UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO
Belo Horizonte-MG
2011
KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO
Tese apresentada ao curso de Poacutes-graduaccedilatildeo
em Filosofia do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Orientador Dr Marcelo Pimenta Marques
Belo Horizonte-MG
Junho 2011
KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS
100
N972k
2011
Nunes Sobrinho Rubens Garcia
Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma
no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011
190 f
Orientador Marcelo P Marques
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses
4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo
Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade
de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo
iv
Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos
v
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha
Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo
Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que
resiste ao esquecimento e agrave morte
Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo
mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco
eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo
Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito
em prol da alteridade
Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da
inteligibilidade e da razatildeo
Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as
imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem
possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do
recomeccedilo
Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo
Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo
vi
Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito
Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na
humanidade
Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida
sem exame natildeo eacute digna de ser vivida
vii
Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha
Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas
viii
SUMAacuteRIO
0 INTRODUCcedilAtildeO5
1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21
12 Causalidade e Poder 25
13 Causalidade e Reciprocidade 32
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de
Derveni 44
2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61
3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92
31 Eros e Loacutegos92
32 Vida e ḗthos98
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122
35 A Retoacuterica da alma134
36 Julgamento e nudez149
4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154
41 Imagens e causas no mito de Er154
42 Mito e psykhḗ159
43 Er o decreto de Laacutequesis162
5 BIBLIOGRAFIA174
1
Resumo
A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta
investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e
aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um
programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza
pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a
definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas
imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a
dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo
tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com
Soacutecrates Caacutelicles
Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o
mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de
Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito
adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos
esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da
multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo
projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por
extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a
linguagem satildeo os fundamentos do pensar
Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta
que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado
na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que
engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo
2
dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual
interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa
ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias
reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e
inteligecircncia que eacute a psykheacute
Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito
3
Abstract
Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point
out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and
apply them in Er myth of Republic
According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear
distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the
timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the
actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings
through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the
same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles
In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is
thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language
comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of
divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the
causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between
two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient
means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before
language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion
staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the
thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic
ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which
engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation
can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an
expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar
4
movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the
feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is
Keyword Gorgias Republic structure myth
5
Introduccedilatildeo
O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a
adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento
que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus
esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees
filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese
ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos
que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos
O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que
o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das
imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda
dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o
pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a
filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a
transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no
movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse
bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)
Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo
que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno
linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a
narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo
de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a
6
sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia
temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal
A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade
distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a
transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis
constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas
embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a
linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo
As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma
polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou
mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do
inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo
como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica
da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi
conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo
Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico
discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as
teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos
ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se
considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como
palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da
realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis
ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute
ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens
7
No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como
phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA
2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara
distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo
do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo
original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre
eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld
Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma
raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do
visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia
de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego
no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica
inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os
verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos
bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo
de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia
(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)
Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo
tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal
determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse
sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de
superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se
situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim
como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia
O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a
silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou
desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos
deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do
8
empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em
seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o
conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel
No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a
transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do
inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas
constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os
referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico
Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a
passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na
esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo
um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos
cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se
fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao
inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico
O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica
modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais
profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo
Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica
Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma
seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute
completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da
arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e
regramento que a virtude de cada coisa existe
Goacutergias 506 d5-e2
Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto
possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas
9
visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante
e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a
ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior
agravequela
Timeu 30a
A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos
kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico
No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que
compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar
sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o
ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida
tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores
eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em
uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o
regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado
kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo
humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o
mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)
A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os
mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas
Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila
o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o
cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da
poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus
proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de
trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema
10
interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens
especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um
tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo
permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que
o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a
partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de
ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da
significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)
Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas
agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais
concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses
mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento
dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus
efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes
mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da
psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza
das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da
explicitaccedilatildeo dessas regras
Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-
construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute
obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de
julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A
fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O
11
modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo
entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras
Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o
acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do
sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A
complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como
grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo
do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo
Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os
grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de
racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute
consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias
o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron
(Goacutergias 502c)
A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no
domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da
influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia
(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia
(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de
harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e
harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a
natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita
virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma
correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um
12
legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A
grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo
cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da
alma
Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da
ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica
de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o
acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde
(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o
sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles
emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia
ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes
potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um
instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala
desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um
princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical
(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade
o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo
no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)
Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta
unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento
matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do
acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo
13
Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo
representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos
contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do
justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical
regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande
reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do
psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento
A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que
damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses
movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto
por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova
conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)
No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia
divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico
que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por
outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo
do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o
koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a
ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia
pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a
harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros
possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)
que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais
14
correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no
palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas
Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um
procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas
A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada
ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as
diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e
possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde
estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e
posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero
determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos
planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo
(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura
complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a
constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos
fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende
uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de
inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas
A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera
eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis
X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como
sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como
uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio
15
ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza
procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais
do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs
princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios
(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias
(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER
2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta
separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as
interaccedilotildees da physis satildeo reportadas
O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa
instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para
que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade
deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees
invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como
fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano
cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas
O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica
unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja
significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade
A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de
julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida
Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e
soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees
matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um
16
pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo
esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a
racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de
inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem
todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de
racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num
enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico
Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo
evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da
interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e
certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das
perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico
ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas
Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise
estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que
permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda
esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa
tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos
A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que
pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela
1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente
alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa
ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de
uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico
17
paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em
geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser
metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo
construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo
atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa
regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses
efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes
Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que
seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo
(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss
ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca
percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004
p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o
caraacuteter de objetos absolutosrdquo
O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam
dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises
filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para
expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute
menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS
2004 p 8)
Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar
autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do
mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo
estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute
18
o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois
mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais
esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo
Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-
Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e
uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas
funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que
suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um
procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito
natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de
accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica
comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo
cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)
Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura
permanenterdquo
A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o
significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que
o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler
simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito
como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender
como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos
musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees
que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash
mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se
19
imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss
como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os
grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que
remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que
supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e
pela distacircncia cultural das eacutepocas
Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e
compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico
teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto
os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia
elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e
elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs
primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios
Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a
funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo
inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que
representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem
decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)
A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e
esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo
aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o
um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico
Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do
tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em
20
planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos
aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o
mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha
meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993
p 169)
Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo
dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico
psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por
pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes
A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por
causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano
cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas
grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do
meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os
grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade
unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir
Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da
causalidade
21
I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade
O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os
o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra
de que castigo teriam no porvir
Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104
A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de
uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em
resgatar-lhe a filha raptada
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei
A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena
Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide
Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha
nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()
Iliacuteada I vs 8-15
Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para
responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se
saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira
vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e
danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as
3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma
estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens
configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse
caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo
inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego
conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no
primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)
22
fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel
de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade
divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da
causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e
localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa
eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo
satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal
Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina
vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma
accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral
associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute
oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber
atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere
sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do
passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais
complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo
mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade
eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo
mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a
consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo
padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em
situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do
comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal
apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma
23
conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um
contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da
racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma
experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o
ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As
conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que
estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que
caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana
Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute
ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma
Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se
daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo
eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo
dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no
mundordquo
Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a
matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da
concepccedilatildeo racional da teacutecnica
Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada
pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de
Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a
sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia
astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice
24
de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono
obteacutem a soberania do Koacutesmos
6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada e urdiu dolosa e maligna arte
Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo
forjou grande podatildeo e indicou aos filhos
Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo
ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes
ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso
pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo
Teogonia 159-166
Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a
inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego
dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima
instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de
Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)
O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador
com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os
meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia
para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel
como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia
teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza
A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo
linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As
gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a
violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual
de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a
25
Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos
das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de
princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um
caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de
concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da
distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da
desordem personificadas nos filhos da Noite
A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo
de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim
como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras
Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais
A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida
simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave
infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso
A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel
12 Causalidade e Poder
Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de
poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do
Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica
5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo
estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a
anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento
constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista
como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo
procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio
apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao
abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par
26
A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia
maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo
implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute
indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da
Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus
Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos
Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias
o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio
com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra
e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens
sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala
E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um
do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos
tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas
natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei
HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462
O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A
vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a
presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a
uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e
encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o
astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia
esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que
tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia
astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que
complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um
plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da
potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio
historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de
agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)
27
permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania
basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que
soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade
Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila
como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a
conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo
de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos
melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo
poderosas a ponto de serem epifanias divinas
O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees
da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais
novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo
problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania
(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e
Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e
empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila
destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer
voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados
soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-
retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo
de uma ordem coacutesmica imutaacutevel
A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia
astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as
28
circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e
fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a
escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado
somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder
soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta
de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em
sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo
comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa
pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de
meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo
oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a
consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a
provedora e a chancela do poder
Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de
lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os
irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros
coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para
obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores
respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus
liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia
consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido
por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a
reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria
passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo
29
de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para
instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia
presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta
Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa
de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados
pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio
da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si
mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O
Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia
e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal
(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o
equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o
concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e
do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a
Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo
(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte
de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo
Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo
presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar
7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e
sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que
Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi
ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash
a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato
de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma
perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como
oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant
confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)
30
Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que
deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece
mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo
(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a
ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida
quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias
Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a
atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees
subsequentes
Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram
filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai
decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia
a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo
na cova da Terra8
(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)
A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do
instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de
violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a
penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o
princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de
Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de
violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo
astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis
desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico
8
31
emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo
masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis
feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um
apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica
feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento
Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra
realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida
Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia
que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular
categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis
ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se
de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro
Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das
Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites
intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui
medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo
primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos
irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma
sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas
brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico
Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo
princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo
irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo
ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas
32
O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus
serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a
partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a
reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de
lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia
hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei
irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis
13 Causalidade e Reciprocidade
A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da
reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o
estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia
Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da
reciprocidade
Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo
como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las
Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo
que te banhes e possas dar largas ao peito querido
para depois ao navio voltares levando um presente
muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha
parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado
A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte
Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora
Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta
quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa
Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado
Odisseacuteia I vs 307-318
Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo
comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que
estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A
33
proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute
caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O
estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais
que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente
permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a
representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o
discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o
reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute
apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa
universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A
reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou
hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo
Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no
desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como
justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da
oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela
que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria
Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece
significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a
seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio
constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila
do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a
desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a
equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com
34
mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo
precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo
somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento
oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a
noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e
do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral
Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a
um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com
a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a
noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē
Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias
zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou
Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e
Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das
falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite
associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira
guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo
e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo
opostos
Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano
e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a
abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de
ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo
35
Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com
a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres
em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem
confiante ()
Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida
(epimetrḗsso) ()
Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a
mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )
(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)
A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no
iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta
quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos
dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute
entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de
comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano
lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas
quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos
apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente
das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento
oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas
de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de
uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia
grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o
momento oportuno (kairograven gnōthi)
O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal
agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas
elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da
36
fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida
(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O
excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave
vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num
espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que
suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos
desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas
suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria
No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a
exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a
contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A
concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees
que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de
moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a
contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as
interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O
comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e
recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo
muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de
verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem
9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim
que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era
torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de
medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)
37
A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina
com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo
operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)
mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das
partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a
proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da
causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo
princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu
Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus
pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu
escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo
apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem
Teogonia vs 613-616
A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um
confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a
violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No
combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas
inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-
se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de
accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que
distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os
acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na
mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de
38
simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios
eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron
O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os
significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p
263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e
no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de
um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica
humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino
A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das
alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento
e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser
efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por
conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo
almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites
as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em
conformidade com seu estatuto
A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto
que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas
Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a
significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio
da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a
reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com
a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos
atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e
39
relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees
latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um
deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada
de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a
insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu
redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que
caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses
A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante
dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria
representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de
presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania
de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin
teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto
humano
A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa
gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes
comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a
apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo
da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O
duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A
primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do
tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania
sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo
40
segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas
proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes
Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio
pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de
impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo
coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos
dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de
maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a
perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos
ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem
dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda
por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como
contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis
prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos
homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar
as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens
Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da
causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida
A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)
uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a
calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso
maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula
oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa
engendra nova retribuiccedilatildeo
41
O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o
contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de
todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os
males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo
astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela
contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de
Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave
necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do
fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais
Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano
em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia
divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do
homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos
deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano
Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e
delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo
inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as
coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos
tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo
Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos
titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo
de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser
unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de
proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode
42
passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e
Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua
Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade
ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento
inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que
separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido
humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do
feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites
sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade
divina que desconhecem as inibiccedilotildees
O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de
armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e
sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a
potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a
promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave
concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem
regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos
trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo
miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu
A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da
inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e
compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A
dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por
armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade
43
aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes
anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago
humano
A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na
experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a
inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a
expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde
o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter
dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal
iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009
p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos
males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males
silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a
significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos
Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o
viver excessivamente pesado para ser suportado
O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste
ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero
que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um
fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a
manutenccedilatildeo da vida10
O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia
teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de
10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e
arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute
encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)
44
absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos
homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e
selvagem como os animais
O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo
entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva
da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a
inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel
entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de
meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees
proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria
Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento
a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a
voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni
Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo
grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre
os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um
uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a
transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo
causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras
Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)
A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre
conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados
45
os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-
teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha
sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e
320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm
seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud
TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da
autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo
interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo
exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica
aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais
cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave
cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se
pertinente
O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a
criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os
maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A
questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma
inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O
comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja
finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete
um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)
palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E
natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o
que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico
(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo
46
desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes
coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere
um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o
acabamento do poema Como ele torna claro em um bem
reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos
ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que
ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte
(Derveni Papyrus Col VII)11
O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder
de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os
salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua
incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo
ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do
ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves
imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos
sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico
A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo
terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a
uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da
inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da
polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave
inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o
emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)
Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras
atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos
11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)
47
procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12
os
sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as
Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo
extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas
honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com
muacutesica13
Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e
libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis
A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo
dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o
caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da
Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e
sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma
Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente
(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma
12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo
pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar
antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de
sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain
(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e
posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade
de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF
apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui
ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas
encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo
do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve
oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta
[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica
(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)
48
inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa
imageticamente em versos enigmaacuteticos
A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da
natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com
o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14
Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute
intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que
carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas
causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar
por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e
interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual
O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a
uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a
visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que
possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana
e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)
A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15
A sabedoria consiste tradicionalmente
no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou
enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este
exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua
atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma
14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi
(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN
2003 p 63)
49
tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo
estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16
O discurso divino caracteriza-se pela
oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente
consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que
subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si
mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que
fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17
)
O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo
que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel
Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por
que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que
o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da
palavra
O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a
infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias
satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a
retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias
invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute
assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na
vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o
16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404
Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)
50
comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo
gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens
aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele
(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos
quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza
possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas
medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as
Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke
(Col IV)18
Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees
e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma
correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas
potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha
agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das
disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee
limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo
iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual
emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos
Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo
grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos
jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender
simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo
divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo
caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia
18
(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)
51
satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma
ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na
consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e
compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros
constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos
seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido
com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre
planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela
exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos
Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas
satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que
origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter
indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico
O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele
muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto
de cada um
DK 67 (KAHN 2003 p 105)
Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos
hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro
para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do
aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do
perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees
e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O
homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que
compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377
52
ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do
Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus
presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino
Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute
simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo
modo haacute uma divindade e muitos nomes
Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos
fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em
termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que
ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um
princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio
supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o
princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o
koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19
(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e
representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia
entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre
opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de
regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de
ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da
divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco
inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma
19
DK30
(KAHN 2003 p 73)
53
manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que
determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente
todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos
Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo
O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-
humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um
poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a
morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino
inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem
dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado
para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da
inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo
(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo
Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas
segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do
tempo20
Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo
para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o
necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos
outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21
Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a
qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo
20
(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel
em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)
54
de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso
significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo
A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma
progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo
rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis
eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da
causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila
vai muito aleacutem da esfera legal e moral
Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo
com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou
ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala
do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos
natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute
nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria
natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que
natildeo podem ser ultrapassados
A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral
como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo
compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e
destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)
Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente
reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios
A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que
cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as
concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e
serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo
teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo
coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel
salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
55
A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas
teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia
das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre
falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio
privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel
evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido
oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo
Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a
transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O
segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo
esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que
soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de
vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos
O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de
imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para
realidades invisiacuteveis inevidentes
Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)
que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)
imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas
manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm
heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria
com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os
prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou
manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia
satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo
haacute como crer ainda que vendo22
(Col V)
22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)
56
As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida
para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o
conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas
para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo
discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento
eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo
diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute
um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior
obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o
conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e
enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam
vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a
tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes
verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento
A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo
tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os
misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)
interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado
aos natildeo-iniciados
No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras
de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)
dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e
especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja
reconhecido (BURKERT 1972 p 176)
57
No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos
ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos
ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)
A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das
imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho
sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem
coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar
os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo
podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular
da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra
como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como
mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo
temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale
a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento
desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio
A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo
aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e
resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)
impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos
pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da
luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis
(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos
myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas
58
A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja
luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura
constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o
regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura
medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das
partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia
sexual
() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou
primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para
falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso
Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo
reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como
eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa
palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute
possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()
(Col XIII)23
Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai
designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da
potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes
da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia
identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do
substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem
o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)
O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a
venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo
jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da
23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)
59
Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca
identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de
Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo
Intelecto
A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a
propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no
centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia
astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva
astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel
(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o
concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO
Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese
simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona
ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau
diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A
cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o
umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da
emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio
do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio
das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois
todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash
Theologumena arithmeticae 25 17
O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute
onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia
cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um
afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da
accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e
vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)
60
Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e
cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas
Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a
Lenaia
(DK 15)
O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo
vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese
filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do
entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que
aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica
a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo
vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo
satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada
pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
61
II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē
Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois
modos o do mais velho que fala para com os mais jovens
demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso
(Protaacutegoras 320c02-04)24
O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a
narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha
prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein
kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas
pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos
O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons
naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar
estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o
conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico
permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a
inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder
de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem
Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no
movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se
apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e
modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais
mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO
2008 p 30)
24
62
Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de
Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito
reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees
a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES
HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos
platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de
Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja
estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de
Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos
epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em
contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de
Homero
Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em
diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)
Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo
sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo
(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟
tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte
sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e
satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua
pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo
postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo
estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou
meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico
narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟
(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)
Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico
das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico
possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo
e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de
63
julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai
leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya
do livro XI da Odisseacuteia
Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo
oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni
Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em
modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria
tradicional
Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo
caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o
ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de
poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria
religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte
da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era
acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos
secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda
uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo
tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto
miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de
intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a
divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto
ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios
praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma
primitiva e original eacute o Orfismo
O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e
por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se
desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de
elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que
Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe
com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma
Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do
64
narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo
evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato
Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes
da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO
2010 p 74-75)
Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do
Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico
encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da
ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e
traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da
Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico
O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um
tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25
A existecircncia preacutevia dos deuses
indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O
tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito
comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A
distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo
devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens
o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um
tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens
implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o
25
65
fundamento26
mediante o tempo exemplar para todo o devir27
A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo
buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma
absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28
poliacuteticas no absoluto
referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode
constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila
na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a
praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se
A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso
atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do
argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em
forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29
A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo
absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a
estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O
26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo
original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo
primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir
(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica
platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para
fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia
ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a
cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo
de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos
ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os
atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma
decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil
maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII
1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de
todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois
termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui
um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e
seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos
66
tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o
paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o
referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)
Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses
os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo
Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos
mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo
destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando
uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em
seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles
encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em
cada um deles em boa ordem como conveacutem30
(Protaacutegoras 320d)
Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos
primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se
inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os
mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua
modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo
movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos
fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31
30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles
67
Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com
kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de
Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a
imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)
se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32
O equiliacutebrio entre os opostos exige a
compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu
astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de
distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas
nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante
dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu
existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente
B 62 SIMPL Phys 381 29
[v1] [I 335 5 App]
[v5]
[I33510App]
SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29
Agora vem e como de homens e mulheres
de muitos prantos
noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-
se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem
alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam
de ambos de aacutegua e de forma brilhante
tendo parte estes fogo faziam subir
querendo ao semelhante chegar
nem ainda de membros amaacutevel forma
mostrando (eles)
Nem voz nem (tal) qual o membro
proacuteprio dos homens
(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)
(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)
Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de
ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas
cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres
naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do
alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote
umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo
(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos
precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511
68
ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute
inteiramente desprovido de capacidades
Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz
(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a
duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra
para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz
phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute
ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute
ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu
desaparecimento
A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia
paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do
natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa
sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia
todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi
gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um
tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do
tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem
primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves
gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia
primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos
tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-
ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)
69
Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a
antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a
passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o
ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE
1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual
se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens
antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo
cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e
misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado
a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria
que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-
se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a
repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas
somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)
O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos
concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e
imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo
gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em
combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o
novo homem
Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por
Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33
(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite
trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante
33
70
associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu
saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de
ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de
retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado
A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome
correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo
410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento
Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais
provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na
gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra
(Menexeno 238a 03-05)
A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a
gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o
ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e
a sexualidade34
e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE
1977 p 30)
Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do
artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias
advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos
A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo
desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A
distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio
34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave
de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual
surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave
noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A
conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis
Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B
71
ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida
de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu
natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho
mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35
Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e
Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave
theicirca nooucircsa)36
O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia
teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um
aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino
portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao
homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a
ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)
Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes
rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os
homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo
contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua
falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a
possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras
312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa
propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido
de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do
35
(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c
72
nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009
p 2)
As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja
natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37
O lote de participaccedilatildeo
e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses
mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de
participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que
pode nomear os deuses pela fala regrada
O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a
imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico
exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino
mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso
teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute
determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo
Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os
homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da
poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante
da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua
Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas
destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila
e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades
37
(Protaacutegoras 322a04-08)
73
Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de
Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos
deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O
mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato
moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o
fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o
feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio
se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a
expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38
(VERNANT
2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da
graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e
olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)
Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos
divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um
paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de
contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de
Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do
saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo
entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo
retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a
ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso
opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees
38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males
74
O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber
teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-
presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar
no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano
que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila
dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a
destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale
dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo
problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus
Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a
ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser
irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente
concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo
plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes
essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē
As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo
da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da
ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a
existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo
A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que
esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos
mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma
atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica
nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A
75
passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do
sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo
Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos
inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses
imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos
mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por
intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de
antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de
Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural
mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem
O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a
determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente
intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra
para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado
permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a
sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo
entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a
demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia
divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana
instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam
iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro
da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos
animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente
76
(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras
322c07)
A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos
homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do
divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o
sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas
aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o
profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus
invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente
Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo
salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre
poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo
dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a
distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com
equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama
em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo
tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē
O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade
poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a
contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo
ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados
invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute
essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial
subjacente a aidōs e diacutekē
77
Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil
desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo
de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos
basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila
equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais
homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica
I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia
independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados
delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus
(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A
triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os
mortais devem sua existecircncia aos deuses
2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos
homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade
determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e
suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens
caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das
necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia
exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da
teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute
determinado A razatildeo supera o determinismo
78
3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -
Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis
razatildeo
animais
homens O saber
teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva
um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A
cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades
humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades
humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida
na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute
reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu
(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um
parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano
e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A
divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso
Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia
demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da
cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual
maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a
pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo
e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os
homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo
teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento
das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e
que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e
79
alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do
Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da
oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo
Natureza Cultura
Deuses
Mortais Homens
Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica
Demiurgia
As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem
condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet
Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no
julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e
tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo
como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um
sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo
menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a
divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees
humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes
diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um
suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute
simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece
muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de
bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo
(GERNET 1982 p 14-15)
Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto
realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que
faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do
espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo
(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da
80
figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo
diante daquilo que eacute puro
Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego
juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e
neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que
designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas
respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra
aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A
experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto
inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute
diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre
da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de
evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar
o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par
reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa
indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou
derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva
Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver
correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica
para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo
respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo
indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada
resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva
81
A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a
Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a
uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o
mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele
ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar
Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu
lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)
Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em
estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel
de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de
Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que
vem a ser
Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que
ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras
afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se
melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion
epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o
itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A
finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los
ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser
Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um
retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu
ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo
mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos
82
oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um
novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano
dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria
concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē
Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo
determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema
inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das
comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do
visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de
virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo
simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia
Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do
mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas
satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso
caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo
que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de
profanos39
Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40
Eacute por
participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em
sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra
39
(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o
gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um
mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que
Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria
uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso
na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a
iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico
83
os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees
cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de
inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do
domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem
passaram a destruir-se mutuamente
Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira
equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que
natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de
potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por
conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a
desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens
convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como
afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por
conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias
determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A
participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar
coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por
todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos
sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar
e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo
muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica
cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes
tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou
impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta
84
A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e
da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas
que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da
philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)
Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41
Em primeiro
lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem
potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios
instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em
conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade
participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos
vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus
efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo
determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter
absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica
Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da
existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia
estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a
41
Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz
como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como
dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou
desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63
n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute
constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no
reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem
Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da
proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e
respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes
suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e
a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca
simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)
85
destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a
determinaccedilatildeo de homens e cidades
Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo
como natildeo satildeo42
haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o
afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel
que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma
divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos
condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia
O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em
contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia
destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem
constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si
A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a
violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A
teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a
medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade
Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo
desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve
aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da
coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a
vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)
42
Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B
(Teeteto 160e09)
86
Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a
destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a
cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que
possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees
rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de
inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus
experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo
para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por
um afeto de pertenccedila muacutetua
Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da
polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade
exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo
do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais
para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma
dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para
fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e
amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a
vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia
ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a
previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem
como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o
homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da
guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo
heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem
87
medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis
em outro noacutesos peste da cidade
A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano
ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a
compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo
perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43
Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a
corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos
justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a
ordenaccedilatildeo do tempo
Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio
da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos
afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave
violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave
vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo
ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das
armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no
amor mas tambeacutem no sangue e na morte
A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo
permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de
compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em
direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)
43
DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B
acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo
88
Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo
entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos
ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio
do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir
do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na
cidade mas perde a alma
A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios
que coloca em perigo a alma44
O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios
empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos
alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se
nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45
pretende receber um ensino transmitido por um
guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel
anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um
mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e
experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao
desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis
socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute
incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um
sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta
fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)
44
(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao
saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)
89
Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico
Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto
do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)
Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa
o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um
eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees
postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de
hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de
bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro
A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a
porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades
muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a
humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais
elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado
pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um
ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees
originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo
a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)
O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino
iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em
direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a
medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao
90
melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46
Assim
como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as
disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e
guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e
delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos
O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de
passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas
possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela
iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)
A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de
Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio
Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e
espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da
accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e
supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)
O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo
apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados
independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas
aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo
especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo
mediada pela palavra
46
(Teeteto 167a04-06)
91
A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase
das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT
1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais
acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo
(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem
excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo
direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo
ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)
A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos
sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a
condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado
superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila
A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende
remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste
somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo
consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem
ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o
olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob
exame
92
III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM
QUESTAtildeO
31 Eros e Loacutegos
Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que
o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il
V 3)
Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se
ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais
brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles
Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo
dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que
configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias
especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro
culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto
de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a
desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido
pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que
reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis
No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como
o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia
entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das
coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio
da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia
93
perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute
provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um
tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que
ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)
O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos
valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta
de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade
distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e
outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo
mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e
diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual
ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de
falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos
prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com
todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47
Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte
pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)
Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na
afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da
(Goacutergias 484 c09-d07)
94
possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48
Soacutecrates e Caacutelicles
padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a
natureza do Eacuteros
O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da
encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto
como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia
ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o
belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo
puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um
carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela
esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de
quem haveraacute de continuar procurando
O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de
Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em
Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como
forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico
segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e
aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos
agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em
Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao
reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em
Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se
Goacutergias 481 d)
95
entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo
sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o
discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu
amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia
para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia
harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da
inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista
(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu
proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles
desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49
satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e
arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo
apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e
porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50
Quando o
desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os
meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num
49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma
multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e
uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa
do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na
natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela
refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o
opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o
ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
110)
(Goacutergias 482b04-c03) 50
(Goacutergias 465a)
96
caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a
mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a
personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar
valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para
a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do
bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o
discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias
465d)
A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas
opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para
outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas
expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se
entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo
mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se
relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido
pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um
bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
105)
A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas
assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como
a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra
restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero
Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa
disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo
97
implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as
artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas
Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes
autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as
aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute
para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O
discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o
bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como
a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa
disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da
multidatildeo estaacute para a Filosofia
A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a
ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente
do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por
amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por
Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o
mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a
riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros
Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o
plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo
sempiterna do belo
Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que
digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto
Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o
98
movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele
num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O
movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O
discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do
conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute
diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o
conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de
seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo
pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte
para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser
desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o
proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que
haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra
32 ndash Vida e ḗthos
Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se
potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos
loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos
antagonismos
Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de
vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo
excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a
inteireza da vida
99
O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51
se contradizem
uma agrave outra52
- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um
todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em
contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo
haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica
grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de
Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53
O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a
afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e
confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala
51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo
V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da
eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a
significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao
que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de
ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja
claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em
Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza
humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios
inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo
significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de
outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para
os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso
natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA
fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()
mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo
difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao
primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez
que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada
atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita
por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52
(Goacutergias
482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura
Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio
para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem
refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se
inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o
designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)
100
segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54
(483a) A questatildeo dos
valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo
pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende
de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o
estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55
A noccedilatildeo
convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior
determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees
satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece
que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma
vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56
e coincide
com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que
nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do
que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos
muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon
leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste
em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das
54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre
e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo
dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p
571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos
sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha
sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B
118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo
impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser
preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso
favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse
constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para
as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa
posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas
pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente
justo (IRWIN 1995 p 103)
101
multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os
melhores e os mais robustos dos homens
Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens
fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que
estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em
sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos
homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que
possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto
E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros
Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo
inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso
procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam
injusticcedila57
(Goacutergias 483b04-c08)
A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha
que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva
diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de
todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso
(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez
brota da estima puacuteblica58
Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que
caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles
considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a
Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na
prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada
pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de
exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o
sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes
vergonhosas a genitaacutelia
102
tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e
a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de
adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p
26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem
configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida
honoraacutevel
O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade
de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo
pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees
longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e
violentando a sua respeitabilidade
Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se
despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto
a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto
para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-
se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito
esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a
presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o
ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no
fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios
como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio
mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X
1850)
A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a
genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa
Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o
olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e
daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos
costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas
103
pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a
beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos
costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e
desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia
que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas
as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma
caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica
uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez
O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam
encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59
Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram
constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua
nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e
Natureza frequentemente se contradizem
A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute
precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o
grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira
natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais
vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)
subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em
todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo
(483e-484b)
59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A
dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso
acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)
104
A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles
Koacutesmos60
para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato
excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de
perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)
Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute
um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61
Assim como o discurso exemplar de
seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem
Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos
que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais
capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo
estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os
animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza
(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses
(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como
brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho
da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor
aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores
homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)
60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio
de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo
designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta
Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no
sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato
Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o
significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo
ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute
propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do
incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009
105
A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com
razotildees No caso de Helena62
as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um
toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute
natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de
Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para
se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos
o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e
ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela
Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior
Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila
persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de
um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base
material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)
Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve
receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena
7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio
de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se
encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63
ndash os loacutegoi movem
os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por
natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de
62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo
fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime
democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63
106
combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como
meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado
ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem
mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por
constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade
Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o
ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a
natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos
expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila
outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem
outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos
ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam
completamente a alma
(Elogio de Helena 13)
A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade
daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se
poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve
imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a
usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto
Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato
natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e
fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da
forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que
por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e
censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite
Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas
com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles
advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na
107
constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem
nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje
o mais capaz
Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de
noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64
dos mortais e dos imortais Como observa
Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo
ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas
ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema
de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para
retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo
(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para
a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de
que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65
Estaacute advertido de que o recurso ao poeta
de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda
comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por
afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo
comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a
violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores
64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e
Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um
filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou
dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era
formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das
coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera
monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o
Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo
108
que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos
heroacuteis da Heacutelade
Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da
sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila
encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo
Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66
Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos
longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A
encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a
opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a
identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos
afetos ligados ao crivo puacuteblico
Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega
(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma
busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o
(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema
antropoloacutegico invariante67
A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de
descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por
meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e
a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei
se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo
66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este
padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado
de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho
Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual
obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de
Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-
se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)
109
Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento
divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano
coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha
vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso
momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-
humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder
(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento
confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a
possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais
era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de
encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso
(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso
encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e
haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso
(BURKERT 1979 p 85)
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade
Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-
significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de
morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68
Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da
bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel
vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem
mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o
68
(Apologia 28b03-04)
110
valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute
justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da
morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que
o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha
A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os
amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)
Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute
preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela
gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada
indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A
identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da
derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um
homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa
puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu
prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem
abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir
seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado
aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo
ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os
privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do
grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do
kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um
errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem
sem nenhum valor
(VERNANT 2001 p 407-408)
A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente
preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo
em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores
seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio
coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte
Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a
ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si
mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha
opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem
111
calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra
(Apologia 28d06-10)
O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o
aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo
dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da
paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem
exame natildeo merece ser vivida69
A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a
reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada
cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das
riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da
verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa
transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e
com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo
interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende
do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para
consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a
brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os
maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se
numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos
que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais
No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica
a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao
disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das
69 (Apologia 38a05-06)
112
leis como encantaccedilotildees70
e sortileacutegios71
cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural
A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos
leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao
estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve
ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates
Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado
na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias
sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada
dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um
acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a
morrer se ele quisesse se honrar com tua morte
Goacutergias 486a-b
A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que
interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo
do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino
sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com
isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da
70
(Goacutergias 484e05-06) 71
Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios
( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um
inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres
afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute
apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore
consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e
413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de
privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que
satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera
por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo
consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por
meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento
de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que
derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)
capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso
das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os
medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)
113
opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como
elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo
O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia
universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do
vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da
desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com
conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute
feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do
erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos
como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional
uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura
do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas
faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre
responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo
personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a
afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico
responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da
salvaccedilatildeo
Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo
suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro
aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72
ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo
eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom
72 (Elogio de Helena 10)
114
e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos
efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade
Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia
a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como
mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente
reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente
constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)
Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito
mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra
Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece
em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos
mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo
verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum
continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que
o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o
deve
A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute
desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo
propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73
Tal adestramento eacute
semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de
extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo
(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo
(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste
73 (Goacutergias 484c)
115
entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio
indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a
formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O
resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica
e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida
calcado no conflito de interesses
A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia
mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto
de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do
homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove
a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave
sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de
uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)
e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica
agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74
(MICHELINI 1998 p 55)
Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado
na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo
eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)
Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa
reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas
exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel
74
o
(Goacutergias 485c)
116
para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao
desprezo e ao ridiacuteculo
Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a
encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo
aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de
desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento
eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha
puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade
aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo
pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute
mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa
vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das
partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir
de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75
Afeto e
discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente
Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a
justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo
se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa
concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que
muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente
segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento
(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo
consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)
do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi
enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido
por se envergonhar de dizer o que pensa76
75
Goacutergias 482c05-07 76
(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
117
Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a
lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre
precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos
dois termos da divisatildeo77
Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a
reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a
vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a
vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as
convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade
Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O
criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para
consigo mesma
Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um
impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute
contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as
crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento
que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo
77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute
moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha
convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau
seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem
semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees
semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as
interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da
vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos
pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva
exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois
sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da
significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma
118
pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78
O iniacutecio
da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada
pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79
O proacuteprio Caacutelicles
afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo
entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia
(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra
emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida
aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os
discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute
contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e
pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila
e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma
A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo
da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que
configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de
qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se
78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram
Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo
empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas
do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso
simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente
(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em
torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa
perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da
verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada
ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive
como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional
segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave
crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p
olympiodoro
119
deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente
estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a
posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir
primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de
viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando
(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o
que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)
Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80
a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela
alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo
depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra
encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81
Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e
torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em
conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo
(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma
80
81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por
sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides
opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e
filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset
(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais
ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais
sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de
uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute
muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de
Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles
na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo
permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de
Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e
Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo
penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides
eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade
chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)
120
bouleuacutesaio)82
Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo
por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano
Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma
personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada
simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar
a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o
homem comum forma a sua opiniatildeo
A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica
natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz
arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a
persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que
Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da
eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute
que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A
racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que
garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade
das circunstacircncias e das conveniecircncias
Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a
alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim
do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e
influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos
significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a
82 icirc
(Goacutergias 485e06-a03)
121
pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o
ouro agrave alma prova o loacutegos
Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute
simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma
mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83
A exortaccedilatildeo
retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora
ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a
faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da
descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do
caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)
O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees
diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute
preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza
(parrhēsiacutea)84
Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente
agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das
accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas
83
Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como
instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos
forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem
a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo
mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma
(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em
ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs
precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem
os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do
juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente
enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84
(Goacutergias 487a)
122
aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de
fragmentaccedilatildeo
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea
Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser
Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua
chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a
maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte
Goacutergias 461d85
A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o
cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida
ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea
constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer
expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86
denota a prevalecircncia dos
interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade
Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o
pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e
revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja
com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem
impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas
da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene
Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os
85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη
ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε
ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a
parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do
benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu
objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica
e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo
com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma
atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)
123
princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que
simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a
ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva
(SAXONHOUSE 2008 p 87)
A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder
sobre o outro na cidade87
o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash
encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs
plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na
assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os
afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e
da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento
discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder
encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do
discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee
encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim
como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)
Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que
desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam
permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu
de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88
Estrangeiros eles satildeo
87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88
ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ
παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ
πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ
124
considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e
excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A
vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem
poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as
maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos
suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros
pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar
livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)
Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta
entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre
desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais
satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas
A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o
gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar
francamente89
como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais
importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que
buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)
A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes
(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90
(Laques 179c01) A
consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento
conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor
Goacutergias 486a06-487b05 89
(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial
ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao
ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)
125
pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus
efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a
ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)
O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e
fazem o que querem91
A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um
conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a
dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a
educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na
guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram
como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do
descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se
(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O
descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92
A
dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea
negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que
configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos
pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a
democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da
incompatibilidade interna de seus valores
O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O
cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente
um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento
91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p
15-20)
126
O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e
reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)
Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom
conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que
lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo
tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho
mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades
poliacuteticas
A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a
confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia
manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa
simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores
questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da
finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a
franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo
Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de
paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado
pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo
dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar
instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua
proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida
devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda
franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A
incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma
127
fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu
loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos
Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o
veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de
todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele
ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da
origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis
democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93
e
franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida
particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela
multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade
(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos
supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a
alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos
licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de
prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora
se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta
em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres
(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para
o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma
vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se
embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma
vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites
93 (Repuacuteblica 557b)
128
e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada
ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a
incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute
relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou
excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)
No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates
alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia
do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame
da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do
interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute
tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio
para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos
neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)
Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica
uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um
tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes
personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se
um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o
mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica
que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as
eacutepocas como um tipo de homem
Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo
platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO
1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um
129
ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato
do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado
a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS
2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender
Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel
de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo
(JAEGER 1995 p 666)
Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais
perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas
personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees
indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria
psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada
ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em
consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma
triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores
remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A
triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da
proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso
de um lado e as accedilotildees de outro
Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam
os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi
muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e
imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante
130
apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que
Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles
A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o
assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio
verdadeiro94
Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor
modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas
para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)
A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95
como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que
entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com
94
Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua
franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece
exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds
por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo
que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor
implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de
Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de
Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila
convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para
muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada
no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste
problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p
103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de
vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente
de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas
encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense
Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o
objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses
verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz
pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A
incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de
proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de
vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o
acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em
torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em
seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no
argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes
satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os
homens Ver KERFERD 2003 189-221
131
Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo
(eriacutezein)
As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir
imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que
natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma
atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse
poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor
preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis
mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)
da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode
haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam
adversaacuterios e inimigos
(Protaacutegoras 337a-b)
A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso
natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a
eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves
dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das
armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este
se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela
tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto
a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a
eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma
que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A
atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que
constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o
princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua
aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a
atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da
132
verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em
oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em
relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que
o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que
supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)
Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo
psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se
efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que
opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo
pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs
que eacute a inteligecircncia do bem
No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por
conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se
contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se
contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na
direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que
permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos
discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo
autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e
que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)
A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira
inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso
133
implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96
Por outro lado o
movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da
verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995
p 671)
As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade
deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no
plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja
acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga
e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo
cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por
um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o
que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a
mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com
estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso
Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos
96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os
erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite
O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e
o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)
134
35 ndash A retoacuterica da alma
No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem
de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou
verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da
equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)
Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como
o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)
natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa
e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu
desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o
Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados
com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da
descrenccedila e do esquecimento (493b-d)
Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que
ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma
argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o
proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem
ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel
A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert
(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por
outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e
do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais
restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant
(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados
135
a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra
de vida pura reservada aos iniciados
O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que
moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um
ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua
conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para
a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la
Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos
A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a
inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando
modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas
afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um
novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de
misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a
significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no
mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os
quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo
norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)
Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios
haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na
Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza
ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais
136
belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais
possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)
Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo
de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o
pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o
que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)
Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado
e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)
dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por
um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma
transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio
Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico
cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O
discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio
uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da
investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua
posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo
genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos
elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e
impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo
segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo
obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos
divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a
exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma
137
homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o
alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento
isolado do corpo
A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que
determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma
se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose
dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma
perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟
O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves
praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas
comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a
impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave
transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais
elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios
espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que
remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza
No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as
instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das
faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de
reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas
(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute
o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os
recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de
reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem
138
divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a
prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de
Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees
Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma
fonte
ao lado dela se ergue um cipreste branco
eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam
Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes
Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre
do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas
Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento
porque tu exploras as trevas de Hades obscuro
Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado
Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido
De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟
E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico
Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene
E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada
Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na
gloacuteria 97
(I A 1 9-11)
Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a
Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular
as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas
egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as
instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um
livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos
escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma
vertente religiosa
Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que
permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao
misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de
97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)
139
elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete
dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas
Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que
demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade
muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira
se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas
entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de
pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no
movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos
A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que
permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia
do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A
foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante
com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe
que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao
cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo
vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse
acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um
exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento
A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem
consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o
proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de
purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que
estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens
fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas
(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades
sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute
140
deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez
laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles
que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso
(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi
(Feacutedon 69b12-c2)
A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e
os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio
iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta
para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre
o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles
que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do
que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)
Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita
controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que
suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em
um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein
indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como
oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por
ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado
miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus
Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro
lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o
emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve
simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que
envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e
vinho (CASADIO 2010 p 46-60)
141
A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as
expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que
configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees
funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja
acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas
Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o
proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos
baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e
podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas
coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de
orfismo baacutequico
Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da
Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a
autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos
particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos
prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu
crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam
iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro
mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios
(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)
Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a
exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas
de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a
transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No
Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que
natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a
transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela
142
Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada
pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de
exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina
A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma
gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes
natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma
polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que
buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma
A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como
isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A
harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute
uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo
ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de
harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou
uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na
analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter
uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e
a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da
harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o
acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo
entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da
comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e
quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de
opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)
143
A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel
(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na
economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma
eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais
Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja
inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo
pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de
modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma
inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa
Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes
que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo
(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o
discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute
Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que
consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas
A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida
agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em
colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os
juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades
Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante
teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta
vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo
A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina
na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as
144
almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e
esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)
indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O
esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do
nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade
do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento
como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)
A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria
numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A
ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os
apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na
inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo
unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos
Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no
Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna
insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos
que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na
qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e
psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia
As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o
regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui
toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute
representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade
penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo
145
psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e
do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica
eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre
renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo
(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de
todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse
do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites
Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de
vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente
escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador
dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus
desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas
e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele
extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de
sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da
cidade que dirige
(Repuacuteblica 579e)98
Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente
a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que
vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade
cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)
A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo
tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega
dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se
pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o
divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica
98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)
146
Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e
Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de
Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De
acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC
conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por
convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica
do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto
por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a
ciecircncia do caacutelculo e da geometria
No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da
geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de
Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute
notavelmente paralela agrave do Goacutergias
Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo
de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de
outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo
pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute
difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente
mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute
impossiacutevel investigar
Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e
aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida
(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por
meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas
transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe
do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que
haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento
para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes
que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo
ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede
aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo
revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica
geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)
147
O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo
pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta
arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a
organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma
visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais
geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico
A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos
constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a
relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da
justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza
pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da
inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea
O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa
cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico
concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a
posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas
Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo
Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da
funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel
No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos
materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau
de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia
148
Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de
viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos
alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos
alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma
mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de
harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A
alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo
domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos
determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles
a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma
harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua
concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento
de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas
Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute
calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute
causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as
relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam
com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e
harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja
sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo
intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no
acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de
todas as coisas
149
36 Julgamento e nudez
O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei
da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas
accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a
correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os
sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado
caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da
desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural
entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a
desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto
Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes
vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram
promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos
juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel
com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave
validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais
privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias
das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a
perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar
A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os
sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as
riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos
possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute
preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas
150
discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo
empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila
Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam
mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o
expediente astucioso que remediaraacute o mal
Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de
conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem
em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a
Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida
eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados
de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar
mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada
aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o
momento da morte cada um esteja separado de todos os seus
proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o
uacutenico meio para que o julgamento seja justo
(Goacutergias 523d-e)99
O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do
mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria
representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A
capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as
carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero
humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da
comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a
desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano
cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo
entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o
visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto
99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)
151
O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas
teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos
os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos
exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma
separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor
A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada
pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do
engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A
vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e
censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o
afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que
deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser
evitados sem a tirania dos apetites
Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo
meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de
prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato
do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria
do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a
finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode
apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros
baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em
sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida
A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos
e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova
152
acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se
mutuamente
No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a
autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes
aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo
geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A
alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)
Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode
crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira
de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do
mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a
eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a
contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo
obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia
(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes
desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia
Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de
conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias
511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para
tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para
culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa
outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo
devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas
imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)
153
Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a
qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para
exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que
se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis
(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as
melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os
apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui
disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou
besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha
(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo
resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria
da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica
indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)
Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto
em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer
bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)
Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum
ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de
que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos
deve servir para a perenidade do justo (527c)
154
IV - NECESSIDADE E ESCOLHA
41 Imagens e causas no mito de Er
No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa
de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de
noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com
a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade
Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a
escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como
princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o
desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o
lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada
Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras
ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo
eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes
vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro
a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo
tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais
ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe
O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100
Repuacuteblica X 617d06ndash617e05
Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas
vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101
A maioria eacute
guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que
100
Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees
Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous
thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos
haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton
autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)
155
acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida
Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha
Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais
modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo
Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis
Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo
do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a
estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando
tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos
caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas
destes modos de vida examinando por quais meios por quais
maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia
ateacute o fim desta travessia que consiste a vida
Leis VII 803a-b
A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma
analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a
construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar
estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102
O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais
fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103
A mais
fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio
modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio
de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel
Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de
fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo
eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no
que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao
deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem
poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar
102
tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)
156
examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela
seja a melhor possiacutevel
Goacutergias 512 d-e
A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos
inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder
humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem
cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a
vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas
escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos
e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A
orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo
do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo
natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida
O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da
multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em
que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento
desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas
Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo
a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver
Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica
X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo
tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104
Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte
implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa
104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon
eicircnai
157
(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a
impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de
princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p
114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua
complexidade
Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos
impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave
kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A
tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes
(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas
merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X
604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo
ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o
mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo
que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada
(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste
em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)
No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e
(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se
com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do
melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e
causa
Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si
mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece
a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao
158
ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em
movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que
eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo
se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que
esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu
movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao
contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio
uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma
Fedro 245d
A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento
Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de
outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma
causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo
necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre
efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo
(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio
Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa
Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia
(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)
A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a
economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que
terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim
No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)
alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e
o mal
Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem
somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa
ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que
conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a
159
A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do
Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-
poliacutetica
Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve
terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo
eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo
para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor
somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do
Bem (DIXSAUT 2001 p 130)
A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a
potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se
escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade
pelo qual a realidade eacute apreendida
Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser
justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees
multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis
como consolidaccedilatildeo
42 ndash Mito e psykhḗ
Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por
imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos
patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo
miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um
iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o
160
pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as
accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica
A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer
e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem
referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda
estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia
estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105
Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e
constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura
miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do
psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades
Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares
visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106
Assim como o Ser estaacute para o devir
assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia
se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de
relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir
das imagens que lhes servem de postulados
Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma
realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela
inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de
105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a
mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras
No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor
dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute
te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible
and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)
161
imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais
para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107
Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A
significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um
registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da
inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute
desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir
como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a
argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)
eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)
da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a
bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108
Para se evitar a
misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo
para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)
Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar
aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia
crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute
assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)
107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a
relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de
certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar
mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo
que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo
de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de
traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo
portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente
pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous
162
O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)
que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua
proacutepria situaccedilatildeo particular
43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS
A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como
risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte
O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade
A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos
Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo
que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade
(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto
e negligenciar a eternidade109
A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo
indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um
paradigma atemporal
O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as
almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion
(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra
Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel
concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade
diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de
109
Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que
eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana
bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei
touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon
Repuacuteblica VI 486a 09-10
163
realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados
no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam
a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma
estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com
determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do
que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa
ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110
Haacute uma
simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo
Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um
lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111
(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas
mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que
prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica
616b-c)
A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma
coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda
atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis
divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso
ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um
sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz
110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein
Feacutedon 109b0708 111
Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as
esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos
164
No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute
mensageira112
No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas
Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que
ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do
saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113
natildeo
esboccedilou mal sua genealogia
(Teeteto 155d)114
Como nota Narcy115
Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte
constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a
atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se
expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116
Universal antropoloacutegico a
imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre
indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117
112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi
verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira
Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir
desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris
e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera
que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam
(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)
De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent
Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous
parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris
(CHANTRAINE 1999 p 469) 117
Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem
natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores
segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel
estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a
imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc
mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material
body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis
otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and
imaginative purpose in view
165
que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e
o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo
passo do Timeu
Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que
atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga
da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades
nascidas no interior do ceacuteu
Timeu 40b-c
Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial
fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-
97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da
phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender
a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo
como condiccedilatildeo epistecircmica do devir
Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os
observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo
outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso
perturba nossa alma
Repuacuteblica X 602c
O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de
modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X
602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no
inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente
aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees
eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis
Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos
de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira
166
geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118
No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo
da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma
mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a
maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da
persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura
Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave
constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante
ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de
regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento
eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter
randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos
Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de
determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo
No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na
estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar
Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das
almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as
118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura
uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)
causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional
operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura
anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No
segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo
desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o
demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem
no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a
geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do
movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do
mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo
167
escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica
X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er
representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto
divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes
Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do
lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo
total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio
soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem
remissatildeo
Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica
coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos
indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao
koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os
movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem
personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da
necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a
natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito
inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida
As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia
unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca
simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras
entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes
mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto
168
sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da
causalidade
Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma
causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e
muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da
causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as
repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio
causal primordial de Anaacutenkhe
Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade
eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na
necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute
determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva
causal
Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos
miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)
Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o
discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes
(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um
perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as
consequecircncias
O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que
mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute
algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de
que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A
169
filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito
contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo
designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que
natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo
confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento
Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na
atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar
para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida
jaacute que toda vida eacute uma mistura
Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo
tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto
pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico
No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os
deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119
respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave
justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os
planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma
119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave
amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado
observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo
porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo
necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees
poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido
os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis
matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)
Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se
A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter
comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica
necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um
prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise
argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens
correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo
entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea
170
lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos
Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico
Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo
resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe
conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a
natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica
que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de
uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da
inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial
consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora
que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o
fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei
Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a
precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela
Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas
pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior
capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha
comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da
Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de
desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem
que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)
Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem
mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de
retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o
171
Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar
arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude
Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate
maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau
Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza
nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e
negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120
Repuacuteblica X 608b 04-08
O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que
os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem
muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste
em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo
combate que existe121
a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade
do mal a ser combatido122
A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos
os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente
associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite
viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um
elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo
miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que
consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem
para vencer a mistura de dores e prazeres
120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai
hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai
dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai
(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene
toucirc meacute
(Goacutergias 509c03-04)
172
A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da
pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter
sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma
discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande
significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das
profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu
viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por
desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera
Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la
ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo
com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)
A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A
noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis
encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento
contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e
obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras
equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)
Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo
ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na
perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo
vistas e natildeo percebidas
Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do
pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as
realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio
173
agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever
ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia
com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da
multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica
Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se
conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica
infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea
174
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1Goacutergias
GORGIAS Elogio de Helena Traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli Belo Horizonte Anaacutegnosis
2009 Disponivel em
httpanagnosisufmgblogspotcom200910elogio-de-helena-gorgiashtml Acesso em
10032010
GORGIAS ΓΟΡΓΙΟΥ ΕΛΕΝΗΣ ΕΓΚΩΜΙΟΝ Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics82-B11 acesso em 10032010
2 Aristoacuteteles
ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo e notas por Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2005
3 Antifonte
87 B 44 [cfr 99 B 118 S] PAP OXYRH XI n 1364 ed Hunt Frammento A Disponiacutevel
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics87-B Acesso em 02052010
4 Isoacutecrates
ISOCRATES Discourses Translate by George Norlin Harvard The Loeb Classical
Library 2000
5 Heroacutedoto
HERODOTE Histoire Traduction par Larcher Paris Charpantier 1850 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k203223nr=herodotelangPT acesso em 03052010 4
6 Hesiacuteodo
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Edited and translated by Glenn W
Most London Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Mary
Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2006
_________ Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed
Iluminuras 2003
7 Homero
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Ed Mandarim 2001
________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo por Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002
8 Platatildeo
Ediccedilotildees e traduccedilotildees
Obras completas PLATON Œuvres Complegravetes Paris Les Belles Lettres 1983-2003
Obras selecionadas
PLATON Gorgias Œuvres Complegravetes Trad par Alfred Croiset Paris Les Belles Lettres
2003
________________ Translated with introduction and commentary by E R Dodds
Oxford Clarendon Press 2002 A
________________ Traduction par Monique Canto Paris Ed Flammarion 1993
________________ Translated with notes by Terence Irwin Oxford Clarendon Press
1979
Collection GF Flammarion
PLATON Pheacutedon Traduction introduction et notes par Monique Dixsaut 1991
________ Cratyle Traduction introduction et notes par Catherine Dalimier 1998
________ Ion Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 2001
________ Gorgias Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
175
________ Le Banquet Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003
________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005
________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000
________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002
________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997
________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004
________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993
________ Theacuteeacutetegravete Traduction introduction et notes par Michel Narcy 1995
________ Timeacutee Critias Traduction introduction et notes par Luc Brissson 2001
9 Obras modernas
BEALL E F Hesiods Prometheus and Development in Myth Journal of the History of
Ideas 52 3 1991 p 355-371 BELFIORE E Elenchus Epode and Magic Socrates as Silenus Phoenix 34 1980 p128-
137
BENSEN CAIN R Shame and Ambiguity in Plato‟s Gorgias Philosophy and Rhetoric
41 3 2008 p 212-237
BENARDETE S Socrates‟s Second Sailing in Plato‟s Republic Chicago Chicago
University Press 1989
_______________ The Retoric of Morality and Philosophy Chicago Chicago University
Press 2009
BERRYMAN Sylvia Ancient Automata and Mechanical Explanation Phronesis
XLVIII4 p 344-369 2003
BLICKMAN Daniel R Styx and the Justice of Zeus in Hesiod‟s ldquoTheogonyrdquo Phoenix
41 4 p 341-355 1987
BOYS-STONES G R HAUBOLD J H Plato and Hesiod Oxford Oxford University
Press 2010
BRISSON Luc Leituras de Platatildeo Porto Alegre Ed PUCRS 2003
BURKERT Walter Ancient Mystery Cults London Harvard University Press 2001A
________________ Creation of Sacred London Harvard University Press 2001B
________________ Homo Necans Paris Les Belles Lettres 2005
________________ Lore and Science in Ancient Pythagoreanism London Harvard
University Press 1972
________________ Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica Lisboa Fundaccedilatildeo
Kalouste Gulbenkian 1993
________________ Structure and History in Greek Mythology and Ritual Berkeley
University California Press 1992
CLAY J S Hesiod‟s Koacutesmos Cambridge Cambridge University Press 2009
CAIRNS D AIDOS The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek
Literature New York Oxford University Press 1993
CARRIEacuteRE J-C MASSONIE B La Bibliotegraveque d‟Apollodore Paris Annales litteacuteraires
de l‟Universiteacute Besanccedilon 1991
CASADIO G JOHNSTON P A Mystic Cults in Magna Graecia Austin University of
Texas Press 2009
176
CARRATELLI P G Les lamelles d‟or orphiques Paris Les Belles Lettres 2003
CONACHER D J Prometheus as Founder of the Arts Roman and Byzantine Studies 18
3 1977
CORNFORD F M Was the Ionian Philosophy Scientific The Journal of Hellenic
Studies 62 p 1-7 1942
COSMOPOULOS M Greek Mysteries London Routledge 2003
CROCKET Andy Gorgias Encomium of Helen Violent Rhetoric or Radical Feminism
Rethoric Review 1994 p 71-90
DETIENNE Marcel VERNANT Jean Pierre Les Ruses de L‟Intelligence La Mḗtis des
Grecs Paris Flammarion 1974
DELATTE Armand Eacutetudes Sur La Litteacuterature Pyithagoricienne Genegraveve Slaktines
Reprints 1999
DEMOS Marian Callicles‟ Quotation of Pindar in the Gorgias Harvard Studies in
Classical Philology 1994 p 85-107
DEWINCKLEAR D Philosophie et Initiation dans l‟Œuvre de Platon Revue de
Philosophie Ancienne Bruxelles Eacuted Ousia 1 2010 p 29 - 65
DIXSAUT Monique Le Naturel Philosophe Paris Vrin 2001
DODDS E R Euripides the Irracionalist The Classical Review 1929 p 97-104
DORTER K The Transformation of Plato‟s Republic Lanham Lexington Books 2006
EDMONDS III R G Myths of the Underworld Journey Plato Aristophanes and the
bdquoOrphic‟ Gold Tablets Cambridge Cambridge University Press 2004
_________________ (Ed) ldquoOrphicrdquo Gold Tablets and Greek Religion Cambridge
Cambridge University Press 2011
____________ Os Grego e o Irracional Satildeo Paulo Escuta 2002 B
ELIADE M Forgerons et Alchimistes Paris Flammarion 1977
__________Images et symboles Paris 1980
__________ Initiation rites societies secretes Paris Folio 1959
__________ Le Sacreacute et le Profane Paris Folio 1965
__________ Mythes recircves et mystegraveres Paris 1957
EMLYN-JONES C Dramatic Structure and Cultural Context in Platos Laches The
Classical Quarterly 49 1 1999 p 123-138
ENGMANN J Cosmic Justice in Anaximander Phronesis XXXVI 1 1991 p 1-25
FARRAR C The Origins of Democratic Thinking Cambridge University Press 1988
FINLEY Moses Technical Innovation and Economic Progress in Ancient World The
Economic History Review 18 1 P 29-45 1965
FUTTER D B Shame as a Tool for Persuasion in Platos Gorgias Journal of the History
of Philosophy 47 3 2009 p 451-461
GAGARIN Michael The Torture of Slaves in Athenian Law Classical Philology 1996 1
p 1-18
GALIMBERTI Umberto Psiche e Techne ndash o homem na idade da teacutecnica Satildeo Paulo Ed
Paulus 2006
____________________ Man in the age of technology Journal of Analytical Psychology
2009 54 p 3ndash17
GERNET Louis Antthropologie de la Gregravece Antique Paris Flammarion 1982
177
4 _____________ Droit et institutions en Gregravece antique Paris Flammarion 1982
5 _____________ Recherches sur le deacuteveloppement de la penseacutee juridique en Gregravece
ancienne Paris Albin Michel 2001
GUIGNIAUT PATIN GIRARD J Poegravetes Moralistes de la Gregravece Paris Garnier 1892
Disponiacutevel em ltftpftpbnffr026N0262657_PDF_1_-1DMpdfgt
GUTHRIE W K C Os Sofistas Satildeo Paulo Paulus 1995
HAMMERTON-KELLY R Ed Violent Origens Satnford Stanford U Press 1987
HOTTOIS Gilbert Teacutecnica In CANTO-SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e
Filosfia Moral Satildeo Leopoldo Ed Unisinus p 665-669 2003
HUFFMAN K Philolaus of Croton Cambridge C U Press 1998
HUFFMAN K Archytas of Tarentum Cambridge C U Press 2005
IRWIN Terence Plato‟s Ethics Oxford Oxford University Press 1995
JAEGER W Paideacuteia Satildeo Paulo Martins Fontes 1995
JOURDAIN F Le Papyrus de Derveni Paris Les Belles Lettres 2003
KAHN Charles A Arte e o Pensamento de Heraacuteclito Satildeo Paulo Loyola 2009
_____________ Plato and the Socratic Dialogue Cambridge Cambridge University
Press 1996
KERFERD G B O Movimento Sofista Traduccedilatildeo por Margarida Oliva Satildeo Paulo Loyola
2003
KONSTAN D The Emotions of the Ancient Greeks Toronto University of Toronto Press
2007
____________ Shame in Ancient Greece Social Research 70 4 2003 p 1031-1060
KOSKLO George The Insufficiency of Reason in Plato‟s Gorgias The Western Political
Quarterly 4 1983 p 579-595
_______________ The Refutation of Callicles in Plato‟s bdquoGorgias‟ Greece amp Rome 1984
p 126-139
6 KRAUT R (Ed) The Cambridge Companion to Plato Cambridge Cambridge
University Press 1992
LAKS A Between Religion and Philosophy the Function of Allegory in the Derveni
Papyrus Phroacutenesis Leiden Brill XLII 2 1997 p 121-142
LAKS A MOST G W (Ed) Studies on the Derveni Papyrus Oxford Clarendon Press
1997
LAMPERT L How Philosophy Became Socratic Chicago Chicago University Press
2010
LARSON J Ancient Greek Cults Oxford Routledge 2007
LEacuteVI-STRAUSS C Antropologia Estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003
________________ Antroplogia Estrutural Dois Rio de Janeiro Tempo Brasileiro1993
________________ O Pensamento Selvagem Satildeo Paulo Papirus 2004
7 LEE Desmond Science Philosophy and Technology in Greco-Roman World Greece
and Rome 20 1 p 65-78 1973
8 LONG A A (Ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy
Cambridge Cambridge University Press 1999
LONGRIGG J Greek Rational Medicine London Routledge 1993
LUCAS D La philosophie antique comme soin de l‟acircme Le Portique [En ligne] 4-2007
Disponiacutevel em lt httpleportiquerevuesorgindex948htmlgt Acesso em 10 abr 2010
178
MARQUES M P Platatildeo Pensador da Diferenccedila Belo Horizonte Ed UFMG 2006
MIRECKHI P MEYER M (Ed) Magic and Ritual in the Ancient World Leiden Brill
2002
MICHELINI A N Rudeness and Irony in Plato‟s Gorgias
Classical Philology 1998 p 50-59
MIKALSON J A Greek Popular Religion in Greek Philosophy Oxford Oxford
University Press 2010
MOSSEacute C Politique et Societeacute en Gregravece Ancienne Paris Flammarion 1995
MONOSON S S Plato‟s Democratic Entanglements Princeton Princeton University
Press 2000
MORGAN K Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato Cambridge
Cambridge University Press 2000
NUNES SOBRINHO R Platatildeo e a Imortalidade mito e argumentaccedilatildeo no Feacutedon
Uberlacircndia EDUFU 2008
OGDEN D (Ed) A Companion to Greek Religion Oxford Blackwell Publishing 2007
OLYMPIODORUS Commentary on Plato‟s Gorgias Translated by Robin Jackson
Kimon Lycos and Harold Tarrant Boston Brill 1998
OTTO W F L‟Esprit de la Religion Grecque Ancienne Paris Berg International 1995
PLOCHMANN G K ROBINSON F E A Friendly Companion to Plato‟s Gorgias
Illinois Southern Illinois University Press 1988
PRADEAU Jean-Franccedilois Platon et les formes inteligibles Paris PUF 2001
PRICE A W Mental Conflict London Routledge 1995
RACE W H Shame in Plato‟s Gorgias The Classical Journal 74 3 1979 p 197-202
RAMSEY Eric Ramsey A Hybrid Techne of the Soul Thoughts on the Relation between
Philosophy and Rhetoric in Gorgias and Phaedrus Rhetoric Review 1999 17 2 p 247-262
RAMNOUX C Heacuteraclite Paris Les Belles Lettres 1968
REINHARDT K Les mythes de Platon Paris Eacuted Gallimard 2007
REIS M D Um olhar sobre a psykheacute o logistikoacuten como condiccedilatildeo para a accedilatildeo justa nos
livros IV e IX da Repuacuteblica de Platatildeo 2000 217 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Federal de Minas
Gerais 2000
REIS M D Triparticcedilatildeo e unidade da Psykheacute no Timeu e nas Leis de Platatildeo 2000 304 p
Dissertaccedilatildeo (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade
Federal de Minas Gerais 2007
RIBEIRO A M O Reverso da Filosofia o caso Goacutergias 214 p Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo 2002
ROOCHNIK David Of Art and Wisdom Pennsylvania The Pennsylvania U Press 1996
SAXONHOUSE A W Free Speech and Democracy in Ancient Athens Cambridge
Cambridge University Press 2008
SAUNDERS Trevor Penology and Eschatology in Plato‟s Timaeus and Laws The
Classical Quarterly 23 2 1973 p 232-244
SEKIMURA M Platon et la Question des Images Bruxelles Eacuted Ousia 2009
SMITH Janet E Plato‟s Use of Myth in the Education of Philosophic Man Phoenix 40
1986 p 20-34
SCHOFIELD M Plato New York Oxford University Press 2006
179
TARNOPOLSKY C H Prudes Pervets and Tyrants Plato‟s Gorgias and the politics of
shame New Jersey Princeton University Press 2010
TSANTSANOGLOU K PARAacuteSSOGLOU G KOUROMENOS T (Ed) The Derveni
Papyrus Firenze Leo S Olschki Editore 2006
VERNANT Jean Pierre Entre Mito e Poliacutetica Satildeo Paulo Edusp 2002 A
___________________ Mito e Pensamento entre os Gregos Satildeo Paulo Ed Paz e Terra
2002 B
___________________ Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Rio de Janeiro Ed Joseacute
Olympio 1999
___________________ Mythe et Religion en Gregravece Ancienne Paris Ed du Seuil 1987
___________________ Pandora la preniegravere femme Paris Bayard 2005
VLASTOS Gregory Plato II A collection of critical essays Indiana Notre Dame Press
1978
_________________ Equality and Justice in Early Greek Cosmology in Classical
Philology 42 3 p 156-178 1947
_________________ Socrate Ironie et Philosophie Morale Paris Aubier 1994
_________________ Was Polos Refuted The American Journal of Philology 1967 p
454-460
VOGELIN Eric The Philosophy of Existence Platos Gorgias The Review of Politics 11 4
1949 p 477-498
WARDY R Birth of Rhetoric London Routledge 1998
WARNECK P A Descent of Socrates self-knowledge and cryptic nature in the
Platonic dialogues Indiana Indiana University Press 2005
WILLIAMS B A O Shame and Necessity Berkeley University of California Press
1994
WINKELMAN M Shamanism Sta Barbara Praeger 2010
Dicionaacuterios
BAILLY Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 2000
CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris Klincksieck
1999
LIDDELL G H SCOTT R Greek-English Lexicon Oxford Oxford University Press
1997
Instrumentos de Pesquisa
LEXICON I Plato ed Roberto Radice Ilaria Ramelli Emmanuele Vimercati Electronic
ed Roberto Bombacigno Milano Biblia 2003
DAPHNET Digital Archives of Philosophical texts on the NET Disponiacutevel em
httpwwwdaphnetorgindex_frhtml
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS
RUBENS GARCIA NUNES SOBRINHO
Tese apresentada ao curso de Poacutes-graduaccedilatildeo
em Filosofia do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em
Filosofia
Orientador Dr Marcelo Pimenta Marques
Belo Horizonte-MG
Junho 2011
KOacuteSMOS E INTELIGEcircNCIA AS POTEcircNCIAS DA ALMA NO GOacuteRGIAS
100
N972k
2011
Nunes Sobrinho Rubens Garcia
Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma
no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011
190 f
Orientador Marcelo P Marques
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses
4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo
Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade
de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo
iv
Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos
v
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha
Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo
Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que
resiste ao esquecimento e agrave morte
Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo
mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco
eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo
Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito
em prol da alteridade
Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da
inteligibilidade e da razatildeo
Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as
imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem
possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do
recomeccedilo
Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo
Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo
vi
Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito
Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na
humanidade
Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida
sem exame natildeo eacute digna de ser vivida
vii
Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha
Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas
viii
SUMAacuteRIO
0 INTRODUCcedilAtildeO5
1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21
12 Causalidade e Poder 25
13 Causalidade e Reciprocidade 32
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de
Derveni 44
2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61
3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92
31 Eros e Loacutegos92
32 Vida e ḗthos98
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122
35 A Retoacuterica da alma134
36 Julgamento e nudez149
4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154
41 Imagens e causas no mito de Er154
42 Mito e psykhḗ159
43 Er o decreto de Laacutequesis162
5 BIBLIOGRAFIA174
1
Resumo
A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta
investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e
aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um
programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza
pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a
definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas
imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a
dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo
tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com
Soacutecrates Caacutelicles
Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o
mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de
Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito
adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos
esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da
multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo
projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por
extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a
linguagem satildeo os fundamentos do pensar
Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta
que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado
na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que
engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo
2
dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual
interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa
ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias
reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e
inteligecircncia que eacute a psykheacute
Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito
3
Abstract
Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point
out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and
apply them in Er myth of Republic
According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear
distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the
timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the
actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings
through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the
same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles
In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is
thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language
comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of
divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the
causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between
two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient
means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before
language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion
staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the
thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic
ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which
engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation
can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an
expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar
4
movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the
feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is
Keyword Gorgias Republic structure myth
5
Introduccedilatildeo
O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a
adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento
que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus
esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees
filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese
ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos
que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos
O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que
o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das
imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda
dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o
pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a
filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a
transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no
movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse
bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)
Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo
que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno
linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a
narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo
de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a
6
sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia
temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal
A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade
distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a
transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis
constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas
embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a
linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo
As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma
polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou
mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do
inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo
como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica
da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi
conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo
Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico
discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as
teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos
ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se
considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como
palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da
realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis
ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute
ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens
7
No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como
phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA
2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara
distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo
do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo
original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre
eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld
Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma
raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do
visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia
de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego
no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica
inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os
verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos
bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo
de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia
(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)
Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo
tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal
determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse
sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de
superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se
situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim
como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia
O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a
silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou
desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos
deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do
8
empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em
seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o
conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel
No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a
transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do
inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas
constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os
referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico
Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a
passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na
esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo
um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos
cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se
fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao
inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico
O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica
modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais
profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo
Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica
Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma
seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute
completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da
arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e
regramento que a virtude de cada coisa existe
Goacutergias 506 d5-e2
Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto
possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas
9
visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante
e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a
ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior
agravequela
Timeu 30a
A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos
kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico
No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que
compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar
sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o
ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida
tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores
eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em
uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o
regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado
kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo
humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o
mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)
A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os
mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas
Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila
o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o
cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da
poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus
proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de
trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema
10
interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens
especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um
tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo
permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que
o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a
partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de
ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da
significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)
Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas
agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais
concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses
mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento
dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus
efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes
mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da
psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza
das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da
explicitaccedilatildeo dessas regras
Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-
construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute
obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de
julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A
fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O
11
modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo
entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras
Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o
acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do
sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A
complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como
grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo
do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo
Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os
grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de
racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute
consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias
o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron
(Goacutergias 502c)
A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no
domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da
influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia
(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia
(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de
harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e
harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a
natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita
virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma
correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um
12
legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A
grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo
cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da
alma
Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da
ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica
de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o
acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde
(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o
sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles
emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia
ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes
potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um
instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala
desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um
princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical
(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade
o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo
no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)
Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta
unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento
matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do
acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo
13
Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo
representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos
contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do
justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical
regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande
reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do
psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento
A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que
damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses
movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto
por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova
conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)
No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia
divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico
que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por
outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo
do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o
koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a
ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia
pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a
harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros
possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)
que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais
14
correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no
palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas
Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um
procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas
A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada
ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as
diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e
possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde
estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e
posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero
determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos
planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo
(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura
complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a
constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos
fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende
uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de
inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas
A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera
eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis
X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como
sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como
uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio
15
ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza
procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais
do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs
princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios
(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias
(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER
2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta
separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as
interaccedilotildees da physis satildeo reportadas
O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa
instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para
que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade
deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees
invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como
fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano
cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas
O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica
unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja
significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade
A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de
julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida
Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e
soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees
matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um
16
pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo
esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a
racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de
inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem
todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de
racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num
enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico
Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo
evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da
interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e
certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das
perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico
ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas
Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise
estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que
permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda
esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa
tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos
A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que
pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela
1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente
alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa
ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de
uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico
17
paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em
geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser
metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo
construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo
atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa
regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses
efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes
Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que
seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo
(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss
ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca
percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004
p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o
caraacuteter de objetos absolutosrdquo
O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam
dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises
filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para
expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute
menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS
2004 p 8)
Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar
autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do
mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo
estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute
18
o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois
mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais
esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo
Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-
Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e
uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas
funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que
suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um
procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito
natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de
accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica
comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo
cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)
Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura
permanenterdquo
A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o
significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que
o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler
simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito
como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender
como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos
musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees
que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash
mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se
19
imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss
como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os
grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que
remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que
supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e
pela distacircncia cultural das eacutepocas
Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e
compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico
teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto
os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia
elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e
elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs
primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios
Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a
funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo
inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que
representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem
decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)
A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e
esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo
aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o
um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico
Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do
tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em
20
planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos
aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o
mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha
meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993
p 169)
Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo
dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico
psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por
pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes
A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por
causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano
cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas
grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do
meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os
grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade
unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir
Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da
causalidade
21
I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade
O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os
o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra
de que castigo teriam no porvir
Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104
A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de
uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em
resgatar-lhe a filha raptada
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei
A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena
Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide
Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha
nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()
Iliacuteada I vs 8-15
Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para
responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se
saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira
vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e
danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as
3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma
estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens
configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse
caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo
inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego
conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no
primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)
22
fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel
de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade
divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da
causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e
localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa
eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo
satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal
Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina
vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma
accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral
associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute
oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber
atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere
sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do
passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais
complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo
mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade
eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo
mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a
consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo
padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em
situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do
comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal
apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma
23
conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um
contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da
racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma
experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o
ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As
conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que
estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que
caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana
Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute
ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma
Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se
daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo
eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo
dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no
mundordquo
Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a
matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da
concepccedilatildeo racional da teacutecnica
Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada
pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de
Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a
sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia
astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice
24
de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono
obteacutem a soberania do Koacutesmos
6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada e urdiu dolosa e maligna arte
Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo
forjou grande podatildeo e indicou aos filhos
Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo
ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes
ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso
pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo
Teogonia 159-166
Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a
inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego
dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima
instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de
Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)
O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador
com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os
meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia
para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel
como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia
teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza
A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo
linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As
gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a
violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual
de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a
25
Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos
das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de
princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um
caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de
concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da
distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da
desordem personificadas nos filhos da Noite
A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo
de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim
como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras
Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais
A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida
simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave
infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso
A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel
12 Causalidade e Poder
Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de
poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do
Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica
5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo
estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a
anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento
constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista
como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo
procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio
apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao
abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par
26
A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia
maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo
implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute
indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da
Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus
Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos
Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias
o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio
com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra
e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens
sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala
E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um
do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos
tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas
natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei
HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462
O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A
vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a
presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a
uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e
encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o
astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia
esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que
tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia
astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que
complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um
plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da
potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio
historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de
agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)
27
permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania
basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que
soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade
Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila
como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a
conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo
de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos
melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo
poderosas a ponto de serem epifanias divinas
O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees
da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais
novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo
problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania
(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e
Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e
empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila
destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer
voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados
soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-
retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo
de uma ordem coacutesmica imutaacutevel
A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia
astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as
28
circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e
fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a
escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado
somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder
soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta
de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em
sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo
comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa
pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de
meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo
oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a
consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a
provedora e a chancela do poder
Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de
lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os
irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros
coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para
obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores
respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus
liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia
consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido
por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a
reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria
passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo
29
de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para
instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia
presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta
Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa
de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados
pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio
da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si
mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O
Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia
e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal
(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o
equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o
concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e
do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a
Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo
(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte
de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo
Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo
presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar
7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e
sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que
Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi
ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash
a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato
de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma
perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como
oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant
confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)
30
Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que
deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece
mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo
(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a
ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida
quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias
Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a
atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees
subsequentes
Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram
filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai
decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia
a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo
na cova da Terra8
(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)
A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do
instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de
violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a
penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o
princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de
Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de
violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo
astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis
desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico
8
31
emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo
masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis
feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um
apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica
feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento
Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra
realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida
Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia
que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular
categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis
ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se
de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro
Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das
Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites
intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui
medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo
primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos
irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma
sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas
brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico
Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo
princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo
irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo
ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas
32
O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus
serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a
partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a
reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de
lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia
hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei
irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis
13 Causalidade e Reciprocidade
A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da
reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o
estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia
Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da
reciprocidade
Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo
como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las
Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo
que te banhes e possas dar largas ao peito querido
para depois ao navio voltares levando um presente
muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha
parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado
A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte
Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora
Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta
quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa
Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado
Odisseacuteia I vs 307-318
Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo
comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que
estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A
33
proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute
caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O
estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais
que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente
permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a
representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o
discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o
reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute
apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa
universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A
reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou
hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo
Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no
desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como
justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da
oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela
que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria
Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece
significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a
seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio
constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila
do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a
desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a
equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com
34
mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo
precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo
somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento
oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a
noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e
do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral
Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a
um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com
a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a
noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē
Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias
zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou
Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e
Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das
falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite
associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira
guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo
e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo
opostos
Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano
e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a
abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de
ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo
35
Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com
a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres
em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem
confiante ()
Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida
(epimetrḗsso) ()
Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a
mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )
(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)
A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no
iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta
quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos
dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute
entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de
comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano
lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas
quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos
apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente
das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento
oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas
de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de
uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia
grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o
momento oportuno (kairograven gnōthi)
O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal
agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas
elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da
36
fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida
(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O
excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave
vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num
espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que
suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos
desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas
suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria
No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a
exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a
contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A
concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees
que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de
moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a
contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as
interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O
comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e
recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo
muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de
verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem
9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim
que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era
torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de
medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)
37
A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina
com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo
operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)
mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das
partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a
proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da
causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo
princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu
Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus
pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu
escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo
apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem
Teogonia vs 613-616
A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um
confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a
violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No
combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas
inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-
se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de
accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que
distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os
acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na
mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de
38
simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios
eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron
O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os
significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p
263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e
no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de
um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica
humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino
A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das
alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento
e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser
efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por
conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo
almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites
as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em
conformidade com seu estatuto
A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto
que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas
Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a
significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio
da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a
reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com
a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos
atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e
39
relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees
latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um
deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada
de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a
insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu
redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que
caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses
A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante
dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria
representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de
presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania
de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin
teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto
humano
A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa
gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes
comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a
apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo
da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O
duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A
primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do
tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania
sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo
40
segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas
proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes
Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio
pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de
impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo
coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos
dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de
maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a
perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos
ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem
dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda
por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como
contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis
prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos
homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar
as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens
Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da
causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida
A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)
uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a
calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso
maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula
oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa
engendra nova retribuiccedilatildeo
41
O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o
contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de
todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os
males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo
astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela
contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de
Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave
necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do
fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais
Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano
em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia
divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do
homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos
deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano
Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e
delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo
inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as
coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos
tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo
Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos
titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo
de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser
unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de
proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode
42
passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e
Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua
Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade
ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento
inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que
separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido
humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do
feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites
sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade
divina que desconhecem as inibiccedilotildees
O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de
armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e
sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a
potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a
promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave
concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem
regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos
trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo
miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu
A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da
inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e
compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A
dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por
armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade
43
aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes
anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago
humano
A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na
experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a
inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a
expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde
o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter
dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal
iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009
p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos
males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males
silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a
significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos
Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o
viver excessivamente pesado para ser suportado
O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste
ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero
que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um
fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a
manutenccedilatildeo da vida10
O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia
teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de
10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e
arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute
encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)
44
absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos
homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e
selvagem como os animais
O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo
entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva
da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a
inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel
entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de
meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees
proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria
Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento
a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a
voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni
Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo
grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre
os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um
uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a
transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo
causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras
Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)
A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre
conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados
45
os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-
teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha
sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e
320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm
seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud
TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da
autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo
interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo
exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica
aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais
cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave
cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se
pertinente
O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a
criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os
maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A
questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma
inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O
comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja
finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete
um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)
palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E
natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o
que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico
(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo
46
desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes
coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere
um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o
acabamento do poema Como ele torna claro em um bem
reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos
ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que
ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte
(Derveni Papyrus Col VII)11
O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder
de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os
salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua
incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo
ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do
ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves
imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos
sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico
A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo
terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a
uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da
inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da
polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave
inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o
emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)
Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras
atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos
11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)
47
procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12
os
sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as
Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo
extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas
honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com
muacutesica13
Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e
libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis
A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo
dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o
caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da
Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e
sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma
Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente
(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma
12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo
pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar
antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de
sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain
(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e
posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade
de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF
apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui
ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas
encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo
do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve
oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta
[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica
(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)
48
inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa
imageticamente em versos enigmaacuteticos
A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da
natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com
o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14
Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute
intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que
carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas
causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar
por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e
interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual
O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a
uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a
visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que
possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana
e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)
A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15
A sabedoria consiste tradicionalmente
no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou
enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este
exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua
atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma
14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi
(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN
2003 p 63)
49
tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo
estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16
O discurso divino caracteriza-se pela
oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente
consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que
subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si
mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que
fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17
)
O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo
que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel
Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por
que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que
o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da
palavra
O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a
infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias
satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a
retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias
invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute
assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na
vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o
16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404
Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)
50
comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo
gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens
aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele
(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos
quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza
possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas
medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as
Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke
(Col IV)18
Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees
e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma
correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas
potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha
agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das
disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee
limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo
iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual
emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos
Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo
grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos
jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender
simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo
divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo
caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia
18
(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)
51
satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma
ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na
consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e
compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros
constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos
seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido
com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre
planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela
exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos
Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas
satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que
origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter
indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico
O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele
muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto
de cada um
DK 67 (KAHN 2003 p 105)
Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos
hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro
para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do
aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do
perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees
e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O
homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que
compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377
52
ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do
Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus
presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino
Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute
simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo
modo haacute uma divindade e muitos nomes
Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos
fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em
termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que
ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um
princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio
supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o
princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o
koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19
(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e
representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia
entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre
opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de
regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de
ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da
divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco
inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma
19
DK30
(KAHN 2003 p 73)
53
manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que
determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente
todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos
Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo
O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-
humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um
poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a
morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino
inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem
dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado
para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da
inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo
(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo
Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas
segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do
tempo20
Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo
para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o
necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos
outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21
Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a
qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo
20
(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel
em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)
54
de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso
significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo
A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma
progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo
rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis
eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da
causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila
vai muito aleacutem da esfera legal e moral
Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo
com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou
ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala
do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos
natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute
nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria
natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que
natildeo podem ser ultrapassados
A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral
como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo
compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e
destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)
Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente
reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios
A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que
cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as
concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e
serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo
teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo
coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel
salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
55
A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas
teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia
das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre
falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio
privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel
evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido
oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo
Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a
transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O
segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo
esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que
soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de
vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos
O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de
imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para
realidades invisiacuteveis inevidentes
Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)
que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)
imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas
manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm
heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria
com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os
prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou
manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia
satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo
haacute como crer ainda que vendo22
(Col V)
22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)
56
As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida
para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o
conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas
para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo
discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento
eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo
diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute
um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior
obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o
conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e
enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam
vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a
tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes
verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento
A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo
tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os
misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)
interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado
aos natildeo-iniciados
No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras
de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)
dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e
especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja
reconhecido (BURKERT 1972 p 176)
57
No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos
ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos
ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)
A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das
imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho
sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem
coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar
os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo
podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular
da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra
como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como
mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo
temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale
a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento
desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio
A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo
aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e
resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)
impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos
pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da
luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis
(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos
myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas
58
A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja
luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura
constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o
regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura
medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das
partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia
sexual
() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou
primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para
falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso
Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo
reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como
eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa
palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute
possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()
(Col XIII)23
Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai
designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da
potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes
da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia
identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do
substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem
o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)
O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a
venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo
jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da
23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)
59
Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca
identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de
Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo
Intelecto
A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a
propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no
centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia
astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva
astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel
(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o
concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO
Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese
simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona
ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau
diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A
cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o
umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da
emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio
do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio
das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois
todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash
Theologumena arithmeticae 25 17
O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute
onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia
cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um
afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da
accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e
vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)
60
Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e
cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas
Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a
Lenaia
(DK 15)
O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo
vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese
filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do
entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que
aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica
a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo
vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo
satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada
pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
61
II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē
Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois
modos o do mais velho que fala para com os mais jovens
demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso
(Protaacutegoras 320c02-04)24
O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a
narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha
prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein
kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas
pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos
O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons
naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar
estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o
conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico
permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a
inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder
de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem
Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no
movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se
apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e
modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais
mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO
2008 p 30)
24
62
Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de
Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito
reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees
a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES
HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos
platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de
Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja
estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de
Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos
epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em
contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de
Homero
Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em
diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)
Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo
sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo
(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟
tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte
sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e
satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua
pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo
postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo
estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou
meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico
narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟
(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)
Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico
das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico
possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo
e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de
63
julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai
leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya
do livro XI da Odisseacuteia
Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo
oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni
Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em
modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria
tradicional
Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo
caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o
ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de
poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria
religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte
da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era
acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos
secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda
uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo
tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto
miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de
intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a
divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto
ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios
praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma
primitiva e original eacute o Orfismo
O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e
por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se
desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de
elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que
Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe
com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma
Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do
64
narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo
evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato
Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes
da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO
2010 p 74-75)
Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do
Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico
encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da
ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e
traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da
Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico
O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um
tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25
A existecircncia preacutevia dos deuses
indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O
tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito
comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A
distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo
devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens
o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um
tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens
implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o
25
65
fundamento26
mediante o tempo exemplar para todo o devir27
A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo
buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma
absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28
poliacuteticas no absoluto
referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode
constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila
na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a
praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se
A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso
atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do
argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em
forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29
A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo
absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a
estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O
26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo
original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo
primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir
(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica
platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para
fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia
ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a
cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo
de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos
ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os
atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma
decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil
maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII
1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de
todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois
termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui
um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e
seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos
66
tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o
paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o
referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)
Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses
os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo
Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos
mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo
destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando
uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em
seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles
encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em
cada um deles em boa ordem como conveacutem30
(Protaacutegoras 320d)
Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos
primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se
inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os
mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua
modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo
movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos
fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31
30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles
67
Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com
kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de
Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a
imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)
se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32
O equiliacutebrio entre os opostos exige a
compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu
astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de
distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas
nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante
dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu
existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente
B 62 SIMPL Phys 381 29
[v1] [I 335 5 App]
[v5]
[I33510App]
SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29
Agora vem e como de homens e mulheres
de muitos prantos
noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-
se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem
alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam
de ambos de aacutegua e de forma brilhante
tendo parte estes fogo faziam subir
querendo ao semelhante chegar
nem ainda de membros amaacutevel forma
mostrando (eles)
Nem voz nem (tal) qual o membro
proacuteprio dos homens
(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)
(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)
Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de
ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas
cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres
naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do
alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote
umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo
(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos
precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511
68
ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute
inteiramente desprovido de capacidades
Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz
(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a
duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra
para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz
phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute
ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute
ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu
desaparecimento
A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia
paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do
natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa
sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia
todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi
gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um
tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do
tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem
primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves
gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia
primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos
tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-
ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)
69
Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a
antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a
passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o
ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE
1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual
se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens
antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo
cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e
misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado
a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria
que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-
se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a
repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas
somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)
O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos
concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e
imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo
gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em
combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o
novo homem
Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por
Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33
(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite
trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante
33
70
associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu
saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de
ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de
retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado
A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome
correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo
410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento
Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais
provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na
gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra
(Menexeno 238a 03-05)
A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a
gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o
ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e
a sexualidade34
e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE
1977 p 30)
Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do
artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias
advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos
A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo
desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A
distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio
34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave
de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual
surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave
noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A
conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis
Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B
71
ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida
de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu
natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho
mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35
Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e
Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave
theicirca nooucircsa)36
O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia
teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um
aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino
portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao
homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a
ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)
Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes
rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os
homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo
contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua
falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a
possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras
312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa
propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido
de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do
35
(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c
72
nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009
p 2)
As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja
natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37
O lote de participaccedilatildeo
e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses
mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de
participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que
pode nomear os deuses pela fala regrada
O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a
imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico
exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino
mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso
teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute
determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo
Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os
homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da
poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante
da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua
Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas
destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila
e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades
37
(Protaacutegoras 322a04-08)
73
Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de
Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos
deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O
mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato
moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o
fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o
feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio
se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a
expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38
(VERNANT
2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da
graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e
olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)
Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos
divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um
paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de
contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de
Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do
saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo
entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo
retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a
ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso
opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees
38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males
74
O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber
teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-
presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar
no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano
que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila
dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a
destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale
dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo
problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus
Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a
ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser
irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente
concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo
plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes
essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē
As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo
da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da
ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a
existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo
A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que
esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos
mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma
atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica
nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A
75
passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do
sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo
Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos
inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses
imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos
mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por
intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de
antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de
Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural
mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem
O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a
determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente
intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra
para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado
permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a
sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo
entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a
demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia
divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana
instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam
iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro
da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos
animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente
76
(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras
322c07)
A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos
homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do
divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o
sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas
aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o
profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus
invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente
Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo
salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre
poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo
dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a
distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com
equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama
em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo
tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē
O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade
poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a
contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo
ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados
invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute
essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial
subjacente a aidōs e diacutekē
77
Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil
desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo
de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos
basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila
equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais
homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica
I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia
independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados
delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus
(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A
triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os
mortais devem sua existecircncia aos deuses
2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos
homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade
determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e
suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens
caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das
necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia
exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da
teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute
determinado A razatildeo supera o determinismo
78
3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -
Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis
razatildeo
animais
homens O saber
teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva
um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A
cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades
humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades
humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida
na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute
reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu
(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um
parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano
e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A
divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso
Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia
demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da
cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual
maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a
pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo
e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os
homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo
teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento
das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e
que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e
79
alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do
Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da
oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo
Natureza Cultura
Deuses
Mortais Homens
Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica
Demiurgia
As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem
condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet
Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no
julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e
tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo
como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um
sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo
menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a
divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees
humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes
diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um
suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute
simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece
muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de
bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo
(GERNET 1982 p 14-15)
Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto
realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que
faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do
espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo
(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da
80
figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo
diante daquilo que eacute puro
Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego
juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e
neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que
designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas
respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra
aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A
experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto
inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute
diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre
da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de
evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar
o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par
reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa
indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou
derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva
Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver
correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica
para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo
respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo
indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada
resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva
81
A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a
Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a
uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o
mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele
ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar
Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu
lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)
Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em
estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel
de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de
Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que
vem a ser
Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que
ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras
afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se
melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion
epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o
itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A
finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los
ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser
Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um
retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu
ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo
mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos
82
oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um
novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano
dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria
concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē
Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo
determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema
inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das
comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do
visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de
virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo
simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia
Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do
mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas
satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso
caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo
que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de
profanos39
Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40
Eacute por
participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em
sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra
39
(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o
gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um
mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que
Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria
uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso
na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a
iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico
83
os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees
cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de
inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do
domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem
passaram a destruir-se mutuamente
Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira
equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que
natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de
potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por
conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a
desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens
convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como
afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por
conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias
determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A
participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar
coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por
todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos
sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar
e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo
muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica
cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes
tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou
impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta
84
A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e
da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas
que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da
philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)
Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41
Em primeiro
lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem
potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios
instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em
conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade
participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos
vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus
efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo
determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter
absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica
Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da
existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia
estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a
41
Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz
como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como
dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou
desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63
n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute
constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no
reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem
Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da
proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e
respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes
suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e
a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca
simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)
85
destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a
determinaccedilatildeo de homens e cidades
Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo
como natildeo satildeo42
haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o
afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel
que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma
divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos
condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia
O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em
contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia
destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem
constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si
A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a
violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A
teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a
medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade
Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo
desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve
aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da
coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a
vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)
42
Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B
(Teeteto 160e09)
86
Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a
destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a
cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que
possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees
rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de
inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus
experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo
para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por
um afeto de pertenccedila muacutetua
Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da
polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade
exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo
do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais
para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma
dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para
fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e
amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a
vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia
ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a
previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem
como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o
homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da
guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo
heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem
87
medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis
em outro noacutesos peste da cidade
A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano
ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a
compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo
perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43
Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a
corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos
justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a
ordenaccedilatildeo do tempo
Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio
da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos
afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave
violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave
vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo
ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das
armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no
amor mas tambeacutem no sangue e na morte
A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo
permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de
compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em
direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)
43
DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B
acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo
88
Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo
entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos
ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio
do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir
do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na
cidade mas perde a alma
A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios
que coloca em perigo a alma44
O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios
empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos
alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se
nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45
pretende receber um ensino transmitido por um
guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel
anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um
mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e
experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao
desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis
socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute
incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um
sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta
fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)
44
(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao
saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)
89
Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico
Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto
do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)
Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa
o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um
eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees
postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de
hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de
bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro
A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a
porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades
muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a
humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais
elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado
pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um
ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees
originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo
a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)
O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino
iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em
direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a
medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao
90
melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46
Assim
como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as
disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e
guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e
delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos
O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de
passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas
possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela
iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)
A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de
Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio
Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e
espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da
accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e
supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)
O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo
apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados
independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas
aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo
especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo
mediada pela palavra
46
(Teeteto 167a04-06)
91
A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase
das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT
1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais
acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo
(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem
excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo
direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo
ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)
A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos
sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a
condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado
superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila
A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende
remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste
somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo
consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem
ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o
olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob
exame
92
III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM
QUESTAtildeO
31 Eros e Loacutegos
Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que
o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il
V 3)
Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se
ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais
brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles
Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo
dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que
configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias
especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro
culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto
de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a
desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido
pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que
reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis
No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como
o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia
entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das
coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio
da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia
93
perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute
provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um
tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que
ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)
O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos
valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta
de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade
distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e
outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo
mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e
diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual
ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de
falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos
prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com
todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47
Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte
pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)
Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na
afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da
(Goacutergias 484 c09-d07)
94
possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48
Soacutecrates e Caacutelicles
padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a
natureza do Eacuteros
O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da
encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto
como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia
ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o
belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo
puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um
carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela
esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de
quem haveraacute de continuar procurando
O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de
Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em
Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como
forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico
segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e
aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos
agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em
Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao
reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em
Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se
Goacutergias 481 d)
95
entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo
sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o
discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu
amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia
para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia
harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da
inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista
(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu
proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles
desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49
satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e
arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo
apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e
porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50
Quando o
desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os
meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num
49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma
multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e
uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa
do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na
natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela
refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o
opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o
ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
110)
(Goacutergias 482b04-c03) 50
(Goacutergias 465a)
96
caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a
mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a
personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar
valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para
a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do
bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o
discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias
465d)
A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas
opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para
outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas
expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se
entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo
mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se
relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido
pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um
bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
105)
A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas
assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como
a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra
restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero
Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa
disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo
97
implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as
artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas
Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes
autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as
aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute
para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O
discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o
bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como
a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa
disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da
multidatildeo estaacute para a Filosofia
A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a
ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente
do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por
amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por
Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o
mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a
riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros
Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o
plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo
sempiterna do belo
Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que
digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto
Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o
98
movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele
num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O
movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O
discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do
conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute
diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o
conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de
seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo
pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte
para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser
desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o
proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que
haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra
32 ndash Vida e ḗthos
Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se
potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos
loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos
antagonismos
Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de
vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo
excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a
inteireza da vida
99
O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51
se contradizem
uma agrave outra52
- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um
todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em
contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo
haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica
grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de
Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53
O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a
afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e
confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala
51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo
V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da
eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a
significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao
que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de
ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja
claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em
Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza
humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios
inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo
significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de
outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para
os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso
natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA
fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()
mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo
difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao
primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez
que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada
atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita
por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52
(Goacutergias
482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura
Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio
para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem
refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se
inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o
designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)
100
segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54
(483a) A questatildeo dos
valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo
pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende
de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o
estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55
A noccedilatildeo
convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior
determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees
satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece
que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma
vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56
e coincide
com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que
nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do
que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos
muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon
leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste
em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das
54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre
e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo
dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p
571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos
sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha
sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B
118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo
impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser
preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso
favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse
constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para
as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa
posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas
pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente
justo (IRWIN 1995 p 103)
101
multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os
melhores e os mais robustos dos homens
Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens
fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que
estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em
sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos
homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que
possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto
E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros
Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo
inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso
procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam
injusticcedila57
(Goacutergias 483b04-c08)
A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha
que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva
diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de
todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso
(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez
brota da estima puacuteblica58
Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que
caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles
considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a
Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na
prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada
pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de
exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o
sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes
vergonhosas a genitaacutelia
102
tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e
a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de
adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p
26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem
configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida
honoraacutevel
O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade
de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo
pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees
longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e
violentando a sua respeitabilidade
Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se
despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto
a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto
para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-
se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito
esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a
presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o
ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no
fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios
como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio
mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X
1850)
A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a
genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa
Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o
olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e
daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos
costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas
103
pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a
beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos
costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e
desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia
que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas
as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma
caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica
uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez
O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam
encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59
Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram
constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua
nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e
Natureza frequentemente se contradizem
A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute
precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o
grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira
natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais
vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)
subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em
todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo
(483e-484b)
59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A
dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso
acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)
104
A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles
Koacutesmos60
para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato
excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de
perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)
Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute
um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61
Assim como o discurso exemplar de
seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem
Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos
que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais
capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo
estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os
animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza
(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses
(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como
brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho
da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor
aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores
homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)
60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio
de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo
designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta
Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no
sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato
Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o
significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo
ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute
propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do
incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009
105
A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com
razotildees No caso de Helena62
as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um
toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute
natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de
Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para
se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos
o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e
ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela
Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior
Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila
persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de
um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base
material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)
Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve
receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena
7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio
de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se
encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63
ndash os loacutegoi movem
os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por
natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de
62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo
fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime
democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63
106
combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como
meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado
ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem
mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por
constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade
Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o
ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a
natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos
expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila
outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem
outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos
ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam
completamente a alma
(Elogio de Helena 13)
A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade
daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se
poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve
imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a
usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto
Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato
natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e
fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da
forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que
por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e
censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite
Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas
com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles
advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na
107
constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem
nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje
o mais capaz
Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de
noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64
dos mortais e dos imortais Como observa
Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo
ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas
ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema
de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para
retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo
(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para
a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de
que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65
Estaacute advertido de que o recurso ao poeta
de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda
comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por
afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo
comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a
violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores
64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e
Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um
filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou
dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era
formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das
coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera
monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o
Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo
108
que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos
heroacuteis da Heacutelade
Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da
sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila
encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo
Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66
Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos
longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A
encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a
opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a
identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos
afetos ligados ao crivo puacuteblico
Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega
(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma
busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o
(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema
antropoloacutegico invariante67
A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de
descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por
meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e
a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei
se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo
66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este
padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado
de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho
Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual
obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de
Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-
se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)
109
Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento
divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano
coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha
vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso
momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-
humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder
(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento
confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a
possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais
era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de
encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso
(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso
encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e
haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso
(BURKERT 1979 p 85)
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade
Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-
significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de
morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68
Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da
bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel
vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem
mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o
68
(Apologia 28b03-04)
110
valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute
justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da
morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que
o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha
A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os
amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)
Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute
preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela
gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada
indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A
identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da
derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um
homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa
puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu
prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem
abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir
seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado
aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo
ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os
privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do
grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do
kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um
errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem
sem nenhum valor
(VERNANT 2001 p 407-408)
A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente
preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo
em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores
seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio
coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte
Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a
ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si
mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha
opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem
111
calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra
(Apologia 28d06-10)
O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o
aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo
dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da
paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem
exame natildeo merece ser vivida69
A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a
reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada
cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das
riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da
verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa
transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e
com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo
interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende
do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para
consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a
brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os
maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se
numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos
que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais
No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica
a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao
disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das
69 (Apologia 38a05-06)
112
leis como encantaccedilotildees70
e sortileacutegios71
cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural
A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos
leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao
estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve
ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates
Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado
na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias
sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada
dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um
acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a
morrer se ele quisesse se honrar com tua morte
Goacutergias 486a-b
A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que
interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo
do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino
sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com
isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da
70
(Goacutergias 484e05-06) 71
Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios
( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um
inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres
afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute
apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore
consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e
413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de
privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que
satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera
por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo
consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por
meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento
de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que
derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)
capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso
das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os
medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)
113
opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como
elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo
O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia
universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do
vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da
desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com
conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute
feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do
erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos
como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional
uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura
do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas
faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre
responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo
personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a
afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico
responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da
salvaccedilatildeo
Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo
suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro
aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72
ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo
eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom
72 (Elogio de Helena 10)
114
e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos
efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade
Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia
a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como
mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente
reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente
constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)
Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito
mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra
Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece
em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos
mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo
verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum
continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que
o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o
deve
A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute
desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo
propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73
Tal adestramento eacute
semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de
extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo
(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo
(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste
73 (Goacutergias 484c)
115
entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio
indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a
formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O
resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica
e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida
calcado no conflito de interesses
A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia
mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto
de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do
homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove
a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave
sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de
uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)
e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica
agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74
(MICHELINI 1998 p 55)
Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado
na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo
eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)
Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa
reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas
exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel
74
o
(Goacutergias 485c)
116
para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao
desprezo e ao ridiacuteculo
Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a
encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo
aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de
desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento
eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha
puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade
aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo
pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute
mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa
vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das
partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir
de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75
Afeto e
discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente
Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a
justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo
se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa
concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que
muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente
segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento
(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo
consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)
do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi
enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido
por se envergonhar de dizer o que pensa76
75
Goacutergias 482c05-07 76
(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
117
Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a
lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre
precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos
dois termos da divisatildeo77
Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a
reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a
vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a
vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as
convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade
Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O
criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para
consigo mesma
Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um
impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute
contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as
crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento
que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo
77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute
moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha
convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau
seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem
semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees
semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as
interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da
vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos
pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva
exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois
sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da
significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma
118
pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78
O iniacutecio
da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada
pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79
O proacuteprio Caacutelicles
afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo
entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia
(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra
emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida
aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os
discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute
contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e
pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila
e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma
A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo
da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que
configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de
qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se
78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram
Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo
empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas
do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso
simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente
(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em
torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa
perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da
verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada
ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive
como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional
segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave
crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p
olympiodoro
119
deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente
estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a
posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir
primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de
viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando
(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o
que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)
Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80
a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela
alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo
depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra
encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81
Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e
torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em
conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo
(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma
80
81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por
sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides
opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e
filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset
(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais
ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais
sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de
uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute
muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de
Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles
na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo
permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de
Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e
Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo
penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides
eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade
chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)
120
bouleuacutesaio)82
Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo
por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano
Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma
personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada
simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar
a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o
homem comum forma a sua opiniatildeo
A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica
natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz
arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a
persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que
Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da
eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute
que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A
racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que
garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade
das circunstacircncias e das conveniecircncias
Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a
alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim
do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e
influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos
significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a
82 icirc
(Goacutergias 485e06-a03)
121
pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o
ouro agrave alma prova o loacutegos
Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute
simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma
mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83
A exortaccedilatildeo
retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora
ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a
faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da
descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do
caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)
O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees
diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute
preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza
(parrhēsiacutea)84
Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente
agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das
accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas
83
Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como
instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos
forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem
a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo
mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma
(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em
ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs
precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem
os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do
juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente
enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84
(Goacutergias 487a)
122
aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de
fragmentaccedilatildeo
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea
Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser
Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua
chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a
maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte
Goacutergias 461d85
A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o
cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida
ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea
constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer
expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86
denota a prevalecircncia dos
interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade
Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o
pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e
revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja
com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem
impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas
da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene
Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os
85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη
ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε
ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a
parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do
benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu
objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica
e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo
com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma
atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)
123
princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que
simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a
ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva
(SAXONHOUSE 2008 p 87)
A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder
sobre o outro na cidade87
o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash
encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs
plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na
assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os
afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e
da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento
discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder
encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do
discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee
encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim
como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)
Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que
desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam
permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu
de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88
Estrangeiros eles satildeo
87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88
ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ
παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ
πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ
124
considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e
excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A
vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem
poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as
maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos
suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros
pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar
livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)
Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta
entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre
desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais
satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas
A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o
gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar
francamente89
como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais
importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que
buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)
A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes
(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90
(Laques 179c01) A
consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento
conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor
Goacutergias 486a06-487b05 89
(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial
ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao
ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)
125
pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus
efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a
ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)
O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e
fazem o que querem91
A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um
conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a
dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a
educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na
guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram
como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do
descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se
(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O
descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92
A
dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea
negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que
configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos
pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a
democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da
incompatibilidade interna de seus valores
O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O
cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente
um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento
91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p
15-20)
126
O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e
reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)
Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom
conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que
lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo
tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho
mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades
poliacuteticas
A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a
confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia
manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa
simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores
questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da
finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a
franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo
Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de
paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado
pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo
dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar
instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua
proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida
devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda
franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A
incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma
127
fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu
loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos
Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o
veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de
todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele
ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da
origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis
democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93
e
franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida
particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela
multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade
(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos
supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a
alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos
licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de
prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora
se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta
em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres
(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para
o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma
vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se
embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma
vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites
93 (Repuacuteblica 557b)
128
e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada
ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a
incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute
relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou
excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)
No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates
alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia
do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame
da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do
interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute
tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio
para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos
neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)
Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica
uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um
tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes
personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se
um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o
mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica
que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as
eacutepocas como um tipo de homem
Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo
platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO
1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um
129
ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato
do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado
a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS
2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender
Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel
de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo
(JAEGER 1995 p 666)
Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais
perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas
personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees
indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria
psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada
ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em
consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma
triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores
remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A
triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da
proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso
de um lado e as accedilotildees de outro
Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam
os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi
muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e
imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante
130
apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que
Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles
A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o
assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio
verdadeiro94
Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor
modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas
para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)
A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95
como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que
entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com
94
Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua
franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece
exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds
por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo
que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor
implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de
Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de
Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila
convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para
muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada
no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste
problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p
103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de
vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente
de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas
encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense
Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o
objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses
verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz
pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A
incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de
proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de
vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o
acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em
torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em
seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no
argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes
satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os
homens Ver KERFERD 2003 189-221
131
Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo
(eriacutezein)
As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir
imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que
natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma
atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse
poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor
preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis
mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)
da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode
haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam
adversaacuterios e inimigos
(Protaacutegoras 337a-b)
A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso
natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a
eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves
dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das
armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este
se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela
tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto
a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a
eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma
que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A
atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que
constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o
princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua
aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a
atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da
132
verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em
oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em
relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que
o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que
supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)
Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo
psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se
efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que
opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo
pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs
que eacute a inteligecircncia do bem
No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por
conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se
contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se
contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na
direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que
permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos
discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo
autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e
que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)
A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira
inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso
133
implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96
Por outro lado o
movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da
verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995
p 671)
As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade
deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no
plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja
acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga
e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo
cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por
um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o
que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a
mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com
estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso
Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos
96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os
erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite
O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e
o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)
134
35 ndash A retoacuterica da alma
No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem
de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou
verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da
equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)
Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como
o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)
natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa
e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu
desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o
Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados
com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da
descrenccedila e do esquecimento (493b-d)
Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que
ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma
argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o
proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem
ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel
A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert
(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por
outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e
do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais
restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant
(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados
135
a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra
de vida pura reservada aos iniciados
O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que
moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um
ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua
conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para
a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la
Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos
A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a
inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando
modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas
afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um
novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de
misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a
significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no
mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os
quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo
norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)
Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios
haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na
Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza
ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais
136
belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais
possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)
Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo
de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o
pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o
que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)
Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado
e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)
dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por
um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma
transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio
Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico
cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O
discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio
uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da
investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua
posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo
genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos
elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e
impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo
segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo
obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos
divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a
exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma
137
homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o
alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento
isolado do corpo
A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que
determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma
se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose
dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma
perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟
O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves
praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas
comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a
impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave
transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais
elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios
espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que
remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza
No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as
instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das
faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de
reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas
(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute
o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os
recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de
reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem
138
divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a
prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de
Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees
Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma
fonte
ao lado dela se ergue um cipreste branco
eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam
Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes
Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre
do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas
Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento
porque tu exploras as trevas de Hades obscuro
Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado
Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido
De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟
E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico
Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene
E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada
Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na
gloacuteria 97
(I A 1 9-11)
Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a
Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular
as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas
egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as
instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um
livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos
escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma
vertente religiosa
Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que
permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao
misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de
97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)
139
elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete
dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas
Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que
demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade
muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira
se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas
entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de
pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no
movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos
A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que
permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia
do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A
foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante
com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe
que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao
cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo
vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse
acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um
exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento
A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem
consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o
proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de
purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que
estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens
fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas
(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades
sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute
140
deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez
laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles
que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso
(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi
(Feacutedon 69b12-c2)
A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e
os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio
iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta
para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre
o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles
que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do
que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)
Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita
controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que
suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em
um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein
indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como
oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por
ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado
miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus
Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro
lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o
emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve
simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que
envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e
vinho (CASADIO 2010 p 46-60)
141
A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as
expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que
configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees
funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja
acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas
Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o
proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos
baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e
podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas
coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de
orfismo baacutequico
Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da
Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a
autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos
particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos
prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu
crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam
iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro
mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios
(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)
Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a
exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas
de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a
transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No
Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que
natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a
transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela
142
Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada
pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de
exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina
A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma
gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes
natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma
polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que
buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma
A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como
isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A
harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute
uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo
ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de
harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou
uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na
analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter
uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e
a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da
harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o
acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo
entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da
comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e
quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de
opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)
143
A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel
(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na
economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma
eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais
Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja
inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo
pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de
modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma
inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa
Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes
que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo
(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o
discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute
Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que
consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas
A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida
agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em
colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os
juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades
Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante
teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta
vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo
A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina
na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as
144
almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e
esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)
indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O
esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do
nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade
do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento
como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)
A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria
numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A
ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os
apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na
inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo
unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos
Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no
Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna
insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos
que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na
qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e
psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia
As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o
regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui
toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute
representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade
penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo
145
psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e
do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica
eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre
renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo
(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de
todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse
do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites
Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de
vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente
escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador
dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus
desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas
e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele
extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de
sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da
cidade que dirige
(Repuacuteblica 579e)98
Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente
a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que
vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade
cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)
A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo
tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega
dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se
pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o
divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica
98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)
146
Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e
Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de
Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De
acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC
conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por
convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica
do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto
por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a
ciecircncia do caacutelculo e da geometria
No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da
geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de
Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute
notavelmente paralela agrave do Goacutergias
Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo
de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de
outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo
pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute
difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente
mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute
impossiacutevel investigar
Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e
aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida
(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por
meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas
transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe
do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que
haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento
para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes
que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo
ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede
aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo
revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica
geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)
147
O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo
pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta
arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a
organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma
visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais
geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico
A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos
constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a
relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da
justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza
pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da
inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea
O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa
cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico
concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a
posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas
Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo
Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da
funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel
No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos
materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau
de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia
148
Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de
viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos
alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos
alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma
mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de
harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A
alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo
domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos
determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles
a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma
harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua
concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento
de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas
Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute
calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute
causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as
relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam
com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e
harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja
sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo
intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no
acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de
todas as coisas
149
36 Julgamento e nudez
O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei
da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas
accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a
correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os
sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado
caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da
desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural
entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a
desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto
Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes
vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram
promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos
juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel
com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave
validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais
privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias
das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a
perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar
A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os
sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as
riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos
possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute
preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas
150
discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo
empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila
Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam
mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o
expediente astucioso que remediaraacute o mal
Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de
conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem
em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a
Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida
eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados
de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar
mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada
aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o
momento da morte cada um esteja separado de todos os seus
proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o
uacutenico meio para que o julgamento seja justo
(Goacutergias 523d-e)99
O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do
mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria
representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A
capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as
carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero
humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da
comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a
desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano
cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo
entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o
visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto
99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)
151
O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas
teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos
os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos
exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma
separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor
A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada
pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do
engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A
vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e
censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o
afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que
deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser
evitados sem a tirania dos apetites
Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo
meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de
prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato
do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria
do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a
finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode
apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros
baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em
sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida
A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos
e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova
152
acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se
mutuamente
No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a
autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes
aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo
geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A
alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)
Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode
crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira
de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do
mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a
eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a
contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo
obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia
(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes
desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia
Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de
conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias
511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para
tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para
culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa
outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo
devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas
imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)
153
Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a
qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para
exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que
se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis
(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as
melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os
apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui
disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou
besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha
(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo
resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria
da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica
indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)
Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto
em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer
bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)
Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum
ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de
que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos
deve servir para a perenidade do justo (527c)
154
IV - NECESSIDADE E ESCOLHA
41 Imagens e causas no mito de Er
No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa
de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de
noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com
a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade
Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a
escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como
princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o
desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o
lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada
Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras
ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo
eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes
vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro
a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo
tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais
ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe
O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100
Repuacuteblica X 617d06ndash617e05
Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas
vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101
A maioria eacute
guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que
100
Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees
Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous
thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos
haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton
autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)
155
acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida
Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha
Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais
modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo
Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis
Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo
do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a
estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando
tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos
caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas
destes modos de vida examinando por quais meios por quais
maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia
ateacute o fim desta travessia que consiste a vida
Leis VII 803a-b
A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma
analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a
construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar
estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102
O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais
fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103
A mais
fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio
modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio
de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel
Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de
fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo
eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no
que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao
deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem
poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar
102
tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)
156
examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela
seja a melhor possiacutevel
Goacutergias 512 d-e
A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos
inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder
humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem
cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a
vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas
escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos
e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A
orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo
do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo
natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida
O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da
multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em
que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento
desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas
Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo
a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver
Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica
X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo
tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104
Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte
implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa
104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon
eicircnai
157
(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a
impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de
princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p
114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua
complexidade
Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos
impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave
kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A
tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes
(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas
merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X
604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo
ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o
mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo
que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada
(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste
em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)
No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e
(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se
com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do
melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e
causa
Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si
mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece
a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao
158
ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em
movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que
eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo
se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que
esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu
movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao
contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio
uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma
Fedro 245d
A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento
Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de
outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma
causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo
necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre
efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo
(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio
Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa
Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia
(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)
A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a
economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que
terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim
No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)
alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e
o mal
Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem
somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa
ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que
conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a
159
A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do
Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-
poliacutetica
Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve
terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo
eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo
para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor
somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do
Bem (DIXSAUT 2001 p 130)
A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a
potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se
escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade
pelo qual a realidade eacute apreendida
Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser
justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees
multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis
como consolidaccedilatildeo
42 ndash Mito e psykhḗ
Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por
imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos
patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo
miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um
iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o
160
pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as
accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica
A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer
e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem
referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda
estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia
estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105
Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e
constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura
miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do
psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades
Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares
visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106
Assim como o Ser estaacute para o devir
assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia
se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de
relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir
das imagens que lhes servem de postulados
Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma
realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela
inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de
105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a
mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras
No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor
dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute
te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible
and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)
161
imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais
para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107
Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A
significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um
registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da
inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute
desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir
como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a
argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)
eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)
da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a
bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108
Para se evitar a
misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo
para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)
Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar
aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia
crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute
assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)
107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a
relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de
certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar
mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo
que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo
de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de
traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo
portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente
pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous
162
O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)
que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua
proacutepria situaccedilatildeo particular
43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS
A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como
risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte
O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade
A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos
Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo
que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade
(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto
e negligenciar a eternidade109
A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo
indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um
paradigma atemporal
O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as
almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion
(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra
Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel
concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade
diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de
109
Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que
eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana
bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei
touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon
Repuacuteblica VI 486a 09-10
163
realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados
no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam
a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma
estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com
determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do
que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa
ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110
Haacute uma
simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo
Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um
lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111
(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas
mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que
prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica
616b-c)
A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma
coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda
atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis
divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso
ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um
sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz
110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein
Feacutedon 109b0708 111
Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as
esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos
164
No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute
mensageira112
No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas
Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que
ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do
saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113
natildeo
esboccedilou mal sua genealogia
(Teeteto 155d)114
Como nota Narcy115
Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte
constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a
atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se
expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116
Universal antropoloacutegico a
imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre
indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117
112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi
verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira
Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir
desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris
e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera
que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam
(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)
De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent
Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous
parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris
(CHANTRAINE 1999 p 469) 117
Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem
natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores
segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel
estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a
imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc
mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material
body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis
otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and
imaginative purpose in view
165
que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e
o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo
passo do Timeu
Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que
atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga
da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades
nascidas no interior do ceacuteu
Timeu 40b-c
Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial
fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-
97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da
phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender
a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo
como condiccedilatildeo epistecircmica do devir
Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os
observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo
outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso
perturba nossa alma
Repuacuteblica X 602c
O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de
modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X
602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no
inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente
aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees
eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis
Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos
de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira
166
geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118
No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo
da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma
mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a
maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da
persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura
Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave
constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante
ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de
regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento
eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter
randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos
Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de
determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo
No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na
estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar
Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das
almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as
118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura
uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)
causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional
operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura
anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No
segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo
desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o
demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem
no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a
geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do
movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do
mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo
167
escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica
X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er
representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto
divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes
Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do
lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo
total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio
soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem
remissatildeo
Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica
coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos
indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao
koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os
movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem
personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da
necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a
natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito
inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida
As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia
unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca
simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras
entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes
mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto
168
sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da
causalidade
Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma
causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e
muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da
causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as
repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio
causal primordial de Anaacutenkhe
Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade
eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na
necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute
determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva
causal
Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos
miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)
Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o
discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes
(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um
perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as
consequecircncias
O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que
mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute
algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de
que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A
169
filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito
contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo
designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que
natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo
confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento
Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na
atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar
para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida
jaacute que toda vida eacute uma mistura
Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo
tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto
pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico
No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os
deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119
respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave
justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os
planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma
119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave
amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado
observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo
porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo
necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees
poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido
os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis
matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)
Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se
A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter
comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica
necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um
prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise
argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens
correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo
entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea
170
lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos
Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico
Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo
resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe
conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a
natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica
que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de
uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da
inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial
consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora
que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o
fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei
Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a
precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela
Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas
pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior
capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha
comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da
Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de
desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem
que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)
Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem
mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de
retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o
171
Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar
arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude
Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate
maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau
Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza
nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e
negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120
Repuacuteblica X 608b 04-08
O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que
os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem
muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste
em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo
combate que existe121
a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade
do mal a ser combatido122
A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos
os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente
associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite
viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um
elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo
miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que
consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem
para vencer a mistura de dores e prazeres
120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai
hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai
dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai
(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene
toucirc meacute
(Goacutergias 509c03-04)
172
A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da
pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter
sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma
discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande
significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das
profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu
viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por
desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera
Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la
ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo
com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)
A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A
noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis
encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento
contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e
obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras
equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)
Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo
ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na
perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo
vistas e natildeo percebidas
Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do
pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as
realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio
173
agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever
ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia
com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da
multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica
Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se
conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica
infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea
174
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1Goacutergias
GORGIAS Elogio de Helena Traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli Belo Horizonte Anaacutegnosis
2009 Disponivel em
httpanagnosisufmgblogspotcom200910elogio-de-helena-gorgiashtml Acesso em
10032010
GORGIAS ΓΟΡΓΙΟΥ ΕΛΕΝΗΣ ΕΓΚΩΜΙΟΝ Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics82-B11 acesso em 10032010
2 Aristoacuteteles
ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo e notas por Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2005
3 Antifonte
87 B 44 [cfr 99 B 118 S] PAP OXYRH XI n 1364 ed Hunt Frammento A Disponiacutevel
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics87-B Acesso em 02052010
4 Isoacutecrates
ISOCRATES Discourses Translate by George Norlin Harvard The Loeb Classical
Library 2000
5 Heroacutedoto
HERODOTE Histoire Traduction par Larcher Paris Charpantier 1850 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k203223nr=herodotelangPT acesso em 03052010 4
6 Hesiacuteodo
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Edited and translated by Glenn W
Most London Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Mary
Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2006
_________ Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed
Iluminuras 2003
7 Homero
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Ed Mandarim 2001
________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo por Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002
8 Platatildeo
Ediccedilotildees e traduccedilotildees
Obras completas PLATON Œuvres Complegravetes Paris Les Belles Lettres 1983-2003
Obras selecionadas
PLATON Gorgias Œuvres Complegravetes Trad par Alfred Croiset Paris Les Belles Lettres
2003
________________ Translated with introduction and commentary by E R Dodds
Oxford Clarendon Press 2002 A
________________ Traduction par Monique Canto Paris Ed Flammarion 1993
________________ Translated with notes by Terence Irwin Oxford Clarendon Press
1979
Collection GF Flammarion
PLATON Pheacutedon Traduction introduction et notes par Monique Dixsaut 1991
________ Cratyle Traduction introduction et notes par Catherine Dalimier 1998
________ Ion Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 2001
________ Gorgias Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
175
________ Le Banquet Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003
________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005
________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000
________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002
________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997
________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004
________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993
________ Theacuteeacutetegravete Traduction introduction et notes par Michel Narcy 1995
________ Timeacutee Critias Traduction introduction et notes par Luc Brissson 2001
9 Obras modernas
BEALL E F Hesiods Prometheus and Development in Myth Journal of the History of
Ideas 52 3 1991 p 355-371 BELFIORE E Elenchus Epode and Magic Socrates as Silenus Phoenix 34 1980 p128-
137
BENSEN CAIN R Shame and Ambiguity in Plato‟s Gorgias Philosophy and Rhetoric
41 3 2008 p 212-237
BENARDETE S Socrates‟s Second Sailing in Plato‟s Republic Chicago Chicago
University Press 1989
_______________ The Retoric of Morality and Philosophy Chicago Chicago University
Press 2009
BERRYMAN Sylvia Ancient Automata and Mechanical Explanation Phronesis
XLVIII4 p 344-369 2003
BLICKMAN Daniel R Styx and the Justice of Zeus in Hesiod‟s ldquoTheogonyrdquo Phoenix
41 4 p 341-355 1987
BOYS-STONES G R HAUBOLD J H Plato and Hesiod Oxford Oxford University
Press 2010
BRISSON Luc Leituras de Platatildeo Porto Alegre Ed PUCRS 2003
BURKERT Walter Ancient Mystery Cults London Harvard University Press 2001A
________________ Creation of Sacred London Harvard University Press 2001B
________________ Homo Necans Paris Les Belles Lettres 2005
________________ Lore and Science in Ancient Pythagoreanism London Harvard
University Press 1972
________________ Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica Lisboa Fundaccedilatildeo
Kalouste Gulbenkian 1993
________________ Structure and History in Greek Mythology and Ritual Berkeley
University California Press 1992
CLAY J S Hesiod‟s Koacutesmos Cambridge Cambridge University Press 2009
CAIRNS D AIDOS The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek
Literature New York Oxford University Press 1993
CARRIEacuteRE J-C MASSONIE B La Bibliotegraveque d‟Apollodore Paris Annales litteacuteraires
de l‟Universiteacute Besanccedilon 1991
CASADIO G JOHNSTON P A Mystic Cults in Magna Graecia Austin University of
Texas Press 2009
176
CARRATELLI P G Les lamelles d‟or orphiques Paris Les Belles Lettres 2003
CONACHER D J Prometheus as Founder of the Arts Roman and Byzantine Studies 18
3 1977
CORNFORD F M Was the Ionian Philosophy Scientific The Journal of Hellenic
Studies 62 p 1-7 1942
COSMOPOULOS M Greek Mysteries London Routledge 2003
CROCKET Andy Gorgias Encomium of Helen Violent Rhetoric or Radical Feminism
Rethoric Review 1994 p 71-90
DETIENNE Marcel VERNANT Jean Pierre Les Ruses de L‟Intelligence La Mḗtis des
Grecs Paris Flammarion 1974
DELATTE Armand Eacutetudes Sur La Litteacuterature Pyithagoricienne Genegraveve Slaktines
Reprints 1999
DEMOS Marian Callicles‟ Quotation of Pindar in the Gorgias Harvard Studies in
Classical Philology 1994 p 85-107
DEWINCKLEAR D Philosophie et Initiation dans l‟Œuvre de Platon Revue de
Philosophie Ancienne Bruxelles Eacuted Ousia 1 2010 p 29 - 65
DIXSAUT Monique Le Naturel Philosophe Paris Vrin 2001
DODDS E R Euripides the Irracionalist The Classical Review 1929 p 97-104
DORTER K The Transformation of Plato‟s Republic Lanham Lexington Books 2006
EDMONDS III R G Myths of the Underworld Journey Plato Aristophanes and the
bdquoOrphic‟ Gold Tablets Cambridge Cambridge University Press 2004
_________________ (Ed) ldquoOrphicrdquo Gold Tablets and Greek Religion Cambridge
Cambridge University Press 2011
____________ Os Grego e o Irracional Satildeo Paulo Escuta 2002 B
ELIADE M Forgerons et Alchimistes Paris Flammarion 1977
__________Images et symboles Paris 1980
__________ Initiation rites societies secretes Paris Folio 1959
__________ Le Sacreacute et le Profane Paris Folio 1965
__________ Mythes recircves et mystegraveres Paris 1957
EMLYN-JONES C Dramatic Structure and Cultural Context in Platos Laches The
Classical Quarterly 49 1 1999 p 123-138
ENGMANN J Cosmic Justice in Anaximander Phronesis XXXVI 1 1991 p 1-25
FARRAR C The Origins of Democratic Thinking Cambridge University Press 1988
FINLEY Moses Technical Innovation and Economic Progress in Ancient World The
Economic History Review 18 1 P 29-45 1965
FUTTER D B Shame as a Tool for Persuasion in Platos Gorgias Journal of the History
of Philosophy 47 3 2009 p 451-461
GAGARIN Michael The Torture of Slaves in Athenian Law Classical Philology 1996 1
p 1-18
GALIMBERTI Umberto Psiche e Techne ndash o homem na idade da teacutecnica Satildeo Paulo Ed
Paulus 2006
____________________ Man in the age of technology Journal of Analytical Psychology
2009 54 p 3ndash17
GERNET Louis Antthropologie de la Gregravece Antique Paris Flammarion 1982
177
4 _____________ Droit et institutions en Gregravece antique Paris Flammarion 1982
5 _____________ Recherches sur le deacuteveloppement de la penseacutee juridique en Gregravece
ancienne Paris Albin Michel 2001
GUIGNIAUT PATIN GIRARD J Poegravetes Moralistes de la Gregravece Paris Garnier 1892
Disponiacutevel em ltftpftpbnffr026N0262657_PDF_1_-1DMpdfgt
GUTHRIE W K C Os Sofistas Satildeo Paulo Paulus 1995
HAMMERTON-KELLY R Ed Violent Origens Satnford Stanford U Press 1987
HOTTOIS Gilbert Teacutecnica In CANTO-SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e
Filosfia Moral Satildeo Leopoldo Ed Unisinus p 665-669 2003
HUFFMAN K Philolaus of Croton Cambridge C U Press 1998
HUFFMAN K Archytas of Tarentum Cambridge C U Press 2005
IRWIN Terence Plato‟s Ethics Oxford Oxford University Press 1995
JAEGER W Paideacuteia Satildeo Paulo Martins Fontes 1995
JOURDAIN F Le Papyrus de Derveni Paris Les Belles Lettres 2003
KAHN Charles A Arte e o Pensamento de Heraacuteclito Satildeo Paulo Loyola 2009
_____________ Plato and the Socratic Dialogue Cambridge Cambridge University
Press 1996
KERFERD G B O Movimento Sofista Traduccedilatildeo por Margarida Oliva Satildeo Paulo Loyola
2003
KONSTAN D The Emotions of the Ancient Greeks Toronto University of Toronto Press
2007
____________ Shame in Ancient Greece Social Research 70 4 2003 p 1031-1060
KOSKLO George The Insufficiency of Reason in Plato‟s Gorgias The Western Political
Quarterly 4 1983 p 579-595
_______________ The Refutation of Callicles in Plato‟s bdquoGorgias‟ Greece amp Rome 1984
p 126-139
6 KRAUT R (Ed) The Cambridge Companion to Plato Cambridge Cambridge
University Press 1992
LAKS A Between Religion and Philosophy the Function of Allegory in the Derveni
Papyrus Phroacutenesis Leiden Brill XLII 2 1997 p 121-142
LAKS A MOST G W (Ed) Studies on the Derveni Papyrus Oxford Clarendon Press
1997
LAMPERT L How Philosophy Became Socratic Chicago Chicago University Press
2010
LARSON J Ancient Greek Cults Oxford Routledge 2007
LEacuteVI-STRAUSS C Antropologia Estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003
________________ Antroplogia Estrutural Dois Rio de Janeiro Tempo Brasileiro1993
________________ O Pensamento Selvagem Satildeo Paulo Papirus 2004
7 LEE Desmond Science Philosophy and Technology in Greco-Roman World Greece
and Rome 20 1 p 65-78 1973
8 LONG A A (Ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy
Cambridge Cambridge University Press 1999
LONGRIGG J Greek Rational Medicine London Routledge 1993
LUCAS D La philosophie antique comme soin de l‟acircme Le Portique [En ligne] 4-2007
Disponiacutevel em lt httpleportiquerevuesorgindex948htmlgt Acesso em 10 abr 2010
178
MARQUES M P Platatildeo Pensador da Diferenccedila Belo Horizonte Ed UFMG 2006
MIRECKHI P MEYER M (Ed) Magic and Ritual in the Ancient World Leiden Brill
2002
MICHELINI A N Rudeness and Irony in Plato‟s Gorgias
Classical Philology 1998 p 50-59
MIKALSON J A Greek Popular Religion in Greek Philosophy Oxford Oxford
University Press 2010
MOSSEacute C Politique et Societeacute en Gregravece Ancienne Paris Flammarion 1995
MONOSON S S Plato‟s Democratic Entanglements Princeton Princeton University
Press 2000
MORGAN K Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato Cambridge
Cambridge University Press 2000
NUNES SOBRINHO R Platatildeo e a Imortalidade mito e argumentaccedilatildeo no Feacutedon
Uberlacircndia EDUFU 2008
OGDEN D (Ed) A Companion to Greek Religion Oxford Blackwell Publishing 2007
OLYMPIODORUS Commentary on Plato‟s Gorgias Translated by Robin Jackson
Kimon Lycos and Harold Tarrant Boston Brill 1998
OTTO W F L‟Esprit de la Religion Grecque Ancienne Paris Berg International 1995
PLOCHMANN G K ROBINSON F E A Friendly Companion to Plato‟s Gorgias
Illinois Southern Illinois University Press 1988
PRADEAU Jean-Franccedilois Platon et les formes inteligibles Paris PUF 2001
PRICE A W Mental Conflict London Routledge 1995
RACE W H Shame in Plato‟s Gorgias The Classical Journal 74 3 1979 p 197-202
RAMSEY Eric Ramsey A Hybrid Techne of the Soul Thoughts on the Relation between
Philosophy and Rhetoric in Gorgias and Phaedrus Rhetoric Review 1999 17 2 p 247-262
RAMNOUX C Heacuteraclite Paris Les Belles Lettres 1968
REINHARDT K Les mythes de Platon Paris Eacuted Gallimard 2007
REIS M D Um olhar sobre a psykheacute o logistikoacuten como condiccedilatildeo para a accedilatildeo justa nos
livros IV e IX da Repuacuteblica de Platatildeo 2000 217 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Federal de Minas
Gerais 2000
REIS M D Triparticcedilatildeo e unidade da Psykheacute no Timeu e nas Leis de Platatildeo 2000 304 p
Dissertaccedilatildeo (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade
Federal de Minas Gerais 2007
RIBEIRO A M O Reverso da Filosofia o caso Goacutergias 214 p Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo 2002
ROOCHNIK David Of Art and Wisdom Pennsylvania The Pennsylvania U Press 1996
SAXONHOUSE A W Free Speech and Democracy in Ancient Athens Cambridge
Cambridge University Press 2008
SAUNDERS Trevor Penology and Eschatology in Plato‟s Timaeus and Laws The
Classical Quarterly 23 2 1973 p 232-244
SEKIMURA M Platon et la Question des Images Bruxelles Eacuted Ousia 2009
SMITH Janet E Plato‟s Use of Myth in the Education of Philosophic Man Phoenix 40
1986 p 20-34
SCHOFIELD M Plato New York Oxford University Press 2006
179
TARNOPOLSKY C H Prudes Pervets and Tyrants Plato‟s Gorgias and the politics of
shame New Jersey Princeton University Press 2010
TSANTSANOGLOU K PARAacuteSSOGLOU G KOUROMENOS T (Ed) The Derveni
Papyrus Firenze Leo S Olschki Editore 2006
VERNANT Jean Pierre Entre Mito e Poliacutetica Satildeo Paulo Edusp 2002 A
___________________ Mito e Pensamento entre os Gregos Satildeo Paulo Ed Paz e Terra
2002 B
___________________ Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Rio de Janeiro Ed Joseacute
Olympio 1999
___________________ Mythe et Religion en Gregravece Ancienne Paris Ed du Seuil 1987
___________________ Pandora la preniegravere femme Paris Bayard 2005
VLASTOS Gregory Plato II A collection of critical essays Indiana Notre Dame Press
1978
_________________ Equality and Justice in Early Greek Cosmology in Classical
Philology 42 3 p 156-178 1947
_________________ Socrate Ironie et Philosophie Morale Paris Aubier 1994
_________________ Was Polos Refuted The American Journal of Philology 1967 p
454-460
VOGELIN Eric The Philosophy of Existence Platos Gorgias The Review of Politics 11 4
1949 p 477-498
WARDY R Birth of Rhetoric London Routledge 1998
WARNECK P A Descent of Socrates self-knowledge and cryptic nature in the
Platonic dialogues Indiana Indiana University Press 2005
WILLIAMS B A O Shame and Necessity Berkeley University of California Press
1994
WINKELMAN M Shamanism Sta Barbara Praeger 2010
Dicionaacuterios
BAILLY Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 2000
CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris Klincksieck
1999
LIDDELL G H SCOTT R Greek-English Lexicon Oxford Oxford University Press
1997
Instrumentos de Pesquisa
LEXICON I Plato ed Roberto Radice Ilaria Ramelli Emmanuele Vimercati Electronic
ed Roberto Bombacigno Milano Biblia 2003
DAPHNET Digital Archives of Philosophical texts on the NET Disponiacutevel em
httpwwwdaphnetorgindex_frhtml
100
N972k
2011
Nunes Sobrinho Rubens Garcia
Koacutesmos e inteligecircncia [manuscrito] as potecircncias da alma
no Goacutergias Rubens Garcia Nunes Sobrinho - 2011
190 f
Orientador Marcelo P Marques
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas
Inclui bibliografia
1Filosofia ndash Teses 2 Alma - Teses 3Vergonha - Teses
4Mito - Teses 5Platatildeo Goacutergias I Marques Marcelo
Pimenta II Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade
de Filosofia e Ciecircncias Humanas III Tiacutetulo
iv
Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos
v
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha
Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo
Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que
resiste ao esquecimento e agrave morte
Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo
mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco
eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo
Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito
em prol da alteridade
Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da
inteligibilidade e da razatildeo
Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as
imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem
possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do
recomeccedilo
Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo
Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo
vi
Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito
Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na
humanidade
Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida
sem exame natildeo eacute digna de ser vivida
vii
Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha
Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas
viii
SUMAacuteRIO
0 INTRODUCcedilAtildeO5
1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21
12 Causalidade e Poder 25
13 Causalidade e Reciprocidade 32
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de
Derveni 44
2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61
3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92
31 Eros e Loacutegos92
32 Vida e ḗthos98
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122
35 A Retoacuterica da alma134
36 Julgamento e nudez149
4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154
41 Imagens e causas no mito de Er154
42 Mito e psykhḗ159
43 Er o decreto de Laacutequesis162
5 BIBLIOGRAFIA174
1
Resumo
A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta
investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e
aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um
programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza
pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a
definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas
imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a
dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo
tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com
Soacutecrates Caacutelicles
Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o
mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de
Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito
adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos
esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da
multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo
projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por
extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a
linguagem satildeo os fundamentos do pensar
Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta
que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado
na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que
engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo
2
dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual
interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa
ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias
reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e
inteligecircncia que eacute a psykheacute
Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito
3
Abstract
Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point
out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and
apply them in Er myth of Republic
According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear
distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the
timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the
actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings
through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the
same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles
In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is
thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language
comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of
divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the
causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between
two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient
means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before
language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion
staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the
thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic
ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which
engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation
can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an
expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar
4
movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the
feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is
Keyword Gorgias Republic structure myth
5
Introduccedilatildeo
O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a
adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento
que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus
esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees
filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese
ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos
que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos
O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que
o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das
imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda
dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o
pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a
filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a
transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no
movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse
bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)
Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo
que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno
linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a
narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo
de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a
6
sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia
temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal
A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade
distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a
transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis
constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas
embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a
linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo
As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma
polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou
mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do
inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo
como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica
da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi
conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo
Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico
discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as
teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos
ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se
considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como
palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da
realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis
ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute
ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens
7
No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como
phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA
2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara
distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo
do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo
original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre
eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld
Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma
raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do
visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia
de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego
no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica
inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os
verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos
bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo
de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia
(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)
Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo
tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal
determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse
sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de
superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se
situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim
como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia
O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a
silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou
desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos
deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do
8
empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em
seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o
conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel
No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a
transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do
inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas
constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os
referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico
Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a
passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na
esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo
um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos
cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se
fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao
inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico
O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica
modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais
profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo
Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica
Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma
seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute
completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da
arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e
regramento que a virtude de cada coisa existe
Goacutergias 506 d5-e2
Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto
possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas
9
visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante
e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a
ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior
agravequela
Timeu 30a
A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos
kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico
No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que
compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar
sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o
ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida
tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores
eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em
uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o
regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado
kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo
humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o
mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)
A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os
mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas
Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila
o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o
cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da
poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus
proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de
trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema
10
interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens
especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um
tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo
permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que
o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a
partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de
ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da
significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)
Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas
agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais
concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses
mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento
dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus
efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes
mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da
psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza
das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da
explicitaccedilatildeo dessas regras
Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-
construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute
obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de
julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A
fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O
11
modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo
entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras
Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o
acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do
sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A
complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como
grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo
do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo
Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os
grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de
racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute
consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias
o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron
(Goacutergias 502c)
A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no
domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da
influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia
(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia
(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de
harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e
harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a
natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita
virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma
correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um
12
legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A
grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo
cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da
alma
Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da
ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica
de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o
acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde
(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o
sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles
emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia
ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes
potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um
instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala
desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um
princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical
(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade
o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo
no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)
Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta
unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento
matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do
acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo
13
Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo
representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos
contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do
justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical
regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande
reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do
psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento
A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que
damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses
movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto
por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova
conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)
No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia
divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico
que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por
outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo
do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o
koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a
ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia
pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a
harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros
possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)
que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais
14
correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no
palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas
Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um
procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas
A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada
ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as
diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e
possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde
estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e
posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero
determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos
planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo
(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura
complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a
constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos
fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende
uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de
inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas
A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera
eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis
X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como
sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como
uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio
15
ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza
procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais
do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs
princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios
(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias
(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER
2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta
separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as
interaccedilotildees da physis satildeo reportadas
O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa
instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para
que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade
deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees
invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como
fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano
cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas
O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica
unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja
significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade
A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de
julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida
Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e
soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees
matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um
16
pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo
esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a
racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de
inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem
todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de
racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num
enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico
Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo
evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da
interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e
certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das
perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico
ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas
Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise
estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que
permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda
esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa
tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos
A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que
pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela
1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente
alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa
ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de
uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico
17
paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em
geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser
metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo
construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo
atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa
regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses
efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes
Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que
seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo
(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss
ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca
percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004
p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o
caraacuteter de objetos absolutosrdquo
O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam
dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises
filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para
expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute
menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS
2004 p 8)
Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar
autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do
mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo
estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute
18
o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois
mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais
esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo
Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-
Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e
uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas
funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que
suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um
procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito
natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de
accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica
comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo
cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)
Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura
permanenterdquo
A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o
significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que
o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler
simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito
como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender
como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos
musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees
que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash
mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se
19
imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss
como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os
grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que
remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que
supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e
pela distacircncia cultural das eacutepocas
Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e
compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico
teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto
os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia
elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e
elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs
primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios
Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a
funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo
inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que
representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem
decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)
A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e
esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo
aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o
um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico
Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do
tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em
20
planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos
aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o
mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha
meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993
p 169)
Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo
dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico
psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por
pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes
A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por
causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano
cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas
grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do
meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os
grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade
unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir
Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da
causalidade
21
I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade
O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os
o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra
de que castigo teriam no porvir
Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104
A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de
uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em
resgatar-lhe a filha raptada
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei
A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena
Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide
Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha
nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()
Iliacuteada I vs 8-15
Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para
responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se
saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira
vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e
danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as
3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma
estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens
configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse
caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo
inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego
conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no
primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)
22
fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel
de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade
divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da
causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e
localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa
eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo
satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal
Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina
vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma
accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral
associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute
oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber
atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere
sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do
passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais
complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo
mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade
eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo
mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a
consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo
padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em
situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do
comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal
apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma
23
conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um
contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da
racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma
experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o
ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As
conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que
estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que
caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana
Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute
ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma
Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se
daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo
eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo
dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no
mundordquo
Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a
matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da
concepccedilatildeo racional da teacutecnica
Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada
pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de
Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a
sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia
astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice
24
de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono
obteacutem a soberania do Koacutesmos
6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada e urdiu dolosa e maligna arte
Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo
forjou grande podatildeo e indicou aos filhos
Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo
ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes
ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso
pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo
Teogonia 159-166
Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a
inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego
dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima
instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de
Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)
O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador
com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os
meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia
para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel
como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia
teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza
A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo
linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As
gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a
violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual
de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a
25
Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos
das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de
princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um
caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de
concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da
distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da
desordem personificadas nos filhos da Noite
A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo
de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim
como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras
Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais
A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida
simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave
infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso
A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel
12 Causalidade e Poder
Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de
poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do
Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica
5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo
estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a
anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento
constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista
como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo
procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio
apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao
abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par
26
A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia
maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo
implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute
indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da
Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus
Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos
Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias
o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio
com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra
e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens
sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala
E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um
do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos
tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas
natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei
HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462
O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A
vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a
presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a
uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e
encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o
astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia
esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que
tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia
astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que
complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um
plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da
potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio
historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de
agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)
27
permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania
basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que
soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade
Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila
como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a
conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo
de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos
melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo
poderosas a ponto de serem epifanias divinas
O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees
da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais
novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo
problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania
(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e
Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e
empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila
destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer
voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados
soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-
retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo
de uma ordem coacutesmica imutaacutevel
A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia
astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as
28
circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e
fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a
escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado
somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder
soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta
de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em
sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo
comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa
pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de
meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo
oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a
consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a
provedora e a chancela do poder
Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de
lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os
irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros
coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para
obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores
respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus
liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia
consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido
por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a
reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria
passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo
29
de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para
instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia
presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta
Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa
de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados
pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio
da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si
mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O
Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia
e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal
(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o
equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o
concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e
do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a
Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo
(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte
de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo
Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo
presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar
7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e
sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que
Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi
ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash
a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato
de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma
perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como
oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant
confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)
30
Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que
deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece
mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo
(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a
ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida
quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias
Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a
atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees
subsequentes
Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram
filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai
decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia
a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo
na cova da Terra8
(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)
A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do
instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de
violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a
penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o
princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de
Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de
violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo
astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis
desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico
8
31
emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo
masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis
feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um
apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica
feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento
Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra
realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida
Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia
que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular
categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis
ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se
de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro
Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das
Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites
intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui
medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo
primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos
irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma
sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas
brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico
Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo
princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo
irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo
ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas
32
O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus
serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a
partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a
reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de
lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia
hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei
irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis
13 Causalidade e Reciprocidade
A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da
reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o
estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia
Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da
reciprocidade
Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo
como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las
Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo
que te banhes e possas dar largas ao peito querido
para depois ao navio voltares levando um presente
muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha
parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado
A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte
Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora
Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta
quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa
Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado
Odisseacuteia I vs 307-318
Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo
comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que
estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A
33
proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute
caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O
estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais
que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente
permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a
representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o
discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o
reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute
apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa
universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A
reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou
hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo
Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no
desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como
justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da
oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela
que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria
Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece
significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a
seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio
constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila
do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a
desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a
equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com
34
mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo
precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo
somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento
oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a
noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e
do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral
Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a
um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com
a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a
noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē
Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias
zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou
Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e
Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das
falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite
associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira
guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo
e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo
opostos
Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano
e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a
abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de
ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo
35
Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com
a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres
em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem
confiante ()
Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida
(epimetrḗsso) ()
Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a
mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )
(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)
A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no
iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta
quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos
dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute
entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de
comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano
lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas
quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos
apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente
das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento
oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas
de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de
uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia
grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o
momento oportuno (kairograven gnōthi)
O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal
agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas
elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da
36
fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida
(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O
excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave
vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num
espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que
suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos
desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas
suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria
No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a
exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a
contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A
concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees
que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de
moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a
contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as
interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O
comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e
recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo
muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de
verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem
9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim
que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era
torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de
medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)
37
A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina
com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo
operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)
mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das
partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a
proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da
causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo
princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu
Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus
pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu
escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo
apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem
Teogonia vs 613-616
A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um
confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a
violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No
combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas
inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-
se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de
accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que
distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os
acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na
mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de
38
simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios
eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron
O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os
significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p
263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e
no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de
um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica
humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino
A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das
alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento
e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser
efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por
conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo
almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites
as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em
conformidade com seu estatuto
A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto
que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas
Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a
significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio
da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a
reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com
a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos
atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e
39
relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees
latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um
deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada
de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a
insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu
redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que
caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses
A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante
dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria
representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de
presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania
de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin
teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto
humano
A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa
gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes
comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a
apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo
da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O
duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A
primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do
tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania
sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo
40
segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas
proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes
Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio
pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de
impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo
coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos
dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de
maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a
perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos
ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem
dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda
por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como
contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis
prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos
homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar
as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens
Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da
causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida
A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)
uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a
calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso
maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula
oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa
engendra nova retribuiccedilatildeo
41
O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o
contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de
todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os
males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo
astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela
contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de
Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave
necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do
fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais
Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano
em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia
divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do
homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos
deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano
Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e
delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo
inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as
coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos
tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo
Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos
titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo
de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser
unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de
proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode
42
passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e
Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua
Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade
ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento
inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que
separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido
humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do
feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites
sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade
divina que desconhecem as inibiccedilotildees
O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de
armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e
sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a
potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a
promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave
concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem
regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos
trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo
miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu
A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da
inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e
compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A
dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por
armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade
43
aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes
anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago
humano
A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na
experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a
inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a
expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde
o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter
dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal
iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009
p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos
males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males
silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a
significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos
Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o
viver excessivamente pesado para ser suportado
O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste
ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero
que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um
fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a
manutenccedilatildeo da vida10
O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia
teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de
10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e
arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute
encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)
44
absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos
homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e
selvagem como os animais
O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo
entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva
da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a
inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel
entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de
meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees
proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria
Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento
a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a
voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni
Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo
grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre
os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um
uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a
transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo
causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras
Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)
A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre
conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados
45
os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-
teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha
sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e
320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm
seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud
TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da
autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo
interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo
exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica
aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais
cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave
cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se
pertinente
O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a
criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os
maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A
questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma
inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O
comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja
finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete
um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)
palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E
natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o
que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico
(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo
46
desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes
coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere
um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o
acabamento do poema Como ele torna claro em um bem
reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos
ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que
ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte
(Derveni Papyrus Col VII)11
O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder
de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os
salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua
incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo
ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do
ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves
imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos
sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico
A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo
terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a
uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da
inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da
polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave
inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o
emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)
Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras
atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos
11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)
47
procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12
os
sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as
Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo
extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas
honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com
muacutesica13
Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e
libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis
A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo
dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o
caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da
Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e
sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma
Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente
(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma
12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo
pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar
antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de
sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain
(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e
posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade
de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF
apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui
ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas
encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo
do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve
oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta
[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica
(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)
48
inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa
imageticamente em versos enigmaacuteticos
A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da
natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com
o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14
Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute
intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que
carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas
causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar
por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e
interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual
O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a
uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a
visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que
possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana
e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)
A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15
A sabedoria consiste tradicionalmente
no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou
enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este
exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua
atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma
14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi
(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN
2003 p 63)
49
tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo
estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16
O discurso divino caracteriza-se pela
oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente
consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que
subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si
mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que
fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17
)
O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo
que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel
Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por
que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que
o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da
palavra
O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a
infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias
satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a
retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias
invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute
assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na
vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o
16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404
Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)
50
comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo
gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens
aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele
(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos
quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza
possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas
medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as
Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke
(Col IV)18
Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees
e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma
correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas
potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha
agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das
disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee
limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo
iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual
emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos
Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo
grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos
jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender
simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo
divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo
caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia
18
(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)
51
satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma
ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na
consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e
compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros
constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos
seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido
com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre
planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela
exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos
Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas
satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que
origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter
indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico
O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele
muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto
de cada um
DK 67 (KAHN 2003 p 105)
Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos
hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro
para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do
aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do
perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees
e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O
homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que
compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377
52
ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do
Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus
presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino
Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute
simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo
modo haacute uma divindade e muitos nomes
Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos
fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em
termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que
ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um
princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio
supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o
princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o
koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19
(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e
representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia
entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre
opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de
regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de
ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da
divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco
inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma
19
DK30
(KAHN 2003 p 73)
53
manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que
determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente
todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos
Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo
O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-
humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um
poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a
morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino
inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem
dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado
para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da
inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo
(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo
Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas
segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do
tempo20
Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo
para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o
necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos
outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21
Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a
qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo
20
(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel
em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)
54
de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso
significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo
A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma
progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo
rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis
eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da
causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila
vai muito aleacutem da esfera legal e moral
Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo
com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou
ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala
do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos
natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute
nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria
natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que
natildeo podem ser ultrapassados
A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral
como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo
compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e
destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)
Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente
reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios
A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que
cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as
concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e
serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo
teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo
coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel
salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
55
A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas
teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia
das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre
falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio
privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel
evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido
oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo
Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a
transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O
segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo
esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que
soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de
vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos
O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de
imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para
realidades invisiacuteveis inevidentes
Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)
que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)
imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas
manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm
heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria
com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os
prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou
manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia
satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo
haacute como crer ainda que vendo22
(Col V)
22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)
56
As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida
para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o
conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas
para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo
discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento
eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo
diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute
um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior
obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o
conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e
enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam
vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a
tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes
verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento
A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo
tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os
misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)
interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado
aos natildeo-iniciados
No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras
de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)
dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e
especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja
reconhecido (BURKERT 1972 p 176)
57
No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos
ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos
ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)
A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das
imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho
sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem
coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar
os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo
podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular
da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra
como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como
mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo
temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale
a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento
desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio
A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo
aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e
resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)
impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos
pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da
luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis
(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos
myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas
58
A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja
luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura
constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o
regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura
medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das
partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia
sexual
() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou
primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para
falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso
Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo
reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como
eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa
palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute
possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()
(Col XIII)23
Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai
designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da
potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes
da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia
identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do
substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem
o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)
O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a
venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo
jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da
23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)
59
Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca
identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de
Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo
Intelecto
A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a
propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no
centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia
astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva
astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel
(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o
concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO
Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese
simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona
ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau
diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A
cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o
umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da
emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio
do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio
das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois
todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash
Theologumena arithmeticae 25 17
O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute
onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia
cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um
afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da
accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e
vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)
60
Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e
cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas
Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a
Lenaia
(DK 15)
O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo
vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese
filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do
entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que
aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica
a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo
vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo
satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada
pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
61
II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē
Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois
modos o do mais velho que fala para com os mais jovens
demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso
(Protaacutegoras 320c02-04)24
O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a
narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha
prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein
kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas
pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos
O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons
naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar
estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o
conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico
permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a
inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder
de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem
Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no
movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se
apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e
modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais
mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO
2008 p 30)
24
62
Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de
Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito
reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees
a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES
HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos
platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de
Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja
estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de
Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos
epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em
contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de
Homero
Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em
diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)
Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo
sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo
(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟
tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte
sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e
satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua
pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo
postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo
estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou
meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico
narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟
(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)
Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico
das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico
possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo
e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de
63
julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai
leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya
do livro XI da Odisseacuteia
Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo
oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni
Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em
modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria
tradicional
Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo
caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o
ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de
poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria
religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte
da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era
acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos
secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda
uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo
tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto
miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de
intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a
divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto
ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios
praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma
primitiva e original eacute o Orfismo
O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e
por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se
desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de
elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que
Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe
com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma
Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do
64
narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo
evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato
Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes
da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO
2010 p 74-75)
Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do
Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico
encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da
ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e
traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da
Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico
O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um
tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25
A existecircncia preacutevia dos deuses
indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O
tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito
comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A
distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo
devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens
o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um
tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens
implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o
25
65
fundamento26
mediante o tempo exemplar para todo o devir27
A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo
buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma
absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28
poliacuteticas no absoluto
referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode
constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila
na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a
praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se
A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso
atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do
argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em
forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29
A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo
absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a
estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O
26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo
original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo
primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir
(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica
platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para
fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia
ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a
cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo
de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos
ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os
atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma
decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil
maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII
1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de
todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois
termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui
um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e
seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos
66
tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o
paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o
referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)
Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses
os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo
Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos
mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo
destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando
uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em
seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles
encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em
cada um deles em boa ordem como conveacutem30
(Protaacutegoras 320d)
Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos
primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se
inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os
mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua
modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo
movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos
fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31
30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles
67
Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com
kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de
Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a
imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)
se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32
O equiliacutebrio entre os opostos exige a
compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu
astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de
distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas
nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante
dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu
existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente
B 62 SIMPL Phys 381 29
[v1] [I 335 5 App]
[v5]
[I33510App]
SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29
Agora vem e como de homens e mulheres
de muitos prantos
noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-
se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem
alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam
de ambos de aacutegua e de forma brilhante
tendo parte estes fogo faziam subir
querendo ao semelhante chegar
nem ainda de membros amaacutevel forma
mostrando (eles)
Nem voz nem (tal) qual o membro
proacuteprio dos homens
(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)
(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)
Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de
ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas
cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres
naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do
alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote
umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo
(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos
precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511
68
ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute
inteiramente desprovido de capacidades
Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz
(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a
duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra
para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz
phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute
ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute
ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu
desaparecimento
A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia
paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do
natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa
sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia
todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi
gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um
tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do
tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem
primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves
gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia
primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos
tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-
ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)
69
Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a
antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a
passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o
ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE
1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual
se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens
antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo
cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e
misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado
a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria
que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-
se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a
repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas
somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)
O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos
concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e
imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo
gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em
combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o
novo homem
Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por
Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33
(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite
trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante
33
70
associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu
saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de
ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de
retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado
A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome
correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo
410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento
Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais
provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na
gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra
(Menexeno 238a 03-05)
A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a
gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o
ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e
a sexualidade34
e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE
1977 p 30)
Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do
artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias
advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos
A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo
desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A
distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio
34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave
de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual
surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave
noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A
conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis
Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B
71
ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida
de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu
natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho
mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35
Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e
Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave
theicirca nooucircsa)36
O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia
teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um
aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino
portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao
homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a
ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)
Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes
rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os
homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo
contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua
falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a
possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras
312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa
propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido
de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do
35
(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c
72
nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009
p 2)
As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja
natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37
O lote de participaccedilatildeo
e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses
mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de
participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que
pode nomear os deuses pela fala regrada
O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a
imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico
exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino
mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso
teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute
determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo
Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os
homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da
poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante
da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua
Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas
destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila
e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades
37
(Protaacutegoras 322a04-08)
73
Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de
Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos
deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O
mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato
moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o
fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o
feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio
se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a
expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38
(VERNANT
2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da
graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e
olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)
Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos
divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um
paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de
contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de
Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do
saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo
entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo
retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a
ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso
opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees
38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males
74
O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber
teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-
presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar
no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano
que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila
dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a
destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale
dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo
problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus
Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a
ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser
irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente
concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo
plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes
essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē
As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo
da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da
ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a
existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo
A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que
esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos
mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma
atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica
nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A
75
passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do
sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo
Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos
inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses
imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos
mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por
intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de
antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de
Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural
mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem
O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a
determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente
intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra
para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado
permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a
sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo
entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a
demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia
divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana
instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam
iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro
da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos
animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente
76
(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras
322c07)
A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos
homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do
divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o
sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas
aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o
profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus
invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente
Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo
salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre
poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo
dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a
distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com
equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama
em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo
tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē
O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade
poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a
contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo
ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados
invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute
essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial
subjacente a aidōs e diacutekē
77
Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil
desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo
de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos
basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila
equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais
homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica
I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia
independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados
delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus
(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A
triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os
mortais devem sua existecircncia aos deuses
2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos
homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade
determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e
suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens
caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das
necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia
exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da
teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute
determinado A razatildeo supera o determinismo
78
3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -
Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis
razatildeo
animais
homens O saber
teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva
um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A
cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades
humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades
humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida
na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute
reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu
(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um
parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano
e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A
divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso
Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia
demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da
cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual
maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a
pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo
e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os
homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo
teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento
das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e
que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e
79
alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do
Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da
oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo
Natureza Cultura
Deuses
Mortais Homens
Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica
Demiurgia
As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem
condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet
Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no
julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e
tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo
como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um
sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo
menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a
divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees
humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes
diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um
suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute
simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece
muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de
bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo
(GERNET 1982 p 14-15)
Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto
realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que
faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do
espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo
(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da
80
figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo
diante daquilo que eacute puro
Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego
juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e
neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que
designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas
respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra
aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A
experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto
inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute
diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre
da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de
evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar
o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par
reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa
indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou
derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva
Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver
correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica
para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo
respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo
indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada
resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva
81
A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a
Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a
uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o
mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele
ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar
Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu
lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)
Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em
estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel
de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de
Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que
vem a ser
Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que
ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras
afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se
melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion
epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o
itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A
finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los
ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser
Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um
retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu
ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo
mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos
82
oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um
novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano
dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria
concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē
Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo
determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema
inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das
comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do
visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de
virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo
simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia
Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do
mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas
satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso
caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo
que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de
profanos39
Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40
Eacute por
participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em
sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra
39
(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o
gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um
mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que
Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria
uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso
na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a
iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico
83
os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees
cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de
inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do
domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem
passaram a destruir-se mutuamente
Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira
equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que
natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de
potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por
conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a
desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens
convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como
afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por
conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias
determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A
participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar
coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por
todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos
sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar
e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo
muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica
cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes
tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou
impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta
84
A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e
da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas
que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da
philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)
Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41
Em primeiro
lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem
potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios
instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em
conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade
participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos
vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus
efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo
determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter
absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica
Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da
existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia
estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a
41
Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz
como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como
dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou
desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63
n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute
constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no
reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem
Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da
proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e
respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes
suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e
a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca
simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)
85
destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a
determinaccedilatildeo de homens e cidades
Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo
como natildeo satildeo42
haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o
afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel
que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma
divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos
condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia
O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em
contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia
destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem
constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si
A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a
violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A
teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a
medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade
Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo
desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve
aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da
coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a
vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)
42
Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B
(Teeteto 160e09)
86
Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a
destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a
cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que
possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees
rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de
inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus
experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo
para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por
um afeto de pertenccedila muacutetua
Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da
polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade
exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo
do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais
para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma
dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para
fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e
amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a
vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia
ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a
previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem
como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o
homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da
guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo
heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem
87
medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis
em outro noacutesos peste da cidade
A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano
ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a
compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo
perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43
Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a
corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos
justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a
ordenaccedilatildeo do tempo
Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio
da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos
afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave
violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave
vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo
ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das
armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no
amor mas tambeacutem no sangue e na morte
A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo
permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de
compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em
direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)
43
DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B
acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo
88
Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo
entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos
ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio
do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir
do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na
cidade mas perde a alma
A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios
que coloca em perigo a alma44
O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios
empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos
alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se
nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45
pretende receber um ensino transmitido por um
guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel
anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um
mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e
experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao
desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis
socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute
incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um
sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta
fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)
44
(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao
saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)
89
Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico
Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto
do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)
Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa
o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um
eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees
postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de
hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de
bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro
A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a
porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades
muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a
humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais
elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado
pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um
ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees
originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo
a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)
O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino
iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em
direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a
medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao
90
melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46
Assim
como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as
disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e
guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e
delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos
O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de
passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas
possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela
iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)
A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de
Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio
Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e
espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da
accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e
supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)
O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo
apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados
independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas
aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo
especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo
mediada pela palavra
46
(Teeteto 167a04-06)
91
A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase
das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT
1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais
acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo
(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem
excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo
direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo
ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)
A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos
sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a
condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado
superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila
A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende
remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste
somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo
consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem
ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o
olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob
exame
92
III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM
QUESTAtildeO
31 Eros e Loacutegos
Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que
o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il
V 3)
Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se
ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais
brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles
Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo
dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que
configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias
especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro
culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto
de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a
desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido
pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que
reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis
No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como
o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia
entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das
coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio
da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia
93
perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute
provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um
tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que
ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)
O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos
valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta
de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade
distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e
outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo
mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e
diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual
ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de
falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos
prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com
todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47
Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte
pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)
Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na
afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da
(Goacutergias 484 c09-d07)
94
possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48
Soacutecrates e Caacutelicles
padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a
natureza do Eacuteros
O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da
encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto
como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia
ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o
belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo
puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um
carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela
esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de
quem haveraacute de continuar procurando
O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de
Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em
Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como
forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico
segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e
aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos
agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em
Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao
reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em
Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se
Goacutergias 481 d)
95
entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo
sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o
discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu
amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia
para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia
harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da
inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista
(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu
proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles
desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49
satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e
arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo
apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e
porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50
Quando o
desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os
meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num
49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma
multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e
uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa
do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na
natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela
refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o
opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o
ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
110)
(Goacutergias 482b04-c03) 50
(Goacutergias 465a)
96
caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a
mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a
personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar
valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para
a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do
bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o
discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias
465d)
A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas
opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para
outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas
expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se
entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo
mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se
relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido
pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um
bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
105)
A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas
assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como
a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra
restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero
Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa
disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo
97
implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as
artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas
Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes
autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as
aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute
para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O
discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o
bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como
a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa
disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da
multidatildeo estaacute para a Filosofia
A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a
ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente
do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por
amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por
Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o
mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a
riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros
Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o
plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo
sempiterna do belo
Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que
digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto
Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o
98
movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele
num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O
movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O
discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do
conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute
diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o
conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de
seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo
pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte
para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser
desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o
proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que
haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra
32 ndash Vida e ḗthos
Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se
potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos
loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos
antagonismos
Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de
vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo
excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a
inteireza da vida
99
O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51
se contradizem
uma agrave outra52
- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um
todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em
contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo
haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica
grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de
Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53
O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a
afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e
confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala
51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo
V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da
eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a
significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao
que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de
ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja
claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em
Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza
humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios
inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo
significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de
outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para
os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso
natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA
fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()
mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo
difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao
primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez
que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada
atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita
por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52
(Goacutergias
482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura
Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio
para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem
refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se
inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o
designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)
100
segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54
(483a) A questatildeo dos
valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo
pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende
de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o
estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55
A noccedilatildeo
convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior
determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees
satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece
que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma
vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56
e coincide
com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que
nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do
que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos
muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon
leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste
em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das
54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre
e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo
dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p
571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos
sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha
sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B
118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo
impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser
preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso
favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse
constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para
as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa
posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas
pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente
justo (IRWIN 1995 p 103)
101
multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os
melhores e os mais robustos dos homens
Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens
fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que
estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em
sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos
homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que
possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto
E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros
Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo
inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso
procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam
injusticcedila57
(Goacutergias 483b04-c08)
A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha
que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva
diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de
todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso
(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez
brota da estima puacuteblica58
Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que
caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles
considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a
Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na
prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada
pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de
exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o
sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes
vergonhosas a genitaacutelia
102
tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e
a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de
adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p
26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem
configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida
honoraacutevel
O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade
de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo
pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees
longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e
violentando a sua respeitabilidade
Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se
despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto
a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto
para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-
se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito
esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a
presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o
ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no
fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios
como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio
mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X
1850)
A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a
genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa
Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o
olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e
daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos
costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas
103
pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a
beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos
costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e
desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia
que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas
as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma
caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica
uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez
O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam
encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59
Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram
constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua
nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e
Natureza frequentemente se contradizem
A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute
precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o
grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira
natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais
vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)
subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em
todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo
(483e-484b)
59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A
dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso
acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)
104
A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles
Koacutesmos60
para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato
excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de
perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)
Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute
um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61
Assim como o discurso exemplar de
seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem
Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos
que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais
capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo
estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os
animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza
(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses
(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como
brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho
da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor
aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores
homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)
60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio
de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo
designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta
Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no
sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato
Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o
significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo
ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute
propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do
incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009
105
A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com
razotildees No caso de Helena62
as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um
toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute
natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de
Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para
se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos
o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e
ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela
Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior
Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila
persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de
um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base
material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)
Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve
receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena
7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio
de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se
encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63
ndash os loacutegoi movem
os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por
natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de
62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo
fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime
democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63
106
combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como
meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado
ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem
mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por
constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade
Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o
ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a
natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos
expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila
outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem
outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos
ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam
completamente a alma
(Elogio de Helena 13)
A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade
daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se
poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve
imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a
usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto
Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato
natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e
fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da
forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que
por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e
censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite
Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas
com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles
advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na
107
constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem
nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje
o mais capaz
Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de
noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64
dos mortais e dos imortais Como observa
Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo
ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas
ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema
de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para
retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo
(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para
a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de
que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65
Estaacute advertido de que o recurso ao poeta
de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda
comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por
afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo
comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a
violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores
64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e
Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um
filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou
dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era
formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das
coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera
monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o
Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo
108
que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos
heroacuteis da Heacutelade
Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da
sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila
encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo
Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66
Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos
longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A
encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a
opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a
identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos
afetos ligados ao crivo puacuteblico
Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega
(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma
busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o
(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema
antropoloacutegico invariante67
A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de
descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por
meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e
a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei
se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo
66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este
padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado
de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho
Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual
obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de
Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-
se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)
109
Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento
divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano
coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha
vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso
momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-
humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder
(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento
confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a
possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais
era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de
encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso
(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso
encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e
haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso
(BURKERT 1979 p 85)
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade
Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-
significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de
morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68
Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da
bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel
vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem
mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o
68
(Apologia 28b03-04)
110
valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute
justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da
morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que
o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha
A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os
amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)
Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute
preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela
gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada
indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A
identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da
derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um
homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa
puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu
prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem
abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir
seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado
aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo
ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os
privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do
grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do
kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um
errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem
sem nenhum valor
(VERNANT 2001 p 407-408)
A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente
preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo
em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores
seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio
coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte
Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a
ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si
mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha
opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem
111
calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra
(Apologia 28d06-10)
O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o
aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo
dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da
paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem
exame natildeo merece ser vivida69
A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a
reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada
cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das
riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da
verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa
transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e
com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo
interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende
do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para
consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a
brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os
maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se
numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos
que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais
No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica
a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao
disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das
69 (Apologia 38a05-06)
112
leis como encantaccedilotildees70
e sortileacutegios71
cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural
A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos
leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao
estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve
ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates
Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado
na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias
sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada
dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um
acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a
morrer se ele quisesse se honrar com tua morte
Goacutergias 486a-b
A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que
interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo
do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino
sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com
isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da
70
(Goacutergias 484e05-06) 71
Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios
( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um
inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres
afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute
apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore
consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e
413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de
privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que
satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera
por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo
consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por
meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento
de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que
derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)
capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso
das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os
medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)
113
opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como
elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo
O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia
universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do
vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da
desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com
conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute
feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do
erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos
como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional
uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura
do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas
faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre
responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo
personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a
afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico
responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da
salvaccedilatildeo
Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo
suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro
aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72
ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo
eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom
72 (Elogio de Helena 10)
114
e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos
efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade
Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia
a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como
mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente
reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente
constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)
Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito
mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra
Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece
em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos
mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo
verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum
continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que
o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o
deve
A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute
desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo
propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73
Tal adestramento eacute
semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de
extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo
(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo
(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste
73 (Goacutergias 484c)
115
entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio
indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a
formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O
resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica
e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida
calcado no conflito de interesses
A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia
mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto
de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do
homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove
a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave
sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de
uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)
e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica
agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74
(MICHELINI 1998 p 55)
Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado
na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo
eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)
Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa
reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas
exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel
74
o
(Goacutergias 485c)
116
para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao
desprezo e ao ridiacuteculo
Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a
encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo
aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de
desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento
eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha
puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade
aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo
pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute
mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa
vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das
partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir
de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75
Afeto e
discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente
Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a
justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo
se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa
concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que
muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente
segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento
(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo
consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)
do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi
enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido
por se envergonhar de dizer o que pensa76
75
Goacutergias 482c05-07 76
(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
117
Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a
lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre
precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos
dois termos da divisatildeo77
Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a
reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a
vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a
vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as
convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade
Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O
criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para
consigo mesma
Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um
impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute
contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as
crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento
que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo
77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute
moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha
convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau
seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem
semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees
semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as
interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da
vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos
pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva
exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois
sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da
significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma
118
pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78
O iniacutecio
da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada
pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79
O proacuteprio Caacutelicles
afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo
entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia
(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra
emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida
aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os
discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute
contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e
pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila
e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma
A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo
da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que
configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de
qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se
78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram
Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo
empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas
do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso
simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente
(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em
torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa
perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da
verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada
ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive
como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional
segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave
crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p
olympiodoro
119
deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente
estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a
posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir
primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de
viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando
(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o
que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)
Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80
a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela
alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo
depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra
encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81
Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e
torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em
conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo
(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma
80
81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por
sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides
opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e
filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset
(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais
ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais
sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de
uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute
muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de
Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles
na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo
permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de
Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e
Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo
penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides
eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade
chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)
120
bouleuacutesaio)82
Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo
por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano
Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma
personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada
simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar
a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o
homem comum forma a sua opiniatildeo
A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica
natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz
arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a
persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que
Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da
eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute
que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A
racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que
garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade
das circunstacircncias e das conveniecircncias
Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a
alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim
do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e
influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos
significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a
82 icirc
(Goacutergias 485e06-a03)
121
pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o
ouro agrave alma prova o loacutegos
Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute
simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma
mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83
A exortaccedilatildeo
retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora
ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a
faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da
descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do
caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)
O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees
diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute
preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza
(parrhēsiacutea)84
Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente
agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das
accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas
83
Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como
instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos
forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem
a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo
mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma
(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em
ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs
precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem
os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do
juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente
enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84
(Goacutergias 487a)
122
aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de
fragmentaccedilatildeo
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea
Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser
Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua
chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a
maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte
Goacutergias 461d85
A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o
cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida
ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea
constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer
expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86
denota a prevalecircncia dos
interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade
Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o
pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e
revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja
com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem
impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas
da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene
Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os
85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη
ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε
ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a
parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do
benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu
objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica
e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo
com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma
atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)
123
princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que
simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a
ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva
(SAXONHOUSE 2008 p 87)
A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder
sobre o outro na cidade87
o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash
encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs
plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na
assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os
afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e
da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento
discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder
encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do
discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee
encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim
como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)
Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que
desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam
permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu
de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88
Estrangeiros eles satildeo
87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88
ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ
παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ
πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ
124
considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e
excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A
vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem
poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as
maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos
suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros
pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar
livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)
Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta
entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre
desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais
satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas
A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o
gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar
francamente89
como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais
importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que
buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)
A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes
(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90
(Laques 179c01) A
consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento
conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor
Goacutergias 486a06-487b05 89
(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial
ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao
ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)
125
pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus
efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a
ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)
O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e
fazem o que querem91
A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um
conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a
dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a
educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na
guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram
como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do
descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se
(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O
descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92
A
dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea
negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que
configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos
pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a
democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da
incompatibilidade interna de seus valores
O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O
cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente
um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento
91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p
15-20)
126
O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e
reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)
Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom
conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que
lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo
tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho
mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades
poliacuteticas
A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a
confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia
manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa
simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores
questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da
finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a
franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo
Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de
paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado
pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo
dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar
instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua
proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida
devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda
franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A
incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma
127
fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu
loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos
Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o
veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de
todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele
ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da
origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis
democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93
e
franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida
particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela
multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade
(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos
supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a
alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos
licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de
prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora
se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta
em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres
(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para
o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma
vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se
embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma
vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites
93 (Repuacuteblica 557b)
128
e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada
ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a
incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute
relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou
excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)
No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates
alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia
do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame
da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do
interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute
tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio
para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos
neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)
Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica
uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um
tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes
personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se
um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o
mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica
que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as
eacutepocas como um tipo de homem
Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo
platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO
1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um
129
ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato
do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado
a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS
2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender
Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel
de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo
(JAEGER 1995 p 666)
Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais
perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas
personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees
indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria
psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada
ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em
consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma
triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores
remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A
triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da
proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso
de um lado e as accedilotildees de outro
Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam
os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi
muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e
imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante
130
apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que
Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles
A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o
assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio
verdadeiro94
Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor
modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas
para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)
A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95
como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que
entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com
94
Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua
franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece
exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds
por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo
que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor
implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de
Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de
Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila
convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para
muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada
no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste
problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p
103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de
vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente
de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas
encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense
Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o
objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses
verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz
pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A
incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de
proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de
vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o
acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em
torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em
seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no
argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes
satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os
homens Ver KERFERD 2003 189-221
131
Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo
(eriacutezein)
As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir
imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que
natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma
atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse
poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor
preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis
mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)
da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode
haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam
adversaacuterios e inimigos
(Protaacutegoras 337a-b)
A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso
natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a
eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves
dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das
armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este
se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela
tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto
a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a
eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma
que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A
atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que
constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o
princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua
aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a
atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da
132
verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em
oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em
relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que
o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que
supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)
Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo
psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se
efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que
opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo
pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs
que eacute a inteligecircncia do bem
No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por
conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se
contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se
contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na
direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que
permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos
discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo
autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e
que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)
A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira
inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso
133
implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96
Por outro lado o
movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da
verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995
p 671)
As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade
deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no
plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja
acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga
e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo
cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por
um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o
que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a
mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com
estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso
Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos
96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os
erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite
O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e
o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)
134
35 ndash A retoacuterica da alma
No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem
de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou
verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da
equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)
Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como
o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)
natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa
e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu
desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o
Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados
com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da
descrenccedila e do esquecimento (493b-d)
Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que
ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma
argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o
proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem
ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel
A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert
(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por
outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e
do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais
restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant
(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados
135
a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra
de vida pura reservada aos iniciados
O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que
moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um
ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua
conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para
a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la
Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos
A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a
inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando
modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas
afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um
novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de
misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a
significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no
mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os
quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo
norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)
Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios
haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na
Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza
ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais
136
belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais
possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)
Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo
de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o
pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o
que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)
Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado
e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)
dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por
um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma
transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio
Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico
cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O
discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio
uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da
investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua
posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo
genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos
elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e
impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo
segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo
obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos
divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a
exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma
137
homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o
alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento
isolado do corpo
A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que
determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma
se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose
dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma
perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟
O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves
praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas
comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a
impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave
transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais
elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios
espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que
remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza
No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as
instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das
faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de
reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas
(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute
o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os
recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de
reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem
138
divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a
prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de
Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees
Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma
fonte
ao lado dela se ergue um cipreste branco
eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam
Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes
Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre
do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas
Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento
porque tu exploras as trevas de Hades obscuro
Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado
Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido
De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟
E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico
Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene
E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada
Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na
gloacuteria 97
(I A 1 9-11)
Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a
Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular
as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas
egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as
instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um
livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos
escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma
vertente religiosa
Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que
permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao
misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de
97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)
139
elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete
dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas
Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que
demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade
muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira
se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas
entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de
pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no
movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos
A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que
permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia
do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A
foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante
com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe
que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao
cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo
vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse
acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um
exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento
A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem
consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o
proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de
purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que
estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens
fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas
(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades
sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute
140
deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez
laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles
que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso
(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi
(Feacutedon 69b12-c2)
A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e
os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio
iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta
para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre
o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles
que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do
que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)
Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita
controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que
suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em
um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein
indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como
oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por
ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado
miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus
Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro
lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o
emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve
simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que
envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e
vinho (CASADIO 2010 p 46-60)
141
A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as
expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que
configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees
funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja
acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas
Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o
proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos
baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e
podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas
coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de
orfismo baacutequico
Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da
Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a
autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos
particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos
prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu
crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam
iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro
mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios
(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)
Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a
exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas
de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a
transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No
Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que
natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a
transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela
142
Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada
pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de
exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina
A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma
gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes
natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma
polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que
buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma
A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como
isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A
harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute
uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo
ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de
harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou
uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na
analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter
uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e
a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da
harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o
acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo
entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da
comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e
quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de
opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)
143
A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel
(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na
economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma
eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais
Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja
inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo
pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de
modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma
inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa
Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes
que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo
(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o
discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute
Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que
consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas
A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida
agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em
colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os
juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades
Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante
teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta
vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo
A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina
na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as
144
almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e
esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)
indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O
esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do
nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade
do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento
como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)
A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria
numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A
ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os
apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na
inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo
unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos
Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no
Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna
insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos
que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na
qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e
psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia
As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o
regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui
toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute
representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade
penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo
145
psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e
do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica
eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre
renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo
(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de
todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse
do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites
Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de
vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente
escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador
dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus
desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas
e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele
extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de
sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da
cidade que dirige
(Repuacuteblica 579e)98
Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente
a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que
vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade
cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)
A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo
tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega
dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se
pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o
divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica
98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)
146
Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e
Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de
Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De
acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC
conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por
convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica
do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto
por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a
ciecircncia do caacutelculo e da geometria
No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da
geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de
Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute
notavelmente paralela agrave do Goacutergias
Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo
de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de
outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo
pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute
difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente
mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute
impossiacutevel investigar
Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e
aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida
(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por
meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas
transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe
do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que
haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento
para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes
que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo
ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede
aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo
revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica
geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)
147
O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo
pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta
arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a
organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma
visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais
geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico
A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos
constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a
relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da
justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza
pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da
inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea
O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa
cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico
concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a
posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas
Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo
Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da
funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel
No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos
materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau
de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia
148
Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de
viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos
alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos
alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma
mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de
harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A
alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo
domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos
determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles
a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma
harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua
concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento
de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas
Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute
calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute
causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as
relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam
com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e
harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja
sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo
intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no
acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de
todas as coisas
149
36 Julgamento e nudez
O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei
da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas
accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a
correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os
sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado
caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da
desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural
entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a
desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto
Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes
vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram
promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos
juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel
com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave
validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais
privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias
das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a
perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar
A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os
sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as
riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos
possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute
preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas
150
discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo
empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila
Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam
mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o
expediente astucioso que remediaraacute o mal
Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de
conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem
em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a
Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida
eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados
de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar
mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada
aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o
momento da morte cada um esteja separado de todos os seus
proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o
uacutenico meio para que o julgamento seja justo
(Goacutergias 523d-e)99
O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do
mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria
representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A
capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as
carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero
humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da
comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a
desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano
cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo
entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o
visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto
99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)
151
O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas
teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos
os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos
exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma
separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor
A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada
pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do
engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A
vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e
censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o
afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que
deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser
evitados sem a tirania dos apetites
Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo
meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de
prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato
do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria
do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a
finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode
apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros
baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em
sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida
A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos
e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova
152
acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se
mutuamente
No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a
autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes
aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo
geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A
alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)
Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode
crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira
de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do
mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a
eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a
contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo
obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia
(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes
desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia
Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de
conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias
511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para
tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para
culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa
outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo
devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas
imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)
153
Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a
qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para
exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que
se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis
(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as
melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os
apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui
disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou
besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha
(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo
resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria
da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica
indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)
Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto
em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer
bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)
Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum
ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de
que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos
deve servir para a perenidade do justo (527c)
154
IV - NECESSIDADE E ESCOLHA
41 Imagens e causas no mito de Er
No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa
de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de
noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com
a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade
Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a
escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como
princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o
desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o
lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada
Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras
ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo
eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes
vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro
a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo
tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais
ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe
O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100
Repuacuteblica X 617d06ndash617e05
Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas
vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101
A maioria eacute
guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que
100
Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees
Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous
thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos
haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton
autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)
155
acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida
Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha
Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais
modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo
Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis
Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo
do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a
estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando
tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos
caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas
destes modos de vida examinando por quais meios por quais
maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia
ateacute o fim desta travessia que consiste a vida
Leis VII 803a-b
A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma
analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a
construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar
estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102
O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais
fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103
A mais
fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio
modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio
de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel
Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de
fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo
eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no
que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao
deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem
poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar
102
tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)
156
examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela
seja a melhor possiacutevel
Goacutergias 512 d-e
A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos
inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder
humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem
cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a
vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas
escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos
e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A
orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo
do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo
natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida
O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da
multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em
que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento
desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas
Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo
a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver
Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica
X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo
tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104
Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte
implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa
104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon
eicircnai
157
(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a
impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de
princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p
114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua
complexidade
Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos
impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave
kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A
tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes
(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas
merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X
604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo
ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o
mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo
que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada
(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste
em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)
No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e
(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se
com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do
melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e
causa
Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si
mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece
a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao
158
ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em
movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que
eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo
se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que
esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu
movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao
contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio
uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma
Fedro 245d
A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento
Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de
outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma
causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo
necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre
efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo
(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio
Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa
Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia
(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)
A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a
economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que
terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim
No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)
alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e
o mal
Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem
somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa
ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que
conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a
159
A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do
Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-
poliacutetica
Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve
terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo
eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo
para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor
somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do
Bem (DIXSAUT 2001 p 130)
A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a
potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se
escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade
pelo qual a realidade eacute apreendida
Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser
justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees
multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis
como consolidaccedilatildeo
42 ndash Mito e psykhḗ
Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por
imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos
patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo
miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um
iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o
160
pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as
accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica
A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer
e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem
referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda
estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia
estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105
Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e
constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura
miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do
psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades
Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares
visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106
Assim como o Ser estaacute para o devir
assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia
se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de
relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir
das imagens que lhes servem de postulados
Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma
realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela
inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de
105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a
mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras
No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor
dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute
te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible
and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)
161
imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais
para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107
Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A
significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um
registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da
inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute
desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir
como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a
argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)
eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)
da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a
bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108
Para se evitar a
misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo
para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)
Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar
aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia
crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute
assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)
107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a
relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de
certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar
mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo
que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo
de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de
traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo
portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente
pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous
162
O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)
que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua
proacutepria situaccedilatildeo particular
43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS
A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como
risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte
O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade
A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos
Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo
que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade
(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto
e negligenciar a eternidade109
A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo
indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um
paradigma atemporal
O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as
almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion
(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra
Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel
concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade
diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de
109
Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que
eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana
bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei
touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon
Repuacuteblica VI 486a 09-10
163
realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados
no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam
a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma
estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com
determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do
que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa
ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110
Haacute uma
simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo
Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um
lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111
(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas
mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que
prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica
616b-c)
A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma
coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda
atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis
divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso
ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um
sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz
110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein
Feacutedon 109b0708 111
Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as
esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos
164
No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute
mensageira112
No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas
Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que
ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do
saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113
natildeo
esboccedilou mal sua genealogia
(Teeteto 155d)114
Como nota Narcy115
Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte
constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a
atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se
expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116
Universal antropoloacutegico a
imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre
indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117
112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi
verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira
Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir
desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris
e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera
que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam
(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)
De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent
Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous
parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris
(CHANTRAINE 1999 p 469) 117
Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem
natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores
segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel
estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a
imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc
mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material
body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis
otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and
imaginative purpose in view
165
que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e
o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo
passo do Timeu
Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que
atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga
da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades
nascidas no interior do ceacuteu
Timeu 40b-c
Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial
fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-
97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da
phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender
a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo
como condiccedilatildeo epistecircmica do devir
Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os
observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo
outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso
perturba nossa alma
Repuacuteblica X 602c
O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de
modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X
602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no
inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente
aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees
eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis
Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos
de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira
166
geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118
No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo
da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma
mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a
maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da
persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura
Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave
constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante
ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de
regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento
eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter
randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos
Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de
determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo
No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na
estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar
Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das
almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as
118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura
uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)
causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional
operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura
anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No
segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo
desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o
demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem
no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a
geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do
movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do
mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo
167
escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica
X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er
representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto
divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes
Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do
lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo
total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio
soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem
remissatildeo
Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica
coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos
indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao
koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os
movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem
personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da
necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a
natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito
inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida
As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia
unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca
simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras
entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes
mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto
168
sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da
causalidade
Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma
causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e
muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da
causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as
repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio
causal primordial de Anaacutenkhe
Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade
eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na
necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute
determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva
causal
Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos
miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)
Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o
discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes
(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um
perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as
consequecircncias
O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que
mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute
algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de
que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A
169
filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito
contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo
designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que
natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo
confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento
Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na
atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar
para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida
jaacute que toda vida eacute uma mistura
Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo
tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto
pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico
No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os
deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119
respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave
justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os
planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma
119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave
amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado
observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo
porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo
necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees
poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido
os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis
matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)
Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se
A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter
comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica
necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um
prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise
argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens
correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo
entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea
170
lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos
Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico
Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo
resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe
conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a
natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica
que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de
uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da
inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial
consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora
que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o
fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei
Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a
precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela
Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas
pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior
capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha
comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da
Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de
desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem
que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)
Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem
mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de
retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o
171
Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar
arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude
Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate
maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau
Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza
nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e
negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120
Repuacuteblica X 608b 04-08
O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que
os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem
muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste
em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo
combate que existe121
a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade
do mal a ser combatido122
A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos
os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente
associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite
viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um
elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo
miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que
consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem
para vencer a mistura de dores e prazeres
120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai
hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai
dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai
(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene
toucirc meacute
(Goacutergias 509c03-04)
172
A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da
pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter
sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma
discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande
significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das
profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu
viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por
desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera
Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la
ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo
com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)
A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A
noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis
encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento
contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e
obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras
equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)
Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo
ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na
perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo
vistas e natildeo percebidas
Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do
pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as
realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio
173
agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever
ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia
com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da
multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica
Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se
conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica
infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea
174
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1Goacutergias
GORGIAS Elogio de Helena Traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli Belo Horizonte Anaacutegnosis
2009 Disponivel em
httpanagnosisufmgblogspotcom200910elogio-de-helena-gorgiashtml Acesso em
10032010
GORGIAS ΓΟΡΓΙΟΥ ΕΛΕΝΗΣ ΕΓΚΩΜΙΟΝ Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics82-B11 acesso em 10032010
2 Aristoacuteteles
ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo e notas por Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2005
3 Antifonte
87 B 44 [cfr 99 B 118 S] PAP OXYRH XI n 1364 ed Hunt Frammento A Disponiacutevel
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics87-B Acesso em 02052010
4 Isoacutecrates
ISOCRATES Discourses Translate by George Norlin Harvard The Loeb Classical
Library 2000
5 Heroacutedoto
HERODOTE Histoire Traduction par Larcher Paris Charpantier 1850 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k203223nr=herodotelangPT acesso em 03052010 4
6 Hesiacuteodo
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Edited and translated by Glenn W
Most London Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Mary
Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2006
_________ Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed
Iluminuras 2003
7 Homero
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Ed Mandarim 2001
________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo por Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002
8 Platatildeo
Ediccedilotildees e traduccedilotildees
Obras completas PLATON Œuvres Complegravetes Paris Les Belles Lettres 1983-2003
Obras selecionadas
PLATON Gorgias Œuvres Complegravetes Trad par Alfred Croiset Paris Les Belles Lettres
2003
________________ Translated with introduction and commentary by E R Dodds
Oxford Clarendon Press 2002 A
________________ Traduction par Monique Canto Paris Ed Flammarion 1993
________________ Translated with notes by Terence Irwin Oxford Clarendon Press
1979
Collection GF Flammarion
PLATON Pheacutedon Traduction introduction et notes par Monique Dixsaut 1991
________ Cratyle Traduction introduction et notes par Catherine Dalimier 1998
________ Ion Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 2001
________ Gorgias Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
175
________ Le Banquet Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003
________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005
________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000
________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002
________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997
________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004
________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993
________ Theacuteeacutetegravete Traduction introduction et notes par Michel Narcy 1995
________ Timeacutee Critias Traduction introduction et notes par Luc Brissson 2001
9 Obras modernas
BEALL E F Hesiods Prometheus and Development in Myth Journal of the History of
Ideas 52 3 1991 p 355-371 BELFIORE E Elenchus Epode and Magic Socrates as Silenus Phoenix 34 1980 p128-
137
BENSEN CAIN R Shame and Ambiguity in Plato‟s Gorgias Philosophy and Rhetoric
41 3 2008 p 212-237
BENARDETE S Socrates‟s Second Sailing in Plato‟s Republic Chicago Chicago
University Press 1989
_______________ The Retoric of Morality and Philosophy Chicago Chicago University
Press 2009
BERRYMAN Sylvia Ancient Automata and Mechanical Explanation Phronesis
XLVIII4 p 344-369 2003
BLICKMAN Daniel R Styx and the Justice of Zeus in Hesiod‟s ldquoTheogonyrdquo Phoenix
41 4 p 341-355 1987
BOYS-STONES G R HAUBOLD J H Plato and Hesiod Oxford Oxford University
Press 2010
BRISSON Luc Leituras de Platatildeo Porto Alegre Ed PUCRS 2003
BURKERT Walter Ancient Mystery Cults London Harvard University Press 2001A
________________ Creation of Sacred London Harvard University Press 2001B
________________ Homo Necans Paris Les Belles Lettres 2005
________________ Lore and Science in Ancient Pythagoreanism London Harvard
University Press 1972
________________ Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica Lisboa Fundaccedilatildeo
Kalouste Gulbenkian 1993
________________ Structure and History in Greek Mythology and Ritual Berkeley
University California Press 1992
CLAY J S Hesiod‟s Koacutesmos Cambridge Cambridge University Press 2009
CAIRNS D AIDOS The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek
Literature New York Oxford University Press 1993
CARRIEacuteRE J-C MASSONIE B La Bibliotegraveque d‟Apollodore Paris Annales litteacuteraires
de l‟Universiteacute Besanccedilon 1991
CASADIO G JOHNSTON P A Mystic Cults in Magna Graecia Austin University of
Texas Press 2009
176
CARRATELLI P G Les lamelles d‟or orphiques Paris Les Belles Lettres 2003
CONACHER D J Prometheus as Founder of the Arts Roman and Byzantine Studies 18
3 1977
CORNFORD F M Was the Ionian Philosophy Scientific The Journal of Hellenic
Studies 62 p 1-7 1942
COSMOPOULOS M Greek Mysteries London Routledge 2003
CROCKET Andy Gorgias Encomium of Helen Violent Rhetoric or Radical Feminism
Rethoric Review 1994 p 71-90
DETIENNE Marcel VERNANT Jean Pierre Les Ruses de L‟Intelligence La Mḗtis des
Grecs Paris Flammarion 1974
DELATTE Armand Eacutetudes Sur La Litteacuterature Pyithagoricienne Genegraveve Slaktines
Reprints 1999
DEMOS Marian Callicles‟ Quotation of Pindar in the Gorgias Harvard Studies in
Classical Philology 1994 p 85-107
DEWINCKLEAR D Philosophie et Initiation dans l‟Œuvre de Platon Revue de
Philosophie Ancienne Bruxelles Eacuted Ousia 1 2010 p 29 - 65
DIXSAUT Monique Le Naturel Philosophe Paris Vrin 2001
DODDS E R Euripides the Irracionalist The Classical Review 1929 p 97-104
DORTER K The Transformation of Plato‟s Republic Lanham Lexington Books 2006
EDMONDS III R G Myths of the Underworld Journey Plato Aristophanes and the
bdquoOrphic‟ Gold Tablets Cambridge Cambridge University Press 2004
_________________ (Ed) ldquoOrphicrdquo Gold Tablets and Greek Religion Cambridge
Cambridge University Press 2011
____________ Os Grego e o Irracional Satildeo Paulo Escuta 2002 B
ELIADE M Forgerons et Alchimistes Paris Flammarion 1977
__________Images et symboles Paris 1980
__________ Initiation rites societies secretes Paris Folio 1959
__________ Le Sacreacute et le Profane Paris Folio 1965
__________ Mythes recircves et mystegraveres Paris 1957
EMLYN-JONES C Dramatic Structure and Cultural Context in Platos Laches The
Classical Quarterly 49 1 1999 p 123-138
ENGMANN J Cosmic Justice in Anaximander Phronesis XXXVI 1 1991 p 1-25
FARRAR C The Origins of Democratic Thinking Cambridge University Press 1988
FINLEY Moses Technical Innovation and Economic Progress in Ancient World The
Economic History Review 18 1 P 29-45 1965
FUTTER D B Shame as a Tool for Persuasion in Platos Gorgias Journal of the History
of Philosophy 47 3 2009 p 451-461
GAGARIN Michael The Torture of Slaves in Athenian Law Classical Philology 1996 1
p 1-18
GALIMBERTI Umberto Psiche e Techne ndash o homem na idade da teacutecnica Satildeo Paulo Ed
Paulus 2006
____________________ Man in the age of technology Journal of Analytical Psychology
2009 54 p 3ndash17
GERNET Louis Antthropologie de la Gregravece Antique Paris Flammarion 1982
177
4 _____________ Droit et institutions en Gregravece antique Paris Flammarion 1982
5 _____________ Recherches sur le deacuteveloppement de la penseacutee juridique en Gregravece
ancienne Paris Albin Michel 2001
GUIGNIAUT PATIN GIRARD J Poegravetes Moralistes de la Gregravece Paris Garnier 1892
Disponiacutevel em ltftpftpbnffr026N0262657_PDF_1_-1DMpdfgt
GUTHRIE W K C Os Sofistas Satildeo Paulo Paulus 1995
HAMMERTON-KELLY R Ed Violent Origens Satnford Stanford U Press 1987
HOTTOIS Gilbert Teacutecnica In CANTO-SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e
Filosfia Moral Satildeo Leopoldo Ed Unisinus p 665-669 2003
HUFFMAN K Philolaus of Croton Cambridge C U Press 1998
HUFFMAN K Archytas of Tarentum Cambridge C U Press 2005
IRWIN Terence Plato‟s Ethics Oxford Oxford University Press 1995
JAEGER W Paideacuteia Satildeo Paulo Martins Fontes 1995
JOURDAIN F Le Papyrus de Derveni Paris Les Belles Lettres 2003
KAHN Charles A Arte e o Pensamento de Heraacuteclito Satildeo Paulo Loyola 2009
_____________ Plato and the Socratic Dialogue Cambridge Cambridge University
Press 1996
KERFERD G B O Movimento Sofista Traduccedilatildeo por Margarida Oliva Satildeo Paulo Loyola
2003
KONSTAN D The Emotions of the Ancient Greeks Toronto University of Toronto Press
2007
____________ Shame in Ancient Greece Social Research 70 4 2003 p 1031-1060
KOSKLO George The Insufficiency of Reason in Plato‟s Gorgias The Western Political
Quarterly 4 1983 p 579-595
_______________ The Refutation of Callicles in Plato‟s bdquoGorgias‟ Greece amp Rome 1984
p 126-139
6 KRAUT R (Ed) The Cambridge Companion to Plato Cambridge Cambridge
University Press 1992
LAKS A Between Religion and Philosophy the Function of Allegory in the Derveni
Papyrus Phroacutenesis Leiden Brill XLII 2 1997 p 121-142
LAKS A MOST G W (Ed) Studies on the Derveni Papyrus Oxford Clarendon Press
1997
LAMPERT L How Philosophy Became Socratic Chicago Chicago University Press
2010
LARSON J Ancient Greek Cults Oxford Routledge 2007
LEacuteVI-STRAUSS C Antropologia Estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003
________________ Antroplogia Estrutural Dois Rio de Janeiro Tempo Brasileiro1993
________________ O Pensamento Selvagem Satildeo Paulo Papirus 2004
7 LEE Desmond Science Philosophy and Technology in Greco-Roman World Greece
and Rome 20 1 p 65-78 1973
8 LONG A A (Ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy
Cambridge Cambridge University Press 1999
LONGRIGG J Greek Rational Medicine London Routledge 1993
LUCAS D La philosophie antique comme soin de l‟acircme Le Portique [En ligne] 4-2007
Disponiacutevel em lt httpleportiquerevuesorgindex948htmlgt Acesso em 10 abr 2010
178
MARQUES M P Platatildeo Pensador da Diferenccedila Belo Horizonte Ed UFMG 2006
MIRECKHI P MEYER M (Ed) Magic and Ritual in the Ancient World Leiden Brill
2002
MICHELINI A N Rudeness and Irony in Plato‟s Gorgias
Classical Philology 1998 p 50-59
MIKALSON J A Greek Popular Religion in Greek Philosophy Oxford Oxford
University Press 2010
MOSSEacute C Politique et Societeacute en Gregravece Ancienne Paris Flammarion 1995
MONOSON S S Plato‟s Democratic Entanglements Princeton Princeton University
Press 2000
MORGAN K Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato Cambridge
Cambridge University Press 2000
NUNES SOBRINHO R Platatildeo e a Imortalidade mito e argumentaccedilatildeo no Feacutedon
Uberlacircndia EDUFU 2008
OGDEN D (Ed) A Companion to Greek Religion Oxford Blackwell Publishing 2007
OLYMPIODORUS Commentary on Plato‟s Gorgias Translated by Robin Jackson
Kimon Lycos and Harold Tarrant Boston Brill 1998
OTTO W F L‟Esprit de la Religion Grecque Ancienne Paris Berg International 1995
PLOCHMANN G K ROBINSON F E A Friendly Companion to Plato‟s Gorgias
Illinois Southern Illinois University Press 1988
PRADEAU Jean-Franccedilois Platon et les formes inteligibles Paris PUF 2001
PRICE A W Mental Conflict London Routledge 1995
RACE W H Shame in Plato‟s Gorgias The Classical Journal 74 3 1979 p 197-202
RAMSEY Eric Ramsey A Hybrid Techne of the Soul Thoughts on the Relation between
Philosophy and Rhetoric in Gorgias and Phaedrus Rhetoric Review 1999 17 2 p 247-262
RAMNOUX C Heacuteraclite Paris Les Belles Lettres 1968
REINHARDT K Les mythes de Platon Paris Eacuted Gallimard 2007
REIS M D Um olhar sobre a psykheacute o logistikoacuten como condiccedilatildeo para a accedilatildeo justa nos
livros IV e IX da Repuacuteblica de Platatildeo 2000 217 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Federal de Minas
Gerais 2000
REIS M D Triparticcedilatildeo e unidade da Psykheacute no Timeu e nas Leis de Platatildeo 2000 304 p
Dissertaccedilatildeo (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade
Federal de Minas Gerais 2007
RIBEIRO A M O Reverso da Filosofia o caso Goacutergias 214 p Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo 2002
ROOCHNIK David Of Art and Wisdom Pennsylvania The Pennsylvania U Press 1996
SAXONHOUSE A W Free Speech and Democracy in Ancient Athens Cambridge
Cambridge University Press 2008
SAUNDERS Trevor Penology and Eschatology in Plato‟s Timaeus and Laws The
Classical Quarterly 23 2 1973 p 232-244
SEKIMURA M Platon et la Question des Images Bruxelles Eacuted Ousia 2009
SMITH Janet E Plato‟s Use of Myth in the Education of Philosophic Man Phoenix 40
1986 p 20-34
SCHOFIELD M Plato New York Oxford University Press 2006
179
TARNOPOLSKY C H Prudes Pervets and Tyrants Plato‟s Gorgias and the politics of
shame New Jersey Princeton University Press 2010
TSANTSANOGLOU K PARAacuteSSOGLOU G KOUROMENOS T (Ed) The Derveni
Papyrus Firenze Leo S Olschki Editore 2006
VERNANT Jean Pierre Entre Mito e Poliacutetica Satildeo Paulo Edusp 2002 A
___________________ Mito e Pensamento entre os Gregos Satildeo Paulo Ed Paz e Terra
2002 B
___________________ Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Rio de Janeiro Ed Joseacute
Olympio 1999
___________________ Mythe et Religion en Gregravece Ancienne Paris Ed du Seuil 1987
___________________ Pandora la preniegravere femme Paris Bayard 2005
VLASTOS Gregory Plato II A collection of critical essays Indiana Notre Dame Press
1978
_________________ Equality and Justice in Early Greek Cosmology in Classical
Philology 42 3 p 156-178 1947
_________________ Socrate Ironie et Philosophie Morale Paris Aubier 1994
_________________ Was Polos Refuted The American Journal of Philology 1967 p
454-460
VOGELIN Eric The Philosophy of Existence Platos Gorgias The Review of Politics 11 4
1949 p 477-498
WARDY R Birth of Rhetoric London Routledge 1998
WARNECK P A Descent of Socrates self-knowledge and cryptic nature in the
Platonic dialogues Indiana Indiana University Press 2005
WILLIAMS B A O Shame and Necessity Berkeley University of California Press
1994
WINKELMAN M Shamanism Sta Barbara Praeger 2010
Dicionaacuterios
BAILLY Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 2000
CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris Klincksieck
1999
LIDDELL G H SCOTT R Greek-English Lexicon Oxford Oxford University Press
1997
Instrumentos de Pesquisa
LEXICON I Plato ed Roberto Radice Ilaria Ramelli Emmanuele Vimercati Electronic
ed Roberto Bombacigno Milano Biblia 2003
DAPHNET Digital Archives of Philosophical texts on the NET Disponiacutevel em
httpwwwdaphnetorgindex_frhtml
iv
Ao Roberto Vilela Marquez enigma cujos sinais satildeo a prova cabal de que os valores mais profundos tornam todas as buscas e inquiriccedilotildees do breve tempo da vida derrisoacuterias perante a grandeza do destino humano ndash que nada eacute aleacutem do que o seu eacutethos
v
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha
Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo
Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que
resiste ao esquecimento e agrave morte
Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo
mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco
eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo
Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito
em prol da alteridade
Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da
inteligibilidade e da razatildeo
Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as
imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem
possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do
recomeccedilo
Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo
Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo
vi
Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito
Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na
humanidade
Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida
sem exame natildeo eacute digna de ser vivida
vii
Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha
Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas
viii
SUMAacuteRIO
0 INTRODUCcedilAtildeO5
1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21
12 Causalidade e Poder 25
13 Causalidade e Reciprocidade 32
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de
Derveni 44
2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61
3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92
31 Eros e Loacutegos92
32 Vida e ḗthos98
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122
35 A Retoacuterica da alma134
36 Julgamento e nudez149
4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154
41 Imagens e causas no mito de Er154
42 Mito e psykhḗ159
43 Er o decreto de Laacutequesis162
5 BIBLIOGRAFIA174
1
Resumo
A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta
investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e
aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um
programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza
pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a
definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas
imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a
dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo
tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com
Soacutecrates Caacutelicles
Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o
mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de
Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito
adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos
esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da
multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo
projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por
extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a
linguagem satildeo os fundamentos do pensar
Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta
que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado
na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que
engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo
2
dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual
interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa
ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias
reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e
inteligecircncia que eacute a psykheacute
Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito
3
Abstract
Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point
out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and
apply them in Er myth of Republic
According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear
distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the
timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the
actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings
through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the
same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles
In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is
thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language
comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of
divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the
causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between
two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient
means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before
language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion
staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the
thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic
ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which
engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation
can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an
expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar
4
movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the
feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is
Keyword Gorgias Republic structure myth
5
Introduccedilatildeo
O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a
adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento
que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus
esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees
filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese
ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos
que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos
O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que
o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das
imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda
dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o
pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a
filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a
transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no
movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse
bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)
Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo
que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno
linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a
narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo
de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a
6
sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia
temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal
A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade
distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a
transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis
constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas
embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a
linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo
As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma
polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou
mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do
inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo
como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica
da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi
conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo
Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico
discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as
teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos
ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se
considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como
palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da
realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis
ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute
ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens
7
No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como
phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA
2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara
distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo
do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo
original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre
eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld
Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma
raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do
visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia
de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego
no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica
inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os
verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos
bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo
de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia
(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)
Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo
tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal
determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse
sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de
superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se
situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim
como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia
O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a
silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou
desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos
deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do
8
empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em
seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o
conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel
No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a
transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do
inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas
constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os
referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico
Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a
passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na
esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo
um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos
cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se
fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao
inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico
O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica
modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais
profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo
Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica
Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma
seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute
completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da
arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e
regramento que a virtude de cada coisa existe
Goacutergias 506 d5-e2
Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto
possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas
9
visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante
e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a
ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior
agravequela
Timeu 30a
A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos
kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico
No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que
compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar
sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o
ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida
tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores
eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em
uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o
regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado
kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo
humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o
mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)
A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os
mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas
Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila
o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o
cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da
poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus
proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de
trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema
10
interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens
especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um
tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo
permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que
o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a
partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de
ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da
significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)
Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas
agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais
concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses
mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento
dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus
efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes
mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da
psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza
das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da
explicitaccedilatildeo dessas regras
Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-
construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute
obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de
julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A
fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O
11
modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo
entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras
Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o
acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do
sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A
complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como
grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo
do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo
Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os
grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de
racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute
consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias
o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron
(Goacutergias 502c)
A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no
domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da
influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia
(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia
(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de
harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e
harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a
natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita
virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma
correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um
12
legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A
grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo
cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da
alma
Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da
ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica
de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o
acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde
(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o
sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles
emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia
ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes
potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um
instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala
desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um
princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical
(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade
o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo
no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)
Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta
unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento
matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do
acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo
13
Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo
representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos
contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do
justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical
regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande
reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do
psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento
A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que
damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses
movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto
por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova
conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)
No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia
divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico
que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por
outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo
do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o
koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a
ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia
pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a
harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros
possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)
que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais
14
correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no
palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas
Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um
procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas
A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada
ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as
diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e
possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde
estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e
posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero
determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos
planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo
(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura
complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a
constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos
fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende
uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de
inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas
A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera
eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis
X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como
sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como
uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio
15
ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza
procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais
do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs
princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios
(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias
(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER
2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta
separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as
interaccedilotildees da physis satildeo reportadas
O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa
instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para
que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade
deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees
invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como
fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano
cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas
O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica
unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja
significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade
A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de
julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida
Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e
soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees
matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um
16
pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo
esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a
racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de
inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem
todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de
racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num
enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico
Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo
evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da
interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e
certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das
perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico
ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas
Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise
estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que
permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda
esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa
tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos
A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que
pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela
1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente
alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa
ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de
uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico
17
paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em
geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser
metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo
construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo
atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa
regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses
efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes
Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que
seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo
(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss
ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca
percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004
p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o
caraacuteter de objetos absolutosrdquo
O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam
dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises
filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para
expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute
menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS
2004 p 8)
Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar
autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do
mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo
estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute
18
o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois
mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais
esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo
Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-
Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e
uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas
funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que
suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um
procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito
natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de
accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica
comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo
cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)
Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura
permanenterdquo
A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o
significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que
o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler
simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito
como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender
como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos
musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees
que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash
mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se
19
imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss
como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os
grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que
remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que
supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e
pela distacircncia cultural das eacutepocas
Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e
compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico
teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto
os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia
elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e
elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs
primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios
Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a
funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo
inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que
representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem
decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)
A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e
esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo
aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o
um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico
Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do
tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em
20
planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos
aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o
mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha
meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993
p 169)
Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo
dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico
psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por
pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes
A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por
causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano
cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas
grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do
meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os
grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade
unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir
Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da
causalidade
21
I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade
O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os
o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra
de que castigo teriam no porvir
Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104
A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de
uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em
resgatar-lhe a filha raptada
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei
A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena
Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide
Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha
nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()
Iliacuteada I vs 8-15
Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para
responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se
saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira
vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e
danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as
3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma
estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens
configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse
caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo
inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego
conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no
primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)
22
fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel
de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade
divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da
causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e
localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa
eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo
satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal
Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina
vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma
accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral
associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute
oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber
atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere
sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do
passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais
complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo
mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade
eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo
mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a
consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo
padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em
situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do
comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal
apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma
23
conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um
contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da
racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma
experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o
ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As
conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que
estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que
caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana
Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute
ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma
Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se
daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo
eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo
dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no
mundordquo
Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a
matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da
concepccedilatildeo racional da teacutecnica
Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada
pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de
Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a
sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia
astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice
24
de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono
obteacutem a soberania do Koacutesmos
6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada e urdiu dolosa e maligna arte
Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo
forjou grande podatildeo e indicou aos filhos
Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo
ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes
ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso
pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo
Teogonia 159-166
Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a
inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego
dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima
instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de
Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)
O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador
com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os
meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia
para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel
como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia
teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza
A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo
linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As
gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a
violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual
de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a
25
Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos
das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de
princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um
caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de
concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da
distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da
desordem personificadas nos filhos da Noite
A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo
de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim
como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras
Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais
A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida
simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave
infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso
A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel
12 Causalidade e Poder
Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de
poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do
Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica
5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo
estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a
anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento
constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista
como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo
procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio
apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao
abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par
26
A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia
maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo
implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute
indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da
Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus
Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos
Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias
o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio
com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra
e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens
sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala
E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um
do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos
tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas
natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei
HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462
O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A
vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a
presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a
uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e
encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o
astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia
esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que
tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia
astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que
complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um
plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da
potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio
historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de
agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)
27
permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania
basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que
soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade
Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila
como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a
conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo
de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos
melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo
poderosas a ponto de serem epifanias divinas
O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees
da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais
novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo
problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania
(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e
Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e
empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila
destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer
voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados
soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-
retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo
de uma ordem coacutesmica imutaacutevel
A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia
astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as
28
circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e
fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a
escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado
somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder
soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta
de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em
sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo
comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa
pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de
meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo
oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a
consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a
provedora e a chancela do poder
Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de
lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os
irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros
coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para
obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores
respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus
liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia
consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido
por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a
reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria
passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo
29
de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para
instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia
presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta
Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa
de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados
pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio
da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si
mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O
Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia
e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal
(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o
equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o
concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e
do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a
Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo
(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte
de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo
Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo
presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar
7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e
sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que
Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi
ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash
a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato
de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma
perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como
oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant
confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)
30
Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que
deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece
mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo
(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a
ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida
quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias
Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a
atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees
subsequentes
Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram
filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai
decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia
a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo
na cova da Terra8
(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)
A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do
instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de
violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a
penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o
princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de
Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de
violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo
astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis
desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico
8
31
emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo
masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis
feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um
apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica
feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento
Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra
realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida
Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia
que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular
categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis
ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se
de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro
Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das
Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites
intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui
medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo
primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos
irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma
sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas
brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico
Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo
princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo
irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo
ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas
32
O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus
serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a
partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a
reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de
lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia
hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei
irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis
13 Causalidade e Reciprocidade
A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da
reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o
estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia
Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da
reciprocidade
Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo
como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las
Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo
que te banhes e possas dar largas ao peito querido
para depois ao navio voltares levando um presente
muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha
parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado
A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte
Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora
Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta
quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa
Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado
Odisseacuteia I vs 307-318
Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo
comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que
estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A
33
proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute
caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O
estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais
que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente
permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a
representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o
discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o
reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute
apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa
universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A
reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou
hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo
Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no
desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como
justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da
oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela
que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria
Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece
significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a
seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio
constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila
do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a
desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a
equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com
34
mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo
precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo
somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento
oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a
noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e
do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral
Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a
um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com
a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a
noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē
Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias
zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou
Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e
Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das
falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite
associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira
guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo
e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo
opostos
Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano
e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a
abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de
ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo
35
Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com
a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres
em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem
confiante ()
Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida
(epimetrḗsso) ()
Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a
mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )
(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)
A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no
iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta
quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos
dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute
entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de
comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano
lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas
quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos
apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente
das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento
oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas
de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de
uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia
grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o
momento oportuno (kairograven gnōthi)
O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal
agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas
elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da
36
fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida
(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O
excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave
vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num
espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que
suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos
desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas
suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria
No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a
exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a
contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A
concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees
que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de
moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a
contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as
interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O
comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e
recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo
muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de
verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem
9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim
que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era
torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de
medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)
37
A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina
com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo
operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)
mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das
partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a
proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da
causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo
princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu
Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus
pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu
escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo
apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem
Teogonia vs 613-616
A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um
confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a
violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No
combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas
inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-
se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de
accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que
distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os
acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na
mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de
38
simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios
eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron
O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os
significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p
263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e
no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de
um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica
humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino
A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das
alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento
e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser
efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por
conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo
almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites
as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em
conformidade com seu estatuto
A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto
que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas
Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a
significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio
da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a
reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com
a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos
atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e
39
relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees
latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um
deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada
de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a
insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu
redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que
caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses
A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante
dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria
representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de
presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania
de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin
teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto
humano
A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa
gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes
comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a
apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo
da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O
duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A
primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do
tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania
sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo
40
segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas
proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes
Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio
pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de
impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo
coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos
dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de
maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a
perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos
ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem
dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda
por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como
contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis
prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos
homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar
as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens
Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da
causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida
A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)
uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a
calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso
maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula
oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa
engendra nova retribuiccedilatildeo
41
O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o
contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de
todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os
males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo
astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela
contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de
Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave
necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do
fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais
Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano
em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia
divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do
homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos
deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano
Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e
delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo
inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as
coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos
tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo
Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos
titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo
de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser
unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de
proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode
42
passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e
Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua
Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade
ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento
inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que
separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido
humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do
feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites
sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade
divina que desconhecem as inibiccedilotildees
O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de
armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e
sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a
potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a
promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave
concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem
regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos
trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo
miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu
A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da
inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e
compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A
dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por
armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade
43
aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes
anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago
humano
A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na
experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a
inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a
expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde
o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter
dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal
iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009
p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos
males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males
silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a
significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos
Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o
viver excessivamente pesado para ser suportado
O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste
ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero
que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um
fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a
manutenccedilatildeo da vida10
O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia
teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de
10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e
arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute
encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)
44
absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos
homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e
selvagem como os animais
O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo
entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva
da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a
inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel
entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de
meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees
proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria
Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento
a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a
voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni
Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo
grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre
os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um
uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a
transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo
causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras
Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)
A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre
conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados
45
os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-
teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha
sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e
320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm
seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud
TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da
autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo
interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo
exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica
aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais
cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave
cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se
pertinente
O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a
criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os
maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A
questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma
inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O
comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja
finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete
um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)
palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E
natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o
que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico
(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo
46
desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes
coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere
um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o
acabamento do poema Como ele torna claro em um bem
reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos
ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que
ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte
(Derveni Papyrus Col VII)11
O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder
de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os
salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua
incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo
ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do
ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves
imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos
sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico
A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo
terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a
uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da
inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da
polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave
inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o
emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)
Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras
atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos
11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)
47
procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12
os
sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as
Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo
extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas
honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com
muacutesica13
Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e
libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis
A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo
dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o
caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da
Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e
sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma
Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente
(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma
12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo
pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar
antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de
sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain
(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e
posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade
de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF
apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui
ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas
encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo
do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve
oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta
[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica
(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)
48
inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa
imageticamente em versos enigmaacuteticos
A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da
natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com
o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14
Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute
intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que
carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas
causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar
por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e
interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual
O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a
uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a
visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que
possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana
e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)
A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15
A sabedoria consiste tradicionalmente
no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou
enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este
exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua
atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma
14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi
(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN
2003 p 63)
49
tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo
estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16
O discurso divino caracteriza-se pela
oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente
consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que
subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si
mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que
fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17
)
O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo
que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel
Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por
que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que
o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da
palavra
O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a
infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias
satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a
retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias
invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute
assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na
vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o
16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404
Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)
50
comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo
gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens
aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele
(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos
quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza
possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas
medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as
Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke
(Col IV)18
Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees
e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma
correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas
potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha
agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das
disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee
limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo
iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual
emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos
Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo
grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos
jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender
simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo
divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo
caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia
18
(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)
51
satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma
ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na
consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e
compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros
constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos
seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido
com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre
planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela
exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos
Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas
satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que
origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter
indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico
O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele
muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto
de cada um
DK 67 (KAHN 2003 p 105)
Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos
hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro
para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do
aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do
perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees
e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O
homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que
compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377
52
ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do
Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus
presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino
Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute
simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo
modo haacute uma divindade e muitos nomes
Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos
fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em
termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que
ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um
princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio
supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o
princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o
koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19
(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e
representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia
entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre
opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de
regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de
ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da
divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco
inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma
19
DK30
(KAHN 2003 p 73)
53
manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que
determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente
todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos
Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo
O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-
humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um
poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a
morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino
inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem
dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado
para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da
inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo
(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo
Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas
segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do
tempo20
Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo
para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o
necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos
outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21
Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a
qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo
20
(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel
em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)
54
de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso
significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo
A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma
progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo
rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis
eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da
causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila
vai muito aleacutem da esfera legal e moral
Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo
com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou
ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala
do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos
natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute
nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria
natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que
natildeo podem ser ultrapassados
A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral
como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo
compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e
destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)
Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente
reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios
A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que
cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as
concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e
serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo
teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo
coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel
salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
55
A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas
teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia
das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre
falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio
privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel
evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido
oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo
Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a
transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O
segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo
esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que
soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de
vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos
O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de
imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para
realidades invisiacuteveis inevidentes
Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)
que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)
imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas
manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm
heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria
com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os
prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou
manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia
satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo
haacute como crer ainda que vendo22
(Col V)
22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)
56
As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida
para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o
conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas
para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo
discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento
eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo
diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute
um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior
obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o
conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e
enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam
vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a
tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes
verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento
A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo
tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os
misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)
interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado
aos natildeo-iniciados
No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras
de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)
dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e
especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja
reconhecido (BURKERT 1972 p 176)
57
No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos
ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos
ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)
A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das
imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho
sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem
coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar
os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo
podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular
da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra
como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como
mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo
temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale
a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento
desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio
A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo
aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e
resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)
impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos
pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da
luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis
(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos
myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas
58
A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja
luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura
constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o
regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura
medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das
partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia
sexual
() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou
primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para
falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso
Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo
reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como
eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa
palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute
possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()
(Col XIII)23
Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai
designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da
potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes
da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia
identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do
substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem
o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)
O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a
venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo
jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da
23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)
59
Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca
identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de
Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo
Intelecto
A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a
propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no
centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia
astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva
astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel
(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o
concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO
Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese
simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona
ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau
diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A
cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o
umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da
emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio
do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio
das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois
todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash
Theologumena arithmeticae 25 17
O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute
onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia
cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um
afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da
accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e
vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)
60
Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e
cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas
Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a
Lenaia
(DK 15)
O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo
vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese
filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do
entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que
aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica
a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo
vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo
satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada
pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
61
II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē
Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois
modos o do mais velho que fala para com os mais jovens
demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso
(Protaacutegoras 320c02-04)24
O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a
narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha
prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein
kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas
pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos
O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons
naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar
estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o
conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico
permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a
inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder
de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem
Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no
movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se
apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e
modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais
mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO
2008 p 30)
24
62
Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de
Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito
reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees
a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES
HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos
platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de
Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja
estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de
Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos
epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em
contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de
Homero
Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em
diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)
Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo
sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo
(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟
tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte
sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e
satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua
pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo
postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo
estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou
meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico
narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟
(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)
Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico
das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico
possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo
e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de
63
julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai
leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya
do livro XI da Odisseacuteia
Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo
oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni
Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em
modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria
tradicional
Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo
caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o
ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de
poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria
religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte
da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era
acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos
secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda
uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo
tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto
miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de
intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a
divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto
ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios
praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma
primitiva e original eacute o Orfismo
O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e
por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se
desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de
elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que
Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe
com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma
Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do
64
narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo
evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato
Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes
da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO
2010 p 74-75)
Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do
Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico
encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da
ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e
traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da
Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico
O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um
tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25
A existecircncia preacutevia dos deuses
indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O
tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito
comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A
distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo
devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens
o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um
tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens
implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o
25
65
fundamento26
mediante o tempo exemplar para todo o devir27
A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo
buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma
absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28
poliacuteticas no absoluto
referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode
constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila
na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a
praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se
A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso
atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do
argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em
forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29
A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo
absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a
estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O
26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo
original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo
primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir
(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica
platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para
fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia
ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a
cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo
de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos
ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os
atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma
decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil
maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII
1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de
todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois
termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui
um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e
seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos
66
tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o
paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o
referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)
Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses
os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo
Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos
mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo
destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando
uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em
seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles
encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em
cada um deles em boa ordem como conveacutem30
(Protaacutegoras 320d)
Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos
primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se
inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os
mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua
modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo
movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos
fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31
30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles
67
Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com
kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de
Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a
imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)
se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32
O equiliacutebrio entre os opostos exige a
compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu
astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de
distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas
nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante
dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu
existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente
B 62 SIMPL Phys 381 29
[v1] [I 335 5 App]
[v5]
[I33510App]
SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29
Agora vem e como de homens e mulheres
de muitos prantos
noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-
se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem
alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam
de ambos de aacutegua e de forma brilhante
tendo parte estes fogo faziam subir
querendo ao semelhante chegar
nem ainda de membros amaacutevel forma
mostrando (eles)
Nem voz nem (tal) qual o membro
proacuteprio dos homens
(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)
(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)
Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de
ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas
cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres
naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do
alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote
umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo
(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos
precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511
68
ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute
inteiramente desprovido de capacidades
Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz
(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a
duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra
para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz
phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute
ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute
ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu
desaparecimento
A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia
paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do
natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa
sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia
todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi
gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um
tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do
tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem
primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves
gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia
primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos
tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-
ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)
69
Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a
antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a
passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o
ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE
1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual
se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens
antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo
cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e
misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado
a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria
que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-
se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a
repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas
somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)
O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos
concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e
imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo
gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em
combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o
novo homem
Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por
Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33
(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite
trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante
33
70
associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu
saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de
ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de
retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado
A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome
correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo
410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento
Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais
provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na
gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra
(Menexeno 238a 03-05)
A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a
gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o
ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e
a sexualidade34
e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE
1977 p 30)
Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do
artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias
advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos
A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo
desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A
distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio
34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave
de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual
surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave
noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A
conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis
Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B
71
ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida
de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu
natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho
mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35
Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e
Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave
theicirca nooucircsa)36
O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia
teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um
aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino
portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao
homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a
ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)
Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes
rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os
homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo
contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua
falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a
possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras
312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa
propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido
de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do
35
(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c
72
nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009
p 2)
As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja
natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37
O lote de participaccedilatildeo
e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses
mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de
participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que
pode nomear os deuses pela fala regrada
O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a
imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico
exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino
mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso
teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute
determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo
Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os
homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da
poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante
da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua
Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas
destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila
e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades
37
(Protaacutegoras 322a04-08)
73
Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de
Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos
deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O
mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato
moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o
fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o
feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio
se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a
expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38
(VERNANT
2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da
graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e
olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)
Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos
divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um
paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de
contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de
Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do
saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo
entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo
retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a
ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso
opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees
38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males
74
O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber
teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-
presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar
no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano
que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila
dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a
destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale
dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo
problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus
Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a
ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser
irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente
concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo
plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes
essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē
As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo
da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da
ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a
existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo
A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que
esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos
mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma
atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica
nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A
75
passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do
sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo
Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos
inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses
imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos
mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por
intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de
antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de
Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural
mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem
O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a
determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente
intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra
para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado
permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a
sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo
entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a
demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia
divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana
instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam
iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro
da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos
animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente
76
(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras
322c07)
A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos
homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do
divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o
sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas
aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o
profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus
invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente
Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo
salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre
poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo
dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a
distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com
equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama
em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo
tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē
O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade
poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a
contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo
ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados
invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute
essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial
subjacente a aidōs e diacutekē
77
Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil
desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo
de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos
basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila
equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais
homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica
I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia
independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados
delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus
(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A
triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os
mortais devem sua existecircncia aos deuses
2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos
homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade
determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e
suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens
caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das
necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia
exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da
teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute
determinado A razatildeo supera o determinismo
78
3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -
Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis
razatildeo
animais
homens O saber
teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva
um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A
cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades
humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades
humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida
na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute
reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu
(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um
parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano
e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A
divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso
Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia
demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da
cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual
maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a
pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo
e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os
homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo
teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento
das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e
que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e
79
alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do
Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da
oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo
Natureza Cultura
Deuses
Mortais Homens
Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica
Demiurgia
As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem
condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet
Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no
julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e
tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo
como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um
sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo
menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a
divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees
humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes
diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um
suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute
simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece
muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de
bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo
(GERNET 1982 p 14-15)
Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto
realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que
faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do
espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo
(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da
80
figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo
diante daquilo que eacute puro
Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego
juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e
neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que
designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas
respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra
aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A
experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto
inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute
diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre
da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de
evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar
o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par
reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa
indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou
derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva
Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver
correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica
para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo
respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo
indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada
resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva
81
A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a
Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a
uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o
mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele
ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar
Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu
lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)
Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em
estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel
de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de
Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que
vem a ser
Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que
ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras
afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se
melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion
epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o
itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A
finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los
ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser
Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um
retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu
ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo
mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos
82
oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um
novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano
dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria
concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē
Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo
determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema
inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das
comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do
visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de
virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo
simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia
Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do
mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas
satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso
caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo
que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de
profanos39
Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40
Eacute por
participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em
sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra
39
(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o
gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um
mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que
Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria
uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso
na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a
iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico
83
os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees
cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de
inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do
domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem
passaram a destruir-se mutuamente
Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira
equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que
natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de
potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por
conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a
desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens
convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como
afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por
conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias
determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A
participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar
coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por
todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos
sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar
e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo
muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica
cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes
tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou
impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta
84
A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e
da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas
que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da
philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)
Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41
Em primeiro
lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem
potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios
instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em
conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade
participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos
vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus
efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo
determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter
absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica
Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da
existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia
estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a
41
Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz
como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como
dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou
desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63
n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute
constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no
reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem
Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da
proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e
respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes
suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e
a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca
simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)
85
destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a
determinaccedilatildeo de homens e cidades
Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo
como natildeo satildeo42
haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o
afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel
que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma
divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos
condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia
O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em
contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia
destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem
constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si
A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a
violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A
teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a
medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade
Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo
desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve
aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da
coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a
vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)
42
Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B
(Teeteto 160e09)
86
Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a
destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a
cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que
possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees
rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de
inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus
experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo
para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por
um afeto de pertenccedila muacutetua
Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da
polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade
exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo
do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais
para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma
dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para
fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e
amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a
vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia
ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a
previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem
como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o
homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da
guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo
heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem
87
medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis
em outro noacutesos peste da cidade
A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano
ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a
compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo
perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43
Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a
corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos
justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a
ordenaccedilatildeo do tempo
Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio
da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos
afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave
violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave
vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo
ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das
armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no
amor mas tambeacutem no sangue e na morte
A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo
permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de
compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em
direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)
43
DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B
acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo
88
Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo
entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos
ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio
do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir
do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na
cidade mas perde a alma
A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios
que coloca em perigo a alma44
O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios
empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos
alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se
nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45
pretende receber um ensino transmitido por um
guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel
anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um
mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e
experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao
desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis
socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute
incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um
sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta
fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)
44
(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao
saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)
89
Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico
Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto
do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)
Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa
o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um
eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees
postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de
hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de
bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro
A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a
porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades
muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a
humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais
elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado
pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um
ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees
originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo
a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)
O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino
iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em
direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a
medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao
90
melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46
Assim
como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as
disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e
guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e
delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos
O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de
passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas
possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela
iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)
A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de
Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio
Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e
espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da
accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e
supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)
O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo
apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados
independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas
aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo
especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo
mediada pela palavra
46
(Teeteto 167a04-06)
91
A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase
das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT
1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais
acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo
(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem
excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo
direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo
ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)
A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos
sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a
condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado
superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila
A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende
remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste
somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo
consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem
ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o
olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob
exame
92
III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM
QUESTAtildeO
31 Eros e Loacutegos
Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que
o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il
V 3)
Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se
ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais
brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles
Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo
dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que
configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias
especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro
culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto
de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a
desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido
pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que
reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis
No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como
o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia
entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das
coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio
da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia
93
perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute
provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um
tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que
ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)
O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos
valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta
de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade
distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e
outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo
mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e
diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual
ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de
falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos
prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com
todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47
Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte
pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)
Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na
afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da
(Goacutergias 484 c09-d07)
94
possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48
Soacutecrates e Caacutelicles
padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a
natureza do Eacuteros
O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da
encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto
como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia
ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o
belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo
puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um
carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela
esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de
quem haveraacute de continuar procurando
O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de
Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em
Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como
forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico
segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e
aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos
agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em
Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao
reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em
Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se
Goacutergias 481 d)
95
entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo
sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o
discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu
amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia
para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia
harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da
inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista
(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu
proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles
desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49
satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e
arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo
apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e
porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50
Quando o
desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os
meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num
49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma
multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e
uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa
do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na
natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela
refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o
opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o
ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
110)
(Goacutergias 482b04-c03) 50
(Goacutergias 465a)
96
caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a
mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a
personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar
valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para
a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do
bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o
discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias
465d)
A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas
opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para
outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas
expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se
entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo
mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se
relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido
pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um
bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
105)
A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas
assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como
a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra
restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero
Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa
disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo
97
implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as
artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas
Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes
autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as
aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute
para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O
discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o
bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como
a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa
disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da
multidatildeo estaacute para a Filosofia
A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a
ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente
do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por
amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por
Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o
mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a
riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros
Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o
plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo
sempiterna do belo
Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que
digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto
Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o
98
movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele
num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O
movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O
discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do
conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute
diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o
conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de
seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo
pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte
para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser
desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o
proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que
haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra
32 ndash Vida e ḗthos
Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se
potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos
loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos
antagonismos
Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de
vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo
excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a
inteireza da vida
99
O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51
se contradizem
uma agrave outra52
- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um
todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em
contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo
haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica
grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de
Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53
O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a
afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e
confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala
51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo
V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da
eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a
significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao
que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de
ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja
claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em
Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza
humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios
inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo
significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de
outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para
os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso
natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA
fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()
mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo
difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao
primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez
que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada
atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita
por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52
(Goacutergias
482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura
Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio
para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem
refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se
inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o
designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)
100
segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54
(483a) A questatildeo dos
valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo
pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende
de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o
estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55
A noccedilatildeo
convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior
determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees
satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece
que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma
vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56
e coincide
com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que
nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do
que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos
muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon
leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste
em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das
54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre
e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo
dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p
571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos
sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha
sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B
118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo
impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser
preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso
favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse
constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para
as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa
posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas
pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente
justo (IRWIN 1995 p 103)
101
multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os
melhores e os mais robustos dos homens
Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens
fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que
estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em
sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos
homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que
possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto
E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros
Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo
inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso
procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam
injusticcedila57
(Goacutergias 483b04-c08)
A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha
que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva
diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de
todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso
(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez
brota da estima puacuteblica58
Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que
caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles
considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a
Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na
prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada
pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de
exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o
sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes
vergonhosas a genitaacutelia
102
tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e
a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de
adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p
26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem
configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida
honoraacutevel
O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade
de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo
pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees
longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e
violentando a sua respeitabilidade
Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se
despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto
a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto
para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-
se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito
esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a
presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o
ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no
fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios
como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio
mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X
1850)
A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a
genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa
Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o
olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e
daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos
costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas
103
pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a
beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos
costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e
desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia
que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas
as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma
caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica
uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez
O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam
encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59
Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram
constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua
nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e
Natureza frequentemente se contradizem
A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute
precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o
grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira
natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais
vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)
subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em
todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo
(483e-484b)
59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A
dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso
acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)
104
A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles
Koacutesmos60
para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato
excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de
perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)
Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute
um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61
Assim como o discurso exemplar de
seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem
Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos
que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais
capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo
estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os
animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza
(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses
(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como
brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho
da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor
aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores
homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)
60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio
de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo
designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta
Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no
sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato
Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o
significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo
ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute
propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do
incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009
105
A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com
razotildees No caso de Helena62
as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um
toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute
natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de
Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para
se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos
o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e
ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela
Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior
Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila
persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de
um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base
material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)
Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve
receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena
7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio
de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se
encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63
ndash os loacutegoi movem
os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por
natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de
62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo
fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime
democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63
106
combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como
meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado
ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem
mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por
constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade
Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o
ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a
natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos
expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila
outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem
outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos
ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam
completamente a alma
(Elogio de Helena 13)
A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade
daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se
poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve
imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a
usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto
Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato
natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e
fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da
forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que
por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e
censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite
Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas
com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles
advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na
107
constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem
nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje
o mais capaz
Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de
noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64
dos mortais e dos imortais Como observa
Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo
ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas
ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema
de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para
retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo
(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para
a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de
que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65
Estaacute advertido de que o recurso ao poeta
de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda
comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por
afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo
comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a
violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores
64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e
Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um
filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou
dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era
formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das
coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera
monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o
Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo
108
que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos
heroacuteis da Heacutelade
Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da
sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila
encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo
Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66
Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos
longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A
encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a
opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a
identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos
afetos ligados ao crivo puacuteblico
Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega
(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma
busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o
(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema
antropoloacutegico invariante67
A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de
descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por
meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e
a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei
se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo
66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este
padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado
de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho
Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual
obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de
Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-
se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)
109
Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento
divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano
coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha
vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso
momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-
humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder
(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento
confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a
possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais
era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de
encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso
(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso
encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e
haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso
(BURKERT 1979 p 85)
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade
Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-
significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de
morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68
Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da
bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel
vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem
mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o
68
(Apologia 28b03-04)
110
valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute
justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da
morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que
o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha
A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os
amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)
Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute
preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela
gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada
indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A
identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da
derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um
homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa
puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu
prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem
abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir
seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado
aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo
ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os
privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do
grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do
kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um
errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem
sem nenhum valor
(VERNANT 2001 p 407-408)
A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente
preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo
em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores
seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio
coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte
Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a
ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si
mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha
opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem
111
calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra
(Apologia 28d06-10)
O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o
aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo
dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da
paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem
exame natildeo merece ser vivida69
A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a
reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada
cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das
riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da
verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa
transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e
com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo
interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende
do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para
consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a
brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os
maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se
numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos
que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais
No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica
a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao
disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das
69 (Apologia 38a05-06)
112
leis como encantaccedilotildees70
e sortileacutegios71
cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural
A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos
leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao
estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve
ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates
Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado
na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias
sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada
dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um
acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a
morrer se ele quisesse se honrar com tua morte
Goacutergias 486a-b
A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que
interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo
do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino
sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com
isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da
70
(Goacutergias 484e05-06) 71
Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios
( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um
inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres
afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute
apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore
consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e
413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de
privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que
satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera
por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo
consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por
meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento
de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que
derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)
capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso
das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os
medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)
113
opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como
elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo
O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia
universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do
vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da
desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com
conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute
feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do
erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos
como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional
uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura
do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas
faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre
responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo
personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a
afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico
responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da
salvaccedilatildeo
Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo
suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro
aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72
ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo
eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom
72 (Elogio de Helena 10)
114
e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos
efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade
Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia
a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como
mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente
reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente
constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)
Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito
mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra
Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece
em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos
mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo
verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum
continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que
o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o
deve
A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute
desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo
propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73
Tal adestramento eacute
semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de
extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo
(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo
(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste
73 (Goacutergias 484c)
115
entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio
indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a
formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O
resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica
e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida
calcado no conflito de interesses
A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia
mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto
de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do
homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove
a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave
sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de
uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)
e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica
agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74
(MICHELINI 1998 p 55)
Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado
na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo
eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)
Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa
reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas
exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel
74
o
(Goacutergias 485c)
116
para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao
desprezo e ao ridiacuteculo
Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a
encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo
aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de
desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento
eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha
puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade
aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo
pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute
mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa
vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das
partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir
de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75
Afeto e
discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente
Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a
justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo
se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa
concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que
muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente
segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento
(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo
consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)
do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi
enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido
por se envergonhar de dizer o que pensa76
75
Goacutergias 482c05-07 76
(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
117
Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a
lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre
precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos
dois termos da divisatildeo77
Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a
reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a
vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a
vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as
convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade
Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O
criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para
consigo mesma
Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um
impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute
contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as
crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento
que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo
77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute
moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha
convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau
seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem
semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees
semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as
interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da
vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos
pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva
exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois
sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da
significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma
118
pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78
O iniacutecio
da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada
pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79
O proacuteprio Caacutelicles
afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo
entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia
(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra
emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida
aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os
discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute
contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e
pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila
e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma
A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo
da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que
configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de
qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se
78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram
Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo
empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas
do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso
simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente
(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em
torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa
perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da
verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada
ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive
como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional
segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave
crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p
olympiodoro
119
deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente
estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a
posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir
primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de
viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando
(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o
que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)
Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80
a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela
alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo
depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra
encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81
Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e
torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em
conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo
(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma
80
81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por
sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides
opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e
filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset
(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais
ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais
sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de
uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute
muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de
Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles
na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo
permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de
Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e
Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo
penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides
eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade
chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)
120
bouleuacutesaio)82
Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo
por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano
Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma
personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada
simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar
a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o
homem comum forma a sua opiniatildeo
A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica
natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz
arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a
persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que
Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da
eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute
que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A
racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que
garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade
das circunstacircncias e das conveniecircncias
Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a
alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim
do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e
influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos
significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a
82 icirc
(Goacutergias 485e06-a03)
121
pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o
ouro agrave alma prova o loacutegos
Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute
simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma
mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83
A exortaccedilatildeo
retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora
ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a
faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da
descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do
caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)
O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees
diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute
preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza
(parrhēsiacutea)84
Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente
agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das
accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas
83
Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como
instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos
forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem
a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo
mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma
(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em
ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs
precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem
os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do
juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente
enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84
(Goacutergias 487a)
122
aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de
fragmentaccedilatildeo
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea
Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser
Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua
chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a
maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte
Goacutergias 461d85
A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o
cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida
ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea
constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer
expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86
denota a prevalecircncia dos
interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade
Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o
pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e
revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja
com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem
impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas
da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene
Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os
85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη
ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε
ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a
parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do
benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu
objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica
e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo
com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma
atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)
123
princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que
simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a
ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva
(SAXONHOUSE 2008 p 87)
A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder
sobre o outro na cidade87
o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash
encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs
plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na
assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os
afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e
da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento
discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder
encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do
discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee
encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim
como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)
Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que
desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam
permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu
de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88
Estrangeiros eles satildeo
87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88
ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ
παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ
πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ
124
considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e
excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A
vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem
poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as
maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos
suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros
pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar
livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)
Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta
entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre
desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais
satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas
A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o
gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar
francamente89
como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais
importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que
buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)
A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes
(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90
(Laques 179c01) A
consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento
conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor
Goacutergias 486a06-487b05 89
(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial
ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao
ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)
125
pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus
efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a
ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)
O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e
fazem o que querem91
A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um
conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a
dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a
educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na
guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram
como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do
descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se
(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O
descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92
A
dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea
negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que
configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos
pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a
democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da
incompatibilidade interna de seus valores
O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O
cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente
um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento
91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p
15-20)
126
O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e
reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)
Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom
conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que
lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo
tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho
mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades
poliacuteticas
A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a
confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia
manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa
simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores
questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da
finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a
franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo
Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de
paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado
pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo
dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar
instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua
proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida
devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda
franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A
incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma
127
fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu
loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos
Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o
veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de
todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele
ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da
origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis
democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93
e
franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida
particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela
multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade
(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos
supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a
alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos
licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de
prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora
se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta
em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres
(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para
o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma
vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se
embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma
vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites
93 (Repuacuteblica 557b)
128
e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada
ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a
incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute
relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou
excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)
No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates
alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia
do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame
da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do
interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute
tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio
para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos
neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)
Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica
uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um
tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes
personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se
um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o
mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica
que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as
eacutepocas como um tipo de homem
Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo
platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO
1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um
129
ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato
do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado
a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS
2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender
Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel
de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo
(JAEGER 1995 p 666)
Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais
perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas
personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees
indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria
psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada
ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em
consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma
triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores
remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A
triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da
proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso
de um lado e as accedilotildees de outro
Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam
os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi
muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e
imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante
130
apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que
Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles
A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o
assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio
verdadeiro94
Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor
modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas
para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)
A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95
como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que
entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com
94
Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua
franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece
exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds
por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo
que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor
implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de
Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de
Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila
convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para
muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada
no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste
problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p
103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de
vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente
de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas
encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense
Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o
objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses
verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz
pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A
incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de
proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de
vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o
acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em
torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em
seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no
argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes
satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os
homens Ver KERFERD 2003 189-221
131
Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo
(eriacutezein)
As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir
imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que
natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma
atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse
poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor
preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis
mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)
da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode
haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam
adversaacuterios e inimigos
(Protaacutegoras 337a-b)
A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso
natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a
eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves
dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das
armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este
se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela
tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto
a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a
eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma
que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A
atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que
constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o
princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua
aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a
atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da
132
verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em
oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em
relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que
o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que
supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)
Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo
psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se
efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que
opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo
pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs
que eacute a inteligecircncia do bem
No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por
conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se
contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se
contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na
direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que
permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos
discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo
autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e
que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)
A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira
inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso
133
implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96
Por outro lado o
movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da
verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995
p 671)
As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade
deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no
plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja
acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga
e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo
cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por
um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o
que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a
mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com
estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso
Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos
96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os
erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite
O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e
o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)
134
35 ndash A retoacuterica da alma
No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem
de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou
verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da
equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)
Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como
o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)
natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa
e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu
desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o
Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados
com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da
descrenccedila e do esquecimento (493b-d)
Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que
ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma
argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o
proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem
ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel
A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert
(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por
outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e
do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais
restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant
(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados
135
a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra
de vida pura reservada aos iniciados
O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que
moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um
ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua
conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para
a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la
Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos
A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a
inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando
modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas
afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um
novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de
misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a
significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no
mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os
quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo
norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)
Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios
haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na
Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza
ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais
136
belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais
possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)
Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo
de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o
pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o
que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)
Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado
e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)
dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por
um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma
transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio
Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico
cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O
discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio
uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da
investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua
posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo
genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos
elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e
impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo
segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo
obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos
divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a
exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma
137
homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o
alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento
isolado do corpo
A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que
determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma
se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose
dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma
perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟
O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves
praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas
comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a
impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave
transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais
elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios
espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que
remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza
No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as
instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das
faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de
reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas
(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute
o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os
recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de
reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem
138
divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a
prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de
Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees
Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma
fonte
ao lado dela se ergue um cipreste branco
eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam
Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes
Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre
do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas
Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento
porque tu exploras as trevas de Hades obscuro
Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado
Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido
De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟
E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico
Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene
E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada
Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na
gloacuteria 97
(I A 1 9-11)
Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a
Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular
as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas
egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as
instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um
livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos
escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma
vertente religiosa
Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que
permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao
misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de
97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)
139
elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete
dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas
Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que
demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade
muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira
se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas
entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de
pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no
movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos
A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que
permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia
do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A
foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante
com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe
que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao
cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo
vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse
acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um
exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento
A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem
consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o
proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de
purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que
estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens
fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas
(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades
sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute
140
deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez
laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles
que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso
(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi
(Feacutedon 69b12-c2)
A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e
os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio
iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta
para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre
o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles
que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do
que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)
Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita
controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que
suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em
um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein
indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como
oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por
ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado
miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus
Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro
lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o
emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve
simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que
envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e
vinho (CASADIO 2010 p 46-60)
141
A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as
expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que
configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees
funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja
acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas
Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o
proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos
baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e
podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas
coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de
orfismo baacutequico
Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da
Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a
autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos
particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos
prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu
crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam
iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro
mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios
(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)
Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a
exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas
de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a
transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No
Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que
natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a
transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela
142
Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada
pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de
exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina
A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma
gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes
natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma
polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que
buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma
A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como
isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A
harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute
uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo
ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de
harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou
uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na
analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter
uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e
a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da
harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o
acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo
entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da
comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e
quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de
opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)
143
A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel
(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na
economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma
eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais
Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja
inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo
pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de
modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma
inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa
Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes
que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo
(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o
discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute
Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que
consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas
A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida
agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em
colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os
juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades
Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante
teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta
vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo
A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina
na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as
144
almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e
esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)
indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O
esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do
nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade
do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento
como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)
A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria
numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A
ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os
apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na
inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo
unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos
Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no
Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna
insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos
que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na
qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e
psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia
As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o
regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui
toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute
representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade
penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo
145
psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e
do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica
eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre
renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo
(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de
todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse
do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites
Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de
vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente
escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador
dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus
desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas
e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele
extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de
sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da
cidade que dirige
(Repuacuteblica 579e)98
Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente
a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que
vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade
cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)
A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo
tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega
dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se
pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o
divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica
98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)
146
Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e
Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de
Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De
acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC
conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por
convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica
do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto
por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a
ciecircncia do caacutelculo e da geometria
No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da
geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de
Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute
notavelmente paralela agrave do Goacutergias
Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo
de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de
outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo
pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute
difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente
mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute
impossiacutevel investigar
Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e
aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida
(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por
meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas
transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe
do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que
haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento
para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes
que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo
ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede
aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo
revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica
geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)
147
O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo
pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta
arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a
organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma
visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais
geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico
A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos
constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a
relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da
justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza
pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da
inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea
O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa
cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico
concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a
posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas
Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo
Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da
funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel
No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos
materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau
de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia
148
Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de
viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos
alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos
alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma
mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de
harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A
alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo
domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos
determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles
a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma
harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua
concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento
de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas
Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute
calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute
causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as
relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam
com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e
harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja
sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo
intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no
acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de
todas as coisas
149
36 Julgamento e nudez
O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei
da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas
accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a
correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os
sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado
caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da
desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural
entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a
desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto
Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes
vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram
promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos
juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel
com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave
validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais
privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias
das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a
perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar
A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os
sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as
riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos
possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute
preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas
150
discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo
empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila
Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam
mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o
expediente astucioso que remediaraacute o mal
Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de
conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem
em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a
Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida
eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados
de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar
mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada
aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o
momento da morte cada um esteja separado de todos os seus
proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o
uacutenico meio para que o julgamento seja justo
(Goacutergias 523d-e)99
O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do
mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria
representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A
capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as
carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero
humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da
comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a
desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano
cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo
entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o
visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto
99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)
151
O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas
teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos
os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos
exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma
separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor
A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada
pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do
engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A
vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e
censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o
afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que
deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser
evitados sem a tirania dos apetites
Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo
meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de
prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato
do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria
do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a
finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode
apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros
baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em
sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida
A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos
e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova
152
acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se
mutuamente
No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a
autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes
aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo
geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A
alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)
Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode
crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira
de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do
mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a
eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a
contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo
obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia
(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes
desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia
Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de
conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias
511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para
tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para
culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa
outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo
devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas
imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)
153
Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a
qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para
exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que
se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis
(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as
melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os
apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui
disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou
besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha
(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo
resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria
da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica
indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)
Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto
em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer
bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)
Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum
ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de
que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos
deve servir para a perenidade do justo (527c)
154
IV - NECESSIDADE E ESCOLHA
41 Imagens e causas no mito de Er
No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa
de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de
noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com
a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade
Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a
escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como
princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o
desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o
lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada
Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras
ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo
eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes
vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro
a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo
tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais
ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe
O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100
Repuacuteblica X 617d06ndash617e05
Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas
vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101
A maioria eacute
guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que
100
Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees
Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous
thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos
haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton
autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)
155
acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida
Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha
Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais
modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo
Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis
Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo
do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a
estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando
tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos
caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas
destes modos de vida examinando por quais meios por quais
maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia
ateacute o fim desta travessia que consiste a vida
Leis VII 803a-b
A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma
analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a
construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar
estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102
O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais
fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103
A mais
fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio
modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio
de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel
Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de
fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo
eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no
que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao
deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem
poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar
102
tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)
156
examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela
seja a melhor possiacutevel
Goacutergias 512 d-e
A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos
inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder
humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem
cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a
vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas
escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos
e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A
orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo
do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo
natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida
O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da
multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em
que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento
desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas
Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo
a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver
Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica
X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo
tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104
Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte
implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa
104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon
eicircnai
157
(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a
impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de
princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p
114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua
complexidade
Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos
impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave
kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A
tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes
(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas
merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X
604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo
ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o
mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo
que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada
(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste
em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)
No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e
(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se
com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do
melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e
causa
Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si
mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece
a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao
158
ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em
movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que
eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo
se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que
esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu
movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao
contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio
uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma
Fedro 245d
A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento
Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de
outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma
causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo
necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre
efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo
(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio
Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa
Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia
(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)
A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a
economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que
terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim
No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)
alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e
o mal
Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem
somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa
ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que
conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a
159
A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do
Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-
poliacutetica
Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve
terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo
eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo
para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor
somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do
Bem (DIXSAUT 2001 p 130)
A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a
potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se
escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade
pelo qual a realidade eacute apreendida
Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser
justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees
multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis
como consolidaccedilatildeo
42 ndash Mito e psykhḗ
Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por
imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos
patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo
miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um
iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o
160
pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as
accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica
A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer
e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem
referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda
estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia
estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105
Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e
constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura
miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do
psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades
Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares
visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106
Assim como o Ser estaacute para o devir
assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia
se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de
relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir
das imagens que lhes servem de postulados
Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma
realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela
inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de
105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a
mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras
No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor
dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute
te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible
and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)
161
imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais
para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107
Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A
significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um
registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da
inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute
desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir
como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a
argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)
eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)
da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a
bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108
Para se evitar a
misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo
para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)
Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar
aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia
crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute
assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)
107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a
relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de
certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar
mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo
que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo
de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de
traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo
portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente
pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous
162
O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)
que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua
proacutepria situaccedilatildeo particular
43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS
A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como
risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte
O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade
A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos
Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo
que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade
(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto
e negligenciar a eternidade109
A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo
indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um
paradigma atemporal
O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as
almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion
(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra
Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel
concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade
diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de
109
Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que
eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana
bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei
touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon
Repuacuteblica VI 486a 09-10
163
realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados
no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam
a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma
estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com
determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do
que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa
ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110
Haacute uma
simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo
Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um
lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111
(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas
mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que
prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica
616b-c)
A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma
coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda
atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis
divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso
ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um
sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz
110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein
Feacutedon 109b0708 111
Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as
esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos
164
No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute
mensageira112
No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas
Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que
ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do
saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113
natildeo
esboccedilou mal sua genealogia
(Teeteto 155d)114
Como nota Narcy115
Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte
constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a
atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se
expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116
Universal antropoloacutegico a
imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre
indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117
112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi
verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira
Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir
desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris
e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera
que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam
(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)
De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent
Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous
parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris
(CHANTRAINE 1999 p 469) 117
Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem
natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores
segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel
estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a
imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc
mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material
body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis
otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and
imaginative purpose in view
165
que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e
o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo
passo do Timeu
Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que
atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga
da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades
nascidas no interior do ceacuteu
Timeu 40b-c
Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial
fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-
97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da
phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender
a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo
como condiccedilatildeo epistecircmica do devir
Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os
observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo
outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso
perturba nossa alma
Repuacuteblica X 602c
O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de
modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X
602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no
inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente
aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees
eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis
Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos
de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira
166
geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118
No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo
da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma
mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a
maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da
persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura
Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave
constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante
ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de
regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento
eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter
randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos
Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de
determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo
No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na
estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar
Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das
almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as
118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura
uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)
causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional
operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura
anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No
segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo
desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o
demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem
no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a
geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do
movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do
mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo
167
escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica
X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er
representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto
divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes
Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do
lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo
total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio
soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem
remissatildeo
Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica
coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos
indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao
koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os
movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem
personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da
necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a
natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito
inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida
As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia
unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca
simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras
entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes
mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto
168
sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da
causalidade
Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma
causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e
muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da
causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as
repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio
causal primordial de Anaacutenkhe
Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade
eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na
necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute
determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva
causal
Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos
miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)
Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o
discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes
(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um
perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as
consequecircncias
O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que
mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute
algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de
que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A
169
filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito
contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo
designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que
natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo
confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento
Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na
atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar
para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida
jaacute que toda vida eacute uma mistura
Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo
tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto
pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico
No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os
deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119
respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave
justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os
planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma
119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave
amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado
observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo
porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo
necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees
poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido
os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis
matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)
Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se
A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter
comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica
necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um
prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise
argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens
correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo
entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea
170
lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos
Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico
Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo
resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe
conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a
natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica
que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de
uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da
inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial
consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora
que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o
fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei
Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a
precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela
Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas
pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior
capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha
comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da
Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de
desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem
que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)
Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem
mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de
retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o
171
Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar
arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude
Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate
maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau
Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza
nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e
negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120
Repuacuteblica X 608b 04-08
O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que
os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem
muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste
em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo
combate que existe121
a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade
do mal a ser combatido122
A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos
os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente
associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite
viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um
elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo
miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que
consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem
para vencer a mistura de dores e prazeres
120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai
hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai
dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai
(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene
toucirc meacute
(Goacutergias 509c03-04)
172
A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da
pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter
sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma
discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande
significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das
profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu
viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por
desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera
Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la
ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo
com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)
A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A
noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis
encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento
contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e
obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras
equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)
Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo
ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na
perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo
vistas e natildeo percebidas
Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do
pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as
realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio
173
agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever
ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia
com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da
multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica
Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se
conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica
infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea
174
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1Goacutergias
GORGIAS Elogio de Helena Traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli Belo Horizonte Anaacutegnosis
2009 Disponivel em
httpanagnosisufmgblogspotcom200910elogio-de-helena-gorgiashtml Acesso em
10032010
GORGIAS ΓΟΡΓΙΟΥ ΕΛΕΝΗΣ ΕΓΚΩΜΙΟΝ Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics82-B11 acesso em 10032010
2 Aristoacuteteles
ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo e notas por Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2005
3 Antifonte
87 B 44 [cfr 99 B 118 S] PAP OXYRH XI n 1364 ed Hunt Frammento A Disponiacutevel
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics87-B Acesso em 02052010
4 Isoacutecrates
ISOCRATES Discourses Translate by George Norlin Harvard The Loeb Classical
Library 2000
5 Heroacutedoto
HERODOTE Histoire Traduction par Larcher Paris Charpantier 1850 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k203223nr=herodotelangPT acesso em 03052010 4
6 Hesiacuteodo
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Edited and translated by Glenn W
Most London Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Mary
Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2006
_________ Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed
Iluminuras 2003
7 Homero
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Ed Mandarim 2001
________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo por Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002
8 Platatildeo
Ediccedilotildees e traduccedilotildees
Obras completas PLATON Œuvres Complegravetes Paris Les Belles Lettres 1983-2003
Obras selecionadas
PLATON Gorgias Œuvres Complegravetes Trad par Alfred Croiset Paris Les Belles Lettres
2003
________________ Translated with introduction and commentary by E R Dodds
Oxford Clarendon Press 2002 A
________________ Traduction par Monique Canto Paris Ed Flammarion 1993
________________ Translated with notes by Terence Irwin Oxford Clarendon Press
1979
Collection GF Flammarion
PLATON Pheacutedon Traduction introduction et notes par Monique Dixsaut 1991
________ Cratyle Traduction introduction et notes par Catherine Dalimier 1998
________ Ion Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 2001
________ Gorgias Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
175
________ Le Banquet Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003
________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005
________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000
________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002
________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997
________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004
________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993
________ Theacuteeacutetegravete Traduction introduction et notes par Michel Narcy 1995
________ Timeacutee Critias Traduction introduction et notes par Luc Brissson 2001
9 Obras modernas
BEALL E F Hesiods Prometheus and Development in Myth Journal of the History of
Ideas 52 3 1991 p 355-371 BELFIORE E Elenchus Epode and Magic Socrates as Silenus Phoenix 34 1980 p128-
137
BENSEN CAIN R Shame and Ambiguity in Plato‟s Gorgias Philosophy and Rhetoric
41 3 2008 p 212-237
BENARDETE S Socrates‟s Second Sailing in Plato‟s Republic Chicago Chicago
University Press 1989
_______________ The Retoric of Morality and Philosophy Chicago Chicago University
Press 2009
BERRYMAN Sylvia Ancient Automata and Mechanical Explanation Phronesis
XLVIII4 p 344-369 2003
BLICKMAN Daniel R Styx and the Justice of Zeus in Hesiod‟s ldquoTheogonyrdquo Phoenix
41 4 p 341-355 1987
BOYS-STONES G R HAUBOLD J H Plato and Hesiod Oxford Oxford University
Press 2010
BRISSON Luc Leituras de Platatildeo Porto Alegre Ed PUCRS 2003
BURKERT Walter Ancient Mystery Cults London Harvard University Press 2001A
________________ Creation of Sacred London Harvard University Press 2001B
________________ Homo Necans Paris Les Belles Lettres 2005
________________ Lore and Science in Ancient Pythagoreanism London Harvard
University Press 1972
________________ Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica Lisboa Fundaccedilatildeo
Kalouste Gulbenkian 1993
________________ Structure and History in Greek Mythology and Ritual Berkeley
University California Press 1992
CLAY J S Hesiod‟s Koacutesmos Cambridge Cambridge University Press 2009
CAIRNS D AIDOS The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek
Literature New York Oxford University Press 1993
CARRIEacuteRE J-C MASSONIE B La Bibliotegraveque d‟Apollodore Paris Annales litteacuteraires
de l‟Universiteacute Besanccedilon 1991
CASADIO G JOHNSTON P A Mystic Cults in Magna Graecia Austin University of
Texas Press 2009
176
CARRATELLI P G Les lamelles d‟or orphiques Paris Les Belles Lettres 2003
CONACHER D J Prometheus as Founder of the Arts Roman and Byzantine Studies 18
3 1977
CORNFORD F M Was the Ionian Philosophy Scientific The Journal of Hellenic
Studies 62 p 1-7 1942
COSMOPOULOS M Greek Mysteries London Routledge 2003
CROCKET Andy Gorgias Encomium of Helen Violent Rhetoric or Radical Feminism
Rethoric Review 1994 p 71-90
DETIENNE Marcel VERNANT Jean Pierre Les Ruses de L‟Intelligence La Mḗtis des
Grecs Paris Flammarion 1974
DELATTE Armand Eacutetudes Sur La Litteacuterature Pyithagoricienne Genegraveve Slaktines
Reprints 1999
DEMOS Marian Callicles‟ Quotation of Pindar in the Gorgias Harvard Studies in
Classical Philology 1994 p 85-107
DEWINCKLEAR D Philosophie et Initiation dans l‟Œuvre de Platon Revue de
Philosophie Ancienne Bruxelles Eacuted Ousia 1 2010 p 29 - 65
DIXSAUT Monique Le Naturel Philosophe Paris Vrin 2001
DODDS E R Euripides the Irracionalist The Classical Review 1929 p 97-104
DORTER K The Transformation of Plato‟s Republic Lanham Lexington Books 2006
EDMONDS III R G Myths of the Underworld Journey Plato Aristophanes and the
bdquoOrphic‟ Gold Tablets Cambridge Cambridge University Press 2004
_________________ (Ed) ldquoOrphicrdquo Gold Tablets and Greek Religion Cambridge
Cambridge University Press 2011
____________ Os Grego e o Irracional Satildeo Paulo Escuta 2002 B
ELIADE M Forgerons et Alchimistes Paris Flammarion 1977
__________Images et symboles Paris 1980
__________ Initiation rites societies secretes Paris Folio 1959
__________ Le Sacreacute et le Profane Paris Folio 1965
__________ Mythes recircves et mystegraveres Paris 1957
EMLYN-JONES C Dramatic Structure and Cultural Context in Platos Laches The
Classical Quarterly 49 1 1999 p 123-138
ENGMANN J Cosmic Justice in Anaximander Phronesis XXXVI 1 1991 p 1-25
FARRAR C The Origins of Democratic Thinking Cambridge University Press 1988
FINLEY Moses Technical Innovation and Economic Progress in Ancient World The
Economic History Review 18 1 P 29-45 1965
FUTTER D B Shame as a Tool for Persuasion in Platos Gorgias Journal of the History
of Philosophy 47 3 2009 p 451-461
GAGARIN Michael The Torture of Slaves in Athenian Law Classical Philology 1996 1
p 1-18
GALIMBERTI Umberto Psiche e Techne ndash o homem na idade da teacutecnica Satildeo Paulo Ed
Paulus 2006
____________________ Man in the age of technology Journal of Analytical Psychology
2009 54 p 3ndash17
GERNET Louis Antthropologie de la Gregravece Antique Paris Flammarion 1982
177
4 _____________ Droit et institutions en Gregravece antique Paris Flammarion 1982
5 _____________ Recherches sur le deacuteveloppement de la penseacutee juridique en Gregravece
ancienne Paris Albin Michel 2001
GUIGNIAUT PATIN GIRARD J Poegravetes Moralistes de la Gregravece Paris Garnier 1892
Disponiacutevel em ltftpftpbnffr026N0262657_PDF_1_-1DMpdfgt
GUTHRIE W K C Os Sofistas Satildeo Paulo Paulus 1995
HAMMERTON-KELLY R Ed Violent Origens Satnford Stanford U Press 1987
HOTTOIS Gilbert Teacutecnica In CANTO-SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e
Filosfia Moral Satildeo Leopoldo Ed Unisinus p 665-669 2003
HUFFMAN K Philolaus of Croton Cambridge C U Press 1998
HUFFMAN K Archytas of Tarentum Cambridge C U Press 2005
IRWIN Terence Plato‟s Ethics Oxford Oxford University Press 1995
JAEGER W Paideacuteia Satildeo Paulo Martins Fontes 1995
JOURDAIN F Le Papyrus de Derveni Paris Les Belles Lettres 2003
KAHN Charles A Arte e o Pensamento de Heraacuteclito Satildeo Paulo Loyola 2009
_____________ Plato and the Socratic Dialogue Cambridge Cambridge University
Press 1996
KERFERD G B O Movimento Sofista Traduccedilatildeo por Margarida Oliva Satildeo Paulo Loyola
2003
KONSTAN D The Emotions of the Ancient Greeks Toronto University of Toronto Press
2007
____________ Shame in Ancient Greece Social Research 70 4 2003 p 1031-1060
KOSKLO George The Insufficiency of Reason in Plato‟s Gorgias The Western Political
Quarterly 4 1983 p 579-595
_______________ The Refutation of Callicles in Plato‟s bdquoGorgias‟ Greece amp Rome 1984
p 126-139
6 KRAUT R (Ed) The Cambridge Companion to Plato Cambridge Cambridge
University Press 1992
LAKS A Between Religion and Philosophy the Function of Allegory in the Derveni
Papyrus Phroacutenesis Leiden Brill XLII 2 1997 p 121-142
LAKS A MOST G W (Ed) Studies on the Derveni Papyrus Oxford Clarendon Press
1997
LAMPERT L How Philosophy Became Socratic Chicago Chicago University Press
2010
LARSON J Ancient Greek Cults Oxford Routledge 2007
LEacuteVI-STRAUSS C Antropologia Estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003
________________ Antroplogia Estrutural Dois Rio de Janeiro Tempo Brasileiro1993
________________ O Pensamento Selvagem Satildeo Paulo Papirus 2004
7 LEE Desmond Science Philosophy and Technology in Greco-Roman World Greece
and Rome 20 1 p 65-78 1973
8 LONG A A (Ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy
Cambridge Cambridge University Press 1999
LONGRIGG J Greek Rational Medicine London Routledge 1993
LUCAS D La philosophie antique comme soin de l‟acircme Le Portique [En ligne] 4-2007
Disponiacutevel em lt httpleportiquerevuesorgindex948htmlgt Acesso em 10 abr 2010
178
MARQUES M P Platatildeo Pensador da Diferenccedila Belo Horizonte Ed UFMG 2006
MIRECKHI P MEYER M (Ed) Magic and Ritual in the Ancient World Leiden Brill
2002
MICHELINI A N Rudeness and Irony in Plato‟s Gorgias
Classical Philology 1998 p 50-59
MIKALSON J A Greek Popular Religion in Greek Philosophy Oxford Oxford
University Press 2010
MOSSEacute C Politique et Societeacute en Gregravece Ancienne Paris Flammarion 1995
MONOSON S S Plato‟s Democratic Entanglements Princeton Princeton University
Press 2000
MORGAN K Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato Cambridge
Cambridge University Press 2000
NUNES SOBRINHO R Platatildeo e a Imortalidade mito e argumentaccedilatildeo no Feacutedon
Uberlacircndia EDUFU 2008
OGDEN D (Ed) A Companion to Greek Religion Oxford Blackwell Publishing 2007
OLYMPIODORUS Commentary on Plato‟s Gorgias Translated by Robin Jackson
Kimon Lycos and Harold Tarrant Boston Brill 1998
OTTO W F L‟Esprit de la Religion Grecque Ancienne Paris Berg International 1995
PLOCHMANN G K ROBINSON F E A Friendly Companion to Plato‟s Gorgias
Illinois Southern Illinois University Press 1988
PRADEAU Jean-Franccedilois Platon et les formes inteligibles Paris PUF 2001
PRICE A W Mental Conflict London Routledge 1995
RACE W H Shame in Plato‟s Gorgias The Classical Journal 74 3 1979 p 197-202
RAMSEY Eric Ramsey A Hybrid Techne of the Soul Thoughts on the Relation between
Philosophy and Rhetoric in Gorgias and Phaedrus Rhetoric Review 1999 17 2 p 247-262
RAMNOUX C Heacuteraclite Paris Les Belles Lettres 1968
REINHARDT K Les mythes de Platon Paris Eacuted Gallimard 2007
REIS M D Um olhar sobre a psykheacute o logistikoacuten como condiccedilatildeo para a accedilatildeo justa nos
livros IV e IX da Repuacuteblica de Platatildeo 2000 217 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Federal de Minas
Gerais 2000
REIS M D Triparticcedilatildeo e unidade da Psykheacute no Timeu e nas Leis de Platatildeo 2000 304 p
Dissertaccedilatildeo (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade
Federal de Minas Gerais 2007
RIBEIRO A M O Reverso da Filosofia o caso Goacutergias 214 p Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo 2002
ROOCHNIK David Of Art and Wisdom Pennsylvania The Pennsylvania U Press 1996
SAXONHOUSE A W Free Speech and Democracy in Ancient Athens Cambridge
Cambridge University Press 2008
SAUNDERS Trevor Penology and Eschatology in Plato‟s Timaeus and Laws The
Classical Quarterly 23 2 1973 p 232-244
SEKIMURA M Platon et la Question des Images Bruxelles Eacuted Ousia 2009
SMITH Janet E Plato‟s Use of Myth in the Education of Philosophic Man Phoenix 40
1986 p 20-34
SCHOFIELD M Plato New York Oxford University Press 2006
179
TARNOPOLSKY C H Prudes Pervets and Tyrants Plato‟s Gorgias and the politics of
shame New Jersey Princeton University Press 2010
TSANTSANOGLOU K PARAacuteSSOGLOU G KOUROMENOS T (Ed) The Derveni
Papyrus Firenze Leo S Olschki Editore 2006
VERNANT Jean Pierre Entre Mito e Poliacutetica Satildeo Paulo Edusp 2002 A
___________________ Mito e Pensamento entre os Gregos Satildeo Paulo Ed Paz e Terra
2002 B
___________________ Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Rio de Janeiro Ed Joseacute
Olympio 1999
___________________ Mythe et Religion en Gregravece Ancienne Paris Ed du Seuil 1987
___________________ Pandora la preniegravere femme Paris Bayard 2005
VLASTOS Gregory Plato II A collection of critical essays Indiana Notre Dame Press
1978
_________________ Equality and Justice in Early Greek Cosmology in Classical
Philology 42 3 p 156-178 1947
_________________ Socrate Ironie et Philosophie Morale Paris Aubier 1994
_________________ Was Polos Refuted The American Journal of Philology 1967 p
454-460
