UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Programa de Pós - Graduação em Educação Área: Educação, Cultura e Sociedade
Linha de Pesquisa: Movimentos Sociais, Política e Educação Popular
MARISA INÊS BRESCOVICI ARAÚJO
RESISTÊNCIA DO PROFESSOR QUANTO À MUDANÇA: O ENTRAV E À ESCOLA CICLADA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO EM RONDON ÓPOLIS -
MATO GROSSO
Cuiabá-MT 2005
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MARISA INÊS BRESCOVICI ARAÚJO
RESISTÊNCIA DO PROFESSOR QUANTO À MUDANÇA: O ENTRAV E À ESCOLA CICLADA DA REDE ESTADUAL DE ENSINO EM RONDON ÓPOLIS -
MATO GROSSO Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGE da UFMT, como requisito obrigatório para a obtenção do título de Mestre em Educação, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Carlos Maximo.
Cuiabá-MT 2005
BANCA EXAMINADORA
Profª. Dra. Sandra Maria Zákia Lian Sousa (FEUSP) Examinadora externa Profª. Drª. Lázara Nanci de Barros Amâncio ( UFMT) Examinadora interna Prof. Dr. Antonio Carlos Maximo (UFMT) Orientador
Dedicatória
Ao Milton, meu amigo companheiro; a Renata e Rodolfo, meus filhos queridos.
AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Antonio Carlos Maximo, orientador criterioso, por fazer parte da minha formação. A meus pais, Clóvis e Terezinha, sempre presentes na minha vida. A Sandra e Paulo, meus irmãos. Amo vocês. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. Aos colegas do Mestrado, em especial a Marilu, Ulisses, Olga e Aidê, que facilitaram minha vida na capital. A meus cunhados Roberto e Iraci França, por me acolherem. A Dariluce Gomes da Silva, companheira e amiga em situações inusitadas durante o Mestrado. Aos colegas de trabalho: Vanuza, Marilda, Genialda Ursulina, Amali, Dania, Dulcilene, Elcy, Jacilene, Rose Clélia, Maria Lúcia, Marlides, Messias, Antônio, Jacirene, Érika, Roseli Batista, Sr. Expedito. A Wilson José Soares, pois sua luta e perseverança em estudar me fizeram buscar este novo caminho. A Kleber Paulino, por me ajudar nas dificuldades da computação. À amiga Genialda Soares Nogueira, por insistir para que eu fizesse o Mestrado. A todos os amigos que direta ou indiretamente participaram deste trabalho.
FICHA CATALOGRÁFICA
A663r ARAÚJO, Marisa Inês Brescovici
A resistência dos professores: o entrave quanto à escola ciclada da rede estadual de ensino em Rondonópolis – Mato Grosso/ Marisa Inês Brescovici Araújo...Cuiabá:UFMT/IE, 2005. 146 p. il.
Dissertação de mestrado apresentada ao PPGE da UFMT,
como requisito obrigatório para a obtenção do título de mestre em Educação, sob a orientação do Prof. Dr Antônio Carlos Maximo. Bibliografia: p.132 – 139 Anexos: p.140 - 146
CDU – 37.018(817.2)
Índice para catálogo sistemático 1. Escola Ciclada – Mato Grosso 2. Cultura educacional 3. Resistência educacional
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo investigar se há resistência dos professores da rede
estadual de ensino quanto à Escola Ciclada de Mato Grosso em Rondonópolis. Para a realização deste
trabalho selecionamos seis professores pedagogos, efetivos, que participaram dos cursos de
capacitação para a implantação do Ciclo. Por se tratar de uma pesquisa com abordagem qualitativa,
utilizamos a entrevista como principal procedimento para a pesquisa. Por meio do discurso dos
entrevistados pudemos perceber que são inúmeros os fatores que evidenciam a resistência dos
professores quanto a esse modelo de ensino. Para fins de análise, subdividimos o trabalho nos
seguintes temas: a política de implantação do ciclo na visão do professor: fragilidade; ciclo de vida x
ciclo profissional: distanciamento e falta de identidade quanto à Escola Ciclada; ciclo só no nome,
seriado na prática: a acomodação da prática docente. A avaliação da aprendizagem e reprovação no
discurso dos professores: ponto de estrangulamento. A análise dos dados evidencia pontos de
resistência quanto à Escola Ciclada, como também a insegurança dos profissionais quanto ao
desenvolvimento da proposta, uma vez que não estão preparados para desenvolvê-la da maneira como
foi concebida. Os dados revelam, ainda, que os professores, na sua grande maioria, acreditam que deve
haver mudanças mais concretas no ensino para a efetivação de uma escola mais democrática.
Palavras - chave: Escola Ciclada, cultura educacional, resistência educacional.
ABSTRACT
The purpose of this research is to identify the facts that cause resistance os teachers of
public schools is the city os Rondonópolis, in the state os Mato Grosso, in relation to
teaching using organized circles. Six techers graduated in Pedagogy were selected to take
part courses of selecting personnel for the implantation of the school cicles. It is a research
that has qualitication approach, therefore the interview was deeply used as the main
procedure for the research.Through the interviewed teachers’ speeches, it was noticed that
there are several facts that point out the teachers’ resistance in relation to this way of
teaching. In order to analyze, the research was subdivided into the following themes: the
implantion of the scool circles’ policies through the teachers’ opinion: fragility; life circle x
profssional cicle: how far it is and lack of identity towards circled scool: circle in the name,
grades in real practice: the settling of teaching practice; The learning avaliation and the
teachers speeches faiture: strangulation point. The analysis of data schows some resistance
towards circled school, as well as the insecurity os profissionals in relation to the
development of the proposal, once they aren’t prepared for developing the way it was
created. Data still show that most of the professionals believe that there must be more
concrete changes in teaching methodologies so a more democratic school could be settled.
Main words: circled scool, educational culture, educational resistance.
LISTA DE QUADROS
Quadro 01. Informações técnicas sobre as entrevistas.................... ................. 18 Quadro 02. Características dos participantes.................................................... 21 Quadro 03. Organização de enturmação na Escola Ciclada ............................. 36 Quadro 04. Número de alunos por turma.............................................................36 Quadro 05. Formação das escolas estaduais de Mato Grosso organizadas por ciclo de formação até 2002 ............................................................................... 41 Quadro 06. Idade dos professores da rede estadual em Rondonópolis-MT ..... 80 Quadro 07. Ciclo de vida profissional dos professores segundo Huberman ..... 82 Quadro 08. Ciclo profissional dos professores da rede estadual de MT em Rondonópolis .................................................................................................... 83
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................11
1.Caminhos para chegar aos sujeitos..............................................................................................14
2.Algumas características da vida dos sujeitos...............................................................................19
CAPÌTULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO POR CICLOS. ..............................25
1.1 A trajetória da escola organizada por ciclos no Brasil.............................................................25
2.1 Implantação da Escola Organizada por Ciclos de Formação em Mato Grosso........................33
CAPÍTULO 2 - CICLOS: DIMENSÃO CULTURAL E RESISTÊNCI A..............................43
2.1 Cultura da escola e as transformações culturais.......................................................................47
2.2 Resistência: definição e características.....................................................................................51
CAPÌTULO 3 - O DISCURSO DOS PROFESSORES SOBRE A ESCOLA CICLADA DE
MATO GROSSO..........................................................................................................................69
3.1 A política de implantação do ciclo na visão do professor: fragilidade.....................................69
3.2 Ciclo de vida x ciclo profissional: distanciamento e falta de identidade quanto a Escola
Ciclada............................................................................................................................................79
3.3 Ciclo só no nome, seriado na prática: a acomodação da prática docente.................................93
CAPÍTULO 4 – AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM E REPROVAÇÃO NO DISCURSO
DOS PROFESSORES: PONTO DE ESTRANGULAMENTO.............................................102
4.1 Avaliar, medir, mensurar práticas necessárias: no discurso dos professores.........................102
4.2 Quem é o culpado pela reprovação?.......................................................................................113
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................... 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................132
ANEXOS......................................................................................................................................140
11
INTRODUÇÃO
No Brasil, os debates em torno das mudanças nas políticas públicas educacionais não são
recentes, assim como também a busca de propostas que promovam a melhoria da qualidade de
ensino, com vistas a uma escola mais democrática para todos. Percorrer possíveis caminhos que
levassem a qualidade da educação pública evidenciou-se necessário, uma vez que as práticas
pedagógicas até então trabalhadas mantinham uma estrutura a serviço de uma escolarização seriada,
disciplinar e seletiva que contribuía para o fracasso escolar.
Assim, tornou-se relevante a procura direcionamentos que visavam o enfrentamento e a
ruptura do ensino seriado, o que se intensificou nos anos 80, basicamente no que concerne às séries
iniciais do Ensino Fundamental. Os dados apresentados no Brasil, em 1989, apontam o índice de
35,3% de repetência e 7,2% de evasão. Em 1991 houve uma ligeira baixa, no entanto os números
continuam preocupantes: a repetência com 33,2% e a evasão 6,4%1. Esses dados reafirmam a
urgente necessidade de se repensar o ensino, de buscar caminhos que ofereçam novas perspectivas e
melhorias para a qualidade da educação no país.
Frente a essa realidade, no interior das escolas, as discussões se intensificaram na década de
90, sendo esse um momento de grandes debates e estudos. No mesmo período os ciclos de formação
vêm se firmando no Brasil, sobretudo por meio da proposta do Ministério da Educação em busca da
melhoria da qualidade de ensino e com base na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº.
9394, sancionada em 20 de dezembro de 1996.
1 Fonte: MEC INEP
12
A busca da melhoria da qualidade de ensino na rede estadual de Mato Grosso toma grandes
proporções em conseqüência dos altos índices de repetência: 19,5% e de evasão: 14,9%, totalizando
34,4% de fracasso escolar, em 19972.
Inserida no contexto de mudança, no ano de 1998, a Secretaria Estadual de Educação de
Mato Grosso – SEDUC organizou e desenvolveu cursos de capacitação para professores da rede
estadual, visando à implantação do Ciclo Básico de Aprendizagem – CBA, que englobava as duas
primeiras séries iniciais, dando, assim, flexibilidade na organização curricular e favorecendo
práticas pedagógicas e avaliativas eficientes. Foi esse o primeiro contato dos professores com a
realidade de um novo programa de educação, o qual seria implantado em todas as escolas, seguindo
uma política adotada por vários estados brasileiros.
Vencidos os dois anos prescritos pelo CBA, a SEDUC implantou a proposta curricular
organizada por ciclos, em 2000. Era o nascer de uma nova modalidade de organização escolar: a
Escola Ciclada de Mato Grosso3, a qual foi planejada tendo em vista o fato de que o regime seriado
apresentava altos índices de evasão e repetência, o que fatalmente engrossava as estatísticas do
fracasso escolar, bem como para “(...) garantir aos educandos o direito constitucional à continuidade
e terminalidade dos estudos escolares. Assim, dando continuidade à sua política de reorganização
do sistema de ensino (...) conseqüentemente, na extinção do sistema seriado”4.
Os ciclos de formação se constituem em uma realidade no Brasil, como enfatiza
VASCONCELOS (1999) em seu texto “Ciclos de formação, um horizonte libertador para a escola
do 3º milênio”:
2 MATO GROSSO. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.12. 3 No Estado de Mato Grosso essa nova forma de organização escolar recebeu o nome de Escola Ciclada, o qual estarei utilizando neste trabalho. 4 MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.17.
13
(...) a organização da escola em ciclos vem se colocando cada vez com mais força e evidência. Ao que tudo indica, não estamos diante de mais um modismo, mas de uma verdadeira proposta de trabalho na perspectiva democrática de educação. A sensação que paira - e cremos que não é infundada – é que mais dia, menos dia, o ciclo chega a todas as escolas. 5
E, de fato, a escola organizada por ciclos de formação chegou a Mato Grosso em 1998, via
Ciclo Básico de Aprendizagem6. Mesmo assim, muito se discutiu e se discute, ainda, sobre as
dificuldades pedagógicas e administrativas ocorridas durante a mudança da política de Escola
Seriada para a Ciclada, as quais são reais e afetam diretamente o cotidiano dos atores principais do
processo educativo.
É notório que tais desafios acarretem um novo direcionamento e uma re-significação do
currículo, dos métodos e técnicas de ensino e, sobretudo, do processo de avaliação, novas posturas
estas que dão sustentação ao trabalho a ser implantado e enunciado em documentos oficiais7.
Diante da sua implantação, é importante considerar que as expectativas de mudança de uma
proposta de trabalho para outra devem ser concebidas sob o prisma das mudanças culturais e
políticas, das quais nasce, essencialmente, a prática pedagógica e esta requer a vivência das
experiências coletivas e das construções dentro do momento vivido pelos sujeitos envolvidos.
Na verdade, o novo representa a busca de caminhos que acabam sendo paralelos ao já
instaurado e que precisam de tempo e amadurecimento dos envolvidos. A mesmice e a repetição de
práticas já consolidadas, mesmo com resultados fragmentados, parecem mais fáceis de serem
5 VASCONCELOS, C. Revista de Educação – AEC. 1999, p. 38. 6 MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p. 13. O Ciclo Básico de Aprendizagem – CBA teve a duração de 2 anos, favorecendo a flexibilização na organização do ensino, o sucesso escolar, a revisão da prática pedagógica, a garantia do direito de aprender e implantou uma nova prática avaliativa, resgatando, no Ensino Fundamental, um trabalho pedagógico de qualidade, eficiência e inclusão. 7 No ano de 1998, Diretrizes para o Ensino Fundamental e, em 2000, o documento; Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar – aprender e sentir, ser e fazer, que davam as diretrizes curriculares dos ciclos. Também foi produzido um conjunto de fitas de videocassete que apresenta a proposta com depoimentos dos professores da rede estadual. Ainda foi, elaborado o manual , Um diálogo com a família , 2001.
14
estudadas do que investir em novas concepções e novas práticas que ainda precisam ser estudas e
incorporadas para o seu desenvolvimento.
A implantação de uma política pública de educação depende fundamentalmente do
envolvimento de toda a categoria de profissionais nas discussões. Neste sentido, optamos por
investigar se há ou não resistência dos professores da rede estadual de ensino quanto à Escola
Ciclada de Mato Grosso em Rondonópolis8. Propusemo-nos, a analisar as causas que levaram os
professores a resistir à nova política de ensino em função de vários sinais de que é forte a resistência
dos professores.
Para tanto, fizeram-se necessários estudos e leituras de referenciais teóricos que travam
discussões acerca de temas importantes para a pesquisa em questão e que estarão permeando toda a
reflexão expressa neste trabalho, especialmente a análise dos dados, na tentativa de captar o
fenômeno e “(...) descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo
tempo nele se esconde” 9.
1. Caminhos para chegar aos sujeitos
Para chegarmos aos participantes que integraram esta pesquisa, foi distribuído um
questionário10 aos professores do primeiro e segundo ciclos, o qual foi entregue às escolas estaduais
pela Assessoria Pedagógica11, por ser este caminho de fácil acesso a todos os professores. Os dados
foram tabulados, selecionaram-se os sujeitos dentro dos critérios pré-estabelecidos.
Optamos por trabalhar com 6 (seis) professores de escolas estaduais localizadas em bairros
distintos no município de Rondonópolis – MT, durante o período letivo de 2003 a 2004. 8A cidade situa-se na região sudeste do estado de Mato Grosso, distante 212 Km da capital Cuiabá. De acordo com a estimativa do IBGE (2004), tem 163.824 habitantes. A rede estadual de ensino, conta com 34 unidades escolares, segundo os dados oferecidos pela Assessoria Pedagógica; destas escolas 3 (três) não implantaram o ciclo. 9 KOSIK, K. Dialética do concreto, 1995, p. 16. 10 Anexo número 01. 11 Assessoria Pedagógica de Rondonópolis – MT, uma extensão da Secretaria Estadual de Educação nas cidades.
15
A seleção dos sujeitos se deu de acordo com os seguintes critérios:
� Ter participado do curso de capacitação do CBA em 1998 (elaborado e
desenvolvido pela SEDUC);
� Estar trabalhando no 1º ou 2º ciclos;
� Ter Licenciatura Plena em Pedagogia num curso regular;
� Ser professor concursado da rede estadual de ensino.
Quanto aos procedimentos metodológicos, adotamos a investigação qualitativa, devido à
natureza do objeto e por ser a mais apropriada para a interpretação dos relatos orais dos professores
com vistas a identificar se há ou não resistência dos professores quanto à Escola Ciclada. Tal
procedimento mostra-se mais adequado, dentro das concepções apresentadas pelos autores citados
neste tópico, para o processo de pesquisa humana, uma vez que “ enfatiza a descrição, a indução, a
teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais”. 12
Cinco características básicas configuram a pesquisa qualitativa, conforme BOGDAN &
BIKLEN:
1. Na investigação qualitativa a fonte directa de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal.
2. A investigação qualitativa é descritiva. Os dados recolhidos são em forma de palavras ou imagens e não de números.
3. Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos.
4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva. Não recolhem dados ou provas com o objectivo de confirmar ou infirmar hipóteses construídas previamente; ao invés disso, as abstrações são construídas à medida que os dados particulares que foram recolhidos vão agrupando.
5. O significado é de importância vital na obra qualitativa.13
12 BOGDAN, R. & BIKLEN,S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos.1994, p.11. 13 BOGDAN, R. & BIKLEN,S. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos.1994. p.47-51.
16
A entrevista como coleta de dados foi importante para a compreensão das experiências
vivenciadas pelos professores. Além disso, a opção por trabalhar com entrevistas gravadas deu-se
pelo fato de que estas permitem a coleta das informações necessárias à pesquisa, acordo com
BOGDAN & BIKLEN “(...) as boas entrevistas produzem uma riqueza de dados, recheados de
palavras que revelam as perspectivas dos respondentes. As transcrições estão repletas de detalhes e
de exemplos, o que favorece a compreensão da realidade pesquisada”.14
Adotamos, assim, a entrevista, pelo fato de se apresentar como a forma mais adequada para
a interpretação do estudo pretendido. As entrevistas foram utilizadas como foco central, sendo
realizadas individualmente, no intuito de que o entrevistado manifestasse resistência ou não acerca
da Escola Organizada por Ciclos.
Então, elaboramos um roteiro de questionários semi-estruturados, tendo o cuidado de
empregá-los de maneira tal que permitisse aplicar outras perguntas, ou seja, fazer adaptações de
acordo com o desenrolar das entrevistas, sempre observando e respeitando o entrevistado.
Esse tipo de procedimento permite a análise dos relatos do sujeito, sendo que, muitas vezes,
o gesto assume o poder da palavra, o que requer uma atenção redobrada do pesquisador, no sentido
de captar todas as informações possíveis acerca do problema.
Vale lembrar aqui as reflexões de BOGDAN & BIKLEN:
Nas entrevistas semi-estruturadas fica-se com a certeza de se obter dados comparáveis entre vários sujeitos. As entrevistas serão transcritas e analisadas, sem separar a palavra do gesto. Sendo assim, não perderemos de vista todo o contexto no qual o sujeito está inserido. Todos os relatos serão valorizados na perspectiva de enfatizar o problema em estudo. 15
Nos relatos orais, visamos à coleta de informações que evidenciassem (ou não) a resistência
quanto à implantação e efetivação da proposta.
14 Cf. BOGDAN, R. & BIKLEN, S.op.cit., p. 47-51 15 BOGDAN, R. & BIKLEN, S. op.cit.,p. 135.
17
As entrevistas foram realizadas em local combinado, de forma que o entrevistado se sentisse
à vontade e tranqüilo para relatar suas experiências. Então, deu-se voz ao sujeito, na busca da
obtenção de dados substanciais, que desvelassem, na forma de narrativas, o objeto em estudo.
Sobre o fenômeno estudado, destacamos aqui a compreensão dos fatos e das representações
sociais encontrada nos escritos de KOSIK (1995):
(...) totalidade concreta é, sobretudo e em primeiro lugar a resposta à pergunta: que é a realidade? (...) um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido (...). Os fatos são de conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético16.
A realidade da totalidade pode ser entendida como um momento do todo, sendo recíproca a
relação entre este e as partes. Fazendo a articulação entre as partes, podemos revelar a resistência
dos professores em relação à Escola Ciclada de Mato Grosso. Neste sentido, buscamos a
compreensão dos conceitos de resistência. Assim, para alcançarmos os objetivos, fez-se necessário
o entendimento da proposta de ensino organizado por ciclos de formação, além de como se deu sua
implantação, levando em conta os fatores que determinaram a ruptura com o modelo de ensino
seriado até então existente.
Ainda de acordo com KOSIK, em seu texto “O mundo da pseudoconcreticidade e a sua
destruição”, “(...) a coisa em si não se manifesta imediatamente ao homem. Para chegar à sua
compreensão, é necessário fazer não só um certo esforço, mas também um détour. Para chegar à sua
essência, é preciso fazer um esforço de decomposição e recomposição do todo”.17
Considerando esse processo e entendendo que a realidade não pode ser captada no primeiro
momento, passamos às visitas às escolas para um primeiro contato. Em uma delas, a diretora M.F.S.
barrou-nos, dizendo: “(...) não quero nem falar sobre esse tal Ciclo, na nossa escola só tem o nome,
16 KOSIK, K. Dialética do concreto. 1995, p. 43-44. 17 KOSIK, K. Dialética do concreto. 1995.p.13 e 18.
18
trabalhamos da forma tradicional que é que dá certo”. Foi essa a primeira manifestação de
resistência explícita, que demonstrou o ponto de vista da diretora em relação ao objeto pesquisado.
Após essa intervenção da diretora as dúvidas e incertezas estavam relacionadas à
receptividade das pessoas que trabalhavam com a Escola Ciclada, pois se sabia que disso
dependeria o andamento e o término de todo o trabalho. No entanto, não consideramos esse aspecto
inicialmente, visto que precisávamos ir mais além para captar o fenômeno.
Sentimos, então, a necessidade de realizar uma maior delimitação do estudo, ou seja,
investigar a produção de resistência dos professores quanto a essa modalidade de ensino. Por isso,
ao chegar à escola, imediatamente explicávamos que queríamos pesquisar a Escola Ciclada e a
compreensão dos professores frente à mudança do trabalho “seriado” para o “ciclado”.
Investimos numa relação de confiança e cumplicidade com os sujeitos envolvidos no objeto
de estudo (mesmo sabendo das dificuldades que enfrentaríamos), acreditando que assim poderíamos
obter o maior número de informações possíveis e
No quadro que segue, são apresentados alguns dados das entrevistas realizadas.
Quadro 01. Informações técnicas sobre as entrevistas
Professores18 Quantidade de encontros
Rodrigo 04
Beatriz 03
Valéria 03
Sílvia 02
Ana 02
Paula 02
Total 16
18 Todos os nomes desta pesquisa são fictícios.
19
O número de entrevistas foi determinado pelo próprio entrevistado, ou seja, conforme as
entrevistas retomavam assuntos já abordados, percebia-se que era o momento de parar e retornava-
se quando, na análise de dados, surgia alguma necessidade.
A primeira entrevista aconteceu em agosto de 2003, com a professora Beatriz, e serviu de
experiência para organizar os demais encontros e buscar um melhor caminho para as novas
entrevistas. Percebemos que no primeiro encontro havia um certo receio por parte da entrevistada e
até mesmo da entrevistadora, mas, com o decorrer dos trabalhos, houve uma aproximação natural,
que facilitou a “conversa com finalidade”.19
Para cada sujeito entrevistado os questionários foram colocados de maneira a facilitar o
desenrolar da entrevista; eles seguiram uma mesma ordem ou até mesmo as mesmas perguntas.
2. Algumas características da vida dos sujeitos
Os caminhos e os processos da aprendizagem não são estáveis nem estáticos, já que os
sujeitos estão constantemente em contato com desafios e, dessa forma, interagem com estruturas
sociais impostas pelo círculo social no qual estão inseridos, adaptando-se ou não às exigências que
aparecem. Assim, “(...) a vida humana é social e está sujeita a mudanças, a transformações, sendo
perecível e por isso toda a construção social é histórica”20 . Por ser sujeito histórico, “o homem é
síntese de relações sociais” (Marx, 1981) e é na relação com o outro que ele (o homem) constitui
uma base de referência e de desenvolvimento que não se separa das dimensões pessoais e sociais,
repercutindo nas ações profissionais. Neste sentido, SACRISTÁN (1999) analisa que
19 LIMA. S. M. Aprender para ensinar, ensinar para aprender: um estudo do processo de aprendizagem profissional da docência de alunos -já - professores. 2004, p. 47. 20 MINAYO, M.C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 1998, p.68.
20
Para entender a ação educativa, sua mudança ou sua constância através dos tempos, deve-se apelar às pessoas que dela participam, a sua biografia, a sua liberdade, a sua autonomia e ao modo de como assumem tudo isso e suas limitações, sem descartar o peso da cultura, do costume, das instituições e do pensamento social compartilhado.21
O homem protagoniza sua história, influenciando e recebendo influências das condições que
lhe são colocadas. GIROUX22 destaca que dentro da “(...) noção antropológica os seres humanos
são agentes da história”.23 Neste sentido, a primazia do ser humano está nas influências sociais
determinantes, no pensamento e nos discursos que se desenvolvem dentro de um determinado
tempo histórico.
As influências sociais moldam os sujeitos dentro de um modo de pensar e agir, o que
evidencia a necessidade de reconhecê-los como parte de múltiplas interações.
Segundo BAKHTIN,
(...) a personalidade que se exprime, apreendida, por assim dizer, do interior, revela-se um produto total da inter-relação social. A atividade mental do sujeito, da mesma forma que a expressão exterior, é um território social. Em conseqüência, todo o itinerário que leva da atividade mental (o ‘conteúdo a exprimir”) à sua objetivação externa (a ‘enunciação’) situa-se completamente em território social.24
Portanto, podemos inferir que a existência do homem é delineada pelas questões sociais que
permeiam o meio em que está inserido. Dessa forma, é influenciado e influencia a realidade de
maneira profunda, fazendo com que a mesma se constitua como forma verdadeira de expressão
social.
Sendo o homem um ser histórico e social, vimos a necessidade de fazer uma breve relato do
percurso de vida dos sujeitos em estudo, na tentativa de uma aproximação das características da
vida pessoal, a fim de compreender os caminhos por eles percorridos na construção de conceitos
que os levaram a resistir ou não à Escola Ciclada.
21 SACRISTÁN,J.G. Poderes instáveis em educação. Porto Alegre, 1999, p.64. 22 Um estudioso e defensor da noção de resistência, que estaremos trabalhando no capítulo sobre o assunto. 23 GIROUX.H. Teoria crítica e resistência em educação: para além das teorias de reprodução. 1986, p.172. 24 BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 1992, p.117.
21
Não é objetivo deste trabalho detalhar dados da vida dos sujeitos, mas revelar alguns
pontos do percurso de vida de cada um, na tentativa de desvelar o objeto aqui estudado.
Frente a esse desafio, há de se destacar a necessidade de buscar dados, mesmo que
superficialmente, peculiares a cada participante, uma vez que tais dados são importantes para
compreendermos cada sujeito. Assim, temos o quadro 02.
Quadro 02- Características dos participantes
Nome Sexo Idade Est. Civil
Ensino Médio
Graduação
Ciclo em que leciona
Tempo de
serviço
Tempo na escola
(em anos)
Situação funcional
Rede de
Ensino
Beatriz F 37 Cas. Mag. Pedagogia Especializ/
Psico pedag.
2ª Fase do 1º Ciclo
12 8 Concursada Estadual e Municipal
Rodrigo M 52 Cas. Mag. Pedagogia Especializ/
Metodolo/ educacional
2ª Fase do 2ºCiclo
25 23 Concursado Estadual
Valéria F 43 Div. Mag. Pedagogia Especializ. Orientação Educacional
3ª fase do 1º Ciclo
19 17 Concursada Estadual
Silvia F 42 Solt. Mag. Pedagogia Especializ. Metodolo/
educacional
1ª Fase do 1ºCiclo
12 12 Concursada Estadual e Municipal
Ana F 39 Cas. Mag. Pedagogia Especializ. Met. Da Língua
Portuguesa
2ª Fase do 2º Ciclo
12 12 Concursada Estadual
Paula F 38 Cas. Mag. Pedagogia Especializ Alfabeti
2ª Fase do 2ºCiclo
12 12 Concursada Estadual
Os dados da pesquisa nos revelam que os entrevistados possuem pontos em comum tanto em
suas trajetórias de vida quanto na vida profissional.
Os participantes encontram-se na faixa etária entre 37 e 52 anos. Todos cursaram o
Magistério no Ensino Médio e Licenciatura Plena em Pedagogia, no Campus de Rondonópolis da
Universidade Federal de Mato Grosso, e são especialistas em Educação. Têm situação efetiva na
22
rede pública estadual de ensino, por meio de concurso público. O tempo de trabalho dos
entrevistados varia entre 12 e 25 anos.
Os dados obtidos nas entrevistas revelaram que Sílvia e Beatriz trabalham nas redes
municipal e estadual de ensino, fato que dificulta o trabalho com o grupo da escola, uma vez que
não podem estar presentes no período destinado à hora-atividade25, a qual cumprem no período
noturno, sozinhas, sem o acompanhamento da coordenadora pedagógica. Sedo assim, ficam com os
três períodos ocupados com o trabalho docente.
Rodrigo, Paula, Beatriz e Ana são casados e têm filhos. Sílvia é solteira e Valéria,
separada com dois filhos adolescentes. Atualmente, Valéria mora na casa dos pais, o que a deixa
bastante angustiada, pois sente a necessidade de um espaço para ela e seus filhos.
Quanto ao lazer, basicamente resume-se a visitas à família nos finais de semana e, com raras
exceções, idas ao cinema.
No que diz respeito a leituras, podemos afirmar que são direcionadas principalmente para o
trabalho; ainda assim, a grande maioria as realiza nos cursos de capacitação. Quando há relatos de
leitura, são voltados exclusivamente para o trabalho docente. Silvia relatou que a última vez que
realizou a leitura prazer foi quando leu o Pequeno Príncipe, ainda quando adolescente.
Apenas Valéria mantém a experiência de acompanhar seus alunos até o término do primeiro
ciclo. Os demais consideram que não é saudável esse acompanhamento e que os alunos precisam de
novas experiências e, ainda, mantêm-se na mesma fase e ciclo por se sentirem mais seguros para
realizar o trabalho, uma vez que estão há vários anos na “série”.
A professora Valéria tem calos nas cordas vocais, doença considerada típica nos professores,
segundo a opinião da docente. Ela precisa estar constantemente em repouso, mas não consegue,
pois a voz é seu instrumento de trabalho, e o problema se torna constante. 25 Hora–atividade: os profissionais de educação básica do Estado de Mato Grosso possuem uma jornada semanal de 30 horas; destas, 10 são destinadas para a realização de atividades relacionadas ao processo didático-pedagógico, sendo que essa carga horária corresponde a 33,33 de trabalho extra–sala de aula.
