição nos níveis de melatonina, o que resulta
em insônia, visto que esta é responsável pelo controle dos ritmos circadianos
(SHOMRAT; NESHER, 2019).
4.3.3 Riscos e Efeitos adversos O uso de psicofármacos geralmente é acompanhado por efeitos adversos (EA)
e riscos de interações medicamentosas, devido a ampla farmacoterapia, estreita
janela terapêutica, regime posológico complexo e diferentes dose-resposta, o que
compromete a segurança do tratamento (NETO, BRUNONI, CYSNEIROS, 2019).
Neste caso, o acompanhamento farmacoterápico pelo profissional farmacêutico, é
essencial para sugerir a melhor conduta terapêutica (ALMEIDA, LIMA, BARROS,
2019). Em casos leves, é possível o ajuste farmacoterápico, como o ajuste de dose,
entretanto, eventos moderados a intensos, podem ser prejudiciais ao paciente e gerar
danos irreversíveis a longo prazo. Neste caso, deve ser avaliado por equipe
multiprofissional se os efeitos adversos são superiores aos benefícios da medicação,
então, deve ser considerada a troca ou suspensão da mesma. (BRASIL, 2015).
Neste contexto, a literatura aponta que esforços têm sido empregados em
busca de evidências científicas quanto a eficácia, segurança, efetividade e custo-
23
efetividade para os diferentes fármacos comumente utilizados durante o tratamento
farmacológico para TEA, visando a sua incorporação em protocolos clínicos e
diretrizes terapêuticas, entretanto, as opções continuam limitadas até o presente
momento (EISSA et al., 2018; MASI et al., 2017).
4.3.4 Abordagem psicofarmacológica: Novas perspectivas A heterogeneidade fenotípica entre os portadores de TEA e a complexa
etiologia desta patologia dificultam o avanço no desenvolvimento de terapias
farmacológicas destinadas aos sintomas principais da doença. O tratamento
farmacológico disponível atualmente, por sua vez, se restringe ao uso de psicotrópicos
que aliviam sintomas psiquiátricos e comportamentais concomitantes ao TEA, como
agressividade, hiperatividade, autolesão, ansiedade e sintomas de humor. Dessa
forma, as melhorias observadas na interação social, comunicação e interesses
repetitivos (sintomas principais do TEA) configuram o efeito secundário de uma
redução dos comportamentos mal adaptativos e não um efeito primário destes
medicamentos (LACIVITA, et al., 2017).
O DMS-V agrupou diversas síndromes que eram classificadas juntamente com
o autismo sob a denominação de TEA. O termo Espectro condiz com a vasta
heterogeneidade biológica e fenotípica do portador. Dessa forma é improvável o
desenvolvimento de um único fármaco que tenha efeito terapêutico sobre todos os
pacientes de TEA, é evidente que devem ser conduzidos estudos na direção da
identificação dos alvos moleculares envolvidos na etiologia desta patologia. Além
disso, é necessário o desenvolvimento de biomarcadores que auxiliem na
identificação de subgrupos homogêneos, os quais apresentam maior probabilidade de
responder a um tratamento específico (ANAGNOSTOU, 2018).
Outro tópico que deve ser ressaltado em relação aos desafios envolvendo a
busca por novos medicamentos é que a capacidade de avaliar a eficácia dos fármacos
está atrelada a qualidade das medidas de resultado utilizadas. Entretanto, há pouco
consenso sobre essas medições. Em 2011, o National Institute of Mental Health, em
parceria à indústria e o FDA elaboraram três manuscritos com medidas sugeridas para
comunicação social, comportamentos repetitivos e ansiedade. Entretanto, todas as
medidas tiveram limitações e iniciativas estão em vigor para propor melhorias (CH, et
al., 2017).
24
Além disso, os estudos atuais referentes a intervenções farmacológicas
priorizam crianças e adolescentes em idade escolar, sobretudo no intuito de atenuar
sintomas mal adaptativos que irão prejudicar o paciente neste ambiente. Há escassez
de estudos envolvendo pré-escolares e adultos, e dessa forma, ausência de
evidências para o tratamento clínico envolvendo essas faixas etárias. Visto que não
há lesão cerebral estática relacionada aos portadores de TEA, espera-se que as
diferenças neurobiológicas se alterem com a idade, devido a neuroplasticidade e
mecanismos compensatórios do cérebro e do ambiente por meio de interações
gênicas ao longo da vida (ANAGNOSTOU, 2018). A avaliação de protocolos
terapêuticos, por essas questões, envolve necessariamente equipes
multiprofissionais e tem forte componente transdisciplinar, incluindo o desafio pouco
discutido da longitudinalidade necessária para o correto dimensionamento da
avaliação de riscos e benefícios obtidos ajustados pelos anos de vida dos indivíduos.
