10
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
JESIEL FERNANDES VALE
A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:
EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA
SÃO LUÍS-MA 2007
11
JESIEL FERNANDES VALE
A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:
EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA
Monografia apresentada a Universidade Estadual do Maranhão como pré-requisito para obtenção do grau de licenciado em História.
Orientadora: Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer
SÃO LUÍS-MA 2007
12
JESIEL FERNANDES VALE
A EXPERIÊNCIA ALEMÃ E ITALIANA:
EXPERIMENTAÇÃO IDEOLÓGICA E POLÍTICA DO ESPETÁCULO NO ESTADO FASCISTA
Monografia apresentada como exigência parcial para obtenção do grau de licenciado em História, à banca examinadora da Universidade Estadual do Maranhão.
Aprovada em ______/___________/________
BANCA EXAMINADORA __________________________________________________
Profª. Drª Adriana Maria de Souza Zierer (Orientadora) Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________
Universidade Estadual do Maranhão __________________________________________________
Universidade Estadual do Maranhão
13
RESUMO
O presente trabalho adentra aos portais da História política para estudar o fascismo. Ao fazer isso não se contenta em narrar os fatos pelo uso exclusivo dos cânones da História marxista. Ao contrário, busca-se uma fusão das contribuições das teorias marxistas com as da História Cultural, a fim de produzir uma narrativa analítica e discursiva do tema. Inicialmente, se faz uma abordagem do contexto europeu no início do século XX, tentando entender o surgimento do fascismo. A seguir, o tema é discutido pela compreensão do fascismo através dos contatos entre as ideologias existentes, bem como das movimentações dos principais partidos políticos envolvidos.A partir daí, traça-se um percurso em que o fascismo é visto como “política do espetáculo”, e aqui são utilizados os parâmetros mais recentes da História Cultural para tratar de questões como as formas pelas quais o fascismo toma proporções extensas, os métodos operados pelo Estado fascista para trazer o regime político para o centro da vida das pessoas. Finalmente, dedica-se um capítulo em separado para rastrear o cinema como uma das formas encontradas pelos líderes fascistas para criar a imagética do poder e garantir, junto com os demais meios a eficácia do regime, juntando assim métodos da política tradicional e artifícios da moderna política de massas muito bem explorada na Itália e Alemanha que viram crescer um fenômeno ainda hoje estudado.
PALAVRAS-CHAVE POLÍTICA. IDEOLOGIA. FASCISMO
14
RESUME
Ce travail dépasse les portails de l’Histoire politique pour étudier le fascisme. En ce faisant il ne se borne pas à raconter les faits par l’utilisation exclusive des canons de l’Histoire marxiste. Bien au contraire, on cherche la fusion des contributiosn des théories marxistes avec celles de l’Histoire Culturelle, afin d’en produire une narrative analytique et discursive du thème. Au tout début, on fait un abordage du contexte européen au commencement du XX siècele, en essayant de comprendre la naissance du fascisme. Ensuite, le thème est abordé par la compréhension du fascisme à travers des contacts entre les idéologies existantes, bien que des actions des principaux partis politiques impliqués. A partir de ce point-là, on établit un parcours dans lequel le fascisme est vu comme “politique du spetacle”, et c’est ici qui sont utilisés les paramètres les plus récents de l’Histoire Culturelle pour traiter de questions comme les moyens par lesquels le fascisme atteint des proportions considérables, les méthodes operes par l’Etat fasciste pour amener le régime politique au centre de la vie des personnes. Finalement, on dédie un chapitre à part pour investiguer le cinéma comme un des outils choisis par les leaders fascistes pour créer l’imagétique du pouvoir et garantir, avec les autres moyens l’efficacité du régime, en rassemblant ainsi des méthodes de la politique traditionnelle et des artifices de la moderne politique de masses très bien exploitée en Italie et en Allemagne qui ont vu grandir un phénomene étudié jusqu’aujourd’hui. MOTS-CLEFF: POLITIQUE. IDÉOLOGIE. FASCISME.
15
À Deus que me ajudou até aqui À minha família e amigos, grandes inspiradores Aos meus professores pelos sábios ensinamentos
16
AGRADECIMENTOS
Eu tenho uma viva gratidão a todos aqueles que contribuíram de forma direta ou indireta pra que eu lograsse êxito até este momento especial de minha vida.
Agradeço a Deus, Sustentador da vida. Agradeço a minha mãe e meu pai, fiéis e laboriosos companheiros de todas as
horas, por seu amor infinito. Agradeço a meu irmão pela camaradagem Agradeço aos meus amigos e professores, que me auxiliaram no desafio de
pensar historicamente.
17
“A dúvida é o sal do espírito, sem uma pitada de dúvida, todos os conhecimentos em breve apodreceriam.”
Emile Auguste Chartier
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................. 10
1 UMA EUROPA EM CRISE: para uma definição inicial do fascismo .......................... 13
2 CALEIDOSCÓPIO DE IDÉIAS: contatos entre ideologias no Estado fascista....... .... 34
2.1 Itália e Alemanha: partidos políticos e trincheiras de batalha no Estado fascista.. 36
2.2 Ideologia: um laboratório de ensaios para o fascismo ............................................ 44
3 A POLÍTICA COMO ESPETÁCULO: o deslocamento para uma tática de massas... 55
3.1 A imagética do espetáculo: mitos e legitimação do Estado fascista ......................... 56
3.2 O poder rouba a cena: métodos de operacionalização da política do espetáculo.... 65
4 Cinema no regime fascista: a sétima arte e seu impacto sobre o público...................... 78
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 99
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 100
19
INTRODUÇÃO
A imagem do trabalho de um ferreiro. Eis uma idéia plausível na caracterização da
tarefa da História. Nem tanto por se admitir aí uma missão puramente comprometida com a
construção de uma linearidade evolutiva de compreensões, mas, sobretudo porque tal como o
ferreiro o historiador precisa trabalhar com materiais que merecem um lento esforço a fim de
se chegar a um resultado apreciável e, mesmo toda diligência pode não implicar
necessariamente no objetivo almejado. As ferramentas postas à disposição de um e outro em
sua faina diária podem lhe auxiliar, porém, como o ferro e a bigorna, nem sempre as matérias
com as quais o historiador trabalha lhe darão um ideal definitivo e intocável.
Ei-los aparentemente paralelos em seus ofícios: o ferreiro e o historiador. Este,
manipulando fontes textuais expostas ao tempo e às múltiplas interpretações. Aquele,
trabalhando não menos arduamente em sua bigorna tentando obter dali um a ferramenta ou
um objeto útil às futuras gerações ou a seus contemporâneos. Ambos parecem defrontar-se
com uma sina inglória na qual um ou outro auxílio permanentemente lhe causa a sensação de
descontentamento ante a constante presença de obstáculos quase intransponíveis por razões
não completamente controladas pelas suas habilidades internas e pelas técnicas aplicadas.
Por outro lado, tanto um como outro, em regra, chega a um trabalho que após sua
conclusão desligar-se-á da figura de seu autor. Este é paradoxalmente o momento mais
significativo de toda a operação engendrada por estes artesãos em suas oficinas. O exato
instante em que uma vez dada por finda, a produção estará exposta à crítica de seus
companheiros de profissão e aos olhares mais diversificados que se possa imaginar.
Pode-se mesmo dizer que tal metaforização apresenta-se como indicativa também do
trabalho dos historiadores mais especificamente ocupados em estudar o fascismo. Entretanto,
alguns outros ingredientes devem ser incluídos para melhor dimensionar o desafio que é
adentrar o terreno das pesquisas sobre o Estado Fascista. E deste ponto se pode também traçar
algumas diretrizes a fim de atender à necessidade de seleção de aspectos que serão vistos.
Com efeito, na teia do que muito se tem escrito sobre a História do fascismo, os
pesquisadores - por não poucas vezes - se acham mais enredados pelos fios da narrativa que
20
provocados a transpor os mesmos e passar a outros caminhos de análise. Isso porque em
diversos momentos o estudioso caminha por um percurso metodológico perigoso que é o de
envolver-se tanto na descrição dos fatos, que a crítica e os questionamentos que deveriam
nortear primordialmente o seu labor, ficam relegados a um plano secundário. Importante é
então retomar as pesquisas.
Uma vez que os percalços de uma narrativa assim tecida são perceptíveis, não se
pode deixar de reestudar a experiência fascista cujas pistas teimam em provocar o mundo
contemporâneo despertando perplexidades a serem respondidas ou pelo menos, discutidas.
Nomeadamente seria de se perguntar: afinal, por que o fascismo? A aparente superficialidade
da pergunta logo se desfaz quando a ela se juntam suas decorrências, diga-se, não poucas.
Ao se perguntar “por que” o fascismo, o historiador precisa ter em mente que não se
trata só de uma das experiências traumáticas das muitas presentes no século XX, ou mesmo,
um tema classificado entre os “pontos quentes”, dada a multiplicidade dos escritos. Para além
disso se deve questionar sim a diversidade de escritos tanto de fontes contemporâneas aos
fatos como de autores que não viveram, mas estudaram a fundo o estado Fascista.
Também, nessa empreitada, o estudioso se depara com a preocupação que ocupa a
presente pesquisa. Ora, a pretensão seria explicar o fascismo numa abordagem dupla: a
marxista e a da História Cultural. No tecido explicativo já construído parece ter havido uma
insistência em priorizar uma ou outra abordagem. Todavia, as leituras direcionadas à pesquisa
da experimentação ideológica presente na Itália e Alemanha dos anos vinte e trinta do século
XX, apontam noutra direção. Se por um momento, marxistas e liberais construíram
argumentações dignas de consideração, atualmente, chega-se a um estágio da pesquisa em que
o Estado Fascista precisa ser projetado numa perspectiva cultural de indagação.
Não por acaso se compreende aqui que o fascismo em suas manifestações naqueles
dois Estados então recentemente unificados, foi possível entre outras razões, principalmente a
partir da experimentação ideológica anterior ao Reich alemão e mesmo ao governo do Duce.
Foi corolário desta experimentação anterior, a viabilidade do que se pode denominar política
do espetáculo. Um trabalho sistemático envolvendo estas duas variáveis de estudo pode ser
produzido com o recurso aos parâmetros teóricos fornecidos tanto pelo marxismo quanto
pelos contributos da recente História Cultural. Exercício desafiador e também instigante.
21
Diz-se não ser fortuita esta preferência e justifica-se: a definição do fascismo foi
buscada das mais diversas formas nos escritos de marxistas e outros não marxistas envolvidos
cada um com determinados pressupostos e condicionamentos. Mas, cotejando os escritos
ainda a serem analisados nesta pesquisa aparece a efetividade de todo um arcabouço
ideológico que serviria de matéria-prima a estabilização de um projeto e as movimentações
políticas construídas nos Estados fascistas. Trata-se de pontos dignos de relevo nas pesquisas.
Importa lembrar: ambas as nações estavam ainda em pleno desafio de
nacionalização. Poder-se-ia dizer: um trabalho ainda em curso. Por isso mesmo faz-se
necessário encarar que os anos que antecederam os governos de Hitler e Mussolini não
fizeram menos que propiciar aquele panorama ziguezagueante notável nas esferas política e
ideológica. De fato, é impossível dissociar o fascismo do nacionalismo mencionado antes.
Quando se fala em idas e voltas no prisma político, se destaca aquela política dita
“espetacular”. Uma política que se pretendia una, mas que teve que conviver com constantes
mudanças de posicionamentos, eliminações físicas e concessões a figuras oriundas de prismas
intelectuais até mesmo divergentes do ideário fascista. Neste ponto, a fantasia da unidade da
nação se concretizava através de uma política urdida nos bastidores palacianos tradicionais e
ainda na praça pública enquanto espaço privilegiado de encenação e de coesão social.
Some-se a tudo isso o cenário histórico delicado vivido por uma Europa suspensa por
uma atmosfera crítica onde a paz ofuscava-se por uma corrida armamentista iniciada desde
fins do século XIX. Posteriormente, as tratativas de paz daquele que havia sido o primeiro
conflito mundial pareciam mostrar ao mundo serem acertadas as palavras de Wiston Churchill
ao referir-se a Segunda Guerra Mundial e avaliar da seguinte maneira: “Esta guerra não é
senão uma continuidade da primeira”.1 Uma paz armada, uma paz de tênue tranqüilidade.
Em contrapartida, ao dar vozes aos atores da época, deve-se sempre ter em vista que
suas falas são de um lugar determinado e, obviamente, não podem ser tomadas de modo
passivo. O desafio do historiador do fascismo será não desprezar estes personagens, seu
ambiente e, ao mesmo tempo discutir o que se tem escrito sobre os Estados Fascistas com as
implicações e os limites impostos por este esforço intelectual.
Como conectar os fios dessa concha retalhada? Ao manipular esse material delicado,
o estudioso se depara com a mutabilidade decorrente do próprio objeto do estudo da História 1Discurso feito por Wiston Churchill no parlamento inglês em 21/08/1941.
22
que é aventura do homem ao longo do tempo. Felizmente o arsenal científico tem sido
produzido nos últimos tempos através da compreensão de saberes socialmente partilhados.
E não poderia ser de outra maneira, sob pena de infligir ao estudioso uma missão
hercúlea da qual não poderá se ver bem sucedido a menos que saia do isolacionismo e busque
um trabalho interdisciplinar. Um trabalho de pesquisa dos escaninhos das ciências humanas e
que nem por isso relegará a especificidade da historicização que o tema do fascismo imprime.
Tal como o ferreiro, ressalte-se, o historiador necessita de paciência e tempo para lapidar seu
material e quem sabe ao fim da criação não se incomodar em expô-lo a crítica dos curiosos
que se atrevam a adentrar os portais da História.
1. UMA EUROPA EM CRISE: para uma definição inicial do fascismo
É de praxe que os historiadores iniciem sua discussão sobre um determinado tema
tentando demonstrar contextualmente como este pode ser apreendido levando-se em conta os
aspectos sócio-econômicos e culturais a fim de delimitar o tempo e o lugar investigado. Uma
explicação deste tipo pode ser realmente bastante útil no que toca ao envolvimento do leitor
ou de quem quer que pesquise o interior da narrativa. Entretanto, ela não satisfaz de todo.
Quando se fala em situar os fascismos em seu tempo pode-se ter, em uma apreciação
rápida do enunciado, a impressão de que a seguir se fará previsivelmente a apresentação
factual da época selecionada para o presente estudo. Claro que alguns elementos constituintes
daquela realidade não podem ser prescindidos. A maneira de apresentá-los é que pode
incrementar a pesquisa, acrescentando-lhe esclarecimentos cruciais ao entendimento do tema.
Seria o eterno mito das origens a importunar a persistência dos laboriosos estudiosos
das ciências humanas? Mesmo que se prefira a resposta afirmativa, ainda assim pode-se fugir
ao risco de ficar preso a habitual estratégia assinalada acima. De antemão é preciso esclarecer
que não se compreende aqui o nazismo como a forma mais acabada de todo o fenômeno que
estruturou a História da Alemanha e Itália durante o período entre-guerras e após ele.
23
Dada a sistematicidade da política externa cujos efeitos são lembrados até os dias
atuais no holocausto, na violência de Auschwitz, nas mortandades impostas das formas mais
inumanas, o nazismo é comumente tido como a excelência do estado fascista. Esse olhar tem
bloqueado às análises o fato de que não se pode conceituar o fascismo univocamente e nesse
conceito querer classificar igualmente todas as ações, independente de quem ou de onde se
trata. Por isso é que situar o fascismo em seu tempo deve ser um esforço de historicização.
A compreensão deste objetivo de historicização é bem específica. Ela se coaduna
com a premissa de que as investidas dos Estados e as ações dos homens nestes corpos
institucionais não são produzidas aleatoriamente. O fascismo não pode ser tomado por uma a-
história em que brotam pensamentos e as intenções são efetivadas ao mero talante de uma
vontade filosófica pura. Os acontecimentos nem sempre resultam de forma natural das
intenções planejadas. Por isso mesmo, o exame histórico não pode ser rejeitado.
Ao se historicizar o fascismo é preciso integrar sua evolução no marulho de uma
corrente mais profunda que é a da História contemporânea. Assim é que se pode falar em uma
Europa em crise. Uma crise tanto ideológica quanto político-econômica. Ambos os aspectos
ficarão mais esclarecidos em capítulos próprios. Por enquanto podem ser anunciados alguns
destes fatores atendendo a contextualização aqui proposta. Neste sentido destaque-se:
A conjuntura de crise também deve ser levada em conta, a fim de se explicar como parte significativa dos trabalhadores se deixou mistificar pelo nazismo. (…) Com a crise e o desemprego sua organização sindical também perdia muita força, tornando mais difícil conter a arrancada nazista. (LENHARO, 2001, p.16)
A cisão em que se encontra o continente europeu é também perceptível quando se
observam os paradoxos da política implementada. A conjuntura de crise leva os líderes
políticos de grande audiência ao recurso da guerra como válvula de escape para as tensões
sociais. Mirabolante estratégia: a de tentar ver numa atividade eminentemente destruidora
como a guerra, a resposta criadora às demandas sociais que se apresentavam àquela massa
trabalhadora reivindicante de melhores condições de vida. Por isso, Alcir Lenharo enxerga a
crise da própria classe trabalhadora como componente de sua adesão ao regime hitleriano.
24
Mais do que um sinal da crise, o fascismo foi mesmo a lógica em que se insere a
relação moderna de coesão entre os estratos sociais. Mas, no interior do panorama fascista o
consenso era demanda permanente. Por isso, a articulação entre os estratos se transporta para
uma lógica específica que permite entender a genética funcional do Estado fascista.
O leste europeu havia dado em 1917 uma prova de que as demandas populares
imprimiam uma nova estratégia discursiva e prática por parte das classes dominantes. Com
efeito, havia que se modernizar o modo de fazer política e para, além disso, havia que se
estruturar uma forma de vencer o paradoxo das direitas européias.
Aqui inicia o aspecto ideológico da crise. Em verdade, indissociável do aspecto
político. O fascismo pode ser encarado como a forma encontrada para solucionar estes fatores
de crise. Se em um período estável a política direitista pôde servir de suporte para a
continuidade da obtenção da mais-valia e da produtividade capitalista, a crise instalada em
nível europeu pedia novas estratégias de arregimentação dos estratos sociais.
Observando esse caráter crítico, a obra O fascismo italiano, destaca:
Totalitarismo: sistema de governo segundo o qual um grupo político centraliza todos os poderes, não permitindo a existência de outros partidos e sobrepondo teoricamente os interesses coletivos aos individuais. Mesmo não sendo rigidamente necessário, requer um consenso amplo. (TRENTO, 1993, p. 91)
Mais uma vez a busca por conceituar fica patente. Para este autor, evidencia-se o
fascismo enquanto regime de uma semiótica da coesão. Evidentemente, buscavam-se
respostas para as experiências dilacerantes do primeiro conflito mundial recente. Afora isso,
em termos geopolíticos havia uma Itália descontente com os louros insuficientes de uma
vitória que muito contou com seu auxílio; uma Alemanha subjugada por pesadas reparações
de guerra para um conflito que havia sido apresentado como soerguimento econômico através
de uma economia de cunho bélico-armamentista.
O consenso era necessário e, lembre-se que o consenso numa situação de crise parece
ser um norte salutar ainda que este não esconda as hierarquias que lhe dão sustentação.
Paralelamente não se pode esconder a contraditoriedade no seio das hierarquias. As esquerdas
baseadas no referencial teórico marxista pareciam apresentar uma base sólida de compreensão
25
da realidade histórica. Este contexto descortina o descompasso no interior das alas liberais
burguesas com que o fascismo teve que se defrontar desde seus primeiros passos.
Uma nova forma de política e de articulação entre os segmentos sociais se
avizinhava. Por outro lado, o consenso perseguido não visaria uma obtenção de meros
indivíduos cordatos, desmobilizados. Por isso não se tratava de um labor simples. Ainda mais
porque, se observa na obra Introdução ao Fascismo:
(…) Essa contradição interna do pensamento da direita tornava extremamente problemática a coordenação do seu trabalho de resolução de problemas teóricos com o seu trabalho de resolução de problemas práticos. Os ideólogos especulativamente melhor aparelhados da direita (…) não assumiam funções significativas na direção de organizações conservadoras especificamente políticas. (KONDER, 1979, p. 7)
Leandro Konder percebe uma característica que anuncia um obstáculo a ser
trabalhado pelas lideranças fascistas. Neste caso, uma construção teórica em descompasso
com uma ação prática tem como corolário toda uma experimentação ideológica em que as
enunciações dos matizes mais distintas convivem lado a lado: ora aproximando-se, ora
distanciando-se conforme o momento que se viva. Teóricos não engajados e políticos pouco
especulativos: eis uma marca do ideário do fascista que era gerado paulatinamente.
Nada obstante estes paradoxos, é nestes primeiros anos do século XX que se devem
buscar as principais vertentes de ação do fascismo. Isto porque é precisamente neste momento
que os fascistas se deparam com contradições a que precisam responder e o fazem de maneira
cirúrgica, contornando bem ou mal os referidos paradoxos de uma maneira que garanta ao
movimento de um partido, de um pequeno grupo de pessoas se tornar um regime vigoroso a
arrebatar multidões, como ocorreria mais tarde nos anos 30 e 40.
Conforme os meios interpretativos utilizados sobre essas respostas, pode-se ver o
fascismo de formas diferenciadas. Ao analisar a Europa tendo por mote o estudo da resolução
destes paradoxos, tentou-se responder a questão mais profunda do porquê o fascismo eclodira
naqueles anos destacados, naquelas nações. Em linhas gerais se tem: a interpretação marxista,
o enfoque “liberal-totalitário” e o identificado com a social-democracia, ou “modernização”.
26
Essas três linhas foram escolhidas por uma identificação com o que poderá ser visto
mais claramente no quadro das experimentações ideológicas presentes nos partidos políticos
contemporâneos ao fascismo. Tendo-se em conta as clivagens políticas, esta parece ser a
classificação mais flexível para perceber as interações entre os posicionamentos assumidos.
Daí a importância de se observar tais vertentes, percebendo seus contributos e seus limites.
A teoria marxista procura estudar o fascismo, tomando por premissas uma meta-
história. Trata-se de uma explicação cuja divisa é ser uma historiografia total dos
acontecimentos; além disso, o marxismo tenta explicar o fascismo tomando por base
pressupostos de uma teoria que se julga revolucionária. Em resumo: explicar o modo de
funcionamento da História e, a partir desse arcabouço teórico, produzir a condição para
viragem desta História. Uma dialética entre infra-estrutura e superestrutura: eis o motor da
História. As condições materiais determinando a ideologia: aí uma marca do marxismo.
Sabe-se que se trata de uma teoria que vai passando por revisões que tentam ser
menos radicais quanto à determinação da infra-estrutura sobre a superestrutura. Quando
analisa o fascismo, a teoria marxista privilegia o diálogo entre as duas esferas citadas. Nesse
percurso o que importa são as contradições do sistema capitalista. O fascismo respondeu
então a estas contradições de um sistema econômico e, não por acaso, são as condições
materiais que dizem os “porquês” do fascismo neste ou naquele país com umas e não outras
características.
O entendimento das variáveis da sistemática capitalista acaba comprometendo o
estudo marxista porque a História, assim demonstrada, denota um fenômeno complexo como
o fascista à moda de um devir inelutável. As ações das classes, dos agentes envolvidos só
podem ser compreendidas levando em conta que eles cumprem um desígnio implacável do
tempo já que a disposição das peças no quebra-cabeça não poderia levar a outra conseqüência.
A discussão marcante dos estudos sob a perspectiva da modernização não se
distancia muito do trajeto marxista. Nesta segunda linha de análise, encontra-se o problema do
fascismo como uma forma de modificação das estruturas, uma vertente de amenização ou
humanização das marcas exploradoras do sistema capitalista. Enquanto o flanco marxista
enxerga a necessidade de eliminação do sistema, a vertente social-democrata vislumbra uma
estratégia de reformas que acomodasse de forma menos traumática os agentes históricos e o
sistema capitalista. Nessa linha, o fascismo atuou justamente nessa direção.
27
A perspectiva de reforma e não de eliminação, promove o confronto destas duas vias.
Como observa um estudioso:
O fato de durante a maior parte do tempo de existência do seu partido os comunistas alemães terem considerado a social-democracia como inimigo muito mais perigoso do que o nacional-socialismo e terem-na hostilizado por vezes com enorme virulência não impediu que todos eles, comunistas e social-democratas, sofressem, depois de 1933 iguais ignomínias e partilhassem os mesmos campos de concentração. (BERNARDO, 1998, p.192)
Neste instante, o autor situa um pouco do que será detalhado no capítulo referente
aos partidos políticos, as inversões e posicionamentos da ideologia presente no caldo cultural
do Estado fascista. Isto não impede que se proceda ao acompanhamento da forma como o
fascismo é apresentado nesta via da modernização já que esta via explicativa aproxima-se
bastante da forma como o fascismo era encarado naquelas agremiações políticas da época.
O determinismo economicista presente nas análises marxistas cede lugar aqui a
outros componentes. O problema é a falta de modernidade; por este fato, a segunda linha de
análise exemplificada em alguns de seus representantes 2 mostra que era necessário fazer
reformas no sistema; mesmo que estas reformas não levassem em consideração de maneira
obediente as ideologias e os agentes potencialmente identificados com as mesmas. Mas, se
sabe que a ideologia desempenhou um papel fundante para instalação dos fascismos e os
líderes argutos do regime acabaram mesclando um pouco das duas vertentes anteriormente
referidas. Passe-se então ao mapeamento da terceira via relacionada.
O esquema identificado como “liberal-totalitário” ocupa diversos autores cuja
principal marca é verem o fascismo como sistema ou fenômeno que é fruto de um
desenvolvimento irregular da história. Neste sentido, o fascismo, nas linhas de estudiosos
como Hannah Arendt, Erich Fromm e o próprio Norberto Bobbio, foi não mais que um desvio
da História dos Estados liberais. Seria um produto indigesto de componentes isolados,
relacionados ou com a natureza humana, ou com a política internacional. Trata-se de discurso
útil a defesa das criações democráticas. Um balizamento à estratégia de apologia das
engrenagens da democracia.
2 ORGANSKI, A. F. K. Fascism and Modernization. IN: WOLF, S. J. The Nature of Fascism. Londres: 1968, p.19-41.
28
O fascismo, assim apresentado, teria sido um problema das instituições democráticas
exacerbado por caracteres inatos das massas humanas. Sabe-se que o regime fascista travou
uma relação estreita com as massas e, mais do que isso, procurou a elas dirigir-se através do
que se pode identificar como política do espetáculo. Seria o problema das massas o fator de
impulso dos traumas do fascismo ou, ainda, o fascismo seria a face nociva do Estado liberal.
Não se pode negar o caráter de crise presente na Europa em análise. Por outro lado,
os autores aqui identificados parecem reiterar a compreensão dos partidos de direita para os
quais a crise necessitava de uma alternativa que restaurasse a ordem de uma sistemática
liberal cuja estabilidade era a meta e a razão de ser. Nas palavras de um estudioso do tema:
Como bons liberais e conservadores frente ao desafio da democracia, muitos destes autores viram nas massas o inimigo fundamental dos equilíbrios e virtudes próprios do liberalismo realmente existente (…) Em suma, conseguia-se assim que o fascismo e o comunismo pudessem aparecer como aspectos de um mesmo processo ou fenômeno; ao mesmo tempo, reivindica-se a democracia liberal, situando-a, por definição nas antípodas daqueles. (CAMPOS, 2007, p. 2)
A citada interpretação coaduna-se com a natureza das respostas dadas pelo fascismo
e ajuda a melhor percepção do contexto que se está tentando caracterizar no presente capítulo.
Numa Europa repleta de tantos variantes, a exemplo dos problemas econômicos e das diversas
vias de análise, as habituais formas encontradas para definir os contatos entre as esferas
sociais, abrem espaço para umas realizações específicas dos fascismos.