23
A escolha da profissão de professor (a) deu-se pelo fato de não haver outro curso disponível
que lhes agradasse no Campus de Rondonópolis. Dos entrevistados, apenas Ana veio de outra
cidade para estudar e optou pelo curso de Pedagogia; os demais não tiveram condições financeiras
para buscar em outra cidade o curso de opção. Já Sílvia declara que optou pelo magistério por
gostar da profissão, mas ainda assim gostaria de ser advogada.
Com exceção de Ana, todos relataram que tiveram muitas dificuldades para estudar. Paula
descreve sua trajetória da seguinte forma: “Meus pais moravam em outra cidade e o dinheiro era
muito pouco (...) só não passei fome (...) e estudei na base do xerox porque não tinha dinheiro para
comprar livros”. Mesmo com dificuldades, todos fizeram graduação e depois buscaram cursos de
especialização em diversas áreas da educação, conforme demonstramos no quadro 02.
De acordo com os relatos pudemos perceber que Valéria e Beatriz tiveram uma trajetória
bastante conturbada no período em que buscaram o ensino superior. Eram casadas, com filhos
pequenos e trabalhavam 20 horas na rede estadual de ensino. Tiveram que buscar ajuda da família
para conciliar todas as tarefas. “(...) foi um período muito difícil, minha família ajudou (...) sabe,
tive que brigar muito para conseguir terminar a Pedagogia (...) o dinheiro era contado (...) andava só
de ônibus e o tempo era apertado pra fazer tudo”. (Beatriz).
Rodrigo, nosso único representante do sexo masculino, aparenta ser calmo. Nas entrevistas,
mostrou-se sempre disponível para responder todas as perguntas, colocando-se como um mediador
dos problemas existentes na escola.
Sílvia, Ana e Paula demonstram estar inquietas e até mesmo estafadas com os percalços do
cotidiano da profissão. Estão à espera para usufruir os 3 meses de licença-prêmio a que tem direito
por lei.
As narrativas das histórias de vida e da vida profissional de cada entrevistado estão
carregadas de sentimentos que os marcaram profundamente. Podemos ousar afirmar que a condição
24
social de cada um se encarregou de decidir o caminho que esses sujeitos teriam que trilhar
profissionalmente. Embora não tenhamos nos aprofundado nessa questão, recorreremos a alguns
aspectos da história de vida desses profissionais, procurando conhecer as características destes.
Cada um tinha sonhos diferentes, no entanto, as ofertas de estudo foram restritas e os colocaram em
um só caminho: a docência das séries iniciais do ensino fundamental.
Fez-se importante relatar, ainda que brevemente, alguns dados biográficos dos sujeitos até
chegarem à profissão de docente, já que, muitas vezes, o processo “(...) explica a dimensão (...)
numa sociedade complexa na qual os significados divergem entre os grupos sociais, econômicos e
culturais (...)”26, que pode tentar buscar saber se há resistência quanto a um novo processo de
desenvolvimento educacional.
O presente estudo foi organizado em capítulos para melhor expor e refletir a problemática
em questão. O primeiro capítulo traça um breve histórico da escola organizada em ciclos de
formação no Brasil e no estado de Mato Grosso. O segundo capítulo apresenta a dimensão cultural,
a cultura escolar e as transformações culturais e também caracteriza a resistência em várias
perspectivas reflexivas. Já no terceiro e último capítulo refletimos e analisamos o discurso dos
professores, na tentativa de desvelar os conflitos que os levaram a resistir ou não à proposta de
trabalho por ciclos e, a seguir, fazemos algumas considerações acerca dos dados apresentados nesta
pesquisa.
CAPÍTULO 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO POR CICLOS
1.1 A trajetória da Escola Organizada por Ciclos no Brasil
26 SACRISTÁN,J.G. Consciência e ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa, A. Profissão professor.1995,p. 71.
25
A política educacional brasileira vem sendo amplamente discutida ao longo da história, na
busca da reconstrução do sistema de ensino e na tentativa de baixar os altos índices de reprovação e
de evasão bem como de trazer melhoria à qualidade de ensino.
Nesse sentido, muitas pesquisas têm sido realizadas; dentre elas, destacamos o Estado do
Conhecimento e Progressão Escolar, realizado em 2004,27 que faz uma retrospectiva de estudos
realizados no Brasil. No entanto, tentativas de corrigir os problemas de aprendizagem tiveram seu
marco inicial na década de 20 do século passado, com o propósito de solucionar o problema da falta
de vagas para os alunos e garantir que eles prosseguissem os estudos.
Em 1956, em conferência28 realizada pela UNESCO29, estudiosos debateram sobre o
enfrentamento e superação de problemas na escola latino-americana. Na oportunidade, o educador
Almeida Júnior30 esteve representando o Brasil na condição de delegado. Naquele momento, já foi
descartada a adoção da promoção automática31 do aluno por idade, pelo fato de que o sistema de
ensino brasileiro não tinha condições básicas necessárias para o desenvolvimento da proposta
conforme o sistema de ensino da Inglaterra.
“Em 1958 o Estado do Rio Grande do Sul adota uma modalidade de progressão continuada,
criando classes de recuperação destinadas a alunos com dificuldades, voltando às salas de origem a
partir do momento que avançam”.32 Naquele momento, em São Paulo, a escola primária foi
organizada em dois ciclos, com promoção automática da 1ª para a 2ª série e da 3ª para a 4ª série.
27 Estudo de pesquisa coordenado por BARRETO, E.S.S. e SOUZA, S.Z. e Estado do conhecimento ciclos e progressão escolar (1990 – 2002) apresentado na 27ª Reunião Anual da Anped. Caxambu – MG, nov. 2004. 28 Conferência Latino-Americana sobre Educação Primária Gratuita e Obrigatória, promovida pela UNESCO em colaboração com a Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1956, na cidade de Lima – Peru. 29 UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 30 ALMEIDA JR. Repetência ou promoção automática? 1957, p.109. 31 Promoção automática – o aluno será promovido independentemente de ser submetido a esse processo contínuo de avaliação e acompanhamento das aprendizagens. CABRERA,R.C. A avaliação da aprendizagem no discurso das professoras da escola ciclada de Mato Grosso: um estudo de caso. 2004, p.69. 32 BARRETO, E.S.S. e MITRULLIS, E. Os ciclos escolares: elementos de uma trajetória. Caderno de Pesquisa, n.114, p. 195-196.
26
Já em 1968, Pernambuco implantou a organização por níveis, rompendo a tradicional
organização curricular por anos de escolaridade ou por séries na escola primária.
Nas décadas de 60 e 70, ocorreram iniciativas na busca de avanços progressivos em Juiz de
Fora e em Santa Catarina33, encerrando a experiência três anos depois, sendo que apenas nos anos
80 passaram a ser nomeadas como ciclos.
A implantação da escola organizada por ciclo de formação34 acontece gradativamente em
alguns estados ou municípios isolados e toma maiores proporções, inserindo-se em uma alternativa
educacional para a organização do ensino fundamental.
Na década de 90, o município de São Paulo – SP, na administração do Partido dos
Trabalhadores – PT, tendo como secretário de educação Paulo Freire, amplia o ensino fundamental
para 8 anos, nas escolas estaduais.Com isso, São Paulo torna-se a proposição da progressão
continuada, em 199235. Em Belém também há a adesão por ciclos.
A iniciativa de São Paulo passa a ser referência para a implantação dos ciclos de
formação, sendo seguida por Porto Alegre – RS, durante a gestão de 1982 a 1992. A proposta é
difundida na gestão do Partido dos Trabalhadores – PT que implantou a Escola Cidadã, consolidada
na segunda gestão do Partido, em 1993.
Com a adoção de ciclos de formação humana36, Porto Alegre se destaca, por promover, o
desenvolvimento das crianças e das experiências, considerando o processo de produção de
conhecimento.
33 Santa Catarina teve a experiência de progressão continuada mais longa, para combater elevados índices de repetência; justificou afirmando ser de caráter pedagógico, permanecendo até 1980. 34 Dados obtidos em documentos fornecidos pela SEDUC e no livro Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender e sentir, ser e fazer. Cuiabá, 2000. 35 BARRETO, E.S.S. e SOUSA,S.Z. Estudos sobre ciclos e progressão escolar no Brasil: uma revisão. Educação e Pesquisa,SP,V.30, 2004. 36 PORTO ALEGRE, Secretaria Municipal de Educação. Ciclos de Formação em debate: Proposta político-pedagógico da escola cidadã. “Pressupondo uma visão de currículo processual, em um movimento dialético de ação-reflexão-ação, contribuindo mais efetivamente com o desenvolvimento dos educandos, propondo que na Rede Municipal de Ensino a Educação Básica se estruture em três ciclos de formação, tendo cada ciclo duração de três anos, ampliando dessa forma para nove anos a escolaridade básica obrigatória de 1ºGrau.
27
No contexto de expansão do ciclo, a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED) adota a nova política pedagógica de educação, que foi denominada de Escola Plural. Esta
desencadeou a busca permanente por uma política educativa mais democrática.
De acordo com BARRETO e SOUZA, a escola Plural
Inaugura um processo de mudanças na rede escolar, informado por um projeto político – pedagógico formulado em torno de alguns eixos norteadores, que sintetizam, de forma consistente e articulada, aspectos dos mais relevantes do ideário contemporâneo de educação.37
Tal proposta de educação aponta como eixos norteadores: 1 - democratização dos tempos
escolares, 2 - ensino baseado no trabalho coletivo, 3 - forma de organização curricular que busque
as vivências do aluno associadas ao conhecimento sistematizado, 4 - teorias de aprendizagem que
fundamentam o processo de avaliação, 5 - reforço e recuperação, 6 - composição de turmas.
Nesse contexto, a escola organizada por ciclos de formação se fortalece e ganha
proporções entusiásticas, recebendo tendo a adesão de outros municípios e estados como Chapecó,
Blumenau, Ipatinga, Curitiba, Santo André, Brasília, Mato Grosso38 e outros.
A Lei de Diretrizes e Bases nº 9.394/96 aponta avanços no que se refere a mecanismos de
organização escolar da educação básica no Brasil.
Segundo consta em seu artigo 23, parágrafo único,
a educação básica poderá se organizar em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência, ou em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomenda.39
37 BARRETO, E.S.S. e SOUSA, S.Z. op.cit. 11 a 30 38 No estado de Mato Grosso a resolução 262/02 que regulamenta a Escola Ciclada dá abertura para que as escolas optem por uma nova forma de organização curricular. 39 MEC. Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Brasil em Ação. Brasília, 1997, p.13.
28
Com a flexibilidade da LDB e a necessidade de uma mudança real do ensino, surgem uma
nova concepção e uma nova nomenclatura, que são os Ciclos de Formação. O governo federal,
apoiado no artigo acima citado, reorganiza a educação básica em forma de ciclos, publica e envia à
casa de todos os professores da rede pública de todo o país, no ano de 1997, os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) 40.
Tal atitude é uma faceta da política educativa decorrente de acordos firmados em março de
1990, na Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, realizada pela
UNESCO, UNICEF41, PNUD42 e Banco Mundial. Nesse momento, houve, por parte dos presentes,
um comprometimento mundial para a realização de investimentos que visassem a satisfazer as
necessidades básicas de aprendizagem de crianças e jovens.
A cidade de Porto Alegre, em 1997, dá início à experiência da “Escola Cidadã”43, ciclada.
Na mesma época, em Blumenau – SC é criada a Escola sem Fronteira, e o estado de São Paulo
implanta, com força total, a progressão continuada.
É neste cenário de grandes discussões e de compromissos assumidos internacionalmente que
o governo federal brasileiro organiza a escolarização em quatro ciclos, ficando com a seguinte
disposição: 1º ciclo (1ª e 2ª série), 2º ciclo (3ª e 4ª série), 3º ciclo (5ª e 6ª série) e 4º ciclo (7ª e 8ª
série)44. Dessa forma, podemos perceber que não houve mudanças na estrutura do ensino
fundamental, que manteve a fragmentação em séries.
40 Os Parâmetros Curriculares Nacionais constituem um referencial de qualidade para a educação no Ensino Fundamental em todo o país. Sua função é orientar e garantir a coerência dos investimentos no sistema educacional, socializando discussões, pesquisas e recomendações, subsidiando a participação de técnicos e professores brasileiros, principalmente daqueles que se encontram mais isolados, com menor contato com a produção pedagógica. Parâmetros Curriculares Nacionais Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. 2001, p.13. 41 UNICEF – Fundação das Nações Unidas para a Infância. 42 PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 43 A Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre realizou um diagnóstico participativo, envolvendo todos os segmentos da SMED para a implantação do Projeto Escola Cidadã. Com a realização do diagnóstico “ A escola que temos e a escola que queremos” veio à tona a necessidade de uma profunda reestruturação dos currículos. Neste momento, surge a organização curricular por “ciclos de formação”, transformando o atendimento oferecido ao aluno da Rede Municipal de Porto Alegre em três ciclos (1º ciclo – 6 a 8 anos; 2º ciclo – 9 a 11 anos e 3º ciclo – 12 a 14 anos). 44 Brasil, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, 1997, p.111.
29
No modelo de ensino por ciclos de formação, respeitam-se os ritmos e a promoção da
aprendizagem de cada indivíduo, considerando as diferentes idades. Os campos psicológico e
sociocultural de cada aluno são fatores de extrema importância nos processos de ensino e
aprendizagem, sempre em consonância com as fases do desenvolvimento humano.
A organização do ensino em ciclos de formação pretende oferecer elementos para a
reconstrução da trajetória do tempo escolar, ultrapassando o ensino seriado e organizando,
ordenando, assim, os tempos escolares de maneira mais flexível, favorecendo o trabalho com alunos
de diferentes procedências, estilos ou ritmos de aprendizagem.
A escola organizada por ciclos de formação surge como uma proposta de romper o círculo
vicioso da repetência, no qual o aluno é retido num momento crucial da vida escolar. Com a nova
proposta, o discente tem mais tempo para aprenda a ler, escrever e desenvolver as habilidades
necessárias para a fase em que está inserido, sendo a escola responsabilizada pelo trabalho coletivo,
no papel de ensinar sem perder de vista nem um aluno.
Nessa concepção, o aluno é visto como único, sendo comparado pelos seus avanços e nunca
com o outro, como acontecia no ensino seriado. O professor faz constantes diagnósticos para definir
formas de como trabalhar com cada indivíduo. Sua postura é de investigar, buscar formas de
trabalhar com a heterogeneidade, analisar como o aluno aprende e trocar experiências com seus
colegas, buscando respostas para suas angústias.
Estudos e pesquisas recentes têm demonstrado que os alunos aprendem melhor quando são
regularmente confrontados com situações didáticas que os obrigam a construir novos saberes ou a
estruturar e consolidar novas aquisições. Nesse sentido, os objetivos da aprendizagem e os planos
de estudo precisam ser claros e orientados a partir de um referencial rico e diferenciado. Nessa
relação, cada indivíduo é único, e ao professor cabe adequar os métodos de trabalho, sempre
avaliando os progressos e as dificuldades de cada aluno.
30
As discussões acerca da problemática que envolve a Escola Ciclada no estado de Mato
Grosso têm sido polêmicas. De acordo com essa proposta de ensino, a avaliação45 deixa de ter o
caráter mensurável para ser formativa o currículo é reestruturado e as metodologias são organizadas
de maneira que atendam aos alunos individualmente; no entanto, há muito que se discutir sobre o
ensino por ciclos, na concepção dos professores.
Como se percebe, com a organização por ciclos de formação, há um novo desafio para
conceber o ensino e a aprendizagem e isso implica numa nova concepção de educação. A formação
do professor passa a ser questionada, colocada em jogo, e se exige um repensar das práticas
pedagógicas. MELLO discute o assunto da seguinte forma:
(...) como todos os profissionais, o professor precisa fazer ajustes permanentes em suas ações, é neste momento que se exige a competência do docente, envolvendo conhecimentos e valores em face da diversidade cultural e étnica brasileira, das necessidades especiais de aprendizagem, das diferenças entre homens e mulheres, de modo a ser capaz não só de acolher as diferenças como de utilizá-las para enriquecer as situações de ensino e aprendizagem em sala de aula. 46
A realidade anterior das escolas estaduais evidenciava um ensino pautado pela seriação, e o
professor assumia posturas de trabalho incorporadas ao longo dos anos de sua prática docente. O
ensino organizado por ciclos de formação contempla uma nova proposta educacional que invadiu a
sala de aula, exigindo um profissional atento às diversidades trazidas pelos alunos e valorizando a
heterogeneidade, a vivência do aluno antes de seu ingresso na instituição escolar e sua capacidade
de ser sujeito de seu conhecimento.
No movimento de transformação da escola, a Escola Ciclada apresenta-se como uma
mudança de concepção, uma proposta que se pauta na natureza social, política, econômica e cultural 45 CABRERA, R.C. Cuiabá – MT, 2004, faz uma análise crítica do assunto em dissertação de mestrado intitulada A avaliação da aprendizagem no discurso das professoras da Escola Ciclada de Mato Grosso: um estudo de caso. 46 MELLO, G. N. Cidadania e competitividade: desafios educacionais do terceiro milênio.São Paulo, 1992, p.12.
31
dos envolvidos, o que representa uma inserção de valores, ensino e posturas frente a um
determinado conhecimento.
A organização do processo educativo em ciclos de formação, devido a seus princípios de
democratização do espaço escolar e respeito aos ritmos de aprendizagem e à promoção de um
processo dinâmico, contínuo no ensinar e aprender representa o atendimento individual a cada
sujeito. Assim, o “(...) conhecimento possui um caráter dinâmico, onde o aprender está intimamente
ligado com as referências pessoais, sociais e afetivas do aluno”.47
Nessa concepção, é necessário incluir e considerar as diferenças individuais e as diversas
maneiras que as pessoas têm de aprender, sem que suas características físicas, sociais e econômicas
sejam dificuldades para tanto. Com essa perspectiva de ensino, o professor preocupa-se
fundamentalmente com a aprendizagem do aluno e com a forma como este constrói o
conhecimento, com suas características individuais, ritmos, interesses e história de vida.
A lógica do trabalho generalizado que a escola seriada apresenta, em que todos aprendem
da mesma forma e ao mesmo tempo, é rompida com um trabalho diferenciado, “(...) permitindo que
cada um avance a seu ritmo usando todo tempo que lhe seja necessário (...) não basta dar ao aluno o
tempo necessário: é preciso que ele tenha ajuda igualmente diferenciada”.48 Essa forma de trabalho
é mais complexa e exige a mobilização de todos os profissionais da escola. Para isso, é necessária a
construção do trabalho coletivo, a compreensão e envolvimento de toda a equipe no processo da
aprendizagem do aluno.
Sem dúvida, a ruptura do trabalho individualizado para o trabalho coletivo é um dos desafios
a ser superado dentro do projeto Escola Ciclada, no qual todos são responsáveis não apenas pelo
controle da disciplina e do aprendizado dos alunos, mas, sim, por um projeto que envolva questões
47 MATO GROSSO. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p. 25. 48 FREITAS, L.C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. 2003, p.18-19.
32
pedagógicas do grupo. Não se concebe, então, uma luta individualizada, sendo de todos a
responsabilidade pelo fracasso ou sucesso dos alunos e não apenas do professor regente.
A profissionalização do educador é um aspecto importante a ser considerado sendo um dos
grandes desafios anteriores ao trabalho com o ciclo de formação, pois “(...) fazer aprender os que
não aprendem espontaneamente é uma tarefa muito difícil, que exige da ação educativa coerência,
continuidade, qualidade, e uma pertinência bastante ambiciosa”49.
A escola organizada por ciclos de formação coloca em xeque o modelo de organização
escolar anterior por ultrapassar os tempos de série organizados em blocos e por possibilitar um
tempo maior ao aluno que dele necessita para aprender. Além disso, essa ordenação vem
acompanhada de uma visão diferenciada da educação escolar obrigatória, forma de educação
curricular, teoria da aprendizagem, processo de avaliação, reforço e recuperação, composição de
turmas, regulamentação dos tempos e espaços escolares, pressupostos que fundamentam o ciclo.
É no contexto de uma nova concepção de educação que os professores são orientados a
trabalhar, em busca de uma educação democrática e de qualidade, que assegure efetivamente o
direito de aprender. A inovação vem para romper paradigmas solidificados e está imbuída de uma
política de educação que envolve concepções individuais e coletivas. Nesse sentido, GOLDBERG
(1995) define inovação pedagógica como o “(...) processo planejado e científico de desenvolver e
implantar no Sistema Educacional uma mudança, cujas possibilidades de ocorrer com freqüência
são poucas, mas cujos efeitos apresentam um real aperfeiçoamento para o sistema”.50
A concepção da escola organizada por ciclos de formação, que propõe a democratização da
educação num processo que envolveu discussões e planejamento está de acordo com as afirmações
do autor, por se caracterizar como uma nova proposta que visa a mudanças conceituais no processo
pedagógico. 49 Cf .PERRENOUD, P. A pedagogia na escola das diferenças: fragmentos de uma sociologia do fracasso. 2001, p. 195. 50 GOLDBERG M.A.A . Inovação educacional: saga de sua definição. 1995.p.198. In GARCIA, W. Inovação educacional no Brasil: problemas e perspectivas.
33
A introdução do modelo de escola organizada por ciclo de formação no Estado de Mato
Grosso foi um marco para a implementação de uma nova política pública de educação.
1. 2. Implantação da Escola Organizada por Ciclos de Formação em Mato Grosso
A Escola Organizada por Ciclos de Formação51 tem permitido a vivência de um marco na
história da educação brasileira, uma vez que os ciclos de formação são formas educativas que
colocam em movimento aspectos estruturais da vida social e cultural, que comprometem o
imaginário coletivo, a memória e a perspectiva histórica. Isso não seria possível sem o consenso e a
participação dos professores e, também, sem a incorporação das experiências que a sociedade tem
acumulado.
No estado de Mato Grosso, a Escola Organizada por Ciclos de Formação teve início com o
Projeto Terra, implantado em 1996, em 22 escolas rurais. O desenvolvimento desse projeto deu
início às discussões encaminhadas pela SEDUC sobre a nova proposta de ensino no estado. Esse
projeto tinha como objetivo integrar o homem ao campo, propondo uma forma diferente de
organização do ensino (em ciclos), na tentativa de adequar a escola à realidade da comunidade.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) deram sustentação à base teórica do projeto. A
organização do Projeto Terra propunha a ruptura do antigo sistema seriado de ensino para um
sistema de três ciclos de três anos, no Ensino Fundamental, incluindo alunos com seis anos de idade
no primeiro ciclo.
51 MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer, Site da SEDUC, Assessoria Pedagógica de Rondonópolis - MT.
34
No final daquele ano, a SEDUC elaborou documentos oficiais52 contendo concepções
teóricas que deram sustentação à organização curricular e à nova concepção de avaliação, bem
como sugestões metodológicas, para a implantação do Ciclo Básico de Aprendizagem (CBA).
O Ciclo Básico de Alfabetização ou Aprendizagem foi implantado com a Portaria nº 032/98-
SEDUC-MT e tinha como objetivo “(...) assegurar aos alunos a aquisição e o desenvolvimento
gradativo de conhecimentos e habilidades básicas necessárias ao prosseguimento dos estudos”. A
proposta visava ao ensino em blocos com duração de dois anos, abrangendo a 1ª e a 2ª séries no 1º
ciclo, na tentativa de assegurar a permanência e a alfabetização das crianças na escola pelo menos
dois anos. Só haveria retenção mediante uma avaliação, ao término de dois anos, caso necessário.
Em 1999, a SEDUC implantou o CBA nas demais séries do Ensino Fundamental, garantindo
assim que os alunos concluíssem o primeiro ciclo em 2 anos.
Por meio de documento oficial, Escola Ciclada de Mato grosso: novos tempos e espaços para
ensinar - aprender a sentir, ser e fazer, de fevereiro de 2000, a Secretaria Estadual de Educação traça
diretrizes de trabalho para o Projeto Escola Ciclada.
Este projeto foi apresentado aos educadores de Mato Grosso no final do ano letivo de
2000, nos seus pólos53. Anteriormente, a proposta já havia sido apresentada aos assessores
pedagógicos (representantes governamentais no município). Essas apresentações foram dirigidas
por técnicos da SEDUC, sendo realizadas em um período de três dias e tiveram como conteúdo o
paralelo entre a Escola Seriada e a Ciclada. A discussão do curso girou em torno da crítica aos
baixos índices do sistema seriado e da crítica positiva ao sistema ciclado, sempre colocando como o
52 A Seduc produziu em 2001 um informativo sobre a Escola Ciclada intitulado: Um diálogo com a família. Em 2002 elaborou um conjunto de fitas de videocassete sobre cada área do conhecimento e também sobre práticas avaliativas, dando sustentação ao trabalho do professor. Também foi produzido um manual com orientações técnico-pedagógicas para a parte administrativa e pedagógica da escola. 53 O governo do Estado de Mato grosso, através dos decretos nº. 2007/97, de 29/12/97, nº 2319/98, de 08/06/98 e nº 00053/99, 22/04/99 criaram os CEFAPROS – Centros de Formação e Atualização do Professor – em 12 pólos – Cuiabá, Diamantino, Rondonópolis, Juína, São Felix do Araguaia, Alta Floresta, Barra do Garças , Cáceres, Sinop, Juara, Confresa e Matupá.
35
maior responsável, para o seu sucesso, a atuação do professor, que nesse momento seria o grande
eixo das discussões.
O documento acima referido traz a seguinte justificativa para a implementação da política
educacional dos Ciclos de Formação no estado:
Esta alternativa pedagógica, com base nos seus princípios e nas análises de experiências já realizadas em outros Estados, demonstra ser a mais adequada e coerente com as características do Estado de Mato Grosso. Não é apenas uma estratégia para eliminar a evasão e a repetência, mas para uma ampla reorganização estrutural e pedagógica no Ensino Fundamental capaz de propiciar a qualidade na educação. A idéia do Ciclo está baseada na dimensão formativa, na diversidade de ações pedagógicas como condição necessária ao aprimoramento do trabalho educativo para atender as características e necessidade dos educandos. Provoca o educador a buscar e instaurar, na sua prática, novos estilos de ensinar, fazer escolhas e tomar decisões, visando adequar seu esquema de trabalho às características próprias dos alunos, no sentido de instigá-los para o conhecimento. 54
Assim, a escola organizada por ciclos de formação é implantada efetivamente na rede
estadual de ensino de Mato Grosso, sendo embasada nas orientações constantes do documento
oficial acima mencionado e nos cursos de capacitação oferecidos aos professores de junho a agosto
desse mesmo ano (2000).
No que concerne aos aspectos do processo de enturmação adotado na escola organizada
por ciclos de formação no Estado de Mato Grosso, os critérios são as idades aproximadas e as fases
do desenvolvimento humano, como se pode ver no quadro demonstrativo a seguir:
54Cf. MATO GROSSO. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.25.
36
QUADRO 03: Organização de enturmação na Escola Ciclada55 .
CICLOS FASES AGRUPAMENTOS FASE DO DESENVOLVIMENTO
TURMA DE SUPERAÇÃO
I Ciclo
1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase
6 a 7 anos 7 a 8 anos 8 a 9 anos
Infância
Maiores de 9 anos
II Ciclos
1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase
9 a 10 anos 10 a 11 anos 11 a 12 anos
Pré-adolescência
Maiores de 12 anos
III Ciclo 1ª Fase 2ª Fase 3ª Fase
12 a 13 anos 13 a 14 anos 14 a 15 anos
Adolescência
Maiores de 15 anos
Observa-se que com essa estrutura há um ganho de um ano com relação à Constituição
brasileira, que reza em seu artigo 23: “O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos
obrigatório e gratuito na escola pública (...)”.56
Ao se adotar o novo modelo, houve uma grande preocupação com a permanência dos
alunos na escola e com o desenvolvimento do conhecimento de cada um, sempre com o
acompanhamento e avaliação contínua do processo.
As orientações estabelecidas pela SEDUC, no que se refere ao número de alunos
matriculados para cada fase e ciclos, sãos as seguintes :
Quadro 04: Número de alunos por turma57
Ciclos Fases Nº de Alunos
I Ciclo 1ª, 2ª e 3ª Fase 25 a 30 alunos
II Ciclo 1ª, 2ª e 3ª Fase 25 a 30 alunos
III Ciclo 1ª, 2ª e 3ª Fase 25 a 30 alunos
55 Escola Ciclada de Mato grosso: Novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.52. 56Secretaria de Estado de Educação. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Cuiabá, 1997, p.33. 57 Escola Ciclada de Mato grosso: Novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.52.
37
Esse quadro estabelece efetivamente a formação das turmas, deixando uma faixa entre o
mínimo e o máximo de alunos para a formação de cada ciclo e fase.
Embasado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de nº 9394/96, indica ainda a
possibilidade de se adotar a progressão continuada58, que foi feito pela Escola Ciclada, que assegura
ao aluno o direito de concluir seus estudos. No entanto, se ele apresentar dificuldades, terá o direito
de acompanhamento por um professor articulador, o qual trabalhará com o educando num horário
diferenciado, até que o mesmo supere suas dificuldades. Temos, assim os seguintes tipos de
progressão:
a) Progressão Simples (PS) – o aluno desenvolve seus estudos normalmente, sem nenhuma indicação de acompanhamento na fase, de fase para fase, e de ciclo para ciclo. b) Progressão com Plano de Apoio Pedagógico (PPAP) – o aluno que apresenta dificuldades no processo de desenvolvimento e construção do conhecimento progride na fase, de fase para fase, e de fase para ciclo, com indicação de acompanhamento no Plano de Apoio Pedagógico (PAP), que explicita o desenvolvimento do educando e as intervenções necessárias, implementadas pelo professor regente e pelo Professor Articulador59. c)Progressão com Apoio de Serviço Especializado (PASE) – destinada aos alunos de necessidades especiais. O processo avaliativo deve seguir os critérios adotados para todos os alunos ou adotar adaptações, quando necessário.60
Nesse sentido, a progressão para a próxima fase ou ciclo deve ser de comum acordo com o
coletivo de professores responsáveis pelo atendimento pedagógico do aluno.
58 Lei de Diretrizes e Bases da Educação – nº 9394/96. Art.22, 2º: “Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino.” 59 Professor Articulador – trabalha com um grupo de alunos provenientes das turmas do ciclo e da superação que apresentam dificuldades de aprendizagem. 60 MATO GROSSO. Secretaria de Estado de Educação. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.53-54.