4.3.4.1 Estudo dos mecanismos moleculares do TEA para identificação de alvos potenciais
Pesquisas envolvendo camundongos geneticamente modificados com base em
descobertas genéticas humanas a respeito de TEA, possibilitaram decifrar
mecanismos patogênicos desconhecidos, o que garantiu a identificação de alvos
potenciais para intervenção farmacológica.
A identificação de causas genéticas associadas ao TEA é complexa, visto que
se acredita que seja uma condição poligênica. Entretanto, sugere-se que os eventos
poligênicos convergirão por meio de mecanismos moleculares para processos
comuns no cérebro que seriam os responsáveis pelos sintomas centrais do TEA, e
consequentemente a elucidação destas vias comuns facilitaria o desenvolvimento de
terapias para sintomas centrais do TEA (LACIVITA, et al., 2017)
Um dos mecanismos moleculares promissores considerados comuns ao
conjunto dos TEA corresponde ao desequilíbrio entre a transmissão excitatória e
inibitória, responsável pelo aprendizado, memória, déficits cognitivos, sensoriais,
motores e convulsões. Este desequilíbrio pode ser corrigido através da atuação em
receptores mGlu, NDMA ou GABA, inibindo a sinalização de GSK-3beta. A química
farmacêutica contribuiu para identificar moléculas direcionadas a estes receptores,
bem como inibidores de GSK-3beta. Além disso, moduladores alostéricos altamente
25
seletivos podem abrir novas perspectivas clínicas através do aumento
neuroplasticidade, sem induzir a neurotoxicidade (LACIVITA, et al., 2017).
O potencial terapêutico de outros sistemas de transmissão neuronal com
influência no comportamento social tem sido estudado em relação a TEA, como OT,
vasopressina, acetilcolina e serotonina, além da neurotransmissão central da
serotonina, e o direcionamento de antagonistas ou agonistas dos receptores
seretoninérgico (LACIVITA, et al., 2017).
Por fim, além de disfunções sinápticas de sistemas de neurotransmissores,
acredita-se que a inflamação do tecido nervoso seja um dos mecanismos patológicos
relacionados ao TEA. Os alvos de potenciais fármacos, neste caso, seriam receptores
Toll Like (TLR3, TLR4, MMP-9) (LACIVITA, et al., 2017).
4.3.4.2 Uso de Cannabis no tratamento de TEA Uma revisão sistemática dos estudos existentes do uso de Cannabis foi
elaborada em 2018 pelas Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina
nos EUA. O relatório menciona evidências esparsas que apoiam o uso de cannabis
para morbidades do neurodesenvolvimento, dentre elas o TEA (DI, 2018; CA, EB,
2018).
Há indícios que o mecanismo pelo qual os canabinóides podem ser utilizados
para o tratamento de TEA e suas comorbidades é através da modulação sintética do
sistema endocanabinóide (ECs), o qual contribui na regulação das respostas sociais,
prazer, cognição, movimento corporal, função gastrointestinal, dor, convulsões e os
cinco sentidos. O canabidiol (CDB: um dos principais componentes químicos da
Cannabis sativa) atua como agonista do receptor de serotonina (receptor não-
canabinóide) e está relacionado à facilitação do efeito ansiolítico. Além disso, atua
como agonista parcial do receptor de dopamina D2 de onde surge seu efeito
antipsicótico e modula o sistema glutamato-GABA que pode estar alterado no TEA
(AGARWAL, BURKE, MADDUX, 2019).
O tetra-hidrocanabinol (THC), principal substância psicoativa encontrada em
Cannabis sativa, é eficaz na ligação ao receptor CB1R que apresenta alta densidade
nos gânglios basais, hipocampo, neocórtex, hipotálamo e córtex límbico, estes
terminais neuronais afetam a atividade motora, pensamento, apetite e sedação
respectivamente. Essas interações potencializadas pelo uso de canabinóides foram
consideradas uma opção de tratamento prospectivo ao portador de TEA. Por sua vez,
o receptor CB2R pode ser encontrado em células imunes e tecidos, envolvidos com a
26
inflamação e imunossupressão, portanto, é expresso nos neurônios apenas em
condições patológicas, o que deve ser considerado em relação ao gerenciamento de
sintomas associados à etiologia do TEA (LM, et al.,2013; D, et al., 2017).