Logicamente, não foram essas respostas - em todos os momentos - fruto de uma
intencionalidade. O fato é que os grupos políticos em geral procuram ter um controle mínimo
sobre os resultados que julgam ser os mais adequados. E, deliberadamente ou não,
influenciam em determinados aspectos do curso da história. Assim, deve-se analisar como
naquela Europa dos anos 20 e 30 houve a conexão específica entre os segmentos sociais que
marcou o fascismo. Aqui se destaca especialmente o papel da tecnocracia como interlocutora.
Como se disse anteriormente, as nações européias assistiam a uma crescente
mobilização das classes trabalhadoras. Os ecos disso eram sentidos no inter-relacionamento
entre patrões, empregados e a própria tecnocracia. Esta última, desempenharia uma atividade
29
imprescindível a fim de que a relação trabalhadores versus empregadores não fugisse ao
controle, de tal forma a produzir a preponderância dos primeiros em detrimento dos segundos.
Sabe-se que a fórmula de ordem dessa relação contraditória normalmente pendia para
o lado dos empregadores. A radicalização gradativa da luta social compõe um elemento da
Europa que está sendo retratada. A despeito do arrefecimento da luta - devido a circunstâncias
de crise econômica e política - os reflexos da Revolução Russa de 1917 e o aprofundamento
das teorias marxistas por uma tomada de consciência por parte da classe trabalhadora, eram
elementos que ganhavam um terreno expressivo no panorama dos embates sociais.
Paralelamente a essas mudanças, a forma de solução dos conflitos vai se alterando. A
classe dos gestores vai inserir-se na topografia deste solo espinhoso de uma maneira bastante
útil, compondo o que se pode designar como tecnocracia fascista. Anteriormente à atuação da
nova tecnocracia, a disputa se dava entre trabalhadores e capitalistas num envolvimento
direto. O corporativismo é o responsável pelas acomodações distintas tecidas posteriormente.
O corporativismo inaugura a possibilidade de que os gestores pudessem dar as cartas
no jogo político e social do Estado fascista. Os gestores apareceriam como terceiro
“desinteressado”, um agente que não pertencia nem diretamente a classe dos capitalistas e
muito menos a classe dos empregados. Por isso azeitava-se a engrenagem capitalista que
poderia assim funcionar mais confortavelmente. O Estado é dito corporativista quando
consegue tomar as reivindicações sociais e resolvê-las de uma forma até então não imaginada.
A cooptação seria a tônica desta estratégia em que, desmobilizando-se a luta social,
conseguia-se atender algumas de suas demandas sem permitir que a lógica tomasse
proporções indesejadas, principalmente para os capitalistas. É de se perguntar: seriam só estes
fatores suficientes para explicar a originalidade da dita tecnocracia existente no fascismo? As
implicações do processo fornecem outras variáveis para compreensão maior do fascismo e
também do panorama político-social dos Estados fascistas em formação na Europa.
Pode-se notar uma correspondência muito interessante entre a posição eqüidistante
dos pólos burguesia e proletariado e a ação dos gestores. De início, pensa-se que ao promover
a continuidade do sistema capitalista, os gestores atuaram sistematicamente em favor da
burguesia e contra os trabalhadores. Pensar historicamente é um desafio que não se contenta
com estas respostas semi-automáticas. Há que se questionar compreensões desta natureza.
30
O fato de os gestores estarem posicionados da maneira especificada permitiu-lhes
simultaneamente cooptar a classe trabalhadora e conter a burguesia em seu afã lucrativo. Em
outras palavras, a classe dos gestores constrói o espaço de sua atuação em consonância com as
concepções táticas do próprio nacional-socialismo alemão ou do corporativismo italiano.
Volta-se aqui ao problema delicado da saga unificante, do projeto nacionalizador
com que se deparam os líderes do Estado fascista. Neste sentido, ao atendimento das
demandas sociais, se junta a preparação para um “Estado da Ordem”. Trata-se de um Estado
em que as reivindicações existem e podem até ser atendidas, desde que fixadas no lócus das
instituições. E não apenas isso: no processo de cooptação referido consegue-se notar o
potencial explosivo que adquiririam as massas enquanto futuro sustentáculo do regime.
A probabilidade da revolta parece constantemente contida pela ordem
institucionalizada. Esta, por sua vez, não é mera representante de uma classe capitalista, mas
se torna autônoma e porta realizações peculiares. Este fato acompanha o circuito primordial
de existência do Estado fascista. A ordem não se constrói no esquema da burguesia mais
classe gestora. Isso pode ser verificado se for aplicada um pouco mais de atenção.
É um movimento que está tomando corpo até se tornar um regime. Trata-se de uma
reviravolta que age nas fímbrias da paisagem histórica. Percorrendo as arestas dessa
geometria, continuamente vai se perceber uma complexidade a envolver igreja, partidos
políticos, sindicatos, exército, milícias armadas. Atores imprescindíveis para a permanente
tensão dos eixos da ordem e da revolta que se destaca como item inerente ao Estado fascista.
Novamente aparece aquela posição de eqüidistância observada na classe dos
gestores. Apesar deste caráter original, a figura do líder infalível - o Füher e o Duce - não foi
prescindida. Após a tomada do poder ela se tornaria muito mais evidente. Isso não quer dizer
que não houvesse divergências ou posicionamentos políticos contraditórios na dominação
fascista. Aqui reside a própria diferença entre a tecnocracia fascista e a tecnocracia liberal.
Enquanto a liberal transmuda-se historicamente com a sofisticação de seus aparatos
dominadores recentemente identificados na diluição da autoridade empresarial, a tecnocracia
fascista aprofunda a estatolatria, isto é, o culto à infalibilidade de um líder. Este aspecto não
pode ser entendido se não forem conectados os segmentos sociais, a paisagem do embate
interno do Estado, e os elementos potencialmente revolucionários e reacionários.
31
Se o ângulo de apreciação for direcionado à Igreja, podem-se perceber marcas
específicas que diferenciam a Itália da Alemanha. Ora, tanto uma como outra nação, haviam
sido berços importantes da cristandade e, por via de conseqüência a Igreja era uma força
social destacada. Sabe-se da Itália tradicionalmente católica e do território que compunha a
Alemanha muito dele abrangido pelo SIRG (Sacro Império Romano-Germânico).
Uma atenção ao peso social da Igreja ocupa também o estudo da história do
fascismo. Nesta direção, Wilhelm faz questão de destacar:
a) Os eclesiásticos eram considerados funcionários do Estado; b) com base na lista de contribuintes civis, a Igreja tinha o direito de cobrar impostos; c) o Estado garantia o ensino da religião nas escolas primárias; d) A Igreja gozava de ampla liberdade no exercício das suas atividades religiosas, comerciais e industriais (fabricação de livros, cerveja e aguardente), etc. (REICH, 1974 apud WATRIN, 2007, p.111-112)
Nesta parte de sua obra, o autor refere-se ao apoio nazista dado a Igreja. Já havia sido
instalado o governo hitleriano e tal política bem atendia aos intentos iniciais do partido
nazista, desde os anos vinte. Não só não se deveria fazer uma dizimação massiva dos clérigos
- veja-se a Rússia stalinista - como em dados momentos houve até o estímulo observado pelo
autor. O estudioso destaca que a educação tem forte contribuição da Igreja, a futura grande
nação era cimentada também com o apelo do controle da mentalidade, o que não deve ser
desprezado.
Nem a experiência de um certo neopaganismo impediu que essa relação contígua se
definisse. Com efeito, o neopaganismo tentava restaurar uma ordem secular no governo de um
regime que não precisaria tomar as bênçãos nem mesmo de uma instituição tão poderosa
como a Igreja. Sabe-se, porém, que tal instituição não poderia ser totalmente relegada, diga-
se, pela sua influência no centro das questões inerentes à unidade dos agrupamentos sociais.
Na Itália a assinatura de concordata entre a Igreja e o Estado garantiu um raio de
ação também bastante confortável. Assim como na nação alemã, houve entre os italianos uma
abertura para a instituição dos clérigos, os quais não tiveram que enfrentar tantas perseguições
quanto outros grupamentos humanos, a exemplo de judeus e grupos do leste europeu.
32
Outro grupo de peso envolvido no palco histórico do surgimento do fascismo foi o
exército. Aliás, uma sistemática de guerra dialoga com a instituição que por excelência lhe
representa que é o exército. Porém, a relação dos corpos militares organizados pelos Estados e
as diretrizes do nacional-socialismo nem sempre é tão facilitada quanto se possa pensar.
Nem sempre os sinais desta matemática funcionam simetricamente numa
correspondência sem atritos. Pelo menos os altos corpos militares estão acostumados a ocupar
posições estratégicas e essa busca de poder denota uma certa disputa que precisa ser
acomodada consoante ocorre em quaisquer espaços onde surgem fricções no poder.
A despeito dos nacos de poder serem almejados pela guarda formada pelos nazistas
alemães e o exército, isto não impediu sua aproximação. De fato, a viabilidade das SS
(Esquadrões de proteção) bem como das SA (Seções de Assalto) só pode ser entendida a
partir do exército. As SS foram as milícias armadas que acabaram servindo de guarda pessoal
para Hitler no governo do Reich. As SA foram milícias privadas que compuseram o que se
pode chamar de ferramenta da revolta nazista. Foram bastante úteis como corpo armado
desligado do exército e pronto a mostrar seu trabalho em ações rápidas a serviço dos nazi.
Esses grupos armados se alimentaram do ideário hierárquico de autoridade e
violência já existente nos exércitos estatais. Estes possuem uma formação militarizada, isto é,
a obediência à hierarquia, a ação armada, a obediência conseguida por meios pacíficos ou não.
Além disso, as milícias revolucionárias na Alemanha e Itália acabaram recebendo apoio com
armamento e até treinamento. Não é difícil perceber este fator uma vez que já se disse serem
tanto as SS quanto as SA grupos que não pertenciam originariamente ao Exército, por sinal
muito utilizado na I Guerra mundial. Daí a necessidade de aclimatação à vida militar.
O papel desempenhado pelos altos comandos após a chegada ao poder foi exercido
pelos SS, num trajeto gradativo onde o exército, enquanto corpo estatal militar, cede lugar à
atuação daqueles grupos armados. Nota-se, nesse particular, novamente um agir tático do
fascismo, colocando-se como terreno em que os atores envolvidos são próximos, mas, sua
proximidade harmoniza-se na medida proporcional em que participam do poder fascista.
Ainda outro segmento implicado na forma de interação promovida pelo fascismo
tem-se nos sindicatos. Já foi destacado que este setor foi importantíssimo na elaboração de
uma política de atendimento a algumas das demandas sociais. Cabe esclarecer aqui apenas
33
que este atendimento de demandas via sindicatos cumpria a função de amortecedor da própria
lógica de apropriação capitalista e, simultaneamente, um canal negociador pela via legal.
Os interesses intrinsecamente contraditórios são postos em pauta por meio da
existência do sindicato. Os contatos possíveis ao trabalhador na rede de relações inaugurada
com a existência dos sindicatos produzem novamente a potencialidade da revolta no interior
da ordem fascista. E diz-se “no interior” para denotar algo específico, ou seja, ao
circunscreverem-se as lutas no quadro de institucionalidade, se tem um caráter inovador que
não nega drasticamente a luta figurativizada pelos proletários, mas, a normatiza, também.
Não se deve perder de vista que a Itália pensada na Carta de lavoro previa um
espaço considerável de mobilização desses proletários, segmento importante das massas que
foram trabalhadas pelo partido. O partido é outro segmento significativo no painel da História
do Estado fascista. No capítulo dedicado a falar do quadro político serão tecidos comentários
mais detalhados no tocante à obra dos partidos, sob o ponto de vista das ideologias.
Por hora, cumpre ressaltar sua preponderância, posto que é aí no partido onde se
assentam as diretrizes básicas para os principais modelos mentais a serem adotados. Lógico
que o partido não tece sozinho essas diretrizes, mas, ao construí-las, no conjunto dos demais
pólos envolvidos na lógica fascista (Igreja, exército, milícias, sindicatos), o partido trata de
enunciar aquilo que é tido como promissor para a sociedade que se queria ver construída.
Os posicionamentos do movimento que se tornava regime são encontrados em sua
maioria no programa partidário. Quanto à questão das confissões religiosas, pode-se citar um
trecho do programa do partido nazista a título de exemplificação:
Exigimos liberdade para todas as confissões no Estado, desde que não ameacem sua existência, ou não atentem contra o sentido ético e moral da raça germânica. O partido como tal representa o ponto de vista de um cristianismo saudável sem se ligar confessionalmente a um determinado credo. Ele combate o espírito materialista judeu dentro e fora de nós e está convencido de que um saneamento permanente do nosso povo só pode vir de dentro e com base em interesse coletivo antes do interesse individual. (SZNITER, 1996, p.18)
O trecho do programa partidário destacado pela autora é emblemático no sentido de
trazer à tona a compreensão do partido para anunciar a ação do Estado fascista no tocante à
34
religião. O que interessa não é perseguir um credo, ao contrário permitir que ele exista como
símbolo de um relacionamento com o transcendental que é tido como saudável, aceitável.
O que sobressai neste ponto é que a atitude prosseguida em relação ao estado fascista
é justamente aquela já assinalada quando se citou a colaboração dos partidos nazi-fascistas em
relação à Igreja. Evidencia-se assim que o partido não foi uma ferramenta esporádica dos
fascismos; ao contrário, muito contribuiu para sua realimentação através do estabelecimento
de diretivas a serem seguidas pela nação grandiosa que se supunha estar realizando à época.
Como se pode observar, o fascismo é uma temática complexa. Estudá-la apenas
pontuando os acontecimentos tidos como importantes é uma estratégia insuficiente. É preciso
complementar a apresentação dos fatos com a percepção da dinamicidade imposta pela série
de mudanças por que passa a Europa e, sobretudo os países aqui selecionados para estudo.
Uma crise social, dadas as circunstâncias da hiperinflação, reparações de guerra,
descontentamentos com a vitória frustrada (aqui especificamente no caso italiano), etc. E uma
crise especialmente nos blocos de poder, como assinala Ernesto Laclau3, analisando obra de
Poulantzas. Neste ponto, há que se deter no que o autor pretende em sua hipótese de trabalho
para que se situe mais ainda a Europa que viu nascer o fascismo nos primeiros anos do século
passado. A crise vista sob tal ótica é o que se passa, então, a destacar nas linhas seguintes.
A dinamicidade da tênue textura observada entre os diversos segmentos já é parte de
uma demanda com a qual se deparam os grupos da direita liberal que se revitaliza com o
fascismo. Ao enxergar este elemento, o autor destaca a categoria utilizada por Poulantzas:
O método de neutralizar a contradição bloco de poder/povo (…) pode ser sintetizado no nome que este procedimento recebeu na tradição política Italiana do tempo de Gilliotti: transformismo. Por transformismo entendia-se a neutralização política da possível oposição de novos grupos sociais através da cooptação de suas organizações políticas representativas ao bloco de poder. (LACLAU, 1979, p.121)
O autor destaca justamente um ponto tático intrínseco com o qual o fascismo lidou
constantemente. Percebe-se que a leitura marxista é a tônica dos enunciados do mesmo, e ele
observa o surgimento do fascismo por esta via. Nesse passo, vê-se o fascismo surgindo em 3 LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: Capitalismo, fascismo e populismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1979.
35
meio às contradições da passagem à fase monopolista do capitalismo. Possíveis elementos de
contestação àquela burguesia em ascensão eram paulatinamente mobilizados não
especificamente para o sistema capitalista, mas, por via reflexa, através de sua neutralização.
A passagem ao capitalismo monopolista - mote do estudo investigado pelo autor
citado - se fez de modo diferente na Itália e na Alemanha. Nesta, ocorrera uma tentativa de
unificação por parte de Bismarck em que se tentava por meio do Zollverein promover a
unificação econômica, sendo uma manobra que abriria um espaço bastante confortável para os
capitalistas, uma vez levada a cabo a proposta. Mas a Alemanha não assistiu isso.
A tão esperada unificação não ocorrera de forma tão completa. A nobreza junker não
se comunicava tão bem com esta ousada maquinaria capitalista e a natureza inacabada deste
capitalismo no momento da passagem à fase monopolista, foi sentida como crise a demandar
a estratégia destacada na citação acima. Na Itália a situação não era menos complexa.
Ao contrário, a sofisticação do capitalismo neste país se fez por meio da meta de
união de setores identificados com a lógica industrialista do capital e outros ainda arraigados
às marcas da nobreza feudal. É no centro dessas contradições que aparecem as práticas de
uma experiência ainda em gestação naquela Europa, ou seja, o Estado fascista.
Em meio a um contexto de crise hegemônica da direita liberal burguesa em nível
continental, a disputa ideológica paralela poderia operar uma mudança completamente
desconfortável para os setores envolvidos com a passagem ao capitalismo monopolista. O
fascismo não deve ser identificado exclusivamente como um regime representativo desses
grupos. Deve ser considerada toda a especificidade com que o regime se posiciona frente aos
diversos segmentos para não estabelecer a confusão do fascismo com o monopólio do capital.
Por outro lado, o fascismo trabalhou a probabilidade de haver uma identificação do
discurso ideológico popular democrático com as demandas por melhores condições de vida
presentes no socialismo. Impedir que o potencial revolucionário popular se acercasse de uma
ideologia capaz de desencadear mudanças estruturais sob o ponto vista político e econômico
foi o desafio vivido pelo fascismo ao concretizar seu ideário de eficácia junto à sociedade.
Nos meios urbanos, a presença de um proletariado mais ou menos organizado
poderia mesmo equacionar as contradições existentes por meio da elaboração do discurso das
demandas populares frente ao bloco de poder. Porém, a luta operada pelo fascismo não se
satisfez em causar uma reviravolta nos núcleos tradicionais de poder, mobilizando inclusive
36
as massas. O ciclo fascista se fecha quando há a constatação do desvirtuamento do conteúdo
político existente na chamada luta de classes. Como conseguir isso num palco complexo?
A criação de um sujeito que fosse interpelado sem que se fizesse alusão àquele
conteúdo político foi feita apelando-se à idéia de raça ou a mito da nação proletária. Ambos
são criações analisadas com mais vagar no capítulo dedicado à política como espetáculo. Aqui
apenas se destaca que foram saídas úteis à leniência com que era encarado um regime cujos
efeitos mal se imaginariam nos começos do século repleto de transformações, o século XX.
Neste ponto cabe fazer uma distinção importante para que não se confundam termos.
Já se disse que o nazismo não se confunde com a experiência da Itália, nem mesmo pode ser
encarado como um ponto limite, espécie de paradigma a servir de critério de aferição para os
fascismos que atingiram os países europeus. A diferença não é meramente terminológica. Por
isso, cabe focalizar a origem dos termos concatenando-se isso à atuação dos líderes e ao
quadro de complexidades que vem se delineando ao longo desta parte inicial do trabalho.
O termo fascismo deriva de fascio, feixe. Foi a Itália de Mussolini a primeira nação
onde se pôde observar o uso do termo. É Leandro Konder quem fornece algo sobre o tema:
No século XIX, o termo fascio foi adotado por uniões ou organizações populares, formadas na luta em defesa dos interesses de determinadas comunidades. Na Sicília, de 1891 a 1894, constituírem-se, por exemplo, vários fasci de camponeses, em geral liderados por socialistas, para reivindicar melhores contratos agrários. (KONDER, 1979, p.30)
O termo feixe tem tradição desde os tempos da Roma antiga, por significar
etimologicamente união. Parece muito apropriado ao tema da unificação nacional. Mussolini
o utilizou num momento em que há a adesão ao movimento de entrada na I Guerra mundial.
Seus seguidores seriam identificados a parti dali como os fasci. Baseado nessas considerações
se pode inferir de onde surge o termo fascismo. O termo nazista também pode ser explicado.
A chegada de Hitler a chancelaria da Alemanha em 1933, acontece após todo um
momento de fermentação das idéias que vieram a constituir o teor do partido nazista fundado
em 1919 por Anton Drexler. É após a chefia do partido por Hitler que a agremiação muda o
nome de Partido Operário Alemão para Partido Operário Alemão Nacional Socialista.
37
A linha política adotada por tal agremiação deveria ser coadunada com um conjunto
de idéias assimiladas dos socialistas, identificados como sozi. Já que a idéia era identificar-se
programaticamente com os socialistas, os nacional-socialistas foram identificados como nazi.
Como se destacou, essas alterações não eram apenas terminológicas. Elas acompanhavam a
série de mudanças mais profundas. Essas transformações podem ser buscadas também na
articulação dos líderes fascistas diante da necessidade de financiamento dos partidos.
Acompanhar esses esforços é necessário. Neste instante o estudioso tem acesso ao
dado de que houve a transferência de fundos provenientes do capital financeiro representado
pelos donos de empresas e bancos para as contabilidades dos partidos fascistas. Esse fato
isolado não pode servir para maiores inferências. Tem-se que aprofundar a discussão neste
ponto. Até mesmo para entender as fronteiras possíveis entre capitalismo e fascismo.
Sabe-se que os camisas negras italianos não abriram caminho desligados de uma
dimensão partidária. É o partido por sua vez, que se encarrega de produzir o material impresso
para divulgação do propósito político, além de organizar congressos que demandam
atendimento a questões de ordem logística. É o partido que veicula enfim, junto aos populares
e aos estratos sociais mais abastados, uma alternativa a solucionar problemas práticos.
Toda essa atividade demanda um aporte de capital que vai se avolumando à medida
que o partido vai galgando posições no xadrez político de um determinado país.
Proporcionalmente a tomada de poder, o partido de Mussolini vai assistindo o alargamento da
base financiadora com a participação do auxílio de capitalistas de peso naquele país. Podem
ser citados como financiadores do jornal do partido: Anelli, da Fiat, Esterle, da empresa
Edison, Pio Perrone, entre outros, que disponibilizaram parcelas significativas de dinheiro.
Os acólitos do partido nazista também se beneficiaram com auxílios provenientes do
grande capital. Destaca-se de logo que, como em qualquer momento inicial de fundação de
um partido, o grupamento político recém-criado enfrentou dificuldades na obtenção de
grandes somas que fossem capazes de operacionalizar ações de maior vulto. Hitler precisaria
apresentar um projeto econômico capaz de capitanear o apoio de empresários de peso, caso
quisesse mesmo obter mais cadeiras no parlamento e ser o líder inconteste da Alemanha.
Neste sentido é que se torna importante estudar o aspecto do financiamento dos
partidos fascistas. Não se trata de provar o fascismo como agente do capitalismo em
desenvolvimento através da hipótese de crescimento do partido fascista com o capital tomado
38
aos grandes capitalistas. Este é um dado que conduz a investigação acerca do rol de contatos
estabelecidos e do grau de aceitabilidade das idéias pronunciadas por aquele grupamento
político. Neste percurso se pode vislumbrar um duplo movimento de obtenção de dinheiro e
do êxito na obtenção de apoio político na teia estratégica urdida pelo partido nazista.
Pelo caráter eminentemente tático explorado nas manobras nazistas sobressai outro
aspecto a causar espécie a maioria dos estudiosos do fascismo. É que nem sempre os
apoiadores iniciais dos partidos fascistas foram os que receberam maiores benesses nos
quadros institucionais após o fim da República de Weimar. De fato, a chegada dos nazistas ao
poder não significou uma correspondência entre apoio político recebido e devolução por meio
do contingenciamento de cargos na política governada pelo partido nacional-socialista.
Ainda assim, o financiamento do partido continua sendo um dado importante para
compreensão do fascismo e da Europa fascista. Veja-se, por exemplo, que o momento em que
Hitler busca apresentar seu partido é um instante importante em que, verificando-se os demais
países da Europa Ocidental, se pode notar um enfraquecimento da direita tradicional e a
derrota de uma política econômica liberal que havia posto os países em crise.
Inicialmente, Hitler tentou conseguir apoio no meio artístico que lhe cercava mais
proximamente. A seguir, sua rede de contatos foi se ampliando. Figuras como Dietrich Eckart,
jornalista e literato, colocou Adolf Hitler entre pessoas mais abastadas e, esses contatos
também o apresentaram a outros setores da burguesia teuta. Segundo Bullock4 um editor de
Munique, chamado Hugo Bruckman foi bastante útil a inserir Hitler nestes meios.
Nestas oportunidades, o chefe político apresentava em privado - e com calma - seus
principais métodos para a Alemanha que pretendia construir. Foi seguindo esta estratégia de
apresentação de seu ideário político que se pôde chegar ao auxílio de um Emil Kirdorf,
magnata do carvão da Região do Ruhr, bem como de um Fritz Thyssen, administrador do
cartel do aço. Tais dados são buscados tanto nos arquivos das grandes empresas como nos
anais políticos da época. Claro que nem sempre estes arquivos são abertos facilmente.
Após 1933, os ecos de uma Itália que havia saído derrotada da guerra, mas que se
recuperava industrialmente, soavam bem agradavelmente naqueles grupos políticos. As alas
simpatizantes dos sozi, dentro da Alemanha não deixaram de explorar este argumento na sua
4 BULLOCK, Alan. Hitler: a study in tyranny. Harmondsworth: Penguin, 1972.
39
batalha imediata que era angariar recursos e adesões para a causa que julgavam ser a mais
adequada para um futuro promissor, digno da Alemanha, berço do puro sangue nórdico.
A operação da busca por financiamento, volte-se a ressaltar, era paralela a uma
situação potencialmente revolucionária. Neste aspecto é preciso destacar o descontentamento
no meio operário e nos círculos militares a ser observado daqui em diante neste trabalho.
O momento histórico ao qual é preciso voltar é o da I Guerra mundial. Conforme já
foi destacado, a Europa vivia nos primeiros anos do século XX uma espécie de “paz armada”.
A ausência de conflitos oficialmente declarados, não escondia a existência de confrontos
existentes na política imperialista empreendida pelos países europeus os quais se mantinham
numa situação de ofensiva para conseguirem maiores porções territoriais que pudessem servir
de válvula de escape para transferência de capitais e formação de áreas de influência.
A deflagração do conflito em 1914 mobilizou esforços humanos os mais diversos.
Pessoas que eram militares de carreira, além de muitos dos populares que faziam parte da
massa trabalhadora urbana e até mesmo pessoas que viviam no meio rural. Ao mesmo tempo,
já nos estertores do conflito, a situação no Leste europeu desafiava as lideranças político-
econômicas do continente. Era a guerra civil entre brancos e vermelhos em curso na Rússia.
Não bastasse a situação de descontentamento agudo daquelas massas trabalhadoras
ocupantes das linhas de combate, a isto se juntavam os levantes de militares os quais
complicavam a situação do conflito envolvendo brancos e vermelhos na Rússia. Sabe-se que a
guerra oferecia por meio de um incremento na produção industrial a melhoria das
possibilidades econômicas em médio prazo. E em longo prazo, o conflito deveria responder
positivamente às demandas da corrida imperialista. Só que há sempre um ou outro lado que
não se contente com os resultados obtidos e funcione como incômodo “calcanhar de Aquiles”.
Isso só explica parte da problemática. Sabe-se que os trabalhadores no campo
reivindicavam a urgente reforma-agrária. A guerra civil russa que envolvera nações ocidentais
capitalistas dando claro apoio aos brancos também assistia a desmobilização de soldados
amotinados, desobedecendo a ordens de superiores hierárquicos e na Europa em guerra, os
soldados alemães engrossavam as fileiras de combatentes apoiadores das greves maciças de
trabalhadores urbanas e movimentos de pessoas do meio rural desejosas de melhorais.
Pelo que se vê, a questão agrária, o descontentamento militar dos soldados
envolvidos no conflito mundial e na guerra civil russa, compunham parte do afloramento de
40
fissões que manifestavam a situação crítica em que se encontrava o continente Europeu.