38
O documento oficial da Escola Ciclada também aponta alguns critérios para os alunos que
não tiveram o desenvolvimento necessário em relação aos referenciais do ciclo:
• na passagem de um ciclo para outro, o aluno poderá ficar retido no final do ciclo. Não pode ficar retido mais de um ano letivo, podendo avançar para o ciclo seguinte em qualquer época do ano que tiver superado as dificuldades; • retenção no final do ciclo – deve ser elaborado um plano de Apoio Pedagógico pelo coletivo dos professores do ciclo; • essa retenção só poderá ocorrer após analisado todo o processo de desenvolvimento do aluno no início da 1ª fase, da 2ª fase até o final do ciclo pelo coletivo dos professores e os mesmos concluírem que existem dificuldades na maioria dos componentes curriculares que dificultarão seu ritmo de aprendizagem no ciclo seguinte; • essa retenção deverá evitar a comparação com os demais alunos assim como a homogeneização das turmas; • buscar o envolvimento dos pais para que se posicionem acerca da medida a ser adotada, registrando e debatendo como os mesmos percebem o desenvolvimento do filho durante o ciclo; • as escolas, no final do ano letivo, devem encaminhar à SEDUC, Ensino Fundamental, o quadro demonstrativo das progressões para controle e acompanhamento.61
O documento aponta diretrizes importantes com relação à retenção do aluno ao término de
cada ciclo e dá encaminhamentos que devem ser direcionados pelo coletivo da escola e com o
envolvimento dos pais.
Ainda de acordo com a proposta, o currículo é dinâmico, flexível e inclui, além dos
objetivos e métodos, a organização do tempo e do espaço, interações sociais como constituintes da
aprendizagem significativa.
Quanto à avaliação, no modelo proposto ela é um processo de reflexão, não existindo um
instrumento específico para diagnosticar a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo dos alunos.
Nesse sentido, a proposta da Escola Ciclada sugere instrumentos e técnicas para que o professor e o
61 MATO GROSSO, Secretaria Estadual de Educação. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2001. p.57.
39
coletivo da escola possam acompanhar o crescimento e desenvolvimento do aluno. Tais
instrumentos sugeridos são: caderno de campo, auto-avaliação, mapa conceitual, portfólio ou pasta
avaliativa, projetos, observação, entrevista, discussão coletiva, uso de imagens e gravuras para
reflexão coletiva, conselho de classe, prova.
Com a mudança para Projeto Escola Ciclada deixou-se de lado os boletins62 e adotou-se
como forma de registro relatórios descritivos, que, por sua vez, não seguem um padrão específico e,
sim, devem relatar o mais claro possível como o aluno está se desenvolvendo. Contemplam-se,
aqui, alguns princípios norteadores:
Conteúdo de natureza cognitiva: são os conceitos e conhecimentos construídos pelo aluno nas áreas do conhecimento – aqui o professor deverá recorrer à pasta avaliativa e caderno de campo. Desenvolvimento afetivo: relação afetiva com o conhecimento e a aprendizagem (se necessita mais estímulo para despertar mais interesse), se demonstra prazer no que faz, relação com os colegas, trabalhos em grupo. Caráter mediador: refere-se ao papel do professor na avaliação, tornando-se um observador e mediador do processo de desenvolvimento de cada aluno, fazendo as intervenções pedagógicas sempre que necessário, instigando o aluno a perceber que ele é o principal sujeito deste processo. Caráter evolutivo: perceber o aluno como um ser inacabado, ou seja, um sujeito em construção, levando em consideração a estrutura mental já construída pela criança e as condições concretas de sua existência, suas vivências para avaliá-la. Caráter individualizado: destina-se ao acompanhamento efetivo do professor através de anotações diárias e registros significativos sobre a aprendizagem da criança, confiando no seu processo permanente de aprendizagem. 63
No ano de 2002, todas as escolas estaduais receberam as orientações para o
desenvolvimento da Escola Ciclada64 pela Resolução 262/02 do Conselho Estadual de Educação de
Mato Grosso, que estabelece no artigo 2º:
62 Documento utilizado para informar o desempenho dos alunos através de escala numérica. 63 MATO GROSSO. SEDUC. Escola Ciclada de Mato Grosso. 2000, p. 183-184.
40
A opção pelo regime escolar por ciclos de formação deve fundamentar-se numa concepção pedagógica específica e distinta na consideração dos tempos e dos modos de aprendizagem, na utilização de recursos e métodos didáticos, na organização do trabalho e dos ambientes escolares, nos processos de avaliação e de participação, na articulação com outras políticas públicas de suporte social, produtos de elaboração coletiva, e da decisão de cada comunidade escolar, expressas no Projeto Pedagógico da escola e nos seus diversos instrumentos de planejamento e ação.65
De acordo com a Resolução citada, é dada abertura para que as escolas em Mato Grosso
possam optar por se organizar por ciclos de formação de acordo com o Projeto Político Pedagógico
de cada unidade de ensino.
Mais adiante, o mesmo documento apresenta um maior detalhamento para a concretização
do ciclo:
A adoção do regime escolar por ciclos de formação pressupõe a duração do ensino fundamental ampliada para 9 anos, tendo em vista a ampliação do tempo de permanência na escolaridade obrigatória e observando as disposições do Artigo 11 da Resolução 150/99 – CEF/ MT e art. 5º da LC 49/98, exigida a implantação gradativa e a garantia de conclusão de estudos neste regime.66
Estabelecendo as normas da Resolução nº 262/02-CEE/MT, a organização do tempo de
escolarização na Escola Ciclada foi distribuída em três ciclos de três anos cada conforme quadro 04.
A proposta foi concebida para ser implantada gradativamente, a partir de então; o 2º ciclo
seria concluído em 2003. No entanto, o que se tem constatado é uma situação bastante diversificada,
uma vez que o ciclo de formação não foi implantado em todas as escolas do estado. A política do
sistema ciclado não chegou de forma satisfatória e nem todos aderiram a ela.
O que podemos constatar na rede estadual é que muitas escolas possuem duas formas de
organização curricular, o que evidencia uma das problemáticas da implantação do Ciclo e até
mesmo reafirma o grande apego das escolas à proposta curricular por série. Podemos constatar essa
64 Experiências como a de Belo Horizonte, com a Escola Plural e Porto Alegre, com a Escola Cidadã, municípios pioneiros em buscar soluções para resolver o problema do fracasso escolar, fundamentam as concepções da Escola Ciclada de Mato Grosso. 65 MATO GROSSO. Conselho Estadual de Educação. Resolução 262/02,p.1. 66 MATO GROSSO. Conselho Estadual de Educação. op. cit. , p.2.
41
questão nos dados da SEDUC, que revelam um sistema de ensino que oferece, ao mesmo tempo,
série e ciclo numa mesma escola, conforme o quadro a seguir:
Quadro 05: Formação das escolas Estaduais de Mato Grosso organizadas por ciclo de formação até
2002
Organização curricular Nº. de escolas Percentual
Ciclo 74 12,47
Série 178 30,01
Ciclo e série 341 57,50
Total 593 100
Fonte: Seduc – MT
As evidências apresentadas no quadro 05 revelam que há uma grande indefinição por
parte das escolas no que se refere à implantação do Ciclo em todos os segmentos. As escolas,
amparadas pelo artigo 23 da LDB67, acabam por optar por ciclos, séries ou ciclos e séries,
usufruindo assim da abertura da Lei.
A rede estadual de educação de Mato Grosso não está fora do contexto de muitas redes
de ensino no Brasil. Estudos indicam que os ciclos ainda constituem uma opção minoritária em
relação à forma de organização da escola e que “(...) a diversidade encontrada (...) poderá se tornar
um complicador para os sistemas de ensino”.68
Portanto, há um longo caminho a ser percorrido para a real implantação dos ciclos nas
escolas, tanto no que se refere à sua regulamentação por meio dos documentos oficiais como na sua
67 Artigo citado neste trabalho ver página 28. 68BARRETO, E.S.S. e SOUZA, S.Z. Estudos sobre ciclos e progressão escolar no Brasil: uma revisão. 2004, p.31.
42
efetivação na prática pedagógica. Há fortes indícios de que há um apego que dificulta romper com o
ensino seriado e ainda há resistência contra a opção total pelo ciclado.
No próximo capítulo, discutiremos a cultura de modo geral e a cultura escolar
engendrada nas concepções de educação, uma vez que estas fundamentam a transmissão da
reprodução de valores e atitudes, fortalecendo a resistência a novos projetos que venham dar um
novo enfoque à educação. Colocar em pauta a discussão sobre cultura se faz necessário, uma vez
que este trabalho está baseado nas relações sociais do ser humano, o qual influencia e é influenciado
de forma significativa, contribuindo para reforçar a reprodução social e, em muitos casos, a
resistência às mudanças.
Neste momento, não podemos fugir da reflexão acerca da cultura por considerarmos que
há um forte apego dos professores a um “(...) modo de vida enraizado nos recursos e atividades de
uma sociedade específica (...)”69 que refletem e determinam consideravelmente a lógica dos tempos
escolares.
69 Cf. GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação: para além das teorias de reprodução. 1986, p.167.
43
CAPÍTULO 2 – ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS DE FORMAÇ ÃO: DIMENSÃO
CULTURAL E RESISTÊNCIA
Baseados em SACRISTÁN (1999), THOMPSON (1995), CHARTIER (1990), GIROUX
(1995), GARCIA (1999) buscamos compreender diferentes conceitos sobre a cultura escolar, que
emergem na literatura educacional, não por acaso, mas no momento em que a reflexão sociológica,
antropológica e histórica sobre a escola volta-se para a discussão de aspectos internos na
implantação de uma política pública de ensino na instituição educativa.
Assim, o foco do presente capítulo é a compreensão das práticas escolares que estão
presentes no cotidiano da escola. Dentre essas práticas, destacam-se o desenvolvimento efetivo do
currículo, a construção do conhecimento, o cotidiano da instituição escolar, a organização dos
alunos e dos professores, além de outros elementos que ajudam a compreender os pontos de
resistência que assinalam a prática educativa frente ao ensino por ciclos de formação, no interior de
um sistema de valores, de cultura.
Neste contexto, ainda, “é importante considerar o tema cultura para entender a educação e
projetá-la (...) qual projeto queremos que ela sirva”.70
Cultura, na perspectiva antropológica, compreende
O conjunto complexo dos códigos e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico, e que se manifestam em praticamente todos os aspetos da vida: modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças, instituições, valores espirituais, criações materiais, etc71.
70 SACRISTÁN. J.G. Poderes instáveis em educação. 1999, p.148. 71 FERREIRA. A. B. Novo dicionário da língua portuguesa. 1986, p. 591.
44
A cultura, portanto, pode ser compreendida de forma restrita (grupo social) ou ampliada
(sociedade em geral), mas é sempre referente a um certo coletivo e determina sua forma de agir.
Esse coletivo, ao mesmo tempo em que se constrói culturalmente influenciado pelo ambiente em
que vive, também age como produto de cultura, gerando bens culturais que podem ficar restritos ao
coletivo ou serem apropriados por outros grupos sociais.
THOMPSON reafirma o conceito de cultura como
(...) o conjunto inter-relacionado de crenças, costumes, formas de conhecimento, arte, etc., que são adquiridos pelos indivíduos enquanto membros de uma sociedade particular e que podem ser estudados cientificamente. Estas crenças, costumes, etc., formam um “todo complexo” que é característico de uma determinada sociedade, diferenciando essa sociedade de outros lugares e épocas diferentes (...).72
Cada grupo social, dentro dessa concepção, tem características peculiares, suas crenças, sua
visão de mundo, as quais acompanham o indivíduo na sua práxis social. Ao atuar no campo
profissional, o indivíduo não deixa de lado esses valores: ao contrário, são exatamente essas
construções e simbolizações interiorizadas e arraigadas que irão permear o relacionamento com o
grupo e a forma como será articulado o trabalho.
Os sujeitos levam para toda a extensão de sua existência as experiências vivenciadas, como
amplas manifestações que pontuam um agir diferenciado Nesse encaminhamento de idéias, cada
um leva consigo sua história, suas verdades e sua forma de entender o trabalho. Eis aí um campo
fértil para a resistência ou para mudanças de concepções. Assim, perceber os conflitos e o poder
presentes na configuração cultural de determinada sociedade é imprescindível.
72 THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 1995, p.172.
45
Acerca da mobilidade do conceito de cultura, o mesmo autor observando que “(...) o
conceito de cultura tem uma história própria, longa e complicada, uma história que provavelmente
tem produzido tantas variantes e tanta ambigüidades (...)”73.
As trocas de bens culturais e sua apropriação, em maior ou menor grau, dependem de alguns
fatores, tais como a interferência da mídia ou a possibilidade de atuar em espaços variados e com
poder de influência, como no educacional.
Para SACRISTÁN,
A cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparecem poucas vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens, as contribuições das mulheres com sociedade, as formas de vida rural, e dos povos desfavorecidos (exceto os elementos de exotismo), o problema da fome, do desemprego ou dos maus tratos, o racismo e a xenofobia, as conseqüências do consumismo e muitos outros temas problemas que parecem “incômodos”. Consciente e inconscientemente se produz um primeiro velamento que afeta os conflitos sociais que nos rodeiam quotidianamente. 74
A análise do cotidiano escolar tem evidenciado claramente a pertinência destas afirmações.
A cultura escolar predominante revela-se como engessada, pouco permeável ao contexto em que se
insere, aos universos culturais das crianças e jovens a quem se dirige e à multiculturalidade da
sociedade.
Situando a escola enquanto espaço privilegiado do saber, é possível verificar que as formas
de cultura que nela se estabelecem estão sempre voltadas a um determinado modelo de sociedade.
Ao mesmo tempo, o conhecimento que o aluno traz para essa instituição nem sempre é valorizado
numa concepção ampla de aprendizagem. Considera-se o aluno a partir do momento em que ele
adentra os portões escolares, e assim, é-lhe negada sua práxis social.
73 THOMPSON, J.B. op. cit., p. 22. 74 SACRISTÁN, G. Currículo e diversidade cultural. 1995, p. 97.
46
Na tentativa de desvelar essa realidade, CHARTIER analisa a questão cultural da seguinte
forma:
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.75
Nessa perspectiva, vão sendo trabalhadas, na escola, propostas que a colocam como uma
necessidade para compreender os problemas sociais historicamente construídos, sustentados nas
relações de dominação, com a na justificativa de que a mesma complementa o homem como sujeito
histórico e pela justiça social. Nesse contexto, a ausência da educação é concebida como ponto
preponderante das diferenças sociais.
Dentro desse quadro, a cultura escolar é estruturada, assentada no ideal de uma escola
básica, igualitária, que garanta a todos o acesso aos conhecimentos sistematizados de caráter
considerado "universal”. Contudo, a “(...) história cultural, tal como a entendemos, tem por
principal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler”.76 Esta forma de cultura evidencia uma educação
que está longe de garantir a democratização efetiva, o direito ao conhecimento sistematizado. A
escola criou uma cultura escolar padronizada, ritualística, formal, pouco dinâmica, que enfatiza
processos de mera transferência de conhecimentos.
Como afirma GIROUX,
75 CHARTIER, R. A história cultural. Entre práticas e representações. 1990.p.17. 76 CHARTIER, R. Op.cit.,16-17.
47
Os/as educadores/as não poderão ignorar, no próximo século, as difíceis questões do multiculturalismo, da raça, da identidade, do poder, do conhecimento, da ética e do trabalho que, na verdade, as escolas já estão tendo de enfrentar. Essas questões exercem um papel importante na definição do significado e do propósito da escolarização, do que significa ensinar e da forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as para viver em um mundo que será amplamente mais globalizado (...) e racialmente diverso que em qualquer outra época da história. 77
A escola está passando por mudanças profundas de identidade cultural na busca de uma
nova concepção de mundo e de educação. Na visão dos autores citados percebe-se, nitidamente, a
importância de a escola valorizar o capital cultural do meio em que o aluno está inserido, tornando
suas próprias ações compatíveis com as necessidades e os desejos da população.
2.1 Cultura da escola e as transformações culturais
A cultura da escola é compreendida como valores e normas que regulam as relações dos
vários sujeitos e que são mecanismos criados pela escola. Apesar de cada indivíduo apresentar
percepções distintas em um mesmo ambiente, há elementos comuns nas suas concepções, os quais
caracterizam a cultura de uma determinada escola.
No que diz respeito à cultura escolar, GARCIA (1999) afirma que
Ensinar supõe querer fazer alguém ascender a um grau ou a uma forma de desenvolvimento intelectual e pessoal que se considera desejável. Isto não pode ser feito sem se apoiar sobre os conteúdos, sem extrair da totalidade da cultura – no sentido objetivo do termo, a cultura enquanto mundo humanamente construído, mundo das instituições e dos signos no qual, desde a origem, se banha todo indivíduo humano, tão-somente por ser humano, e que constitui como que sua segunda matriz – certos elementos que se consideram como mais essenciais, ou mais intimamente apropriados a este projeto. Educar, ensinar é colocar alguém em presença de certos elementos da
77 GIROUX, H. Praticando estudos culturais nas faculdades de Educação. 1995, p. 88.
48
cultura a fim de que ele deles se nutra, que ele os incorpore à sua substância, que ele construa sua identidade intelectual e pessoal em função deles. Ora, tal projeto repousa necessariamente, num momento ou noutro, sobre uma concepção seletiva e normativa da cultura “78.
Sob esse prisma, a cultura escolar evidencia uma seleção dos materiais culturais disponíveis
num determinado momento histórico e social. Além disso, ela realiza um trabalho de reorganização,
reestruturação e transposição didática para tornar os conteúdos assimiláveis pelos alunos, sendo as
salas de aula espaços para se lidar com o conhecimento sistematizado, construir significados,
reforçar, questionar interesses sociais, formas de poder, de vivências que têm necessariamente uma
dimensão antropológica, política e cultural. “O problema da relação entre o conhecer e agir na
educação talvez seja o tema central de todo pensamento para explicar por que a educação se
desenvolve tal como realmente o fazemos”.79
De acordo com SACRÍSTÁN (1995), as abordagens culturais têm se revestido de uma
perspectiva acrítica, pretensamente técnica, sem que sejam trabalhados os pressupostos político-
sociais e ideológicos escolares que determinam as práticas pedagógicas. Os problemas relativos à
cultura escolar estão presentes nas políticas públicas educativas, na formação dos professores, nas
propostas curriculares e, nas escolas, são, principalmente, a seleção e organização dos conteúdos
das diferentes áreas curriculares, o tratamento didático-pedagógico que é dado e, sobretudo, está a
serviço da “(...) obediência a um projeto cultural”80.
Por outro lado, o pressuposto implícito é uma “naturalização” da forma dominante de
estrutura escolar, como se necessariamente as áreas curriculares habituais, de base disciplinar,
constituíssem a única forma de conceber o currículo escolar. Os diferentes atores do processo
educacional vivem em contextos que experimentam diariamente a sedução e os conflitos da vida
78 GARCIA, C.M. A formação de professores: para uma mudança educativa. 1999, p. 167-168. 79 SACRISTÁN, J.G. Poderes instáveis em educação. 1999, p. 19. 80 SACRISTÁN, J.G. op.cit., p.148.
49
urbana e muitas vezes não os percebem no interior da escola. Em geral, a cultura da escola ignora
esta realidade plural e apresenta um caráter monocultural e de resistência, o que é assim analisado
por SACRISTÁN:
A resistência em admitir que a educação é basicamente um fato de reprodução provém não da consciência do fenômeno em si que é inegável, útil e necessário, mas das atitudes e dos procedimentos na sua realização e das conseqüências para a prática da educação, da “sacralização” dos resultados e dos objetos da cultura que são deduzidos do processo de objetivação da mesma. (...) A cultura cânone que é sacralizada dentro do sistema educativo deve-se não tanto à manutenção de uma atitude de valorização positiva, sem fissuras em relação aos objetos culturais, mas sim às práticas de disciplina e de controle dentro das quais é propagada. 81
A cultura escolar cristalizada faz com que educadores apresentem enorme dificuldade de
incorporar os avanços na área do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como as diferentes
formas de aquisição de conhecimentos, as diversas linguagens e expressões culturais e as novas
sensibilidades presentes de modo especial nas novas gerações. “(...) a escola, como aparelho
cultural da modernidade, é discutida, por um lado, por não ter cumprido as suas promessas de
ilustrar a população em geral e por ser hierarquizadora”.82 A seletividade aponta que a escola é para
poucos ou para os mais aptos.
Esse tipo de pensamento, segundo SACRISTÁN, “(...) difundiu, ao longo dos séculos XIX e
XX, argumentos que tentaram justificar as desigualdades humanas como determinantes
biológicos”83 e, nesse contexto, encontra-se a escola que, por ser padronizada, não democratizada,
massificada e seletiva não tem incorporado os avanços científicos e tecnológicos.
Neste sentido, SACRISTÁN analisa que
81 SACRISTÁN, J.G.op.cit., p. 95. 82 SACRISTÁN, J.G. Poderes instáveis em educação. 1999, p.65. 83 SACRISTÁN, J.G. Educação obrigatória: seu sentido educativo e social. 2001, p.61.
50
A história da exclusão está construída sobre a desigualdade da propriedade de bens materiais, sobre os privilégios sociais e políticos de certas minorias e sobre as crenças sobre a posse desigual de capacidades inatas consideradas como próprias de um tipo de seres humanos mais do que de outros. A história do progresso da inclusão é formada por lutas sociais e políticas pelo banimento de privilégios e pelo reconhecimento da igualdade como possibilidade e como realidade. Para torná-la possível e realizável, foram fundamentais as mudanças nas concepções sobre a natureza humana.84
Os processos de construção-desconstrução-reconstrução do conhecimento encontram-se em
profunda crise na escola, sendo um campo amplamente fértil para as resistências e rico em
diferenças culturais que se impõem. O mundo escolar se revela pouco permeável às profundas
mudanças culturais presentes na sociedade. Sua organização, estruturação espacial e temporal e o
tipo de relação com o conhecimento favorecem as interações interpessoais que promovem e
valorizam, entre outros aspectos, uma lógica de vida, uma mentalidade de outras épocas, em claro
confronto com a sociedade atual, seus desafios, buscas, contradições e modos de construção do
humano.
Nos últimos tempos, tem sido propagada uma proposta de reformas educativas e de
reformulação curricular vinda de diferentes países. É a introdução dos chamados “temas
transversais85”, como mediação concreta para favorecer uma maior permeabilidade do currículo
escolar às questões que emergem do universo social de referência. A introdução desses temas
deveria permitir que os mesmos ocupassem relevância social, cultural e ética e penetrassem a sala
de aula. No entanto, essas tentativas, segundo SANTOMÉ (1993), correm o risco de trivialização,
reduzindo-se em geral a algo sem uma articulação orgânica com a cultura escolar.
Quando se convive com o cotidiano de diferentes escolas, o mesmo revela homogêneos os
rituais, os símbolos, a organização do espaço e dos tempos, as comemorações de datas cívicas, as
84 SACRISTÁN, J.G. op.cit.,p.63. 85 Temas transversais: as diferentes áreas, os conteúdos selecionados em cada uma delas e o tratamento transversal de questões sociais constituem uma representação ampla e plural dos campos de conhecimento e de cultura de nosso tempo, cuja aquisição contribui para o desenvolvimento das capacidades expressas nos objetivos gerais. Parâmetros Curriculares Nacionais (2001. p. 62).
51
festas, aplicação de provas, o uso de um currículo único, enfim, “(...) da cultura da escola, que são
profundamente afetados com a introdução dos ciclos, pressupondo desde um confronto com valores
que tradicionalmente têm pautado de modo dominante a organização escolar (...)”.86
Mudam as culturas sociais de referência, mas a cultura da escola parece gozar de uma
capacidade de se auto-construir independentemente, sem interagir com universos que estão fora da
escola.
2.2 Resistência: definição e características
Buscamos trabalhar os pressupostos teóricos sobre resistência escolar na literatura específica
com a contribuição de autores como GIROUX (1986), OLIVEIRA (1997), DIAS (1982), BAUER
(1999) e PERRENOUD (2001), que definem a resistência de maneira pertinente aos objetivos
propostos nesta pesquisa.
O trabalho em questão tem sido bastante desafiador: afinal, verificar se há resistência dos
professores frente a uma nova política educacional, por meio de relatos orais, que foi a nossa opção
de trabalho, não é tarefa fácil de ser realizada, pois requer atenção para desvelar o
comprometimento dos educadores com a proposta do ensino por ciclos de formação. É um estudo
que requer observações minuciosas e atenção redobrada.
Buscamos em FERREIRA87 o significado de resistência: “(do latim resistentia) ação ou
efeito de resistir (...)”, recusa, oposição aos desígnios ou à vontade de outrem.
Vários teóricos têm investido no campo da discussão sobre o conceito de resistência, entre
eles DORIN, que conceitua a resistência no âmbito da Psicologia da seguinte maneira:
86BARRETO, E.S.S e SOUZA, S.Z. Estudos sobre ciclos e progressão escolar no Brasil: uma revisão. 2004,p.36. 87 FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 1986, p. 234.
52
Característica de grupos sociais geralmente estáveis que tendem a evitar modificações de padrões de comportamento e atitudes. Trata-se de uma reação defensiva ante o que o grupo supõe ser uma ameaça ao seu status (...), a resistência comumente se manifesta pela morosidade no trabalho ou pelo obsentismo. 88
Podemos observar que o conceito de resistência, tendo como ponto de partida a definição
Ferreira, pode ser entendido a uma ação negativa diante de novas propostas e projetos, quando o
sujeito precisa deixar de lado suas práticas e experiências para dar ênfase a novos projetos pensados
e implantados pelas políticas públicas educacionais.
Dentro de uma perspectiva mais aprofundada, GIROUX89, em suas reflexões, nos alerta ao
afirmar que a definição de resistência tem problemas, não havendo um rigor intelectual necessário
para tal discussão. O autor afirma que
(...) embora os estudos de resistência indiquem os locais sociais e ‘espaços’ nos quais a cultura dominante é encontrada e desafiada pelos grupos subordinados, tais estudos não têm conceptualizado adequadamente a gênese das condições que promovem e reforçam modos contraditórios de resistência e luta. Em outras palavras, o que se perde nessa perspectiva são análises dos determinantes histórica e culturalmente mediados que produzem uma variedade de comportamentos de oposição, para não mencionar as maneiras diversas pelas quais são experimentados pelos grupos subordinados. 90
Os estudos sobre resistência possibilitam-nos a compreensão de que é necessário buscar as
causas que a influenciam, observando se o comportamento opositor é norteado por um interesse de
emancipação ou simplesmente é a negação de um projeto novo, através das causas e significados
percebidos no contexto socioeconômico e das causas e significados fornecidos pelo próprio sujeito
da ação, entendimento esse que não irá se resumir apenas à compreensão, mas será efetivado na
análise dos dados deste estudo.
88 DORIN, E. Dicionário de Psicologia. São Paulo. 1976, p.248. 89 GIROUX. H. Teoria Crítica e resistência em Educação - para além das teorias de reprodução, 1986. 90 GIROUX, H. op.cit., 1986, p. 140.
53
Aprofundando as reflexões acerca da resistência, OLIVEIRA 91, em consonância com
GIROUX (1986), afirma que “não há uma teoria da resistência e sim apenas conceitos e descrições
sobre tal assunto”. E acrescenta:
Com base nas pesquisas e reflexões acerca da resistência vejo que (...) não existe uma teoria da resistência, porém, não tem uma razão de ser quando afirmam que não passa de descrições e quando dizem que não existem critérios para defini-la.92
DIAS93 também trabalha com a noção de resistência. A autora realizou uma pesquisa com
um grupo de estudantes filhos de operários na escola e apontou algumas atitudes como desatenção,
falta de aprendizagem, rebeldia, fuga da escola, desprezo por notas, apatia como sendo
manifestações de resistência.
Ainda quanto à noção de resistência, BAUER (1995) reflete, em seu texto “A população da
ciência como imunização cultural: A função de resistência das representações sociais”, sobre essa
noção no âmbito das representações sociais. Para ele, “as representações sociais são a produção
cultural de uma comunidade que tem como um de seus objetivos resistir a conceitos, conhecimentos
e atividades que ameaçam destruir sua identidade”.94
O autor em pauta discute também, a noção de resistência como uma forma de negação a
novos comportamentos e até mesmo a situações novas dentro de um determinado grupo e ainda a
“um conhecimento novo”.95 Este autor trabalha com movimentos de resistência explícitos de um
determinado grupo.
GIROUX (1986) trabalha com o conceito de resistência numa perspectiva de análise as
relações entre a escola e a sociedade
91 OLIVEIRA.O.V.Trabalho docente e produção de resistência em um currículo das séries iniciais do ensino fundamental. UFMT,1997, p.34. 92 OLIVEIRA, O.V. op.cit., p.34. 93 DIAS, M. C.A. resistência dos filhos de trabalhadores às práticas escolares: as práticas de uma escola primária em um bairro de periferia. 1982. 94 BAUER, M. Textos em representações sociais. 1999, p.229. 95 BAUER, M. op.cit., p.243.
54
A resistência é um construto teórico e ideológico que fornece um foco importante para se analisar as relações entre a escola e a sociedade maior.Mais importante do que isso, ela fornece uma nova alavanca teórica para se entender as maneiras complexas pelas quais os grupos subordinados experimentam o fracasso educacional, e dirige a atenção para novas maneiras de se pensar e reestruturar os modos de pedagogia crítica.96
Mediante as colocações apresentadas, buscamos salientar a noção de resistência dentro de
vários aspectos significativos, com o apoio teórico de autores de diferentes áreas do conhecimento
que abordam o tema. Reconhecemos que o raciocínio até agora desencadeado situou aspectos da
noção de resistência, proporcionando a reflexão crítica sobre pontos diversificados a partir de
estudos que abordaram a questão e variações individuais do conceito.
PARO97 não conceitua nem caracteriza resistência, no entanto, buscou explicações para a
resistência dos professores à aprovação dos alunos, num estudo etnográfico realizado em uma
escola de periferia da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo. Esse estudo evidenciou que
os determinantes de resistência quanto à escola organizada por ciclos de formação são complexos e
múltiplos, abrangendo dimensões socioculturais, psicológicos e institucionais.
Entretanto, para a compreensão da resistência na prática educativa, fez-se necessário buscar
vários conceitos para explicar como os professores têm concebido a Escola Ciclada e se colocado
contrários ou não a ela.
O ser humano sente-se ameaçado por realidades adversas que determinam novas formas de
viver, trabalhar e, sobretudo, de conceber as mudanças no contexto social em que está inserido.
Entre as mudanças que a atualidade apresenta, no âmbito da educação, insere-se a Escola Ciclada.
2.3 Postura do professor
De acordo com os documentos oficiais a Escola Ciclada exige um profissional com a
postura de não ser apenas um repassador de conteúdos e, sim, um facilitador da aprendizagem mais 96 Cf. GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação: para além das teorias de reprodução. 1986, p. 145. 97 PARO, V.H. Reprovação escolar: renúncia à educação. São Paulo, 2001.