Considerando crescente número de publicações recentes sobre os princípios ativos
derivados da Cannabis sativa, dos quais o THC talvez seja o mais controverso,
AGARWAL, BURKE, MADDUX (2019) menciona que a análise de vários tipos de
estudos, populações, composições e doses de cannabis para muitas condições
fisiológicas compartilhadas permite concluir que os benefícios e riscos de seu uso
medicinal em portadores de TEA são indiretos e insuficientes.
5 DISCUSSÃO O presente trabalho buscou realizar uma análise a respeito dos tratamentos
farmacológicos disponíveis e em paralelo gerar discussões a respeito de conceitos
que permeiam esta temática, que são de extrema importância, como diagnóstico
precoce, critérios diagnósticos (classificações), medicalização e benefícios vs. EAs
provenientes de tratamento farmacológico.
O diagnóstico precoce do portador de TEA, possibilita também a intervenção
precoce, e consequentemente, a medicalização, seja por meio de intervenções
farmacológicas ou através de estratégias não farmacológicas, como discutido nos
resultados. Entretanto, é preciso considerar o aumento abrupto de casos de TEA
diagnosticados nos últimos anos, que tem, de fato, se tornado alvo de discussões.
Evidências científicas demonstram que houve melhora nos processos de detecção
precoce, mudanças nos critérios diagnósticos e maior sensibilização e
conscientização social, o que poderia justificar o aumento da incidência e prevalência
de casos clínicos de TEA (SEVILLA, et al., 2013).
Outros autores, por sua vez, questionam se o aumento da prevalência de TEA
é real, ou está relacionada a alterações nos critérios de diagnósticos e classificações
que incluiriam situações anteriormente não identificadas como nosológicas. O
conceito de “Espectro” adquirido na última versão do Manual de Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), agrupa vários perfis de pacientes, os
quais apresentam características com diferentes intensidades e, mecanismos não
completamente elucidados, o que se acompanhou da flexibilização dos limites de
normalidade, e consequentemente ampliou e modificou os diagnósticos.
27
A forma atual de diagnóstico praticada no âmbito da saúde pública brasileira
exige a obrigatoriedade de um código diagnóstico (CID). A atribuição de código CID
só pode ser feita legalmente por médicos, excluindo outras categorias profissionais, o
que não era verificado em anos anteriores. A reorganização do sistema e a exigência
do CID pode estar relacionada ao crescimento do número de diagnósticos.
Diante disso, surge o questionamento a respeito das diferenças entre
oscilações de sentimentos alegres e choros como característica comum da infância
ou presença de transtorno. A psiquiatria da infância sempre sofreu destas influências,
visto que diagnósticos precoces podem ser alterados no momento seguinte, devido a
neuroplastia do cérebro infantil e diante da grande diversidade de situações culturais,
das variáveis formas de evolução dos problemas, e sobretudo diante da singularidade
de cada caso. Portanto, além de garantir o diagnóstico precoce do portador de TEA,
é necessário sobretudo garantir o diagnóstico correto, e assim evitar a estigmatização
da criança e família de forma desnecessária e as consequências que derivam de
condutas inadequadas que podem produzir iatrogenia. Dessa forma, a avaliação por
equipe multiprofissional capacitada na prática clínica e a interdisciplinaridade se
mostram essenciais neste processo.
Os impactos do diagnóstico precoce errôneo podem ser ainda maiores em
casos de intervenções farmacológicas. Como abordado ao longo deste presente
trabalho, diversos psicofármacos têm sido utilizados atualmente na prática clínica para
o tratamento de sintomas mal adaptativos relacionados ao TEA, que não são
destinados à etiologia da doença. Além disso, há apenas dois fármacos aprovados
pelo FDA que comprovam eficácia clínica em bula em relação aos sintomas
relacionados ao TEA, os demais medicamentos utilizados na prática clínica seguem o
uso off-label. Os psicofármacos descritos estão relacionados ao maciço aparecimento
de EAs e oseus usos off-label podem intensificar e trazer novos elementos a esta
questão, pela dificuldade de acompanhamento adequado dos efeitos produzidos,
considerando-se que a vigilância depende de relatos produzidos espontaneamente.