Como exemplificação de um episódio pertencente a este momento específico entre 1914 e
1921, pode-se destacar a subversão de marinheiros franceses que lutavam contra o exército
vermelho da guerra civil russa e atuavam no mar Negro. Estes marinheiros colocaram
bandeiras vermelhas em seus navios, como sinal de sua recusa em continuar lutando numa
causa que não viam mais razão em continuar, dadas os autoritarismos a que eram submetidos.
Esses fatores, que normalmente são analisados separadamente, precisam ser
conectados. A dinâmica que os rodeia não é apenas temporal. A história européia dessa época
é constituída de todos esses elementos. Os descontentamentos existentes no interior dos
exércitos italianos após o fim da I Guerra Mundial foram resgatados nos discursos de
Mussolini e também nas formulações teóricas mais sofisticadas encontradas pelos estudiosos
e ideólogos da direita liberal como marcas traumáticas de um país atraiçoado na guerra.
Enquanto isso, a Alemanha se via às voltas com um armistício que lhe atribuíra toda
a responsabilidade pela guerra. A perda de territórios e a obrigação em desmilitarizar-se eram
imposições cujo peso pendia negativamente no sentido de criar um movimento muito bem
explorado pelos líderes nazistas que foi o sentimento de revanchismo latente naquele país.
Não se está aqui a demarcar todos os pontos de instabilidade existentes na Europa
para com isso querer incluí-los na mesma lógica que desencadeou o fascismo por mera
estratégia de narrativa. Todavia, não se pode prescindir de incursionar pelas implicações
envolvidas no conflito mundial e na guerra civil russa porque nestes dois fatos resgatam-se
aspectos que participaram dos elementos que estiveram presentes na ideologia fascista.
Entre esses fatores: a possibilidade do espírito bélico como diluidor de diferenças de
classes sociais, o espírito de violência como porta-voz de anseios patrióticos, e a busca por
posições geopolíticas condizentes com a história do país, entre outros elementos que ficarão
mais clarificados na discussão envolvendo partidos políticos, suas orientações e as viragens
ideológicas ocorridas conforme o momento vivido pelos agentes históricos implicados.
Pelo teor das complexidades que se tentou inventariar apenas neste primeiro capítulo,
se tem uma noção aproximada da dificuldade de se caracterizar o fascismo, ou o momento
histórico dos fascismos. Tal dificuldade não foi obstáculo para lição concisa de Leandro
Konder, para quem o fascismo pode ser acompanhado compreendendo-se que:
41
Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também (…) a existência do capital financeiro. (KONDER, 1979, p.21)
Como destaca este autor, o fascismo não pode ser compreendido historicamente se
não forem percebidas as condições especiais por ele requeridas. O fato do descolamento da
influência das camadas capazes de efetivar uma frenagem no avanço do fascismo junto às
massas foi um elemento que imprimiu a eficácia social do movimento e também a segurança
de que o sistema capitalista não seria estruturalmente alterado naqueles tempos.
O autoritarismo foi característica verificada em outros momentos da História. E não
só o autoritarismo fez parte tanto do fascismo como de outros momentos da História mundial.
As clivagens sociais presentes no fascismo foram usadas por Marx como ponto de explicação
do próprio devir humano. Enfim diversos aspectos presentes no fascismo podem ser
observados noutros instantes da aventura humana localizada em momentos outros da História.
Mais uma vez chame-se atenção: é preciso abordar o fascismo levando-se em
consideração suas especificidades. As conclusões extraídas de uma análise que tem os
caracteres geopolíticos e sociais em foco tornam o fascismo uma temática interessante de
estudo. Até para que não sejam cometidos anacronismos e confusões epistemológicas.
De fato, a desatenção a estas questões leva a tocar num último aspecto ainda neste
capítulo. Trata-se da utilização indevida do termo totalitarismo para caracterizar toda e
qualquer experiência fascista, sem levar em conta as especificidades de cada país. Neste ponto
cabe refutar essa postura que pode comprometer o caráter heurístico da explicação e promove
uma confusão entre o fascismo e a política stalinista aplicada no Leste europeu.
A tentativa de inserir o termo totalitarismo foi empregada primeiramente por Hannah
Arendt5. Ao analisar os regimes fascista e stalinista, a autora utiliza-se da categoria
totalitarismo tentando caracterizar a veracidade de uma cena em que as sociedades analisadas
eram supostamente controladas de maneira total pelos instrumentos repressores do Estado.
Logicamente não se pode negar o valor metodológico do uso deste termo. Mas,
devem-se fazer as devidas reparações a fim de que não se defenda uma identidade tão
5 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.
42
inflexível entre paisagens históricas distintas. Essa crítica já foi empreendida com o escopo de
destacar que houve contestações ou instabilidades dentro das sociedades que viveram o
fascismo, o que compromete a utilização do termo totalitarismo como foi utilizado
inicialmente na análise que se está referindo.
Por outro lado, destaca-se que não se pode negar completamente o uso da política
dos Estados fascistas que muito fizeram a fim de manter sob um grau agudo de controle os
segmentos da sociedade. Neste sentido, ressalta-se a assertiva segundo a qual:
Independentemente do rótulo, existe nos regimes fascistas, determinada característica que necessita de descrição teórica. Trata-se exatamente desta tendência do Estado fascista de tentar controlar, da maneira mais ampla possível (idealmente de modo total) sua sociedade, evitando diversas formas de discordâncias, pluralismo ideológico, comportamento desviante, etc. (SEGRILLO, 2006, p. 5)
Muito bem utilizada a assertiva do autor. Ela nos faz perceber que a despeito da
vontade de controle total da vida das pessoas, o fascismo teve que confrontar sempre
discordâncias e, inclusive apelar para formas de legitimação que tornassem esse desígnio mais
fácil. Por isso, o acerto da palavra tentativa. Nem sempre a vontade de controle sobre a
imprensa, religião, política e demais esferas da vida social daquelas nações, logrou êxito.
Os horrores da violência aplicada nos campos de concentração fizeram parte
posteriormente deste eterno embate entre o necessário controle e suas reais possibilidades de
sucesso. O laboratório da desgraça humana que foi a experiência daqueles campos, dava um
exemplo de uma violência que extrapolara seus intentos iniciais em controlar todos.
Esse mergulho do Estado na vida social tenta então seguir a lógica de interferência
na vida cotidiana. O ensaio foi abafar quaisquer movimentos que viessem de encontro à
ordem fascista ou que tentassem opor argumentos contrários ao controle estatal. Além disso,
tentou-se efetivar o domínio ideológico, buscando a manutenção da tática de controle.
Isto não quer dizer que os fascistas não dialogaram com correntes ideológicas
diversificadas. O movimento que buscou mobilizar as massas foi também capaz de seduzir
setores do capitalismo com suas propostas de mudança, dentro de uma ordem que não
radicalizaria na direção de reviravoltas estruturais no sistema econômico. Foi ainda este, que
43
transplantou muitos dos temas do socialismo como parte de um programa de atendimento a
demandas sociais, simultâneo a uma estratégia de auto-referenciação.
Quando o fascismo dialogava com esferas aparentemente tão díspares, não buscava
mais que direcionar as atenções para sua lógica própria: a lógica do controle. Neste sentido é
especialmente importante analisar este quadro de ensaios ideológicos operado pelo fascismo,
tentando perceber suas nuances em relação aos partidos políticos e movimentos sociais.
2. CALEIDOSCÓPIO DE IDÉIAS: contatos entre ideologias no Estado fascista
A continuidade dos estudos sobre o Estado fascista tem contribuído para a busca de
uma narrativa mais centrada na inserção dos sujeitos imersos no fascismo. Estes têm uma
importância outrora evitada em nome das explicações macro-históricas. Neste caminho, abre-
se o horizonte da discussão para a importância do quadro ideológico presente no fascismo.
As hipóteses do debate referentes à diplomacia da política internacional coexistem
agora com a preocupação com a tessitura interna do fascismo. Neste sentido, estuda-se aqui a
principiologia das principais agremiações políticas existentes no fascismo e seus impactos nos
movimentos sociais, a partir do destaque para a ideologia como ponto programático
significativo. A contextualização inicial do fascismo se completa com esta pesquisa
ideológica. E ao objetivá-la, o estudioso depara-se com uma rede de mitos criada no fascismo.
Como foco principal destacam-se dois grandes blocos digladiando-se na Itália e na
Alemanha nas primeiras décadas do século XX. Um que propugnava pela revolução
socialista, tida como uma etapa a ser implementada em nível internacional. O outro,
pretendendo uma revolução nos limites nacionais, através do restabelecimento do poder
nacional e a eliminação dos inimigos da nação. Este grupo de idéias animava as agremiações
políticas em disputa, tanto dentro como fora dos limites dos estados-nações.
Ao se ver estes duelos ideológicos pode-se pensar desavisadamente que havia uma
separação bem definida entre partidos e uma identificação clara entre as idéias defendidas e os
44
partidos políticos, bem como uma sintonia completa entre os pensamentos predominantes e as
pessoas participantes destes partidos. Admitir tal identificação pode comprometer a análise da
complexidade interna do fascismo. Preferível admitir a argumentação defendida por outro
estudioso marxista que busca compreender o fascismo. Dê-se a palavra a Laclau:
Aceitar que os elementos ideológicos considerados isoladamente não têm uma conotação de classes necessária e que esta conotação é apenas o resultado da articulação daqueles elementos em um discurso ideológico concreto. Isto significa que a precondição para analisar a natureza de classe de uma ideologia é conduzir a pesquisa através a daquilo que constitui a unidade distintiva de um discurso ideológico. (LACLAU, 1979, p. 105)
Esta é a premissa metodológica adotada pelo autor. Uma via bastante plausível. De
fato, o discurso ideológico, na ótica aqui definida, não é encarado como uma entificação,
como se ele existisse anteriormente aos próprios enunciadores. É preciso esclarecer, como faz
Ernesto Laclau, que se deve preferir uma não identificação rigorosa entre os elementos do
discurso ideológico e as conotações de classe. Assim, buscam-se outras possíveis variáveis.
Posto isso, o estudioso está mais apto a não se enredar na teia ideológica verificada
no fascismo. Pode ser uma armadilha encarar um discurso ideológico como artefato político
usado única e exclusivamente por um determinado grupo político. Até porque o entendimento
da presente pesquisa é o de que foi justamente a multiplicidade de aproximações e
reorganizações dos paradigmas ideológicos, uma das mais características formas tomadas pelo
fascismo. Neste ponto cabe encontrar um ponto de contato significativo entre os partidos
políticos e perceber as reviravoltas de discursos não como anomalia, mas como peculiaridade.
Este quebra-cabeça não pode ser satisfatoriamente destrinchado se não se mergulhar
nas filigranas da sociedade italiana e alemã. Esta penetração conduz a leitura para o tabuleiro
partidário e mesmo para os movimentos sociais existentes nesses países abalados pela crise
apresentada anteriormente, os quais buscavam sempre se reconstruir dessa crise. Após a busca
das combinações desses elementos, caminha-se para a captura mais assentada dos seus
pressupostos e mitificações ideológicas, e a maneira como essas criações foram manejadas.
45
2.1 Itália e Alemanha: partidos políticos e trincheiras de batalha no Estado fascista
A Itália que viu Mussolini chegar ao poder, foi uma nação que assistira vários
momentos significativos anteriores a marcha dos camisas negras até Roma. Os resquícios de
uma sociedade infestada por insatisfações, ainda sob os ecos da grande guerra, faziam-se
presentes na topografia político-social italiana. Pode-se identificar aqui uma verdadeira
batalha em que o poder liberal parlamentarista conduzia-se num equilíbrio tenso.
Nessa trincheira, houve progressiva ampliação de movimentos de base social
alicerçados nas massas. Uma abertura gradativa que foi fruto tanto da luta de manutenção do
poder por parte dos liberais, como do quadro de forçosas mudanças na relação entre o norte
industrial e o sul agrícola que compunham o território da Itália. Os choques advindos de uma
guerra de mega proporções mergulharam a jovem nação Italiana numa situação sui generis.
A burguesia industrial nortista via com bons olhos uma sociedade economicamente
organizada para a realidade bélica. Os lucros dos mesmos aumentavam à medida que a
demanda produtiva crescia e os quadros das empresas pediam mais funcionários para atender
aos imperativos das linhas de combate tanto italianas como dos seus aliados. Esta, todavia é
apenas uma face da moeda. Ao lado disso, ao sul da península, a realidade era outra.
A concentração de um dinamismo econômico impulsionado no norte contrastava-se
com as contradições do sul rural que testemunhava a decadência de uma economia
concentradora de riquezas. A preparação de uma fase política onde a participação popular
afigurava-se cada vez maior era refletida no surgimento de novas rubricas partidárias e,
juntamente com elas, proposições diferenciadas. Como destaca estudioso do tema:
Neste aumento do corpo eleitoral, encontramos uma das razões da transformação da vida política da Itália do pós-guerra quando comparada ao período imediatamente posterior à unificação, (…) este alargamento do sufrágio veio a contribuir não só para a formação de novos partidos, como o Popular e o Nacional Fascista, mas, também, para as mudanças programáticas dos já existentes: o Liberal e o Socialista. (CARMO, 1999, p.35)
46
Este autor ressalta que simultaneamente ao aumento do número de eleitores, houve o
surgimento de novas propostas político-partidárias. Além disso, ele enxerga as mudanças
programáticas no seio dos partidos. A nova conformação política espelhava problemas até no
Norte, onde o crescimento do parque industrial eliminou os pequenos negócios a par do
empobrecimento de setores da população. Frente a essa ambiência nova, o Partido Liberal
propôs-se a buscar alternativas, uma vez que até as eleições de 1919, não defrontara-se com
uma disputa que pendesse para o lado do Partido Popular nas cadeiras no Parlamento.
A saída encetada pelo Partido Liberal foi a busca de medidas cosméticas que
passavam pela renovação institucional. Em outras palavras, o Partido Liberal não propugnava
uma mudança radicalizante. Ao contrário, tentava uma reestruturação destacada por outro
estudioso do tema, assim: “Nitti dava continuidade à política de fazer concessões a
determinados grupos com a intenção de corrompê-los, mas procurava ampliar esta política,
procurava nela incluir forças mais avançadas”.(TOGLIATTI, 1978, p.16)
O autor destaca aqui o governo de Francesco Nitti que foi o primeiro lance dos
liberais em centrifugar as mudanças que atormentavam a seqüência política até então vigente.
Mas o mesmo autor6 esquadrinha um segundo momento que foi o governo de Giovanni
Giolliti. Aqui a medida tomada foi mero reconhecimento oficial das organizações sindicais já
organizadas, além da ampliação do sufrágio universal na via democratizante que o liberalismo
italiano tentava imprimir com o fim de levar a cabo a tarefa de continuar dando às cartas.
Mussolini, por sua vez, organizava sub-repticiamente uma outra frente: o chamado
Partido Fascista. Sua obra caminhou pela inserção da juventude nos chamados fasci di
combattimento e nos squadri. Foi através destes movimentos que tomava corpo o que viria a
ser o Partido liderado por Benitto Mussolini. Eram grupos constituídos de antigos
combatentes e jovens ligados a vanguarda artística do futurismo. Quiçá o embrião da política
de massas mais tarde posta em ação no governo fascista já estava sendo formatado aqui.
O momento em que isso ocorria era paralelo ao já destacado pronunciar de formas de
participação popular que confrontavam o parlamentarismo liberal. Tanto o Partido Socialista
Italiano (PSI) como o Partido Popular Italiano (PPI) introduziram esses aspectos distintivos. O
primeiro, com a organização dos sindicatos e associações e o segundo através de organizações
6 TOGLIATTI, P. Lições sobre o fascismo. São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978.
47
de caráter assistencial. A movimentação de Mussolini em 1920 vai ser tentar atrair a ala
socialista para um governo em que houvesse a colaboração desta na reconstrução do país.
Os enfrentamentos ideológicos diante das acomodações por que passava a Itália
extravasaram as enunciações políticas na direção do que se pretendia como modelo para a
nação futura. Em torno desses debates, os partidos que outrora figuraram como aliados no
combate ao liberalismo italiano, diferenciavam-se no que dizia respeito a outros pontos, como
por exemplo, a organização do sistema educacional a ser implementado nacionalmente.
O circuito ideológico em que ocorre a intervenção dos partidos políticos é
caracterizado por este jogo de encontros e separações. A questão educacional parece bastante
emblemática da comunicação fluida dos esteios ideológicos. No âmbito de uma regeneração
moral da Itália, os liberais formatavam a sua visão do que seria a boa educação naquele país.
Os liberais julgam ser a união nacional possível através deste programa educacional
gerenciado pelo Estado. Já para o PPI a escola teria que ter a direção da Igreja, com o
magistério sobre o espírito do povo italiano. A educação livre seria aquela que não sofresse a
interferência estatal. A função da escola na Itália não animou apenas esses dois partidos. A
partir deste debate, o PSI e o Partido Fascista também discutiram e propuseram dentro de seus
moldes ideológicos aquilo que poderia ser a melhor alternativa para o controle educacional. O
debate sobre educação servia de pano de fundo às disputas interpartidárias do pós-guerra.
O Partido Socialista, por exemplo, pugnava por uma educação que resguardasse o
posto vanguardístico reservado a classe operária. É esta função de direção que os socialistas
atribuíam ao operariado que circundou a ideação educacional socialista. O Partido Fascista,
por seu turno, buscou uma projeção distinta. A sociedade formatada para o anseio nacionalista
do fascismo buscou uma elaboração educacional específica e precursora.
O Partido Fascista, que aparecera aos olhos dos italianos em meio aos duelos e
debates do soerguimento de uma nação em mudança (tanto pela guerra como pelas
implicações do industrialismo), tentou atingir, no debate sobre a escola, não só uma
alternativa para o problema educacional como um direcionamento do ideário nacionalista.
Neste afã, a nação italiana teria que lutar com as armas de que dispunha. Segundo a visão do
Partido Fascista, tais armas eram a economia baseada no industrialismo e uma educação que
plasmasse consciências em volta de ideais como o patriotismo, o homem digno de sua pátria
48
por sua valentia e virilidade, um homem capaz porque industrioso e competente do ponto de
vista técnico. Mais do que um cidadão, um servidor da nação sob a égide do industrialismo.
O projeto partidário não parava por aqui. Um aspecto da ideologia fascista que o
aproximava do Partido Socialista era a intermediação com as massas. Tangenciando conflitos
existentes entre patrões e empregados, os fascistas acabaram por reconhecer nos problemas
envolvendo as massas, a matéria-prima para o seu programa político. Claro que o PSI e o
Partido Fascista tiravam conclusões distintas sobre como viam a mediação que as massas
exerceriam em seus programas de governo. Entretanto, ambos viam nas massas o ponto de
partida para criação de uma nova Itália. Se no corporativismo fascista o partido se comunica
com todos indistintamente e com cada um particularmente, sem que isso significasse uma
mudança estrutural em termos estatais, no socialismo as massas eram o ator revolucionário.
Por esta concepção, a educação no olhar do PSI deveria ser transformadora. Não
bastava que a educação fosse acessível a todos, mas que a educação pudesse fazer parte dos
locais freqüentados pelos educandos. Desse modo, a educação revolucionária seria possível
através da fábrica, lugar de encontro das massas trabalhadoras. Segundo Gramsci, um dos
ideólogos do PSI, analisado por estudioso do tema: “A fábrica é entendida, nesse período,
como o germe do futuro Estado operário, na medida em que é a célula dos Conselhos de
Fábrica” (Ibid, p. 43). Aqui, o ponto em que a educação das massas distingue o PSI do Partido
Fascista. Este vê não apenas na escola o futuro nacional, mas nas corporações. Isto tudo,
dentro da visão de negociação e não de conflito presente no ideário fascista de nação.
Um dos defensores desse entendimento, que fora posteriormente Ministro da
Educação do governo Fascista, foi Emílio Gentile. Para ele a educação teria que formar uma
classe dirigente, oriunda do aprimoramento anterior das massas. Conforme o próprio Gentile:
(…) Por isso, a política de massa fascista teve uma intrínseca atitude pedagógica voltada à socialização das idéias e os comportamentos da massa segundo os próprios “valores” (…) esse posicionamento em relação à política às massas torna-se explícito e consciente, à medida que o fascismo desenvolvia a sua ideologia e a sua organização, e esteve na origem de grande parte das manifestações do fascismo no poder. (GENTILE, 1988, p. 31)
49
Este autor, que esteve envolvido no próprio governo fascista, acentua que o partido
fascista não deixou de atentar para o controle das massas, seus valores seriam capturados pelo
partido. A potencialização desse trabalho contribuiria para a criação da idéia de nação coesa.
O jogo político entre os partidos na Alemanha dos inícios do século XX, também não
foi menos intenso. O NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães), o
KPD (Partido Comunista Alemão) e o SPD (Partido Social Democrata Alemão) ocuparam
posições importantes na correlação de forças produzida no fascismo. Conforme os tons que
davam as cores dos discursos políticos de cada grupo, são alcançados resultados
diferenciados. Este conjunto de enunciações provoca uma aproximação interpartidária em
torno do prisma nacionalista, como também fissões internas aos partidos e distanciamentos,
conforme se propugnasse por uma revolução internacionalista ou um itinerário de resolução
dos problemas internos, para a seguir, se pensar em extrapolar as fronteiras nacionais.
Interessante, no caso alemão, destacar as divisões internas na esquerda alemã no que
dizia respeito em como encarar o nascente movimento nacional-socialista. Neste quesito, o
KPD e o SPD muitas vezes produziram concepções ideológicas que os distanciavam enquanto
repositórios da política dita de esquerda. Além disso, o posicionamento da esquerda em
relação ao movimento fascista provocou divisões até dentro do próprio partido comunista.
O primeiro aspecto dos choques entre KPD e SPD só pode ser devidamente abordado
se forem consideradas as ocasiões de flerte entre essas facções de esquerda e o nacional
socialismo do NSDAP. O segundo tópico, o das divisões do partido comunista, será mais
adiante detalhado. Por hora vejam-se as aventuras da social-democracia e do comunismo.
A social-democracia alemã adquire uma feição mais nítida numa elaboração de
Robert Michels. Tratava-se de um exercício em que o citado estudioso tentava analisar o
modelo de burocracia webberiano, para aplicá-lo ao SPD e perceber suas nuances. O autor
observou o tom elitista presente naquela modelagem institucional. Todavia, não conseguiu
sair desta constatação e produzir uma crítica do modelo estrutural do partido. O caráter
burocrático do partido o acompanhou muito proximamente ao longo de sua existência, o que
fazia muitos dos adeptos do comunismo defensores do ataque a social-democracia, entendida
na visão do KPD, como partido social-fascista. Por isso um traidor a ser combatido.
Por via reflexa, o NSDAP avolumava essa querela. A pavimentação de uma via entre
o KPD e o Partido Nacional-socialista se viabilizava conforme a atração entre alas da
50
esquerda revolucionária do Partido Comunista e alas da direita radical populista do NSDAP.
Neste diapasão, a social-democracia sofria ataques: por um lado, do partido comunista e, por
outro, do próprio partido nacional-socialista, sendo as alas em aproximação do KPD e do
próprio NSDAP, responsáveis por boa parte desses ataques perpetrados contra o SPD.
O paradoxo da divisão entre partidos de esquerda, refletia, por exemplo, situações
internas no partido comunista. Em começos dos anos vinte, sobem à direção do partido
comunista Ruth Fischer e Arendi Maslow.7 Estes líderes defendiam que o KPD viesse a
pautar sua trajetória na direção de uma abertura cada vez maior para a ala da direita radical do
NSDAP. Foram secundados por diversos membros do partido e no entendimento deles a
estratégia a ser adotada incluía até mesmo a defesa do anti-semitismo da direita radical.
Por que esta operação tão inusitada? Pode-se explicá-la por dois caminhos. Primeiro:
a proximidade de tomada de poder dos nazistas levava ao entendimento de que em vez de se
preferir a ética reformista dos social-democratas, se tendesse a apoiar mudanças
possivelmente mais radicais que, através de um governo nazista, apressariam a revolução
socialista. Segundo: a subida ao poder de líderes que aceitavam inclusive o anti-semitismo na
sintaxe de uma aproximação com a direita radical, significou o distanciamento cada vez mais
acentuado da posição de uma possível frente de esquerda contra o nacional-socialismo.
Esta resposta põe em causa o esclarecimento de uma outra matéria que é justamente
a existência ou não desta frente que reunisse KPD e SPD na luta pela revolução socialista
contra o avanço do fascismo, que seria, a princípio, o caminho mais plausível a ser imaginado.
Tradicionalmente o fascismo é apresentado como um baluarte de defesa que as
democracias parlamentaristas tiveram contra o perigo do comunismo soviético. Nesta
interpretação se tem como bastante delineado: partidos de esquerda reunidos lutando contra
partidos de direita. A movimentação anteriormente discorrida indica não ser este o caso.
Isso não quer dizer que não se tentou costurar uma aliança entre os partidos de
esquerda na Alemanha. Antes da chegada de Ruth Fischer, a unidade entre as facções
políticas esquerdistas foi pensada no cerne da viragem de desmobilização e transformação das
forças armadas envolvidas na guerra em 1918-1919 e sua transmutação em exército
revolucionário. A proximidade entre KPD e SPD então passaria por um progressivo percurso
7 Cf. FLECHTHEIM, Ossip. Le Parti Communiste Allemand (KPD) sous la République de Weimar. Paris: Francois Maspero. 1972.
51
de afastamento das bases operárias em favor de um comitê representativo dos partidos. Tal
tentativa não lograra sucesso. E é João Bernardo que nos dá essa pista:
Para compreender essas aventuras do comunismo alemão (…) é necessário não esquecer que a política de frente comum com a social-democracia implicava obrigatoriamente uma aceitação genérica do quadro institucional promulgado em Weimar, enquanto uma orientação insurrecional, voltada antes de mais contra o Tratado de Versailles, significava uma recusa do sistema parlamentar e permitia uma abertura às forças políticas de extrema-direita, que se opunham à república pelos mesmos motivos nacionalistas. (BERNARDO, 1998, p. 198)
Este autor esclarece que a aproximação entre o KPD e NSDAP era uma tendência
que se avizinhava muito mais forte do que a ação para unir os partidos de esquerda. Plausível
o argumento do estudioso, quando afirma os passeios do comunismo numa dicotomia. A
possibilidade de unir-se à social-democracia coexistia com as circunstâncias internas da
Alemanha, as quais punham diante do KPD a abertura à direita como alternativa catalisadora
das metas inerentes à revolução socialista e da eliminação das classes sociais.
Ainda, as inépcias do Partido Social-democrata mostraram-se claras quando sua
política socialista de atendimento a anseios populares, não obteve êxito mesmo tendo tido o
populismo do partido a oportunidade de fazer valer seus intentos. Foi o que ocorreu quando
do governo de Kurt Von Schleicher em inícios dos anos trinta. As aventuras políticas deste
personagem em se aproximar do operariado e formar uma base de governo forte poderiam
efetivar uma aceitação mais pacífica do SPD no país. As manobras de Hitler dentro do
NSDAP, mostraram uma força capaz de mobilizar milícias eficientes que muito auxiliariam
na eliminação dos obstáculos que Hitler tinha para chegar à chancelaria do Reich.
No tocante ao nível internacionalista, o SPD adota uma linha cujas pilastras denotam
uma timidez, algo pacifista em demasia para quem pretendia a melhoria das condições de vida
frente ao poderio do sistema capitalista mundial. Em outras palavras a busca de uma
internacionalização passava pela abertura econômica com a formação de mecanismos de
maleabilidade da circulação capitalista. Não se tratava de fincar posição de confronto aberto
ao sistema, mas de encontrar meios em que o funcionamento do sistema convivesse com as
medidas ou intentos de uma sociedade pelo menos próxima da social-democracia.