55
eficaz, organizador do trabalho de grupo, da integração social98, sempre atento às mudanças e às
necessidades dos alunos.
ESTEVE discute a postura do professor neste sentido:
(...) a mudança acelerada do contexto social influi fortemente no papel a desempenhar pelo professor no processo de ensino, embora muitos professores não tenham sabido adaptar-se a estas mudanças, nem as autoridades educativas tenham traçado estratégias de adaptação, sobretudo a nível de programas de formação de professores. O resultado mais evidente é o desajustamento dos professores relativamente ao significado e alcance do seu trabalho. 99
As implantações da organização escolar por ciclos de formação, sugere novas práticas,
novas conhecimentos e a reflexão acerca da prática pedagógica. “ Talvez este tipo de
comportamento seja justificado pelo medo de se expor e ser criticado, ou enfim, por não estar
acostumado a trabalhar de forma coletiva dividindo sucessos e insucessos”. 100.
O olhar do outro, a crítica do outro nem sempre é bem-vinda, muitas vezes gerando um
desconforto por parte dos profissionais que, até então, estava, acostumados a realizar seu trabalho
de forma individual, com portas fechadas.
Partindo para o foco da resistência política, GIROUX afirma que esta pode ser uma negativa
quanto aos discursos dos governantes e, sobretudo, que ela, pode ser de ordem informal, como
Espaço pessoal, no qual a lógica e força de dominação são contestadas pelo poder da agência subjetiva de subverter o processo de socialização. Vista deste modo, a resistência funciona como um tipo de negação ou afirmação colocada diante de práticas e discursos dos governantes. É claro que a resistência muitas vezes carece de um projeto explícito e com freqüência reflete práticas sociais que são informais, desorganizadas, não políticas e não teóricas por natureza.101
98 MATO GROSSO. Secretaria de Estado. Escola Ciclada. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p. 59 a 62. 99 ESTEVE. J. M. Mudanças sociais e função do docente. 1995, p. 100. 100 COUTINHO, R.M.T. Formação do professor-formador: desafios e perspectivas de mudanças. 2002, p. 71. 101 GIROUX, H.A. Os professores como intelectuais.Porto Alegre, 1997, p. 199.
56
Analisando esse conceito de resistência de GIROUX, pode-se perceber que há concordância
com a concepção que PERRENOUD debate em seu livro A pedagogia na escola das diferenças:
fragmentos de uma sociologia do fracasso, ao observar que muitos problemas começam quando se
quer implantar uma “invenção” de ensino sem levar em conta as questões conjunturais do momento
em que se está vivendo102, desencadeando, dessa forma, resistência quanto ao novo.
Para PERRENOUD (2001), “o fato de cada um aceitar o olhar do outro sobre sua prática
não é suficiente para garantir uma verdadeira cooperação profissional”103; cada professor tem a
responsabilidade de trabalhar com sua turma, não se importando com os alunos da sala vizinha.
Aceitar o olhar de um colega no seu trabalho pode custar uma auto-avaliação, uma reflexão mais
profunda, e isso demanda tempo e, muito mais, mudanças na ação pedagógica, o que implica em
mudança na postura pedagógica que está instaurada.
PERRENOUD discute a questão da resistência ao trabalho coletivo destacando que
Além das resistências bastante racionais a um trabalho de equipe tão exigente (perda de tempo, indefinição na partilha das responsabilidades didáticas, perda de uma parte de identidade no trabalho), é preciso também contar com o medo do outro, do seu olhar, de seu julgamento, de seu poder, e o medo do conflito, o medo de perder o controle da relação pedagógica. Para assumir em equipe a gestão de um ciclo pedagógico, é preciso aprender a superar esses obstáculos. E, antes de mais nada, a recusar-se a negá-los ou projetá-los no outro! 104
Não se pode perder de vista que as relações do contexto educacional têm o respaldo das
relações do contexto social, marcadas pela competitividade, exclusão e individualidade nas formas
de trabalho. Assim, dentro da escola, muitas vezes, o antagonismo presente nas relações de trabalho
é um dos pontos de resistência, pois frente às novas propostas pedagógicas exigem-se mudanças as
quais, conseqüentemente, irão modificar aquilo que se tinha como sólido.
102 PERRENOUD, P. Os ciclos de aprendizagem: um caminho para combater o fracasso escolar. 2004, p. 208. 103 PERRENOUD, P. A pedagogia na escola das diferenças: fragmentos de uma sociologia do fracasso. 2001, p. 199. 104 PERRENOUD, P. op.cit., p. 188.
57
Nesse sentido, como as mudanças ainda serão experimentadas, causam medo e apego aos
velhos procedimentos e, portanto, resistência. O conceito de ciclo envolve trabalho coletivo,
partilha de idéias, sugestões e socialização de experiências, que causam medo, desencadeando
pontos de resistência.
Desta forma, outro ponto de resistência que é pertinente ressaltar envolve a questão trabalho
pedagógico coletivo que, segundo AMÂNCIO,
(...) é aqui entendido como um compartilhar, de fato, do projeto da escola de modo a assumir juntos desde a questão da gestão administrativa e financeira da unidade escolar até a aprendizagem e a avaliação de alunos, passando pela definição de conteúdos e procedimentos metodológicos mais adequados às novas gerações de educandos.105
Tais esclarecimentos oportunizam um olhar para a realidade educacional, quando no interior
das escolas o conceito de trabalho individual é superior à noção de formas de trabalho coletivo.
Cada um desenvolve sua prática a partir daquilo que elege como correto, o que consolida um
distanciamento entre os objetivos do ensino por ciclo e a formação integral do aluno, pois não existe
uma continuidade da história desse aluno, contada pelo professor, bem como não existe uma
continuidade do trabalho do professor de uma fase (ciclo) para outra.
Para PERRENOUD (2001), o professor tem receio de compartilhar informações porque
existe também a questão do julgamento do outro, que pode comprometer, nesse tipo de visão, a
postura pedagógica assumida por este professor, devido a uma política educacional que privilegia o
individualismo. A negativa ao trabalho coletivo pode ser um ponto de resistência, pois os
professores estão acostumados a tomar suas próprias decisões sem as interferências e o olhar do
outro. Desta forma, toda idéia de coletivo tem sido esfacelada, uma vez que cada um segue seus
próprios caminhos, sua concepção de mundo e sua formação.
105 AMÂNCIO, L.N.B. Escola Ciclada: mais que um desafio, uma conquista. In: Escola Ciclada de Mato Grosso: mais que um desafio, uma conquista. 2002, p. 64-65.
58
A proposta atual de ensino destaca uma escola que, por conta das exigências burocráticas,
favorece um modelo de trabalho individual que perpetua a falta de entrosamento da equipe
pedagógica e distancia a noção de grupo, o que pode, então, ser destacado como uma resistência.
Quanto à compreensão de um trabalho individual, SACRISTÁN observa que:
O individualismo profissional tem sido uma particularidade destacada da forma social de exercer o trabalho de professor (Lortie, 1975; Hoyle, 1989). Estilo dominante que se desenvolve ao mesmo tempo que se sabe da existência de uma socialização profissional nem sempre explícita entre companheiros, que não se elabora abertamente, ainda que os professores tenham esse estilo profissional predominantemente individualista, sempre existe uma filtragem através de estruturas profissionais coletivas. Isto é, enquanto os professores não trabalham isoladamente, tampouco serão mediadores isolados no currículo, e, de uma perspectiva libertadora, deve se acentuar essa mediação coletiva, dentro de mecanismos de racionalidade grupal nas equipes docentes 106.
Como se pode notar, de acordo com o autor não há o predomínio de um entrosamento entre
os profissionais da educação no que se refere ao desenvolvimento de uma proposta coletiva de
trabalho, o que pode ser identificado como um ponto de resistência dos professores e acaba por
prejudicar o desenvolvimento de práticas que poderiam favorecer o aluno, tanto na ação de
aprendizagem quanto na socialização com o seu meio e, conseqüentemente, no exercício da
competência profissional.
Tendo explicitado as bases que interferem no trabalho coletivo na escola, uma das questões
que não pode ser respondida neste momento, nem é intenção desta pesquisa, é se a proposta de
educação em ciclos alterará qualitativamente ou não a prática educativa na escola e, em caso
afirmativo, até que ponto. De todo modo, o que interessa é investigar se tal proposta acoberta com
um novo discurso a velha e tradicional prática pedagógica, levantando pontos de resistência quanto
à Escola Ciclada.
106 SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 2000, p. 195.
59
Muitas são as dificuldades encontradas para a implantação de propostas pedagógicas. Assim,
frente às políticas educacionais, não se efetua uma discussão mais profunda sobre o assunto e, ao
mesmo tempo em que a escola avança, resiste.
É no trabalho pedagógico do professor que podem ou não acontecer as mudanças, mas no
momento em que ele se presta a comportamentos de resistência, sem um repensar de sua prática,
está oferecendo o instrumento valorativo às formas de dominação e iniciando um processo de
resistência.
O professor, no seu fazer pedagógico, reproduz ideologias e, em alguns momentos, pode
transformá-las na superação das condições de exploração das classes trabalhadoras. Uma das
funções essenciais da escola é a formação do indivíduo. Nesta, o sujeito desenvolve sua capacidade
intelectual bem como a capacidade de direção, criação de novas concepções, novas visões e difusão
das mesmas. A escola, se bem utilizada, é o melhor meio de transformação ou conservação de uma
sociedade, dos seus costumes, cultura e moral.107
O professor pode agir tanto para a transformação da sociedade quanto para sua reprodução.
Há uma ênfase no intelectual como reprodutor da ordem vigente ou como representante da classe
dominante. Dessa forma, os conceitos de intelectual, sociedade civil, ideologia e hegemonia estão
diretamente interligados, e as reflexões constantes neste trabalho passam necessariamente por esses
pontos de análise.108
A resistência é um momento de conflito dentro do processo de aceitação ou negação de
propostas implantadas, as quais oferecem instrumentos que permitem aos professores resistir ou
superar concepção de mundo.
FREITAS (2003) considera que somente uma postura estratégica de resistência pode agir de
forma significativa na contraposição desta lógica fortemente instituída. Ele analisa que os ciclos
107 MAXIMO. A. C.. Os intelectuais orgânicos na educação escolar. 1987, p.150. 108 GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere, v. 2: 53.
60
podem se instituir como políticas de resistência, pois, de certa forma, concorrem de modo oposto à
exclusão formal que a escolarização historicamente tem praticado enquanto instituição seletiva. Os
ciclos,”(...) longe de fecharem portas, abrem possibilidades importantes de luta e resistência, desde
que revelemos essas lógicas e nos preparemos para enfrentá-las em articulação com os pais e os
alunos”.109
Assim, de acordo com o estudioso em foco, o ciclo, apresenta-se, também, como uma
política de resistência, numa possibilidade de contraposição à lógica instituída, na medida em que
coloca “o rompimento da seriação pela adoção de um novo articulador para os tempos e espaços da
escola, baseado no desenvolvimento da criança e em suas vivências”.110
2.4 Reformas educacionais fonte de resistência?
Neste contexto, são estudadas as mudanças das políticas públicas educacionais ocasionadas
pela Escola Ciclada, que vêm para pôr em xeque a lógica da seriação instaurada e muito
questionada no decorrer dos tempos.
SACRISTÁN (2000) enfatiza que existem poucos temas tão difíceis de abordar quanto o
das reformas educacionais, “(...) já que o termo é utilizado para propósitos muito diferentes,
cobrindo programas de ação de ordens muito variadas e de diversas orientações políticas e
109 Cf.FREITAS, L.C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. 2003, p.49. 110 Cf.FREITAS,, L.C. op.cit.,p.49.
61
pedagógicas”111 e ainda “(...) considerando a mudança numa dimensão pessoal” 112 que reflete
diretamente em novos trabalhos ou não.
GUSKEY (1986)113 parte da idéia de que os professores não são capazes de modificar a
sua conduta docente sem que estejam totalmente convencidos de que aquilo que irão fazer vá
repercutir positivamente nos alunos. A mudança pressupõe concepções diferenciadas sobre o
significado da ação pedagógica e, muitas vezes, assumir riscos gera inseguranças que podem afetar
profundamente as posturas frente a um novo sistema de ensino.
GARCÍA discute a questão da seguinte forma:
(...) as mudanças que implicam o assumir riscos, inseguranças(...) relativamente à ordem, disciplina e rendimento dos alunos(...) professores necessitarão de mais informação e tempo para introduzi-los. É nestes casos que se fala de resistência à mudança, para nos referirmos aqueles factores que dificultam aos professores a implementação de novas actividades e organização do ensino114.
A verdadeira transformação supõe a análise do desenvolvimento das ações até então
desenvolvidas e seus respectivos resultados como um processo histórico-social, a partir da
construção da prática coletiva, na busca de um ser autônomo e participativo.
Numa investigação com professores, NAVARRO encontrou cinco fatores que influenciam
na resistência à inovação:
• Insularidade artesanal – sensação que os professores têm de estar isolados, com pouca formação, pouco conhecimento científico, que determina a insegurança na execução, e falta de apoio; • Disfuncionalidade operativa - benefícios limitados que a inovação oferece: escassa eficácia das inovações, atitudes inadequadas dos alunos, problemas de ordem na classe; • Custos sensíveis diluídos - os custos percebidos são maiores que os benefícios; • Compulsividade do sistema - dificuldades do próprio sistema educativo: legislação, exigências dos programas, trabalho diário excessivo, falta de tempo;
111 SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 2000, p 50. 112 GARCIA,C.M. A formação de professores: para uma mudança educativa. 1998, p.48. 113 GUSKEY,T. (1986) Apud. Garcia, C.M. A formação de professores: para uma mudança educativa. 1998, p. 48. 114 GARCIA. C. M. A formação de professores: para uma mudança educativa. 1998, p. 49.
62
• Restrições instrumentais - escassez de materiais didáticos, espaços e mobiliário inadequados, etc115.
Esses fatores demonstram as dificuldades que os docentes têm, ao longo de sua trajetória
profissional, de se adaptarem às mudanças e inovações, que são, na verdade, um processo de
aprendizagem e desenvolvimento pessoal, sendo que a base desse conhecimento está na formação
do professor.
São situações que levam o profissional a uma crise de identidade, pontuada pela necessidade
da mudança, que não é mais uma opção pedagógica e sim uma imposição do sistema.
A dicotomia entre teoria e prática, entre aquilo que se sabe e aquilo que se precisa aprender,
pode criar resistência por parte dos professores, os quais não conseguem resgatar a dialeticidade
dessas dimensões, o que fortalece a resistência. Nesse processo, o medo de ousar não permite uma
reflexão crítica que oportunize a construção ou reconstrução de teorias e práticas inovadoras. Tudo
isso colabora para aquilo que Esteve116 “referencia como mal-estar docente”.
O processo de mudança, muitas vezes, propõe em assumir riscos, romper com modelos de
ensino até então tidos como universais. Isso implica na ação do professor uma certa comoção, o
qual pode em muitos casos se transformar em insegurança ou até mesmo levá-lo a resistir às
propostas a serem desenvolvidas na escola.
Ressalta-se que a mudança pressupõe modificações na estrutura física, material,
pedagógica, que ofereçam aos educadores os subsídios necessários à prática docente. Se essa
mudança não envolve esses pré-requisitos, então pode oportunizar as resistências, pois o professor
tem que se dividir em muitas funções para atender aos alunos, agindo como técnico improvisado e
desempenhando outras atribuições que se distanciam do fazer pedagógico;
115 NAVARRO, R. (1987) Apud. GARCIA, C.M. A formação de professores: para uma mudança educativa. 1998, p .49. 116 ESTEVE, J.M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (orgs.). Profissão professor. 1995, p. 97.
63
Já se viu que o professor faz muito mais do que as condições de trabalho permitem; já se viu que comparece no tecido social compondo o futuro de milhares de jovens que antes dele sequer poderiam sonhar. Mas existe um outro professor habitando nossas lembranças: um homem, uma mulher cansados, abatidos, sem mais vontade de ensinar, um professor que desistiu (...)117
Diante das dificuldades vivenciadas na prática diária, “a rotina e carga mental aparecem em
níveis preocupantes”,118 O professor assume muitas responsabilidades que contribuem para o
cansaço mental, ao lado do desânimo instaurado quanto às suas condições de trabalho. Vive sempre
na expectativa de melhorias; no entanto, com o passar do tempo e as novas exigências que a
sociedade elege como prioridades, tais melhorias não acontecem.
Ao professor cabe buscar cada vez mais conhecimentos, cursos, qualificações, anexando a
esse contexto as ações docentes, o que deflagra uma realidade bastante conflituosa, entre número de
alunos, questões salariais, atribuição de aulas e demais condicionantes que interferem na educação;
ele pode, assim, ser acometido pela síndrome de burnout 119. Há que se destacar, ainda, a
dificuldade dos profissionais da educação em compreender as propostas de educação oferecidas
pelas Secretarias, considerando a falta de articulação entre os docentes em tempos destinados a
estudos e reflexões pertinentes às mudanças. As inovações consagradas pela legislação, quando se
faz uso da prática pela prática, acabam por gerar conflitos e até mesmo pontos de resistência.
GIROUX entra no foco central da discussão que permeia a resistência no interior da escola,
buscando uma fundamentação teórica mais rigorosa. Buscando de super essa discussão, argumenta
contra a tentativa de categorizar um comportamento gerado pela resistência gera:
117 CODO, W.; MENEZES, I.V. (org.) Educação, carinho e trabalho. 1999, p. 237. 118 SORATO, L. ; PINTO, R.M. Burnout e carga mental no trabalho. In: CODO, W. Educação, carinho e trabalho, 1999, p. 282. 119 CODO, W.; MENEZES, I.V. O que é burnout? 1999, p.238. A síndrome de burnout é definida por Maslasch e Jackson (1981) como uma reação à tensão emocional crônica gerada a partir do contato direto e excessivo com outros seres humanos, particularmente quando estes estão preocupados ou com problemas. Cuidar exige tensão emocional constante, atenção perene, grandes responsabilidades espreitam o profissional a cada gesto no trabalho. O trabalhador se envolve afetivamente com os seus clientes, se desgasta e, num extremo, desiste, não agüenta mais, entra em burnout.
64
(...) a resistência como um construto teórico rejeita a noção positivista de que a categorização e o significado do comportamento é sinônimo de uma observação de uma leitura literal, baseada no imediatismo de expressão. Ao invés disso, a resistência precisa ser vista a partir de um ponto de partida teórico muito diferente, que associe a expressão do comportamento ao interesse que ele encarna120.
Ao se caracterizar a resistência no interior da escola como um dos fatores que interferem na
prática pedagógica, percebe-se que não existe no espaço escolar a busca por análises mais
profundas sobre a realidade social, ou seja, imediatizados pela necessidade de participar das práticas
impostas pelo sistema educacional, até como pré-requisito de inovação, muitos educadores são
absorvidos pelo processo sem se dar conta do que de fato estão realizando na prática docente ou,
pelo mesmo imediatismo, como tais propostas são direcionadas às escolas.
Analisando, ainda, o fato de que a resistência fornece um foco importante para as relações
dentro da escola, o qual é, assim, refletido na sociedade, é preciso buscar os instrumentos que
podem permear uma compreensão, no interior da escola, dos processos de políticas educacionais, ao
lado da prática docente numa visão de trabalho coletivo.
Colocando em debate a formação do professor, arrolamos, nesta discussão, HERNÁNDEZ
(1998), que no seu texto A importância do saber como os docentes aprendem faz uma análise crítica
de como a formação interfere na aprendizagem dos mesmos, de suas relações sociais e de como isso
se reflete na sua prática, contribuindo de forma substancial na resistência quanto a novos trabalhos,
sendo que
A atitude de resistência dos professores em relação à aprendizagem não se deve somente a sua trajetória biográfica pessoal e profissional (...) a consideração social da sua profissionalização e a formação que receberam também são importantes fatores de primeira ordem para explicar as atitudes de reação mencionadas121.
120 GIROUX, H. A. Teoria crítica e resistência em educação – para além das teorias de reprodução. 1987, p.146. 121 HERNÁNDEZ. F. Formação docente: O desafio da qualificação cotidiana.1998, p. 09-13.
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No desenrolar de seu texto, HERNÁNDEZ considera que os professores são frutos de sua
formação histórica e social. Na extensão de sua ação profissional incorporam sua cultura, bem como
valores morais e éticos.
As capacitações, por sua vez, nem sempre oferecem a formação adequada para a junção
escola/sociedade/tecnologia/informação, o que se configura num processo fragmentado, diante de
novas informações e acaba reforçando a visão compartimentada, funcional do trabalho, separando
teoria e prática, e o docente vai basear suas ações nas experiências e no senso comum. Essa postura
compartimentada pode levar o professor a ter problemas em aceitar novos desafios profissionais,
novas responsabilidades.
A busca de novos caminhos significa compreender que “(...) o objetivo de qualquer
programa de formação de professores tem de ser o de ensinar a ‘competência de classe ou
conhecimento do ofício’ de forma a que os professores se tornem sujeitos peritos na tarefa de
ensinar (...)”122. Além disso, a formação inicial e a continuada de professores buscam,
paralelamente às outras esferas da educação, mudanças substanciais que respondam às necessidades
da realidade histórico-social que se está passando.
Ainda sobre a importância da formação dos educadores, lembra LIMA que
O debate em torno do tema “formação de professores” representa um dos eixos de referências das preocupações no campo educacional, componente indispensável nos processos de reforma dos sistemas de ensino e objeto fundamental de investigação científica. Grande parte das preocupações e dos temas educativos conduz à consideração do trabalho e da formação dos professores, assim como projetam, sobre eles, um enorme conjunto de aspirações e de expectativas, indicadas como condições da melhoria da qualidade do ensino123.
A formação continuada do professor tem muito a contribuir na construção do saber; este
entendimento favorece a compreensão e articulação dos processos pedagógicos vistos na lógica
122 GARCIA, C.M. A formação de professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica de aprendizagem.1999,p.80. 123 LIMA,S. M. Aprender para ensinar, ensinar para aprender: um estudo do processo de aprendizagem profissional da docência de alunos-já-professores .2003, p. 13.
66
individual de cada unidade escolar, como também a compreensão da resistência, pois a discussão
não se efetiva num cenário coletivo, num projeto amplo e, sim, dentro dos muros da própria escola.
Assim, tal formação não supera as dificuldades existentes, porque analisa somente um segmento,
uma determinada realidade, não buscando uma compreensão mais ampla.
GIROUX busca uma fundamentação mais rigorosa e intelectual, que supere tais análises.
Segundo ele, necessariamente temos que
(...) associar o comportamento analisado com uma interpretação fornecida pelos sujeitos que demonstram, ou buscam profundamente nas condições históricas e relacionais específicas a partir das quais o comportamento se origina124.
O desenvolvimento profissional está conectado ao desenvolvimento pessoal e, nesse sentido,
torna-se interessante que o professor possa refletir sobre os componentes de sua formação, até como
meio de superar as contradições existentes no interior da estrutura educacional. Não basta dizer que
não se concorda com esse modelo de educação se não há clareza dos objetivos que se deseja atingir.
Um dos muitos entraves à mudança parece estar exatamente na falta de clareza do papel que
esta educação representa tanto para o professor quanto para o aluno.
Entretanto, cabe ressaltar que a formação continuada foi uma conquista dos profissionais
da educação, vista como fundamental e necessária para a tão almejada qualidade do ensino. Dessa
maneira, não podemos negar sua contribuição ao trabalho docente, embora não se possa, ainda,
negar a necessidade de uma retomada de seus pressupostos, para servir de instrumento de
contribuição ao ensino e à aprendizagem.
CAVACO destaca, a propósito da necessidade de uma formação continuada e reflexiva,
que
124 GIROUX. H. Para além das teorias de reprodução: teoria crítica e resistência em educação. 1986, p. 149.
67
(...) mal-estar profissional / frustração / desânimo / descrença / ceptismo/ fechamento à mudança e às possibilidades de inovação podem tornar-se um ciclo vicioso e justificar a alienação e um progressivo desinvestimento (...) Ao modelar a sua identidade profissional o professor tende a apenas a se fixar cientificamente nos saberes que domina e/ou nos que são veiculados por manuais e programas, tornando-os estáticos e dogmáticos125.
A partir das idéias de CAVACO, percebe-se que o professor ainda não consegue
desvincular-se da prática internalizada pela sua formação inicial, ou seja, transporta para seu
cotidiano os saberes que lhe foram repassados, reproduzindo valores como absolutos, sem o
exercício da reflexão e sem a devida contextualização que a escola precisa ter com a realidade
social e negando, desta forma, as mudanças. Por resistir a mudanças, pelo medo da busca de um
novo modelo de trabalho pedagógico, é possível que o educador caia no pessimismo pedagógico, no
isolamento do grupo, o que oferece campo fértil à resistência.
A análise da formação do professor remete-nos a uma compreensão de que não é possível
pensar em trabalho coletivo quando cada um deseja ter uma identidade a partir do que já conhece,
ou seja, dos saberes que já possui, tornando tais saberes em verdades prontas e acabadas. O
conhecimento só poderá ter expressão significativa quando se tornar instrumento de inovação e de
aprendizagem. E este seria um caminho bastante pertinente aos educadores que se propõem a
mudança, ou seja, “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a
ser”126.
Importante destacar que, a propósito da necessidade de inovação da prática, existe a
evolução diária que antecede o conhecimento, ou seja, a formação histórica e o avanço do
conhecer.
DELORS afirma que a educação é produto de uma dialética com várias dimensões:
125 CAVACO, M. H. Ofício do professor: o tempo e as mudanças. 1995, p. 165. 126 DELORS, J..et.al. Educação: um tesouro a descobrir - Relatório para a UNESCO da comissão Internacional sobre educação para o século XXI.2000.p.101.
68
Se por um lado, implica a repetição ou imitação de gestos e de práticas, por outro é, também, um processo de apropriação singular e de criação pessoal. Junta o conhecimento não formal ao conhecimento formal, o desenvolvimento de aptidões inatas à aquisição de novas competências. Implica esforço, mas traz também a alegria da descoberta. Experiência singular de cada pessoa ela é, também, a mais complexa das relações sociais, dado que se inscreve, ao mesmo tempo, no campo cultural, no laboral e no da cidadania127.
A finalidade de qualquer ação educativa está pautada na produção de novos conhecimentos,
que acontece por meio da teoria/prática. Conhecimentos esses que contribuem para transformar uma
dada realidade e, conseqüentemente, inovar as formas de existência dos indivíduos.
Para que tal expressão possa ganhar o alcance pretendido é preciso pensar no educador
como um ser vinculado ao seu contexto, com um saber que retrata sua cultura, sua formação, mas,
acima de tudo, um ser que precisa estar aberto às inovações, na busca de um agir mais conectado
com a realidade social, privilegiando então a escola como um espaço de luta, de construção e de
formação intelectual, sem a mediocridade à qual tantos resumem a educação, numa síntese de
reprodução e perpetuação de verdades prontas e acabadas.
127 Op.Cit.,101.
69
CAPÍTULO 3 - O DISCURSO DOS PROFESSORES SOBRE A ESCOLA CICLADA DE
MATO GROSSO
No decorrer desta análise lançaremos mão de outros autores além dos já arrolados no
referencial teórico no intuito de detectarmos com maior precisão as resistências dos professores
quanto à Escola Ciclada de Mato Grosso.
A rotatividade das propostas de ensino, ao lado da descontinuidade nos programas e
projetos, aponta para o esfacelamento destas propostas, bem como para o descrédito por parte do
professor frente a sua implantação e contribuição para o ensino, o que acaba oferecendo suportes à
resistência.
3.1 - A política de implantação do Ciclo na visão do professor: fragilidade
As mudanças sociais, políticas e econômicas são os principais fatores para a implantação de
novas políticas educacionais, em nível nacional e mundial. Quando essas reformas aparecem em
momentos de instabilidade econômica e política quando são olhadas com desconfiança pelos
professores, pais e comunidade em geral,128 praticamente estão fadadas ao insucesso ou à
resistência.
Um dado que consideramos significativo é como o professor reagiu a implantação da Escola
Ciclada nas escolas estaduais do Mato Grosso. A impressão que se tem, pelos relatos dos
entrevistados, é que a vida do professor “virou de cabeça para baixo”. Em alguns casos, mesmo
pertencendo à rede pública estadual e tendo participado dos cursos de capacitação, o docente não
128 ESTEVE, J.M. Mudanças sociais e função docente.In: NÓVOA, A. (org.). Profissão professor. 1995, p.94.
70
sabe como aconteceu a implantação, de onde veio e para que veio e alega que esses cursos não
foram suficientes para sanar as dúvidas sobre a escola organizada por ciclo de formação.
O apego à nomenclatura parece ser um argumento do senso comum. No entanto, os
educadores revelam problemas mais profundos, que muitas vezes ficam ocultos, devidos à não
aceitação da proposta implantada. A negação da mudança da política de educação pela Escola
Ciclada não está apenas no âmbito da negação do nome e, sim, da negação da nova política que está
sendo implantada e que afeta consideravelmente o pedagógico e o administrativo no interior das
escolas.
Rodrigo era diretor de escola na época da implantação da Escola Ciclada; participou de
todos os cursos de capacitação por considerar importante compreender a nova forma de conceber o
ensino. Tem uma visão bem clara de como ocorreu a transição da proposta de ensino com o
professor e a equipe administrativa da escola.
Na época, foi implantado o início da Escola Ciclada, e as escolas estavam totalmente desesperadas pra receber o programa novo. Tanto na parte administrativa, quanto na parte pedagógica, o programa veio e nós começamos a trabalhar com ele sem saber que tipo de material trabalhar, como avaliar, que tipo de nota seria dada, uma confusão. Então nós ficamos assim, tentando trabalhar um programa novo de uma forma velha, que é a forma que nós sabemos trabalhar. Com a parte administrativa, a forma de documento, para nós foi um problema, na passagem de nota para relatório tínhamos bastante problema, aí recebíamos as transferências por nota e tínhamos que passar para relatório, e o que nós já tínhamos recebido tinha que fazer todas as alterações.129
O entrevistado relata com propriedade suas angústias e as dos professores, na época da
implantação da Escola Ciclada. Angústias essas que, segundo ele, fazem-se presentes no interior da
escola até hoje, em muitos casos, pois os professores, embora tenham participado do curso de
preparação para a escola organizada por ciclo de formação, continuaram sem entender a proposta, 129 As entrevistas dos participantes foram transcritas de forma fiel, reproduzindo a linguagem coloquial, na tentativa de não maquiar e não interferir nos resultados. Buscamos a sustentação, ainda, na Análise do Discurso . Esta considera a linguagem como simbolização do real, ainda que tal simbolização possa ocorrer em linguagem de qualquer natureza (...) imagens, som, letra. Orlandi, E.P. 2002, p.62.