Há um grande paradoxo ético resultante do uso off-label de psicotrópicos
relacionados à primeira infância: tentativa de proteger a criança do uso de medicações
sem comprovação científica vs. as várias limitações éticas e regulatórias na realização
de pesquisa clínica envolvendo este público. O que se verifica é a prescrição de
medicações cujos efeitos positivos e negativos são pouco conhecidos, de modo que
sua eficácia e segurança acabam sendo definidas via prática clínica. Tratando-se de
28
uma condição crônica, com início de tratamento na infância, o dilema é ampliado pela
dificuldade de estabelecer-se a longitudinalidade necessária para a responsabilização
prevista em lei, no caso de problemas evitáveis relacionados ao uso de
medicamentos.
Neste cenário, verifica-se a importância da corresponsabilização do médico e
do farmacêutico em orientar e apoiar a equipe multiprofissional na avaliação de
estratégia terapêutica mais adequada a cada perfil de paciente, para priorizar o uso
racional de medicamentos e evitar a hiper medicação desnecessária que impacta o
risco ao paciente. Cabe também à população em geral e profissionais de saúde, a
responsabilidade de notificar às agências reguladoras o aparecimento de efeitos
inesperados ou não previstos dos medicamentos utilizados em prática clínica. Dessa
forma seria possível, ao menos, registrar e monitorar mais adequadamente as
evidências a respeito dos usos pós-comercialização desses medicamentos.
Considerando o público infantil, este procedimento é relevante para o uso de
instrumentos estatísticos adequados e que considerem a prática clínica como
evidência no contexto da produção dos pareceres técnico-científicos que podem
basear as recomendações e eventual aprovação de novos usos clínicos para
medicamentos disponíveis no mercado.
6 CONCLUSÃO(ÕES)
Verificou-se que há disponível em literatura uma grande variedade de fármacos
com potencial farmacológico para a redução de sintomatologia associada ao TEA, que
entretanto é acompanhada de efeitos adversos relevantes. Um obstáculo para a
liberação de fármacos mais adequados é o fato de que os alvos moleculares do TEA
ainda são desconhecidos. Por um lado, existe uma grande demanda por recursos
farmacológicos para a abordagem de casos de difícil manejo clínico, mas também é
verdade que doenças diferentes são agrupadas em classificações muito amplas, o
que pressiona e dificulta a avaliação da segurança do uso, para subgrupos
específicos, de vários medicamentos potenciais, mesmo os disponíveis no mercado.
Além disso, eventos adversos relevantes ou de aparecimento tardio são
sistematicamente banalizados por uma prática clínica tolerante ao uso não racional
de medicamentos e ao abuso da sua prescrição off-label. Apesar da disponibilidade
de estudos em relação à eficácia de medicamentos com efeitos sobre o SNC, dados
sobre a segurança e efeitos adversos associados são produzidos a partir de
29
indicações para um conjunto heterogêneo de doenças. Não existe validação dessas
informações por meio da aprovação de fases finais de estudos clínicos e consequente
aprovação de indicações em bula específicas ao TEA por parte de órgãos
reguladores. A avaliação da eficácia e da segurança dos medicamentos segundo suas
indicações fica ainda mais prejudicada pelas mudanças recentes na classificação das
doenças e a ausência de uma base molecular bem definida para a maioria dos
transtornos.
Existe uma forte influência das mudanças da classificação das doenças sobre
os relatos, que ainda amplia a dificuldade da avaliação dos efeitos a longo prazo de
intervenções sobre a plasticidade neuronal. A existência de apenas dois
medicamentos na atualidade aprovados pelo FDA comprova esta situação.
O uso off-label pode trazer impactos a longo prazo que são menos rastreáveis
de forma sistemática e envolvem riscos de judicialização. Diante disso, é de extrema
importância valorizar as intervenções não farmacológicas, adotar critérios mais
restritos para o uso da terapia farmacológica disponível e estabelecer estudos clínicos
de longa duração para o acompanhamento de efeitos a longo prazo de novas
moléculas em estudo. A formação de profissionais farmacêuticos preparados para a
avaliação de estratégias terapêuticas e condutas clínicas por equipes
multiprofissionais deve contribuir para reduzir problemas relacionados ao uso
inadequado de medicamentos associados a prescrições off-label, enquanto se
buscam opções eficazes e seguras de tratamento farmacológico.
30
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