52
Toda essa fragilidade de ligação entre as esquerdas na Alemanha, se refletia dentro
do partido comunista. Aqui se chega ao segundo aspecto anunciado anteriormente: a divisão
interna do partido comunista. Sabe-se que havia uma indefinição no interior do KPD no que
tocava a emitir pontos de vista oficiais em relação ao nascente fascismo.
Em alguns discursos não foi possível perceber qual o posicionamento do KPD
porque não se conseguia extraí-lo das enunciações provenientes das tendências distintas
abrigadas naquele partido. João Bernardo em Labirintos do Fascismo, mostra que alguns
agentes importantes do partido faziam elucubrações que queriam parecer táticas, mas
representaram apenas instantes num trajeto provisório até que se tentasse uma definição.
Tal definição é destacada em Leandro Konder, em sua obra Introdução ao Fascismo,
quando faz referência a G. Dimítrov. Era ele uma das figuras do KPD, que se pronunciou
acerca do fascismo e definiu-o como: “ditadura terrorista aberta dos elementos mais
reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro” (Ibid. p. 50).
Entretanto, entre as figuras importantes a que alude João Bernardo, está o próprio Dimítrov.
Em momento anterior, a enunciação do mesmo Dimítrov defendia uma idéia que era um tanto
distinta da citada acima: “o maior obstáculo no caminho da revolução proletária é o Partido
Social-Democrata. A nossa única tarefa consiste em destruir a sua influência - e depois disso
lançaremos Hitler com sua escumalha da ralé no lixo da História.”(Ibid, p. 204)
Assim, pode-se perceber uma teia de relações envolvendo os diversos
pronunciamentos da esquerda. Uma reviravolta que não fazia menos que atestar as
circunstâncias em que os agentes se encontravam e as cisões existentes nesses partidos.
Quanto ao Partido Nacional-Socialista, sabe-se que tais divisões também ocorriam.
Neste caso específico, as cisões intrapartidárias obstaculizavam as investidas de captura do
poder por parte de Hitler e seu grupo. Duas alas bem nítidas podem ser distinguidas. Uma
liderada por Adolf Hitler e outra liderada por Otto Strasser. É importante discorrer sobre elas.
A ala liderada por Otto Strasser sintonizada com um nacional-socialismo de matiz
mais populista, disputava com a ala liderada por Adolf Hitler que, pelo menos até 1933,
quando chega à chancelaria do Reich, trabalhava numa linha mais legalista na Alemanha.
Estes grupos diferenciavam-se ainda, quanto a sua relação com bases sociais
distintas. Neste passo, a ala populista do NSDAP alentava o operariado, agitando movimentos
urbanos e trazendo para o cotidiano daqueles considerados “raia miúda” do país, a expectativa
53
de que seu grupo pudesse tomar as rédeas do nacional-socialismo e propiciar - caso tomasse o
poder - o acolhimento de uma política direcionada àquela base anteriormente auxiliar.
A secção encabeçada por Adolf Hitler secundava-se pelos grupos de milícias SS e
dialogava com setores do exército, buscando uma ascensão que uma vez no poder mostrou-se
bastante eficiente. Essa ala vitoriosa aplicou um programa eugenista do qual a ala populista
não compartilhava. O ideal de raça na ala vitoriosa do NSDAP foi perseguido. A idéia era
construir uma sociedade de senhores, por isso mesmo constituída dos mais selecionados. O
exército e as milícias funcionavam como amostras onde poderiam ser pinçados os mais aptos
ou treinados para os objetivos que eventualmente precisassem desse tipo de figura.
Ao se mapear um pouco da atuação dos partidos políticos é possível a constatação de
que a vitalidade do fascismo não pode ser conferida a apenas uma sigla partidária. Muito
menos um grupo dentro de um determinado partido. A despeito de na Alemanha e na Itália
terem os grupos liderados por Hitler e Mussolini predominado no governo daqueles países,
não se pode ignorar que houve uma profusão de debates oriundos daqueles partidos cujos
impactos tinham na própria sociedade uma poderosa caixa de ressonância.
Mais que a tomada do poder, este intrincado círculo de grupos políticos conseguiu
uma nova trincheira de batalha. O território partidário não pode ser considerado uma
trincheira comum de combate porque ele foi complementado com uma vigorosa operação
com armas ideológicas que compuseram as coalizões e atritos que toldaram o fascismo.
As próximas páginas tentarão deslindar precisamente estes confrontos existentes nas
ideologias. A variabilidade das ações dos partidos incidiu em nível ideológico num gradativo
estabelecimento de relações entre a esquerda revolucionária e a direita radical. O nacional-
bolchevismo foi resultado deste conjunto de contatos recíprocos entre extremos que à
primeira vista nada tinham em comum. Faz-se necessário tentar compreender estes pontos.
2.2 Ideologia: um laboratório de ensaios para o fascismo
O estudo da atuação dos agentes políticos reunidos nos partidos sinaliza a
possibilidade de uma performance que não era rigorosamente seguida em todos os momentos.
Isso significa que o fascismo foi possível, em boa medida, por meio de um partido pelo qual
54
se veiculavam interpelações que serviam para invocar os agentes. Atraí-los a um conjunto de
diretrizes que se destacassem das demais e indicassem uma interação recíproca entre aqueles
que adotassem esta ou aquela ideologia. Cumpre aqui dizer a pauta conceitual do termo.
Adota-se aqui a visão de ideologia presente principalmente em Louis Althusser8. Só
que esta concepção precisa ser matizada, conforme destaca Laclau, estudioso do tema:
(…) o mecanismo da interpelação como constitutivo da ideologia opera do mesmo modo nas ideologias das classes dominantes e nas ideologias revolucionárias (…) Em certos casos a interpelação dos “sujeitos” será a forma disfarçada de realmente obter uma sujeição; em outros, ao contrário, como no Manifesto, assumira a forma de um “slogan” político que conclama a criação de condições para a emancipação dos explorados. (LACLAU, 1979, p. 107)
A expressão do conceito de ideologia preconizada em Louis Althusser, sinaliza para
a formação de um sujeito que se identifica com os demais, pelo compartilhamento de
determinados aspectos da vida que os convence a adotarem comportamentos adequados às
suas histórias e ao seu cotidiano. Esta concepção inicial que confere uma identidade aos
sujeitos, deve ser matizada com a argumentação do autor acima citado. É preciso ir além e
perceber que a ideologia pode também servir de campo onde os próprios trabalhadores
conscientizem-se de uma condição social desfavorável e adotem uma postura crítica a esta.
Em se tratando de estudar o fascismo pode-se perceber que os conteúdos ideológicos
assumiram uma importância ainda maior. Além de passar por estas duas concepções: a inicial
de Louis Althusser e a matização posterior de Laclau, a ideologia no Estado fascista assumiu
papel estrutural tanto na sinergia dos partidos políticos como na criação da coerência interna
do Estado fascista. A ideologia seguiu bem proximamente os passos tomados neste cenário.
Neste primeiro momento, deve-se mencionar a inversão semântica dos termos como
recurso ordinariamente utilizado pelos ideólogos fascistas. Em seus cortes transversais ou
paralelos nos terrenos ideológicos de direita ou de esquerda, a ideologia produzida no
fascismo podia aproximar-se ou afastar-se das demais sem confundir-se com elas; ao
contrário, gerava uma marca própria. Nesta tarefa, o habitual emprego de termos tomados ao
socialismo, por exemplo, serviu à deturpação de algumas de suas categorias de forma a pôr
em realce aqueles pontos que julgavam ser as fraquezas da ideologia de massa do socialismo. 8 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974.
55
Desse modo, foi que o fascismo adentrou o arsenal ideológico socialista e aí tomou a
categoria do materialismo em oposição ao idealismo fascista. Os ideólogos do fascismo
cuidaram de distorcer de tal forma o materialismo marxista que compunha o arsenal do
socialismo, que ao combatê-lo tinham um termo completamente novo. Tudo como forma de
atração de uma sociedade arrimada em uma utopia que era apresentada como uma panacéia,
se comparado com o materialismo da maneira como era apresentado pelos fascistas.
Por meio desta estratégia, o fascismo identificava o marxismo com uma ideologia
egoísta. Estranha conclusão. Mas não poderia ser diferente uma vez que o termo idealismo
fora deturpado pela oposição com um materialismo desconectado da dimensão histórica. O
materialismo é dialético porque tenta analisar o motor da história com a consideração das
condições materiais que a condicionaram em cada modo de produção vivido pelo homem.
O materialismo na ideologia fascista é não mais que o ornato de um homem
eminentemente egoísta no sentido moral da palavra. Materialista, assim, não é aquele que
analisa a história humana balizado no prisma referido acima. Ao contrário, materialista é
aquele que se contenta com a manutenção e o atendimento das necessidades primárias e
individuais. Em uma palavra: materialista é apenas aquele que está apegado à matéria.
Uma vez que o termo marxista era maculado e representava o oposto do idealismo
fascista, este aparecia como ideologia mais aceitável tendo em vista que buscava não só o
bem-estar “material”. Esta foi uma operação realizada pela ideologia fascista. Mas não foi a
única porque a ela se seguiriam outras não menos elaboradas e até mesmo sedutoras.
Neste sentido, cabe destacar outra criação dos ideólogos fascistas. Entre eles, o
próprio Enrico Corradini. Foi este intelectual que moldou o termo da “nação proletária” para a
Itália dos primeiros anos do século XX. Uma nação que era identificada em separado das
demais e o que lhe reservava o státus digno de apreço era justamente o ser nação proletária.
Trata-se de um binômio em que cada termo tem uma função específica. Corradini foi
um pensador e político defensor do nacionalismo. Ao proferir a sua construção teórica a
respeito desta quimera nacionalista, o intelectual transportava um termo que se referia a uma
classe para falar de um país. A meta subjacente não era outra senão chegar a um resultado
muito bem-vindo nos círculos fascistas: a homogeneização do estudo da conjuntura social. De
fato, se não era mais apenas uma classe a ser identificada como proletária, e sim a nação
56
inteira, os conflitos internos da nação italiana deveriam ser solucionados não numa dimensão
classista, mas no terreno mais amplo da luta entre as nações do continente europeu.
Além disso, o que se conseguia era a criação de um sujeito grupal em lugar do
indivíduo carente de emprego e melhores condições para sua vida e de sua família. O
fascismo também trabalharia muito primorosamente a referida substituição do “eu” pelo
“nós”, o indivíduo pelo todo. Não era mais apenas o indivíduo que devia ser chamado
proletário, e sim a nação inteira. E porque esta nação era desta feita a que ocupava a situação
de explorada, era ela mesma a se lançar à conquista de um território digno e aceitável.
Outra inferência que pode ser extraída desta criação do ideólogo italiano, é que por
serem os problemas da nação prioritários em relação às problemáticas individuais, a busca da
solução dos problemas nacionais seria a saída para as demandas dos proletários. Essa solução
não poderia ser outra que não o imperialismo, dada a situação desfavorável no quadro
internacional a que estava relegada a Itália. As diferenças internas entre as classes sociais
deviam ser esquecidas em nome de uma finalidade mais ampla que era exatamente a nação.
Claro que as divergências e antagonismos de classe continuaram a existir. Apesar
disto, a idealização proposta por Enrico Corradini, muito de útil teria até mesmo para que este
intelectual pudesse mais confortavelmente promover as conversações entre extremos políticos
inconciliáveis como a direita radical e a esquerda revolucionária. Firmado numa idéia de
nação ter-se-ia chegado a uma realidade homogênea cujas diferenças não podiam mais
impedir a conciliação de todos em torno do desafio de construir uma pátria para os italianos.
Toda essa preparação ideológica serviria justamente para permitir o consórcio das
alas contraditórias da direita e da esquerda que poderiam causar atritos indesejados já que a
idéia era ensaiar dentro deste laboratório de teorias o diálogo que o regime fascista travaria
com os múltiplos setores da nação italiana. Sim, porque embora teoricamente se admitisse um
país homogêneo, nos bastidores do confronto entre líderes e liderados, teria que haver um
campo mínimo que pudesse ser compartilhado também por aqueles que seriam utilizados na
concretização do ideário imperialista. Neste ponto, é crucial a observação de João Bernardo:
Corradini assumiu as conseqüências políticas que decorriam da junção daqueles dois vocábulos, e nos anos que precederam a primeira guerra mundial, esforçou-se por consolidar uma aliança entre os seus nacionalistas radicais e os sindicalistas revolucionários, que transportasse a luta do proletariado do interior da Itália para o exterior, convertendo uma nação proletária numa nação imperial. (BERNARDO, 1998, p. 169)
57
Este autor aponta a forma como foi engendrado o pacto político ao qual aderiram as
massas conduzidas pelo arcabouço ideológico fascista. A elaboração de Corradini surgia
como chamamento daquelas massas a seguirem a uma proposta nacionalista e, a adesão da
classe trabalhadora que era chamada a uma luta internacionalista pela ideologia marxista só
foi possível pela imaginação de um país desafiado pelas demandas da luta imperialista.
O operário passou, assim, de uma peça secundária nas movimentações entre países a
ser uma alavanca chave na engrenagem fascista. Desde que a vitória da Itália na luta entre as
nações dependia do apoio do operariado, nada melhor do que transformar esse setor em
importante agente de aglutinação. A pátria italiana era mais que um conglomerado de pessoas.
Por ser mais que a soma dos grupos sociais, a nação italiana, segundo a concepção
fascista, era um campo profícuo para o fermentar de um caldo ideológico peculiar. Esta
fermentação de idéias pode bem ser metaforizada na imagem de um cientista incansável na
arte de misturar substâncias que apesar de terem conteúdo distinto, podem ser combinadas e,
mesmo sem se confundirem resultam num composto novo, de utilidades até ali impensadas.
Tal combinação tornou mais fácil ao futuro Duce bem como aos nazistas, a tarefa de
atrair a militância já acostumada às quimeras coletivistas. A diferença é que aqui se mudavam
os meios em busca de um fim alvissareiro. Este fim era a conquista da coesão nacional em
prol de um futuro promissor para todos. Os meios inovadores passavam pela reorganização
dos contatos entre as ideologias de esquerda e de direita existentes no país.
Se tradicionalmente esquerda e direita tem uma arena de ação e um grupo a quem
endereçar especificamente seus enunciados, com o fascismo é justamente esse campo que é
alterado. Não que possa se confundir completamente uma ideologia de esquerda com uma
política dirigida pela direita. A despeito de manterem seus antagonismos históricos, os grupos
políticos no fascismo passaram a estabelecer cruzamentos diferenciados em que até mesmo as
divergências serviam para inspirar uma e outra referência ideológica e partidária.
Georges Sorel é outro ideólogo que muito contribuiu para fundamentação ideológica
do fascismo. Ele escreveu a obra Reflexões sobre a violência, que inspirou muito dos ideais
cultuados no fascismo. O título do escrito já é bem sugestivo de sua relação com um regime,
no mínimo, autoritário. Isto porque a violência foi tema recorrente assim que o fascismo se
instalou no governo e ganhou státus de regime. A violência tratava-se de uma ferramenta da
58
qual os líderes fascistas não hesitaram em lançar mão quando da necessidade de expurgar
figuras indesejadas.Também utilizada sempre que era necessário garantir a estabilidade de
seus pressupostos, caso eles fossem questionados em vez de serem seguidos incontestemente.
Obviamente, a violência não foi um recurso que os fascistas buscaram implantar
sempre em sua versão de eliminação física. A violência dizia respeito também à postura
ousada daqueles que arrogavam para si o direito de serem os guias da nação. Mas em Sorel
não se quer definir uma violência pura e simples. É necessária uma violência dosada e tática.
Georges Sorel pretendia um sindicalismo revolucionário, que criticasse o sistema da
dominação burocratizada. Esse elitismo dos burocratas muito incomodou o autor. Sorel
escreve sobre a terceira república francesa, mas boa parte do que ele construiu ao criticar a
burocratização dos governos, acabou por via reflexa conduzindo a uma noção de revolução
que muito se concatenava com o tipo de líder com o qual o regime fascista se identificou.
Ainda assim, a organização mínima deveria existir. A reformulação a ser feita tinha
que ser direcionada a evitar que as lideranças ignorassem completamente o poder de
organização que as massas possuíam. Como se disse o tipo de líder revolucionário que a obra
Reflexões sobre a violência anunciou, tinha uma característica especial que se adaptava a
remodelagem da direita. Em se tratando do parlamentarismo liberal vigente no continente
europeu, o distanciamento de uma perspectiva de mudança derivava do próprio elitismo.
Isso significa que o movimento de massas revolucionárias estava sintonizado com a
substituição dos moldes e práticas políticas vigentes. Não se tratava de meramente produzir a
desocupação de postos políticos para apenas trocar os nomes ocupantes das pastas e dos
gabinetes ministeriais. Mais urgente era passar a uma mudança de práticas políticas que só
fazia perpetuar sistemas econômicos e lógicas opressoras, pouco afeitas a transformações.
Neste sentido, cabe destacar um momento em que Georges Sorel deixa bem
transparecer sua ideologia para uma revolução. Dando a palavra ao próprio autor, destaca-se :
Necessita-se muita sutileza, tato e uma calma audácia para conduzir semelhante diplomacia: fazer crer aos operários que se ergue a bandeira da revolução, à burguesia que se põe termo ao perigo que a ameaça, ao país que se representa uma corrente de opinião irresistível. (SOREL, 1936, p. 177)
59
Aqui o autor, observa que as transformações que teriam de ser feitas no Estado
italiano, necessitavam de uma ética em que o líder procurasse de uma certa forma dialogar
com as diversidades de setores da sociedade daquele país, fazendo-lhes acreditar que havia
uma conexão direta entre os desejos dos grupos e a sintaxe do regime fascista.
Esta concepção de diálogo ideológico entre grupos até mesmo antagonistas, foi
muito bem explorada no fascismo, se se pensar que este regime lograra êxito na conquista do
poder ao promover aquela interação nova de forças que punha a realidade social na demanda
de um tênue balanceamento entre as forças potencialmente reacionárias, isto é, a ordem, e
aquelas que poderiam desencadear uma mudança mais abrupta, ou seja, a revolta.
O que se realça, nessa direção, é que se a violência representada pela eliminação
física tão sistemática quando se pensa nas operações dos campos de concentração, foi uma
realidade própria do regime fascista, esta violência foi precedida por uma metodologia
específica. Especificamente a violência pede uma política que faz o regime se acercar de seus
alvos. Por outro lado, a conquista do poder solicita do regime que este tente pairar por sobre
os diferentes atores do corpo social. Aqui o distanciamento é promovido por meio de toda
esse trabalho que coloca a ideologia no centro das atuações políticas.
Ao fazer “parecer”, a ideologia ao mesmo tempo em que torna possível a captura da
atenção de atores opostos, não conduz a um rígido entrelaçamento de compromissos. Esta
fluidez do discurso permite que o regime se distancie mesmo aparentando estar aderindo a
este ou aquele anseio de determinados políticos ou movimentos sociais. Por essas marcas se
pode perceber um pouco do quanto a chamada experimentação ideológica se tornou crucial.
Pode-se averiguar isto com mais precisão se for considerada a efetividade do
nacional-bolchevismo. É plausível encarar o fenômeno do nacional-bolchevismo na
contextura do fascismo como um resultado mais sofisticado desta que foi a trajetória fascista
de ensaio e erro no tocante à ideologia. Nas próximas linhas é importante, deter o foco da
pesquisa com a finalidade de esclarecer o que teria representado o nacional-bolchevismo para
a consolidação do regime fascista. Aqui se estará dando mais um passo na investigação dos
partidos políticos, agora dando ênfase para a faceta ideológica que está neles presente.
Já tendo sido postas as condições terminológicas de uma nação proletária desde
1908, com as teses de Corradini, o nacional-bolchevismo funcionou como terreno onde
aquelas idéias iniciais abraçadas pelos nacionalistas radicais da direita, pudessem ser incluídas
60
na terminologia dos partidos de esquerda. Essa viragem ideológica pode ser entendida de
forma mais clara, se contextualizada no meio dos acontecimentos de Brest-Litovsk.
Trata-se de um acordo de não-agressão assinado entre Alemanha e Inglaterra em
1918. A hipótese geralmente apresentada para tentar explicar a assinatura deste tratado é a de
que Hitler, tendo em mente a dificuldade de travar uma guerra em duas frentes, já estaria
planejando deflagrar o conflito e não queria preocupar-se, pelo menos inicialmente, com o
leste europeu encabeçado pela Rússia. Contudo, Brest-Litovsk tem um sentido mais amplo.
A defesa de uma perspectiva revolucionária dentro do partido comunista soviético
debatia-se com as novas idéias de Corradini que gradativamente tornavam mais evidente a
rixa entre uma revolução restrita às fronteiras nacionais ou a antiga proposição de uma
revolução que se espalhasse pelo continente, tendo como ponto de partida o operariado.
A perspectiva de uma revolução internacionalista vinha sendo acalentada desde que
os primeiros ensaios da revolução russa foram realizados. A assinatura do acordo teuto-russo
demarcava uma conversão que facilitava a reprodução dos temas socialistas sob um ângulo
especificamente nacional-bolchevista. Dito de um outro modo: os temas do socialismo eram
retomados, mas apenas para que a ideologia nacional-socialista se viabilizasse, ou seja, para
que a revolução que poderia tomar proporções supranacionais, pudesse ser colocada no lugar
de uma rejeição ao capital cosmopolita, na revolta contra o capital externo dentro do país.
Também, pode-se apreciar o nacional-bolchevismo como na fala de João Bernardo:
Tratava-se de uma concepção corrente nos meios da extrema-direita, um fundo ideológico comum às suas várias táticas, e que a extrema-esquerda recuperou em termos próprios. Nada mais natural, então, do que transportar para o âmbito nacional as preocupações sociais (…) e confundir o socialismo com a libertação do país relativamente às cláusulas impostas pelos vencedores. Mediante esta redução da dialética (…) o socialismo cumprir-se-ia na nação quando esta tivesse sido de novo transformada em imperialismo. (BERNARDO, 1998, p. 194)
Este estudioso demonstra que o nacional-bolchevismo não ocupou apenas à direita,
mas conduziu a esquerda a também participar do plano de suprimento das problemáticas
sociais concomitantemente a libertação nacional ante as investidas do capital externo.
61
Este ardil de dissolver a luta de classes na luta nacional possibilitou que os lados da
direita radical e da esquerda revolucionária fossem interlocutores na cena nacional-
bolchevista. Os líderes comunistas, assim, tinham o sinal verde para aplicarem uma política
que combinava elementos do nacionalismo e do bolchevismo. O período é o da assinatura do
tratado entre Alemanha e os soviéticos e perdura na luta contra a República de Weimar.
Partindo desta combinação poderia ser implementada também uma política que
representasse aqueles diálogos de extremos radicais. A economia, por exemplo, pôde ser
conduzida baseando-se em pressupostos da NEP (Nova Política Econômica) de Lênin e o
corporativismo da Itália mussoliniana. Uma experimentação bastante original essa que
compunha a ideologia nacional-bolchevista. Todavia, ela viabilizou-se numa conjuntura clara.
Primeiro, todas aquelas dualidades do movimento marxista e, depois as
circunstâncias da República de Weimar bem como da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk.
Quanto aos dilemas dos marxistas, não se pode esquecer que havia sempre a dúvida entre
travar uma revolução internacionalista e, ao mesmo tempo, produzir uma teoria que
respondesse aos jogos das ocorrências localizadas dos países. A dificuldade em resolver estes
impasses mostrou-se tanto nas cisões internas do KPD - conforme se destacou - quanto nas
atitudes tomadas pelos líderes daquela agremiação em dialogarem com a direita do NSDAP.
Concomitantemente, a direita radical nacionalista tomou lugar nesta confabulação. A
necessidade de oposição à república de Weimar contribuiu num esforço que aproximou direita
e esquerda, ambas preocupadas em desestabilizar ou mesmo finalizar um governo que
desagradava à direita porque o constitucionalismo e reformismo governante não se
coadunavam com a mudança arrojada que os nacional-socialistas queriam para a Alemanha.
Desagradava à esquerda por manter o quadro das necessidades operárias apenas dentro de
uma institucionalidade que não estava rigorosamente em consonância com o anseio popular.
Além disso, já se destacou a necessidade de convencionar uma não-agressão entre
alemães e soviéticos no limiar de um período em que a Segunda Guerra era uma
possibilidade. Apresentando a situação nestes termos parece que a conversação entre os
setores envolvidos no cenário nacional-bolchevista foi sempre pacífica e tudo teria decorrido
de uma rede de condições propícias para que aqueles grupos díspares repentinamente se
aproximassem. Lógico que alguns dos militantes comunistas poderiam ser contrários às
62
premissas do nacionalismo da direita, e também representantes desse nacionalismo não
vissem com bons olhos o atendimento das necessidades básicas dos trabalhadores.
A dificuldade de fazer uma análise de conjuntura, então, fica patente. Todavia,
mesmo com esses ecos contrários cada grupo reforçava-se ao outro e contribuía para que se
tenha a delimitação de suas feições. Eles estavam envolvidos, mas nem por isso se
confundiam. Aqui, recorre-se novamente a uma assertiva fundamental de estudioso do tema:
A ala populista do nazismo só se pôde sustentar enquanto existiu um Partido Comunista que lhe serviu de inimigo, e ao mesmo tempo, de interlocutor. Durante toda a República de Weimar, (…) a classe trabalhadora na Alemanha (…) balançou entre o desejo de aproximar os comunistas de uma social-democracia reformista e cosmopolita, sob o pretexto da unidade das forças de esquerda, e a sedução por fazê-los convergir com a ala populista do nacional-socialismo, invocando o argumento da unidade contra o capital estrangeiro. (BERNARDO, 1998, p. 210)
A assertiva é bastante elucidativa porque faz alusão a alas um tanto simétricas nos
dois partidos. O comunista agitava uma classe trabalhadora que se dividia sob a influência de
um populismo albergado no partido nazista. A convergência de forças de esquerda aparecia
no tom de reformas do SPD e, ainda a divisão dessas forças repelia os partidos esquerdistas
jogando-os num percurso de aproximação com o nacionalismo que havia no NSDAP.
Em nível exemplificativo, o Partido Comunista Alemão mostra a passagem de alguns
representantes políticos que faziam o caminho direto do Partido Nazista para o KPD. Foi o
caso de Richard Scheringer, seu ideário nacionalista não foi abandonado ao sair do partido de
Hitler, por discordar de sua via legalista, para propor transformações antes de instalado no
poder. Desse modo, silenciosamente o comunismo ia abrigando antigos representantes da
direita que uma vez inseridos na esquerda, cuidaram de reproduzir lá os temas que os
inquietavam antes, nos partidos de direita. Assim surgia o nacional-bolchevismo.
Com essa possibilidade de diálogos recíprocos, a partir da direita e da esquerda, aos
trabalhadores era apresentada uma espécie de miragem de um oásis em que havia uma porta
aberta para que os explorados pudessem ter um espaço maior de barganha. Isso porque o tema
nacionalista estava - pelo menos nas teorias - em convivência com a preservação da dignidade
trabalhadora. A chegada de Hitler ao poder, todavia, traria outros temas. Sobretudo o apelo às
massas seria uma forma de buscar energias para uma revolução que o alquebrado
63
conservadorismo não poderia construir com seus métodos tradicionais de estabilização
política. Ainda que a empregabilidade aumentasse, a dominação de Hitler não era voltada para
uma emancipação da classe operária, senão para uma expansão da própria nação alemã.
Com a ascensão de Hitler, a política foi bem menos revolucionária do que se creu
quando nos inícios da ideologia nacional-bolchevista. De todo modo, já estavam lançados os
pilares da ideologia do estado fascista. Podia-se diferenciar: “uma atuação política baseada na
classe trabalhadora, mas (…) ao serviço de um nacionalismo agressivo - tínhamos ali os
ingredientes principais do fascismo” (Ibid, p.211). Mesmo antes da chegada do nazismo a seu
estágio consolidado em que funcionou como regime, já se viam divisar estas particularidades.