71
sentindo-se fora do contexto e, com base nos relatos, percebemos neles a presença de sintomas de
“insalubridade artesanal “(...) sensação que os professores têm de estar isolados, com pouca
formação, pouco conhecimento científico que determina a insegurança na execução e falta de
apoio.”130
A resistência dos professores nesse momento pauta-se pela falta de informações necessárias
para as atividades docente e administrativa, capazes de romper com os modelos de ensino até então
vivenciados pela escola.
(...) aquela angústia assim foi tremenda, os professores ficaram chateados que não iam a lugar nenhum, e essa angústia, elas duram por muito tempo e hoje tem professor angustiado com a Escola Ciclada, hoje ainda tem (...) participei dos cursos com os demais professores para conhecer, mesmo sendo diretor, eu estava angustiado de ver esse programa (...) aí deixei a direção, disse: vou largar tudo isso aqui e vou assumir uma sala de aula pra eu conhecer de perto o programa (Rodrigo).
De fato, Rodrigo foi para a sala de aula no início do ano letivo de 2002, mas, como sempre
trabalhou com a 4ª série, optou por uma turma de 1ª fase do 2º Ciclo, por ter mais afinidade. Ele
relata as múltiplas reações131 dos professores quanto à nova proposta de ensino. Acredita que a
educação precisa trilhar outros caminhos, mesmo que seja a Escola Ciclada.
Com a implantação da escola organizada por ciclos os professores entraram em conflito.
A gente percebeu que o pedagógico ficou muito abalado, o professor angustiado, até uma certa revolta, vários casos (...) resistência quanto ao ciclo não houve revolta, houve indignação, eu fiquei assim indignado, mas tentei ser um conciliador aqui dentro da escola, não querendo acreditar exatamente na Escola Ciclada, porque eu não conhecia, mas querendo acreditar que era necessário que algo de novo foi feito e esse algo poderia ser a Escola Ciclada (...) eu via a angústia do grupo e estava angustiado também, revolta
130 NAVARRO, R. Apud GARCIA, C.M. A formação do professor para mudança educativa. 1998, p. 49. 131 Segundo FERREIRA: REAÇÃO – 1.ato ou efeito de reagir. 2. Uma ação qualquer por meio de outra ação que tende a anular a precedente. 3. Comportamento de alguém em face de ameaça, agressão, provocação, etc.4. Oposição, luta, resistência.5. oposição conservadora que tende a impedir qualquer inovação no campo das atividades humanas.6.Sistema político extremamente conservador, contrário às idéias que envolvem importantes transformações políticos- sociais. 7. Despotismo, tirania. 8. Fís. Força que se opõe a outra (...)
72
e resistência também, então eu disse: vou tentar reverter esse programa , vou tentar conhecer (...) eu acho que algo de novo tem que ser feito. Porque não Escola Ciclada? Um programa novo pode ser criticado logo de cara, eu falava isso para minhas colegas (...) Mas precisa ser implantado com a colaboração dos professores. Acredito que só daqui uns dez anos pra saber se deu certo ou não deu certo.
Pelos relatos do educador, percebe-se muita confusão quanto à implantação da Escola
Ciclada, pois revela problemas relacionados aos pais e professores.
Coloca-se como mediador dos conflitos existentes no interior da escola em que trabalha, não
por acreditar totalmente na Escola Ciclada em si, mas por acreditar que algo deve ser mudado, deve
ser construído. No entanto, ressalta que existe um pessimismo por parte dos colegas frente às
mudanças, o que pode ser compreendido como “o desacordo ou cepticismo em relação à capacidade
real de mudança (...) pensam que as reformas deixarão a descoberto as suas insuficiências no campo
dos conteúdos(...)” 132
Novamente a idéia do novo entra em choque com a prática docente, pois o professor não se
reconhece como sujeito de transformação, conforme se pode verificar com os relatos angustiados de
Rodrigo. Pode-se, assim, perceber que este professor faz parte do grupo de educadores que queriam
e querem mudanças na educação, entretanto, quando estas mudanças acontecem, surge à reação
contrária à inovação, pautado pelo desconhecimento da nova política de educação proposta.
Agir em nome do que se está construindo, trabalhar em uma realidade cujo fim não se sabe o
que significa, mas ciente, sobretudo, de que existe a necessidade da construção e não reprodução do
que está imposto secularmente. A mudança proporciona esse tipo de comportamento, como o do
pesquisado, que se compromete com o estudo, a busca de uma compreensão e de uma ação que
contribua para a melhoria dos processos ensino e aprendizagem.
Sílvia, apesar de ter participado de todos os cursos de capacitação, mostra-se alheia a todo o
processo de implantação da Escola Ciclada: “Para começar, quero saber quem lançou esta Escola
132 ESTEVE, J.M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (org.) Profissão professor. 1995, p. 110.
73
Ciclada. Eu não sei de onde surgiu. Apareceu assim do nada. Para mim foi assim. Tem que buscar
de onde surgiu. Como apareceu e o que propõe”.
O relato da professora é muito marcante. Pode-se constatar que ela pouco se importa com
as políticas públicas implantadas dentro do espaço escolar, “tanto faz, tem que trabalhar mesmo”.
Para ela, não mudou muita coisa, só houve um grande transtorno para se adaptar às novas normas
de trabalho (diários, cadernos de campo, relatórios e até mesmo a nomenclatura).
O tipo de relação que Sílvia estabeleceu com a escola indica total falta de informação e, até
mesmo, resistência quanto ao novo trabalho. Está no ativismo, na sala de aula, deixando de lado um
trabalho específico de auto-formação.
Apesar de trabalhar nas redes estadual e municipal de ensino, Sílvia ainda não sabe o que é
Ciclo. Para ela, “Veio de pára-quedas”, muito embora tenha participado dos cursos de 1998 e 2000
oferecidos pela SEDUC, bem como de outros proporcionados pela SEMEC133. Justifica-se dizendo
que os cursos foram muito confusos e a deixaram ainda mais confusa e que ”As pessoas da SEDUC,
que deram o curso, deu a impressão que também estavam confusas (...) a avaliação não explicou
direito. Ficou confuso. Pelo menos para os professores ficou da mesma forma”.
A professora Sílvia, embora com sua compreensão fragmentada do processo, tenta elaborar
formas de associar o ciclo de formação humana com a realidade da sala de aula, destacando que é
Como organizar a sua casa, você sabe onde está cada coisa, agora se é a empregada, você não sabe onde estão as coisas. E a escola é a mesma coisa, se todos sentarem e desenvolver a proposta vai ser diferente e se apenas um grupinho ficar pensando não vai sair do papel e ninguém sabe nada e não desenvolve o que precisa. Hoje se desenvolvem apenas 5% do que deve ser trabalhado.
Ela faz severas críticas à implantação da escola organizada por ciclo de formação, por não
ter envolvido os professores no processo de elaboração da proposta. Relata, ainda, que falta muito
133 Secretaria Municipal de Educação e Cultura
74
para a real efetivação do que a Escola Ciclada propõe, pelo fato de que muitos professores não se
sentem parte do processo.
A professora se posiciona da seguinte forma com relação a propostas de trabalho. (...)
mesmo que você não possa organizar a sua casa (...) é preciso ter uma noção de onde estão as
coisas, ou seja, não podemos centralizar tudo em nossa pessoa, conforme o exemplo que ela mesma
coloca. Mas não significa que temos que ficar alheios ao que acontece.
Nas palavras de Sílvia percebe-se que ela não gostaria de receber uma proposta já pronta, ao
mesmo tempo em que critica a falta de participação dos professores. Acrescentem-se, ainda, os
vínculos que possui com Estado e Município, o que dificulta a sua formação, considerando a dupla
jornada de trabalho um entrave para a realização trabalho do coletivo, tão importante no
desenvolvimento do processo pedagógico. Evidencia-se dessa forma a necessidade de incorporar à
concepção de ciclo estudos continuados, o que nos leva a confrontar essa realidade com o conceito
de DORIM134: (...) a resistência comumente se manifesta pela morosidade no trabalho ou pelo
obsentismo”.
Para Beatriz, a Escola Ciclada foi implantada com curso de capacitação apenas para os
professores da 1ª fase e os demais ficaram sem saber o que fazer, fato que gerou muitos transtornos.
Em sua visão,
Quando entramos na Escola Ciclada nós só tivemos acompanhamento e um estudo mais detalhado na 1ª fase de como seria a proposta de trabalho, agora as outras fases, 3ª fase do 1ª Ciclo e o 2º Ciclo de uma forma geral, saímos um ano da Escola Seriada e passamos para Escola Ciclada. Não tivemos nem um preparo, nem uma reunião, um, digamos assim (...) encontro para estudar a proposta em si ou um curso como trabalhar a Escola Ciclada, já que é por fases. Não tivemos este preparo.
Na afirmação de Beatriz, aparentemente redundante, a falta de capacitação e de
acompanhamento evidencia a fragilidade da implantação da Escola Ciclada, o que poderia melhor
134 DORIM, E. Dicionário de Psicologia. 2000, p. 248.
75
constituído num grande naufrágio de todo o processo. Segundo os relatos da professora ela não fez
nem uma capacitação direcionada à Escola Ciclada, o que é um grande equívoco, uma vez que
participou do encontro no pólo de Rondonópolis em 2000 e também de cursos de capacitação
desenvolvidos no CEFAPRO.
Na realidade, então, podemos verificar que a docente encontra-se com dificuldade de
adaptar-se ao novo sistema de ensino e sente falta de um apoio pedagógico para o desenvolvimento
dos trabalhos, uma vez que para ela a SEDUC não deu suporte suficiente para o desenvolvimento
da proposta.
O impacto com a implantação de uma nova política educacional ficou evidente, e a queixa
da professora foi relacionada à falta de capacitação dentro de uma nova política que se estava
implantando.
(...) fiz o curso do CBA, mas para o início do ciclo não lembro, só lembro que nós fomos para casa de férias e quando retornamos no ano seguinte já era ciclo (...) então saímos do Seriado e fomos para o ciclado assim (...) nós do 2º ciclo ficamos assim sem curso, ficamos assim, vamos dizer, assim, a desejar.
Beatriz faz críticas quanto à inexistência de cursos preparatórios para a Escola Ciclada,
desconsiderando o início da proposta do ciclo, que veio juntamente com a implantação do CBA.
Proposta que se articula em torno de uma mudança, de ação política e concepção pedagógica, que se
instaurava na educação no estado de Mato Grosso e em outras partes do Brasil.
Existe um apego com os cursos de capacitação, buscando nesses encontros as fórmulas de
desenvolver o trabalho docente; ela reforça, ainda, que a mudança aconteceu de forma arbitrária.
Podemos destacar nos relatos da professora afirmações de que
(...) a mudança causou um grande transtorno porque o professor foi criado, educado, preparado para trabalhar outro tipo de concepção de escola: a seriada, e prevalece muito o tradicional. (...) Para o 2º ciclo e para a 3ª fase do 1º ciclo não foi oferecidos estudo, encontros nem nada. Vieram lançaram uma cartilha de cima para baixo e isso não dá
76
certo! A proposta veio “ou siga ou siga”. Não deveria ter sido imposta e sim construída. Consultar os professores e depois mudar. (...) A Escola Ciclada não vai durar muito tempo, ela vai acabar, então, eles não põem fé que ela vai prosseguir então continuam trabalhando da mesma forma esperando ela se extinguir.
Em vários momentos da entrevista Beatriz afirma, como os demais entrevistados, a
necessidade da construção da Escola Ciclada. Queixa-se de que a imposição foi uma das grandes
falhas, “(...) não houve diálogo (...)”. A insistência em dizer que não houve diálogo e que a
implantação foi imposta é um forte indício de que há resistências quanto à implantação do ciclo de
formação humana.
Além desse caráter de negação de forma velada, em vários momentos da entrevista a
professora deixa transparecer que esse tipo de escola tem “(...) prazo de validade (...)”. A expressão
reforça a pouca credibilidade, por parte da professora, no que se refere à consolidação da Escola
Ciclada.
Paula, por outro lado, coloca-se inteiramente a favor da Escola Ciclada, mas considera que,
se ela tivesse sido implantada de outra forma, teria dado menos transtorno para todos os envolvidos:
(...) como ela foi colocada para nós, muitos professores, eles não tomaram conhecimento, mas não se inteiraram da Escola Ciclada em si. Na verdade, a Escola Ciclada veio para atender a parte social da população, e os alunos necessitam desse atendimento, só que muitos professores estão muito tradicionais. Como não teve curso suficiente eles continuaram assim. (...) não foi pensado que para fazer a Escola Ciclada precisa ver o espaço físico. A gente tem que pegar as cadeiras e ir para o corredor da escola (...)” (...) É! o ciclo foi implantado assim, deixando muito a desejar (...) têm muitos professores que até hoje fica assim : o ciclo é (...) para não reprovar! Ficou esse chavão, para não reprovar.
Paula demonstra que grande parte dos professores está preocupada com o aspecto da não
reprovação, e o ciclo passa a ser um entrave para esse problema. Fica evidente que muitos ainda não
conseguiram se libertar da avaliação como instrumento de poder frente aos alunos. No entanto, na
77
proposta de ensino por ciclos existe a prática da avaliação a serviço de uma pedagogia participativa
e democrática para todos, a qual os professores ainda não conseguiram compreender e prendem-se a
chavões, na justificativa de oposição à mudança e revelando, assim, pontos de resistência.
Na verdade, segundo os relatos desta professora, existe um trabalho com o nome de Ciclo,
mas no interior da sala de aula e da prática pedagógica não se tem clareza do que se faz,
evidenciando-se uma prática alheia até mesmo à proposta da Escola Ciclada. Isso significa que o
que se efetiva é um ensino seriado, o qual reforça modelos tradicionais que têm na avaliação a
segurança da aprendizagem. As dificuldades que os professores apontam, aliadas à falta de
formação, vêm contribuindo para que a proposta não alcance os objetivos propostos na sua essência.
É possível perceber, inclusive nos relatos dos docentes, pautados pelo apego ao já
conhecido e à mesmice, que há uma forte tendência para a universalização das culturas, uma vez
que o modo homogêneo e repetitivo de transmissão de valores, por meio de formas estereotipadas,
na grande maioria das situações, impõe determinadas culturas.
Outra entrevistada, Ana se posiciona-se da seguinte forma quanto à implantação da Escola
Ciclada:
A Escola Ciclada caiu assim de pára-quedas. De repente. Como aconteceu, pegou muita gente despreparada. Se eu não estou enganada não houve preparação, e tinha que implantar da noite para o dia. Implantação no meio do trabalho, assimilar tudo isso que tinha que ser mudado. Relatório, diário, mudança no trabalho em sala de aula, não foi fácil. De repente, implantar dentro de uma imposição. Na época, foi colocado assim: se a escola não aderisse ao projeto, tinha que fazer um relatório de uma coisa que você não conhecia, como dizer que não era bom? Como fazer o relatório de uma coisa que você não sabe o que é? Então foi implantada a nomenclatura.
Aponta ainda outro problema: (...) Quando isso aconteceu, eu achei muito complicado, até mesmo por causa da estrutura familiar, mesmo. As crianças achavam que como não tinha mais prova, não tinha nota, não precisavam estudar.
78
Para a professora Ana, a implantação do ciclo foi uma arbitrariedade, o que parece ser
consenso da maioria dos entrevistados. A mudança de uma cultura de trabalho até então vigente
gera comportamentos e atitudes de defensiva por se tratar de ameaça ao já instaurado.
Nesse momento de mudança a escola aderia à proposta ou justificava o porquê da não
adesão e apresentava outra proposta de trabalho. No caso das escolas dos seis entrevistados, todas
aderiram à proposta da Escola Ciclada.
Entretanto, nesse mesmo período, muitas críticas já existiam quanto ao ensino seriado, nos
debates de educadores, e cobravam-se das Secretarias de Educação propostas mais condizentes com
a realidade do aluno.
Assim, nos relatos de Ana, um dos pontos de resistência está na parte administrativa e
burocrática da proposta, visto que os professores encontraram muita dificuldade em se adaptar às
exigências administrativas, bem como falta de conhecimento de como manusear a documentação.
Não houve uma preparação de apoio para essa etapa do processo, o que veio causar insatisfação
para a categoria. Destacamos que “mudanças nas estruturas administrativas envolvem condições do
docente de desempenhar de forma satisfatória o seu trabalho pedagógico (...)”.135 Existem, na
concepção dos professores, dificuldades quanto à escrituração e, nesse ponto, afirmam que o ciclo
mudou somente no nome, pois as formas de registro continuam sendo as do sistema seriado.
Valéria evidencia que também encontrou grandes dificuldades quanto à nova forma de
trabalhar, apesar de estudar muito.Para ela, as
(...) implicações na parte administrativa e pedagógica quanto à implantação foram muitas. Quando foi implantado, a equipe da escola acompanhou todo o processo e as dificuldades foram muitas. Não foi fácil. Desde 2000 nós estudamos tudo, tudo sobre a Escola Ciclada. Chamamos a comunidade e estudamos muito. Temos tudo arquivado aqui na escola, a diretora chamava todo mundo para estudar. A base teórica a escola estudou tudo.
135 COUTINHO, R.M.T. Formação do professor - formador: desafios e perspectivas de mudanças. 2002,p. 91.
79
Por esse relato pode-se entender que a escola organizou-se no sentido de estudar e
compreender a proposta. Buscou formas para motivar os professores por meio do estudo
sistemático. Não ficou somente na abstração e no “achismo”, e envolveu a todos. Verifica-se
também o envolvimento do gestor escolar, convidando a comunidade para conhecer as mudanças
que iriam acontecer na escola. Talvez por procedimentos assim, esta escola tenha recebido a
proposta com menos resistência e os professores se inteirado mais da intenção da escola ciclada.
O relato da professora Valéria demonstra a participação do coletivo na escola onde ela
trabalha, a preocupação em construir uma proposta de ensino inclusiva, que possibilite a formação
do aluno sem os traumas da escolarização tradicional.
Além das dificuldades apresentadas pelos sujeitos desta pesquisa, destaca-se a própria
burocracia do sistema escolar, geradora de resistência à mudança; mas, mesmo diante dos
problemas, em meio a processos de ruptura e redirecionamento de políticas públicas, é possível
afirmar que já existe, pelo menos, uma preocupação por parte dos profissionais da educação com
essas mudanças, o que nem sempre representa um aval a elas.
3.2 - Ciclo de vida X ciclo profissional: distanciamento e falta de identidade quanto à Escola
Ciclada
Com o desenrolar da pesquisa sentimos a necessidade de fazer um estudo para saber o ciclo
de vida e o ciclo profissional dos professores da rede estadual de Rondonópolis que estão atuando
em sala de aula dentro do 1º e 2º ciclos.
A preocupação em buscar a idade dos professores da rede estadual de ensino de
Rondonópolis, para analisar como está o ciclo de vida desses profissionais e como isso interfere no
80
trabalho, deve-se ao fato de ter sido recorrente, nas entrevistas, a interferência dos fatores tempo de
trabalho e idade dos profissionais inseridos nesta pesquisa. Dessa maneira, consideramos a trajetória
de vida desses professores, uma vez que “enfrentam circunstâncias de mudança que os obrigam a
fazer mal ao seu trabalho”136.
Pesquisamos 35 (trinta e cinco) escolas da rede estadual de Rondonópolis, sendo que apenas
23(vinte e três) escolas responderam nosso questionário. Portanto, 65.71% constituem a amostra
deste levantamento, sendo que 34.28% das escolas não responderam o formulário137. Os dados
obtidos figuram no quadro abaixo.
Quadro 06 - Idade dos professores da rede estadual em Rondonópolis-MT
IDADE DOS
PROFESSORES
NÚMERO DE
PROFESSORES
% ENTREVISTADOS
20-30 22 7.53
31-40 71 24.1 03
41-50 152 52.05 02
51-60 47 16.09 01
TOTAL 292
Na rede estadual de educação de Rondonópolis cerca de 7.53% dos professores estão na
faixa etária de 20 a 30 anos. Entre 31 e 40 anos têm-se 24.31%; o maior número de profissionais
encontra-se na faixa etária de 41 a 50 anos, atingindo, 52.05%. Com a idade dede 51 a 60 anos estão
16.09% dos profissionais.
136 ESTEVE, J.M. Mudanças sociais e função docente. In: NÓVOA, A. (org.) Profissão professor. 1995, p. 97. 137 Contamos com o auxílio da Assessoria Pedagógica de Rondonópolis para a realização da pesquisa.
81
Como fica evidenciado no quadro 06, dos seis entrevistados, 03 (três) encontram-se na faixa
etária de 31-40 anos, 02(dois) na de 41-50anos e 01(um) na de 51 - 60 anos.
HUBERMAN138 e SIKES139, pesquisando a vida profissional dos professores, observaram
que eles passam por fases de transições, sendo que na maioria dos casos isso afeta
consideravelmente suas carreiras.
Estudando esses autores, verifica-se que os mesmos fazem uma análise das etapas/fases
pelas quais passam os professores, e essa análise serviu de base para a que ora apresentamos, de
acordo com os dados desse estudo e a realidade dos profissionais da rede estadual de ensino de
Rondonópolis.
A primeira fase dos 20 aos 30 anos, é a etapa da exploração das possibilidades e da
preocupação com o domínio dos conteúdos. Caracteriza-se, também, por ser a fase de socialização
profissional.
Dos 31 aos 40 encontram-se os professores na fase de transição: é quando atingem a
estabilidade pessoal e profissional ou buscam novos empregos. É nesse momento da carreira que se
interessam mais pelo ensino que pelo conteúdo, possuindo grande capacidade física e intelectual,
como também energia, ambição e confiança pessoal.
De 41 a 50 anos é a fase da maturidade, adaptando-se o professor ou não, às novas funções
na escola e no sistema educativo. Nessa fase, os professores mantêm princípios e costumes da
escola, pois sobre eles recai muita responsabilidade e por esse motivo acreditam que de fato devem
assumir responsabilidades. No entanto, isso não se configura como uma generalização.
A última fase, dos 51 aos 60, pode ser compreendida como preparação para a jubilação, ou
seja, os educadores tornam-se maleáveis, flexíveis em relação aos alunos. Nesse período preparam-
se para a aposentadoria.
138 HUBERMAN,M. In: NÓVOAA. (org.) Vidas de Professores. 1997,p. 47. 139 SIKES, P. 1985. Apud GARCIA,C.M. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto, 1999, p. 63.
82
Considerando os dados do quadro e observando que os professores da rede estadual de
ensino em Rondonópolis estão situados em maior número na faixa etária de 41-50 anos de idade, o
que revela-se para nós a possibilidade de se fazer uso da experiência desses educadores para as
novas propostas de ensino; ou, ao contrário, pela experiência adquirida ao longo da trajetória
profissional, eles podem revelar pontos de resistência quando da apresentação de propostas
inovadoras.
Segundo dados obtidos na Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso, há uma
estimativa de que, nos próximos 10 anos, 50% dos professores estarão aposentados140, o que nos
leva a crer que a rede estadual de educação está caminhando para o jubilamento dos seus
profissionais. Vale ressaltar que os entrevistados enquadram-se nas perspectivas diagnosticadas.
Para melhor analisar os dados colhidos sobre o tempo de trabalho dos professores
entrevistados e seus relatos, há a necessidade de fazer uma breve discussão do ciclo profissional,
segundo estudos realizados por HUBERMAN.
Quadro 07 - ciclo de vida profissional dos professores segundo HUBERMAN·141
ANOS DE CARREIRA FASES/ TEMAS DA CARREIRA
1-3 Entrada, tateamento
4-6 Estabilização, Consolidação de um repertório pedagógico
7-25 Diversificação,”Activismo Questionamento
25-35 Serenidade, Distanciamento afetivo Conservantismo
35-40 Desinvestimento
140 SEDUC. Superintendência de Gestão de Recursos Humanos. Dezembro – 2004. 141 HUBERMAN, M. Op. cit, 1995, p. 47. O esquema apenas interpreta o que nem sempre a realidade confirma.
83
(sereno ou amargo)
Conforme relatos dos professores pesquisados, podemos verificar que se encaixam nas
análises de HUBERMAN (1995), muito embora relatem as fases em que se encontram os colegas
de trabalho, não se identificando com as fases apresentadas, fazendo sempre um e outro comentário
do outro, omitindo sua própria trajetória profissional.
Uma dessas fases é a do desencanto com relação ao trabalho pedagógico, por estar o docente
há muitos anos na profissão, o que se culmina ainda com sua idade, principalmente se trabalha nos
primeiros ciclos, que requerem uma maior dedicação pedagógica. Assim, esses professores acabam
trabalhando sem motivação, desacreditando em propostas inovadoras, o que pode favorecer pontos
de resistência.
Assumir outras tarefas que não são especificamente do professor é uma das grandes queixas
e, até mesmo, descaracteriza sua função principal, que é a de ensinar o saber sistematizado; além
disso, “a educação tem ideais e desempenha funções muitas vezes de caráter contraditório (...)”142.
Tudo isso reafirma a instabilidade no trabalho docente no decorrer dos tempos, a qual vai se
agravando na passagem de uma para outra fase da vida do professor. A seguir apresentamos o
quadro nº 07, sobre o ciclo profissional dos docentes.
Quadro 08 - Ciclo profissional dos professores da rede estadual de MT em Rondonópolis143
TEMPO DE SERVIÇO NO MAGISTÉRIO
(em anos)
Nº DE PROFESSORES NA PROFISSÃO
% DE PROFISSIONAIS ENTREVISTADOS
04 – 10 50 18.11 11 – 15 42 15.21 04 16 – 19 76 27.53 01
142 SACRISTÁN, J.G. A educação obrigatória: seu sentido educativo e social. 2001, p.77. 143 Dados obtidos por meiode formulário respondido por professores da rede estadual de ensino em Rondonópolis-MT, no mês de outubro-2004.
84
20- 25 90 32.60 01 26 -30 23 8.33
Não responderam 11 376 Total 292
O último concurso público na rede estadual de educação foi realizado em 2000.
Considerando este dado, iniciaremos a análise dentro das fases da carreira a partir de 4 (anos) anos
em sala de aula.
Segundo a pesquisa, cerca de 18,11% dos profissionais estão na faixa de 04-10 anos na
profissão do magistério; sendo que na faixa de 11-15 anos na profissão existem 15.21%. Com 16 a
19 anos de carreira estão 27.53% dos educadores.O maior número de profissionais, 32.60% está na
faixa de 20-25 anos de carreira na educação. Já com um número menor, de 26-30 anos, estão 8,33%
dos professores.
Conforme se observa, no que se refere ao ciclo de vida profissional, existe um maior número
de professores concentrado num tempo de trabalho entre 20 e 25 anos. Retomando, então, algumas
posições aqui já expostas, o que pode, ainda, ser identificado nos relatos dos sujeitos é que grande
parte dos educadores traz em sua trajetória profissional o desencanto da profissão, o qual
proporciona a falta de motivação no que se refere carreira e às expectativas de mudanças e a crítica
ao trabalho do outro.
Os dados ora apresentados sugerem uma equiparação do ciclo profissional dos professores
da rede estadual de ensino de Rondonópolis com o dos professores pesquisados por HUBERMAN e
SIKES. Segundo os autores, as fases do ciclo profissional dos professores são as seguintes:
A entrada na carreira: sobrevivência e descoberta.
Fase de estabilização: tomada de responsabilidade, fazem respeitar melhor esses limites,
com mais segurança e espontaneidade.
Diversificação: algumas experiências pessoais, diversificando o material didático, os modos
de avaliação, a forma de agrupar os alunos, as seqüências do programa.
85
Pôr-se em questão: sensação de rotina até uma crise existencial da carreira.
Serenidade e distanciamento afetivo: é um estágio em que não se importam com as
observações dos demais colegas de trabalho, aceitam-se como são. Não têm mais nada a provar nem
a si nem aos outros.
Conservantismo e lamentações: queixam-se da evolução dos alunos quanto ao interesse
pelo ensino, das políticas educacionais, dos colegas mais jovens.
Desinvestimento: final de carreira profissional, libertam-se progressivamente sem lamentar.
Os dados expostos acima confirmam os relatos dos sujeitos da pesquisa, que demonstram
que os profissionais que trabalham no 1º e 2º ciclos estão desestimulados e se sentem inseguros,
principalmente quando é necessário encarar novos desafios na profissão, como a Escola Ciclada. Há
pontos de resistência às inovações, à busca de novos saberes.
Para configurar tais informações com os sujeitos da pesquisa, interessante se faz o relato dos
entrevistados.
Rodrigo, professor com muitos anos de experiência na educação, restando apenas 5 (cinco)
anos para chegar à aposentadoria, avalia que, por ter se formado há muito tempo, tem
dificuldade em se adaptar a uma proposta de trabalho inovadora. Considera que,
Com certeza, se formos fazer uma pesquisa de dados, você vai comprovar que a maioria dos professores que trabalha na Escola Ciclada é antigo no trabalho, como eu, a M. e tantos outros. Nós temos uma formação tradicional e isso dificulta o trabalho.
No relato, o educador deixa clara a condição da sua formação, a qual foi tradicional, tanto no
Magistério quanto no curso de Licenciatura em Pedagogia. Alerta, ainda, que isso interfere
consideravelmente no desenvolvimento do seu trabalho na Escola Ciclada, já que este novo tipo de
educação exige um profissional atuante e que esteja constantemente estudando e revendo sua
prática pedagógica. O depoimento do professor em pauta mostra que ele visualiza a necessidade de
86
mudança, embora exista alguma resistência para as inovações e transfere para sua formação inicial
os pontos dessa resistência.
Entretanto, cabe destacar que muitos educadores, mesmo com a formação dita “tradicional”,
buscam ultrapassar as barreiras de seu conhecimento, reavaliando suas práticas, agindo de forma
inovadora e aberta às transformações.
Beatriz considera que a não concretização da Escola Cilada é o fato de que os professores
são muito antigos; assim ela se expressa a respeito da questão:
Primeiro, eu acho que o grande número de professores formados em mil novecentos e alguma coisa, ou seja, formação não condizente com o novo sistema de ensino. A maioria que está há 17,18 anos para frente de trabalho, aqui dentro dessa escola muito próximo da aposentadoria, quatro irão aposentar e estão trabalhando dentro da Escola Ciclada. Agora, veja só, mudar a concepção dessas pessoas é muito mais complicado. Eles falam: eu sempre fiz assim e assim dava certo, por que vou mudar? O aluno tem que entrar no ritmo dela. Vejo a resistência com certeza é quanto à mudança.
A professora demonstra ter clareza sobre o quadro de profissionais da sua escola, no entanto,
não se coloca como uma delas. Em outros momentos da pesquisa percebemos que ela se posiciona
contrária a alguns pontos da Escola Ciclada, como veremos posteriormente.
Beatriz está há dois anos na escola, onde existe um número muito grande de professores
prestes a se aposentar; ela vê isso como um entrave para inovações no trabalho. É uma escola com
professores que foram remanejados do Ensino Médio para trabalhar com as primeiras fases. Em
vários momentos de nossas conversas queixou-se de que “(...) sabe, os professores antigos não
gostam de estudar, estão desinformados e se negam a fazer a hora-atividade em grupo (...)”, o que
configura um trabalho solitário, que descaracteriza a Escola Ciclada em sua proposta de trabalho
coletivo. Nesta perspectiva, observa PERRENOUD (2001)144 que “A verdadeira equipe começa
quando estamos prontos para enfrentar juntos os grupos de alunos, quando um aceita avançar como
pode, com sua personalidade, seus valores, suas formas de fazer.”
144 PERRENOUD, P. A pedagogia na escola das diferenças: fragmentos de uma sociologia do fracasso. 2001,p.199.
87
Novamente, aqui, retoma-se a questão do domínio que os professores acreditam ter sobre a
ação docente, não reconhecendo a necessidade de mudança e, sobretudo, não considera que a ajuda
do outro é importante e, pode-se acrescentar, a negação da Escola Ciclada, pelo fato de os
profissionais serem antigos e estarem cansados.
Se, por um lado, Beatriz tem a consciência de que o professor precisa estudar e dominar os
conhecimentos sobre essa nova concepção de ensino, por outro, ela questiona: “Como é possível
implantar e implementar uma política de ensino com um grupo de profissionais que estão
caminhando para a aposentadoria?”.
Ana, por sua vez, demonstra nas entrevistas que não consegue separar a Escola Ciclada da
Escola Seriada; justifica-se dizendo que a formação dos professores é muito antiga e que, até então,
“pensavam de forma seriada”. A docente trabalha numa escola em que a diretora se coloca
permanentemente contra a Escola Ciclada. Justifica, ainda, aquilo que chamamos, aqui, de
resistência, lembrando que
(...) nós fomos formados na Escola Seriada e para se desligar totalmente da Escola Seriada e chegar na Escola Ciclada não é uma coisa fácil de se fazer. Sempre há uma ligação que você vai levando, inovando aos poucos. Mas, mudar totalmente é muito difícil. Aqui na nossa escola tem umas quatro professoras para se aposentarem, (...) acho que as salas muito cheias e as professoras já estão cansadas, já faz muito tempo que estão na profissão. Muito aluno na sala é um problema. Não dá para fazer um bom trabalho, ainda mais quando se está cansada (...).
Nos relatos desta professora, fica evidente o apego ao modo como vinha atuando em sala
antes da proposta de ensino por ciclo. As dificuldades que tem na compreensão de ciclo e série
demonstram que ainda há um longo caminho a ser trilhado, essencialmente por meio da leitura e da
prática em sala de aula. A heterogeneidade e outros fatores explicitados por de Ana demonstram,
ainda, um certo receio da docente quanto ao ensino por ciclo, embora esses mesmos fatores
88
estivessem presentes no ensino por série. Ainda podemos nos reportar às reflexões de CAVACO
(1995, p. 165), já mencionado nesta pesquisa, quanto ao mal-estar profissional para inovações.
Na maior parte de seus relatos, Ana traça o perfil dos colegas de trabalho, colocando-se, em
vários momentos, à parte dessa referência. São depoimentos que inserem o professor num período
de cansaço, período esse que pode ser relacionado com o que se encontra nos já citados estudos de
HUBERMAN· e SIKES, no que se refere à fase do jubilamento, dentro do ciclo de vida
profissional.
Apesar de se colocar dessa forma, Ana, em muitos momentos da entrevista, queixou-se da
profissão, por ser mal remunerada, por ter muitos alunos na sala de aula, um dos fatores que, para
ela, contribuem para dificultar o trabalho, uma vez que tem que atender a diversidade ali existente.
“Já que deve ser um trabalho diferenciado, ou seja, ver o aluno individualmente, tem que ter menos
alunos na sala”.
A entrevistada se coloca a favor da Escola Ciclada, embora tenha se queixado, durante toda
a entrevista, da mudança do Seriado para o Ciclo e, conforme já ressaltado, do grande número de
alunos em sala e dos problemas que isto vem causando, numa sala tão heterogênea, para professores
que já estão cansados.
Novamente Ana analisa o outro e revela que a diretora da escola é uma profissional que
continua apostando na Escola Seriada: “Não entendo a T., ela nem quer conversar sobre o ciclo”. E
acrescenta:
Na minha escola sou uma das mais novas, as demais já tem anos que estão nessa profissão aqui na escola e muitas vão se aposentar, inclusive a diretora, sabe ela (...) guarda muitas maneiras antigas de se trabalhar. Ela tem dificuldade em entender que o ciclo é uma proposta inovadora. Ela não acredita no ciclo (...) tem umas professoras que também não acreditam no ciclo.
89
A análise do outro parece ser uma justificativa para se referir à resistência da diretora;
contudo, para ela, a mudança não se efetiva por conta de professores antigos na escola. Esse tempo
de trabalho é apontado como responsável pelo cansaço, pela espera da aposentadoria, pelo
descrédito em propostas inovadoras.
O ceticismo nesses relatos de Ana, no que se refere à gestão, pode ajudar a detectar a pontos
de resistência da diretora, elencados peladocente, em “(...) uma conduta flutuante no que diz
respeito da mudança (...)”145, pois ora os relatos demonstram compactuar com as inovações, ora
percebem-se justificativas para o tradicionalismo existente, tanto de professores como gestores.
Sílvia destaca a grande dificuldade do trabalho com o ciclo de formação humana e assim se
justifica
(...) é muito mais fácil trabalhar com a Escola Seriada, e não se conhece a Escola Ciclada (...) Nossa formação antiga não dá conta de trabalhar dessa forma. Não se tem material, não tem espaço físico na escola, sabe, para se trabalhar e nem a formação nossa dá conta, outra coisa é que os professores são muito antigos, pensam diferentes.
No desenrolar das entrevistas percebemos que Sílvia tem grande dificuldade para se
expressar sobre a Escola Ciclada. É desinformada e não busca conhecer o que realmente o que
propõe o projeto Escola Ciclada nos documentos oficiais. Mesmo tendo participado dos cursos de
capacitação do CBA e da Escola Ciclada, Sílvia reconhece que sua formação não é suficiente e que
não dá subsídios para trabalhar de maneira satisfatória, como se exige.
Desde que foi implantada a Escola Ciclada, ela está com a 1ª fase do primeiro ciclo e,
sempre que se refere a essa fase, usa o termo “pré-escola”, como se estivesse trabalhando na Escola
Seriada.
145 ESTEVE, J.M. In: NÓVOA, A. (org) Profissão professor, 1995, p. 93.
90
O espírito saudosista do antigo sistema faz com que a docente continue se apegando a
metodologias tradicionais e acreditando que tais metodologias são a melhor forma de se trabalhar,
evidenciando com isso a negativa de uma nova política a ser instaurada.
A visão compartimentada de Silvia reforça a ausência do trabalho coletivo, um ponto que
poderia ser avançado na formação continuada, “(...) de professores que visa contribuir para que os
docentes se formem como pessoas, percebam sua responsabilidade no desenvolvimento da escola e
adquiram uma atitude ativa e reflexiva sobre o ensino que oferecem (...)”146 e,ainda, tenha uma
visão global da escola.
Com a formação continuada, o professor pode compreender que a idade cronológica pode
ser uma fonte de experiências que dinamizem a prática docente, ao contrário de depoimentos que
julgam os “muitos anos na profissão” como sinônimo de cansaço e aposentadoria.
Valéria apesar de estar na rede estadual há vinte anos, demonstrou estar passando por um
momento de transição, de um modelo de ensino pautado pela seleção, exclusão para um modelo que
valoriza o ser humano. Está bem informada sobre a nova proposta. Estuda, faz cursos, coloca-se a
favor da Escola Ciclada. No entanto, aponta problemas graves quanto à sua implantação e à
capacitação dos profissionais. Acha complicada a mudança de trabalho, visto que os professores
muito antigos demoram a mudar sua prática. Os pontos de resistência, como se vê, estão presentes
em vários educadores. Há, entretanto, que se considerar a cultura escolar que cada prática evidencia.
A docente em pauta não se coloca como uma professora acomodada, mas considera que o
quadro de profissionais da rede estadual muito antigo, dificulta a realização do trabalho coletivo; vê,
ainda, uma negação de políticas inovadoras por parte de profissionais que estão há muitos anos na
profissão e com uma cultura cristalizada nas concepções de educação tradicionais. Refere-se aos
fatos como conhecedora da situação.
146 LIMA, S.M. Aprender para ensinar, ensinar para aprender: um estudo do processo de aprendizagem profissional da docência de alunos-já-professore. 2003, p. 23.
91
Assim se expressa sobre si mesma e seus colegas:
Estou aqui na escola há muito tempo, 20 anos, desde quando comecei a trabalhar, muito tempo. Tem muita gente antiga aqui também. É difícil porque tem gente que não gosta de estudar. Eu estou sempre lendo. A escola compra tudo o que tem de novo, Zabala, Sacristán. Não é fácil estudar coisas novas, mas eu estudo, busco, só que tem muita gente que não faz isso.
O fato de estar sempre estudando fez com que Valéria visse a Escola Ciclada com outros
olhos. Revela-se preocupada com os colegas pela falta de interesse em estudar e ainda com a
constante troca dos professores interinos, os quais são contratados para substituir os professores que
vão ocupar os cargos de coordenador ou diretor de escola, entre outros.
Embora essa professora esteja na rede há 20 anos, aceita a idéia de mudança no sistema de
ensino como uma necessidade inevitável e busca leituras e novas práticas de trabalho tornadas
possíveis por meio da formação continuada.
Valéria manifesta preocupação com o trabalho do outro, não se colocando como igual nessa
análise. Insere-se num estágio de conhecedora do ciclo, diferentemente de colegas, pela ênfase
dada às leituras e à aceitação da Escola Ciclada. Nos relatos, quanto ao seu modo de atuar em sala
de aula, diz-se inovadora, não reconhecendo cansaço como empecilho a docência, ao contrário,
transforma os então 20 anos em experiências que necessitam de interação para atender a
dinamicidade dos alunos. “(...) Os saberes experienciais fornecem aos professores certezas relativas
a seu contexto de trabalho na escola de modo a facilitar sua integração. (...)”.147
Paula, assim como os demais entrevistados, não tem uma opinião diferente. Vê a rede
estadual com professores muito antigos como dificuldade para se trabalhar. Quando passou no
concurso público, há onze anos atrás, tomou posse na E.E.A.A.M. e está na escola até hoje. Relata
que nessa escola existe um grande número de professores “esperando” a aposentadoria e que é
147 TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional, 2002, p. 50.
92
muito difícil trabalhar porque muitos não querem mudar, querem continuar fazendo da mesma
forma, como no “tempo do seriado”.
O pessoal muito antigo não estava acostumado a fazer hora-atividade, às vezes é uma perda de tempo ficar aqui na escola, renderia muito mais em casa (...) têm uns três ou quatro para se aposentarem, fica difícil eles virem aqui, só quando precisa mesmo.
Um dos fatos que chamam a atenção nos relatos é que, dos seis entrevistados, apenas Valéria
e Beatriz se referem a fases e ciclos, enquanto que os demais continuam utilizando a nomenclatura
série. Quando questionamos sobre a não mudança da nomenclatura, percebemos que há um velho
habitus148, que continua sendo justificado/perpetuado até mesmo por ser mais fácil para explicar aos
pais, que já estão acostumados com os termos da Escola Seriada, como se observa no seguinte
relato:
os pais cobraram muito a questão da nota, conceito. Tem aluno que vai pra a escola e não estuda porque sabe que não vai reprovar, isso apavora o professor que está acostumado com nota. (Beatriz)
Os professores, em seus relatos, destacam a compreensão que têm da escola por ciclo e a
dificuldade de entender a mudança; ”os professores continuam a ser formados de acordo com
velhos modelos normativos (...) não é, portanto, de se estranhar que sofram autênticos choques
“com a nova realidade”, 149ressaltando o apego à nota como garantia de atenção e participação do
aluno. A nota é, então, o pressuposto da aprovação e, se o Ensino Ciclado não tem esse instrumento,
o professor se apavora por entender que assim haverá perda de controle. São conceitos repassados
aos pais, numa clara visão de manutenção da cultura do ensino tradicional e oposição às inovações. 148 Em 1975 Bourdieu desenvolve um estudo sobre habitus, que “(...) enfatiza a dimensão de um aprendizado do passado” (Bourdieu , in: Ortiz, 1983. p. 14.”O habitus tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendraram.” (Ortiz, 1983. p. 15.) Enfatiza ainda que “O habitus se apresenta, pois, como social e individual: refere-se a um grupo ou a uma classe, mas também ao elemento individual; o processo de interiorização implica sempre internalização da objetividade, o que ocorre certamente de forma subjetiva, mas que não pertence exclusivamente ao domínio da individualidade. 149 ESTEVE, J. G. Mudanças sociais e função docente.In: NÓVOA, A. (org.). Profissão professor. 1995, p. 100.
93
Revela-se, dessa forma, que a cultura escolar está fortemente voltada a questões da
profissionalização do docente, que, com muitos anos na profissão, tem dificuldade em desenvolver
um trabalho inovador. Acentuam-se, então pontos de resistência, já que o novo requer estudo,
comprometimento com novas formas de ensino, busca do saber, mas os educadores com muitos
anos na profissão continuam desenvolvendo o trabalho com a utilização de metodologias
tradicionais.
3.3 Ciclo só no nome, seriado na prática: a acomodação da prática docente
Durante a realização das entrevistas, foi possível detectar sempre, muito forte, o uso da
denominação série ou, muitas vezes, a equiparação fase e série. Apenas uma entrevistada, Valéria,
sempre se referiu a fases e ciclos. Sílvia sempre se referiu a série. Ana, Paula, Beatriz e Rodrigo
usam as duas nomenclaturas.
Há um forte apego à nomenclatura; isso parece um tanto banal, no entanto, evidencia, por
parte do professor, a resistência à mudança e a manutenção do sistema de ensino Seriado. Observa-
se, assim, que nesta busca constante de uma proposta educacional inovadora é importante uma
reflexão crítica no sentido de construir e/ou reconstruir caminhos renovadores de saberes e práticas
mais condizentes com a realidade sociocultural.
Esse comportamento de apego ao nome, ou referência ao antigo sistema, demonstra a
fragilidade com a qual os professores entendem o sistema de ciclo de formação humana, colocando
o sistema atual como argumento político de pouca duração. Pela concepção que os educadores
demonstraram, enfatiza-se a necessidade de buscar informações que viabilizem a ação dentro dos
pressupostos da proposta de ensino, bem como uma reflexão acerca de suas ações no contexto
escolar. O simples apego à nomenclatura é um forte indício de que a cultura da seriação continua
94
viva, sendo reproduzida nos comportamentos docentes. A contradição está presente, sobretudo, no
desafio de abandonar uma prática pedagógica tradicional, cristalizada pelos anos e, com base em
uma reflexão crítica, buscar novas teorias, novos caminhos, novos saberes.
Ana tem uma grande preocupação no que tange à formação do professor. Relata que não é
fácil trabalhar de forma diferenciada, visto que a formação do profissional não é condizente com a
nova proposta de trabalho, assim ela se expressa:
Sabe, vejo que ainda há uma separação, nós fomos formados na Escola Seriada e para se desligar totalmente da Escola Seriada e chegar na Escola Ciclada não é coisa fácil de se fazer. Sempre há uma ligação, mas que você vai levando, inovando.Mas, mudar totalmente é muito difícil. (...) Se depender da nossa direção, ela não gosta da Escola Ciclada para ela está no nome. (...) os professores estão acostumados a trabalhar com o velho método e não querem mudar. (...) eu continuo dando nota, não tem boletim, mas os pais querem ver (...)
Apesar da implantação da proposta de ensino por ciclo de formação humana, ela enfatiza
que sua prática pedagógica não mudou, ou seja, continua com posturas condizentes com o Ensino
Seriado. Parece justificar sua atitude afirmando que os professores, incluindo ela, não estão
formados e capacitados para essa mudança, mantendo práticas já cristalizadas no antigo sistema de
ensino. Vai mais além: atribui, também, a responsabilidade da sua não mudança de atitude aos pais.
Talvez o antigo sistema de ensino não seja tão antigo assim, e está embasando as práticas
pedagógicas nos interior da escola até hoje, uma vez que a sociedade fragmentada é o ideário da
sociedade capitalista que está em vigor.
A argumentação de Ana deixa claro que ela não aderiu aos pressupostos do ensino por
ciclos. Reproduz no seu discurso justificativas para a manutenção do Ensino Seriado e inclui nos
seus relatos que não age sozinha mas os demais professores têm as mesmas práticas que ela,
95
distanciando cada vez mais a teoria e a prática, uma vez que o sistema tem o nome Ciclo, mas atua
sob a forma da seriação. Tal comportamento de resistência demonstra que “(...) articular a teoria
com a prática, o discurso com a ação tem sido um obstáculo para a eficiência das ações
desenvolvidas pelos professores(...)”150, para o desenvolvimento da Escola Ciclada.
Rodrigo mostra-se preocupado com algumas questões do ensino organizado em série que
continuam permeando a Escola Ciclada. Uma dessas questões diz respeito ao fato de não estar
havendo uma real preocupação das escolas para a implantação do ciclo de formação, o que
prejudica significativamente o aluno. Parece compreender que o poder de mudar a prática está no
próprio professor, no entanto, há fatores que interferem no processo e fortalecem cada vez mais o
sistema seriado.
Segundo Rodrigo, essa resistência está impregnada à prática docente, pois há professores
acomodados que se negam à mudança e que evidenciam o apego cultural a determinadas
metodologias de trabalho, consolidando formas tradicionais de ensino:
(...) o professor está muito acomodado diante de muita coisa que está acontecendo, que ele não está nem aí, ele está assim. Que qualquer coisa que vir tá ótimo. Eu estou sentindo isso. (...) tem professor acostumado a trabalhar muitos anos na mesma série e não quer mudar.
Acomodação e muitos anos na profissão, para Rodrigo, são fatores preponderantes que
interferem no processo. A mudança de fase representa buscar novas metodologias, pois os alunos
têm também novas necessidades, que de um ano para outro mudam. O fato de permanecer muitos
anos na mesma (série) fase contribui para um certo comodismo, pois o professor acredita que
conhece todos os caminhos que irá percorrer, o que lhe dá uma aparente segurança, como se
observou nos relatos de Rodrigo, que no Ensino Seriado atuava na 4ª série, e já no ciclo optou por
150 COUTINHO, R.M.T. Formação do professor-formador: desafios e perspectivas de mudanças. 2002, p. 122.
96
trabalhar com alunos da mesma idade, que estão na 2ª fase do primeiro Ciclo. Esta opção
demonstra que busca segurança dentro da fase em que atua.
Sílvia tem muita dificuldade em explicar suas experiências, fala muito pouco, deixa claro
que não gosta de reprovar por considerar muito frustrante para o aluno. O interessante de Sílvia e
que a diferencia dos demais está na sua posição contra a reprovação.
Não gosto que as crianças tenham que repetir a 1ª série. Deveria ser pré e depois a primeira. Isso vira uma confusão. As crianças ficam chateadas em fazer duas vezes a 1ª série. Isso fica muito cansativo para as mães, elas não querem que os filhos façam duas vezes, elas sentem desestimuladas. É preciso deixar claro, eu acho. Primeiro pré, depois primeira série.
Mas parece que, até hoje, a docente não compreendeu como está a estrutura da Escola
Ciclada. Demonstra claramente uma grande confusão entre as fases. Percebe-se também que ela não
conhece o currículo de maneira satisfatória para poder desenvolver seu trabalho, pois a proposta do
ensino por ciclo não estabelece que o aluno seja obrigado a cursar duas vezes a mesma fase; o que
ainda se privilegia é a reprodução da série no ciclo.
O ensino por ciclo de formação busca a pedagogia da inclusão, dentro de um novo fazer
pedagógico, garantindo o acesso e a permanência de todos os alunos numa escola democrática,
dentro da “(...) flexibilização do tempo possibilitando que o currículo fosse trabalhado num período
maior, permitindo assim respeitar os diferentes ritmos de aprendizagem dos alunos (...)” 151.
O que está evidente na entrevista de Sílvia é que ela ainda não se conscientizou de que
houve uma mudança significativa na escola. Até a nomenclatura da Escola Seriada é fator
preponderante em seus relatos: “(...) falo para o pai: seu filho está fazendo a 1ª série e o ano que
vem ele vai fazer de novo a 1ª série. Aí tem pais que querem tirar os filhos da escola e colocar na
escola particular”.
151 Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.21.
97
Sílvia revela-se uma professora alheia às mudanças, que continua trabalhando da mesma
forma que antes, com o currículo do pré para a 1ª fase do 1º ciclo. Quando perguntamos se prefere a
Escola Seriada a ciclada fica pensando longamente e responde: A Escola Seriada eu já sei como é, e
a Escola Ciclada eu não sei nada, não sei que série é e aí (pensa longamente) como fazer? “(...)
talvez fazer em série fica mais fácil (...) é muito mais fácil trabalhar na Escola Seriada, e não se
conhece a Escola Ciclada. Não tem material, não tem espaço para trabalhar com essa formação.
Perguntamos também da compreensão dos alunos e se eles estão preparados para freqüentar a
Escola Ciclada. Ela responde que ”(...) não, os pais e professores não entendem, como as crianças
vão entender?”
Nesta perspectiva, percebe-se, novamente, o apego ao tradicional, pois o novo requer busca,
capacidades a serem desenvolvidas, inovação na prática docente e ação reflexiva sobre as
metodologias, e isso causa insegurança no docente, pois, como observa a professora em foco, “o
tradicional já se conhece”.152 Assim, nesse modelo de comportamento, os problemas da
escolaridade, como evasão, repetência e ensino fragmentado são reproduzidos, distanciando-se das
reais necessidades do aluno e da comunidade escolar, que incluem a busca de (...) a liberdade de
criar, de pesquisar e descobrir seu próprio caminho (...)153.
Na concepção de Sílvia, os métodos tradicionais oferecem maiores resultados ao
aprendizado do aluno, pois o professor tem um conhecimento prévio de como funciona o processo e
conhece também os fins, ou seja: aprovação ou reprovação.
Percebe-se que esse conhecimento, entretanto, não atinge o conteúdo que é desenvolvido na
sala, e na maior parte dos posicionamentos existe um apego muito grande aos livros didáticos, ou ao
que se planeja no início do ano, como assinala Paro:
152 Grifo meu. 153 COUTINHO, R. M.T. Formação do professor-formador: desafios e perspectivas de mudanças. 2002, p. 55.
98
Lamentavelmente, encontra-se difundida, no meio escolar, a tendência de se guiar pelo senso comum e considerar que a escola tradicional, apesar de autoritária, ensinava, sem levar em conta o que “ensinava” e o que deixava de ensinar, e também o que destruía com esse ensino154.
Na visão dos professores, nos dias atuais, ainda é muito presente a questão da quantidade do
conteúdo que se ensina, até mesmo como garantia de aprendizagem. Participar da construção do
conhecimento de um aluno torna-se algo muito abstrato, e o professor ainda não tem clareza de
como lidar com essa situação, porque limita seu trabalho ao que está pronto, às formas tradicionais
de ensino. Firma todo seu propósito na resposta que o aluno vai oferecer ao trabalho proposto,
mesmo que seja em forma de memorização, o que é totalmente contrário à proposta inclusiva de
construção e aos objetivos da Escola Ciclada. Tudo isso reflete a resistência que esbarra na questão
da avaliação.155
Beatriz considera que o grande problema da Escola Ciclada está na maneira de trabalhar do
professor e que houve apenas a mudança de nome do seriado para o ciclado; essa
(...) mudança causou um grande problema que ainda está aí, o nome Escola Ciclada, mas a forma de trabalhar é de Escola Seriada. A grande maioria trabalha assim, seriada. Se dá muita ênfase à avaliação escrita que o aluno respondeu e não ao que o aluno construiu no dia-a-dia (...).
Percebe-se uma grande dificuldade da professora em romper com os modelos de ensino
anteriormente propostos, isso porque as formas de ensino vêm ultrapassando gerações e gerações.
Em todas as mudanças é preciso, sobretudo, romper paradigmas. Isso sugere ainda que o
educador busque tais mudanças, que estas devem estar vivas a partir de sua prática docente, sua
realidade, e não apenas em propostas de Secretarias.
154 PARO, V.H. Reprovação escolar: renúncia à educação. 2001, p.90. 155 A avaliação será discutida em outro momento deste trabalho.
99
No depoimento da professora em pauta, não existe uma definição sobre o que seja o ensino
por ciclos, mas ao mesmo tempo ela deixa claro um ponto fundamental da proposta, a mudança de
concepção para a construção do aluno.
Beatriz lembra a necessidade de a Secretaria Estadual de Educação fazer uma pesquisa para
ver o que o professor fala e pensa da Escola Ciclada, sem medo de ser reprimido.
Para ela,
De forma geral, o professor resiste ao Ciclo, trabalha de uma forma velada, é igual lobo em pele de carneiro, na teoria até defende, sendo que na prática as coisas mudam e trabalham de uma forma tradicional. Dizem trabalhar de uma forma construtivista, defendem a Escola Ciclada, mas da boca pra fora. Para mudar essa concepção, vai levar muitos anos, mudar a forma de avaliar, tem que ser construída o que na realidade isso para nós foi imposta, caiu de um ano para outro.
Para se referir ao ciclo, Beatriz faz sempre a equiparação série e fase; a impressão é que ela
não está segura quanto à organização das fases e ciclos, demonstrando um grande apego ao ensino
seriado.
Durante toda a entrevista Paula se coloca a favor da Escola Ciclada, no entanto, no seu
relato, revela que a sua metodologia de trabalho não mudou muito. Considera que a Escola Ciclada
veio para dar uma remodelada no sistema seriado.
Tem dificuldade em fazer o caderno de campo e diz que não é possível fazer como orientam
os documentos oficiais da Escola Ciclada.”Faço um perfil do aluno assim (...) não no diário.”
O que mais chamou a atenção no depoimento dessa professora é a maneira como ela se
posiciona quanto à reprovação dos alunos: “Se tiver necessidade eu reprovo. (...) dentro da fase, eu
acho que se o aluno tem essa dificuldade é melhor ele ficar para poder sanar seu problema. Até
porque seria muita coisa para recuperar no próximo ano. Reafirma ainda, seu pensamento da
seguinte forma: Eu considero que ele deve ficar. Você faz a justificativa e assume. O que você mais
100
vê é professor que não assume (...) ela precisa de mais tempo para poder aprender dentro daquela
fase. Isso acontece sempre comigo.”
No decorrer das entrevistas, suas argumentações quanto ao seu trabalho confirmam cada
vez mais que ela continua tendo ações/atitudes relacionadas à Escola Seriada, sempre destacando
que são ações necessárias para o desenvolvimento dos alunos.
Faz avaliações, mas as considera como atividades; contudo, sua postura é a mais tradicional
possível. A respeito da questão, assim se manifesta:
Eu não falo avaliação, eu falo atividade (...) aí tem aquele sistema, sabe, da Escola Seriada não pode conversar, trocar informações, por isso eles têm que estudar (...) eu não costumo avisar para dar esse tipo de atividade (...) pra medir só o dia-a-dia não é assim, não é assim 100%, você tem que ter um papel na mão (...).
Sua postura é bastante rigorosa, o que se assemelha a aplicar avaliações mensuráveis, típicas
da concepção do ensino organizado em séries.
Segundo Valéria, na escola em que está lotada, toda a equipe sempre buscou e busca estar
envolvida com o processo pedagógico da Escola Ciclada. Existem estudos periódicos e, na Semana
Pedagógica, a coordenação faz parcerias com professores da Universidade Federal para trabalhar
sobre avaliação, currículo e até mesmo metodologias, dentro da concepção da Escola Ciclada como
um todo.
Diferente dos demais entrevistados, Valéria vai muito além, sempre questionando e
procurando trabalhar dentro do contexto dessa nova organização do ensino. No entanto, reclama dos
materiais didáticos, que não são suficientes e não estão de acordo com o ensino que se propõe.
Justifica, ainda, que seu trabalho não rende mais porque
Tenho dificuldade em trabalhar, não há material didático suficiente. As crianças são pobres e a gente tem que pôr a mão no bolso, pedir para vizinhos, amigos (...) os livros didáticos ainda estão da forma antiga de se trabalhar, é difícil pensar o trabalho de uma forma e ter livros de outra.
101
Valéria sente-se sujeito do processo, apesar de se sentir muitas vezes sozinha, num trabalho
bastante individualizado, solitário, na realização de um ensino que não considera o coletivo.
Podemos perceber nos relatos da professora que as questões econômicas estão fortemente
presentes nas relações da sala de aula, sendo um fator de dificuldade para o desenvolvimento do
trabalho pedagógico. Ainda, ela consegue perceber que as condições oferecidas por meio dos
materiais didáticos não são condizentes com a proposta vigente, uma vez que se continuar com os
livros didáticos, estará reproduzindo o que ela chama de uma “velha forma de trabalhar” (Valéria).
Com esse entendimento de reprodução pedagógica que Valéria tem, por que será que ela
continua trabalhando dessa forma? Sua formação não permite que ela avance?
A partir da contribuição dos sujeitos da pesquisa e das informações que estes ofereçam ao
presente trabalho, pode-se afirmar que o processo de ensino por ciclos, apresentado pela Secretaria
Estadual de Educação, ainda se apresenta, no contexto escolar, desvinculado da proposta inicial. O
fato é que, no cotidiano da sala de aula, o professor transmite um ensino massificado, que dissimula
as diferenças sociais e individuais, até pela questão da resistência, que é muito presente nas
unidades escolares frente aos fatores aqui destacados.
A investigação revelou que, apesar do esforço dos professores na incorporação de um
discurso inovador, está impregnada, na fala e até mesmo no processo diário, a lógica das antigas
nomenclaturas e metodologias. O que mais fica em evidência nesse processo é a forma de
avaliação, que apresenta grandes problemas, pois ela, ainda, não é vista como processo e, sim, como
fim, ocasionando a retenção dos alunos dentro da fase ou na passagem de um ciclo para outro.
102
CAPÍTULO 4 – AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM E REPROVAÇÃO NO DISCURSO
DOS PROFESSORES: PONTO DE ESTRANGULAMENTO
4.1 – Avaliar, medir, mensurar: práticas necessárias no discurso dos professores
Pelos relatos dos professores, constatamos que um dos pontos frágeis que revelam
resistência entre ciclo e série está no aspecto da avaliação.
Constatado este fato, entende-se a necessidade de investigar alguns conceitos de avaliação e
a interferência no processo pedagógico, na busca de discutir as concepções segundo as quais a
avaliação escolar tem sido compreendida e utilizada enquanto ponto de resistência ao ensino
ciclado.