Um conglomerado de partidos e ideologias sendo esgrimadas como numa batalha.
Aqui se tem um pouco do que foi o regime fascista. Mais do que siglas partidárias
digladiando-se em uma arena, o regime fascista conseguiu produzir realizações específicas
que uniam atuação política dos partidos em igual nível de importância aos testes e
experimentos que tomavam tonalidades ideológicas diferentes em comunicação reflexiva.
Daí poder-se dizer que há partidos políticos como front de batalha e em nível
ideológico uma espécie de caleidoscópio em que se misturam cores chegando-se a resultados
novos em que é possível identificar simultaneamente os tons iniciais e os tons finais
produzidos com estes ajustes. A organicidade do regime fascista vinha mesmo desta
oxigenação que era conseguida com esta multiplicidade de agentes.
Vê-se que este todo complexo não pode ser encarado como tendo sido fruto das
intenções exclusivas de uma insígnia de partido, deste ou daquele movimento social, ou
apenas a ideologia de uma direita em processo de renovação. Não foi apenas isso. Nada
obstante terem sido os partidos e as ideologias componentes importantes, eles sozinhos não
conseguiriam dar sustentabilidade ao estado fascista, se se desconsiderar a interação desses
fatores reunidos. Neste jogo interativo as massas eram alvo importante da política fascista.
Aqui se chega a um novo tipo de inovação do fazer político que o fascismo trouxe à
tona. É a política de comunicação de massas. Tanto a massificação das idéias era importante,
como a criação de uma espécie de espetáculo onde se podia encenar aos assistentes a fim de
chamá-los a participar da comunidade nacional. A perseguição de uma conquista das massas
não foi apenas a luta por atingir o maior número possível de forças que desencadearia uma
gigantesca adesão de energias humanas. O caráter moderno da política fora dos gabinetes
64
amarra-se a uma outra faceta de sustentação do estado fascista que complementa a
experimentação ideológica. Aqui se passa a uma abordagem culturalista do fascismo.
3. A POLÍTICA COMO ESPETÁCULO: o deslocamento para uma tática de massas
Até aqui se tentou discutir o fascismo fazendo uso de muito do que o referencial da
teoria marxista fornece aos estudiosos de assuntos como este. Por esse motivo, foi importante
destacar o desempenho dos partidos políticos, sua forma de relacionamento numa situação
crítica no interior do contexto de construção do Estado fascista. A ideologia aparece também
como ferramenta indispensável, espécie de critério de avaliação para entender a contra-
revolução levada a cabo pelo fascismo. Não se tratou de uma revolução aos moldes de
transformação completa da estrutura do Estado, já se disse, foi uma revolução na ordem.
É preciso fazer uma observação. O alvo aqui foi demonstrar que o uso da ideologia
foi preponderante na consolidação do Estado fascista. Em dados momentos a narrativa pode
até ter feito parecer que a ideologia teria funcionado como antecipadora perfeita das ações dos
partidos políticos e essas ações teriam necessariamente desembocado nas práticas do fascismo
enquanto regime de massas. O rigor científico, entretanto, não pode deixar que a explicação
passe aos olhos do leitor de uma maneira tão linearista. Fazem-se assim mais observações.
É preciso dizer que a ideologia norteia muitas ações humanas. Só que junto com o
elemento ideológico a história humana é feita do elemento dinâmico da própria intervenção
do homem que nem sempre é guiada perfeitamente por pressupostos que a ideologia por ele
supostamente seguida tentam indicar. De um outro modo, a ideologia nem sempre antecipa as
ações humanas, mas nem por isso deixa de ser importante analisá-la dentro do jogo político.
Por outro lado, a continuidade dos estudos do fascismo tem posto novos horizontes
na pauta das muitas variáveis sobre o tema que podem ser objeto de estudo. Nessa direção,
devem-se cotejar os contributos da teoria marxista com outros modos de pesquisa da temática.
Uma atividade complementar como esta, conduz às contribuições da História Cultural. É uma
recente possibilidade surgida após o advento da Escola francesa de historiadores: os Annales.
65
Os novos estudos da História Cultural lançam seus focos para outros lugares da
averiguação científica. Se o marxismo propõe-se a destacar a relação entre economia,
ideologia e as implicações na realidade histórica, resultantes dessa relação, a história cultural
pretende perceber aspectos mais relacionados ao cotidiano dos sujeitos estudados.
Assim sendo, especificamente ao abordar o fascismo seguindo uma teoria que
busque as contribuições tanto da História Cultural como da marxista, chega-se a uma
complementação de ambas. Neste caso, no estudo do fascismo perfaz a característica que a
História Cultural adentra ao colocar em relevo a importância da realização de grandes
ajuntamentos populares em praça pública, bem como a realização de outros eventos de massa
como festivais de glorificação do regime, desfiles, paradas militares, enfim aqueles momentos
especiais em que era propagandeada uma coesão interna indestrutível no Estado. Por isso se
fará uma abordagem de uma política que pretendia mostrar uma realidade que em tudo se
assemelha a um espetáculo. Assim sendo cabe primeiro ver a coordenação da legitimidade do
regime e a seguir a metodologia empregada para garantir esse funcionamento.
3.1 A imagética do espetáculo: mitos e legitimação do Estado fascista
Conforme se tem afirmado, o regime implantado na Alemanha e na Itália a partir da
chegada dos partidos nazi-fascistas ao poder, foi se re-elaborando. Para acompanhar tal
incremento não se pode prescindir do entendimento de que gradualmente o regime vai se
capilarizando, ganhando terrenos que outros regimes político-sociais até ali não tinham
adentrado. Quer se chamar atenção aqui para o fato da penetração do regime na vida das
pessoas que o viveram. Para que o regime obtivesse sucesso em tal empreendimento, foi
construída uma legitimidade específica cujo detalhamento ocupará estas próximas linhas.
A obtenção de dimensões gigantes para o fascismo fez-se sentir primeiro num lance
útil à obtenção duma receptividade favorável do regime considerando o meio urbano e o meio
rural. Nesse sentido, a primeira faceta criativa do referencial imagético é esta: chegar a uma
atuação política que chamasse os camponeses e os citadinos a participar da arrancada
66
expansionista e, ao fazer isto, que se conseguisse impregnar o sonho de uma sociedade de
dominadores. Esta sociedade foi pensada num státus imperialista e, portanto, continental.
O tom heróico e ao mesmo tempo sagrado foi o emblema deste fator de comunicação
do regime com as massas. Este simbolismo deita raízes nas minúcias dos mitos criados e
propalados no regime fascista. O primeiro deles foi o do resgate histórico e biológico da raça
nórdica. Por isso o Estado fascista não se limitou a dirigir-se apenas ao meio urbano. A pureza
do mundo camponês era exaltada como local onde se deveria encontrar também este caráter
de uma sociedade formada pos pessoas selecionadas. A seleção era a marca desta sociedade.
Tendo em vista estas premissas iniciais, o regime defendido por Hitler impetra uma
preferência baseada no sangue nórdico. A existência de um Departamento Central de Raça e
Colonização dos SS foi a medida prática no sentido de conseguir produzir um discurso
laudatório das qualidades da terra e do sujeito camponês através da colaboração de Himmler e
Valter Darré. A triagem baseada no sangue nórdico significou, assim, um elemento de face
militar e camponesa. Militar porque proveio do chefe destacado das milícias SS. E camponês
porque via na qualidade do solo alemão o tom sagrado do investimento a ser conseguido.
Subjacente a essa preocupação estava uma política de eugenia. Essa política
objetivou a valorização da expressão imperialista do estado nazi-fascista não só conquistando
territórios, mas contribuindo para a disseminação do sangue da raça ariana. As palavras do
Füher são sugestivas para compreensão mais acurada deste planejamento do Estado fascista:
Na sua forma final, o Grande Reich Alemão incluirá no interior das suas fronteiras entidades nacionais que desde o princípio se revelam desfavoráveis ao Reich. Só uma formação constituída desta maneira poderá resistir às influências desintegradoras, mesmo em épocas de crise. Uma formação deste tipo – orgulhosa de sua pureza racial.(…). (BERNARDO, 1998 p.699)
O máxime líder do Estado nazista deixa nítido em suas palavras a vontade de tratar
as pessoas submetidas à ordem estatal como receptáculos de um sangue que se propagava ao
longo dos séculos e deveria ser preservado, sob pena de se ter a negativa da perfeição do
regime. Fundamentando o regime nesta raça de senhores foi preciso reinventar aquilo que era
discursivo em um prisma pragmático de afirmação da raça pura. Esta pureza era garantida não
67
só pela admissão da infalibilidade dos selecionados portadores daquele sangue. Era avalizada
pela não mistura com sangues de raças inferiores. Aqui se deve deter a análise um tanto mais.
A compreensão hitleriana para salvaguarda da edificação da pureza racial passava
por esta afirmação do “eu,” a partir da negação do “outro”. O eu, identificado como superior,
deve ser protegido em detrimento do outro, tido como inferior. Assim sendo, levando em
consideração as teorias raciais que na ciência do século XIX, enxergaram nos caracteres
físicos os critérios de exame das raças, poderia haver uma seleção de pessoas mais adaptadas.
Essa ordem social propunha então que até pessoas de outros países que tinham
marcas físicas ou intelectuais que pudessem apontar uma ascendência nórdica, desfrutariam
da chance de não ser eliminados. O importante em todo esse ideário era que a raça pudesse
promover a unidade nacional. Aqui se vê que a unidade nacional não se restringiria apenas a
acompanhar as fronteiras geográficas da Alemanha. Era preciso que a ordem de dominação
alcançasse espaços maiores não só sob o ponto de vista da quantidade de pessoas que foram
abrangidas, mas também pela típica exteriorização da conquista até fora da grande Alemanha.
A caracterização deste primeiro mito derivava de uma concepção cultural específica.
No conceito nazi-fascista, a cultura encontra uma aferição diferenciada da que se encontra nos
demais sistemas político-filosóficos. É que em geral a cultura é assimilada como atividade
criadora. A natureza seria transcendida através da edificação cultural do homem que, ao
subjugar as forças que se lhe opõem, conserva um espaço que garante a distinção da
humanidade sobre as demais espécies e acumula conquistas materiais sempre diversificadas.
Quando se trata da legitimação nazi-fascista, ocorre uma inversão de sinais. Isto
significa que em termos de cultura há a redução desta, apenas para a noção de coesão de um
povo. O nórdico ou ariano aparecia no contexto da exaltação heróica da morte nas linhas
combatentes. A cultura assim é vista como criação coletiva em que o indivíduo atomizado,
chega a produtos culturais apenas de modo coletivo e - o que parece mais paradoxal - o
produto cultural é corolário de algo destrutivo como a morte na guerra, o espetáculo maior.
Aqui novamente se pode observar a importância do sangue. Ao entregar-se à guerra
não se importando com as conseqüências possivelmente mortais, o pertencente à raça
escolhida, estaria contribuindo para um combate de uma raça superior cujo sangue teria que
ser conservado também batalhando-se contra as possíveis anomalias ao redor dos arianos.
68
Aqui a segunda forma pela qual o regime procurava aparecer qual um arquétipo
cultural não só plausível como digno de ser defendido e consolidado. É o mito da existência
dos infra-homens. O primeiro referencial de imagens buscava admitir a existência de ma raça
superior. Uma melhor abordagem do mesmo, é feita quando se compara com a idéia de uma
civilização composta por homens inferiores. A aceitação de uma raça que se supõe em
posição de superioridade em relação às demais, pressupõe a conclusão lógica da vivência de
raças inferiores. Nessa visão, o nível civilizacional das raças inferiores acompanha sua
condição de inferioridade. Assim, os judeus e os eslavos foram classificados como inferiores.
A coerência interna destas referências, revela-se na atribuição de um nível maior ou
menor de desenvolvimento conforme a raça a que pertencia o indivíduo. Assim chegou-se a
uma hierarquia em que judeus e eslavos foram tidos como inferiores e incapazes de pertencer
à raça superior. Mais do que isso deviam ser alvos da dominação por parte da raça superior
ariana. É preciso detalhar um pouco mais essa hierarquização para se entender o
direcionamento das forças nazistas contra estes personagens. E a razão de ser desta mitologia
possibilita entender a própria eficiência do fascismo enquanto regime em franca consolidação.
Quanto aos judeus, estudioso do tema esclarece com propriedade a questão ao dizer:
Para que a raça superior fizesse triunfar aquela ordem estável e inaugurasse o Reich dos Mil Anos seria necessário aniquilar primeiro a raça privada de espírito de síntese, (…) os subversores que sempre ameaçam as hierarquias com os conflitos. E quem melhor os podia representar senão aquele povo que, há dois mil anos expulso da pátria de origem, se revelara incapaz, tanto de se deixar assimilar pelos Estados que o acolheram, como de fundar um Estado próprio? (BERNARDO, 1998, p. 310)
Nesta afirmativa o autor esclarece que o povo Judeu era tido como ator da
desintegração. Sua História seria a prova de uma gente incapaz de atingir um nível de
organização harmônico com o que se poderia classificar como civilizado. Mesmo tendo sido
espalhado não conseguiu até ali conquistar um Estado próprio, o que denotaria a completa
propensão do povo judeu a uma vida desorganizada. Era o judeu o ícone maior de tudo aquilo
que o regime fascista deveria extirpar na luta pela preservação da raça nórdica.
A marca dos degenerados que deveria ser também eliminada, estava presente entre os
povos eslavos. Hitler observava que era preciso fazer uma cruzada contra o espírito pan-
69
eslavista 9: “A nossa missão é impedir que a estepe russa alastre pela Europa. Nada poderá
impedir o combate decisivo entre o espírito alemão e o espírito pan-eslavista, entre a raça e a
massa. É necessário que a hierarquia dos senhores subjugue a multiplicidade dos escravos”.
Nestes termos em que Hitler se expressa, fica bem clara a visão de estabelecer
através da legitimidade do regime nazista uma espécie de barreira de contenção contra o
possível fermentar da idéia de um pan-eslavismo que fosse capaz de congregar em si os povos
de origem eslava sob o mesmo ideário. Mesmo diante de um perigo de organização deste tipo,
o que finaliza as palavras do Füher é a afirmação de que tais povos eslavos não passavam de
uma massa de escravos, o que já denota a história a eles relegada nesses moldes.
Para a raça de escravos só restaria a prevalência do domínio do exército de senhores
sobre eles. Em contrapartida, ao se observar essas imagens que associavam povos inferiores e
superiores, conforme a raça a que pertenciam, ou seja, consoante a potencialidade de seus
traços biológicos, deve-se destacar um ponto específico da discussão. Afinal, a construção do
ideário de apreciação dos povos numa dimensão biológica, sob critérios da raça, foi uma
tarefa que dividia os seus defensores. Existiam basicamente duas alas na Alemanha, que
raciocinavam essa problemática. Uma liderada por Hitler e outra liderada por Otto Strasser.
A proposição de Strasser destoava um pouco do posicionamento de Hitler quanto ao
programa racial porque Strasser - líder da ala mais populista do NSDAP - percebia um
racismo um tanto menos exclusivista que o de Hitler. Este líder buscava adotar um
posicionamento que não negava a necessidade de admitir uma escala de superioridade e
inferioridade entre os povos, considerando elementos da biologia. Por outro lado, não
considerava ser tão premente a vontade de extinguir as populações exteriores àquela raça pura
preconizada por Hitler e seus seguidores. Na acepção exprimida pelas palavras de J. Droz:
(…) a imprensa de Strasser insiste cada vez mais na necessidade de uma aproximação à União Soviética, cujo sistema interno é no entanto condenado. Strasser combate absolutamente a idéia de uma superioridade dos povos germânicos sobre os povos eslavos. O tema (…) da superioridade dos Germanos sobre os Eslavos é combatido pela imprensa de Strasser. (DROZ, s.d, p. 14)
Ao delimitar este aspecto, o referido autor deixa claro que havia na ótica da ala
radical popular do NSDAP um maior otimismo no valor da raça superior. Por causa disso,
9 NOLTE, Ernst. La guerra civile europea, 1917-1941: nazionalsocialismo e bolcevismo. Florença: Sansoni 1989.
70
este prisma de enunciação acredita não haver uma superioridade dos povos germanos,
conforme citado. Em vez do perigo da contaminação dos elementos nórdicos pelo sangue
eslavo, Strasser preferia o domínio do sangue ariano uma vez que por seu virtuosismo e seu
poder de absorção, o sangue ariano não corria o risco de se ver sobrepujado pelos eslavos.
A base do programa contrário ao de Hitler, ao mesmo tempo em que punha em
evidência os dissensos que pululavam no caldeirão de idéias sobre a problemática racial,
determinava uma atitude a ser tomada pela ala hitleriana. O modo de abafar qualquer
assimetria a este programa foi o assassinato de Otto Strasser em 1934. Aqui podemos apontar
uma espécie de contradição do mito da pureza racial como formatado por Hitler e seu grupo.
O racismo de Strasser e seus defensores diferia do defendido por figuras como
Himmler, Hitler e Gooblles. Aquele abrira a visão para o fato de que a raça ariana por ser a
genitora de uma nova ordem social, seria imune aos perigos da contaminação ou de uma
dominação pelos povos eslavos de nacionalidade polaca, tcheca ou russa. Já o racismo
hitleriano perseguia a realização de um domínio sistemático do leste temendo o perigo que
seria deixar esses povos se misturarem com o ariano e contaminar-lhe o sangue.
A contradição se afigura justamente nesse momento. Ora, se os povos que seriam
dominados não possuíam as marcas da superioridade, por que temer tanto uma contaminação
por causa do contato com os judeus, como também dos povos eslavos? Enquanto no racismo
strasseriano a inoculação dos caracteres benéficos se daria no sentido do ariano para o eslavo;
no outro prisma do racismo, o caminho era inverso: os eslavos podiam macular o ariano com
seus elementos de degeneração. Apesar destas divergências e da própria contradição do
racismo defendido por Hitler, foi a sua compreensão a utilizada para legitimar o regime.
Aos povos de nacionalidade eslava reservou-se, desde o início, um plano ortodoxo
que pretendia comprometer e inutilizar as potencialidades humanas daqueles povos bem como
sua capacidade de reprodução material. Por isso, foi importante até mesmo o fechamento das
escolas e o envio da intelectualidade dos países perseguidos nessa metodologia para os
campos de concentração. Em vez de fazer uso da capacidade intelectual destes povos, para
otimizar o regime, preferiu-se desenraizá-los e impedir de todas maneiras que a pureza do
sangue fosse posta em perigo. Esta era a visão defendida pela obra ditada por Hitler na prisão:
Só a perda da pureza do sangue é que destrói para sempre a felicidade interior, mergulha o homem definitivamente no abismo, e as conseqüências não podem mais ser eliminadas do corpo nem do espírito. Se analisarmos à
71
luz desta questão todos os outros problemas da vida, e os compararmos com ela, veremos como perante este padrão eles são ridiculamente triviais. (HITLER, 1962, p. 297)
Este trecho da obra de Hitler, Minha luta, põe às claras os destinos que as
composições representativas da imagética do regime fascista, deixavam aos povos alcançados
pelo racismo excludente, um futuro nada animador. Já que a pureza do sangue definia os fins
e tais povos eram vistos como os portadores de um sangue inferior ou de um latente perigo de
contaminação dos demais, o fascismo permitiu a aplicação da violência ilimitada. E uma
violência especialmente destinada a judeus e eslavos, bem ao gosto da lógica pretendida.
A aplicação deste marco de violência, cujo modelo por excelência parece ter sido o
campo de concentração, funciona como desaguadouro da legitimação do regime através da
obediência. Mas funciona também para construir a imagem do inimigo, contra quem deveria
se direcionar a agressão. Assim, se percebe que a teia mitológica criada para legitimar o
regime era a mesma que conferia a justificação para a violência, tanto física como simbólica.
Por esse viés, tanto o mito da raça pura como o mito do judeu e do eslavo enquanto
inimigos produziram os alicerces da legitimidade para o regime. Nesse caminho, também
conseguiram o lugar para o espaço da política específica do nazi-fascismo em relação às
massas. Uma política que lhes seduzia a obediência e as chamava a participar do sentimento
nacional. Combater o inimigo era participar dessa comunidade de reificações então feitas.
Daqui se percebe a importância fundamental do mito inserido no contexto político.
Ao apontar o judeu ou eslavo como inimigo nacional, o regime admitia serem eles a
encarnação do próprio mal. Para além disso, a imagética criada para saldar a apoteose de um
regime supostamente indiviso, tinha outras implicações que trafegavam a violência simbólica.
O termo induz ao pensamento de que houve uma dicotomia perfeita entre os tipos de
violência aplicados. Como se pudesse rigorosamente definir violência física em contraposição
à violência simbólica. O que se pode observar com um olhar bem atento é que ambas as
violências funcionaram de maneira complementar. E, no tocante à violência dita simbólica,
algumas considerações adicionais precisam ser feitas com mais detalhamento.
A violência simbólica diferenciava-se da física não só por não atingir diretamente o
corpo do indivíduo. O que se entende por violência simbólica, diz respeito a fatores que
conseguem atingir o identificado como inimigo, internamente e externamente. Nesse sentido a
72
violência simbólica caminha mesmo pari passu com a violência física. Ao criar toda uma
teoria racial e cultivar aquela rede mitológica, é preciso não perder de vista que os nazi-
fascistas comunicavam-se com a massa combatente e a massa combatida. Daí sua
especificidade. O mais importante era que o inimigo acabasse internalizando esse ideário.
Por isso se disse que a violência simbólica trabalha em complemento da violência
física e que atingia o inimigo interna e externamente. Externamente a violência era o próprio
corolário da teia de fatores que apresentavam a necessidade de promover a identidade
continental baseada num racismo excludente, num racismo que queria preservar o ariano.
Desse modo, externamente o inimigo era marcado pelo regime e pelas multidões que
ele pretendia seduzir e utilizar. E, internamente a violência simbólica cuidava de promover
uma outra mudança específica. Trata-se de uma violência que atinge a interioridade do objeto,
de vez que se insere numa superfície mais profunda, qual seja a da desumanização gradativa.
Ao desreferenciar os povos eslavos e também o judeu do seu lugar cultural ou de um
espaço mínimo em que se pudessem relacionar mutuamente, o regime fascista promovia quiçá
a violência mais eficaz. Lógico que tais sujeitos não eram completamente passivos a ponto de
aceitar sem resistência aquilo que era definido no rol das frias câmaras dos gabinetes
partidários. Mas, mesmo assim, não se pode ignorar a eficiência de uma lógica que
sistematicamente era aplicada para produzir mensagens ao judeu e ao eslavo, para comunicá-
los da sua inferioridade. Fazê-los admitir tal inferioridade e por fim desarticulá-los de suas
razões culturais, antropológicas e sociais. Ao admitir e analisar a receptividade destes mitos,
tem-se como bastante lúcida a afirmativa de um estudioso dos mitos políticos, para quem:
[...] uma certa situação de disponibilidade, um certo estado prévio de receptividade. O que significa, entre outras coisas, que em sua estrutura, em sua forma como em seu conteúdo, a mensagem a ser transmitida deve, para ter alguma possibilidade de eficácia, corresponder a um certo código já inscrito nas normas do imaginário (GIRARDET, 1987, p. 51)
Segundo este autor, o mito político é uma mensagem especifica e sistemática. O
conteúdo dessa mensagem atinge uma clara eficiência desde que o espaço de sua vinculação
seja também detentor de um imaginário aberto àqueles conteúdos. Assim a forma de
mensagem mitológica mencionada, trabalha sutilmente o estágio mais complexo: as
mentalidades. Considerando assim, há que se ver a relação entre violência simbólica e mito.
73
Aqui se está tratando da exeqüibilidade do mito político. No caso do fascismo pode-
se dizer que violência simbólica e mito alimentam-se da mesma estratégia: a de atingir a
mentalidade das massas de inimigos e das massas de adeptos. Os primeiros, para que
internalizassem sua condição e, as massas, para que encarassem a violência como uma espécie
de mal necessário, uma parte da existência que teria que ocorrer na nascente ordem superior.
O que se observa então é um deslocamento do político para outras esferas que não
podem ser tão facilmente estudadas, caso se permaneça apenas nas contribuições dos escritos
marxistas. Os líderes da ordem fascista, anteriormente muito diligentes em estratégias de
chegada ao poder, agora mudavam um tanto sua política. Esta não mais se resumia a lances da
diplomacia entre nações ou mesmo aos bastidores da luta interpartidária nacional.
Tratava-se de um caminhar bem direcionado para as massas, a partir dali, mais do
que antes, alvo do regime tanto porque foram sua energia legitimadora, como os agentes a
serem colocados na linha de frente das mudanças a serem consolidadas. Ou seja, mesmo que
para trazer experiências traumáticas, os líderes do regime não mediam esforços para
transformar sua prática, como que anunciando uma fala de Vieira10 , arguto conhecedor dos
meandros da política, segundo o qual: “E para que a eleição seja boa, que parte hão de ter os
eleitos? Eu me contento com uma só. E qual? Que sejam ao longe o que prometem ao
perto”.(VIEIRA, 1976, p. 42). Hitler, após a chegada a chancelaria e o Duce, podem ser
identificados como os eleitos para dirigir o novo regime, os quais tudo fizeram em distanciar
um discurso anterior que sinalizava em atender e resolver uma crise e, uma vez instalados em
seus postos, abriram espaço para uma arquitetura obtusa que incluía guerras e mortes.
Ainda quanto à problemática de uma política que lança mão do mito, pode-se citar
um argumento de outro estudioso do tema, que ao enunciar-se sobre o mesmo, esclarece que:
Enquanto elemento de um discurso que se deseja eficaz, o mito político possui uma dupla origem. Ele é fruto, menos ou mais refletido, de uma estratégia política. O emissor do discurso o escolhe confiando em sua utilidade. Mas não é correto reduzi-lo à "demagogia", e não apenas porque não é necessário (embora seja possível) que seu veiculador o vivencie como "mistificação". O mito é também um produto coletivo; (…) O discurso mítico está inserido em um meio social no qual já existe. (MIGUEL, 1998, p. 16)
10 Pe. Antônio Vieira: Sermão da epifania. Coletânea de textos escolhidos. Núcleo de pesquisas em informática, literatura e lingüística, 1976.
74
A referida assertiva torna bastante patente a função de um mito para a política que
dele faz uso. A mistificação, segundo o autor, deve ser admitida como produto coletivo, e
como produto individual. Além disso, o mito não é necessariamente um discurso do
falseamento, uma atitude sem reflexão. A estratégia política é que dá forma a esse mito.
Nesse sentido, o que o regime fascista produziu não deve ser visto como uma
ditadura dos discursos. Os discursos por si só não são úteis para nenhum objetivo político.
Eles não estão desarticulados de um contexto social. O fascismo não poderia ter alcançado os
sucessos que teve se não explorasse tecnicamente as possibilidades para uma moderna
propaganda política. O mito político adquire peso com essas técnicas novas do fazer político.
Faz-se necessário estudar além da superfície destes mitos para adentrar ao terreno
peculiar do que se quer caracterizar como política do espetáculo. Deve-se percorrer essa
inovação na forma de conduzir a atividade política que foi promovida pelo fascismo. Um
contato irrefletido com esse binômio que reúne política e espetáculo pode produzir uma
impressão equivocada do seu significado. No fascismo a marca do espetáculo permeia a
estrutura estatal. Isso se deve ao código comunicativo do regime que agora é o da propaganda
de massas, bem como às técnicas envolvendo cinema, e outras manifestações artísticas.
As páginas seguintes lançam uma investigação sobre esses métodos, a fim de
perceber a significância desta outra face tão eficaz como a experiência ideológica e partidária
existente no regime fascista. Nesse percurso tem-se o intento de melhor dimensionar o sentido
dessa referida política do espetáculo e assim chegar-se à etapa final - mas logicamente - nunca
definitiva a respeito do tema que ocupa esta pesquisa.
3.2 O poder rouba a cena: métodos de operacionalização da política do espetáculo
Uma vez identificada a existência de uma política distinta engendrada no regime
fascista, resta investigar os métodos pelos quais ela se operacionalizava. Objetivamente o
regime fascista trabalhou com uma teia de mitos os quais dialogavam com as massas da forma
75
que já se assinalou: tentar admitir uma comunidade nacional indivisa, através da correlação de
forças que propiciava um experimento ideológico diversificado. Também buscar criar uma
ordem de senhores a partir da concepção de hierarquias sociais. Há que se dizer que o
fascismo italiano não trabalhou na perspectiva anti-semita aberta como o fez o nazismo.
Apesar dessa distinção entre os Estados italiano e alemão, não se pode deixar de
enxergar que ambos os Estados trabalharam especialmente com as massas. Só estudando mais
detalhadamente o uso que o regime desses países fez de diversas ferramentas pode-se
entender a política do espetáculo. Assim sendo, destaca-se que os instrumentos de enunciação
que conclamavam os habitantes de seus países, faziam parte de uma política inovadora porque
até o fascismo a propaganda do regime, com tal ênfase e magnitude, ainda não tinha sido
tentada por nenhum governante. Isso poderá ficar mais claro depois dos comentários a seguir.
Claramente, o nível de propaganda do regime não poupou esforços em sua tarefa
legitimadora. Utilizou-se desde o rádio, até as artes plásticas, passando por manifestações
como a arquitetura, o cinema, a pintura, além dos discursos feitos em praça pública. Todo esse
aparato muito contribuiu para a criação de uma linguagem metalingüística sobre o regime.
Essa metalinguagem não mais fazia que produzir uma auto-referência sobre a
perfeição do regime, uma miragem tão bem cultivada que encarnava no líder supremo as
abstrações, que naquela figura tomaram a forma de ações e de uma encenação da própria
infalibilidade da nova ordem sob construção. Se o líder era apresentado como infalível, havia
que se criar uma aura espetacular em torno dos alicerces abstraídos daquela idealização.
Essa engenharia que trabalhava com as multidões, lançava mão de todas aquelas
ferramentas mencionadas e, por meio delas, trabalhava a imaginação de seu público. Essa
marca do regime torna-se uma característica inescapável desde que se veja a importância
assumida pelo cruzamento de imagens oriundas das diversas formas da produção cultural. De
uma concretude máxima corporificada na imagem das multidões reunidas, o regime
deformava a visão que as próprias pessoas tinham, fazendo-as ser um corpo só aos olhos dos
espectadores. Essa rede imaginativa11 muito contribuiu para atribuir um cânone magnífico ao
produto da relação do eu com o outro. No fim, nem um nem outro eram importantes, senão
apenas o todo. A totalidade aqui vista com o uma espécie de ente figurativo da ordem fascista.
11 BACHELARD, Gaston. O Ar e os sonhos: ensaios sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
76
Nas palavras de um estudioso: “(a imaginação) é antes a faculdade de deformar as
imagens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens
primeiras, de mudar as imagens”. (BACHELARD, 1990, p. 01)
Ao trabalhar essa imaginação, a plêiade de pensadores, cineastas e líderes políticos
do nazi-fascismo não discursava no vazio. Como já se disse, havia um campo propício para o
emprego de uma linguagem do espetáculo. Tal peculiaridade pode ser muito bem esclarecida
com a constatação de que aquele seleto grupo de senhores que se queria figuratizar era obtido
por meio da apropriação de um capital simbólico. Segundo acurada lição acerca do tema:
O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros agentes (...) na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador (…) o êxito destas operações de magia social que são os atos de autoridade (ou atos autorizados) está subordinado à confluência de um conjunto sistemático de condições interdependentes que compõem os ritos sociais (BOURDIEU, 1996, p. 89)
Vê-se que o autor dá enfoque proeminente ao chamados atos autorizados aos
detentores da palavra em determinada nação. Discute, nesse patamar, que a fala de um dado
grupo de líderes tem linhagens específicas. Suas raízes são fincadas no entorno em que se
desenvolvem. A eficiência desse discurso é proporcional a seu nível de autorização que é
dado pelo próprio círculo de liderados. Tal característica, portanto, não pode ser desprezada.
Assim sendo, pode-se afirmar que a apropriação do capital simbólico tipifica uma
fala autorizada. Autorizada porque absorve as influências sociais e as traduz num discurso
sistematicamente elaborado. Em relação ao Estado fascista, essa fala autorizada quer aparecer
diante da sua platéia como a reprodutora dos anseios essenciais do povo alemão ou italiano no
limiar do século XX. A função desse estado de coisas é perfeitamente percebida no
encadeamento da política de propagação e doutrinamento propugnada na exploração de um
instrumental poderoso e diversificado. Foi uma verdadeira maquinaria a serviço do regime.
As peripécias de uma política que pretende atingir seu público de maneira cirúrgica,
funcionam de modo a fazer de meros enunciados discursivos, leis a serem obedecidas
socialmente. Não foi por acaso que a trajetória de Hitler e Mussolini antes e depois de
galgarem o poder, fez-se acompanhar de um progressivo incremento de seu uso da imprensa
em favor do regime. A esquematização do aparato governativo vai refletindo as preocupações
77
de seus gestores em dar prioridade a essa vigorosa ética de apelo as massas. O tratamento
dado à imprensa e propaganda dá conta disto. De um início aparentemente tímido, a
operacionalização do regime passa a uma veemente fase de destaque para a ideação da
arquitetura política nos moldes de uma sociedade de massas, sob a égide do capitalismo.
Inicialmente, destaca-se o uso da imprensa e da propaganda. Neste tópico é
importante observar na Alemanha, por exemplo, que antes da tomada do poder pelo partido
nazista, ainda havia uma série de dificuldades relacionadas à instalação de uma melhor
logística e a falta de capitais dificultava a infiltração da doutrina nacional-socialista. Nesse
momento, o grupo liderado por Hitler não dispunha de grandes instrumentos de comunicação,
e o meio difusor das idéias era basicamente o jornal Observador Popular. Os contatos travados
pelas lideranças nazistas mudaram essa realidade, abrindo canais importantíssimos.
O acesso à grande imprensa é bastante facilitado depois da união de Hitler com um
magnata das comunicações em 1929, chamado Hugenberg. Depois disso, ficou aberta a porta
da comunicação ao futuro poderio nazista para o doutrinamento através da impressão, em
larga escala, de escritos nazistas. Ainda assim, os propagadores do anti-semitismo não tinham
até ali acesso ao rádio, que foi um trunfo significativo da expansão do poderio fascista.
Por outro lado, deve-se notar desde há muito toda a estruturação básica da forma
como seria instrumentalizada a atuação midiática do regime hitleriano. Idealizada por Hitler,
aquela política seria efetivada principalmente por Goebbles. Após 1933, já terminada a
República de Weimar, o desenvolvimento daquela técnica de apresentação foi viabilizado por
uma composição operacional formada pelo Ministério da Propaganda. Encabeçado por Josehp
Goebbles, esse ministério possuía câmaras sobre teatro, literatura, imprensa, rádio, artes
plásticas, música e cinema. Cada uma delas contava com o apoio de vários funcionários.
Além disso, havia sub-secretarias que cuidavam de ser o contraponto à centralização
dos direcionamentos nacionais do partido nazista. O chefe do Ministério trabalhou para que
em cada uma das câmaras específicas houvesse um trabalho conjunto que ensejasse uma
ênfase maior na criação de símbolos, no uso de cores, enfim na aplicação de técnicas capazes
de estimular uma propaganda cujo signo lingüístico fosse ao mesmo tempo verbal e visual. O
forte deste braço importante do nazismo foi - para alguns líderes - a propaganda indireta, pelo
menos no que tocava à arte da grande tela. No próximo capítulo isso será detalhado.
78
Vale dizer ainda que Goebbles dirigiu o Jornal O ataque. Aqui foi disseminada
grande parte das idéias que colocavam o judeu como inimigo nacional. A atribuição de um
estatuto especial de importância à mídia impressa também facilitou o apelo publicitário do
regime, sobretudo até a chegada ao rádio. Eram confeccionados cartazes, distribuídos nas
cidades onde transeuntes facilmente poderiam se deparar com os mesmos afixados nos muros.
A facilidade do custo baixo também impulsionou que o regime começasse por este veículo.
Na obra A sacralização da política, o autor menciona que: “o rádio permitia uma
encenação de caráter simbólico e envolvente, estratagemas de ilusão participativa e de criação
de um imaginário homogêneo de comunidade nacional”. (LENHARO, 1986, p. 40). Como
afirma este estudioso, o marco diferenciador do rádio era sua capacidade de propiciar o
envolvimento com a comunidade nacional pela audiência direta dos lideres políticos. A
simbologia explorada dava a idéia de um país homogêneo e uno. Todavia,isso não foi tudo.
O impacto trazido pelo rádio pode ser melhor dimensionado ao se observar que, em
inícios do século XX, a continuidade do processo de avanço tecnológico trouxe ao mundo
uma série de inventos cujo poder de atração não estava apenas no valor da novidade. Dentre
essas conquistas estava a exploração das ondas radiofônicas. Especialmente, em se tratando
do rádio, tinha-se mais que uma ferramenta de entretenimento, uma das últimas palavras em
matéria de tecnologia das comunicações. Ao lado do progresso dos transportes, da melhoria
das condições sanitárias, da diminuição das distâncias com o uso de vias de tráfego
aperfeiçoadas, o rádio seguiu o sinal da modernidade verificada nos meios de comunicação.
Para além do aparato técnico e do entretenimento, o rádio foi usado como arma da
guerra ideológica. Conforme autorizada preleção sobre o tema, destaca-se o fato de que:
a cisão ocorrida entre os partidos de esquerda repercutiu também no Rádio, onde os programas transmitidos pelos partidos, procuravam organizar a massa contra o programa “concorrente”, realizando eventos com a instalação de alto-falantes em locais públicos, onde fosse possível ouvir e discutir as notícias veiculadas. (NETO, 2003, p. 36)
O que se depreende da afirmação acima é que um dos meios de embate dos partidos
políticos era o uso do rádio. Através do espaço conseguido nesse veículo, os adversários
podiam atacar-se mutuamente e ao mesmo tempo apresentar sua ideologia a um grande
número de pessoas. Quando o partido nazista toma o controle da cena política, o rádio ganha
79
uma outra característica que se liga diretamente ao fato de que o fascismo implantado tenha
sido o legítimo concentrador das energias nacionais e saída aos problemas da nação. Itália e
Alemanha viveram a comunicação do rádio como ardil da unidade nacional.
O culto ao líder constatado naqueles países, pôde ser levado a bom termo com o
auxílio do rádio. A fala do líder veiculada por um modo mais dinâmico e penetrante atingiu a
faceta de “último veredicto” sobre as principais questões que envolviam os ouvintes atentos.
O que a população tinha acesso via rádio era um verdadeiro argumento de autoridade. Não se
deve esquecer que o supremo chefe nesses Estados era reverenciado como sendo detentor de
uma infalibilidade. Era ele quem detinha as respostas crucias para a nação. E o veículo por
excelência dessas informações era o rádio, pelo menos até o advento da arte cinematográfica.
Meio de comunicação social, aparato técnico fruto da Revolução Industrial, arena de
debate ideológico, ou canal de diálogo pessoalizado, o rádio foi uma ferramenta que serviu de
maneira bastante eficaz para operacionalizar a estrutura de domínio na Alemanha e na Itália,
até porque o poderoso bombardeio de informação ouvida era uma forma a que o sistema
recorreu para mostrar quais os valores erigidos pelos líderes como os mais adequados.
O controle exercido sobre a programação era sutilmente percebido na influência
desses valores. Lógico que o rádio como produto cultural de um tempo também reflete os
anseios sociais de um determinado espaço geográfico. Só que no regime fascista o rádio
espelhava de forma bem nítida o pensamento do chefe, suas decisões para a nação e aquilo
que deveria ser evitado como símbolo da ignomínia a ser combatida por cada popular. Nesses
anos anteriores ao cinema não havia uma inovação tão útil a esses interesses, como o rádio.
Como que anunciando aquele contato que veio posteriormente entre as multidões e o
seu supremo governante, a radiofonia foi apenas um ensaio do espetáculo maior alcançado
com o cinema e as paradas militares. Porém foi o rádio que inaugurou a tomada de um espaço
diário de atenção do povo alemão e italiano. Nesse aspecto é que se deve reconhecer o
pioneirismo do rádio como forma de atingir a audiência do grande público daqueles países.
No núcleo do vanguardismo do Estado fascista na forma de atuar junto a sua platéia,
está o uso do rádio por todos esses argumentos já apresentados. Foi uma forma adicional e
moderna de apresentar ao povo uma forma de comunicar-se que seduzia e parecia distinguir o
futuro desejado para a nação. Um tempo arrojado, marcadamente novo em que todos podiam
80
contar com a palavra acertada de um governo que tudo fazia para o bem-estar e a expansão do
domínio da nação sob seu comando. Havia assim a recriação de símbolos.
Esses sinais simbólicos têm contornos muito bem definidos através da realização de
paradas militares e festas das quais participavam multidões. A política entendida como uma
espécie de tática atrativa de multidões, ou seja, uma política que funciona por uma
engrenagem complexa que não se resolve apenas pelas formas tradicionais, mas ao contrário,
uma atividade que envolve os pólos da relação, transferindo influências de um ao outro,
tornou-se bastante potencializada com esse uso do corpo uno da multidão agrupada na praça.
Uma tese a respeito do tema mostra a importância desse fator aglutinativo:
(…) persistindo é que as escolhas por uma forma estética que enalteça ideais nacionalistas, que motive para o pertencimento à nação e atice o ódio ao forasteiro passam a ter o poder de legitimar os anseios políticos do III Reich e, para além dele, dos regimes totalitários em geral. Dessa forma, suas imagens fílmicas tornam-se imagens fantásticas, daquelas produzidas para não mais serem esquecidas.(RIGOTTI, 2006, p. 18)
Essa estudiosa do tema já fala neste trecho de uma das implicações do uso
performático das multidões enfileiradas. Ao discorrer sobre um filme de uma famosa cineasta
do regime hitleriano, a autora constata que aquela disposição foi muito vantajosa: a das
pessoas colocadas em uma formação que falava a quem a visse de um aparato gigantesco que
quer se eternizar por imagens fantásticas. E fazendo isso, conseguiu-se chamar o povo ao
clamor da Pátria, bem como à xenofobia. Dois estágios atingidos num mesmo ato.
Disposta assim, a política do espetáculo chega à condição de um ambiente estatal que
busca algo mais sofisticado que a mera adesão a uma causa. O elemento estético da política
foi trabalhado no fascismo. A idéia de uma sociedade de senhores que fossem superiores,
porque escolhidos pela deusa clio para essa missão, foi arquitetada de modo a causar
impressão aos sentidos de quem quer que tomasse contato com o que tenha sido a Alemanha
ou a Itália da primeira metade do século XX. A estética no político convidou o espectador a
continuar absorto, quase que hipnotizado pela grandiosidade do espetáculo construído.
Seria de se perguntar então: se a multidão fora atraída dessa maneira pelo regime
será que o fascismo não passou de uma anomalia do comportamento humano, fruto de uma
psicologia doentia que a História apenas revelou? A despeito de ser aparentemente tentadora a
81
afirmativa, o fascismo não pode ser visto partindo-se da premissa de que a política do
espetáculo só foi possível porque o arregimentar das multidões não passou de uma fórmula
encontrada pelos políticos para basear-se em variáveis psicológicas do homem e, com isso
produzir o consenso de todos em torno daquele intento. Este é um caminho anticientífico.
Admitir que houve o apelo emocional na atividade partidária dos grupos políticos
dentro da Alemanha e da Itália não significa dizer que o fascismo foi apenas uma política
ancorada nos traços da psicologia das massas. A disposição do público em multidão era
apenas uma das formas comunicacionais estabelecidas pelo regime fascista.
Cada detalhe daqueles mega-encontros comunicava a vontade de pertencimento que
deveria envolver seus espectadores. O senso de extrema organização, a harmonia dos passos,
as cores fortes das bandeiras, enfim uma atmosfera efusiva onde a ousadia e a energia dos
jovens produziu uma forte rede de solicitações como que convidando cada um dos alemães e
dos italianos a fazerem parte daquele espetáculo. Aqui uma marca importante é a fala do líder.
As fotos das aparições dos chefes supremos nessas grandes reuniões realizadas em
público são bastante sugestivas da maneira como se deu importância à palavra do chefe
político. O lugar central para onde convergiam os olhares era o púlpito onde ficava Hitler ou
mesmo o Duce. Esse local foi estrategicamente montado de forma a que todos se voltassem
para lá e vissem aquilo que o chefe tinha a dizer. Estando um patamar acima, postado naquela
plataforma o chefe saudava a multidão e com ela se comunicava diretamente.
Além disso, o aparato circundante dava a idéia de uma ordem perfeita fruto de uma
liderança irrefutável. O símbolo abstrato de uma perfeição a ser cultuada ficava bem presente,
mais próximo diante daquele contato em que líder e massas se encontravam e se saudavam. O
ser de cada um complementava-se com esse sentido de pertencer a uma ambição original: a da
grande história destinada aos alemães. Nas palavras da estudiosa já citada, ressalta-se que:
Se assim o for, então aqueles rostos são a imagem da auto-estima engrandecida pelo pertencimento; pertencimento este engrandecido pela força de vontade daqueles homens; vontade esta engrandecida pela auto-estima da massa; e, assim, sucessivamente, num ciclo nacionalista baseado no pertencimento de uns e no aniquilamento de todo o resto - já daquelas massas só participam os puros, os escolhidos, as tropas nazistas de SAs e SSs. (RIGOTTI, 2006, p. 30)
82
O texto da autora citado acima observa a comunicação da idéia de superiores baseada
na participação das tropas SS e SA. O ciclo nacionalista constatado em sua fala, diz respeito à
parte do trabalho político do regime fascista. A política, vista tal qual uma conquista das
massas, passa pelo esquadrinhamento da vontade dos homens e da sedução desses anseios em
favor do pertencimento, em favor da melhoria da auto-estima. Mas isso não era um fim em si
mesmo. O tratamento dado a essa matéria era possibilitado por outro dos instrumentos da
política do espetacular. Esse outro método da política era o uso ordenado da arquitetura.
A preocupação de organizar os espaços dando-lhes uma funcionalidade foi recorrente
no Estado fascista. Em geral, os edifícios e prédios eram idealizados no estilo neoclássico,
sendo as edificações construídas, um tipo de alusão visual às antigas ruínas da Roma e Grécia
dos primeiros séculos. Não era necessariamente o gosto pessoal de Hitler ou Mussolini que
ditavam essa estilística no modo de dispor do espaço público. Há outras nuances destacáveis.
O regime fascista perseguiu a obsessão de criar uma atmosfera heróica. Inicialmente,
a figura do herói era encontrada nos populares dispostos a entregar seu sangue pela causa da
guerra. A seguir, o herói é visto na figura do articulador político capaz de dobrar as
fragilidades do conservadorismo das franjas da direita, que não mais davam conta de tecer
decisões garantidoras da governabilidade e da estabilidade econômica no cenário da crise
européia. E finalmente o herói era apresentado numa ótica retrospectiva pela arquitetura.
As passarelas ornamentadas com colunas à moda que lembrava os tempos gloriosos
da história do império antigo eram a moldura de um espaço público programado para conferir
um tom heróico a quem participasse daqueles grandes eventos ao ar livre. O conceito de uma
“super nação” que esteve presente nos grandes impérios os quais não se contentavam em
dominar pela força mas também pela opulência que ostentaram, também esteve presente no
regime nazi-fascista. A arquitetura dos grandes espaços abertos, por outro lado, guarda
diálogo com uma especificidade do regime fascista que se relaciona à política do espetáculo.
A arquitetura do Estado fascista foi elaborada para projetar espaços que
comunicavam o heróico, o magnífico e também que dessem aos líderes locais apropriados
para suas apresentações frente às multidões. Os mega-discursos políticos, normalmente eram
seguidos por desfiles das tropas cadenciadas em marcha, e o contingente de pessoas reunidas
era bastante expressivo. Daí que a arquitetura organizou o espaço e chegou a moldar lugares
especialmente preparados para atender a essa demanda do regime: grandes espaços para
83
encontros espetaculares. O ambiente do espetáculo foi em boa medida bastante palpável
nestes instantes. Por essas razões se constata o desafio de Albert Speer, o principal arquiteto
de Hitler, em dar conta de responder as expectativas destinadas à arquitetura da época.
A arquitetura teve impactos mais diretos, sentidos no meio urbano. Mas o regime
fascista também precisava dos camponeses, afinal eram eles componentes nacionais. A
atividade integradora também os alcançou por meio da propaganda. A receptividade do
programa político atingiu o campo e as pequenas cidades por uma estratégia interessante.
Foram usados agentes que atuavam diretamente difundindo as idéias do regime em meio à
população desses locais. Essas pessoas eram chamadas pelo nome sugestivo de
propagandistas. E sua função era atingir os populares falando-lhes do projeto fascista. Uma
verdadeira propaganda “corpo a corpo”. Como se percebe na concepção sobre Hitler:
Hitler considerava que a propaganda sempre deveria ser popular, dirigida às massas, desenvolvida de modo a levar em conta um nível de compreensão dos mais baixos (…) a propaganda deveria restringir-se a pouquíssimos pontos, repetidos incessantemente (…). O essencial da propaganda era atingir o coração das grandes massas, compreender seu mundo maniqueísta, representar seus sentimentos (LENHARO, 2001, p 39-41).
Nesse trecho, Alcir Lenharo demonstra que o conteúdo da mensagem das
propagandas deveria ser acessível a todos, e, além disso, deveria trabalhar a repetição de
idéias. A conquista do fascismo, então, foi perceber a propaganda de massas como ferramenta
imprescindível para ampliar os planos do regime no sentido de ser entendido e assimilado por
pessoas detentoras dos níveis mais variados de instrução acadêmico-científica e cultural.
Se o regime propalava a existência de um corpo social homogêneo, ele também pôde
apreender, nessa aparente coesão, especificidades que não podiam ser ignoradas na tarefa de
conseguir o encantamento de todos os potenciais defensores do sistema, estivessem eles
habitando o campo ou as médias e grandes cidades. Pode-se mesmo constatar que o
cosmopolitismo do Estado fascista percorre esses detalhes perceptíveis na operacionalização
da política especial do regime fascista. Foi um regime que passou por ambos os lados, o
urbano e o rural. Só com essa atuação interna se conseguiria impregnar ambições externas.
A música foi outro fator de cimentação do regime fascista. Mesmo que houvesse um
ou outro compositor ou poeta que se colocasse contra o regime, isso não impediu as
84
lideranças italiana e alemã de fazerem uso de mais essa ferramenta para fins políticos. Assim
sendo, quando se arrolam as manifestações apropriadas pelo regime, a música aparece com
um aspecto importante nesse catálogo. Sabe-se que a linguagem musical foi muito cultivada
pela população européia, muito grandes compositores e nomes famosos da expressão musical
em nível internacional saíram do solo europeu. O gosto pelo clássico também era cultivado.
Não só na arquitetura esse tom de clássico era destacado. O regime fascista serviu-se
de muito do que a música podia oferecer tanto em termos de letras como em termos de
melodia. É certo que alguns temas foram preferidos pelo regime. Nomeadamente, as letras
que passeavam pela exaltação da pátria, por exemplo. Ainda, em relação a esse uso da música,
deve-se acentuar que o ardor patriótico da juventude foi incentivado pela composição de hinos
a serem entoados quando dos desfiles e paradas militares realizados pelos soldados das SSs.
A música - pelo que se pode notar - não ficou excluída do prisma artístico fomentado
pelo regime fascista. Na Itália, o envolvimento desses produtores culturais que são os artistas,
poetas, literatos, foi patenteado com o aval dos futuristas liderados por Marinetti. A relação
estreita da arte futurista com o regime fascista não pode ser desconsiderada. A precisão do
comentário seguinte sobre o tema, é útil para que se observe, segundo João Bernardo, que:
Já na proclamação fundadora do futurismo Marinetti confundira sob as mesmas apóstrofes exaltadas a excitação das multidões, percorridas pelo prazer ou na fúria da revolução, e a violência da luz elétrica nas noites cosmopolitas, o faiscar dos motores, a estridência das máquinas. (…) se o futurismo teve como razão de ser a descoberta artística de uma idade industrial, não espanta que as máquinas militares se encarregassem directamente de escrever o louvor e a celebração da morte. (BERNARDO, 1998, p. 402)
Eis o que o autor consegue vislumbrar na proximidade do futurismo com o Estado
fascista: a admiração pelas multidões, bem como a modernidade em confronto cotidiano com
o perigo da morte. A idade industrial, que foi enaltecida pelos futuristas, era uma idade ao
mesmo tempo encantadora pelo efeito das luzes das grandes cidades, e ainda pela exponencial
capacidade de pôr o ser humano em rota de colisão direta com a morte, o festival exaltado.
A sedução da morte torna-se, dessa forma, um dos temas corriqueiros dos futuristas.
O aparente estranhamento que pode se ter com uma temática dessa natureza era driblado na
visão dos futuristas porque para eles a morte não precisava ser o desfecho inalterável do
85
homem. Mas, essa experiência muitas vezes evitada por todos, de todas as maneiras foi usada
pelos apologistas do Duce. Nada mais cômodo para um regime que tinha na guerra a saída
para o intento expansionista. A guerra como ocasião em que a morte é uma presença
constante a rondar os combatentes das linhas de frente e até os mais distantes destas.
A invenção do automóvel, um dos resultados da idade industrial, bastante exaltado
pelos futuristas foi uma oportunidade de eles virem no perigo da velocidade um misto de
encantamento com o perigo e admiração pelo desconhecido. Aquela máquina admirável, que
ganhava lugares em pouco espaço de tempo, trazia ao homem a possibilidade da aventura e,
com ela a ocasião de andar a poucos centímetros de distância da morte, a experiência fatal.
Todo esse culto não era em nada fortuito. Como se assinalou, a morte foi exaltada
como um valor importante do regime. Os fascistas viam nela a justificativa para a glorificação
do heroísmo daqueles que puderam dispor até mesmo da própria vida em nome da mitificação
de um regime digno de toda essa doação. Operação política admirável de sedução das massas!
Enfim, essa metodologia completa vista internamente nos meios pelos quais foi
viabilizada a política de massas, desenha para o pesquisador um caminho multilateral que vai
desde os momentos iniciais de conquista da adesão do grande público, ainda na época de
soerguimento da crise, e desemboca num culto a morte, entendida como exaltação a coragem
dos heróis da nação, já nos anos em que vigorou o segundo grande conflito mundial.
Conforme sublinha um estudo sobre o caráter cênico do poder, pode-se observar que:
O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. (BALANDIER, 1982, p.7)
Nesta parte de seu texto, o autor apreende algo fundamental para compreender o
fascismo. Segundo ele, nem a razão - como na perspectiva iluminista - nem paixão irracional
conseguiriam dar conta de sustentar o poder, já que o esteio principal seria a manipulação
simbólica operada pelos regimes políticos. A matriz dessa operação acaba sendo um tipo de
86
cerimonial em que a política rouba a cena para conquistar o maior número de adeptos
possível. E, de fato, o caráter cênico do poder se constata. No regime fascista com mais força.
Não que a política do regime fascista - a que se denominou nesta pesquisa de política
do espetáculo - fosse um ficcionismo puro. Ao se falar em caráter cênico do poder o objetivo
é mostrar que a enunciação do Estado fascista, que teve as massas como alvo, não desligou
seu olhar para a formatação de uma rede de elementos que comunicavam a obediência.