A LDB nº 9394/96, Cap. II, Seção I, Art. 24, Inciso V, letra a, refere-se à
avaliação contínua e cumulativa do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais.
Avaliar, medir, mensurar são processos avaliativos que estão enraizados na cultura da
avaliação escolar. Nesse modelo autoritário, são utilizados testes, provas, provões e manuais de
avaliação como instrumentos para “verificar a aprendizagem” dos alunos no ambiente escolar. Estes
se configuram como um poderoso instrumento de controle dos educandos no ambiente escolar.
A avaliação está presente em todos os momentos de nossas vidas. Estamos constantemente
sendo avaliados e avaliando. Dentro da Escola Seriada e Ciclada não é diferente. Contudo, a
103
avaliação dentro da Escola Seriada tomou proporções mais drásticas, para aprovar ou reprovar os
alunos.
Indaga HOFFMANN:
A avaliação é sinônimo de controle? Sim, não resta a menor dúvida. Dizer-se que a prática avaliativa em nossas escolas não é de controle institucional, social, público,é não percebê-la em sua plenitude. Controla-se, via avaliação educacional, a qualidade da ação da sociedade, do poder público, do professor, do aluno, dos pais (...)156.
Mas, com a mudança para a Escola Ciclada, a avaliação deveria ter outro enfoque. O
processo avaliativo deveria assumir o caráter diagnóstico, investigativo e processual. 157 Dentro
desse enfoque, LUCKESI afirma:
A avaliação deverá ser assumida como instrumento de compreensão do estágio de aprendizagem em que se encontra o aluno, tendo em vista tomar decisões suficientes e satisfatórias para que possa avançar no seu processo de aprendizagem. Se é importante aprender aquilo que se ensina na escola, a função da avaliação será possibilitar ao educador condições de compreensão do estágio que o aluno se encontra, tendo em vista trabalhar com ele para que saia do estágio em que se encontra e possa avançar em termos de conhecimentos necessários. Desse modo, a avaliação não seria tão-somente um instrumento para a aprovação ou reprovação dos alunos, mas sim um instrumento de diagnóstico de sua situação, tendo em vista a definição de encaminhamentos adequados para a sua aprendizagem. Se um aluno está defasado não há que, pura e simplesmente, reprová-lo e mantê-lo nesta situação158.
O que se pode constatar no modelo de ensino organizado em ciclo de formação é que os
procedimentos de avaliação estão articulados com os processos de ensino e de aprendizagem, tendo
em vista os avanços do aluno e sendo um ponto de análise metodológica da própria avaliação para o
professor. A avaliação diagnóstica tem como princípio permitir análises mais profundas da
aprendizagem.
156 HOFFMANN, J. Avaliar para promover: As setas do caminho. 2001, p. 86. 157 Escola Ciclada de Mato Grosso, Mais que um desafio: uma conquista. 2002, p. 67. 158 LUCKESI, C. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 2002,p. 81.
104
A avaliação trabalhada em uma perspectiva diagnóstica e formativa permite que o aluno
tenha avanços dentro do processo, sendo um meio de observação para a construção de novas
alternativas. Nesse sentido, Vasconcelos reflete:
A avaliação deve ser contínua para que possa cumprir sua função de auxílio ao processo de ensino-aprendizagem. A avaliação que importa é aquela que é feita no processo, quando o professor pode estar acompanhando a construção do conhecimento pelo educando; avaliar na hora que precisa ser avaliado para ajudar o aluno a construir o seu conhecimento, verificando os vários estágios do desenvolvimento dos alunos e não julgando-os apenas num determinado momento. Avaliar um processo, não apenas o produto, ou melhor, avaliar o produto no processo.159
A avaliação diagnóstica e formativa pauta-se na construção do conhecimento do aluno,
buscando as causas da não aprendizagem, e sempre é realizada no decorrer do processo,
identificando caminhos a serem percorridos. A avaliação diagnóstica, por sua vez, considera o
trabalho com o aluno, auxiliando e identificando seus pontos fracos. Neste ponto, o autoritarismo
não é considerado.
LUCKESI considera que a avaliação diagnóstica busca caminhos de muitas práticas
avaliativas, não sendo autoritária, mas por sua vez mantendo o rigor da prática avaliativa:
(...) para ser diagnóstica, a avaliação deverá ter o máximo possível de rigor no seu encaminhamento. Pois que o rigor técnico e científico no exercício da avaliação garantirão ao professor, no caso, um instrumento mais objetivo de tomada de decisão. Em função disso, sua ação poderá ser mais adequada e mais eficiente na perspectiva da transformação.160
Uma das questões polêmicas da avaliação que se configura neste momento, na transição de
série para ciclo, é a retirada da nota, que, historicamente, foi constituída como “um poderoso
instrumento de controle em ambiente escolar, já que permite ao professor exigir do aluno
159 VASCONCELOS, S. S. Avaliação concepção dialética libertadora do processo de avaliação. 1993. p. 57. 160 LUCKESI, C. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. 2002, p. 44.
105
obediência às regras”161, substituída pelos registros dos avanços do aluno por meio de relatórios
descritivos.
Constata-se nas escolas a utilização dos relatórios, mas para cumprir uma formalidade, uma
vez que a nota é o que se mais deseja. A adoção das novas medidas supõe confronto e ruptura com
uma cultura escolar que contempla a classificação e a seletividade, “(...) funções estas
tradicionalmente relacionadas à avaliação”162.Isso pode ser comprovado nos relatos dos
entrevistados, conforme exposto a seguir.
Ana se posiciona a favor da avaliação com a utilização da prova, justificando que esse
recurso possibilita ao professor saber se realmente o aluno está ou não aprendendo. Não descarta a
possibilidade de usar outro tipo de avaliação, no entanto considera a prova o melhor instrumento.
Para ela,
As nossas crianças precisam ter o hábito de estudar para a prova, então a gente marca o conteúdo para a avaliação, é maneira da criança sentar e estudar. Também se ela não sentar para estudar, ela não cria este hábito de estudar, ele não vai aprender. Esse trabalho individual dá mais resultado, dá pra saber melhor se a criança aprendeu ou não.
O apego à avaliação por meio de provas fica evidente nos relatos dessa professora, que as
considera como o melhor instrumento para diagnosticar a aprendizagem dos alunos. Será que ela
não consegue perceber que é possível acompanhar o processo de aprendizagem do aluno por meio
de outras atividades? O que se revela nas palavras da professora é a resistência em trabalhar de
forma diferenciada, visto que a busca de um novo conceito de avaliação requer do professor a
definição uma nova dimensão profissional.
161 FREITAS, Luiz Carlos de.Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. 2003,p. 41. 162 SOUZA, S. Z. e ALAVARSE, O. Avaliação nos ciclos: a centralidade da avaliação. 2003,p.71.
106
A justificativa da docente de que a prova também serve para avaliar o trabalho do professor
deve ser considerada. No entanto, o que a professora deve ter claro é que a prova não é a única
maneira de conduzir a avaliação, tanto do professor como do aluno.
Paula também trabalha com provas escritas e ainda considera esta a melhor forma de avaliar,
justificando que as crianças gostam de fazer prova.
Como eu trabalho com Língua Portuguesa eu faço atividades dentro do que foi trabalhado com eles, e é atividade. Aí, tem aquele sistema da Escola Seriada. Não pode conversar, trocar informações, por isso eles têm que estudar.
Eu também faço prova porque eles gostam, até ficam perguntando quando que vai ser a prova, e os pais também gostam. Eles ainda estão acostumados a marcar prova, estudar para a prova. Eu não costumo avisar para dar esse tipo de atividade.
Segundo Paula, a prova ainda é a grande arma para segurar o aluno. Na opinião da
professora, “os alunos também gostam de prova”. Considerar que o aluno gosta de fazer prova é um
grande equívoco por parte da professora: o que pode justificar essa atitude do aluno é que a prova
foi sempre considerada importante para medir o que ele já sabe e para ele ser aprovado ou não.
A cultura da prova está arraigada no interior da escola como expressão de movimento de
acomodação e resistência a normas e valores da organização escolar163 e até mesmo, nos conceitos
que sempre foram inculcados como uma prática importante no processo da aprendizagem do aluno;
predomina, ainda, como instrumento para medir essa aprendizagem e de controle pelos
professores.PERRENOUD (2004), ao discutir essa questão, pondera que “os professores, tal como
predizem as muitas análises sobre o papel da avaliação na escola, sentem que perdem poder e
163 Cf.SOUZA, S. Z. e ALAVARSE, O. Avaliação nos ciclos: a centralidade da avaliação. 2003, p.74.
107
controle da situação de ensino, sendo que o manejo da classe se torna difícil na nova forma de
organização”164.
A avaliação ainda é tida como um instrumento de coerção, sendo o educador o detentor
desse poder. Na Escola Ciclada o professor sente que perdeu o domínio e se justifica dizendo que o
aluno gosta de ser avaliado, de ver a nota. Esse apego do discente à nota é uma questão
culturalmente constituída no espaço escolar.
Paula justifica que os alunos gostam da prova porque podem saber a nota, quanto tiraram em
número ou conceito. Alunos querem nota, prova. Não gostam de atividade sem nota. Com a nota é
mais fácil segurar os alunos. Ainda neste sentido, PERRENOUD vai mais longe e discute a
resistência quanto à mudança da seguinte forma:
Considerar a opinião sobre a falta de controle da situação de ensino gerada nos ciclos como mera resistência à mudança e conservadorismo parece, contudo, simplificador demais, visto que os aparatos estatais de educação continuam, via de regra, funcionando de modo bastante rígido e resistente a novas medidas, e que as novas propostas não acenam com alternativas acabadas para o enfrentamento das situações criadas165.
Considerar que simplesmente a prática avaliativa e a mensuração que a acompanha são as
únicas formas de resistir à organização em ciclo de formação é fato meramente ingênuo, é preciso
analisar as questões mais profundas que permeiam a prática pedagógica do professor, o que ele
pensa sobre o seu cotidiano escolar e se essa resistência interfere na sua vida e/ ou no seu fazer
pedagógico.
Para Sílvia, a prova é a forma oficialmente reconhecida e estabelecida nas escolas como um
instrumento que determina a responsabilidade de estudar, numa análise do que o aluno absorveu no
164 PERRENOUD, P. Os ciclos de aprendizagem: um caminho para combater o fracasso escolar. 2004, p. 219. 165 PERRENOUD.P. op. Cit., p. 220.
108
processo, como critério de promoção ou não. Analisando a dificuldade de trabalhar sem esse
instrumento, expressa-se da seguinte forma:
Com a avaliação as pessoas se preocupam mais, as crianças se preocupam, os pais se preocupam (...) ficou mais difícil de trabalhar sem prova. Não tem uma forma (...) não tem uma forma de avaliação, de cobrar da criança para que seja estimulada a estudar.
A docente em foco considera a avaliação como uma maneira de controlar o educando e, ao
mesmo tempo, como instrumento para seu crescimento. Isso revela uma contradição por parte dessa
professora, pois, ao mesmo tempo em que vê a avaliação como instrumento de poder, de punição,
de controle, entende que ela é uma forma de crescimento para o aluno.
Ao discorrer sobre a prova, a professora deixa evidente a resistência quanto às diferentes
formas de avaliação que se propõem no Projeto Escola Ciclada, e prevalece, dessa forma, a prova
como a melhor opção para avaliar o aluno, o que pode ser contemplado em seus relatos:
A prova é uma maneira para que o aluno cresça mais. Ela entra em estado de choque (...) procura estudar mais, a natureza do ser humano é estar acomodado, é difícil encontrar uma pessoa assim determinada, na maioria precisa de um incentivo.
Interferimos nesse momento da entrevista, argumentando que essa maneira de trabalhar é
uma forma de punição, e ela se explicou da seguinte maneira: “(...) às vezes isso dá muito certo, faz
a criança crescer mais”. Essa justificativa demonstra que está cristalizada, em sua concepção de
avaliação, a visão controladora desta.
109
Rodrigo enfatiza que o grande problema foi ter que deixar de avaliar como no modelo antigo
sendo que a avaliação era usada como forma de repressão contra o aluno. A prova, ainda, faz parte
das normas estabelecidas pela escola
(...) a relação com o avaliar é que foi um grande problema, porque o professor sempre usou a avaliação como arma, de prender o aluno, segurar o aluno, fazer com que o aluno tenha presença, que ele copie a matéria, e estude a matéria, e a Escola Ciclada naquele primeiro momento, foi colocado, não tem prova, não tem nada. Então o professor sentiu-se solto no espaço, sem aquela arma que ele tinha, de jogar em cima do aluno.
A angústia do professor por não poder mais utilizar a prova como único instrumento de
avaliação deixou Rodrigo muito preocupado, pois foi tirada das mãos do docente a grande arma de
poder contra o aluno. Do mesmo modo, o aluno apresenta pontos de resistência em deixar de fazer a
prova porque estava acostumado com ela para sua promoção, para a qual o processo nem sempre
era importante, e sim o produto final, ou seja, a nota. Tais comportamentos podem ser assim
esclarecidos: “(...) os procedimentos avaliativos têm poder e efetivamente moldam as condutas dos
alunos, ressalta-se o caráter conflituoso desse processo (...)” 166.
O docentelevou para o ensino ciclado os velhos procedimentos da avaliação, resistindo às
mudanças, que embasam o ensino por ciclos, dentro da proposta de avaliação formativa:
Continuo trabalhando quase a mesma coisa da Escola Seriada, a única coisa que não se está fazendo é dar a nota (...) trabalho com observações, produções de textos, análise, diálogo e basicamente se faz a prova. Até mesmo para reter é usada a prova.
Fica evidente, neste relato, que Rodrigo apenas mudou o modo de informar para os pais o
desempenho dos alunos, de nota para parecer descritivo, resistindo à forma de trabalhar concebida
166SOUSA, S. M. Z. L. Avaliação escolar e democratização: o direito de errar. in: AQUINO, J. G. (org.) Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo, 1997, p. 130.
110
pelos pressupostos da Escola Ciclada. Desta forma, se contradiz quanto à avaliação, num
comportamento o que é observado por Sousa167
(...) não é de surpreender a resistência, em geral, manifestada pelos professores não só porque tendem a reproduzir a concepção de avaliação que, tradicionalmente, é vivenciada em relação aos alunos, mas também como reação à proposta de avaliação escolar (...)
Como o professor ainda não compreendeu e não aceitou o novo modelo de ensino, adota
comportamentos divergentes do que se estipula como “novo”, mas também não se percebe como
tradicional, criando mecanismos de ação para diferenciar-se das propostas apresentadas. Nesse
sentido, mais uma vez, aponta-se para a necessidade da mudança na prática pedagógica, num
encontro entre docente e mudanças significativas na educação, com vistas a refletir/criticar sobre os
determinantes que compõem o tecido educacional.
Valéria, mesmo se posicionando a favor da Escola Ciclada, encontra dificuldades em
trabalhar com o parecer descritivo adotado pelo ciclo. Sua justificativa está no grande número de
alunos em sala de aula, que dificulta o desenvolvimento de um trabalho individualizado.
É difícil trabalhar com relatório, nós temos muitos alunos com realidades diferentes e avaliar dentro do que propõe a Escola Ciclada é muito difícil. Por isso eu falo tem que ter um número menor de alunos na sala de aula. Estava com 26 alunos, chegaram mais 3, chegando a 29. Fica difícil acompanhar tantos alunos. Nós precisamos dos pais eu cobro muito mesmo a presença dos pais com essa nova forma de avaliar.
A professora questiona o grande número de alunos em sala de aula, no entanto sua turma
está dentro dos critérios estabelecidos pela Escola Ciclada. Ainda assim, para ela, avaliar,
167 Cf.SOUSA, S. M. Z. L. op.cit., 1997, p. 136.
111
acompanhar e ainda fazer os relatórios individuais fica difícil pelo grande número de alunos em sala
de aula.
Trabalhar com o ciclo não é fácil, você tem que estudar mais, se inteirar mais com os alunos. Não é igual à Escola Seriada. Não tem nota, eu não dou nota, mas têm professores aqui que dão nota, mesmo, e dão conceito pro aluno, mostram para o pai assim com conceito. O ciclo tem que trabalhar com relatório, e isso dá mais trabalho. Nós temos muitos alunos na sala de aula. Não é fácil trabalhar com 30 alunos. Agora, os pais dos meus alunos já estão começando a entender o que é relatório. Mas é difícil.
Valéria acredita que, se tivesse um número menor de alunos, teria condições de realizar um
trabalho diferenciado, pois poderia dar um atendimento individualizado ao educando,
principalmente nas fases iniciais, que requerem muita atenção e acompanhamento do professor o
aluno. Esse procedimento dentro de uma sala com muitos alunos fica difícil e faz com que a turma
fique dispersa. Não consegue transpor as barreiras do trabalho homogêneo que está engendrado nas
concepções da escola seriada.
Como se pode constatar nos relatos acima reproduzidos, é importante ressaltar que a
professora tem claros seus objetivos e ainda se encontra constantemente estudando, na busca de
desenvolver suas competências dentro de um presente desestabilizador e um futuro incerto. Se
há alguma clareza no horizonte educacional, ela aponta para a urgência de redefinir o papel da
escola e do professor, para formarem pessoas que atuem em cenários que, provavelmente, nem
possam ser entrevistos, pois (...) a formação deixou de ser normalizada, já não pretende dar a
resposta a cada situação-tipo, mas, sim, dar recursos com vistas a analisar uma variedade de
situações (...).168
168 PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas. Profissão docente e formação – perspectivas sociológicas, 1993, p. 138.
112
DEMO, ao afirmar que a avaliação é “o ponto de partida e o ponto de tudo é o direito do
aluno a aprender bem, com qualidade formal e política”169. deixa evidente que a avaliação, na
perspectiva diagnóstica e formativa, auxilia o professor na analise e compreensão do
desenvolvimento do aluno, para tomar decisões metodológicas importantes na efetivação da
aprendizagem.
ANDRÉ e PASSOS discutem as idéias de PERRENOUD sobre o ensino diferenciado e
observam que
(...) é preciso vencer uma série de preconceitos e resistências. Por um lado vencer as representações deterministas de que alguns alunos são mais capazes do que outros, ou seja, rejeitar a idéia, às vezes confortante, às vezes desesperadora, de que o fracasso escolar é uma fatalidade. Aceitar, ao contrário, que nem tudo está definido no momento do nascimento ou nos primeiros anos de vida (...) É preciso, além disso, vencer os preconceitos e resistências em relação aos alunos desmotivados, desinteressados, sujos, agressivos, malcheirosos, indisciplinados, esquivos, negligentes170.
As diferenças individuais não podem ser desconsideradas pela escola, sob o pretexto de que
trabalhando de forma homogênea todos os alunos vão aprender de maneira a desenvolver suas
habilidades igualmente. Homogeneizando a turma, o professor corre o risco de não atingir seus
objetivos e, ainda, de fomentar nos alunos a resistência quanto a sua proposta de trabalho.
A aceitação de que a escola pública recebe alunos de diferentes condições de aprendizagem
é ponto fundamental para a reestruturação do currículo e das metodologias da escola, uma vez que
os alunos necessitam de atenção intensiva e diferenciada, justificando-se dessa forma a concepção
da Escola Ciclada.
169 DEMO, P. Avaliação sob olhar propedêutico.1996, p. 9. 170 ANDRÉ, M. E. D. A; e PASSOS, L. F. Para além do fracasso escolar: uma redefinição das práticas avaliativas. IN: AQUINO, J. G. Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas. 1997, p. 117.
113
Pode-se identificar nos relatos dos professores entrevistados uma grande dificuldade de
adaptação ao que é proposto pelo sistema de ensino ciclado, a qual gera conflitos em seu
desenvolvimento profissional. Conflitos que devem ser discutidos na formação continuada, tanto
para elevar o nível de conhecimento dos docentes, como para articular formas de um trabalho
democrático, inclusivo e humanizador.
4.2 Quem é o culpado pela reprovação?
Na Escola Ciclada de Mato Grosso, todo estudante tem assegurado o direito à continuidade e
terminalidade de seus estudos. Proporcionar aos alunos condições de progredir por não permitir a
reprovação ou retenção do educando na fase, e de fase para fase, é o desafio da escola171.
A proposta da Escola Ciclada é bem clara ao assegurar o direito de progressão continuada do
aluno, mesmo que ele necessite de um acompanhamento pedagógico. Trata-se de uma medida que
busca colocar em prática o desejo de romper com uma educação autoritária, visando à concretização
das aprendizagens.
Muito embora a progressão continuada esteja nos documentos oficiais da Escola Ciclada,
ainda está enraizado na cultura das nossas escolas que o aluno, caso não esteja “acompanhando”,
deve ser retido, o que reforça seu fracasso escolar. A retenção acontece ao final de cada ciclo ou,
sendo acompanhada pela autorização dos pais, durante as fases de ensino.
Dessas reflexões, destacamos:
171Cf. MATO GROSSO. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar-aprender a sentir, ser e fazer. SEDUC, 2000, p. 53.
114
O mais grave dessa situação é que o fracasso não aparece como conseqüência, que é, da metodologia equivocada ou de más condições que são oferecidas para professores e alunos desenvolverem seu trabalho pedagógico na escola, mas como produto de estupidez, da desídia ou da incompetência do próprio aluno. Este, sem o senso crítico (que a escola não lhe deu) e acostumado a sua condição de inferioridade na escala social, por causa de sua origem humilde, assimila facilmente o discurso de seus mestres e de seus pais (que já passaram por processo semelhante) de que, se outros conseguem aprender, ele mesmo não o faz por desleixo ou falta de inteligência172.
As conseqüências da reprovação são enormes, e a culpa é colocada no aluno, nos pais ou em
situações conjunturais; bem pouco se analisa o desempenho do professor. Essa perspectiva para a
qual o aluno não tem maturidade ou a estrutura familiar não é adequada deixa o educando com todo
o ônus da reprovação. Além disso, a “nossa escola se omite (...) do peso negativo desse fracasso
para a formação das personalidades dos alunos” 173.
Nesse impasse, os professores adotam uma certa passividade frente ao “despreparo” do
aluno, o que me parece paradoxal, uma vez que o trabalho do educador é exatamente o contrário: é
trabalhar para que os alunos superem seus limites e vejam possibilidades de avanços.
Essa atitude é um forte indício de que a escola não está analisando de maneira adequada os
seus procedimentos metodológicos, enfim, sua maneira de conceber a si mesma e ao aluno em
desenvolvimento.
PARO argumenta sobre a transferência de responsabilidade do professor e da escola pelo
fracasso para o aluno:
Nunca é a escola que reprova, a escola que não ensina, a escola que falha; a ênfase é no aluno que é reprovado, que não aprende, que fracassa. As reprovações, assim, servem ao duplo propósito de isentar a escola por sua incompetência em ensinar, e de produzir pseudocidadãos inculpados pela usurpação de seu acesso ao saber, de que em verdade são vítimas174.
172 PARO, H. V. Reprovação escolar: renúncia à educação. 2001, p. 46. 173 C.f. PARO, H. V. op.cit.,p. 46. 174 C.F. PARO, H. V. op.cit.,p. 47.
115
O autor critica o fato de a escola se isentar frente à reprovação e, ainda, pedir o aval dos pais
para que o aluno seja reprovado. O que é criticado por ele pode-se comprovar pelo relato dos
sujeitos desta pesquisa. Este dado reafirma a resistência do professor diante da estrutura da Escola
Ciclada, por manter fortemente acesa a necessidade de reprovar os alunos e se eximir dessa
responsabilidade.
Essa concepção fica clara e pode ser identificada nas palavras de Rodrigo, que já trabalhou
com alunos como professor, diretor, coordenador e agora, professor, de novo. Ele reafirma a
necessidade de reprovar:
(...) eu trabalhei com um grupo de alunos que chegaram de outra escola e também da nossa escola, toda a equipe, inclusive os pais concordaram plenamente, que o melhor era retê-los, pra que eles adquirissem um pouquinho mais de conhecimento para ir para outras fases. Eu trabalhei com esses alunos, com cinco alunos assim na 1ª fase. Então há esses casos especiais que você pode reter em qualquer fase (...) tem casos que o pai pede, quer que o filho vá pra frente, mas deve permanecer pra dar uma melhorada.
O professor sente-se avalizado pelos pais e justifica-se dizendo que reprovar em “alguns
casos” é necessário e importante para o desenvolvimento do aluno, ou seja, a reprovação, que foi
desenvolvida como necessária ao bom andamento do saber atinge uma cultura extra-escolar. Suas
argumentações passam pela necessidade de um maior tempo na fase em que o aluno se encontra.
Tudo deve ser trabalhado, e
Quando o pai é realmente informado, que o filho não está bem, ele aceita plenamente. Tem casos em que o pai pede, quer que o filho não vá pra frente, deve ficar pra dar uma melhorada(...)olha, quando a criança é trabalhada, é conversado com ela durante o ano, ela aceita numa boa a reprovação. Agora, quando não é feito, ela fica meio ressentida, chateada, ela fica. Agora, quando é conversado com ela(...)tem criança que a gente faz tudo, chama pra aula de reforço e ela não aparece o ano inteiro(...) você trabalha com a família dizendo que não tem condições porque ele (o aluno) não está aceitando o trabalho com reforço, então ele vai ter que ficar mais tempo na escola. Então com esses alunos não há problema.
O que é mais interessante nos relatos Rodrigo é um indicador de que a reprovação está
culturalmente engendrada na sua prática e na dos demais colegas de profissão. Podemos perceber
116
que ele se coloca como um professor progressista, defensor das políticas públicas e das mudanças
educacionais. No entanto é incoerente ao defender que o aluno, quando não está preparado, deve ser
reprovado e ainda busca na família apoio para tal atitude.
Numa sociedade onde a competição e o sucesso são extremamente valorizados é muito forte
para o ser humano a idéia do fracasso esse tipo de comportamento do professor pode se constituir
em elementos de incompetência e culpa pelo o fracasso do aluno.Dentro do processo de reprovação,
o docente se ausenta da responsabilidade pelos problemas psicológicos que sua atitude pode
ocasionar ao aluno no seu contexto social, sendo ele, muitas vezes, muito limitado, sem condições
de repetir novamente o ano e já antecipando a marginalização.
Nesse aspecto, podemos observar a seletividade social via escola que percebemos no
discurso do professor e o mais grave é que o professor aceita a reprovação como fato natural e não
se coloca como responsável pelo insucesso dos alunos.
Ainda no relato acima, Rodrigo justifica a retenção como fato positivo para o aluno quando
“bem conversado”. Entretanto, positivo para quem? É possível observar que, para Rodrigo, a
reprovação não tem conseqüências; ao contrário, para ele, quando bem trabalhada, serve de reforço
para o aluno dentro da fase em que está. No entanto, suas conseqüências atingem diferentes
âmbitos. Fica claro, das evidências de pesquisas, que a reprovação não leva a aprender mais, antes,
pelo contrário, aumenta a probabilidade de nova reprovação.
O professor, ainda, reforça seu pensamento com o seguinte relato: “(...) há casos de alunos
que foram retidos no ano anterior, e hoje cresceram bastante, porque tem o querer do aluno
também”.
Para ele, o importante é a força de vontade do educando, o seu querer. Essa postura
evidencia que o professor não faz uma análise pedagógica mais profunda acerca da aprendizagem
do aluno, e ficam, assim, mais uma vez, sob a responsabilidade do aluno as conseqüências e a culpa
117
do seu fracasso. Muitas vezes esse diagnóstico é feito no meio do ano e já anula a possibilidade de o
educando superar suas dificuldades. O docente parece já saber quais alunos terão chances, e ainda
prevalece a cultura daqueles que reafirmam ser “os durões da aprendizagem da escola, com esses é
muito difícil de ser aprovado”.
A professora Sílvia não vê pontos positivos na reprovação de um aluno e considera isso
“horrível”. No entanto, quando questionada sobre os responsáveis pela reprovação, argumenta:
(...) a família é muito responsável, porque se eles não estão junto é um grande problema. Aqui, no ano passado, eu tinha uma criança que era terrível, mas a mãe vinha, participava, me ajudava em casa a criança lendo e escrevendo. Se há ausência da família não tem como.
Insistimos em perguntar se o professor tem culpa da não aprendizagem do aluno, e ela fica
pensando por longo tempo até começar seu relato:
É difícil falar do (pensou, pensou) do professor sobre o fracasso do aluno. Bom, eu acho que há um conjunto: professor, família e a sociedade têm que dar um respaldo porque senão (...) Essa pergunta me pegou, não sei responder.
Esses fragmentos dos relatos de Sílvia revelam que ela acredita que a responsabilidade pelo
fracasso é do aluno. É uma professora que precisa de muito estudo, não consegue ver que o
professor faz parte do processo nos momentos de êxito ou fracasso da criança. Coloca como
culpada a Escola Ciclada, por não reprovar, acomodando os alunos e os pais, que não se
responsabilizam mais por seus filhos.
Vai mais longe e aponta:
É, eu já falei para o pai: o professor não é para resolver problemas e sim para ensinar. Eu não estou aqui para educar e sim para ensinar. Educar é responsabilidade de pai e mãe (...) O ciclo tirou a responsabilidade do pai ,diminuiu, por isso o pai não aparece na escola, aí o aluno não consegue aprender.
118
Sílvia não vê que o aluno vem para a escola carregando as marcas das relações
socioculturais da sua trajetória de vida. Parece não perceber, ainda, que as questões trabalhadas no
processo de aprendizagem do aluno devem ser compreendidas dentro do contexto educacional. A
justificativa da professora para a reprovação está no fato de que o aluno ainda não adquiriu os
saberes necessários para prosseguir para o próximo ciclo e ainda culpa a o novo modelo de ensino,
que, segundo ela, não “cobra uma atitude mais severa dos pais”.
Paula assume que já reprovou seus alunos e entende que os pais não se sentem responsáveis
pela aprendizagem dos filhos. Em suas palavras fica evidente este fato:
A cada ano que passa há menos cobrança em casa. Os pais não se sentem responsáveis mais pela aprendizagem dos filhos (...) se os pais tivessem mais informações assim, pela televisão, ou pela escola (...) estariam mais atentos. Agora ficou aquele chavão. Não reprova mais. Tiveram alguns anos que eu tive que reprovar alguns alunos dentro da fase, e agora não pode reter, quase que eu fui parar na Secretaria de Educação.Porque senti a necessidade, fiz a justificativa (...) o aluno tinha outras deficiências (...) queriam me levar para a Secretaria de Educação, dizendo que eu não poderia reprovar (...) se tiver a necessidade eu reprovo.
A professora afirma que os pais não são mais responsáveis pelos filhos, deixando-os sob a
responsabilidade da escola. Diz que reprovou e reprova seus alunos, porque “no próximo ano eles
estão melhores”. A propósito, PARO (2001) afirma que as pessoas que defendem a reprovação não
conseguem perceber a contradição que há entre a educação como construção humana e a reprovação
como método ou como recurso pedagógico. Mais uma vez,no discurso da professora, o aluno e os
pais são colocados como responsáveis.
Paula acredita que a reprovação é necessária em alguns casos e que, quando há um trabalho
bem articulado com os pais e alunos, tudo fica mais fácil. Justifica esse posicionamento da seguinte
forma:
119
Trabalhamos muito com os pais e com a criança. No ano seguinte a professora também trabalhou bastante, então cabe à escola cuidar para que não haja a rotulação ”a criança reprovada”. Então por isso é preciso trabalhar bem para que isso não aconteça. A criança reprovada, às vezes, vai ter mais facilidade do que o normal. Porque ela já viu a matéria, já conhece o que vai ser trabalhado e isso facilita, até porque ela está mais madura. Também não é chegar no final do ano e reprovar sem dar assistência. É ajudar, conversar. Conscientizar a criança e a família do benefício da reprovação naquele momento.
O posicionamento de Paula coincide com o de Rodrigo, que é a favor da “reprovação bem
trabalhada”. Entretanto, esse pensar vai satisfazer apenas os professores e desconsiderar os
problemas sociais que acarretam no aluno mediante um resultado negativo, no caso, seu atestado de
fracasso. É a concepção do professor articulando pais e alunos para uma situação culturalmente
estabelecida, mas criticada pelo ensino ciclado.
De acordo com os relatos da professora, podemos verificar que há um descompasso do que é
proposto pelo projeto Escola Ciclada, uma vez que os documentos oficiais deixam claro que a
reprovação pode acontecer de um ciclo para outro.175
Mesmo com a preocupação de trabalhar com os pais e alunos a reprovação, a escola não
precisa fazer muito esforço para isso, uma vez que a cultura da reprovação escolar já está difundida
na escola e ultrapassa o ambiente da mesma, até porque na grande maioria das vezes o aluno é o
“culpado da reprovação e precisa repetir para aprender melhor”.
Os relatos de Ana vêm carregados de argumentos sobre a reprovação e coloca como culpado
por esta o aluno ou, então, os pais, que pouco se importam com o desenvolvimento dos filhos. Faz
uma breve análise da reprovação na Escola Seriada e diz não concordar em reprovar por poucos
décimos. Mas não perde de vista os culpados, dizendo o seguinte:
Na Escola Seriada o grande culpado muitas vezes era o professor que reprovava por 0,50 ou 0,25 décimos. Será que se deve reprovar por décimo? (...) houve muitos erros. Muitas vezes a família tem muita culpa também, a família é fundamental para acompanhar, ver
175 MATO GROSSO. Escola Ciclada de Mato Grosso: novos tempos e espaços para ensinar - aprender a sentir, ser e fazer. 2000, p.57.
120
se ele está estudando, principalmente nas séries iniciais. Por isso os pais são importantes. Olhar para ver se ele está fazendo isso mesmo. O aluno não se interessa porque agora não reprova, e o professor tem que se virar.
De certa forma, a docente faz uma análise quanto à reprovação tentando apontar os
culpados. Para ela, na Escola Seriada, a culpa era do professor que reprovava por décimos. Agora,
na Escola Ciclada, ela coloca os pais e os alunos no centro das discussões como culpados, excluindo
o professor do processo.
O que se percebe é que a professora não consegue analisar as questões mais profundas que
envolvem o processo de ensino e aprendizagem, questões essas que são os eixos principais e mais
significativos dentro do processo.
Quando perguntamos se o professor tem culpa sobre a reprovação, Ana demonstra
preocupação com as metodologias trabalhadas:
Talvez, (pensou longo tempo) no caso, por não ter dado assistência, porque tem aluno que é assim, a gente não consegue atingir ele, chegar até ele, não há uma compatibilidade entre eles. Hoje temos reforço e tudo para ajudar. Hoje na 4ª série já aconteceu de reprovar e eu ficar questionando: Será que ela não tinha condições de ir para a frente? Mas, se fosse trabalhado um pouco diferente, será que ela não tinha condições de ir para frente?
A professora reflete diante das reprovações que acontecem na sua sala de aula e na escola,
mostra-se confusa na suas análises, questiona os muitos fatores da reprovação, não só o conteúdo,
mas, também, se a criança tem dificuldade, se precisa de mais um tempinho para conseguir. Então,
por que Ana reprova seus alunos? Por que ela não dá a chance para eles progredirem? O
surpreendente é como ela fala da reprovação dentro da Escola Ciclada:
Um problema sério: não há abertura para a reprovação. Tem reprovação que é ruim e tem reprovação que quando bem trabalhada é boa. Na nossa escola, o índice de reprovação é muito pequeno e por isso tem casos que precisam ser revistos. De repente, o aluno precisa ficar retido, de um reforço maior. O problema maior da Escola Ciclada é esse, não pode reprovar.
121
Pode-se observar que é recorrente, nos relatos dos entrevistados, a concepção de que a
reprovação “quando bem trabalhada” com o aluno é um ponto positivo, não havendo problemas
sociais e psicológicos. Será que, ao invés de trabalhar a reprovação, não seria melhor trabalhar para
que eles tenham uma aprendizagem mais significativa? Será que não é esse o trabalho da escola?
Definitivamente, Ana mostra-se a favor da reprovação, acredita que não é eliminando a
reprovação que vamos fazer com que nossos alunos aprendam.
Em toda a entrevista, Beatriz demonstra preocupação em dizer que estuda sobre a Escola
Ciclada. Pensa muito para responder todas as perguntas e está atenta a todos os detalhes da
conversa.
Como os demais entrevistados, Beatriz mostra-se favorável à reprovação e pondera que há
um círculo de culpados para que isso aconteça:
O professor tem sua parcela de culpa, os pais, os alunos, todos têm sua parcela de culpa. Os alunos, pela falta de interesse. A Escola Ciclada deixou os pais muito mais à vontade (...) teve momento em que o professor sabia que o aluno não estava bem e precisava ser retido, mas o pai não quis saber, chegou primeiro na coordenação. Aí tem que ser aprovado.
O professor dispõe de muitos recursos que podem auxiliar o aluno nos processos de ensino e
aprendizagem, inclusive um período destinado a estudos e preparação de aula, HTP, em que pode
planejar estratégias pedagógicas, ao lado da coordenação, para ministrar aulas diferenciadas aos
alunos com dificuldades de aprendizagem. Mas percebe-se que o professor insiste em seus modelos
de ensino, enxergando o aluno como um indivíduo a ser moldado de acordo com as suas convicções
e que, se não estudar, vai à reprovação.
A retenção surge, então, como um castigo ou ameaça a um determinado comportamento ou
negligência para com o estudo. Dessa maneira, o professor apresenta resistência a um índice total
122
de aprovação, apoiando suas críticas na falta de reprovação da Escola Ciclada, como uma defesa,
como se o poder de aprovar ou reprovar o elevasse em sua condição de professor diante do aluno.
A convicção de Beatriz quanto à reprovação é clara: se o aluno não aprendeu, precisa ser
reprovado, não podendo seguir para outra fase, mas a pressão do pai e da coordenadora, que não
aceita a reprovação, fez com que a proposta da Escola Ciclada se efetivasse:
A docente vê vários culpados para a reprovação e não discute as reais causas:
(...) o aluno, o professor, não sei, todos são culpados. Você tem um currículo para ser trabalhado e, chega no final do ano, tem que ser concluído o mínimo (...) aluno que reprovou no ano passado, a mãe e o pai não colaboravam, iam para a igreja e não colaboravam, deixavam ele à noite e iam para a igreja, e não tem maturidade para fazer as tarefas sozinho e não tinha o acompanhamento dos pais (...) na sala de aula, enquanto você ficava do lado dele, ele fazia a atividade. Quando saía de perto, ele parava. Então, eu tenho minha parcela de culpa, tenho, mas eu tinha uma sala com 36 e só ele estava com dificuldade.
Quanto às conseqüências da reprovação, Beatriz argumenta que, às vezes, isso pode
acontecer. No caso do aluno, ela foi necessária, ele teve muitos avanços. Neste caso, a professora
culpa os pais por não darem atenção para o filho, uma vez que ele não tem maturidade para fazer
sozinho as tarefas.
A transferência de responsabilidade para os pais fica evidente no depoimento da professora.
Não se pode negar que eles têm responsabilidades com os filhos que estão freqüentando a escola. O
que se percebe é que há uma grande queixa dos professores com a falta de interesse e
acompanhamento mais expressivo por parte dos pais nas atividades dos filhos.
A professora ora citada aceita a reprovação como forma de reforço para alunos que têm
problemas de concentração:
(...) tivesse passado, progredido como se queria ele estaria perdido, ele ainda está meio perdido, porque ele tem problemas, vamos dizer assim, de concentração.
123
Na verdade, não basta reprovar o aluno pelo fato de que ele não consegue se concentrar, o
professor precisa buscar soluções junto à Coordenação da escola e com os pais para tentar resolver
o problema do educando.
Valéria é a única dos entrevistados que acompanha seus alunos da 1ª fase até a 3ª fase do 1ª
ciclo, o que lhe facilita o acompanhamento individual dos alunos. Nem por isso a reprovação esteve
ausente no seu trabalho, conforme se verifica em seu depoimento:
(...) eu já passei por isso, agora eles me acompanham até o final da 1ª fase. Mas quando o aluno chegou na 3ª fase do 1ª ciclo não teve jeito, chamei o pai, a mãe, coloquei que tinha feito tudo o que tinha que ser feito, mostrei a dificuldade dele pra mãe (...) trabalhei durante o ano a articulação (...) falei com a mãe e a coordenação e a Direção . Pra ele foi bom ter reprovado, ele tinha problema de saúde. Nunca fiz a retenção de um aluno que não tenha problemas realmente, ele tinha problema. Trabalhei tudo o que foi possível, mas ele não tinha condições de saúde.
Valéria avançou muito da Escola Seriada para Escola Ciclada. Durante toda a entrevista,
sempre embasou suas respostas dentro do que concebe o ciclo de formação humana. Sua inquietude
e angústia fazem com que ela busque novos caminhos. No entanto, revela que, quando terminou o
primeiro ciclo com a primeira turma, fez a retenção de um aluno por considerá-lo fraco para
prosseguir. Justificou a retenção pelo fato de o aluno ser muito doente, tendo problemas e ainda
buscou o aval dos pais para isso.
Mais uma vez o professor faz “tudo”, ficando a responsabilidade pela reprovação para o
aluno. A professora Valéria está numa fase em que as concepções do ensino por ciclo de formação
humana estão mais interiorizadas, no entanto continua com grandes questionamentos.
A tentativa de trabalho da educadora é verdadeiramente de um grande esforço pedagógico,
e seu entendimento para justificar a reprovação fundamenta-se em analisar cada caso, nunca
comparando um aluno com outro.
124
As justificativas para as reprovações ficam claras nas entrevistas realizadas nesta pesquisa,
como também os culpados. A adesão a essa prática parece a mais comum e inquestionável.
A transferência da responsabilidade pela reprovação é engendrada no interior da escola e faz
parte da resistência contra as concepções da Escola Ciclada. O professor se isenta da
responsabilidade cruel que fatalmente o rotularia como um profissional negligente: como justificar a
não aprendizagem dos alunos? A escola tem feito isso com propriedade, repassando a culpa para os
alunos, para os pais e até mesmo para o ciclo, dizendo que faz “tudo pelo aluno”. Ainda não
consegue perceber que há uma grande contradição entre reprovar o aluno e a construção humana.
A cultura da reprovação escolar está enraizada nos professores, nos pais e na cultura escolar.
O mais grave desta realidade é a justificativa de que a reprovação pode ter seu lado positivo, quando
“bem trabalhada”, deixando de lado os prejuízos e danos psicológicos que podem afetar
consideravelmente os alunos.
Por outro lado, DEMO (1998) alerta para a pedagogia da verdade. A promoção sem a
aprendizagem correspondente constitui um ônus, sobretudo, para a escola pública e para os alunos
socialmente menos privilegiados. O autor coloca em xeque as questões da aprovação propostas pelo
modelo de ensino organizado por ciclo, uma vez que considera complicada a aprovação do aluno
que não consegue as habilidades necessárias e, ainda, enfatiza que a escola nesses moldes está
sendo para pobres176.
Entender a progressão continuada como sendo positiva para a regularização do fluxo escolar
e, dessa forma, colocar pontos positivos nas estatísticas, pode ser considerado um grande problema
que deve ser profundamente estudado e analisado, considerando, especialmente, as questões da
aprendizagem.
176 DEMO, P. Promoção automática e capitulação da escola. Ensaio: Avaliação de políticas em educação, p.159-190.1998.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As entrevistas, apresentadas em forma de relatos orais, permitiram o levantamento e a
análise dos dados, por meio dos quais se tornou possível refletir sobre o que nomeamos de pontos
de resistência à organização curricular por ciclos de formação, nas escolas estaduais de Mato
Grosso. Em muitos casos a resistência se manifesta quando o professor não se adapta às mudanças
pedagógicas realizadas pelo sistema de ensino e demonstram estar estão bastante angustiados com
relação ao sistema de ensino instaurado.
Algumas vezes, a resistência se dá de uma forma velada, nos casos em que o sujeito se
mostra favorável à mudança e, no entanto, ao aprofundar nossas conversas, na entrevista as
resistências afloram de alguma forma: quanto à avaliação ou à aprovação continuada, na negação
da formação continuada de professores, na denúncia da continuidade do trabalho apenas com
mudança de nome (de seriado para ciclo).
Mediante esta pesquisa, pudemos inferir que a Escola Ciclada tem sido alvo de severas
críticas por parte dos professores. Tais críticas consistem em diferentes pontos de resistência que
afetam consideravelmente a efetivação da proposta.
Muito se discute sobre a maneira como se implantou a Escola Ciclada no Estado de Mato
Grosso e em outros estados do Brasil. Mesmo tendo sido implantado inicialmente o Projeto Terra, a
seguir o CBA e, posteriormente, a Escola Ciclada, trabalhando com capacitações nos pólos e
discutindo com as Assessorias Pedagógicas, houve e há, por parte de educadores, a afirmação de
que a Secretaria Estadual de Educação implantou-a de cima para baixo, não ouviu a opinião dos
profissionais envolvidos e considerou apenas os pareceres dos técnicos da SEDUC.
126
Não tivemos a intenção de discutir a implantação da proposta em nosso estado, mas de
colocá-la em pauta para melhor entender a problemática em questão. No entanto, a maneira como
isso aconteceu foi muito discutida pelos entrevistados, que dela discordam veementemente.
Os dados que levantamos por meio dos relatos orais evidenciam que a Escola Ciclada de
Mato Grosso tem um longo caminho a ser percorrido para que sejam concretizadas as mudanças na
educação, um caminho com muitas discussões, que envolvem toda a sociedade e que transcendem
as questões de normativas e de cunho administrativo.
No desenvolvimento da pesquisa, fica evidente que as manifestações de resistência dos
sujeitos não são expressões que configuram uma vontade coletiva e, sim, manifestações individuais.
Dessa forma, a resistência passa a ser improdutiva, ao mesmo tempo em que não busca a discussão
e a superação de conflitos instaurados contrários à nova proposta de ensino, o que afeta as relações
de trabalho no interior da escola.
É possível entender, então, que a resistência dos professores quanto à maneira de se
conceber a Escola Ciclada pode se dever ao fato de sermos frutos de um trabalho imediatista,
individual e, também, ao medo da busca de um novo modelo de trabalho pedagógico, medo esse
que rejeita a posição do novo, que pode pôr em xeque a formação profissional ou a aparente
competência assumida na fala de muitos educadores que se negam à mudança.
A busca pela melhoria da qualidade do ensino, no presente caso, passa por mudanças que
nem sempre são fáceis de serem absorvidas por uma sociedade acostumada com um sistema de
ensino por série, impregnado cultural e politicamente, por sua vez, durante séculos, em nossas
escolas. É notório que a escola, está passando por mudanças profundas de identidade cultural na
busca de uma nova concepção de mundo e de educação.
Ainda ficou evidente nos relatos orais dos sujeitos que a cultura escolar está padronizada
com rituais que enfatizam processos de mera transmissão de conhecimento, ou seja, podemos dizer
127
que existe um “congelamento” da cultura escolar, que pode ser uma característica de resistência.
Desta forma, evidencia-se uma educação que está longe de garantir a democratização do ensino
sistematizado.
Os sujeitos, no conjunto de suas inter-relações no grupo social do qual fazem parte,
constroem crenças, costumes e visão de mundo que formam um todo complexo de uma determinada
sociedade, diferenciado-o de outros lugares e épocas. É neste coletivo social que o sujeito se
constitui culturalmente, pois o mesmo caracteriza sua forma de pensar e agir, o que determina sua
práxis social.
Nesta perspectiva, percebemos que no campo profissional o sujeito não deixa de lado os
valores culturais que estão interiorizados e arraigados nas suas subjetividades e que são essas
determinações de valores que permeiam o relacionamento do sujeito com o grupo no qual
desenvolve o seu trabalho. Deste modo, os valores culturais são fortes determinantes para a
resistência à abertura de uma nova proposta de trabalho.
Assim, o contato com os sujeitos da pesquisa trouxe evidências de que a formação do
professor assume um significado especial, uma vez que ela pode direcionar a prática pedagógica de
uma forma mais compatível com as necessidades do professor e do aluno. Entretanto, verifica-se
que a resistência está presente também em várias modalidades desta formação, e muitos professores
que possuem listas de certificados177 garantidos por essas formas de qualificação exercem uma
prática docente que assegura maneiras tradicionais de trabalho.
De acordo com os entrevistados, o grande número de professores com muitos anos de
profissão atuando em sala de aula, à espera da aposentadoria, faz com que os mesmos não sintam a
necessidade de mudar, buscar qualificação para entender esse novo sistema de ensino que se deseja
177 Normativa de lotação de professores 02/GS/02/SEDUC/MT. Dispõe sobre o processo de atribuição de classe e/ou aula. Disponível em <httpwww.seduc.mt.gov.br normativa – seduc> Acesso em 12/01/2005.
128
implantar, o que interfere na não efetivação da Escola Ciclada, evidenciando, dessa forma, pontos
de resistência.
A resistência, no campo da educação, pode aflorar sempre que os sujeitos precisarem deixar
de lado suas práticas e experiências educativas para construírem novas práticas condizentes com
uma nova proposta de ensino, diferenciada daquela que estão acostumados a trabalhar. Podemos
também observar que a resistência passa a ser uma reação defensiva do sujeito frente às novas
concepções instauradas e a negação de um novo projeto de ensino. Neste contexto, sabemos que
modificações de padrões de comportamento e atitude precisam ser consideradas dentro de um
tempo histórico e cultural.
Percebemos, ainda, que, na opinião dos professores, na estrutura de ensino implantada nas
escolas de nossos sujeitos não houve o rompimento integral da seriação, uma vez que se continua
trabalhando de forma seriada e, na maioria dos casos, os educadores fazem equiparação de série
para fase. Verifica-se um grande saudosismo quanto à antiga forma de trabalhar, estando a
organização curricular por ciclo regulamentada na forma administrativa, o que, podemos afirmar ser
outro ponto de resistência.
De tudo isso, constatamos que ainda não há uma real efetivação da Escola Ciclada porque
as condições materiais e humanas ainda não estão dadas para que isto ocorra e também que os
professores sentem-se perdidos quanto à sua metodologia, não realizando um trabalho diferenciado
que atenda à diversidade dos ritmos de cada aluno. Assim, infere-se que os educadores não
concebem o trabalho dentro do que é proposto nos documentos oficiais regulamentados pela
Resolução 262/02 do CEE/MT.
Quanto à formação oferecida com vistas à implantação da Escola Ciclada, observamos que
há uma grande insatisfação, já que os professores consideram que não houve preparação adequada
para todos (apenas para os do CBA) e que a formação continuada que receberam não foi suficiente
129
para uma mudança verdadeiramente efetiva nas escolas, insatisfação essa que acompanha uma
negação ao trabalho dentro do que se propõe na organização por ciclos.
Constatamos, também, nesta pesquisa, que todos os sujeitos entrevistados possuem elevado
grau de escolaridade e que todos participaram dos cursos de capacitação oferecidos pela SEDUC,
mas, apesar disso, em algum momento dos seus relatos demonstraram pontos de resistência quanto
à implantação da Escola Ciclada.
Um do s grandes problemas revelados pelos entrevistados, que tem sido muito discutido no
interior das escolas, refere-se à prática avaliativa, considerada a centralidade da problemática da
proposta. Os professores queixam-se de que os alunos não se interessam mais em estudar pelo fato
de não terem mais nota e, segundo eles, as notas são necessárias para manter a ordem na sala de
aula. Relatam, ainda, que os pais não se adaptaram ao parecer descritivo de desempenho dos alunos
e desejam saber a nota ou o conceito que seu filho obteve.
Dessa forma, não houve um rompimento com o sistema de avaliação classificatória dos
alunos: pelo contrário, ainda há um grande poder do sistema classificatório, mascarado na proposta
vigente. Muitos dos educadores ainda recorrem à prova como a melhor forma para atribuírem notas
ou conceitos aos seus alunos no decorrer dos bimestres. O apego com relação às provas e notas
deixa claro que o professor sente necessidade de controle sobre o aluno.
Pudemos, assim, observar que a política de progressão continuada não se efetivou na sua
totalidade e que a prática de reprovação ainda acontece nas escolas, as vezes, com o aval da família.
E, o que é mais grave, a culpa da reprovação é depositada no aluno ou na família que não se
responsabiliza pelo filho, ou seja, a escola se isenta da culpa por reprovar, atribuindo à família esse
peso. De uma forma ou de outra o professor procura se eximir de qualquer sentimento de culpa.
130
Como constatamos na nossa pesquisa, a reprovação escolar ainda é um foco de grandes
discussões por parte dos professores que negam a proposta da Escola Ciclada. Dessa forma, “(...)
evidenciam que o projeto predominante em nossas escolas é o de reprodução cultural e econômica
das relações de classe”. 178 Romper com as desigualdades, trabalhar com a possibilidade de que
todos tenham o direito de aprender não é um caminho fácil de ser percorrido, uma vez que a escola
tem uma cultura de desigualdades. Abrir mão de tais culturas cristalizadas não é simples e muitas
vezes gera resistência quanto às mudanças. Isso foi possível verificar nos relatos dos nossos
entrevistados.
Para construir uma política pública de ensino não basta considerar o aspecto teórico e
político, é preciso “(...) construir, a partir destes subsídios, a própria análise e reflexão, individual e
coletiva, na escola; o que desencadeará se existir um compromisso com a prática capaz de promover
permanência, terminalidade e ensino de qualidade para todos”.179 Mais uma vez, destacamos a
importância de um chamamento da coletividade da escola, deixando de lado o aspecto individual,
tão impregnado nesta instituição.
Entendemos que a “(...) implantação do ensino por ciclos no Ensino Fundamental não
representa simples mudança nos detalhes do funcionamento da escola, mas envolve uma profunda
modificação em sua cultura. A conclusão é que muitos esforços ainda serão necessários para que os
ciclos venham a se consolidar (...)”.180 Deve haver, ainda, uma vontade política, muito estudo e
envolvimento pedagógico da escola para uma nova construção cultural. O professor só vai trabalhar
na lógica da Escola Ciclada se ele compreender e concordar com a sua fundamentação, sua lógica e
sua metodologia. Ninguém trabalha bem o que não domina.
178 SOUSA, S.Z.. e ALAVARSE, O.M. Avaliação nos ciclos: a centralidade da avaliação.2003,p.75. 179 Cf. SOUSA, S.Z. e ALAVARSE, O.M. op.cit., p.75. 180 BARRETO, E.S.S. e SOUSA, Estudos sobre ciclos e progressão escolar no Brasil: uma revisão. 2004, p.34.
131
Também temos a convicção de que o processo educativo é muito mais amplo e complexo
do que o objeto aqui delimitado e tivemos que deixar de lado temas extremamente importantes.
Sem a pretensão de ser prescritiva, esta pesquisa quer chamar a atenção para a necessidade
do professor refletir acerca das inovações no campo teórico relacionadas à nova política de
educação implantada no interior da escola pública de Mato Grosso. Tais reflexões devem, ainda,
estar presentes nas reuniões de estudo programadas na escola e nos cursos de capacitação, uma vez
que são fundamentais para a prática docente.
A realização desta pesquisa permitiu-nos constatar que, até hoje, dentro das unidades de
ensino onde estão inseridos os sujeitos da nossa pesquisa, pouca coisa foi mudada desde a
implantação da Escola Ciclada, a qual se constitui ponto de grandes debates, uma vez que se exige
uma escola mais atraente e de qualidade.
Ressalta-se ainda que todo comportamento de resistência tem suas bases nas condições
históricas e na formação do indivíduo. Para cada sujeito, compreender a prática docente e executá-
la, implica em tocar nos seus valores morais, éticos e de formação. Nesse contexto, evidencia-se a
postura crítica do professor, ao lado da reflexão que ele faz do seu trabalho.
Em linhas conclusivas, o presente estudo não teve a pretensão de esgotar e nem abranger
todos os pontos de resistência dos professores quanto à Escola Ciclada, mas, sim, tentar desvendar
os principais fatores da composição de uma teia que fragiliza a real efetivação desse sistema de
ensino. No entanto, podemos dizer que a escola mato-grossense passou e está passando por
transformações, principalmente no que se refere ao caráter político-pedagógico da proposta.
Quero agradecer profundamente aos professores que contribuíram para a realização do
presente estudo. Eles, sim, foram os grandes personagens para a realização do trabalho de pesquisa.
132
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140
ANEXOS
141
ANEXO 01
Questionário para seleção dos professores para a pesquisa
Este questionário foi aplicado a todos os professores do 1º e 2º Ciclo nas 32 escolas estaduais de Rondonópolis-MT. 1- Ano de implantação do Ciclo na escola: ( ) 2- Qual o seu vínculo com a Rede Estadual? ( ) contratado ( ) concursado 3- Participou curso de capacitação do CBA ( 1998)? ( ) Sim ( ) Não
4- Cursou Licenciatura Plena em Pedagogia em curso regular?
( ) Sim ( ) Não
5- Neste ano trabalha:
1º Ciclo: Alfabetização ( )
1Ȫ fase ( )
2ª fase ( )
2º Ciclo: 1ª fase ( )
2ª fase ( )
3ª fase ( )
6- Você já leu a proposta da Escola Ciclada? ( ) Sim ( ) Não ( ) parcialmente 7- Você acredita na escola ciclada? ( ) Sim ( ) não ( ) indiferente
142
ANEXO 02 Roteiro Básico Entrevista Semi-Estruturada 1-Nome 2- Idade? 3-Como foram sua infância e adolescência? 4-Quais as condições que você teve para estudar quando criança? 5-Casado(a) ( ) sim não ( ) 6-Quantos filhos? 7-Porque optou por ser professor (a)? 8-Vínculo empregatício ( ) concurso Público contratado ( ) 9-Quantos anos de docência você tem? ( ) 5 a 10 anos ( ) 11 a 15 anos ( ) 16 a 20 anos ( ) mais de 25 anos 10-Qual a sua formação? ( ) magistério ( ) Graduação ( ) Doutorado ( ) especialização ( ) mestrado 11-Qual as curso de graduação você fez? 12-Quais condições que você teve para estudar? 13-Para sua autoformação, que tipo de leituras você faz? 14-Que tipo de lazer mais te agrada? 15-Você vai ao cinema? ( ) sim ( ) não
143
Qual o tipo de filme mais te agrada? ANEXO 03 Preparação para o Trabalho 01-Qual outra área do conhecimento que você gostaria de trabalhar? 02-Participou do curso de capacitação de 1988? 04- Quais as fases em que trabalhou? 05-Em qual fase trabalha neste ano? 06-Você recebeu os materiais da Escola Ciclada? ( ) sim ( ) não 07- E possível colocar em prática o que foi trabalhado no curso da Escola Ciclada? Como?
08- Como você avalia, esta capacitação? 09- O que você considera importante na proposta da Escola Ciclada e o que dá certo?
10-Como são organizadas as reuniões de estudos sobre o ciclo na escola? 11- Com que freqüência são realizadas? 12- Como você acha que deveriam ser realizadas essas reuniões? 13- Depois de ter feito o curso da Escola Ciclada em 1988 e ter trabalhado algum tempo, o que você
sabe sobre escola em Ciclos?
14- Qual o melhor projeto Escola Seriada ou Escola Ciclada?
Por quê?
15-Os alunos estão preparados para o Ciclo? 16- O que você acha que os alunos preferem? ANEXO 04
144
Prática Pedagógica AVALIAÇÃO / APROVAÇÃO AUTOMÁTICA / RETENÇÃO 01- Como você realiza a avaliação? 03-Qual é a forma de avaliação que apresenta mais resultado? Por quê? 04-A reprovação é positiva? 05-Se sim, cite exemplos em que a reprovação é positiva. 06-Quem é culpado pela reprovação: - A instituição, o sistema educacional, o aluno ou a família?
07- Em que circunstância o professor tem alguma parcela de culpa da não aprendizagem do aluno?
08 - Por que eles (alunos) são reprovados? 09- Quais os reais motivos da reprovação? 10- O professor tem alguma culpa da reprovação? 11- No seriado seus alunos reprovavam? 12- Quando seus alunos reprovavam quais os critérios para dizer este aluno não deve prosseguir?
13-Quais são as conseqüências sociais da reprovação? 14-Qual a sua opinião sobre a aprovação? 15-Quais os problemas causados pela aprovação? 16-Você é a favor da aprovação? 17-Você é a favor da retenção dentro da Escola Ciclada? 18- Na sua opinião, como é o currículo da Escola Ciclada? 19- Para uma escola ter qualidade, o que precisa ser mudado? 20- Quais os pontos positivos do Ciclo? 21- Quais os pontos negativos do Ciclo? 22- Qual a sua posição sobre a Escola Ciclada? ( ) É a favor ( ) É contra ( ) Indiferente
145
23-Em que tipo de escola você trabalha melhor, Escola Seriada ou Escola Ciclada?
24- Você está satisfeito (a) com o trabalho do Ciclo realizado:
- Na escola?
- Pela SEDUC?
- E o seu?
25- Há cooperação do grupo da escola para a realização dos trabalhos? 26- Você se sente sozinho (a) neste trabalho? 27- Você acha que os alunos são tratados como iguais em direitos e deveres na escola?
146
ANEXO 05 Informações pessoais dos professores que estão atuando em sala de aula. NOME DO PROFESSOR IDADE TEMPO DE
SERVIÇO NO MAGISTÉRIO (profissionais efetivos)
CICLO QUE ATUA/ 2004
FASE QUE ATUA 2004
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