Quanto à política do espetáculo, pode-se mesmo dizer que ela decorreu dessa percepção: a
violência física alberga a face do poder balizada na esfera do medo. Mas a política de massas
do fascismo transcende em muito essa ação do poder pela violência.
Ao se observar os métodos dessa política se nota que ela seduzia tanto como um
teatro. A idéia de fazer ao espectador ter vontade de apreciar a apresentação e de ver-se
refletido na mesma. Essa identificação não teria sido possível sem que se lançasse mão da
música, dos festivais e paradas militares, dos grandes desfiles, entre as demais formas aqui
analisadas. Esse metamorfoseamento do político diferencia a lógica fascista das demais
políticas estatais baseadas em um autoritarismo puro. Alicerçados só no simples morticínio.
Optou-se aqui por analisar a arte do cinema em um capítulo separado, pela riqueza de
elementos que também oferece à compreensão do aperfeiçoamento dessa política. A política
do fascismo em relação ao cinema apresentou uma sistematicidade que pode ser observada na
Itália e na Alemanha no sentido de realizar aqueles efeitos de um público identificado com um
regime. E, além disso, conseguir um grupo dócil de pessoas, capazes de dizer ao restante do
continente e até do mundo - através de suas reações - que a nova ordem já estava em plena
implantação e era ela - a ordem fascista - que devia ser seguida para o benefício de todos.
Novamente é necessário afirmar que existiu sempre uma correlação entre a
magnitude de imagens e discursos a serem criados, e a política do Estado em relação às
demais questões que se precisou responder de modo a dar corpo àquela política. Os resultados
econômicos, o crescimento do emprego, a organização para uma economia de guerra eram
alguns dos fatores que oxigenaram essa política do espetáculo e contribuíram à sua eficácia.
Se de um lado a multidão em forma para saudar seu líder nas praças era uma pista da
citada eficiência; de outro, a consecução de finalidades ordenadoras como soerguimento
econômico, ainda que inicial a guerra, indicavam a dignidade para a política do Estado
fascista. Ao se passar à última parte do presente trabalho monográfico que versará sobre a
87
utilização do cinema, tais elementos continuaram plausíveis. Mais a eleição de alguns temas
encontrou maior guarida, conforme se esteja falando do cinema italiano ou alemão. Este é
outro aspecto que convida a uma análise mais detida da importância desta ferramenta.
Tentará ser feita uma análise que possa não se distanciar da que foi projetada no
presente capítulo. Entende-se que a política do fascismo com relação ao cinema está nesse
intervalo da política cujos métodos foram aqui analisados. Entretanto, o desenvolvimento com
mais vagar de uma discussão sobre o tema dará conta de fornecer a justificativa para a
separação de um capítulo específico destinado a discutir a arte das grandes telas, bem como
de alguns tópicos que decorrerão desta estratégia de narrativa. Espera-se com isso que o
encerramento - nunca definitivo - desta pesquisa sobre o estado fascista, possa oferecer mais
caminhos para posteriores pesquisas, considerando as indicações aqui propostas.
4. Cinema no regime fascista: a sétima arte e seu impacto sobre o público
Por muito tempo, o conceito de fonte histórica se restringiu ao dado escrito. Por esse
motivo, a ciência histórica perdurou vários anos, condicionada a investigar manuscritos
antigos, julgando ter neles e em outras fontes escritas a resposta para suas indagações. Ocorre
que os estudos históricos paulatinamente tomaram contato com formas de explicação
transdisciplinares, isso já fazia parte de mudanças mais profundas.
Além de tangenciar outras formas que a ciência de um modo geral encontrava para
responder determinados temas, a demanda da História especificamente vai se ampliando
diante da permanência de questões que restavam sempre em aberto com o uso das fontes até
então utilizadas e dos métodos de cruzamento dessas fontes. Precisou-se avançar mais e mais.
A atuação da Escola dos Annales foi fundamental para a conversão que abrira mais
tarde a porta para a manipulação de diversos tipos de materiais que são hoje passíveis de dar à
explicação histórica um corpo teórico que jamais esta poderia ter se continuasse presa
exclusivamente às fontes escritas. Nesse processo de abertura do conceito de fontes é que se
insere a possibilidade de utilizar a filmografia de uma determinada época a fim de analisar seu
88
contexto histórico. Atualmente até os silêncios de um determinado nicho, como a tradição oral
- para ficar apenas em um exemplo - podem funcionar como fonte para a historiografia.
Um historiador que trabalha essa fonte em seus estudos anuncia algo quanto ao
fascismo que demonstra a importância em se ter o cinema como fonte para o estudo. Diz ele:
Os soviéticos e os nazistas foram os primeiros a encarar o cinema em toda sua amplitude, analisando sua função, atribuindo-lhe um estatuto privilegiado no mundo do saber, da propaganda, da cultura. (...) O cinema não foi apenas um instrumento de propaganda para os nazistas. Ele também foi, por vezes, um meio de informação, dotando os nazistas de uma cultura paralela. (...) Os nazistas foram os únicos dirigentes do século XX cujo imaginário mergulhava, essencialmente, no mundo da imagem. (FERRO, 1992, p. 72-73)
Segundo esclarece o pesquisador, o Estado fascista foi pioneiro em promover um
mergulho no mundo da imagem e, nesse passo, o fascismo conseguiu imprimir uma
logicidade e coerência ao uso do cinema como arma de propaganda política. Mas ainda
sobressai para o autor, o sentido informacional que o cinema possui e que não deve ser
ignorado. De fato, aqui já se tem um primeiro argumento favorável ao cinema como fonte.
Deve-se lembrar que o cinema é também um produto cultural de uma determinada
época. Por representar interesse de determinados grupos sociais e empresariais, esses negócios
e as políticas tomadas em relação ao cinema dão conta de um conjunto rico de vestígios pra
compreender como se relaciona o governo de um país com essa indústria. Ao observar os
impactos que uma determinada temática tem sobre o público, bem como o tratamento político
que apresentou cosmovisões mais do que qualquer outra coisa, através das telas do cinema se
pode traçar o painel da cultura, da economia e da sociedade embebida pelos valores fascistas.
A observar que no século XX, o cinema ainda ganhava espaço e público batendo
constantes recordes de platéia, tem-se outro aspecto de importância para o estudo do fascismo
por via do cinema. É que a própria incipiência da arte das telas, trouxe consigo o ideal do
novo, do desconhecido. Esse fetiche acabou criando um lócus específico de atração das
massas em relação àquela manifestação artística, que tomou, assim, o estatuto de espaço de
sociabilidade, um local onde italianos e alemães encontravam-se consigo e com os demais.
89
Já que o cinema tomou essa característica especial nesses países, a percepção da
política do Estado fascista foi que ali poderia ser ensaiada uma política que aliava
entretenimento e doutrinação política. Justamente por essa técnica, que o cinema no fascismo
pôde tomar basicamente duas vertentes diferentes em dados momentos. Ora, se tinham os
filmes de puro divertimento do público, ora aqueles em que o próprio título da peça
cinematográfica já indicava uma tentativa de incursão nos terrenos da política do Estado.
Obviamente, tal separação não deve ser levada às últimas conseqüências a ponto de
não poderem ser identificados momentos em que o filme destina-se a chamar atenção para
este ou aquele tema político-ideológico, e outros em que o mesmo filme puramente fazia o
público rir ou se emocionar. Fica-se assim diante de uma linha bastante tênue em que não se
sabe claramente onde começa o entretenimento e onde fica exatamente a doutrinação política.
Essa capacidade de evocar temas da propaganda fascista e não abandonar a atração
que necessitava ter o cinema em relação ao público que busca também a diversão, foi muito
bem viabilizada devido a outra especificidade do cinema. É que é o cinema que consegue
chegar a uma poderosa técnica que subverte a relação entre tempo e espaço. Os cortes e
edições de cinema constroem um universo completamente novo para o que o público estava
acostumado a ver. A grande arte conseguia capturar, do primeiro ao último minuto, as vistas
atentas dos que assistiam. Não se depreende, entretanto, daí que havia uma harmonia
completa entre o filme e seu público consumidor. Por esse fator, antes de adentrar mais
profundamente esses meandros do cinema na Itália e Alemanha durante o fascismo, deve-se
considerar a complexidade do objeto e atentar para algumas considerações teórico-
metodológicas.
Com efeito, adota-se aqui muito das premissas que Marc Ferro tem para orientar sua
análise do material audiovisual como fonte dos trabalhos históricos. Ao longo dos próximos
comentários, isto ficará mais esclarecido. Cabe também destacar que entre os franceses há
Pierre Sorlin. Sua contribuição caminha no sentido de reconhecer também o cinema como
fonte de História. Porém esse autor adentra outro terreno da teoria científica que está mais
ligado à semiótica e a semiologia, que enxergam no filme mais que uma produção da sétima
arte, um discurso cuja lógica pode ser desvendada num trabalho árduo. Esta tarefa,
promulgada numa visão semiologista, quer tratar os diversos signos que fazem parte do filme:
as falas do ator, as trilhas sonoras, as imagens e até os textos eventuais utilizados na película.
90
Segundo essas premissas, deve-se estar atento para o fato de que o cinema é só mais
uma das possíveis tentativas de recuperar alguns dos aspectos de uma determinada sociedade.
E, diante disto, Sorlin12 não consegue ver um único método para trabalhar com o cinema na
sua relação com a História, o que não impede os historiadores de buscarem essa aproximação.
Esta pesquisa não trilhará este trajeto. Mas o presente estudo não se furta a se valer
dos contributos de Marc Ferro. Este historiador francês e realizador de cinema, não é
identificado claramente com a História das mentalidades, mas trabalha com uma visão nova
por admitir, assim como Le Goff, uma ampliação da noção de documento histórico, já que
Ferro trabalha com o material fílmico como documento. Segundo o historiador Le Goff:
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (...). É preciso começar por demonstrar, demolir esta mensagem (a do monumento), desestruturar essa construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos. (Le Goff, 1984, p. 102-103)
Conforme admite o citado historiador, o documento comunica-se com o futuro e ao
cientista da História, cabe verificar como essa comunicação se estabelece e, em que contexto.
Assim torna-se viável desmontar as supostas verdades ditas pelo documento e admitir que, em
última palavra não há uma verdade definitiva no documento, que não deve ser visto
passivamente. Daí o alargamento da noção de documento e o porquê do cinema ter um valor
documental nada desprezível pelo trabalho dos que se aventuram pela História humana.
Por outro lado, uma vez admitido o material cinematográfico uma fonte para a
História, como encará-lo? Seria a imagem concebida pelo cinema uma reflexão fiel do
contexto em que foi produzida ou apenas uma representação deste mesmo contexto? Esta
questão tem ocupado muitos historiadores. Para iniciar uma resposta segue-se uma orientação
que parece bastante pertinente, já que o desafio é saber de que forma tratar o material fílmico:
Os vários tipos de registro fílmico - ficção, documentário, cinejornal e atualidades, vistos como meio de representação da história, refletem contudo de forma particular sobre esses temas. Isto significa que o filme pode tornar-se um documento para a pesquisa histórica, na medida em que articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica. (KORNIS, 1992, p. 3)
12 SORLIN, Pierre. Sociologie du cinema. Paris: Éditions Aubier Montaigne, 1977.
91
Kornis está bastante atenta ao fato de que existem vários produtos que pertencem ao
universo da produção das telas. Além disso, observa que essa diversidade reflete mesmo uma
determinada cena de um tempo específico que intervém na expressão do cinema. Esta
observação apenas, ainda não satisfaz a indagação sobre a natureza do produto do cinema.
Precisa-se avançar mais. E nesse passo, destacar que o cinema a despeito da maior
versatilidade na reprodução das imagens - se comparado com o caráter estático da fotografia -
não pode ser considerado como reflexo e, o que é menos científico ainda, um reflexo mais
aperfeiçoado que a fotografia. Ambos os recursos trabalham com a imagem; porém são fontes
diferentes para um trabalho historiográfico, fontes que podem se complementar, mas nunca
disputar posição em classificações valorativas muito mais subjetivas que qualquer outra coisa.
A potencialidade do cinema também está no fato de que ele é uma peça cujo
conteúdo excede a si próprio. De fato, deve-se reconhecer que aquilo que é projetado nas telas
não se resume apenas a uma organizada parafernália eletrônica destinada a funcionar como
mais uma das versões da tecnologia contemporânea. Seja qual for o estilo adotado ou a
temática evidente, o filme projeta um conteúdo ideológico e os filmes produzidos na Itália e
na Alemanha fascistas atestam isso. Só atentando a esse aspecto pode-se ir mais longe.
Assim como os textos escritos possuem silêncios, pode-se encarar a linguagem do
cinema como um texto visual que possui suas ambigüidades, suas sinuosidades, enfim uma
zona que muito bem pode ser identificada como algo invisível, ou visível nas entrelinhas do
texto visual. É percorrendo estes silêncios do “não-visível”, que pode o historiador dar um
passo adiante e notar que o filme nem reflete nem reproduz fielmente um contexto histórico.
Mas tais deformações é que devem instigar o estudioso no árduo trabalho de reconstrução de
um determinado tempo, junto com os valores presentes e as idéias compartilhadas no espaço.
Postas estas considerações iniciais sobre a relação entre História e cinema, bem como
feitos estes esclarecimentos introdutórios sobre a metodologia própria de um trabalho com
este tipo de fonte, é necessário adentrar aos meandros do cinema italiano e compreender,
alguns tópicos importantes nessa produção ao longo dos primeiros anos do século XX até os
anos finais da Segunda Grande Guerra. Para fins didáticos, espera-se delimitar três momentos
específicos que se tentará esclarecer ao longo da explanação sobre o referido tema.
92
Nos primeiros anos do século XX até a chegada de Mussolini ao poder e
posteriormente a deflagração do Segundo grande conflito mundial, observa-se um cinema de
feição mais amena em relação ao uso político do cinema como forma de legitimação de um
determinado quadro social e governativo. Em verdade, se observa uma evolução bastante
característica de uma indústria que ainda está dando os primeiros passos em termos
estruturais. O conteúdo das mensagens ainda está um tanto descolado de uma meta política.
Por outro lado, é nesta primeira fase que a produção cinematográfica italiana monta
as bases para um cinema de grande envergadura, tanto do ponto de vista material como sob o
formato conteudista. Alguns dados históricos dão conta da montagem do parque
cinematográfico da Itália, nos primeiros anos do século XX. É nessa época que são criados a
LUCE (L’Unione Cinematográfica Educativa), além da Federação Fascista das Indústrias do
Espetáculo 13 e da Cinecittà, que ocorreu dois anos antes da deflagração da Segunda Guerra.
Acredita-se que os primeiros anos do cinema italiano não foram propriamente o
momento de se valer do cinema como instrumento político, o que não pode servir como
credencial para afirmar que não houve então nenhum instante em que se pôde divisar a
infiltração da ideologia fascista nos produtos fílmicos. Só que ainda é tímida essa marca que
ficará mais clarificada na etapa seguinte do cinema. Por hora pode-se ver isso esparsamente.
E tal infiltração de idéias além de tímida quanto à qualidade de materiais que
falassem de valores do regime, é tímida no número de filmes que os exaltavam mais
diretamente. No caso, destacam-se os cinejornais e alguns cineastas pioneiros, sobre os quais
cabe fazer algumas considerações com a finalidade de dar maior identidade ao que se pode
extrair dessa fase de elaboração dos primeiros filmes que já anunciavam um caminhar para
uma fundamentação maior do cinema sobre bases mais marcadamente político-ideológicas.
Um professor da Universidade de Barcelona discorre sobre o tema afirmando que:
Apenas um personagem concreto, como o pitoresco diretor-roteirista-produtor Giovacchino Forzano, manteve, ao longo de sua obra cinematográfica, uma beligerante militância: de fato, a única película dedicada claramente a exaltar o fascismo, concretamente os vinte anos da "marcha sobre Roma", é a que Forzano produziu em 1933, por encargo do Instituto Luze, com o significativo título Camicia nera. (ESPAÑA, 2006, p. 3)
13 Apud GILI, J. L’Italie de Mussolini et son cinéma. Paris: Henri Veyrier, 1985. p. 103.
93
Este autor destaca a tênue existência de uma cinematografia atiladamente preparada
para exaltação direta do Estado fascista. Segundo informa, apesar dessa constatação, a
militância mais aberta em favor do regime se verifica por pouquíssimas vezes nesta primeira
fase. O mesmo autor destaca um outro filme de Alessandro Blasetti, chamado Vecchia
guarda.
Quanto ao filme de Forzano, chamava-se Camicia Nera (Camisas negras), seu
enredo destaca-se como claramente político porque em 1930, o filme tinha um enredo que
comemorava o aniversário da famosa marcha sobre Roma. Assim sendo, contava o contexto
daqueles anos da História italiana e acaba situando muito dos acontecimentos ocorridos então.
Camicia nera tratava de mostrar a visão italiana sobre a Itália depois da Primeira
Guerra e também a ascensão dos fascistas até a tomada do poder por Mussolini. Em síntese, o
filme mostrou uma Itália que tanto participara dos esforços de guerra e, posteriormente se
deparara com um Tratado de Versalhes e uma leva de soldados voltando humilhados para a
sua pátria. Nesse sentido torna-se factível, diante da crise instalada, um apoio a propostas de
um líder carismático que prometia tirar a Itália de uma situação de somenos importância no
quadro geopolítico europeu. Assim, a marcha sobre Roma acabou sendo retratada nesse filme.
O filme de Alessandro Blasseti cuidava de exaltar o squadrismo em contraposição ao
perigo do exército vermelho. Este filme, produzido em 1934, focalizava um momento anterior
à chegada do Duce ao poder. Porém, o que sobressai neste primeiro momento, mais do que o
enredo dos filmes é que - como foi apontado - o filme dessa época não tem um mote político
explícito. Os poucos filmes que tomam um viés mais político, a exemplo dos dois citados, não
alcançam recordes de públicos ou não provocam um envolvimento tão grande das pessoas em
relação às mensagens por eles veiculadas. Resta agora falar sobre os cinejornais.
Nesse primeiro momento, de organização da infra-estrutura e do conteúdo do cinema
italiano, merece realce o uso dos cinejornais. Basicamente foram programas de noticiários que
eram assistidos pelas famílias italianas. O formato dessas produções seguiu um modelo de
noticiário, mas não só isso. Naturalmente, deixar a população informada dos fatos
relacionados ao cotidiano da Itália, parecia ser o maior objetivo dessa outra forma de cinema.
Só que essa manifestação, ainda que também não tão abertamente, veiculava notícias
que tinham muita proximidade com os valores que presidiram mais tarde a produção do
94
cinema italiano. Por isso é que esses noticiários costumavam destacar temas como o esporte, o
vigor físico, o valor dos atletas. É sabido que o fascismo primou por atingir uma sociedade de
pessoas selecionadas, ou seja, uma sociedade em que houvesse valoração do corpo atlético, da
virilidade. Ora o esporte servia de via para enaltecer esses valores, e os noticiários veiculados
pelos cinejornais faziam questão de mostrar algo relacionado ao esporte, a saúde física.
Poder-se-ia argumentar que esses fatores não têm relação distintiva do fascismo em
relação às demais temáticas abordadas em outros locais onde o político invadiu as telas.
Entretanto, o que se quer realçar é que mesmo reconhecendo-se a presença dessa temática nas
telas de outras nacionalidades, no caso, da Itália fascista já estava se partindo para uma
segunda fase que exacerbaria a exploração de temáticas ligadas ao regime de forma mais
aberta do que nesta primeira fase. Não está incluído, dessa maneira, o fato de estar denotado
ainda que não explicitamente, a produção de um cinema com resquícios políticos.
Já durante a segunda guerra, o cinema italiano toma tons diferenciados,
comparativamente ao momento inicial. É que nesta segunda fase, os filmes exaltam sem
rodeios os valores que eram cultivados por aquele país em guerra, governado pelo ideário
fascista. Os filmes propõem-se a percorrer terrenos que dantes não figuravam na ambição da
maioria dos diretores e mesmo não alcançavam a repercussão que tomaram a partir do
agudizamento do belicismo no qual a Itália se envolvera mais fortemente com o
desenvolvimento do conflito mundial, o qual tomou esforços preponderantes daquele país.
Não que o belicismo nunca tivesse sido um valor que foi visitado anteriormente à
segunda Guerra Mundial. Só que a partir do desenrolar da guerra, os filmes italianos
gradativamente vão freqüentando as produções dos artistas, roteiristas, enfim os profissionais
que contribuíam direta ou indiretamente para que o cinema tivesse um respaldo bem
significativo na sociedade italiana daqueles anos da guerra. Daí a importância em tecer alguns
comentários a mais sobre esse instante da indústria de cinema presente na Itália fascista.
Diz-se indústria porque, apesar do incremento da sétima arte ter se dado com a
guerra, os primeiros requisitos infra-estruturais da cinematografia italiana já estavam
montados desde a primeira fase. Só que a partir desse segundo momento é que todo aquele
maquinário no Estado fascista vai ser usado para uma meta determinada.
Dado que este segundo momento foi justamente aquele em que se pode verificar a
influência do político no cinema com maior intensidade, cumpre ao analisar alguns
95
exemplares de produção desta fase, tentar ver cada produção em termos de seu diálogo com a
atuação política do regime, dentro daquele quadro de aproximação com as massas típico do
regime fascista. Um aproximar que não se conteve em apontar para si diretamente ou não.
Mesmo nesta segunda fase de inserção mais aberta dos temas políticos, os primeiros
filmes compuseram-se não de uma exaltação direta do próprio fascismo italiano, a via
encontrada para introduzir a alusão a Itália e seu regime político foi aludir primeiro ao regime
espanhol de Francisco Franco. Mas não se pode negar que a localização do regime fascista já
podia ser vista mesmo se o objetivo ventilado fora focalizar o apoio dado às tropas do general
espanhol pela Itália de Mussolini. Neste marco, destaca-se conforme o último autor citado:
Ao se iniciarem as hostilidades, aparece um cinema mais abertamente propagandístico, se bem que, às vezes, a preparação bélica é apresentada de forma bem oblíqua, sobretudo através da Guerra Civil Espanhola. O curioso é que as alusões ao conflito ibérico não se apoiavam na exaltação da ajuda fascista à Espanha - senão em um alarde de generosidade (ou melhor, em um intento da indústria italiana de abrir mercados em uma época em que estes se haviam reduzido drasticamente) - mas promovem diretamente as vitórias das armas franquistas. (ESPAÑA, 2006, p.3)
Aqui, conforme analisa este autor, o cinema passa a ser uma arma que transcende as
próprias fronteiras da nação. Ele afirma que não foi propriamente um cinema que teve como
proposta engrandecer o auxílio italiano a Francisco Franco, mas, alardear as vitórias
franquistas e, dentro, desse objetivo fazer aparecer as conexões entre Franco e Mussolini.
Nesse mesmo texto, Rafael España, cuida de informar que nesse viés, não era
incomum encontrar participações conjuntas de realizadores de cinema de nacionalidade
espanhola e italiana. Como representativo desta fase há “O cerco de Alcaçar” (L’assedio
del’Alcazar). Trata-se de uma co-produção preparada dentro dos moldes aqui destacados:
falar da realidade da luta ibérica e, por via oblíqua apontar para o regime do Estado italiano.
O que se pode ver aqui, antes de tudo, é que se o fascismo procurava instalar uma
ordem internacional, um produto cultural tão significativo (o cinema) foi engendrado também
nesta perspectiva: extrapolar dos limites fronteiriços. Por isso, uma das formas de trabalhar o
cinema na via política mais aberta foi aludir a regimes que não estavam em funcionamento na
própria Itália, que tinham suas especificidades, mas guardavam um inter relacionamento com
as diretrizes do Estado fascista governado por Benito Mussolini na Itália.
96
Como filme abertamente político, cita-se inicialmente, um datado de 1938, cujo
título é Luciano Serra, pilota. Trata-se de um produto de Goffredo Alessandrini e Vittorio
Mussolini. Como já sugere o próprio título da peça, o enredo trata de promover a glorificação
dos pilotos italianos por meio das arriscadas peripécias do aviador Luciano.
O encadeamento das cenas constrói a narrativa de um personagem que protagoniza
uma audácia capaz de vencer até os próprios instintos da proteção paterna. É que Luciano os
desobedece ao decidir-se por seguir a carreira de piloto. Ao adotar esta postura, o personagem
principal opta por participar de espetáculos onde eram apresentados shows que incluíam
acrobacias aéreas realizadas por aquele piloto, em uma temporada na América do sul.
A trama do filme mostra ainda que no fim, o aventureiro deixa aquela vida e passa a
ser combatente que luta na guerra da Etiópia e aí demonstra seu amor à pátria ao combater
contra o inimigo externo. Como gran finale, o filme mostra o filho do protagonista sendo
premiado pelo próprio pai, que o vê morto por ter combatido também contra os etíopes.
Vê-se que o filme além de tocar diretamente no ideal guerreiro que foi um valor
bastante exaltado na ambientação fascista, cruza com outras questões que de uma maneira ou
outra, foram muito caras aos defensores da ordem presente no Estado fascista. Não se pode
deixar de lembrar que ao descrever as aventuras do piloto, o filme chega a um resultado muito
bem arquitetado. É a apreensão deste resultado que parece mais significativo estudar.
É que, num primeiro momento, o destaque é para um complexo de formas em que o
tom audacioso é revelado pelas atitudes de um homem que não se importa em vencer
obstáculos e cuja própria vida é cercada de riscos vencidos pelo próprio personagem, o qual
por assim dizer, é o responsável pelas vitórias pessoais a que se propôs.
Já num segundo momento do Luciano Serra, pilota, o heroísmo solitário é
transferido para um heroísmo patriótico, quando as aventuras nas Américas dão lugar para o
sacrifício pelo país no combate da guerra contra a Etiópia. Aquele antigo aventureiro que
mesmo arriscando-se já era possuidor de inúmeras qualidades, agora se tornou um guerreiro
da nação italiana, este simples fato já granjearia méritos muito maiores a Luciano.
Por outro lado, ao narrar esse momento da guerra da qual Luciano participou, o filme
demonstra que ele foi habilidoso o bastante a ponto de ter sido de grande valor o seu auxílio
na guerra. O fato de o filho de o protagonista figurar também como combatente é sugestivo de
uma outra característica: a transmissão dos valores existentes na nação italiana.
97
Essa transmissão se manifestou na projeção desse filme devido ao fato de que a
eficácia da valorização de uma vida comprometida com a guerra foi uma marca compartilhada
por pai e filho. Ambos foram até as linhas de combate, sendo que o pai sobrevive e o filho não
tem a mesma sorte. O simbolismo da vitória é visto até mesmo na morte do filho que é
medalhado pelo próprio pai em homenagem a bravura de ter entregado a vida naquela guerra.
Por esses elementos do enredo se pode notar que o filme acaba criando na ficção um
simbolismo do que era considerado uma vida digna de ser retratada. Ao mesmo tempo, se
fazia uma referência àquilo que os italianos deveriam cultivar ou seguir enquanto valores
culturais: a guerra para expansão, o destemor carismático de um soldado, o compromisso com
uma noção de felicidade não restrita a individualidade, mas conquistada e usufruída
coletivamente. Daí despontava a própria idéia de um poder mantido pelo país inteiro.
Outro autor importante é Francesco Robertis. São dele os filmes Uomini sul fondo e
Marinai senza, nos quais o chefe do serviço cinematográfico da Marinha ovaciona os
combatentes daquela parcela das Forças Armadas italianas. Objetivo semelhante é buscado no
Squadrone bianco, (Esquadrão branco) de 1936. Aqui as honras são tributadas a soldados
italianos que combateram na Líbia, numa espécie de momento de preparação para a guerra
que estava a ponto de ser deflagrada. Augusto Genina, que foi responsável pela chegada do
filme às telas, não poupou esforços para deixar em foco aqueles soldados, agora numa ficção
bastante verossímil, de vez que baseada em fatos realmente ocorridos na História da Itália.
Cabe aqui destacar um outro dado analítico que pode ser depreendido da realização
destes filmes com tom político mais explícito. O que se observa é uma sistematicidade na
retratação de uma sociedade disciplinada para a guerra. Não foi fortuita a confecção de filmes
que tinham como protagonistas personagens que eram soldados, tanto atuando no ar como em
terra. Há a impregnação dessa idéia da guerra a partir de um cinema que era produzido por
iniciativas privadas com forte apoio logístico e financeiro governamental.
Deve-se lembrar que no caso do filme em que os marinheiros eram reverenciados, o
responsável pertencia à própria estrutura do governo. Sem falar no fato de que a estrutura da
LUCE fora muito bem utilizada como plataforma para realização de filmes. Esse
envolvimento estreito é mais um indício fortíssimo da penetração dos órgãos estatais na
formação das produções do cinema, obviamente com intentos políticos que iam além de uma
98
mera oferta de entretenimento. Foi a formação de uma opção cultural mais ampla que se
projetava: a aglutinação em torno da guerra e o expurgo dos que obstaculizassem essa meta.
Um estudioso do tema destaca que a linha dos filmes bélicos, não foi a única:
No entanto, como ocorreu na Alemanha nazista, os filmes de propaganda direta não agradaram ao público italiano, o que acabou levando o governo a evitar a produção de novas “epopéias fascistas”. Assim, buscou- se relacionar as conquistas fascistas do presente com os grandes feitos da Roma Antiga. Essa temática se encaixava perfeitamente com os desejos imperialistas de Mussolini que conseguiram arrastar o país a uma série de lutas sem grandes benefícios. (PEREIRA, 2003, p. 107)
O autor refere que à medida que a reação do público não se mostrava tão animadora
quanto o esperado, os realizadores de cinema vão explorando a temática do passado glorioso
da história do povo da Itália. Esse foi outro veio explorado pelos estúdios de produção
cinematográfica. Assim, se podia novamente fazer referência ao caráter essencialmente
expansionista do país que guiava seus objetivos políticos muito na direção do esforço bélico.
Além disso, o cinema italiano na época da guerra, ocupou-se de um característico
tom de ataque ao bolchevismo. Na Alemanha, onde houve uma aproximação que gerou o que
se discutiu como nacional-bolchevismo, não se verifica essa tônica. Todavia, nem mesmo
entre as autoridades italianas ela ganhou tanto prestígio, dada a contradição de se querer
atacar um regime que - da forma como retratada no cinema - muito lembrou aos chefes de
gabinetes políticos, o que ocorria dentro da própria organização governativa do fascismo.
Foi o caso, a título de exemplo, do Addio Kira (Adeus Kira), sob a responsabilidade
de Goffredo Alessandrini que também dirigiu Já Noi Vivi (Nós que vivemos), ambos do ano
de 1942. Outro importante nome, considerado pioneiro em matéria de filmes que arremetiam
contra o país bolchevique foi Edgard Neville. É de sua lavra o Santa Maria, ou La Muchacha
de Moscú, este ainda é exemplo da cooperação de cineastas espanhóis, os quais - como já foi
dito - ajudaram a levar o cinema de cunho político usado pelo Estado fascista.
O que se observa é que o cinema italiano, na época da guerra, atravessou uma fase de
produção intensamente voltada para as matérias que eram julgadas de interesse nacional para
a totalidade da nação italiana. A tentativa de alastrar uma ética guerreira entre pessoas comuns
foi uma porta aberta através daqueles filmes cujo conteúdo era impregnado por esse teor de
99
imagens heróicas. Imagens que eram feitas buscando causar impressão não só pela profusão
de sons e efeitos pictóricos, mas (e, principalmente) pela multiplicidade de remissões aos
temas constantemente revisitados naqueles anos em que a Itália esteve envolvida na guerra.
Chega-se com a proximidade do fim da guerra, a uma outra etapa. Esta é a fase da
República do Salò. Nela foram produzidos filmes numa época em que a lógica fascista
atravessava seus últimos estertores. Foi um tempo em que a realização de filmes toma outra
característica que a distingue da anterior, em que o próprio desenvolvimento do conflito era
também exibido nas salas de projeção. E, conforme visto, num trabalho que envolvia
diretamente pessoas pertencentes também à estrutura governamental da Itália fascista.
Durante a chamada República do Saló, Benitto Mussolini já havia sido deposto.
Após a deposição do Duce, foi instalado um governo controlado indiretamente por ele e que
contava com o apoio dos alemães. Não é difícil imaginar que pudesse criar-se uma situação
como essa. Aliás, foi plausível essa situação, considerando todo o poderio alcançado pelo
fascismo enquanto sistema político orgânico. A inversão desse cenário político influenciada
pela guerra, com o progressivo avanço das forças aliadas tornou bem mais difícil a prática
política encabeçada por Mussolini e o partido fascista que teve que buscar outro caminho.
Um governo títere que seguia à risca as ordens de um líder já deposto. Esse caminho
demonstrava a fragilidade política do regime que se podia perceber no cinema. De fato, não se
conseguia mais produzir filmes políticos no viés anterior, quando no auge da Segunda Guerra
se apresentava um exército ufanando-se da luta pela eliminação dos obstáculos ao
expansionismo italiano e a tentativa de conquista de outros países pelas armas.
O momento agora era outro. Na República de Saló, entre 1943 e 1945, assiste-se a
uma espécie de revival de temas e modas pouco atrativas agora que o regime se acha na
iminência da guerra que para a Itália mais uma vez não era favorável. Os poucos filmes que
foram rodados tiveram sua organização possível graças à organização de antigos defensores
do governo de Mussolini. Mesmo assim, sequer houve nesses filmes o apelo político que se
podia esperar dado que eram organizados por pessoas que viam com bons olhos o regime
liderado pelo líder deposto. Essa filmografia, entretanto, não mais atraiu o público.
A análise destes três momentos ajuda a compor a complexidade do cinema italiano e,
torna clara a riqueza de elementos que compuseram o uso político que o fascismo fez do
cinema naquele país. De fato, uma forma engenhosa de atingir um maior número de pessoas e
100
que não foi sempre linear. Ao contrário, houve evoluções, adaptações e por isso mesmo um
jogo mútuo entre aqueles que eram os profissionais do cinema e aqueles que eram apenas
apreciadores dos filmes produzidos. De qualquer forma, essa dimensão de importância que
atingiu o cinema foi tal que um autor que estuda a cultura na Itália, chega a afirmar:
A conclusão que parece a mais certa é que na Itália fascista, mais do que em nenhum outro país, com exceção da Alemanha nazista, os espectadores de cinema navegavam adormecidos em um falso sentimento de seguridade e de orgulho nacional, ao não se ver confrontados no cinema com nenhum dos problemas sociais do mundo real (TANNENBAUM, 1975, p. 323)
Para esse estudioso, o impacto exercido pelo cinema italiano foi tal que conseguiu
obter o resultado de seduzir a multidão por um método aparentemente simples: o de não tocar
nos temas sociais da vida real, mas apenas produzir uma miragem de segurança na qual se
viam mergulhados os italianos. Envolvidos por ela os espectadores - na visão do autor -
estariam como que adormecidos tal foi o nível de impregnação do imaginário que se atingiu.
Talvez se possa dizer que em determinados momentos mesmo o cinema atuou numa
postura de “arte pela arte”, que ainda assim não impediu que o público se visse projetado em
suas telas. Todavia, o que fica patente é mesmo uma sistemática manifestação com fins
claramente políticos. Isto ficou bastante evidente também no caso do cinema alemão.
Em relação a esse outro país cumpre destacar muitos elementos também a fim de que
se compreenda a utilização do cinema pelos nazistas para que seu regime atingisse a dimensão
que atingiu. Inicialmente, deve-se salientar que o interesse pelo potencial do cinema foi
percebido pelos nazistas já desde a primeira guerra, quando foi organizada a Ufa (Universum
Aktien Gesellshaft). Este foi o primeiro passo para a incrementação do cinema nazista.
Tratou-se de um empreendimento de alto aporte de capitais, que recebeu
financiamento direto de setores do alto comando militar alemão. Com o passar do tempo, o
controle das ações passa a um rico empresário das comunicações na Alemanha o qual tinha
como característica sua boa relação com os nacionalistas, dentre eles o próprio Hitler.
Após a tomada do poder pelos nazistas, Alfred Hugenberg, o referido magnata que
passara ao controle acionário da Ufa, trata de utilizar sua estrutura para produzir uma imagem
cada vez mais atrativa do Füher, o chefe cujos seguidores eram multiplicados em razão
101
geométrica com a ajuda deste poderoso veículo. Mais tarde, o próprio Hitler retribui dando a
pasta da economia a Hugenberg, sendo que a companhia Ufa passa a Joseph Goebbels.
Se na Itália a capilaridade atingida pelo cinema foi nada desprezível, na Alemanha a
construção de um referencial pictórico do regime político, através da utilização do cinema foi
bastante explícita, tendo havido um sistemático e cirúrgico cuidado por parte dos líderes
nazistas a fim de que estivesse esse instrumento na linha de frente em relação às demais
formas operacionalizadas pelo regime em seu afã de conquista propagandista de adeptos.
De acordo com um autor já citado, que estudou o cinema como arma política:
O cinema foi, indubitavelmente, o setor que recebeu maior atenção e investimentos do regime nazista. Desde o início de sua carreira política, Adolf Hitler já reconhecia o enorme potencial oferecido pelas imagens – em especial pelo cinema – na veiculação de ideologias e na conquista das massas. (PEREIRA, 2003, p. 110)
Como mostra Wagner Pereira no excerto acima citado, nos primeiros movimentos do
estrategista político que foi Hitler, o potencial a ser explorado no cinema era uma maneira
importante de fazer dessa arte uma força propulsora da efervescência das massas que eram o
alvo da política fascista. Esta perspicácia levou ao uso do cinema como fator de disseminação
da própria ideologia do nazismo, daí a liberdade para adentrar temas como o anti-semitismo e
a própria exaltação da magnitude dos grandes eventos realizados pelo regime.
Depois de chegados ao poder, os nazistas propuseram-se a investir, desde logo, nessa
idéia do judeu como inimigo nacional. Para isso os filmes projetados, ao atacarem os judeus,
o faziam de forma a mostrá-los como símbolos de tudo que pudesse ser identificado como
nocivo ao bom desenvolvimento da nação alemã. A idéia de anomalia presente entre os judeus
também posteriormente foi associada a eles, ainda que indiretamente, por meio do cinema.
Um emblemático filme dessa característica foi Der Ewige Jude (O judeu Eterno). Ao
falar da sorrateira penetração da presença judaica na Alemanha, Fritz Hippler, autor do filme,
apresenta uma visão em que o judeu é tido como verdadeiro ápice dos males que assolavam a
nação alemã. Ainda dando espaço a essa estigmatização, produziu-se um outro documentário
de nome O Führer doa uma cidade aos judeus. Aqui se tentou demonstrar que a vida do povo
102
judeu nos campos de concentração nazistas, longe de ser um calvário, não passava de uma
benevolência do regime, já que o judeu é tido como um parasita que só usufrui a vida ali.
Observa-se que mesmo com a perpetração de diversas técnicas de morte e a inflição
de sofrimentos que iam desde o emocional ao físico propriamente dito, produziu-se uma
cinematografia que tentava mostrar o judeu como inimigo parasita da vida dos alemães. Nesse
sentido, a maneira de que se valeu o regime foi também através do cinema modelar a visão do
povo alemão a respeito do povo judeu, incitando sentimentos de aversão aos modos de vida e
a própria existência física judaica, considerada desprezível.
Ao analisar isto, uma autora que escreve sobre os campos de concentração, diz:
Meu argumento pode ser reforçado quando levamos em conta o lugar do inimigo nos discursos oficiais, mesmo quando este já perdeu sua relevância numérica ou política. Embora exilado, deportado, preso ou mesmo morto, continua sendo apresentado como um mal ameaçador, um perigo iminente. (MAGALHÃES, 2001, p. 68)
É perceptível neste excerto transcrito literalmente da autora a percepção - bastante
plausível - segundo a qual a lógica subjacente à boa parte da produção cinematográfica alemã
foi pintar o inimigo como um perigo sempre latente. Dito de um outro modo se deve lembrar
que o fascismo operou através das telas uma sociabilidade bastante peculiar em que se via o
inimigo (judeu, eslavo, e minorias a exemplo dos deficientes físicos) como um alvo constante
a ser perseguido independentemente de sua concreta condição no espaço público nacional.
A sociabilidade peculiar do fascismo ganha realce justamente em função de que se
sabe que a criação de espaços de sociabilidade não se dá - em regra - pela identificação de um
grupo que vise eliminar os outros que coexistam com ele.Via de regra, a sociabilidade implica
coexistência e não eliminação. No caso específico do cinema alemão da época da guerra, a
sociabilidade advinda do freqüentar as salas do cinema e apreciar a arte não se construiu na
direção da coexistência, ou pelo menos se deu numa coexistência limitada em que o objetivo
de identificar o inimigo era o alvo primordial que permeava a produção fílmica.
Isso não se constata de uma maneira fortuita. E para caracterizar de maneira mais
contundente o que se está formulando aqui, recorre-se a um segundo argumento: o filme
projetado garantia a energia de identificação com o carisma do chefe supremo. De fato, o
103
chefe supremo necessita de pontos de apoio dos quais se possa valer para que seja criada uma
zona que serve de cenário para o diálogo entre líder e liderados. O cinema pode ser
identificado como essa arena viabilizada pelo combate ao inimigo.
Sem a presença do inimigo, ficaria bastante comprometida a eleição do tema que foi
veiculado nas telas: o tema privilegiado do expurgo pela violência física do sistema contra os
já citados males da nação. Desse modo transcreve-se novamente a autora citada:
Nesses casos, sabemos que a violência é sempre exercida contra um outro, outro desenhado, real ou imaginariamente, como inimigo. Outro que, mesmo tendo perdido sua importância (ou até desaparecido), continua a fornecer as energias afetivas ao regime. Outro que, quando denunciado, encontrado e aprisionado, serve de reforço ao entusiasmo nutrido pelo chefe carismático ou pela restauração da ordem, como é o caso das ditaduras militares latino-americanas. Outro que, inclusive, está presente nas origens dos movimentos que prefiguram a instauração de regimes totalitários ou autoritários. (MAGALHÃES, 2001, p. 67)
Analisando o fascismo sob o prisma utilizado por Marion, no trecho citado, torna-se
clara a percepção de que o referencial de imagens criado cinematograficamente, percorreu a
trajetória da crescente dinâmica de vilanização da figura dos judeus, eslavos e das minorias,
todos vistos como o ponto de apoio, nas palavras da autora um ponto de “reforço”.
Dizendo de um outro modo, a imagem do inimigo precisa ser explorada. Esta foi
uma das grandes percepções do regime fascista. A arte das telas evoluiu guiando-se pela
estratégia de apontar o inimigo, de explorar suas fraquezas e por fim mostrá-lo como ser
fulminado por uma implacável rede de defeitos. Nesta topografia é que o regime procura
adentrar a um terreno de relevo acidentado. As variações podem ser identificadas facilmente.
Elas estão presentes na atitude indistinta do regime para com o inimigo. Não importa
se ele é numericamente significativo ou se já se encontra em vigorosa desvantagem tanto em
termos de população como em termos mais amplos, da existência como um todo. Mesmo que
a capacidade mínima de resistência do inimigo esteja praticamente inviável ou resumida a
meros índices de reprodução, a filmografia continuava a sinalizar para o inimigo, afinal era
ele um ponto de retroalimentação da violência a ser perpetrada, da guerra a ser continuada.
Essa insistência em fazer predominar uma tendência no cinema alemão, isto é, a
opção em chamar o público para o aplauso aos ataques a personagens específicos traz a
104
primeira vista a possibilidade de esvaziamento dessa insistência. Ocorre que mesmo tendo
sido feita uma profusão de filmes apontando para o perigo do inimigo, o cinema alemão
fascista não estacionou neste posicionamento. Isso pode ser afirmado porque apesar da
estratégia ter sido predominante linear na direção já apontada, há alguns detalhes que matizam
essa linearidade. Com efeito, a utilização de documentários foi o primeiro deles.
Isso se diz devido ao fato de que a operação do cinema que predomina no ataque já
referido, se desdobra na apologia e na auto-referenciação do sistema. De fato, se o inimigo
precisa ser combatido, as razões para esse ataque se multiplicam e ultrapassam a mera
sinalização das mazelas de outrem. De forma reversa, ao demonstrar suas próprias grandezas
o regime fascista comunicava a importância e a eficácia da estratégia para qual o povo alemão
era conclamado também através dos documentários que compunham a filmografia fascista.
Desse modo, o documentário aparece como outro ponto privilegiado da produção
cinematográfica da Alemanha no fascismo. Deve-se deter a análise acerca desse aspecto do
cinema de forma a perceber outros caminhos percorridos quando se trata de analisar o
funcionamento dessa outra forma de consolidação do regime fascista.
Em se tratando de documentário, o exemplo mais acabado desse gênero
cinematográfico pode ser encontrado no nome de Leni Riefenstahl. Sua ligação sempre forte
com a arte e sua trajetória na esquematização do cinema nazista torna necessário um breve
passeio sobre a produção dessa mulher que fora artista, cineasta, bailarina e fotógrafa.
Inicialmente, destaca-se o fato de que o documentário como o estilo de produção que
celebrizou a já premiada cineasta, lançou-a no quadro dos nomes mais importantes do cinema
nazista com o filme Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade). Este filme - segundo versão
da própria criadora - fora encomendado pelo próprio Hitler que havia se agradado do filme A
Luz Azul. O filme-documentário O Triunfo da Vontade fora feito para imortalizar a
realização do 6º Congresso do Partido Nacional-Socialista em 5 de outubro de 1934.
O estilo documentário aparece como importante foco de exaltação do regime e é
muito bem trabalhado na obra de Leni Riefenstahl. Ao apresentar a peculiaridade de deixar
clara e diretamente caracterizada a glorificação de um regime de fortes e bem sucedidas
pessoas, o documentário nas mãos de Leni Riefenstahl, credenciou-se como importante
veículo de difusão da fama do regime nazista, sobretudo porque a cineasta era premiada em
105
festivais internacionais de cinema, tanto pela qualidade técnica das filmagens como pela
audácia em sempre lançar novas formas de filmar que freqüentaram seus documentários.
Ao perceber esse marco, uma estudiosa do tema comenta o documentário célebre:
Cem, duzentos mil homens aglutinados pela lente de uma câmera: Riefenstahl apresenta em seu filme imagens que – como o próprio nome da película sugere – deveriam traduzir o triunfo da vontade, a vitória do desejo... Do desejo de ser nação, unidade. De ser coletivo, de ser massa. (RIGOTTI, 2006, p. 4)
Agora através do documentário, a exaltação do regime aparece de maneira bastante
aberta, o que era, aliás, objetivo privilegiado do regime, sobretudo a partir do momento que a
guerra vai se desenrolando. O que a autora percebe é o incremento dessa sensação de
pertencimento, ou seja, do sentimento de constituir um componente importante da grande
nação alemã que aparecia nas lentes da documentarista Leni Riefenstahl.
Paralelamente, ainda fica clara a exploração dos sentimentos de glorificação que
deveriam ser insidiosamente explorados nas massas inundadas pelo sentimento de
grandiosidade que deveria atrair a multidão envolvida. A câmera, no documentário, deve fazer
um enfoque de tal modo a deixar bastante claro que quem está sendo filmado apresenta-se em
conexão direta com o supremo líder enquanto concentrador do poder e da atenção dos que
estão diretamente sob seu comando, fazendo com que toda a nação se sentisse reflexamente
sob o supervisionamento do líder, numa sistemática perfeita de identificação.
É importante destacar que o sucesso de Leni Riefenstahl foi alcançado não só pelo
talento individual e pela repercussão de seus documentários em nível internacional na época
em que foram lançados. Pode-se citar um outro exemplo a pretexto de afirmar o argumento
sustentador do entendimento desse êxito. É o caso do documentário Sieg des Glaubens: der
film vom reichsparteitag der NSDAP (Vitória da Fé: o filme do congresso do partido
nacional-socialista). Esta peça enfocou a reunião do 1º Congresso dos nazistas após terem
chegado ao poder na Alemanha, o que já demonstra a importância deste documentário.
Nesse trabalho inicial, a famosa cineasta já mostrava seu talento na sustentação do
regime nazista. Sua técnica constituiu-se basicamente na utilização dos sons e das imagens já
que neste trabalho não há comentários ou mesmo o uso de títulos. O plano da filmagem usou
106
a combinação da trilha sonora composta especialmente para o filme juntamente com o som
original dos discursos e dos hinos entoados pela multidão inflamada em praça pública.
Desde os primeiros trabalhos a cineasta já buscava destacar a autoridade dos líderes
ao utilizar o som original dos discursos feitos naquelas grandes reuniões. Por outro lado,
demonstrava a eficácia de conquista do regime na forma como mostrava o vigor das
multidões ao cantar os hinos comemorativos em uma reunião do partido eleito. O que se pode
dizer é que desde o início a autora já se mostrava bastante identificada com as opções
estéticas do regime nazista e denotava essa sintonia em cada uma das obras sob sua direção.
Nesse sentido, pode ser citado novamente um texto da última autora citada:
(…) persistindo é que as escolhas por uma forma estética que enalteça ideais nacionalistas, que motive para o pertencimento à nação e atice o ódio ao forasteiro passam a ter o poder de legitimar os anseios políticos do III Reich e, para além dele, dos regimes totalitários em geral. Dessa forma, suas imagens fílmicas tornam-se imagens fantásticas, daquelas produzidas para não mais serem esquecidas. (RIGOTTI, 2006, p. 9)
De fato, o que se observa, seguindo a lição da autora no excerto transcrito é que entre
as aludidas escolhas feitas pela estética nazista estavam a verborragia nacionalista, além da
preferência pela construção de imagens fantásticas. É preciso dizer: espetaculares. Eram
imagens que através do documentário precisariam ficar registradas não só nas lentes, mas na
memória do povo alemão e também dos demais povos para que servissem de exemplo.
A documentarista acabou contribuindo de forma decisiva para a viabilização dos
objetivos políticos do regime. Isso não significa, entretanto, que em todos os momentos Leni
Riefenstahl gozou de plena aceitação e reconhecimento de seu talento no interior dos círculos
do partido nazista. Neste sentido se pode citar a querela da cineasta com um dos principais
nomes do partido. Trata-se de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do estado hitleriano.
Enquanto a cineasta do regime produzia filmes que não economizavam recursos para
exploração da técnica propagandística, o ministro da propaganda debatia-se contra a referida
tática. Pelo menos nos primeiros anos da guerra, Goebbels, pensava em um caminho não tão
alinhado com o que a cineasta acabou produzindo em suas peças cinematográficas.
107
Isso se deve ao fato de que na visão daquele que se poderia chamar “braço direito”
do regime, a propaganda nos inícios da guerra deveria se resumir basicamente a exaltar a
superioridade racial e o culto ao líder. Há informações de que Goebbels tentou inclusive
sabotar alguns dos filmes de Leni, quando tinha interesse ele próprio em dirigir as películas.
Em outros casos, há indícios mesmo de que Goebbels esteve clandestinamente à
frente de operações de incêndios em salas de projeções que guardavam produções de Leni.
Esta, entretanto, gozava do apoio de Hitler o que por si só já garantia uma boa margem de
manobra para que a cineasta pudesse executar sua produção do modo por ela escolhido.
Além disso, pode-se dizer que as divergências internas advindas deste desconforto
entre duas figuras-chave do regime não foram impeditivas do transcurso da política cultural
mais ampla do nazismo. De fato, se nota que inicialmente há uma certa indecisão de Goebbels
em partir logo para os filmes mais diretamente doutrinários e coerentes com um bombardeio
aberto das massas no sentido de uma verdadeira filmografia de guerra, nota-se que com o
aproximar dos fins da guerra as coincidências de temas se verificaram.
Em outras palavras, com o fim da guerra há a necessidade de projetar para as telas os
anseios que o regime não conseguia atingir na realidade. Essa demanda fez com que não
houvesse mais dúvida de que temas escolher e de que caminho deveria ser tomado. A
Alemanha teria sim que ser exaltada e não era mais possível selecionar outros temas que não
os que dissessem respeito àquela exaltação, ou que fossem desdobramento disto.
Assim se nota a riqueza de detalhes com que se pode compor a história do nazismo e
fascismo através do cinema. Como se pode observar, não é um caminho tão simples. Seu
caráter desafiador continua a convidar outros estudiosos das diversas áreas do conhecimento
humanístico a adentrarem os portais da pesquisa sobre um tema tão múltiplo como o
fascismo. E esse é um percurso que se mostra promissor, pelo que foi visto aqui.
A busca pela percepção da lógica fascista, além da natural curiosidade, que é o
próprio agente indutor do trabalho histórico, atuam como grandes ferramentas que denotam a
permanente demanda por um mergulho mais demorado nas águas profundas da onda histórica
que inundou o mundo do século XX e trouxe tantos questionamentos aos contemporâneos ou
mesmo estudiosos que tomam até hoje contato com as fontes referentes àquele momento.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caminho trilhado pela pesquisa do fascismo no intervalo entre as duas vertentes
mais comuns: o marxismo e a História cultural, mostrou ao longo deste desafio que embora a
maioria dos autores prefira a primeira ou a segunda vertente, é possível estender o olhar
através das possíveis inter-relações oferecidas pelo tema. À guisa de algo mais sintético a
dizer sobre esta opção, pode-se afirmar que é perfeitamente possível entremear a investigação
do fascismo através de um discurso que siga ao mesmo tempo as sendas do marxismo e da
História Cultural. Ao que se pôde observar a complexidade do tema é o próprio convite a isso.
Pode-se notar que os desvãos da história do fascismo se vão costurando sempre de
maneira sugestiva na diversidade de ruas e avenidas pelas quais poderão trafegar os futuros
estudos sobre o fascismo. A riqueza do tema faz com que se possa perceber que a própria
tessitura interna produziu um rosto para o regime que não pode ser vislumbrado caso se
permaneça nas análises frias dos ambientes tradicionais do fazer político.
De toda sorte, ao que se pode notar ao longo das linhas aqui postas, sinaliza para o
fato de que é possível ver uma força propulsora em toda a fermentação ideológica anterior a
instalação do fascismo nos quadros institucionais. Este vigor anterior mostrou-se de grande
valia quando, uma vez instalado no poder, o fascismo pudesse promover uma re-engenharia
de massas, tornando-se uma verdadeira máquina de aliciamento político muito eficiente.
Nada disso teria sido possível de se enxergar, caso não se encarasse a lógica do
Estado fascista sob a dupla égide da ideologia e da política junto ao grande público. Este fora
constantemente confrontado com uma técnica na qual o chefe supremo - imortalizado nas
imagens construídas para não serem esquecidas - se punha na posição de último porta-voz de
uma vida que havia chegado para ficar e cujos efeitos ainda não eram totalmente mostrados.
Os morticínios e o sangue das plagas dos campos de concentração ainda não haviam
sido examinados pelos historiadores. Mas é lógico que não havia dúvidas sobre o massacre de
judeus e a perseguição dos povos do leste europeu ou a dizimação de minorias. Pela lógica de
funcionamento do regime, estes eram passos necessários à consolidação da ordem fascista.
Essa lógica se agudiza à medida que o fascismo vê a demanda por sua continuidade ao longo
do segundo conflito mundial. Há uma verdadeira maquinaria de guerra em movimento
paralelo ao crescimento e consolidação do regime que retroalimentava-se desse conflito.