VOGELIN Eric The Philosophy of Existence Platos Gorgias The Review of Politics 11 4
1949 p 477-498
WARDY R Birth of Rhetoric London Routledge 1998
WARNECK P A Descent of Socrates self-knowledge and cryptic nature in the
Platonic dialogues Indiana Indiana University Press 2005
WILLIAMS B A O Shame and Necessity Berkeley University of California Press
1994
WINKELMAN M Shamanism Sta Barbara Praeger 2010
Dicionaacuterios
BAILLY Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 2000
CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris Klincksieck
1999
LIDDELL G H SCOTT R Greek-English Lexicon Oxford Oxford University Press
1997
Instrumentos de Pesquisa
LEXICON I Plato ed Roberto Radice Ilaria Ramelli Emmanuele Vimercati Electronic
ed Roberto Bombacigno Milano Biblia 2003
DAPHNET Digital Archives of Philosophical texts on the NET Disponiacutevel em
httpwwwdaphnetorgindex_frhtml
v
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que acima da Necessidade alccedilaram a escolha
Agravequeles para os quais a amizade e o bem estatildeo acima da retribuiccedilatildeo
Agravequeles para os quais os afetos constituem a uacutenica natureza invenciacutevel da alma que
resiste ao esquecimento e agrave morte
Agravequeles que satildeo myacutestai pela simplicidade da accedilatildeo virtuosa que natildeo exige compensaccedilatildeo
mas que compensam toda incerteza inerente agrave vida mediante a convicccedilatildeo de que todo risco
eacute belo se for tambeacutem uma doaccedilatildeo
Agravequeles que se fizeram meus credores e cuja paga seraacute aquilatada pelo melhor a ser feito
em prol da alteridade
Agrave Soraya para quem o amor eacute princiacutepio da vida e do mundo que estaacute muito acima da
inteligibilidade e da razatildeo
Ao Marcelo Marques para quem o fim e o princiacutepio satildeo o mesmo para quem as
imagens identificam-se com Elpiacutes pois enquanto houver imagem haveraacute tambeacutem
possibilidade de superaccedilatildeo e enquanto houver o filosofar haveraacute o ciclo coacutesmico do
recomeccedilo
Ao tio Rubens Garcia Nunes modelo e fonte eterna de significaccedilatildeo
Agraves filhas Mariela e Marina depositaacuterias do eacutethos a viajar rumo ao oceano do belo
vi
Agrave toda a minha famiacutelia cujo amor supera qualquer meacuterito
Ao Programa de Poacutes da UFMG pela participaccedilatildeo da excelecircncia teacutecnica na
humanidade
Aos examinadores Adriano Roberto Fernando e Antocircnio pela mostra de que a vida
sem exame natildeo eacute digna de ser vivida
vii
Tive medo Sabe Tudo foi isso tive medo Enxerguei os confins do rio do outro lado Longe longe com que prazo se ir ateacute laacute Medo e vergonha A aguagem bruta traiccediloeira ndash o rio eacute cheio de baques modos moles de esfrio e uns sussurros de desamparo () Um fato assim eacute honra Ou eacute vergonha
Joatildeo Guimaratildees Rosa Grande Sertatildeo Veredas
viii
SUMAacuteRIO
0 INTRODUCcedilAtildeO5
1 MITOS E CAUSAS ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero 21
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade 21
12 Causalidade e Poder 25
13 Causalidade e Reciprocidade 32
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu 37
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de
Derveni 44
2 O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutecnicas aidōs e diacutekē61
3 RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS92
31 Eros e Loacutegos92
32 Vida e ḗthos98
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade109
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea122
35 A Retoacuterica da alma134
36 Julgamento e nudez149
4 NECESSIDADE E ESCOLHA 154
41 Imagens e causas no mito de Er154
42 Mito e psykhḗ159
43 Er o decreto de Laacutequesis162
5 BIBLIOGRAFIA174
1
Resumo
A partir do emprego do estruturalismo alematildeo de Walter Burkert pretendo destacar nesta
investigaccedilatildeo as relaccedilotildees estruturais entre as imagens do mito de julgamento do Goacutergias e
aplicaacute-las a um passo do mito de Er da Repuacuteblica Segundo Burkert (2001b) mito eacute um
programa ou sequecircncia de accedilotildees com uma estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza
pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal Aprofundando a
definiccedilatildeo burkertiana de mito proponho que as accedilotildees implicam imagens psiacutequicas
imbuiacutedas de afetos ndash vergonha audaacutecia e ardor satildeo os afetos eroacuteticos mediante que a
dialeacutetica socraacutetica choca-se ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo
tempo o mais violento e o mais brilhante dos interlocutores que travam combate com
Soacutecrates Caacutelicles
Devo esclarecer que toda a interpretaccedilatildeo elaborada neste artigo parte do pressuposto de que o
mito eacute pensar por imagens e que imagens mentais precedem a linguagem No mito de
Prometeu a linguagem eacute posterior ao fogo teacutecnico que consolida o sacrifiacutecio como o rito
adequado para a interaccedilatildeo entre as instacircncias divina e humana e a emergecircncia ritualiacutestica dos
esquemas mentais que compotildeem a inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da
multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo
projetiva inteligente a escolha de meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado Por
extensatildeo pode-se dizer que os ritos satildeo anteriores agrave linguagem e que imagens e ritos natildeo a
linguagem satildeo os fundamentos do pensar
Por fim um olhar atento ao termo parrhēsiacutea que inicialmente aparece como a fala aberta
que revela o pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor no Goacutergias eacute mencionado
na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates alude ao livre curso dos apetites de Caacutelicles (que
engendram a violecircncia do seu loacutegos) e agrave qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo
2
dialeacutetica pode chegar a bom termo A franqueza (parrhēsiacutea) eacute a garantia pela qual
interlocutor assente a uma tese expressa e tambeacutem um indicativo de que uma certa
ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio para o loacutegos O discurso sem peias
reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos neste princiacutepio de movimento e
inteligecircncia que eacute a psykheacute
Palavras-chave Goacutergias Repuacuteblica estrutura mito
3
Abstract
Based on approach of Water Burkert German structuralism in this issue I intend to point
out the structural relations between the images of the judgment myth in Plato‟s Gorgias and
apply them in Er myth of Republic
According to Burkert (2001b) myth is a program or a sequence of actions in a clear
distinguished structure characterized by exemplarity of the mythical model and the
timeless applicability Going further on Burkert definition of myth I put forward that the
actions imply psychic images filled with feelings ndash audacity and ardor are erotic feelings
through which the Socratic dialectics strikes against the rhetoric of that who became at the
same time the most violent and the cleverest interlocutor to antagonize Socrates Callicles
In addition I must say that the whole interpretation presented here assumes that myth is
thinking by images and mental images come before language In Prometheus myth language
comes after the technical fire that stabilizes the sacrifice as the right rite for the interplay of
divine and human instances and the ritual emergency of mental scheme that compound the
causal intelligence that organizes experience and multiplicity the infallible connection between
two consecutive events in time the intelligent projective deliberation the choice of efficient
means aiming a specific useful objective In other words it can be said that rites come before
language and that not language but images and rites give the bases to thoughts In conclusion
staring at the expression parrhēsiacutea ndash which first appears as an open speech that reveals the
thought and the true beliefs of its speaker ndash in Gorgias the word points out the ironic
ambiguity with which Socrates refers to the Callicles free course of desires (which
engender his loacutegos violence) and the psychic quality by which the dialectic investigation
can come to an end Sincerity (parrhēsiacutea) is the guarantee by which a speaker agrees to an
expressed thesis and also a sign that a certain psychic organization transfers its peculiar
4
movement to the logos The unchained speech imitates the scheme which intertwines the
feelings in the beginning of the movement and the intelligence which psykheacute is
Keyword Gorgias Republic structure myth
5
Introduccedilatildeo
O escopo desta pesquisa eacute desenvolver a partir do movimento proacuteprio do Goacutergias a
adequaccedilatildeo de um meacutetodo que desvele a estrutura interna do grandes mito de julgamento
que culmina o diaacutelogo de sorte a compreender sua funccedilatildeo suas regularidades seus
esquemas invariantes e as correspondecircncias entre as imagens miacuteticas e as concepccedilotildees
filosoacuteficas sustentadas na dramatizaccedilatildeo Para tanto adota-se os resultados da tese
ingressiva de Charles Kahn como fundamento para a abordagem comparativa de diaacutelogos
que historicamente satildeo situados em periacuteodos diversos
O enfoque sinoacutetico por sua vez possibilita a adoccedilatildeo da assunccedilatildeo estrateacutegica de que
o desenvolvimento do meacutetodo se faccedila a partir da comparaccedilatildeo do movimento interno das
imagens do mito de julgamento e simultaneamente possibilite uma compreensatildeo fecunda
dessas imagens a partir da aplicaccedilatildeo do meacutetodo Ademais visa-se examinar o influxo que o
pano de fundo composto pela tradiccedilatildeo cultual dos misteacuterios gregos a tradiccedilatildeo pitagoacuterica e a
filosofia cosmoloacutegica anterior a Platatildeo exerceram nos mitos de julgamento e sobretudo a
transposiccedilatildeo filosoacutefica empreendida por Platatildeo em relaccedilatildeo a essa forja mental no
movimento dos mitos finais do Goacutergias Como anexo esboccedila-se uma extensatildeo desse
bricolage interpretativo a um passo do mito de Er (Repuacuteblica X 614b-621d)
Adoto o pressuposto de que o mito filosoacutefico platocircnico eacute um ldquopensar por imagensrdquo
que se expressa numa sequecircncia de accedilotildees Enquanto narrativa o mito eacute um fenocircmeno
linguiacutestico que natildeo possui referentes imediatos atestaacuteveis Natildeo haacute um isomorfismo entre a
narrativa e uma realidade diretamente verificaacutevel Uma narrativa natildeo eacute uma ldquoacumulaccedilatildeordquo
de sentenccedilas pontuais mas eacute uma sequecircncia no tempo (BURKERT 1979 3 ss) Mas a
6
sequecircncia temporal miacutetica natildeo eacute homoacuteloga ao tempo cronoloacutegico eacute uma sequecircncia
temporal que possui uma homologia estrutural com uma sequecircncia de significaccedilatildeo causal
A sequecircncia de imagens torna manifestas relaccedilotildees entre registros de realidade
distintos atraveacutes da necessidade de uma conexatildeo interna A linearidade e a
transmissibilidade de um complexo de relaccedilotildees e conexotildees causais homologaacuteveis
constituem o cerne da narrativa miacutetica Tais elementos exigem o suporte linguumliacutestico mas
embora Burkert consigne o mito ao domiacutenio da linguagem nos mitos filosoacuteficos a
linguagem eacute somente instrumental e natildeo eacute o fundamento uacuteltimo de significaccedilatildeo
As metaacuteforas imageacuteticas de um mito filosoacutefico por princiacutepio possuem uma
polissemia inexauriacutevel pela simples razatildeo de que seu referencial uacuteltimo eacute o pensamento ou
mais propriamente o psiquismo Natildeo se trata se identificar na psykheacute o princiacutepio do
inteligiacutevel mas de se pensar a inteligibilidade cosmoloacutegica inextricavelmente do modo
como o pensamento e os afetos apreendem o inteligiacutevel e o recompotildeem na accedilatildeo demiuacutergica
da molda das imagens e do discurso Inteligecircncia afetiva imagens pensamentos e os loacutegoi
conjugam-se necessariamente na ldquocaccedila ao realrdquo
Como se pode depreender do mito do Protaacutegoras o pensamento loacutegico
discriminador a inteligecircncia teacutecnica a linguagem e a matemaacutetica o engenho humano e as
teacutecnicas discursivas todos emanados do fogo teacutecnico satildeo ontologicamente posteriores aos
ritos aos cultos e agrave fabricaccedilatildeo de imagens dos deuses Isso implica que ndash a menos que se
considerem todos os mitos e toda forma de metaacutefora empregada no corpus platocircnico como
palavroacuterio sem sentido ndash a linguagem natildeo eacute e natildeo pode ser o fundamento uacuteltimo da
realidade O pensamento as imagens e os afetos satildeo intrinsecamente misturados agrave praacutexis
ao biacuteos agrave proacutepria vida que simultaneamente brota e interfere no mundo Os loacutegoi soacute
ganham autonomia mediante o reconhecimento e a alforria do senhorio das imagens
7
No corpus platocircnico os fenocircmenos se exprimem por uma gama de termos como
phainoacutemenon eiacutedōlon eikōn phaacutentasma miacutemēma homoiacuteōma e outras (SEKIMURA
2009 p 22 ss) Mas Platatildeo hierarquiza o estatuto epistecircmico das imagens Haacute uma clara
distinccedilatildeo entre eiacutedōlon eikōn e phaacutentasma Haacute imagens que satildeo determinantes no processo
do conhecimento haacute imagens cujas relaccedilotildees satildeo empobrecidas em relaccedilatildeo o modelo
original e haacute imagens ilusoacuterias que impedem a apreensatildeo da realidade A distinccedilatildeo entre
eiacutedōlon e eikōn eacute brilhantemente exposta por S Saiumld
Se as duas palavras satildeo formadas a partir de uma mesma
raiz bdquowei‟- somente eiacutedōlon por sua origem emerge da esfera do
visiacutevel pois eacute formada sobre um tema bdquoweid‟- que exprime a ideacuteia
de ver (este tema que deu ao latim bdquovideo‟ se encontra em grego
no verbo bdquoidein‟ bdquover‟ e no substantivo eidos que se aplica
inicialmente agrave aparecircncia visiacutevel) O eikōn do mesmo modo que os
verbos eisko ou eikazdo bdquoassimilar‟ ou o adjetivo eikelos
bdquosemelhante‟ se vincula a um tema bdquoweik‟- que indica uma relaccedilatildeo
de adequaccedilatildeo ou de conveniecircncia
(SAID apud SEKIMURA 2009 p 23)
Como nota Sekimura (2009 p 22 ss) o termo eiacutedōlon se forma sobre o mesmo
tema que origina Eidos e Idea designativos da realidade inteligiacutevel e de sua accedilatildeo causal
determinante A relaccedilatildeo entre as imagens e o inteligiacutevel invisiacutevel eacute constitutiva Nesse
sentido como afirma Saiumld existe entre o eiacutedōlon e seu modelo uma identidade de
superfiacutecie e de significante enquanto a relaccedilatildeo entre o eikōn e o que ele representa se
situa no niacutevel da estrutura profunda do significado (id) O eiacutedōlon estaacute para o eikōn assim
como a coacutepia da aparecircncia sensiacutevel estaacute para a transposiccedilatildeo da essecircncia
O eiacutedōlon eacute inerente ao olhar eacute o alvo e o ponto de encontro entre o olhar e a
silhueta que nada informa acerca das determinaccedilotildees do modelo Ele eacute valorizado ou
desvalorizado pela relatividade do olhar e sua manifestaccedilatildeo ao modo das imagens dos
deuses implica simultaneamente a presenccedila e a ausecircncia Sua marca eacute a do
8
empobrecimento e do afastamento do modelo original O eikōn por outro lado carrega em
seu bojo a remissatildeo pluriacutevoca a planos diversos Ele pode ser o ponto de partida para o
conhecimento de relaccedilotildees e determinaccedilotildees sensiacuteveis ou pode remeter agrave realidade inteligiacutevel
No eikōn a inteligecircncia se vale do olhar para ultrapassar a imagem e mediante a
transposiccedilatildeo e a homologaccedilatildeo de suas relaccedilotildees internas ldquosaturar-serdquo gradativamente do
inteligiacutevel e do invisiacutevel no foco das relaccedilotildees somente pensaacuteveis As imagens icocircnicas
constituem o esforccedilo ingloacuterio de pensar filosoficamente o invisiacutevel a morte a alma e os
referenciais imoacuteveis exigidos para a compreensatildeo de um mundo caoacutetico
Por isso a inteligecircncia usa imagens na tentativa de ver o invisiacutevel e operar a
passagem da sensaccedilatildeo para a concepccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que os mitos filosoacuteficos estatildeo na
esfera da crenccedila que possui a pretensatildeo de ser o loacutegos mais verdadeiro suas imagens satildeo
um convite para a inquiriccedilatildeo da significaccedilatildeo profunda subjacente aos fenocircmenos
cambiantes caoacuteticos As imagens miacuteticas convocam a inteligecircncia e o olhar a jamais se
fixarem naquilo que eacute visto e manifesto e ascenderem em direccedilatildeo ao invisiacutevel ao
inteligiacutevel ateacute que a luz da lamparina subitamente se acenda pelo movimento psiacutequico
O mito filosoacutefico eacute verdadeiramente um ldquopensar por imagensrdquo e eacute tambeacutem a uacutenica
modalidade de pensar que natildeo se fixa no visiacutevel mas que convoca para a significaccedilatildeo mais
profunda oculta na maior profundeza do oceano do belo
Questotildees de meacutetodo e hermenecircutica
Mas a virtude de cada coisa seja instrumento corpo ou alma
seja qualquer animal vivo natildeo lhe vem por acaso e jaacute eacute
completa eacute o resultado de uma certa ordem de retidatildeo e da
arte adaptada agrave natureza de cada um Logo eacute pela ordem e
regramento que a virtude de cada coisa existe
Goacutergias 506 d5-e2
Desejando a divindade que tudo fosse bom e tanto quanto
possiacutevel estreme de defeitos tomou o conjunto das coisas
9
visiacuteveis ndash nunca em repouso mas movimentando-se discordante
e desordenadamente ndash e fecirc-lo passar da desordem para a
ordem por estar convencido de que esta em tudo eacute superior
agravequela
Timeu 30a
A composiccedilatildeo dramaacutetica do Goacutergias anuncia uma guerra e uma batalha (poacutelemos
kai maacutekhe) na qual Platatildeo iria se engajar ateacute a morte a defesa do gecircnero de vida filosoacutefico
No Goacutergias estatildeo mapeados e demarcados de maneira incipiente os principais temas que
compotildeem a Filosofia platocircnica Segundo Olimpiodoro o objetivo do diaacutelogo seria ldquofalar
sobre princiacutepios eacuteticos que levam ao bem-estar constitucionalrdquo (1998 p 57 04) Todo o
ardor que anima Soacutecrates (457e) na sua defesa apaixonada de um modo peculiar de vida
tem como alvo falar sobre a organizaccedilatildeo constitucional e sua correlaccedilatildeo com os valores
eacuteticos determinantes para o gecircnero de vida A questatildeo dos valores eacuteticos remonta em
uacuteltima instacircncia agrave oposiccedilatildeo fundamental entre o regramento e o desregramento o
regramento dos afetos corresponde ao regramento do mundo que por isso eacute chamado
kosmos (Goacutergias 507e ndash 508b) Natildeo pode existir nenhuma comunhatildeo ou associaccedilatildeo
humana sem regras assim como nada existe no kosmos que natildeo tenha regras Todo o
mundo eacute de fato um espetaacuteculo de geometria e proporccedilatildeo geomeacutetrica (Goacutergias 508a)
A questatildeo de um regramento matemaacutetico que perpassa o koacutesmos juntamente com os
mitos de julgamento suscita uma gama de questotildees natildeo respondidas
Por que Platatildeo um filoacutesofo que atribui um valor sublime agraves matemaacuteticas e assimila
o raciociacutenio puro ao divino (Feacutedon 84 a-b) culmina grandes diaacutelogos que concentram o
cerne de sua Filosofia com grandes mitos de julgamento Por que esse criacutetico mordaz da
poesia e dos mitos tradicionais recorre a um acervo de tradiccedilotildees miacutesticas e inventa seus
proacuteprios mitos A questatildeo da elucidaccedilatildeo do papel dos mitos na composiccedilatildeo complexa de
trecircs dos maiores diaacutelogos platocircnicos estaacute contida no acircmbito mais geral do problema
10
interpretativo que exige a superaccedilatildeo da distacircncia entre o que Platatildeo escreve em passagens
especiacuteficas e as concepccedilotildees maiores que atravessam a inteireza dos diaacutelogos Somente um
tratamento comparativo-sinoacutetico e o refazimento do movimento proacuteprio de cada diaacutelogo
permitem a distinccedilatildeo e a soluccedilatildeo do problema da relevacircncia dos mitos O postulado de que
o problema da interpretaccedilatildeo de um texto de Platatildeo exige a elucidaccedilatildeo de seu significado a
partir da comparaccedilatildeo de textos datados em periacuteodos distintos define o posicionamento de
ataque estrateacutegico ao problema da relevacircncia dos mitos e da possibilidade da conquista da
significaccedilatildeo (KAHN 1998 p 58 ss)
Por que Platatildeo se vale de imagens aparentemente desprovidas de regras e estranhas
agrave consecuccedilatildeo de proposiccedilotildees que se implicam mutuamente para expor suas principais
concepccedilotildees filosoacuteficas Qual o melhor meacutetodo para uma interpretaccedilatildeo fecunda desses
mitos O problema da relevacircncia abre o campo para o enfrentamento do estabelecimento
dos traccedilos constitutivos da composiccedilatildeo e distinccedilotildees especiacuteficas dos grandes mitos dos seus
efeitos e de um meacutetodo eficaz que sirva como arma que capture o sentido Se os grandes
mitos supotildeem regras em sua composiccedilatildeo e essas regras natildeo possuem referentes fora da
psykheacute entatildeo essas regras representam a determinaccedilatildeo profunda do psiquismo A riqueza
das metaacuteforas em Platatildeo instiga a investigaccedilatildeo das homologias estruturais em busca da
explicitaccedilatildeo dessas regras
Por que o filoacutesofo que recria dramaacutetica e imortalmente a refutaccedilatildeo destrutivo-
construtiva da dialeacutetica socraacutetica encena a impotecircncia do loacutegos diante de temas cruciais e eacute
obrigado a recorrer agrave encantaccedilatildeo miacutetica Por que os grandes mitos finais satildeo mitos de
julgamento das almas e da imortalidade Por que eles aparecem no fim dos diaacutelogos A
fundamentaccedilatildeo dos valores exige o emprego simultacircneo de todo o arsenal discursivo O
11
modelo metodoloacutegico permite a distinccedilatildeo de planos conceptuais que fazem a mediaccedilatildeo
entre oposiccedilotildees e uma interpretaccedilatildeo frutiacutefera deve destrinccedilar relaccedilotildees ocultas ou obscuras
Pensar filosoficamente a questatildeo da constituiccedilatildeo eacutetico-poliacutetica implica penetrar o
acircmago da alma e o tempo humano na perspectiva da perenidade e por isso o problema do
sentido emana indissociaacutevel das modalidades de inteligecircncia de um discurso complexo A
complexidade dos diaacutelogos sugere a hipoacutetese heuriacutestica de trataacute-los por inteiro como
grandes mitos Tal abordagem permite a superaccedilatildeo da dicotomia myacutethos-loacutegos e a aplicaccedilatildeo
do princiacutepio que permite o desvelamento auto-referenciado da significaccedilatildeo
Quais satildeo as concepccedilotildees que demarcam a arena comum na qual se desenrolam os
grandes mitos finais e quais satildeo suas implicaccedilotildees para a visatildeo de mundo e para a noccedilatildeo de
racionalidade de Platatildeo O campo no qual se desenrolam as gestas dos grandes mitos eacute
consistente e rigorosamente demarcado no Goacutergias e na Repuacuteblica a mousikecirc No Goacutergias
o domiacutenio da poesia traacutegica eacute determinado pela conjugaccedilatildeo de meacutelos rythmon e meacutetron
(Goacutergias 502c)
A demiurgia poeacutetica designa pois a atividade de fabricar um discurso complexo no
domiacutenio da muacutesica (BRISSON 1994 p 53) Na Repuacuteblica apoacutes o estabelecimento da
influecircncia exercida pelas narrativas miacuteticas sobre os afetos e o psiquismo a melodia
(meacutelos) eacute definida como sendo a composiccedilatildeo de trecircs elementos palavra (loacutegou) harmonia
(harmoniacuteas) e ritmo (rythmou) Haacute uma correlaccedilatildeo determinante entre o eacutethos e o gecircnero de
harmonia (Repuacuteblica 399 a-e) entre a natureza dos afetos e a natureza harmocircnica Mito e
harmonia pertencem ambos agrave esfera da muacutesica e caracterizam-se pela correlaccedilatildeo entre a
natureza de suas determinaccedilotildees e a natureza psiacutequica A natureza da harmonia incita
virtudes especiacuteficas ou afetos viciosos estados mentais e disposiccedilotildees de alma
correspondentes A correspondecircncia entre estados psiacutequicos e teoria musical constitui um
12
legado preacute-platocircnico como demonstra Aldo Brancacci (DIXSAUT 2006 p 89-106) A
grande transposiccedilatildeo operada por Platatildeo consiste no desenvolvimento de uma visatildeo
cosmoloacutegica unificada que abarca a muacutesica e explicita a sua relaccedilatildeo com a natureza da
alma
Mas qual eacute o elemento comum entre a alma e a harmonia A questatildeo da
ldquoharmoniardquo eacute expressamente tributaacuteria da tradiccedilatildeo pitagoacuterica e da concepccedilatildeo cosmoloacutegica
de Heraacuteclito A palavra harmoniacutea eacute aparentada ao termo harmos que designava o
acoplamento de duas liras originalmente tetracordes formando uma uacutenica lira heptacorde
(MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 110) A harmonia que originalmente tinha o
sentido de ldquojuntarrdquo ldquoacoplarrdquo passou a significar ldquoacordordquo ou ldquoreconciliaccedilatildeordquo Empeacutedocles
emprega harmoniecirc como outro nome para philotecircs a contrapartida para o oacutedio ou discoacuterdia
ndash o princiacutepio de proporccedilatildeo ou acordo que cria uma unidade harmoniosa entre poderes
potencialmente hostis Haacute ademais outro uso figurativo qual seja o de afinaccedilatildeo de um
instrumento musical o ajustamento das diferentes cordas para produzir uma escala
desejada Tanto o sentido musical como o sentido metafoacuterico mais amplo satildeo combinados
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que potecircncias opostas do kosmos satildeo mantidas juntas por um
princiacutepio ou harmonia como ldquoreconciliaccedilatildeordquo que toma a forma de uma oitava musical
(GUTHRIE 1990) (KAHN 2001) Boyanceacute (1993) demonstra com bastante propriedade
o enorme influxo que a concepccedilatildeo pitagoacuterica de ldquoharmoniardquo exerceu em Platatildeo sobretudo
no Timeu e na ldquomuacutesica celestialrdquo mencionada no mito de Er (Repuacuteblica X)
Tributaacuterio de uma longa tradiccedilatildeo de pensamento Platatildeo opera uma reviravolta
unificadora a harmonia musical eacute simultaneamente determinada pelo regramento
matemaacutetico e pela consonacircncia de movimentos complexos A transposiccedilatildeo cultural parte do
acervo de tradiccedilotildees vinculadas ao deus patrono da muacutesica e do regramento Apolo
13
Apolo eacute o deus da muacutesica da profecia e da harmonia A natureza musical de Apolo
representa a voz do mundo oliacutempico harmonia e medida que emergem da tensatildeo dos
contraacuterios Apolo o muacutesico eacute tambeacutem ldquoo deus fundador das regras e o conhecedor do
justo do necessaacuterio e do futurordquo (OTTO 1995 p 112) O viacutenculo entre a natureza musical
regramento e harmonia eacute estabelecido de modo inequiacutevoco no Craacutetilo Mas a grande
reviravolta empreendida por Platatildeo consiste na ampliaccedilatildeo desse viacutenculo para a esfera do
psiquismo mediante a noccedilatildeo de movimento
A etimologia do nome Apolo indica o ldquomovimento conjunto tanto no ceacuteu a que
damos o nome poacutelo como na harmonia do canto denominada sinfonia porque todos esses
movimentos como dizem os entendidos em Muacutesica e Astronomia satildeo feitos em conjunto
por uma espeacutecie de harmonia Eacute o deus que preside agrave harmonia e faz que tudo se mova
conjuntamente (omopolocircn) tanto entre os deuses como entre os homensrdquo (Craacutetilo 405 c-d)
No Timeu a consonacircncia de movimentos dissemelhantes eacute identificada com a harmonia
divina (Timeu 80 a-b) A harmonia cosmoloacutegica se expressa pelo regramento geomeacutetrico
que determina e unifica todos os seres num todo orgacircnico (Timeu 31d-32a) A psykheacute por
outro lado eacute ao mesmo tempo princiacutepio de movimento e princiacutepio da vida pois a ldquocessaccedilatildeo
do movimento corresponde ao fim da existecircnciardquo (Fedro 245 c) A existecircncia de todo o
koacutesmos deriva do movimento e todo o movimento proveacutem do princiacutepio (245d) Como a
ordem pressupotildee a inteligecircncia e a inteligecircncia pressupotildee a alma haacute uma correspondecircncia
pluriacutevoca e uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a proporccedilatildeo geomeacutetrica a harmonia musical a
harmonia dos movimentos e a harmonia psiacutequica (Timeu 30 a-d) Os movimentos sonoros
possuem por conseguinte ressonacircncias simultaneamente fiacutesicas e psiacutequicas (Timeu 67a)
que afetam o caraacuteter (MOUTSOPOULOS in DIXSAUT 2006 p 107-120) Tais
14
correspondecircncias no entanto natildeo explicam as causas para a existecircncia de todos os seres no
palco de contradiccedilotildees que eacute o devir Quais satildeo essas causas
Platatildeo natildeo reelabora a tradiccedilatildeo na sua explicaccedilatildeo causal de mundo e inaugura um
procedimento jamais utilizado na histoacuteria do pensamento o modelo hipoteacutetico das Formas
A hipoacutetese das Formas provecirc ao mesmo tempo as razotildees que fazem com que cada
ser seja precisamente o que eacute e natildeo outra coisa as razotildees que explicam a predicaccedilatildeo e as
diferenccedilas especiacuteficas relativas as razotildees que elucidam as interaccedilotildees fiacutesicas envolvidas na
geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo uma norma absoluta que sirva de paracircmetro para as accedilotildees praacuteticas e
possibilite uma concepccedilatildeo poliacutetica cosmoloacutegica e geograacutefica que corresponde
estruturalmente a um psiquismo complexo Como afirma Cherniss (PRADEAU 2001) e
posteriormente Luc Brisson do mesmo modo que Eudemo fazia a hipoacutetese de um nuacutemero
determinado de movimentos regulares para explicar os movimentos irregulares dos
planetas Platatildeo para ldquodar conta da mudanccedila eterna e contraditoacuteria do mundo sensiacutevelrdquo
(BRISSON 1998 p 112) elaborou a hipoacutetese das Formas (Feacutedon 94d-100a) A estrutura
complexa do mundo compotildee um palco de contradiccedilotildees que abarca as accedilotildees praacuteticas e a
constituiccedilatildeo poliacutetica da cidade Ao contraacuterio dos filoacutesofos da natureza que partiam dos
fenocircmenos e buscavam princiacutepios explicativos materiais irredutiacuteveis Platatildeo empreende
uma inversatildeo epistemoloacutegica uma ldquosegunda navegaccedilatildeordquo (99e) e postula princiacutepios de
inteligibilidade que regram as contradiccedilotildees fiacutesicas e eacutetico-poliacuteticas
A causalidade constitui ao mesmo tempo o princiacutepio explicativo para a esfera
eacutetico-poliacutetica para os caracteres e valores psiacutequicos e para a physis (Feacutedon 98c-99b) (Leis
X 891e) (Filebo 27b) (Timeu 29d 44c-46e) A causalidade platocircnica eacute posta como
sucessatildeo temporal invariaacutevel na qual um efeito segue forccedilosamente uma causa e como
uma relaccedilatildeo de dependecircncia paradigmaacutetica na qual algo vem a ser a partir de um princiacutepio
15
ou modelo (BRISSON 2001 p 15-17) As explicaccedilotildees de mundo dos filoacutesofos da natureza
procuravam explicar a geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo de todos os seres a partir de elementos materiais
do proacuteprio plano da physis Tais explicaccedilotildees eram contraditoacuterias visto que violavam trecircs
princiacutepios basilares da causalidade o de que uma causa natildeo pode ter dois efeitos contraacuterios
(Feacutedon 96d 101a-b) o de que um efeito natildeo pode resultar de duas causas contraacuterias
(Feacutedon 96e-97b) e o de que algo natildeo pode ser causa do seu contraacuterio (101b) (FISCHER
2002 p 659) Uma explicaccedilatildeo racional de mundo pressupotildee uma instacircncia absoluta
separada do plano dos fenocircmenos e que sirva de referencial absoluto a partir do qual as
interaccedilotildees da physis satildeo reportadas
O esforccedilo da fundamentaccedilatildeo dos valores eacutetico-poliacuteticos leva Platatildeo a buscar essa
instacircncia normativa que sirva de medida e referencial absoluto para as accedilotildees praacuteticas Para
que os valores sejam reportados a um uacutenico paradigma normativo a sua temporalidade
deve ser superada mediante o recurso a uma epistemologia que lhes confira determinaccedilotildees
invariaacuteveis Tal epistemologia por sua vez engendra uma psicologia ad hoc como
fundamento para a praacutetica poliacutetica Todos estes planos encontram significaccedilatildeo num plano
cosmoloacutegico mais elevado cuja fundamentaccedilatildeo uacuteltima eacute a hipoacutetese causal das Formas
O grande mito de julgamento no Goacutergias anuncia o projeto da visatildeo cosmoloacutegica
unificada visada por Platatildeo Ele constitui um modo de inteligibilidade autocircnomo cuja
significaccedilatildeo soacute eacute passiacutevel de ser encontrada numa visatildeo da totalidade
A justificativa primacial da pesquisa eacute o fato de que uma exegese do mito de
julgamento do Goacutergias segundo um meacutetodo estrutural buerkertiano natildeo foi empreendida
Solidaacuterios de uma certa concepccedilatildeo de racionalidade segundo a qual a verdade eacute uniacutevoca e
soacute passiacutevel de ser obtida mediante raciociacutenios que seguem o modelo das demonstraccedilotildees
matemaacuteticas a maioria dos eruditos contemporacircneos identifica os mitos com um
16
pensamento primitivo e preacute-filosoacutefico susceptiacutevel de ser ultrapassado por uma razatildeo
esclarecida (OTTO 1987) A noccedilatildeo cartesiana de uma verdade cientiacutefica uacutenica reduz a
racionalidade aos argumentos demonstrativos ou agraves formas de raciociacutenio matemaacutetico A
ampliaccedilatildeo da noccedilatildeo de racionalidade para a esfera das imagens e formas afetivas de
inteligibilidade suscita a validade e o uso de formas discursivas complexas que abrangem
todo o espectro do psiquismo raciociacutenios imagens e afetos Tal noccedilatildeo ampliada de
racionalidade aliada ao desenvolvimento de um modelo teoacuterico consistente resulta num
enriquecimento original para a investigaccedilatildeo do pensamento platocircnico
Embora os uacuteltimos anos do seacuteculo passado e os primeiros anos deste seacuteculo
evidenciem uma retomada do interesse dos platonistas pelos mitos1 as questotildees acerca da
interpretaccedilatildeo dos grandes mitos finais natildeo foram suficientemente respondidas e
certamente natildeo foram tratadas num uacutenico modelo teoacuterico consistente2 A proacutepria gama das
perguntas natildeo respondidas justifica o esforccedilo pela forja desse modelo teoacuterico
ndash Consideraccedilotildees metodoloacutegicas
Como engenhar os instrumentos para tal modelo Felizmente os ensaios de anaacutelise
estrutural de Vernant (1990) e Burkert (1997) fornecem o martelo e a bigorna que
permitiratildeo a molda das noccedilotildees essenciais da Filosofia contida nos mitos platocircnicos Molda
esta que natildeo obstante a dureza da tecircmpera soacute seraacute possiacutevel na altiacutessima fornalha da longa
tradiccedilatildeo dos cultos de misteacuterio gregos
A abordagem de um texto antigo constitui um si mesma um trabalho de Siacutesifo que
pressupotildee a cada vez que eacute retomado modalidades do pensar que satildeo condicionadas pela
1 Dentre outros destacamos Ward White Brisson Dixsaut Vernant Matteacutei Joly Desclos e Annas 2 A anaacutelise de Ward (2002) abarca parcialmente as questotildees levantadas mas sua abordagem fortemente
alegoacuterica eacute ldquofechadardquo e embora constitua um notaacutevel avanccedilo natildeo configura um meacutetodo aplicaacutevel que possa
ser validado ou invalidado A abordagem de Brisson (1994) por outro lado empreende uma generalizaccedilatildeo de
uma teoria contemporacircnea da comunicaccedilatildeo e perde excessivamente a especificidade do movimento dialoacutegico
17
paideacuteia e especificidade histoacuterica A tarefa do historiador de Filosofia e do cientista em
geral eacute um constructum em aberto indefinidamente Mas tal abordagem pode ser
metodologicamente justificada Como conciliar um modelo teoacuterico contemporacircneo
construiacutedo mediante os oacuteculos da etnologia com um texto grego antigo Tal empresa natildeo
atenta contra as boas recomendaccedilotildees de uma abordagem filoloacutegico-doxograacutefica A boa
regra de meacutetodo doxograacutefico (ROSSETI 2006 p 274) natildeo preceitua que as teses
efetivamente sustentadas por um autor sejam coerente e validamente atestadas pelas fontes
Em primeiro lugar deve-se atentar que Leacutevi-Strauss explicitamente reconhece que
seu empreendimento teoacuterico se aproxima de um ldquokantismo sem sujeito transcendentalrdquo
(LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 18) Cada mito tomado em particular afirma Leacutevi-Strauss
ldquoexiste como aplicaccedilatildeo restrita de um esquema que as relaccedilotildees de inteligibilidade reciacuteproca
percebidas entre vaacuterios mitos ajudam progressivamente a extrairrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004
p 32) Por essa razatildeo ldquoos esquemas miacuteticos de pensamento apresentam no mais alto grau o
caraacuteter de objetos absolutosrdquo
O caraacuteter auto-referenciado permite com que as cadeias linguumliacutesticas se desprendam
dos mitos e caiam como as escaras dos olhos de um cego deixando-os livres das anaacutelises
filoloacutegicas e reste somente a estrutura Embora pertenccedila agrave ordem do discurso o mito para
expressar-se ldquopode descolar-se de seu suporte linguumliacutestico ao qual a histoacuteria que narra estaacute
menos intimamente ligada do que seria o caso em mensagens comunsrdquo (LEacuteVI-STRAUSS
2004 p 8)
Mas ainda que os esquemas miacuteticos de pensamento reflitam um modo de pensar
autocircnomo o ldquopensar por imagensrdquo cuja estrutura inteligiacutevel eacute indiferente agrave ldquoidentidade do
mensageiro ocasionalrdquo como operar a transformaccedilatildeo de coordenadas ou uma transposiccedilatildeo
estrutural vaacutelida do modelo de Leacutevi-Strauss para os mitos de julgamento platocircnicos Qual eacute
18
o elemento comum que permite a passagem que cobre o profundo fosso cultural entre dois
mundos tatildeo separados o de um pensador contemporacircneo e o de um filoacutesofo grego Tais
esquemas de pensamento seriam indiferentes ao tempo
Haacute uma instacircncia estritamente homoacuteloga ao mito cuja estrutura tanto para Leacutevi-
Strauss como para Platatildeo transcende ao tempo cronoloacutegico e permite uma experiecircncia e
uma inteligecircncia da totalidade a muacutesica Mito e muacutesica possuem e congregam as mesmas
funccedilotildees ndash ldquofunccedilatildeo intelectual e tambeacutem emotivardquo ndash (LEacuteVI-STRAUSS 2000 p 69) que
suscitam uma experiecircncia da totalidade e por essa razatildeo podem ser lidos por um
procedimento anaacutelogo tal como numa partitura musical o significado baacutesico de um mito
natildeo estaacute numa sequumlecircncia de acontecimentos mas como afirma Burkert a um grupo de
accedilotildees que podem ocorrer em momentos diferentes do tempo cronoloacutegico Mito e muacutesica
comportam uma dimensatildeo temporal proacutepria que inflige um desmentido ao tempo
cronoloacutegico ambos satildeo ldquomaquinas de suprimir o tempordquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 35)
Por isso o mito supera ldquoa antinomia de um tempo histoacuterico e findo e de uma estrutura
permanenterdquo
A leitura de uma partitura exige que se procure entender a paacutegina inteira pois o
significado da primeira frase musical escrita soacute pode ser obtido com a consideraccedilatildeo de que
o sentido das frases precedentes estaacute incluiacutedo nas frases subsequumlentes Temos de ler
simultaneamente da esquerda para a direita e de cima para baixo Soacute ldquoconsiderando o mito
como se fosse uma partitura orquestral escrita frase por frase eacute que o poderemos entender
como uma totalidade e extrair o seu significadordquo (op cit p 68) Os grandes estilos
musicais modernos dos seacuteculos XVII a XIX segundo Leacutevi-Strauss assumiram as funccedilotildees
que desempenhava a mousikeacute dos antigos mas a despeito dos rearranjos culturais ambos ndash
mito e muacutesica ndash ldquotranscendem a oposiccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel colocando-se
19
imediatamente no niacutevel dos signosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 2004 p 33) Tanto Leacutevi-Strauss
como Platatildeo usam o mito para operar a mediaccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel Os
grandes mitos de julgamento compotildeem efetivamente um mosaico de oposiccedilotildees que
remetem para a mediaccedilatildeo entre o devir e aquilo que eacute somente pensaacutevel Eis a ponte que
supera o abismo entre dois mundos separados ao mesmo tempo pela racionalidade loacutegica e
pela distacircncia cultural das eacutepocas
Na sua anaacutelise dos mitos indiacutegenas da costa canadense Leacutevis-Strauss distingue e
compara quatro ldquoniacuteveisrdquo determinantes e independentes do tempo cronoloacutegico geograacutefico
teacutecnico-econocircmico socioloacutegico e cosmoloacutegico (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 164) Enquanto
os dois primeiros niacuteveis encontram referentes bem definidos o terceiro entremeia
elementos atestaacuteveis com elementos somente pensaacuteveis e o quarto compotildee-se de imagens e
elementos somente pensaacuteveis A anaacutelise do mito da ldquogesta de Asdiwalrdquo revela que os trecircs
primeiros eixos sincrocircnicos relacionam-se com a praacutexis poliacutetica teacutecnica e social dos iacutendios
Tsimshiam ao passo que o quarto eixo consiste na configuraccedilatildeo de imagens que possuem a
funccedilatildeo heuriacutestica e explicativa de conferir significaccedilatildeo a fenocircmenos cujas causas satildeo
inevidentes Todos os quatro niacuteveis satildeo demarcados por pares de oposiccedilotildees que
representam ldquouma seacuterie de mediaccedilotildees impossiacuteveis entre oposiccedilotildees organizadas em ordem
decrescenterdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993 p 167)
A construccedilatildeo dos mitos pressupotildee a distinccedilatildeo fundamental entre sequumlecircncias e
esquemas As sequumlecircncias constituem a linearidade da trama que expressa o conteuacutedo
aparente dos mitos as sequumlecircncias de accedilotildees que ocorrem na ordem cronoloacutegica do tempo o
um apoacutes o outro dos eventos que identifica-se com o proacuteprio tempo cronoloacutegico
Sequumlecircncias satildeo congruentes com a sucessatildeo temporal e constituem a silhueta do
tempo Esquemas por outro lado independem do tempo e organizam as sequumlecircncias em
20
planos de profundidade variaacutevel superpostos e sincrocircnicos de modo a cingir fenocircmenos
aparentemente desconexos numa causalidade inevidente Tal como um canto gregoriano o
mito ldquoestaacute preso a um duplo determinismo determinismo horizontal de sua proacutepria linha
meloacutedica e determinismo vertical dos esquemas em contrapontordquo (LEacuteVI-STRAUSS 1993
p 169)
Em Platatildeo os mitos de julgamento revelam a partir do problema da fundamentaccedilatildeo
dos valores quatro grandes eixos sincrocircnicos invariantes eacutetico-poliacutetico epistemoloacutegico
psicoloacutegico e cosmoloacutegico A determinaccedilatildeo dos traccedilos constitutivos desses eixos eacute feita por
pares de oposiccedilotildees insuperaacuteveis que exige a busca de significaccedilatildeo nos planos subsequumlentes
A ressonacircncia direta com a praacutexis eacutetico-poliacutetica enfraquece agrave medida em que a procura por
causas explicativas para as contradiccedilotildees insuperaacuteveis avanccedila em direccedilatildeo ao plano
cosmoloacutegico-causal A anaacutelise dessas oposiccedilotildees revela uma consistecircncia surpreendente nas
grandes narrativas de julgamento como modo de inteligibilidade proacutepria A aplicaccedilatildeo do
meacutetodo estrutural empregado por Walter Burkert aos mitos platocircnicos evidencia que os
grandes mitos de julgamento representam um esforccedilo atemporal na procura da causalidade
unificadora que confere sentido para as contradiccedilotildees do palco do devir
Em Platatildeo todos os mitos de julgamento convergem numa colossal teoria da
causalidade
21
I Mitos e Causas ndash excertos de imagens causais em Hesiacuteodo e Homero3
11 Retribuiccedilatildeo e Causalidade
O pai com o apelido de Titatildes apelidou-os
o grande Ceacuteu vituperando filhos que gerou
dizia terem feito na altiva estultiacutecia gratilde obra
de que castigo teriam no porvir
Hesiacuteodo Teogonia vs 207-2104
A Iliacuteada o poema mais antigo da literatura ocidental inicia-se com a narrativa de
uma peste Crises sacerdote de Apolo fora ultrajado pela recusa de Agamecircnon em
resgatar-lhe a filha raptada
Que Deus posto entre ambos provocou a rixa
O filho de Latona e Zeus Irou-o o rei
A peste entatildeo lavrou no exeacutercito ruiacutena
Cai sobre o povo A Crises ultrajara o Atreide
Ao sacerdote o qual viera ateacute as naus
velozes dos Aqueus remir com dons a filha
nas matildeos portando os nastros do certeiro Apolo
presos ao cetro de ouro e a todos implorava ()
Iliacuteada I vs 8-15
Diante da cataacutestrofe Aquiles recorre a um mediador o adivinho Calcas para
responder agrave questatildeo por que o deus estaacute tatildeo irado A calamidade suscita a questatildeo de se
saber a causa Segue-se entatildeo uma sequecircncia de eventos que configuram pela primeira
vez na poesia grega um ritual que envolve adivinhaccedilatildeo purificaccedilatildeo sacrifiacutecio preces e
danccedila Essa sequecircncia como demonstra Walter Burkert (2001 p 103 ss) transcende as
3 Emprego o pressuposto metodoloacutegico de que um mito eacute um programa ou sequumlecircncia de accedilotildees com uma
estrutura discerniacutevel definida que se caracteriza pela exemplaridade do tipo miacutetico e pela aplicabilidade atemporal O mito eacute a forma pela qual uma experiecircncia complexa se torna comunicaacutevel Suas personagens
configuram personificaccedilotildees geneacutericas que permitem a aplicaccedilatildeo a situaccedilotildees particulares definidas Esse
caraacuteter geneacuterico das imagens miacuteticas implica a sua atemporalidade aleacutem do fato de que elas satildeo
inverificaacuteveis Para a abordagem preliminar da causalidade a partir dos trechos selecionados emprego
conjuntamente a abordagem estruturalista da Escola de Paris representada por Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne com o estruturalismo alematildeo de Walter Burkert As questotildees de meacutetodo satildeo desenvolvidas no
primeiro capiacutetulo 4 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2003)
22
fronteiras da civilizaccedilatildeo grega e constitui universalia antropoloacutegicos um padratildeo invariaacutevel
de cinco etapas (i) uma experiecircncia catastroacutefica ameaccediladora adveacutem de uma Potestade
divina (ii) a calamidade suscita a questatildeo da busca pela causa ldquopor querdquo (iii) a busca da
causa requer um mediador (iv) um diagnoacutestico eacute feito a causa do mal eacute definida e
localizada pelo estabelecimento da culpa e identificaccedilatildeo do responsaacutevel Conhecer a causa
eacute indicar o responsaacutevel e obter o caminho para a salvaccedilatildeo (v) Atos apropriados de expiaccedilatildeo
satildeo prescritos visando agrave libertaccedilatildeo do mal
Cataacutestrofes e doenccedilas satildeo frequumlentemente vistas como uma inevitaacutevel reaccedilatildeo divina
vinculada a algum tipo de transgressatildeo ou falta original agrave infraccedilatildeo de uma lei ou uma
accedilatildeo imprudente que denota uma afronta ou hyacutebris diante dos deuses A culpa eacute em geral
associada agrave transgressatildeo religiosa ou violaccedilatildeo das medidas humanas A causa do mal eacute
oculta inevidente e o seu estabelecimento requer a mediaccedilatildeo de videntes cujo saber
atemporal pode determinar-lhe a origem A busca por causas inevidentes invisiacuteveis confere
sentido agrave experiecircncia catastroacutefica e permite numa perspectiva abrangente da situaccedilatildeo do
passado e do futuro a praacutetica de accedilotildees que a tornem remediaacutevel A integraccedilatildeo dos sinais
complexos da experiecircncia caoacutetica num uacutenico pano de fundo mental confere-lhe significaccedilatildeo
mediante o estabelecimento do viacutenculo infrangiacutevel entre a falta e a puniccedilatildeo A causalidade
eacute a forma multimilenaacuteria de lidar com a experiecircncia aterradora do mal sem explicaccedilatildeo
mediante o estabelecimento de causas inevidentes A ira de um deus superior eacute a
consequecircncia infaliacutevel e justificada para a transgressatildeo Segundo Burkert (2001 p 125) ldquoo
padratildeo da causalidade da culpa estabelecida por um diagnoacutestico transcendente em
situaccedilotildees de calamidade eacute universal primitivo e tiacutepico da mente humana e do
comportamento humano em geralrdquo e haure seu modelo no ldquocomportamento do animal
apanhado numa armadilha ou perseguido por um predadorrdquo O estabelecimento de uma
23
conexatildeo infaliacutevel que vincula as noccedilotildees de falta consequecircncia e reparaccedilatildeo gera um
contexto de sentido no Koacutesmos A invenccedilatildeo da culpa coincide com a moldagem da
racionalidade que promove uma reconstruccedilatildeo de um universo de sentido para uma
experiecircncia original caoacutetica e catastroacutefica Encontrar a ldquocausardquo (aitiacutea) eacute encontrar o
ldquoresponsaacutevelrdquo (aiacutetios) e determinar a explicaccedilatildeo inevidente para uma situaccedilatildeo aflitiva As
conexotildees infrangiacuteveis entre violaccedilatildeo ndash culpa ndash retribuiccedilatildeo moldam os quadros mentais que
estabeleceratildeo as conexotildees infaliacuteveis entre fato ndash consequecircncia e causa ndash efeito que
caracterizam a reconstruccedilatildeo racional do mundo promovida pela mente humana
Nos primoacuterdios a Natureza eacute um estado de indistinccedilatildeo caoacutetica A diferenciaccedilatildeo soacute
ocorre mediante atos de violecircncia propiciados pela astuacutecia enganosa Por isso como afirma
Galimberti (2006 p 43) ldquofoi a violecircncia da razatildeo que permitiu ao homem subtrair-se
daquela violecircncia maior que eacute a falta de reconhecimento das diferenccedilas pela qual o pai natildeo
eacute reconhecido como pai a matildee como matildee o filho como filho com a consequente oscilaccedilatildeo
dos significados que a razatildeo humana trabalhosamente construiu para se orientar no
mundordquo
Se Gaia eacute a matildee primordial a partir da qual emerge toda diferenciaccedilatildeo a culpa eacute a
matildee miacutetica primordial da causalidade imprescindiacutevel para o desenvolvimento da
concepccedilatildeo racional da teacutecnica
Na Teogonia em particular a situaccedilatildeo aflitiva de aprisionamento experimentada
pelos filhos de Gaia suscita a identificaccedilatildeo do responsaacutevel no desregramento sexual de
Ourano A localizaccedilatildeo da causa da situaccedilatildeo aflitiva ocasiona as medidas apropriadas para a
sua remoccedilatildeo Tais medidas envolvem a escolha de meios que implicam uma inteligecircncia
astuciosa exigida para sobrepujar uma potecircncia divina Gaia forja um instrumento a foice
24
de branco accedilo que possibilita o estratagema doloso e o golpe violento pelos quais Crono
obteacutem a soberania do Koacutesmos
6 Por dentro gemia a Terra prodigiosa
atulhada e urdiu dolosa e maligna arte
Raacutepida criou o gecircnero do grisalho accedilo
forjou grande podatildeo e indicou aos filhos
Disse com ousadia ofendida no coraccedilatildeo
ldquoFilhos meus e do pai estoacutelido se quiserdes
ter-me feacute puniremos o maligno ultraje de vosso
pai pois ele tramou antes obras indignasrdquo
Teogonia 159-166
Essa sequecircncia de eventos estabelece as conexotildees entre a causalidade e a
inteligecircncia astuciosa a ldquoarte dolosardquo ndash doliacuteēn teacutekhnēn ndash concebida por Gaia e o emprego
dos meios apropriados para o sobrepujamento de Ourano que significa em uacuteltima
instacircncia o domiacutenio do Koacutesmos A accedilatildeo violenta de Crono acarreta a imprecaccedilatildeo de
Ourano e a admoestaccedilatildeo de uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel ou ldquocastigo no porvirrdquo (v 210)
O esquema baacutesico pode ser resumido nas seguintes etapas (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem (ii) a situaccedilatildeo problemaacutetica suscita a busca da causa (iii) um mediador
com inteligecircncia astuciosa concebe um estratagema ou arte (teacutekhnē) fraudulenta (iv) os
meios apropriados satildeo escolhidos forjados e empregados oportunamente com violecircncia
para a remoccedilatildeo do mal (v) a accedilatildeo violenta suscita por sua vez uma retribuiccedilatildeo infaliacutevel
como consequecircncia Tal esquema eacute constitutivo para a formaccedilatildeo da primitiva inteligecircncia
teacutecnica que visa ao domiacutenio da natureza
A castraccedilatildeo de Ourano implica consequecircncias inevitaacuteveis a liberaccedilatildeo do tempo
linear irreversiacutevel a gecircnese a partir de princiacutepios opostos complementares e distintos As
gotas de sangue espargidas sobre Gaia datildeo origem agraves Potecircncias que presidem a vinganccedila a
violecircncia as guerras e provas de forccedila as Eriacutenias os Gigantes e Meliacuteades O oacutergatildeo sexual
de Crono atirado ao mar com seu esperma origina a espuma (aphroacutes) que daacute nascimento a
25
Afrodite cujos atributos satildeo a uniatildeo amorosa o prazer os sorrisos os ardis ndash opostos aos
das potecircncias violentas Doravante os contraacuterios soacute podem ser aproximados pela uniatildeo de
princiacutepios distintos A complementaridade de opostos confere agrave organizaccedilatildeo do Koacutesmos um
caraacuteter ambiacuteguo de mistura em que potecircncias de conflito se equilibram com potecircncias de
concoacuterdia (VERNANT 2002 p 252) Ademais ao processo de gestaccedilatildeo das potecircncias da
distinccedilatildeo se contrapotildee a emanaccedilatildeo das potecircncias de destruiccedilatildeo forccedilas da escuridatildeo e da
desordem personificadas nos filhos da Noite
A inscriccedilatildeo da ordem no Koacutesmos implica como contrapartida simeacutetrica a inscriccedilatildeo
de potecircncias caoacuteticas de desordem Uma lei de compensaccedilotildees perpassa o Koacutesmos assim
como Dia e Noite satildeo reversos Thaacutenatos Hyacutepnos e Oneiron se opotildeem agrave vida e as Moiras
Neacutemesis e Keres estendem a lei de retribuiccedilatildeo infaliacutevel para o acircmbito dos homens mortais
A estensatildeo das potecircncias de vinganccedila ao acircmbito dos mortais representa a contrapartida
simeacutetrica da conexatildeo infaliacutevel entre falta e retribuiccedilatildeo que rege o Koacutesmos divino Agrave
infalibilidade da conexatildeo falta-retribuiccedilatildeo eacute acrescentado o equiliacutebrio inevitaacutevel do reverso
A symmetriacutea5 eacute uma faceta ineludiacutevel de uma causalidade infaliacutevel
12 Causalidade e Poder
Agrave narrativa de um processo de diferenciaccedilatildeo substitui-se um mito de sucessatildeo de
poder6 A instauraccedilatildeo da conexatildeo culpa-retribuiccedilatildeo constitui a condiccedilatildeo para o domiacutenio do
Koacutesmos e a nota distintiva da inteligecircncia teacutecnica
5 No sentido de justa proporccedilatildeo Filebo 65e Repuacuteblica 530a 6 A ecircnfase na soberania que atravessa a anaacutelise estrutural de Vernant eacute tributaacuteria da primeira funccedilatildeo
estabelecida por George Dumeacutezil no seu esquema de interpretaccedilatildeo dos mitos indo-europeus Natildeo obstante a
anaacutelise empreendida por Jenny S Clay destaca o equiliacutebrio simeacutetrico de potecircncias como um elemento
constitutivo na cosmologia de Hesiacuteodo No seu vieacutes a ldquoa histoacuteria dos deuses como um todo pode ser vista
como uma explicaccedilatildeo das vaacuterias tentativas do deus supremo masculino de controlar e bloquear a direccedilatildeo
procriadora feminina de forma a obter um regime coacutesmico estaacutevelrdquo Segundo a autora no auguacuterio
apocaliacuteptico que encerra o mito das raccedilas Hesiacuteodo vincula a determinaccedilatildeo definitiva do estatuto humano ao
abandono gradual de e interpretados como senso de vergonha e ultraje ndash par
26
A soberania soacute eacute obtida mediante uma limitaccedilatildeo imposta por um ato de violecircncia
maquinado por uma inteligecircncia astuciosa Mas a instauraccedilatildeo infrangiacutevel da conexatildeo natildeo
implicaria um ciclo indefinidamente renovado A ordem do mundo natildeo seraacute
indefinidamente questionada e subvertida Esse problema eacute respondido na narrativa da
Titanomaquia e da vitoacuteria definitiva de Zeus
Reacuteia submetida a Crono pariu brilhantes filhos
Heacutestia demeacuteter e Hera de aacuteureas sandaacutelias
o forte Hades que sob o chatildeo habita um palaacutecio
com impiedoso coraccedilatildeo o troante Treme-terra
e o saacutebio Zeus pai dos Deuses e dos homens
sob cujo trovatildeo ateacute a ampla terra se abala
E engolia-os o grande Crono tatildeo logo cada um
do ventre sagrado da matildee descia aos joelhos
tramando-o para que outros magniacuteficos Uranidas
natildeo tivesse entre os imortais a honra de rei
HESIacuteODO 2003Teogonia vs 453-462
O temor da retribuiccedilatildeo leva Crono a impedir o florescimento de sua prole A
vigilacircncia inquieta de Crono deriva do seu ldquocurvo pensarrdquo da Mḗtis que conferia-lhe a
presciecircncia da retribuiccedilatildeo ao crime cometido contra o pai A situaccedilatildeo repressora leva Reacuteia a
uma ldquolonga afliccedilatildeordquo Reacuteia com Gaia e Ourano concebe um ardil (mḗtin) astucioso e
encontra os meios para que as Eriacutenias implacaacuteveis retribuidoras fizessem com que Zeus o
astuto (mētioacuteenta) tivesse destino diverso do de seus irmatildeos Clandestinamente Reacuteia
esconde o filho mais novo em Creta e dissimula uma pedra envolta em latildes de modo que
tivesse a aparecircncia enganosa do filho receacutem nascido O estratagema fruto da inteligecircncia
astuciosa envolve a descoberta dos meios apropriados a dissimulaccedilatildeo e o engodo que
complementar agrave potecircncia feminina de Nesse sentido contra Vernant a oposiccedilatildeo se estenderia a um
plano ulterior de distinccedilotildees que marca a unilateralidade da violecircncia inerente ao domiacutenio assimeacutetrico da
potecircncia masculina A sucessatildeo de violecircncias encenada na titanomaquia mais do que esboccedilar o cenaacuterio
historicista de luta pela soberania mostra a necessidade da assimilaccedilatildeo do elemento feminino proacuteprio de
agrave forccedila soberana (CLAY 2003 23-38)
27
permitem impedir e paralisar uma potestade divina soberana A questatildeo da soberania
basileacuteia coacutesmica implica o emprego do meio eficaz para enganar a Potecircncia divina o que
soacute eacute factiacutevel mediante uma astuacutecia dolosa que supera a astuacutecia da divindade
Desde o seu desabrochar a racionaliade teacutecnica aparece como um modo de trapaccedila
como um dolo inextricaacutevel da culpa O dolo eacute tatildeo somente o modo miacutetico de vindicar a
conexatildeo infaliacutevel da contrapartida do castigo Eacute a plasmaccedilatildeo da conexatildeo que funda um tipo
de pensamento indispensaacutevel para o regramento da experiecircncia humana e da busca pelos
melhores meios para a sobrevivecircncia eficaz num mundo cujas potecircncias naturais satildeo
poderosas a ponto de serem epifanias divinas
O grande Crono de curvo pensar eacute ldquoenganado (dolōtheis) por repetidas instigaccedilotildees
da Terrardquo (Teogonia v 494) solta sua prole e acaba por ser expulso agrave forccedila pelo filho mais
novo O mesmo padratildeo e a sequecircncia de accedilotildees baacutesica anterior eacute mantida (i) uma situaccedilatildeo
impediente adveacutem Crono impede que seus filhos venham a ser e os engole (ii) a situaccedilatildeo
problemaacutetica suscita a busca da causa Crono astuciosamente pretende manter a soberania
(iii) mediadores astuciosos concebem uma arte dolosa Reacuteia juntamente com Gaia e
Ourano tramam um ardil que engana Crono (iv) os meios adequados satildeo escolhidos e
empregados Crono engole uma pedra e Zeus eacute escondido em Creta ateacute que agrave forccedila
destrone seu pai (v) a accedilatildeo violenta reclama a justa retribuiccedilatildeo as Eriacutenias deveriam fazer
voltar contra Zeus a Mḗtis que lhe impingiria a mesma sorte dos seus antepassados
soberanos Todavia isso natildeo ocorre No reinado de Zeus a conexatildeo infrangiacutevel entre falta-
retribuiccedilatildeo eacute assimilada ao seu poder real Doravante a causalidade passa a ser um atributo
de uma ordem coacutesmica imutaacutevel
A garantia da ordem estabelecida eacute uma prerrogativa da Mḗtis a inteligecircncia
astuciosa que independentemente do poder e forccedila do adversaacuterio e em todas as
28
circunstacircncias garante a dominaccedilatildeo do Koacutesmos mediante a integraccedilatildeo entre macho e
fecircmea Somente a superioridade de uma inteligecircncia astuciosa que implica a presciecircncia a
escolha a forja e o emprego dos meios mais eficazes com vistas a um fim determinado
somente uma Mḗtis que eacute tambeacutem potecircncia divina propicia a supremacia do poder
soberano Por isso como diz Vernant ldquoo rei do ceacuteu deve dispor fora e aleacutem da forccedila bruta
de uma inteligecircncia haacutebil para prever o futuro para maquinar tudo antes para combinar em
sua prudecircncia meios e fins ateacute o menor detalhe de forma que o tempo da accedilatildeo natildeo
comporte acasos que o futuro natildeo traga surpresas fazendo com que nada e ningueacutem possa
pegar o deus de surpresa ou encontraacute-lo indefesordquo (2002 p 258) Combinaccedilatildeo eficaz de
meios e fins previsatildeo e planificaccedilatildeo baseados na sequecircncia infaliacutevel da causalidade tempo
oportuno eliminaccedilatildeo do acaso forja de instrumentos necessaacuterios eis as condiccedilotildees para a
consolidaccedilatildeo e desenvolvimento da inteligecircncia teacutecnica que eacute ao mesmo tempo a
provedora e a chancela do poder
Mḗtis a Oceacircnida deusa da astuacutecia eacute justamente quem assegura a Zeus os meios de
lutar contra os Titatildes ela induz Crono a beber um phaacutermakon que o obriga a vomitar os
irmatildeos de Zeus que haviam sido engolidos (APOLODORO I 2 6) Mas outros
coadjuvantes viriam de um expediente astucioso adicional Gaia revela a Zeus que para
obter a vitoacuteria deveria contar com a alianccedila dos Ciclopes e dos Cem-Braccedilos detentores
respectivamente do raio dos golpes e cadeias invenciacuteveis (Teogonia vs 624-653) Zeus
liberta as Potecircncias primordiais de suas correntes e lhes oferece neacutectar e ambrosia
consagrando-os a um estatuto divino parelho ao dos Oliacutempios O favor divino concedido
por Zeus eleva a um novo plano o tema da retribuiccedilatildeo a daacutediva eacute um meio de garantir a
reciprocidade e de escalonar valores As Potecircncias primordiais da violecircncia e da vitoacuteria
passam a ser os guardiotildees fieacuteis de Zeus Kraacutetos e Biacutea Poder e Violecircncia ldquoinsignes filhosrdquo
29
de Stix e Oceano ldquosempre perto de Zeus gravitroante repousamrdquo (Teogonia v 385)7 Para
instituir a ordem faz necessaacuteria a harmonizaccedilatildeo entre as potecircncias da violecircncia e a astuacutecia
presciente A emancipaccedilatildeo da ordem implica a ruptura violenta
Mḗtis ldquomais saacutebia que os deuses e os homens mortaisrdquo (v 887) eacute a primeira esposa
de Zeus O casamento eacute uma forma de daacutediva e de reciprocidade pelos serviccedilos prestados
pela deusa da inteligecircncia astuciosa mas eacute sobretudo uma alianccedila que assegura o domiacutenio
da soberania Para impedir que a retribuiccedilatildeo agrave violecircncia da falta infaliacutevel se volte contra si
mesmo Zeus emprega as proacuteprias armas de Mḗtis a astuacutecia a surpresa e o ardil O
Cronida ldquoengana suas entranhas com ardil com palavras sedutorasrdquo por conselhos de Gaia
e Ourano e engole-a ventre abaixo para que assim a deusa lhe indique o bem e o mal
(Teogonia v 886-900) A deusa que interveacutem nas lutas de soberania para restaurar o
equiliacutebrio rompido estabelece o fato inexoraacutevel de que o domiacutenio e o poder exigem o
concurso simultacircneo da audaacutecia da forccedila da artimanha da iniciativa inteligente do ardil e
do espiacuterito inventivo (DETIENNE 1974 p 105) Ao ser engolida Mḗtis eacute assimilada a
Zeus e ele ldquotorna-se mais que um simples monarca ele se torna a proacutepria Soberaniardquo
(VERNANT 2002 p 261) A inteligecircncia astuciosa estaacute ldquonas entranhasrdquo de Zeus faz parte
de sua constituiccedilatildeo divina configura uma de suas potecircncias constitutivas Zeus eacute todo
Astuacutecia e sua inteligecircncia abarca todo o ciclo do tempo conferindo-lhe a previsatildeo
presciecircncia e prudecircncia indispensaacuteveis para a accedilatildeo que se projeta no futuro Ao assimilar
7 Alguns exegetas como H Fraumlnkel atribuem o domiacutenio de Zeus agrave alianccedila decisiva estabelecida com Styx e
sua descendecircncia Zelos Niacuteke Kraacutetos e Biacutea Brown empreende uma interpretaccedilatildeo maquiavelista afirmando que os resultados finais justificam os meios empregados por Zeus que seria o fundador no koacutesmos do que
Maquiavel chamaria ldquosociedade civilrdquo Blickman observa no entanto que a alianccedila dos filhos de Styx foi
ldquoganhardquo mediante a oferta da garantia de conceder-lhes as devidas honras divinas O vieacutes que nos interessa ndash
a formaccedilatildeo dos elementos fundamentais da inteligecircncia teacutecnica ndash indica que o acento deve recair sobre o fato
de que a oferta e a contrapartida do serviccedilo leal dos aliados de Zeus configuram uma faceta e uma
perspectiva diversa de lei de retribuiccedilatildeo As alianccedilas de Zeus configuram a conexatildeo causal infaliacutevel como
oferta e contrapartida e satildeo compatiacuteveis com a interpretaccedilatildeo e o acento fortemente alegoacuterico que Vernant
confere a Mḗtis (BLICKMAN 1987 p 341-355)
30
Mḗtis Zeus inaugura a inteligecircncia projetiva a inteligecircncia teacutecnica como a ordem que
deteacutem a soberania sobre o mundo e por isso ldquoentre o projeto e a realizaccedilatildeo natildeo conhece
mais a distacircncia pela qual surgem na vida dos outros deuses as armadilhas do imprevistordquo
(ibid) O ciclo inexoraacutevel e sempre renovado entre falta e retribuiccedilatildeo em vez de abolir a
ordem coacutesmica passa a ser parte integrante dela A ordem eacute definitivamente estabelecida
quando a causalidade e a inteligecircncia teacutecnica passam a ser-lhe solidaacuterias
Na geraccedilatildeo anterior accedilatildeo astuciosa de Gaia decorre da violecircncia de Ourano que a
atulha e com isso impede sua potecircncia natural de gestaccedilatildeo e o devir das geraccedilotildees
subsequentes
Quantos da Terra e do Ceacuteu nasceram
filhos os mais temiacuteveis detestava-os o pai
decircs o comeccedilo tatildeo logo cada um deles nascia
a todos ocultava agrave luz natildeo os permitindo
na cova da Terra8
(HESIacuteODO Teogonia 2003 154-159)
A astuacutecia feninina aparece como contrapartida agrave violecircncia masculina na forja do
instrumento de salvaccedilatildeo o que implica inexoraacutevel tendecircncia a um ininterrupto ciclo de
violecircncia e retribuiccedilatildeo atraveacutes da descendecircncia masculina os Titatildes aqueles que pagam a
penalidade por suas accedilotildees A mudanccedila coacutesmica eacute desencadeada pela tensatildeo entre o
princiacutepio de accedilatildeo da procriaccedilatildeo natural ilimitada de Gaia e a violecircncia impediente de
Ourano A forccedila da proliferaccedilatildeo ilimitada de Gaia soacute pode ser limitada por um ato de
violecircncia e oposiccedilatildeo agrave potecircncia feminina num ciclo ininterrupto de violecircncia e retribuiccedilatildeo
astuciosa Todavia o primeiro ato de violecircncia de Zeus consiste em engolir Mḗtis
desencadeando uma reviravolta no ciclo coacutesmico O princiacutepio de movimento coacutesmico
8
31
emerge a partir dos pares de opostos caracterizados pela alternacircncia entre procriaccedilatildeo
masculina e gestaccedilatildeo feminina e pela oposiccedilatildeo entre violecircncia (biacutea) masculina e a mḗtis
feminina Enquanto a violecircncia eacute prerrogativa masculina a inteligecircncia astuciosa eacute um
apanaacutegio feminino Quando Zeus engole Mḗtis assimila em si mesmo a esfera coacutesmica
feminina cuja consequecircncia eacute o equiliacutebrio de princiacutepios opostos de movimento
Entretanto a ordem soacute pode ser perenemente garantida mediante uma outra
realidade coacutesmica primordial que dispotildee de poderes anteriores aos de Zeus a Oceacircnida
Thecircmis Assim como Mḗtis Thecircmis abarca a totalidade do tempo e possui uma onisciecircncia
que diz respeito a uma ordem estabelecida Seus proferimentos possuem um valor oracular
categoacuterico que estabelece de uma vez por todas como decretos o que eacute dito Thecircmis
ordena interdita decreta peremptoriamente e fixa os aspectos natildeo definidos do Koacutesmos Se
de um lado Mḗtis relaciona-se com o tempo oportuno e com o hipoteacutetico de outro
Thecircmis estabelece a regularidade a ordem e confere invariacircncia ao devir Ela eacute a Matildee das
Horas as Estaccedilotildees e fixa as Moiras dos mortais Sua funccedilatildeo eacute a de estabelecer limites
intransponiacuteveis ao Koacutesmos Sua uniatildeo com Zeus implica que a ordem coacutesmica possui
medidas regularidades e limites intransponiacuteveis (DETIENNE 1974 p 105 ss) A funccedilatildeo
primordial de Thecircmis eacute proclamar que os limites do Koacutesmos satildeo decretos divinos
irrevogaacuteveis Tais limites iniciam-se pela diferenciaccedilatildeo de potecircncias contraacuterias e por uma
sissiparidade sem a atraccedilatildeo de potecircncia primordial de Eros A uniatildeo de potecircncias opostas
brota do Amor coacutesmico afetividade que potildee em movimento a geraccedilatildeo e o ciclo coacutesmico
Mas cabe observar que as primeiras potecircncias instauradoras de limites coacutesmicos satildeo
princiacutepios temporais os primeiros limites consistem no estabelecimento de uma conexatildeo
irrevogaacutevel entre violecircncia desmedida e retribuiccedilatildeo astuciosa entre proliferaccedilatildeo
ininterrupta e a fixaccedilatildeo de limites e medidas temporais coacutesmicas
32
O casamento de Zeus com Thecircmis eacute ao mesmo tempo uma daacutediva pelos seus
serviccedilos e uma alianccedila que assimila sua potecircncia Suas decisotildees irrevogaacuteveis permitiratildeo a
partilha os lotes os domiacutenios e a hierarquia entre as Potecircncias divinas Com a daacutediva e a
reciprocidade do duplo casamento de Zeus a retribuiccedilatildeo adquire o estatuto inalienaacutevel de
lei e a reciprocidade passa a ser a condiccedilatildeo para a hierarquia de poderes Na Teogonia
hesioacutedica causalidade e hierarquia apontam para um limite uacuteltimo na Natureza a lei
irrevogaacutevel e intransponiacutevel estabelecida por Thecircmis
13 Causalidade e Reciprocidade
A caracteriacutestica fundamental de uma daacutediva ou presente eacute a expectativa da
reciprocidade consoante um criteacuterio de equivalecircncia A troca de presentes estabelece o
estatuto do doador e implica o escalonamento do poder No primeiro livro da Odisseacuteia
Palas Atena visita Telecircmaco sob a forma do estrangeiro Mentes e define a obrigaccedilatildeo da
reciprocidade
Hoacutespede tuas palavras satildeo ditas com acircnimo amigo
como de pai para filho jamais poderei esquececirc-las
Mas muito embora desejes partir fica um pouco te peccedilo
que te banhes e possas dar largas ao peito querido
para depois ao navio voltares levando um presente
muito valioso e bonito que seja lembranccedila de minha
parte tal como os amigos com os hoacutespedes fazem de grado
A de olhos glaucos Atena lhe disse em resposta o seguinte
Natildeo me domovas do intento pois muito me importa ir embora
Quanto ao presente se tanto o desejas que seja na volta
quando de novo passar por aqui levaacute-lo-ei para casa
Por mais valioso que escolhas teraacutes outro igual conquistado
Odisseacuteia I vs 307-318
Todo presente exige um contra-presente A obrigaccedilatildeo de reciprocidade natildeo
comporta exceccedilatildeo e a contrapartida ao ato de ofertar pressupotildee uma medida comum que
estabelece o valor (aacutexion) ou equivalecircncia que controla um sistema de hierarquia A
33
proacutepria noccedilatildeo de ldquomedidardquo eacute um refinamento da concepccedilatildeo de que a Natureza eacute
caracterizada por limites que natildeo podem ser transpostos (VLASTOS 1947 p 156) O
estabelecimento de uma obrigaccedilatildeo muacutetua implica o desenvolvimento de categorias mentais
que comportam a comparaccedilatildeo a igualdade a medida a contagem e o caacutelculo O presente
permite segundo Burkert o reconhecimento da igualdade de estatuto entre os ofertantes e a
representaccedilatildeo de um mesmo paacutethos Implica tambeacutem os quadros mentais que permitem o
discernimento da dimensatildeo temporal e a projeccedilatildeo futura da obrigaccedilatildeo mediante o
reconhecimento de um padratildeo invariaacutevel (BURKERT 2001 p 132) A reciprocidade eacute
apenas um outro aspecto da conexatildeo infaliacutevel da retribuiccedilatildeo e determina a expectativa
universal de que seres de um mesmo estatuto recebam o mesmo tratamento A
reciprocidade advinda da oferta implica por conseguinte o escalonamento ou
hierarquizaccedilatildeo dos atores envolvidos conferindo estabilidade ao todo
Outro modo de aplicaccedilatildeo da reciprocidade possui desdobramentos perenes no
desenvolvimento da racionalidade Na esfera da justiccedila punitiva o castigo eacute aceito como
justo se estiver subordinado agrave concepccedilatildeo de retribuiccedilatildeo que especificamente emerge da
oferta reciacuteproca A reciprocidade pressupotildee os quadros mentais que desenvolvem aquela
que viraacute a ser uma das noccedilotildees mais fecundas da Filosofia a noccedilatildeo de simetria
Nos Trabalhos e os Dias Hesiacuteodo desenvolve uma antropogonia que estabelece
significaccedilatildeo para o estatuto humano e serve de justificativa para uma exaltada exortaccedilatildeo a
seu irmatildeo Perses O equiliacutebrio compensatoacuterio de opostos eacute apresentado como princiacutepio
constitutivo do plano coacutesmico e humano de modo que o equiliacutebrio recebe a sanccedilatildeo da forccedila
do juramento dos deuses e da lei contra a desmedida hyacutebris A Justiccedila soacute pode compensar a
desmedida com o estabelecimento preacutevio do meacutetron padratildeo comum que garante a
equidade ou comensuralidade Mas a etimologia de meacutetron natildeo deixa de ter relaccedilatildeo com
34
mḗtis a proacutepria personificaccedilatildeo da inteligecircncia astuciosa inextrincaacutevel do kairoacutes da accedilatildeo
precisa no momento oportuno O primeiro golpe astucioso concebido por Gaia suscita natildeo
somente a forja do instrumento inteligentemente planeado mas exige ainda que o momento
oportuno coincida com a accedilatildeo instauradora do tempo cronoloacutegico Na mentalidade grega a
noccedilatildeo de excesso deriva das accedilotildees coacutesmicas do desregramento dos desejos da violecircncia e
do tempo oportuno e natildeo de uma replicaccedilatildeo espacial bilateral
Na perspectiva moderna algo eacute simeacutetrico se possui a mesma medida em relaccedilatildeo a
um padratildeo (syacutemmetros) ou se apoacutes ser submetido a uma determinada accedilatildeo permanece com
a mesma aparecircncia ou com o aspecto original Mas na mentalidade grega de Hesiacuteodo a
noccedilatildeo de equiliacutebrio entre opostos eacute imageticamente expressa na geraccedilatildeo de Harmoniacuteē
Resultante do sangue esparso no mar nascem potecircncias opostas as Eriacutenias
zeladoras da vinganccedila os Gigantes as Ninfas e a virgem da espuma rosada ndash Cytereacuteia ou
Afrodite Novas potecircncias divinas opostas satildeo engendradas a partir da uniatildeo de Afrodite e
Ares destruidor de cidades Harmoniacutea Phoacutebos e Deimos Medo e Terror rompedores das
falanges guerreiras (HESIOD 2006 v 935-937) As determinaccedilotildees afetivas de Afrodite
associadas a Eros ao Desejo (Hyacutemeros) agrave doccedilura graccedila e suavidade opoem-se agrave ira
guerreira de Ares Harmoniacuteē aparece como conjunccedilatildeo conciliadora de afetos opostos uniatildeo
e oposiccedilatildeo geraccedilatildeo e destruiccedilatildeo doce encanto e oacutedio ajustamento de princiacutepios de accedilatildeo
opostos
Por outro lado nos Trabalhos o enfoque visa o estabelecimento do estatuto humano
e o regramento da praacutexis eacutetico-poliacutetica Por essa razatildeo o equiliacutebrio de opostos passa a
abarcar a noccedilatildeo ulterior de meacutetron como avaliaccedilatildeo sopesada para evitar o excesso de
ambiccedilatildeo desmedida e encontrar o justo
35
Mede (metreisthai) bem do teu vizinho e paga-o bem de volta com
a mesma medida (tō metrō) e o melhor que podes pois se estiveres
em necessidade novamente o encontraraacutes mais tarde tambeacutem
confiante ()
Mas eu natildeo te darei nenhum dom a mais nem sobremedida
(epimetrḗsso) ()
Guarda a medida (meacutetra phylaacutessesthai) o momento oportuno eacute a
mais excelente de todas as coisas (kairograves d‟epigrave paacutesin aacuteristos )
(HESIOD Works and Days 2006 v 349-351 396 694)
A apaixonada exortaccedilatildeo de Hesiacuteodo realccedila a origem do excesso e da desmedida no
iacutempeto dos desejos e associa a medida ao kairoacutes o elemento temporal que ajusta
quantitativamente os frutos do trabalho agriacutecola aos periacuteodos regulares das estaccedilotildees e dos
dias As atividades agriacutecolas segundo o excelente trabalho de Jean-Luc Perrilleacute
entremeiam os aspectos quantitativos e temporais que compotildeem a molda da noccedilatildeo de
comensurabilidade (PERILLEacute 2005 p 23-33) A necessidade de ajustar o ano solar ao ano
lunar ocasiona a fusatildeo dos aspectos temporais e espaciais com relaccedilotildees numeacutericas
quantitativas Aleacutem disso a obervacircncia da medida configura o principal traccedilo dos
apotegmas dos sete saacutebios arcaicos A prescritiva de Cleoacutebulo a medida eacute a mais excelente
das coisas (meacutetron aacuteriston) eacute um iacutendice de que as noccedilotildees de equiliacutebrio medida e momento
oportuno modelam a inteireza da mentalidade que daacute identidade ao helecircnico Os apotegmas
de Tales Soacutelon e Pitacos reforccedilam o pressuposto de um pano de fundo compartilhado de
uma atmosfera mental comum que abarca todas as expressotildees do patrimocircnio da paideacuteia
grega observa a medida (meacutetrō khrō) nada em demasia (mēdeacuten aacutegan) apreende o
momento oportuno (kairograven gnōthi)
O acervo mental que correlaciona as noccedilotildees de medida agrave oportunidade temporal
agrega a questatildeo da afetividade como princiacutepio das accedilotildees praacuteticas Nos seus poemas
elegiacuteacos Teoacutegnis adverte que o excesso (hyacuteper meacutetron) de vinho acarreta a desmedida da
36
fala e a ausecircncia de vergonha que potildeem a perder o saacutebio9 ldquoEacute difiacutecil observar a medida
(gnōnai gagraver khalepograven meacutetron) quando o bem se oferece a noacutesrdquo (PERILLEacute 2005 p 25) O
excesso de prazeres e bebida satildeo correlacionados agrave desmedida do discurso improacuteprio e agrave
vergonha da impostura Moderaccedilatildeo afetiva modeacutestia e compostura conjugam-se num
espectro de afetos equilibrados ndash intrinsecamente ligados agrave aprovaccedilatildeo puacuteblica ndash que
suscitam a noccedilatildeo de justa medida O discurso descomedido que se segue a afetos
desenfreados tem como retribuiccedilatildeo inevitaacutevel a vergonha e a desonra As accedilotildees praacuteticas
suscitam justa retribuiccedilatildeo em consonacircncia com sua natureza proacutepria
No plano ciacutevico a retribuiccedilatildeo aparece como inversatildeo da accedilatildeo e determina a
exigecircncia de que o culpado sofra pelo que fez segundo um criteacuterio de equivalecircncia a
contagem de ldquochicotadasrdquo ou dias de prisatildeo por exemplo (BURKERT 2001 p 133) A
concepccedilatildeo da daacutediva estende muito adiante o horizonte da retribuiccedilatildeo e funda as noccedilotildees
que comporatildeo a concepccedilatildeo de ldquojusticcedila positivardquo a reciprocidade eacute de fato um tipo de
moralidade Em grego ser punido equivale a ldquodar justiccedilardquo (diacutekēn diacutedonai) a receber a
contrapartida o que eacute devido em funccedilatildeo de uma ofensa dada O mesmo ocorre com as
interaccedilotildees religiosas que aparecem como um ldquosistema de trocas artificialrdquo (ibid p 135) O
comeacutercio com os deuses eacute definido por Platatildeo como preces e sacrifiacutecios e ordens e
recompensas em paga dos sacrifiacutecios (Banquete 202e) A recompensa como obrigaccedilatildeo
muacutetua estaacute na base da crenccedila religiosa ndash independentemente da impossibilidade de
verificaccedilatildeo de uma recompensa ou puniccedilatildeo no aleacutem
9 O homem que bebe aleacutem da medida natildeo governa mais sua liacutengua nem seu espiacuterito Tem discursos sem fim
que enrubescem os saacutebios Ele natildeo se envergonha de nenhuma accedilatildeo em sua embriaguecircs De saacutebio que era
torna-se insensato Sabe isso e guarda-te de beber em excesso antes que venha a embriaguecircs levanta-te de
medo que teu ventre natildeo te submeta natildeo faccedilas de ti um escravo malfeitor (GIRARD 1892 v 469-495)
37
A mutaccedilatildeo da noccedilatildeo de reciprocidade resulta num contiacutenuo processo que culmina
com as noccedilotildees de leis ldquoobjetivasrdquo da Natureza A interpretaccedilatildeo matemaacutetica do mundo
operada pela Fiacutesica se expressa atraveacutes de equaccedilotildees relaccedilotildees e proporccedilotildees (entre as partes)
mediante os postulados de simetria de equiliacutebrio de homogeneidade (mesma natureza das
partes) e de conservaccedilatildeo Nesse sentido afirma Burkert ldquoo princiacutepio de reciprocidade eacute a
proacutepria fundaccedilatildeo do nosso mundo racional e cientiacuteficordquo (ibid p 154) Os fundamentos da
causalidade natildeo podem ser apreendidos sem o fio condutor das noccedilotildees implicadas pelo
princiacutepio de reciprocidade que nos primoacuterdios emerge da troca de presentes
14 A astuacutecia dolosa o presente de Prometeu
Natildeo se pode furtar nem superar o espiacuterito de Zeus
pois nem o filho de Jaacutepeto o beneacutefico Prometeu
escapou-lhe agrave pesada coacutelera mas sob coerccedilatildeo
apesar de multissaacutebio a grande cadeia o reteacutem
Teogonia vs 613-616
A narrativa de Prometeu eacute a descriccedilatildeo de um duelo de astuacutecias Trata-se de um
confronto sem duacutevida mas natildeo de um embate aberto de um combate singular em que a
violecircncia do golpe se anuncia no movimento aberto que se abate sobre o adversaacuterio No
combate travado entre Prometeu e Zeus as armas empregadas satildeo tatildeo somente suas
inteligecircncias astuciosas e cada lance cada manobra desferida contra o oponente apresenta-
se dissimulada sob a aparecircncia da oferta sedutora do furto ou da ocultaccedilatildeo A sequecircncia de
accedilotildees que compotildee a narrativa eacute um esboccedilo exemplar das conexotildees ineludiacuteveis que
distinguem a retribuiccedilatildeo e a reciprocidade que implicam a definiccedilatildeo de hierarquias os
acircmbitos proacuteprios na organizaccedilatildeo cosmoloacutegica No mito de Prometeu conjugam-se na
mesma sequecircncia de accedilotildees a inexorabilidade da causalidade que se segue a uma quebra de
38
simetria a mḗtis inteligente a previsatildeo temporal projetiva o ardil para a escolha de meios
eficazes a oferta e o contra-presente e a justa retribuiccedilatildeo pela transgressatildeo do meacutetron
O mito de Prometeu eacute o ldquomito de referecircncia para entender o lugar a funccedilatildeo e os
significados do sacrifiacutecio sangrento na vida religiosa dos gregosrdquo (VERNANT 2002 p
263) Natildeo obstante o mito coordena outros temas que ultrapassam em muito no tempo e
no espaccedilo a cultura grega e constituem a pedra fundamental de um tipo de inteligecircncia e de
um modo especiacutefico de racionalidade Prometeu eacute a personificaccedilatildeo da inteligecircncia teacutecnica
humana que se choca com os limites intransponiacuteveis que cingem um Koacutesmos divino
A distribuiccedilatildeo de honras entre Oliacutempios e Titatildes foi o resultado da guerra e das
alianccedilas promovidas por Zeus As honras devidas aos deuses foram fruto do consentimento
e do consenso mas a partilha entre os homens mortais e os Oliacutempios haveria de ser
efetivada por Prometeu Assim como Zeus Prometeu eacute todo ele astuacutecia fabricadora e por
conseguinte um rival uma potecircncia de rebeliatildeo diante da ordem instaurada Mas o Titatilde natildeo
almeja a soberania Ele emprega sua astuacutecia para usurpar a soberania de Zeus e os limites
as medidas que ela implica e para transferir aos mortais um lote que natildeo estaacute em
conformidade com seu estatuto
A partilha eacute o ato que marca o reconhecimento da igualdade e da hierarquia visto
que as ldquopartesrdquo os quinhotildees satildeo distribuiacutedas segundo proporccedilotildees e ordem determinadas
Os termos moira e aiacutesa inicialmente designam o ldquoquinhatildeordquo a ldquoquotardquo ldquoporccedilatildeordquo passando a
significar posteriormente a ordem apropriada a ordem do mundo o Destino O princiacutepio
da daacutediva e a expectativa de compensaccedilatildeo constituem uma extensatildeo da partilha e a
reciprocidade eacute um refinamento mental da accedilatildeo de doar Tal refinamento soacute eacute possiacutevel com
a modelagem dos esquemas mentais que implicam o reconhecimento das pretensotildees dos
atores ausentes o discernimento da passagem do tempo a habilidade para avaliar e
39
relembrar uma retribuiccedilatildeo adiada um mundo estaacutevel no tempo e no espaccedilo e as noccedilotildees
latentes de medida igualdade e equivalecircncia (BURKERT 2001 p 151) A oferenda a um
deus pode significar a submissatildeo aos seus poderes ameaccediladores e a delimitaccedilatildeo apropriada
de sua posiccedilatildeo hieraacuterquica superior ldquoNatildeo darrdquo por outro lado implica natildeo somente a
insubmissatildeo mas uma usurpaccedilatildeo da hierarquia de poder A usurpaccedilatildeo ardilosa de Prometeu
redunda na segregaccedilatildeo definitiva entre homens e deuses e na condiccedilatildeo ambiacutegua que
caracteriza a vida humana proacutexima dos animais e dos deuses
A partilha maquinada por Prometeu consiste no esquartejamento de um boi diante
dos deuses e homens a fim de definir-lhes mutuamente seus estatutos A fronteira seria
representada nas partes do animal sacrificado O sacrifiacutecio eacute efetivamente uma troca de
presentes mediada por Prometeu que deveria respeitar o meacutetron condizente com a soberania
de Zeus Todavia cada parte preparada pelo Titatilde eacute um engodo uma dolosa arte (doliacuteēin
teacutekhnēi) simultaneamente destinada a aviltar o estatuto divino e sobrelevar o estatuto
humano
A primeira parte dissimula os ossos nus do animal sob espessa camada de apetitosa
gordura e a segunda esconde dentro do estocircmago de aparecircncia nauseante as carnes
comestiacuteveis O presente de Prometeu eacute um logro um expediente artificioso cujo fim eacute a
apropriaccedilatildeo do melhor quinhatildeo para os homens Com isso Prometeu acrescenta a dimensatildeo
da vantagem na mḗtis e instaura o viacutenculo perene entre inteligecircncia teacutecnica e o uacutetil O
duelo de Prometeu com Zeus eacute o duelo da mḗtis utilitaacuteria contra a mḗtis da soberania A
primeira calcula os melhores meios para se obter o vantajoso e o uacutetil na perspectiva do
tempo humano A segunda calcula os melhores meios para se obter e manter a soberania
sobre o Koacutesmos na perspectiva da totalidade do tempo Duas ordens de realidade satildeo
40
segregadas uma mortal outra imortal Ambas deveriam ser representadas
proporcionalmente na partilha do sacrifiacutecio do animal e serem oferecidas como presentes
Se todo presente implica a obrigatoriedade do contra-presente e todo sacrifiacutecio
pressupotildee a expectativa de recompensa toda falta reclama a justa retribuiccedilatildeo ldquoZeus de
impereciacuteveis desiacutegnios soube natildeo ignorou a astuacuteciardquo (v 550-551) e escolheu a porccedilatildeo
coberta com gordura branca Por essa razatildeo queimam-se nos altares a gordura e os ossos
dos animais A astuacutecia de Prometeu volta-se contra os homens as partes com aparecircncia de
maior valor na verdade implicam a insaciabilidade da fome sempre renovada e a
perecibilidade proacutepria das carnes de um animal morto As exalaccedilotildees e os perfumes dos
ossos calcinados definem por outro lado a imortalidade impereciacutevel dos deuses que vivem
dos odores sutis A inteligecircncia utilitaacuteria de Prometeu transgride a ordem coacutesmica instituiacuteda
por Zeus A ldquovantagemrdquo auferida com o dolo implica a retribuiccedilatildeo infaliacutevel como
contrapartida O expediente utilitaacuterio desencadeia conexotildees causais natildeo previstas pela mḗtis
prometeacuteica Zeus esconde o biacuteos e o fogo celeste ateacute entatildeo livremente concedidos aos
homens As implicaccedilotildees satildeo a ausecircncia de cereais e gratildeos e a impossibilidade de cozinhar
as carnes obtidas na partilha Ao deixar de ldquodarrdquo as daacutedivas da vida e do fogo aos homens
Zeus daacute efetivamente a justa retribuiccedilatildeo pela falta de Prometeu A lei de taliatildeo da
causalidade preserva a ordem coacutesmica estabelecida
A estrutura baacutesica do programa de accedilotildees que caracteriza a retribuiccedilatildeo eacute repetida (i)
uma situaccedilatildeo impediente adveacutem os homens satildeo privados do fogo e da vida (ii) a
calamidade suscita a busca da causa a fraude de Prometeu (iii) o mediador astucioso
maquina um expediente astucioso Prometeu furta o fogo e o esconde no interior da feacuterula
oca para transportaacute-lo para a terra e doaacute-lo aos homens (iv) a audaacutecia da accedilatildeo criminosa
engendra nova retribuiccedilatildeo
41
O contra-presente de Zeus eacute o resultado da modelaccedilatildeo artificiosa que recebe o
contributo de todos os deuses e constitui o reverso simeacutetrico ao roubo do fogo O dom de
todos os deuses Pandora liberta todos os elementos que aprisionam os homens todos os
males que configuram sua precariedade Sua aparecircncia se reveste do mesmo engodo
astucioso do presente de Prometeu e sua inscriccedilatildeo no plano humano ocorre pela
contrapartida miacutetica da previsatildeo astuciosa que caracteriza Prometeu a imprevidecircncia de
Epimeteu Palco de ambiguidades o cenaacuterio dos homens eacute irremediavelmente vinculado agrave
necessidade de previsatildeo o mundo dos homens eacute o mundo da imprevisatildeo do acaso do
fortuito e conserva o caos originaacuterio das potecircncias primordiais
Pandora representa natildeo somente a explicaccedilatildeo para a duplicidade do estatuto humano
em par de gecircneros opostos ela eacute a noiva esplendorosa de invenciacutevel e adornada aparecircncia
divina que configuram a contrapartida para o dolo do fogo teacutecnico Diferentemente do
homem Pandora eacute fabricada pelos deuses Ela eacute o fruto de uma modelagem divina arte dos
deuses e sua uniatildeo com um Titatilde prenuncia nova caracterizaccedilatildeo do gecircnero humano
Doravante como afirma Jenny Clay (2009 p 102 ss) as distinccedilotildees que definem e
delimitam o gecircnero humano recebem traccedilos perenes e incontornaacuteveis ldquosua apariccedilatildeo
inaugura a instituiccedilatildeo do casamento que como o sacrifiacutecio serve para delimitar as
coordenadas da condiccedilatildeo humana Pois como seres mortais os humanos satildeo compelidos
tal como as bestas a se reproduzirem para que a espeacutecie seja mantidardquo
Por outro lado a prole de Pandora e do titatilde Epimeteu deveraacute unificar os elementos
titacircnicos com a arte bem concebida dos deuses mistura de opostos em permanente tensatildeo
de dissoluccedilatildeo Potecircncia coacutesmica de desmedida Epimeteu procriaraacute um novo gecircnero de ser
unindo-se ao artefacto divino meticulosamente medido miscigenaccedilatildeo equilibrada de
proporccedilotildees e determinaccedilotildees opostas que recebem um sopro de vida O casamento soacute pode
42
passar a ser condiccedilatildeo para a preservaccedilatildeo humana a partir da geraccedilatildeo de Pandora e
Epimeteu que assimila as forccedilas titacircnicas da desmedida agrave arte bem projetada mas ambiacutegua
Assim como o sacrifiacutecio ritualiza mediante em accedilotildees dramatizadas sem finalidade
ou propoacutesito visiacutevel o comeacutercio e o contato com o divino assim tambeacutem o casamento
inaugura a sacralizaccedilatildeo ritual dos apetites sexuais O sacrifiacutecio constitui os droacutemena que
separam o acircmbito e o estatuto divino do humano o espaccedilo-tempo dos deuses e o vivido
humano interposto entre os animais selvagens e o divino A integraccedilatildeo ritualiacutestica do
feminino personificado na Virgem divina ao mesmo tempo regra e sanciona os apetites
sexuais O casamento interpotildee o homem entre a promiscuidade selvagem e a promiscuidade
divina que desconhecem as inibiccedilotildees
O fogo teacutecnico que eacute empregado simultaneamente na fabricaccedilatildeo de utensiacutelios e de
armas que potencializam a violecircncia possui a potecircncia ambiacutegua de assegurar a vida e
sancionar a violecircncia Analogamente o casamento inaugurado por Pandora possui a
potecircncia ambiacutegua de legitimar o sexo atraveacutes da sacralizaccedilatildeo ritualiacutestica e interditar a
promiscuidade da besta ou o incesto dos deuses Todavia o feminino associa-se agrave
concepccedilatildeo da voracidade das forccedilas dissipadoras e destrutivas aportadas pelo fogo Sem
regramento ou controle o feminino natildeo integrado ritualmente consome o fruto dos
trabalhos e com sedutoras palavras e caraacuteter dissimulado induz aos homens a repeticcedilatildeo
miacutetica da imprevidecircncia de Epimeteu
A ambiguidade de Pandora eacute simetricamente compensatoacuteria agrave dyacutenamis piacuterica da
inteligecircncia astuciosa previdente Os males invisiacuteveis indistintamente libertos equilibram e
compensam a previsibilidade e presciecircncia aportada pela inteligecircncia demiuacutergica A
dissimulaccedilatildeo e olhar de catildeo satildeo a contraparte agrave agressatildeo e violecircncia potencializadas por
armas forjadas pelo fogo Por outro lado a esperanccedila retida no vaso opotildee-se agrave exterioridade
43
aberta dos males que assolam os homens Mistura de afeto e pensamento projetivo elpiacutes
anuncia em meio aos males bens somente pensaacuteveis e acalentados afetivamente no acircmago
humano
A causalidade inevidente confere sentido para a espontaneidade do mal na
experiecircncia humana aplaca a ansiedade das vivecircncias aterradoras e eacute o eacutelan para que a
inteligecircncia teacutecnica eluda a contingecircncia dos obstaacuteculos agrave vida Na leitura de Jenny Clay a
expectaccedilatildeo retida pode ser entendida com a mesma ambiguidade de Pandora ela confunde
o pensamento e promete becircnccedilatildeos enquanto sua natureza interna enganadora e caraacuteter
dissimulado mentem com palavras sedutoras Nesse sentido a expectaccedilatildeo seria um mal
iludente que promete e seduz mas que raramente entrega as ilusotildees aneladas (CLAY 2009
p 103) Natildeo obstante a inviolaacutevel posse de Elpiacutes claramente opotildee-se agrave dispersatildeo dos
males Sua accedilatildeo de oposiccedilatildeo eacute compensatoacuteria e natildeo da mesma natureza dos males
silenciosos autocircmatos (HESIacuteODO Trabalhos e os Dias 103) Sua posse implica a
significaccedilatildeo carreada pelo pensamento projetivo de bens pensaacuteveis e diziacuteveis mas incertos
Ela inscreve sentido e ordem numa sucessatildeo indistinta que de outra forma tornariam o
viver excessivamente pesado para ser suportado
O fogo furtado por Prometeu eacute um artifiacutecio derivaccedilatildeo secundaacuteria do fogo celeste
ocultado no interior de uma feacuterula oca e por essa razatildeo eacute um fogo destrutiacutevel e efecircmero
que estaacute no plano do devir e precisa ser alimentado para manter-se Mas eacute tambeacutem um
fogo teacutecnico o fogo do engenho e da metalurgia que possibilitam os meios para a
manutenccedilatildeo da vida10
O fogo dado aos homens representa o domiacutenio da inteligecircncia
teacutecnica astuciosa empregada para controlar as potecircncias naturais e eludir o estado de
10 Paul Diel empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica do mito de Prometeu que a despeito de ser dogmaacutetica e
arbitraacuteria correlaciona de maneira interessante o fogo com a ldquointelectualizaccedilatildeo utilitaacuteriardquo cuja caracteriacutestica eacute
encontrar os meios adequados para a satisfaccedilatildeo dos desejos multiplicados (1980 p 235-236)
44
absoluta carecircncia humana Ele guarda a mesma ambiguidade que marca a condiccedilatildeo dos
homens possui uma origem divina mas eacute por outro lado mortal como os homens e
selvagem como os animais
O fogo prometeacuteico consolida o sacrifiacutecio como o rito adequado para a interaccedilatildeo
entre duas instacircncias definitivamente segregadas e com isso estabelece a partir da daacutediva
da partilha e da retribuiccedilatildeo a emergecircncia ritualiacutestica dos esquemas mentais que compotildeem a
inteligecircncia causal organizadora da experiecircncia e da multiplicidade a conexatildeo infaliacutevel
entre dois eventos consecutivos no tempo a deliberaccedilatildeo projetiva inteligente a escolha de
meios eficazes com vistas a um fim uacutetil determinado a forja de instrumentos as noccedilotildees
proto-matemaacuteticas de medida equivalecircncia proporccedilatildeo igualdade e simetria
Por outro lado a integraccedilatildeo do seu duplo oposto o feminino implica o regramento
a sanccedilatildeo e a inibiccedilatildeo de princiacutepios de accedilatildeo tatildeo destrutivos e incontrolaacuteveis como a
voracidade do fogo selvagem ou do fogo divino o sexo e a violecircncia
15 Vergonha e causalidade a cosmogonia sexual do Papiro de Derveni
Em 1962 uma espetacular descoberta arqueoloacutegica de tumbas funeraacuterias na regiatildeo
grega de Derbeacuteni ( ) havia de insuflar uma forte corrente de novas pesquisas sobre
os cultos de misteacuterio gregos O ceacutelebre papiro de Derveni trouxe agrave luz a exegese de um
uma cosmogonia sagrada desenvolvida por um experto cuja pretensatildeo manifesta eacute a
transposiccedilatildeo didaacutetica de imagens miacuteticas polissecircmicas para o registro de uma explicaccedilatildeo
causal cifrada situada no contexto do pensamento preacute-socraacutetico de Heraacuteclito Anaxaacutegoras
Eutiacutefron e Estesiacutembroto de Thasos (FUNGHI apud LAKS 1997 p 25 ss)
A despeito da profusatildeo dos enfoques hermenecircuticos e das premissas sempre
conjecturais que visam preencher as lacunas incontornaacuteveis dos fragmentos recuperados
45
os eruditos satildeo unacircnimes em reconhecer no rolo de Derveni a mais antiga versatildeo cosmo-
teogocircnica conhecida ateacute hoje (CALAMEacute apud LAKS 1997 p 65) Embora o texto tenha
sido datado por Tsantsanoglou (2006 p 9) da segunda metade do seacuteculo IV (entre 340 e
320 aC) o estilo constitui um forte indiacutecio de que o seu cadinho mental remonta ao Vordm
seacuteculo e que sua linguagem natildeo poderia ser muito posterior a 400 aC (JANKO apud
TSANSTANOGLOU 2006 p 10) Para todos os propoacutesitos aqui assumidos a questatildeo da
autoria e a imprecisatildeo vexatoacuteria que acompanha as referecircncias agrave figura miacutetica de Orfeu natildeo
interferem na fenomenologia das imagens cosmogocircnicas e na re-significaccedilatildeo operada pelo
exegeta Importa sobretudo o modo de manter viva uma tradiccedilatildeo cultual iniciaacutetica
aparentemente anacrocircnica a um ambiente filosoacutefico centrado na busca de princiacutepios causais
cosmoloacutegicos Por essa razatildeo a neutralidade da opccedilatildeo adotada por Janko de referir-se agrave
cosmogonia do papiro como teleteacute ou hieroacutes loacutegos (LAKS 1997 p 26) mostra-se
pertinente
O conteuacutedo dos versos recuperados expotildee a narrativa de uma teogonia sagrada e a
criacutetica por parte do exegeta da interpretaccedilatildeo literal operada por mediadores falseados os
maacutegoi e a inconsequecircncia dos recipiendaacuterios que lhes pagavam altas somas (Col XX) A
questatildeo da iniciaccedilatildeo se apresenta por conseguinte atraveacutes da oposiccedilatildeo entre uma
inteligecircncia subjacente profunda hypoacutenoia e um entendimento literal manifesto O
comentador opera a decifraccedilatildeo de uma narrativa escrita em forma de enigmas cuja
finalidade duacuteplice seria resguardar um saber interdito aos profanos e assegurar a
transmissatildeo de uma tradiccedilatildeo iniciaacutetica atraveacutes do legiacutetimo inteacuterprete
um hino dizendo salutares (hygiḗ) e legalizadas (themitaacute)
palavras Pois um rito sagrado era executado atraveacutes do poema E
natildeo se pode liberar o sentido das palavras (enigmaacuteticas) e falar o
que foi dito Pois este poema eacute algo estranho (xeacutenē) e enigmaacutetico
(ainigmatōdes) para os homens Orfeu mesmo entretanto natildeo
46
desejou falar eriacutesticos enigmas (esriacutest‟ainiacutegmata) mas as grandes
coisas em enigmas (en ainiacutegmasin degrave megaacutela) De fato ele profere
um discurso sagrado (hierologeicirctai) da primeira palavra ateacute o
acabamento do poema Como ele torna claro em um bem
reconhecido verso pois tendo lhes ordenado bdquocolocar portas nos
ouvidos‟ ele afirma que natildeo legisla para os muitos [mas que
ensina] agravequeles de ouvidos puros e no verso seguinte
(Derveni Papyrus Col VII)11
O exegeta justifica a aparecircncia enigmaacutetica do poema atribuiacutedo a Orfeu pelo poder
de velamento das imagens expressas na composiccedilatildeo Os deuses permitem (themitaacute) que os
salutares discursos sagrados (hieroi loacutegoi) sejam ouvidos pelos ldquomuitosrdquo em funccedilatildeo de sua
incapacidade de decifrar-lhes o sentido subjacente A razatildeo para isso eacute ao mesmo tempo
ritual jaacute que o poema eacute associado a accedilotildees ritualiacutesticas e iniciaacutetica pois a purificaccedilatildeo do
ouvir pressupotildee um ensino e a transmissatildeo de um exerciacutecio de atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo agraves
imagens exerciacutecio interdito aos natildeo-iniciados A alusatildeo agrave sauacutede intriacutenseca aos versos
sugere um papel terapecircutico e purificatoacuterio neste exerciacutecio exegeacutetico
A iniciaccedilatildeo jaacute se anuncia aqui como modalidade de exerciacutecio ritual interpretativo
terapecircutico e cataacutertico para a inteligecircncia das grandes coisas Essa inteligecircncia conduz a
uma diferenciaccedilatildeo a um plano superior ser iniciado eacute mudar de estatuto atraveacutes da
inteligecircncia das questotildees mais elevadas que se contrapotildee agrave disputa eriacutestica contrafaccedilatildeo da
polissemia imageacutetica Natildeo obstante o falseamento natildeo se delimita somente agrave
inteligibilidade das grandes coisas mas agrave distinccedilatildeo dos princiacutepios que determinam o
emprego da eficaacutecia ritual e da finalidade de seu uso (TSANTSANOGLOU 2006 p 130)
Na coluna VI os maacutegoi exercem uma accedilatildeo eficaz sobre os daiacutemones almas vingadoras
atraveacutes da encantaccedilatildeo (epōidḗ) sacrifiacutecios e libaccedilotildees Os myacutestai usam os mesmos
11 Texto estabelecido por Tsantsanoglou com traduccedilatildeo ligeiramente modificada (2006 p 130)
47
procedimentos que os maacutegoi mas como seus princiacutepios de accedilatildeo satildeo opostos12
os
sacrifiacutecios endereccedilam-se agrave manifestaccedilatildeo benevolente das almas servidoras da justiccedila as
Eumecircnides (JOURDAIN 2003 6 p 37-39) O poema inicia-se com a menccedilatildeo
extremamente fragmentaacuteria das Eriacutenias (col I) almas honradas por libaccedilotildees marcas
honoraacuteveis de honra feitas atraveacutes de holocaustos de paacutessaros harmonizados com
muacutesica13
Todavia a eficaacutecia da encantaccedilatildeo maacutegica contraposta agraves honras dos sacrifiacutecios e
libaccedilotildees executadas pelos myacutestai se depara com limites coacutesmicos infrangiacuteveis
A correta interpretaccedilatildeo do poema eacute reforccedilada pela necessidade de se evitar o engodo
dos usurpadores dos procedimentos rituais e discursos sagrados e para a distinccedilatildeo entre o
caminho das almas vingadoras e o caminho das Eumecircnides servidoras benevolentes da
Justiccedila O comentador de Derveni consigna a Orfeu a inteligecircncia da ordenaccedilatildeo coacutesmica e
sua expressatildeo cifrada em imagens miacuteticas narradas num poema escrito Como afirma
Obbink (LAKS 1997 p 42) a narrativa do mundo de Orfeu entendida corretamente
(orthōs) espelha nosso koacutesmos O autor pressupotildee o fato de que Orfeu possuiacutea uma
12 Bernabeacute assimila os magos mencionados na Col VI aos sacerdotes persas e confere uma interpretaccedilatildeo
pejorativo agrave sua atividade encantatoacuteria como charlatatildees que operam artifiacutecios com a finalidade de expiar
antigas faltas Betegh ao contraacuterio assume que o autor de Derveni aplica o temo bdquomaacutegoi‟ a um grupo de
sacerdotes persas ao qual ele mesmo pertence (TSNATSANOGLOU 2006 p 166 167) Fabienne Jourdain
(2003 p 37) associa os Maacutegoi a uma tribo meda composta por uma casta sacerdotal encarregada de assegurar a regularidade dos procedimentos em mateacuteria religiosa e que seria subjugada pelo rei Cambises e
posteriormente perseguida por Dario Segundo Apuleius ldquoum mago eacute algueacutem que mediante a comunidade
de fala com os deuses imortais possui um incriacutevel poder de encantar qualquer coisa que desejarrdquo (GRAF
apud MIRECKI MEYER 2002 p 93) No papiro de Derveni o comentador segue uma tradiccedilatildeo que atribui
ao substantivo o sentido pejorativo de ldquocharlatatildeordquo Os praticantes de ritos propiciatoacuterios e foacutermulas
encantatoacuterias que atraveacutes de pagamento procuravam esconjurar a culpa por transgressotildees satildeo a contrafaccedilatildeo
do genuiacuteno iniciado 13 Eriacutenias eles honram libaccedilotildees satildeo derramadas em gotas para Zeus em cada templo Aleacutem disso deve
oferecer excepcional honra agraves [Eumecircnides] e queimar um paacutessaro para cada [um dos daiacutemones] E ele junta
[hinos] bem adaptados ( ) agrave muacutesica
(TSANTSANOGLOU 2006 p 65 129)
48
inteligecircncia privilegiada das verdades maiores e deliberadamente as expressa
imageticamente em versos enigmaacuteticos
A questatildeo crucial natildeo se reduz ao domiacutenio de uma discussatildeo etimoloacutegica acerca da
natureza da linguagem da sinoniacutemia ou da alegorese nos moldes de um Estesiacutembroto com
o escopo semacircntico de atualizar um discurso miacutetico anacrocircnico e cristalizado pela escrita14
Trata-se sobretudo do desvelamento de uma modalidade discursiva que eacute
intencionalmente aberta agrave polissemia como meio de resguardar um saber iniciaacutetico que
carrega em seu bojo homologias estruturais entre relaccedilotildees de imagens e relaccedilotildees coacutesmicas
causais A exegese do autor de Derveni eacute ao mesmo tempo a transposiccedilatildeo de um pensar
por imagens para uma cosmologia da causalidade e o desvelamento daquilo que eacute oculto (e
interdito aos olhos e ouvidos natildeo adestrados) pelo esforccedilo e pelo exerciacutecio ritual
O poema de Orfeu no enfoque de Obbink se insere num ambiente cultual comum a
uma seacuterie de textos fuacutenebres como as lacircminas de ouro Oacuterficas cujas imagens configuram a
visatildeo do mundo dos mortos associada aos ritos de misteacuterio ldquoNatildeo eacute soacute o texto miacutestico que
possui uma significaccedilatildeo velada mas o mundo como um todo taacute eoacutenta a existecircncia humana
e a morterdquo (LAKS 1997 p 53)
A natureza ama ocultar-se diz Heraacuteclito15
A sabedoria consiste tradicionalmente
no aacuterduo exerciacutecio de conferir sentido agravequilo que se apresenta de forma cifrada ou
enigmaacutetica notadamente a interpretaccedilatildeo das prolaccedilotildees do oraacuteculo de Delfos Eacute sobre este
exerciacutecio praacutetico derivado da instituiccedilatildeo oracular de Delfos que Soacutecrates justifica sua
atividade filosoacutefica A inquiriccedilatildeo socraacutetica consiste na escalada ao piacutencaro secular de uma
14 Para uma descriccedilatildeo panoracircmica do debate contemporacircneo ver o ensaio introdutoacuterio de M S Funghi
(LACKS 1997 ) 15 DK B 123 THEMISTIUS Or 5 p 69 (KAHN
2003 p 63)
49
tradiccedilatildeo erigida sobre a inteligecircncia subjacente aos enigmas do deus O aacutenax cujo oraacuteculo
estaacute em Delfos natildeo diz nem oculta daacute sinal16
O discurso divino caracteriza-se pela
oposiccedilatildeo entre a fala manifesta e a inteligibilidade oculta A investigaccedilatildeo do sinal aparente
consiste na hyponoacuteia o desvelamento do sentido oculto da inteligecircncia inevidente que
subjaz agrave manifestaccedilatildeo visiacutevel A autecircntica obediecircncia ao deus consiste em investigar a si
mesmo (DK 101) em replicar a indagaccedilatildeo paradigmaacutetica de Soacutecrates em sua defesa o que
fala enfim o deus e qual eacute afinal o sentido oculto (ainiacutettetai17
)
O discurso divino (heiroacutes loacutegos) possui um modo enigmaacutetico proacuteprio de expressatildeo
que exige o recurso de imagens cifradas Qual eacute a relaccedilatildeo entre o manifesto e o invisiacutevel
Por que aquilo que natildeo estaacute presente ao olhar possui primado em relaccedilatildeo ao imediato Por
que buscar a inteligibilidade no oculto Por que o inevidente se assimila ao divino e por que
o discurso sagrado se expressa na plurivocidade das imagens e natildeo na literalidade da
palavra
O comentador de Derveni associa a natureza coacutesmica com o regramento e a
infrangibilidade dos limites divinos estabelecidos nas leis da phyacutesis Daiacutemones e Eriacutenias
satildeo almas psyacutekhai potecircncias invisiacuteveis servidoras da Justiccedila Diacuteke aparece como a
retribuiccedilatildeo infaliacutevel para a transgressatildeo aos limites coacutesmicos garantida por potecircncias
invisiacuteveis servidoras O viacutenculo inquebrantaacutevel entre transgressatildeo e retribuiccedilatildeo eacute
assegurado pela funccedilatildeo de vigilacircncia das almas A inteligecircncia apanaacutegio psiacutequico tem na
vigilacircncia da causalidade um princiacutepio constitutivo primordial Por essa razatildeo o
16 B 93 PLUT de Pyth or 21 p 404
Disponiacutevel em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics22-B92gt 17 Apologia 21b 04 (LEXICON I 2003)
50
comentador menciona o fragmento mais antigo de Heraacuteclito qualificando seu estilo
gnocircmico ao modo dos mitoacutelogos que falam por imagens
aquele que ltmudagt o que eacute estabelecido dar Ele
(Heraacuteclito) que precisamente se assemelha aos contadores de mitos
quando se exprime assim o sol segundo sua proacutepria natureza
possui a largura de um peacute humano natildeo ultrapassaraacute suas
medidas pois se ele excede sua proacutepria largura em algum grau as
Eriacutenias o descobriratildeo auxiliares de Diacuteke
(Col IV)18
Os maacutegoi procuram eludir transgressotildees de crimes passados atraveacutes de encantaccedilotildees
e sacrifiacutecios Mas as coisas estabelecidas (keiacutemena) natildeo podem ser modificadas Haacute uma
correlaccedilatildeo entre as leis coacutesmicas e as consequecircncias das accedilotildees humanas pois as mesmas
potecircncias invisiacuteveis asseguram o viacutenculo A apreensatildeo da inteligibilidade coacutesmica eacute parelha
agrave compreensatildeo das implicaccedilotildees psiacutequicas desencadeadas pela praacutexis O koacutesmos brota das
disposiccedilotildees da ordenaccedilatildeo (taacutexin) e natildeo do acaso A mesma Justiccedila que o regra impotildee
limites para o agir humano A referecircncia a Heraacuteclito indica que o campo da ascensatildeo
iniciaacutetica eacute simultaneamente cosmoloacutegico e eacutetico e faz parte da mesma tradiccedilatildeo da qual
emerge o ambiente mental dos preacute-socraacuteticos
Na sua abordagem estrutural-historicista sobre a formaccedilatildeo do pensamento positivo
grego Vernant sublinha o considera uma ldquomutaccedilatildeordquo mental operada pelos filoacutesofos
jocircnicos enquanto a loacutegica do mito hesioacutedico possui a ambiguidade de apreender
simultaneamente o mesmo fenocircmeno como fato natural no mundo visiacutevel e como geraccedilatildeo
divina no tempo primordial os elementos da Filosofia jocircnica seriam despojados de todo
caraacuteter antropomoacuterfico (VERNANT 2002 p 449 ss) Os elementos da Filosofia mileacutesia
18
(JOURDAIN 2003 v 6-10 p 4)
51
satildeo ao mesmo tempo ldquoforccedilasrdquo ativas divinas e naturais Embora o koacutesmos seja uma
ordenaccedilatildeo divina a causalidade jaacute natildeo eacute personificada mas delimitada e abstraiacuteda na
consecuccedilatildeo de efeitos fiacutesicos determinados Haveria uma mudanccedila de registro explicar e
compreender natildeo seriam mais encontrar a genealogia mas os princiacutepios primeiros
constitutivos do ser que implicam regularidade e ordenaccedilatildeo e que fazem com que koacutesmos
seja verdadeiramente um ldquoarranjordquo O historicismo marxista de Vernant comprometido
com a concepccedilatildeo de progresso ofusca a possibilidade hermenecircutica da coexistecircncia entre
planos polissecircmicos abertos que satildeo compartilhados por uma tradiccedilatildeo ritual iniciaacutetica e pela
exegese filosoacutefica que natildeo deixa de ser iniciaacutetica e ritual na praacutexis de um biacuteos
Na mudanccedila de registro operada por Heraacuteclito em particular as potecircncias divinas
satildeo despojadas de seu caraacuteter antropomoacuterfico e os nomes se revestem da sobriedade que
origina um vocabulaacuterio ontoloacutegico novo (RAMNOUX 1968 p 1-9) Mas o caraacuteter
indiferenciado do deus permanece no pensamento filosoacutefico
O deus dia noite inverno veratildeo guerra paz saciedade fome Ele
muda como se misturado a perfumes eacute nomeado segundo o gosto
de cada um
DK 67 (KAHN 2003 p 105)
Qual eacute o papel do fogo nesse cenaacuterio mental O que o dieferencia dos esquemas miacuteticos
hesioacutedicos Qual a relaccedilatildeo do fogo com os incensos Tal como o oacuteleo serve de meio neutro
para o perfume e recebe o nome do aroma o incenso evola-se do fogo e recebe o nome do
aroma do qual eacute constituiacutedo Nomeia-se o incenso natildeo pelo fogo mas pelo nome do
perfume que evola-se Deus da mesma maneira estaacute presente em tudo segundo as estaccedilotildees
e os dias mostrando-se sem cessar pelas contradiccedilotildees que compotildeem o drama da vida O
homem esquece-se do elemento que serve de base para todas as transformaccedilotildees que
compotildeem esse drama e nomeia cada aspecto segundo seu gosto (RAMNOUX 1968 P 377
52
ss) Para Heraacuteclito a coexistecircncia dos pares de opostos mostra aspectos multifacetados do
Um indistinto modos de contrariedade que manifestam um cosmo divino e um deus
presente em toda a physis Cada par de opostos constitui uma porccedilatildeo do Loacutegos divino
Quando se mistura uma multiplicidade de arocircmatas e se lhes atira ao fogo haacute
simultaneamente uma multidatildeo de perfumes e um uacutenico e indistinto fogo Do mesmo
modo haacute uma divindade e muitos nomes
Conforme observa Kahn o fragmento conteacutem a uacutenica definiccedilatildeo da divindade nos
fragmentos atribuiacutedos a Heraacuteclito A primeira parte do fragmento descreve a divindade em
termos formais mediante pares de opostos O texto sugere uma unidade coacutesmica que
ultrapassa a concepccedilatildeo tradicional da divindade Guerra e fogo satildeo designaccedilotildees de um
princiacutepio universal de ordem e justiccedila que eacute sobre-divino e coincide com o Um o princiacutepio
supremo que governa o koacutesmos e nutre todas as leis humanas (DK 114) O divino ldquoumrdquo eacute o
princiacutepio unificador representado pela guerra e pelo fogo eterno identificado com o
koacutesmos e que eacute o mesmo para todos os seres aceso com medida e com medida apagado19
(KAHN 2003 p 182-192) Deus eacute definido e identificado com os pares de opostos e
representa a unidade e a regularidade de um padratildeo de alternacircncia e de interdependecircncia
entre todos os opostos A identificaccedilatildeo da divindade com o padratildeo de alternacircncia entre
opostos determina a ordenaccedilatildeo coacutesmica Em Heraacuteclito a divindade eacute o que haacute de
regularidade nas manifestaccedilotildees infinitamente variegadas da Natureza eacute o princiacutepio de
ordenaccedilatildeo o Loacutegos que eacute tambeacutem o princiacutepio de unificaccedilatildeo que estaacute para aleacutem da
divindade tradicional hesioacutedica Na Filosofia de Heraacuteclito a causalidade eacute a relaccedilacirco
inexoraacutevel dos opostos que se alternam e a inteligecircncia teacutecnica eacute tatildeo somente uma
19
DK30
(KAHN 2003 p 73)
53
manifestaccedilatildeo particular de uma inteligecircncia coacutesmica universal ndash limite intransponiacutevel que
determina as ldquomedidas do fogordquo O koacutesmos eacute uma estrutura que abarca simultaneamente
todos os opostos como manifestaccedilatildeo de um padratildeo uacutenico o fogo que se mistura a incensos
Tal estrutura eacute um arranjo inteligente um Loacutegos metaforicamente expresso pelo fogo
O fogo segundo Charles Kahn (2003 p 138) eacute um siacutembolo de vida de vida sobre-
humana visto que eacute um elemento no qual nenhum ser vivo pode viver Aleacutem disso eacute um
poder que recebe os mortos na morte Representa simultaneamente a vida a criatividade a
morte e a destruiccedilatildeo Como fogo sacrificial ele representa o deus Ele eacute o elemento divino
inscrito na atividade humana que possibilita as teacutecnicas e a induacutestria que separam o homem
dos animais O fogo natildeo eacute um elemento material Eacute um processo de transiccedilatildeo de um estado
para outro um siacutembolo vivo da mudanccedila da vida e da morte do movimento e da
inteligecircncia criativa Em Heraacuteclito o fogo eacute o elemento do paradoxo As reversotildees do fogo
(DK 31) satildeo concebidas como medidas de um ciclo tal como a medida do pecircndulo
Para Anaximandro a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo pagam mutuamente as injusticcedilas
segundo a ordenaccedilatildeo do tempo ou seja a retribuiccedilatildeo eacute paga de acordo com a ordem do
tempo20
Princiacutepio dos seres o ilimitado pois o que eacute a geraccedilatildeo
para os seres a corrupccedilatildeo eacute para estes ao se gerar segundo o
necessaacuterio pois datildeo justiccedila a si mesmos e pagamento uns aos
outros pela injusticcedila segundo a ordenaccedilatildeo do tempo21
Heraacuteclito concebe a noccedilatildeo coacutesmica de trocas como um padratildeo de justiccedila segundo a
qual nada ocorre sem a justa retribuiccedilatildeo ou pagamento O princiacutepio que rege todo processo
20
(B 1 SIMPLIC Phys 24 13) Disponiacutevel
em lthttppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-Bgt 21 Trad de Cavalcante de Souza modificada (2000 p 50)
54
de mudanccedila eacute a justa retribuiccedilatildeo que ocorre segundo um criteacuterio em ldquomedidasrdquo Isso
significa que a estrutura coacutesmica eacute mantida pela causalidade como princiacutepio de ordenaccedilatildeo
A ldquomedidardquo que rege as trocas eacute preservada sobre uma sequumlecircncia de estaacutegios em uma
progressatildeo temporal que retorna ao ponto inicial do ciclo As medidas de igualdade satildeo
rigorosamente respeitadas pela retribuiccedilatildeo A noccedilatildeo de Justiccedila abarca natildeo somente a praacutexis
eacutetico-poliacutetica mas enraiacuteza-se na forja que molda laboriosamente a noccedilatildeo multifacetada da
causalidade Como afirma Vlastos (1947 p 146) o campo de aplicaccedilatildeo da palavra justiccedila
vai muito aleacutem da esfera legal e moral
Respeitar a natureza de algueacutem ou de algo eacute ser ldquojustordquo
com eles Piorar ou destruir a natureza eacute ldquoviolecircnciardquo ou
ldquoinjusticcedilardquo Assim em uma passagem bem conhecida Solon fala
do mar como o ldquomais justordquo quando imperturbaacutevel pelos ventos
natildeo perturba a ningueacutem ou a nenhuma coisa A lei da medida natildeo eacute
nada mais do que um refinamento desta ideacuteia de que a proacutepria
natureza de algueacutem e a natureza dos outros possuem limites que
natildeo podem ser ultrapassados
A justiccedila coacutesmica eacute uma concepccedilatildeo da natureza em geral
como associaccedilatildeo harmocircnica cujos membros observam ou satildeo
compelidos a observar a lei da medida Pode haver morte e
destruiccedilatildeo oacutedio e ateacute mesmo corrupccedilatildeo (como em Anaximandro)
Haacute justiccedila natildeo obstante se a usurpaccedilatildeo eacute invariavelmente
reparada e as coisas satildeo reinstaladas em seus limites proacuteprios
A causalidade em Heraacuteclito adquire um estatuto eminente de lei soberana que
cinge e preside a ordenaccedilatildeo coacutesmica O princiacutepio de regramento unificador pressupotildee as
concepccedilotildees de ldquomedidardquo ldquoigualdaderdquo ldquoequivalecircnciardquo ldquocompensaccedilatildeordquo ldquoproporccedilatildeordquo e
serve como fonte nutriz para as atividades humanas Na cosmologia de Heraacuteclito o fogo
teacutecnico eacute apenas uma fagulha do fogo coacutesmico a inteligecircncia humana assimila-se ao ciclo
coacutesmico divino e a Natureza permanece como fronteira divina intransponiacutevel
salvaguardada pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
55
A causalidade no papiro de Derveni entremeia o plano das imagens miacuteticas
teogocircnicas com a significaccedilatildeo inevidente propiciada pela exegese cosmoloacutegica A eficaacutecia
das praacuteticas rituais dos maacutegoi atua como violaccedilatildeo entre a conexatildeo inquebrantaacutevel entre
falta e retribuiccedilatildeo excesso e compensaccedilatildeo O adivinho encantador eacute o intermediaacuterio
privilegiado entre o visiacutevel e o invisiacutevel entre o sacrifiacutecio violento e a puniccedilatildeo invisiacutevel
evitada A divisatildeo entre as imagens imediatas do poema e a interpretaccedilatildeo do seu sentido
oculto traz ao primeiro plano o conhecimento das causas e a legitimidade da transmissatildeo
Haacute uma homologia estrutural entre a transmissatildeo iniciaacutetica do ritual de misteacuterio e a
transmissatildeo iniciaacutetica de uma cosmologia que deve ser necessariamente misteriosoacutefica O
segredo consiste numa garantia contra a usurpaccedilatildeo do viacutenculo inexoraacutevel entre o longo
esforccedilo exigido pela via iniciaacutetica e a compreensatildeo das grandes verdades enigmaacuteticas que
soacute pode surgir como apanaacutegio de uma conquista de um estatuto superior de uma praacutetica de
vida concomitante agrave investigaccedilatildeo dos princiacutepios do koacutesmos
O sentido oculto pressupotildee um processo de conhecimento que se origina a partir de
imagens e signos provisoacuterios cujo papel deve ser o de remeter o inteacuterprete treinado para
realidades invisiacuteveis inevidentes
Por que natildeo crecircem (apistoucircsi) nas coisas terriacuteveis (deinagrave)
que os esperam no HadesSe natildeo compreendem (gignōskontes)
imagens oniacutericas (enyacutepnia) nem nenhuma outra de suas
manifestaccedilotildees praacuteticas particulares (tōn aacutellōm pragmaacutetōm
heacutekaston) por meio de que paradigma (paradeigmaacutetōm) se faria
com que cressemPois aqueles que tendem para a falta e os
prazeres que prevalecem nem aprendem nem crecircem (ou
manthaacutenousin oudegrave pisteuacuteousi) Pois incredulidade e ignoracircncia
satildeo o mesmo De fato se nem aprendem nem compreendem natildeo
haacute como crer ainda que vendo22
(Col V)
22 Trad de Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 5 35-36)
56
As imagens oniacutericas (aquilo que eacute interno aos sonhos) configuram pontos de partida
para o conhecimento de accedilotildees Assim como a teleacutestica exige a transmissatildeo de um saber o
conhecimento das leis coacutesmicas exige a passagem da apreensatildeo das imagens manifestas
para a compreensatildeo de semelhanccedilas de homologias entre planos muacuteltiplos de significaccedilatildeo
discursiva e o koacutesmos A atividade exegeacutetica do comentador evidencia que o conhecimento
eacute intrinsecamente dependente de paradigmas imageacuteticos Aprender e compreender satildeo
diferentes de crer e incredulidade e ignoracircncia assimilam-se mutuamente pois a crenccedila eacute
um passo imprescindiacutevel tanto para aprender como para compreender Ademais o maior
obstaacuteculo para o aprendizado e para o conhecimento consiste na vitoacuteria dos prazeres Se o
conhecimento implica a transposiccedilatildeo de imagens ao mesmo tempo aparentes e
enigmaacuteticas para a inteligecircncia inaparente os prazeres induzem ao erro porque subjugam
vencem e impedem o aprendizado e a crenccedila na prisatildeo ao manifesto imediato Vencer a
tirania dos prazeres imediatos constitui o princiacutepio ritual para o conhecimento das grandes
verdades daiacute a inextricabilidade entre o sentido simboacutelico o segredo e o conhecimento
A palavra syacutembolon natildeo eacute atesta Burkert (1972 p 179) uma adiccedilatildeo da tradiccedilatildeo
tardia mas reflete uma concepccedilatildeo preacutevia a toda e qualquer exegese ldquosimboacutelicardquo Todos os
misteacuterios possuem segredos (apoacuterrēta) e palavras de passe secretas (syacutembola synthḗmata)
interpretados em um discurso sagrado (hierograves loacutegos) cujo sentido natildeo deve ser revelado
aos natildeo-iniciados
No domiacutenio da religiatildeo de misteacuterio satildeo bdquopalavras
de passe‟ ndash foacutermulas especificadas ditos (encantaccedilotildees)
dadas ao iniciado que asseguram por meio de seus confrades e
especialmente pelos deuses que seu novo e especial estatuto seja
reconhecido (BURKERT 1972 p 176)
57
No papiro de Derveni o exegeta indica a necessidade preacutevia de ldquocolocar portas nos
ouvidosrdquo pois Orfeu natildeo teria instituiacutedo leis para os muitos mas para aqueles cujos
ouvidos foram purificados (JOURDAIN 2003 p 44-45)
A teogonia escrita segue pari passu agrave cosmologia que emerge da interpretaccedilatildeo das
imagens Zeus recebe de seu pai a soberania ou a potecircncia (tegraven arkhḗn) como um filho
sucede ao pai (Col IX) A engendraccedilatildeo e a transferecircncia da forccedila sugerem a moldagem
coacutesmica a partir de princiacutepios e potecircncias primordiais O fogo possui a potecircncia de afastar
os seres e impedi-los de se combinar por causa do aquecimento Os seres aquecidos natildeo
podem juntar-se em massas compactas A nutriz dos deuses Niacutex possui a funccedilatildeo oracular
da profecia equivalente miacutetico do ensino da instruccedilatildeo foneacutetica que se vale da palavra
como meio de transmissatildeo (Col X) A fala articulada exige a faculdade foneacutetica como
mediaccedilatildeo necessaacuteria para o ensino A potecircncia profeacutetica da Noite indica a projeccedilatildeo
temporal da sua ldquoinstruccedilatildeordquo das regras mediadas pelo princiacutepio material Predizer equivale
a ensinar ou transmitir regramento Assim a Noite inscreve instruccedilatildeo no movimento
desencadeado pelo fogo e exerce uma accedilatildeo de resfriamento oposta ao aquecimento preacutevio
A disjunccedilatildeo operada pelo fogo eacute seguida pela combinaccedilatildeo propiciada pelo
aquecimento Sol e Noite satildeo potecircncias opostas de separaccedilatildeo e combinaccedilatildeo aquecimento e
resfriamento Os oraacuteculos da Noite satildeo proferidos das profundezas de santuaacuterio (aacutedyton)
impenetraacutevel (Col XI) As instruccedilotildees regradas satildeo fixas e interditas aos olhos profanos
pois a impenetrabilidade noturna eacute a imagem estaacutetica que se contrapotildee agrave periodicidade da
luz solar penetrante O proferimento oracular possui a finalidade de preservar as leis
(theacutemis) fixas que regem as profundezas dos seres a sua natureza oculta que faculta aos
myacutestai a capacidade de previsatildeo futura acerca das combinaccedilotildees e disjunccedilotildees das partiacuteculas
58
A Noite primordial exerce seu poder sobre o nevado Olimpo (Col XII) cuja
luminosa altitude e frieza satildeo assimiladas ao tempo cronoloacutegico A altitude e a largura
constituem grandezas polarizadas que simbolizam o regramento cronoloacutegico e o
regramento espacial identificado com o horizonte celeste O poder causal da Noite instaura
medidas no tempo-espaccedilo no qual se desenrolam as combinaccedilotildees e separaccedilotildees das
partiacuteculas Mas a potecircncia coacutesmica da geraccedilatildeo e soberania eacute identificada com a potecircncia
sexual
() o genital (aidoicircon) engoliu aquele que no eacuteter jorrou
primeiro Mas jaacute que em todo o poema ele recorre a enigmas para
falar das coisas pragmaacuteticas eacute necessaacuterio falar de cada verso
Vendo que os homens por haacutebito consideravam que a geraccedilatildeo
reside nos genitais (em toicircs aidoiacuteois) ele utiliza esse nome e como
eles consideravam que sem os genitais natildeo haacute geraccedilatildeo ele usa essa
palavra assimilando o sol ao genital De fato sem o sol natildeo eacute
possiacutevel que os seres venham a ser tais como satildeo ()
(Col XIII)23
Como observa Claude Calame (LAKS 1993 p 67 ss) na literatura grega aidoicircai
designa a genitaacutelia masculina ou feminina as vergonhas Os genitais satildeo a expressatildeo da
potecircncia geradora e a soberania coacutesmica assimila o poder de geraccedilatildeo em si mesma atraveacutes
da sequecircncia de accedilotildees na qual Zeus engole o pecircnis (aidoicircon) a proacutepria imagem da potecircncia
identificada com o sol O poder procriador manifesta-se na ambiguidade enigmaacutetica do
substantivo masculino aidoicircos que designa o genital masculino mas que pode ter tambeacutem
o sentido ativo de respeitoso e o sentido passivo de veneraacutevel (RAMNOUX 1968 p 97)
O princiacutepio procriador responsaacutevel pela geraccedilatildeo de todos os seres encontra no sol a
venerabilidade celeste da qual brotam as realidades que vecircem agrave luz Zeus por separaccedilatildeo
jorra no ar da brancura e brilho do resplandecente Kronos engendrado a partir do sol e da
23 Trad Fabienne Jourdain com modificaccedilotildees (2003 p 13)
59
Terra pelo choque das partiacuteculas umas com as outras (col XIV) Kronos aquele que choca
identifica-se com o Noucircs a Inteligecircncia que choca as partiacuteculas entre si Ouranos filho de
Euphroneacuteia a Noite eacute destituiacutedo da realeza pelo choque dissociativo empreendido pelo
Intelecto
A potecircncia procriadora inteligente associa a colisatildeo de partiacuteculas coacutesmicas com a
propriedade primordial da inteligecircncia de separar e discriminar A justaposiccedilatildeo do sol no
centro coacutesmico implica a transferecircncia da soberania para Zeus que possui a inteligecircncia
astuciosa Meacutetis Agrave segregaccedilatildeo e poder gerador do genital ajunta-se a inteligecircncia projetiva
astuciosa As realidades originam-se do genital coacutesmico e o Protogoacutenos eacute rei veneraacutevel
(aidoucirc) engendrado a partir de partiacuteculas eternas Toda a geraccedilatildeo coacutesmica pressupotildee o
concurso simultacircneo da potecircncia procriadora e do Noucircs Inteligecircncia primordial ldquoO
Intelecto eacute rei de todas as coisasrdquo As imagens cosmoloacutegicas forjadas pela exegese
simboacutelica satildeo consonantes com as concepccedilotildees pitagoacutericas de Filolau de Croacutetona
ndash E existem quatro princiacutepios do animal racional tal como Filolau
diz no ldquoDa Naturezardquo ceacuterebro coraccedilatildeo umbigo e os genitais A
cabeccedila eacute a sede do intelecto o coraccedilatildeo da alma e da sensaccedilatildeo o
umbigo do enraizamento e do primeiro crescimento os genitais da
emissatildeo de sementes e da geraccedilatildeo O ceacuterebro conteacutem o princiacutepio
do homem o coraccedilatildeo princiacutepio dos animais o umbigo o princiacutepio
das planta os genitais o princiacutepio de todos os seres vivos Pois
todas as coisas crescem e florescem das sementes F13 ndash
Theologumena arithmeticae 25 17
O acervo imageacutetico que associa o princiacutepio causal da geraccedilatildeo aos genitais eacute
onipresente na mentalidade grega na qual coexistem os cultos iniciaacuteticos e a Filosofia
cosmoloacutegica preacute-platocircnica A polissemia aberta suscita a questatildeo de que a vergonha eacute um
afeto primordial constitutivo Tal afeto irrompe da exposiccedilatildeo agrave visatildeo do devir derivado da
accedilatildeo sexual vinculada agrave luz solar fecundante Este viacutenculo entre enigma desvelamento e
vergonha tambeacutem eacute encontrado em Heraacuteclito (KAHN 2009 p 103)
60
Natildeo fosse Dioniso pelo qual marcham em procissatildeo e
cantam o hino ao falo suas accedilotildees poderiam ser vergonhosas Mas
Hades e Dioniso satildeo o mesmo por quem deliram e celebram a
Lenaia
(DK 15)
O jogo de oposiccedilotildees entre o poder procriador do falo e a morte entre a exposiccedilatildeo
vergonhosa e o invisiacutevel aideacutes justificam o canto ritual aidō que reclama exegese
filosoacutefica Dioniso e Hades satildeo o mesmo O deus da potecircncia sexual do transe e do
entusiasmo baacutequico eacute o mesmo deus da morte do invisiacutevel e das terriacuteveis puniccedilotildees que
aguardam os impuros no mundo dos mortos A potecircncia criadora do falo vergonha implica
a identidade com a inevitaacutevel morte com a retribuiccedilatildeo invisiacutevel e infaliacutevel A exposiccedilatildeo
vergonhosa manifesta implica a inexorabilidade oculta da retribuiccedilatildeo Vergonha e puniccedilatildeo
satildeo dois aspectos de uma identidade aidoacutes e diacuteke causalidade soberana salvaguardada
pelas Eriacutenias servas da Justiccedila
61
II - O MITO DO PROTAacuteGORAS teacutekhnai aidōs e diacutekē
Oacute Soacutecrates ele disse eu natildeo me recusarei mas por qual dos dois
modos o do mais velho que fala para com os mais jovens
demonstrando um mito ou narrando em detalhe por um discurso
(Protaacutegoras 320c02-04)24
O bom conselho que configura a preferecircncia (eubouliacutea) imbrica simultaneamente a
narrativa bem demonstrada e a argumentaccedilatildeo razoaacutevel Quando se trata da escolha
prudente a boa ordenaccedilatildeo do querer precede a boa ordem no agir e no falar (kaigrave praacutettein
kaigrave leacutegein) O discurso que move o querer se modela na razoabilidade das imagens miacuteticas
pois uma crenccedila soacute eacute verossiacutemil atraveacutes da ordenaccedilatildeo do loacutegos
O que explica a desigualdade entre homens iguais no que diz respeito aos dons
naturais para as teacutecnicas e a igualdade poliacutetica entre homens desiguais Como conciliar
estes opostos polarizados Por que o bom conselho concernente agraves teacutecnicas pressupotildee o
conhecimento o ensino e o especialista (dēmiurgoacuten) ao passo que o bom conselho poliacutetico
permite a opiniatildeo de qualquer um A narrativa miacutetica entremeada agrave phroacutenesis propicia a
inteligecircncia multivalente O ponto comum entre as imagens miacuteticas e o loacutegos eacute o seu poder
de invariacircncia pelo qual a presenccedila e realizaccedilatildeo da praacutexis viva remanescem e reaparecem
Tal eacute o caraacuteter primordial do discurso e do mito ambos expressam a invariacircncia no
movimento e tal como o divino natildeo constituem um apanaacutegio humano mas algo que se
apresenta como realidade viva Eacute por meio das accedilotildees e do falar que o homem apreende e
modela a sua realidade vivida captando-a natildeo mediante noccedilotildees exclusivamente racionais
mas atraveacutes de imagens que configuram uma inteligecircncia complexa (NUNES SOBRINHO
2008 p 30)
24
62
Natildeo obstante por que Platatildeo consigna uma grande narrativa miacutetica agrave fala de
Protaacutegoras um dos maiores sofistas contemporacircneos de Soacutecrates E por que esse mito
reproduz as imagens antropogecircnicas das narrativas hesioacutedicas Em sua anaacutelise das menccedilotildees
a Hesiacuteodo e Homero no corpus platocircnico Naoko Yamagata (in BOYS-STONES
HAUBOLD 2010 p 67-88) observa que Hesiacuteodo e Homero contribuiacuteram para os mitos
platocircnicos mais do que quaisquer outros poetas Os mitos que emprestam imagens de
Hesiacuteodo satildeo em geral mitos antropogecircnicos O mito do Protaacutegoras em particular cuja
estrutura eacute marcadamente hesioacutedica seria caracteristicamente anti-socraacutetico A tese geral de
Yamagata eacute a de que Hesiacuteodo eacute frequentemente ldquoinvocado como suporte para argumentos
epidecirciticos de natureza duacutebiardquo Haveria uma marcada tendecircncia em alguns diaacutelogos em
contrastar o uso ldquosofiacutesticordquo de Hesiacuteodo com um uso mais caracteristicamente socraacutetico de
Homero
Soacutecrates claramente prefere Homero a Hesiacuteodo mesmo em
diaacutelogos em que ele eacute alvo de ataque (Ion Repuacuteblica)
Ocasionalmente o contraste entre o Homero socraacutetico e o Hesiacuteodo
sofiacutestico ajuda a articular a estrutura global de um diaacutelogo
(Banquete Protaacutegoras) () Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟
tendem a ser estruturados diferentemente daqueles com um forte
sabor homeacuterico estes uacuteltimos satildeo todos narrados por Soacutecrates e
satildeo apresentados como relativamente ambiciosos quanto agrave sua
pretensatildeo agrave verdade Os mitos de Platatildeo mais bdquohesioacutedicos‟ satildeo
postos na boca de outros interlocutores que natildeo Soacutecrates e satildeo
estruturados como entretenimento (Protaacutegoras) jogo (Poliacutetico) ou
meramente verossiacutemil (Timeu) O uacutenico maior mito hesioacutedico
narrado por Soacutecrates eacute apresentado como uma bdquomentira Feniacutecia‟
(YAMAGATA in BOYS-STONES HAUBOLD 2010 p 88)
Embora o levantamento de Yamagata seja sugestivo no que tange ao escopo criacutetico
das narrativas de cunho hesioacutedico a suma cosmoloacutegica do Timeu e do mito do Poliacutetico
possuem uma densidade filosoacutefica de grandeza incompatiacutevel com qualquer desvalorizaccedilatildeo
e soacute satildeo anti-socraacuteticos na medida em que satildeo caracteristicamente platocircnicos Os mitos de
63
julgamento por outro lado satildeo explicitamente vinculados agraves ldquoantigas tradiccedilotildeesrdquo (paacutelai
leacutegetai Feacutedon 63c 06) de misteacuterios e natildeo podem ser identificados somente com a neacutekya
do livro XI da Odisseacuteia
Mesmo a narrativa encenada no Protaacutegoras evoca uma longa cadeia de transmissatildeo
oriunda dos cultos de misteacuterio e valores que compotildeem o ambiente mental grego Giovanni
Casadio (2010 p 3-5) distingue para efeito de anaacutelise os cultos de misteacuterios gregos em
modalidades diversas e salienta especialmente o caraacuteter da transmissatildeo de uma sabedoria
tradicional
Misteacuterios em geral implicam cerimocircnias especiais que satildeo
caracteristicamente esoteacutericas e frequentemente conectadas com o
ciclo anual da agricultura Usualmente eles envolvem o destino de
poderes divinos sendo venerados e a comunicaccedilatildeo de sabedoria
religiosa que habilita o iniciado a vencer a morte Eles eram parte
da vida religiosa geral mas separados do culto puacuteblico que era
acessiacutevel a todos Por essa razatildeo eram tambeacutem chamados ldquocultos
secretosrdquo(aporrēta) () ldquoMisteacuterio propriamente envolve toda
uma estrutura iniciatoacuteria de alguma duraccedilatildeo e complexidade cujo
tipo (e em muitos casos o real modelo) eacute Eleusis O ldquoculto
miacutesticordquo envolve natildeo a iniciaccedilatildeo mas antes uma relaccedilatildeo de
intensa comunhatildeo tipicamente extaacutetica ou entusiaacutestica com a
divindade (ex frenesi Baacutequico ou o kibeboiacute de Cybele) O culto
ldquomisteriosoacuteficordquooferece uma antropologia escatologia e meios
praacuteticos de reuniatildeo individual com a divindade cuja forma
primitiva e original eacute o Orfismo
O mito do Protaacutegoras amalgama elementos diacutespares da tradiccedilatildeo religiosa grega e
por isso aponta para uma composiccedilatildeo ao mesmo tempo argumentativa e narrativa que se
desdobra caracteristicamente numa espeacutecie de bricolage O amaacutelgama de um complexo de
elementos tradicionais dispostos numa sequecircncia de imagens sugere a hipoacutetese de que
Platatildeo como se fora sofista ao mesmo tempo em que fundamenta teses na tradiccedilatildeo rompe
com ela modificando-a atraveacutes de uma nova transmissatildeo re-significada Como afirma
Radcliffe Edmonds ldquouma narrativa dramatiza ldquovaloresrdquo mostrando na perspectiva do
64
narrador o que eacute bom e o que eacute inuacutetil ou maurdquo e salienta que os elementos tradicionais satildeo
evocativos (em vez de descritivos) de associaccedilotildees que ultrapassam o significado imediato
Os desdobramentos desencadeados pela sequecircncia de imagens accedilotildees e caracteres atraveacutes
da estrutura da narrativa carregam em seu bojo significaccedilatildeo para a audiecircncia (CASADIO
2010 p 74-75)
Composta a partir do acervo de imagens da mentalidade grega o mito do
Protaacutegoras eacute um constructo dramaacutetico de Platatildeo seu emprego argumentativo e retoacuterico
encenado pelo ceacutelebre mestre de sabedoria Protaacutegoras emana a fragracircncia acre-doce da
ironia platocircnica A encenaccedilatildeo articula-se com todo aroma irocircnico que permeia o diaacutelogo e
traz em seu bojo a discriminaccedilatildeo platocircnica que visa determinar a especificidade da
Filosofia mediante a cuidadosa separaccedilatildeo e descaracterizaccedilatildeo do ensino sofiacutestico
O mito do Protaacutegoras inicia-se com a afirmaccedilatildeo de uma clivagem no tempo Era um
tempo em que os deuses existiam mas os mortais natildeo25
A existecircncia preacutevia dos deuses
indica natildeo somente um tempo proacuteprio aos deuses mas a natildeo homogeneidade do tempo O
tempo dos mortais eacute essencialmente outro em relaccedilatildeo ao tempo dos deuses Por que o mito
comeccedila com a polarizaccedilatildeo e oposiccedilatildeo entre tempo dos deuses e tempo dos homens A
distinccedilatildeo qualitativa que rompe a homogeneidade esboccedila a concepccedilatildeo de que nem todo
devir nem todo tempo eacute equivalente a outro Haacute o tempo dos deuses o tempo das origens
o tempo forte que antecede o existir da experiecircncia humana e que por seu primado eacute um
tempo paradigmaacutetico exemplar absoluto norteador Retornar ao tempo das origens
implica em encontrar o sentido absoluto para a realidade presente a explicaccedilatildeo e o
25
65
fundamento26
mediante o tempo exemplar para todo o devir27
A explicaccedilatildeo e o sentido satildeo
buscados na origem coacutesmica e antropogocircnica de um Tempo primordial paradigma
absoluto Protaacutegoras funda o relativismo da isonomia e isēgoria28
poliacuteticas no absoluto
referencial do tempo primordial Antes que algo venha a ser seu tempo proacuteprio natildeo pode
constituir um devir o um apoacutes o outro dos phainoacutemena Por isso o tempo poliacutetico comeccedila
na origem das relaccedilotildees que possibilitam a formaccedilatildeo das primeiras poacuteleis e explica como a
praacutexis poliacutetica efetiva veio a instaurar-se
A oposiccedilatildeo entre myacutethos como discurso inverificaacutevel e loacutegos como discurso
atestaacutevel eacute superada no emprego argumentativo do mito e na narraccedilatildeo bem exposta do
argumento Protaacutegoras demonstra causas na narraccedilatildeo do mito e expotildee um argumento em
forma narrativa (myacutethon leacutegōn epideiacutexō ḗ loacutegō diexelthōn)29
A polarizaccedilatildeo opotildee o tempo
absoluto dos deuses ao tempo pereciacutevel e relativo dos mortais Este uacuteltimo soacute encontra a
estabilidade propiciadora da significaccedilatildeo na imutabilidade paradigmaacutetica do primeiro O
26 Mircea Eliade enfoca em vaacuterias obras a homologia estrutural entre o espaccedilo coacutesmico primordial e o tempo
original templum-templus O tempo ab initio das origens coacutesmicas corresponde ao centro do mundo
primordial O nascimento do Koacutesmos eacute tambeacutem o ponto originaacuterio o marco e o princiacutepio do ser e do existir
(ELIADE 1965 p 66 ss) A abordagem simbolista fortemente antropoloacutegica de Eliade identifica o tempo e espaccedilo miacuteticos com a experiecircncia religiosa e com o sagrado por excelecircncia Na transposiccedilatildeo filosoacutefica
platocircnica o mito narrado por Protaacutegoras emprega o retorno agraves origens teacutecnica de evasatildeo do tempo atual para
fundar e conferir significaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de uma experiecircncia poliacutetica e teacutecnica proacutepria agrave democracia
ateniense 27 A cosmogonia eacute modelo exemplar para toda espeacutecie de fabricaccedilatildeo e construccedilatildeo Acrescentemos que a
cosmogonia comporta tambeacutem a fabricaccedilatildeo do tempo Mais ainda assim como a cosmogonia eacute o arqueacutetipo
de toda fabricaccedilatildeo o Tempo coacutesmico que a cosmogonia faz jorrar eacute o modelo exemplar de todos os tempos
ou seja dos Tempos especiacuteficos das diversas categorias existentes (ELIADE 1965 p 69) 28 Berti (1978 p 348) identifica a liberdade poliacutetica com a liberdade de pensamento e expressatildeo que os
atenienses chamavam o ldquoigual direito de fala na assembleacuteia puacuteblicardquo (isēgoriacutea) A liberdade da fala seria uma
decorrecircncia da igualdade dos cidadatildeos perante a lei e um dos aspectos essenciais da democracia ateniense conforme se depreende de Heroacutetodo As forccedilas atenienses cresciam continuamente Poder-se-ia provar de mil
maneiras que a igualdade entre os cidadatildeos e o governo eacute a mais vantajosa () (HEROacuteDOTE V LXXVIII
1850) Claude Mosseacute afirma que os fundamentos da democracia ateniense no seacuteculo V satildeo ldquoa igualdade de
todos perante a lei o direito de todos de tomar a palavra diante da assembleacuteia o que eacute traduzido nos dois
termos frequentemente empregados como sinocircnimo de democracia isonomia e isēgoriacutea (1995 p84) 29 A iniciaccedilatildeo agrave virtude protagoriana inicia-se como observa Beall (1991 p 368) com um mythos que possui
um papel uacutetil na argumentaccedilatildeo Platatildeo ao contraacuterio correlaciona a Filosofia com a passagem pela morte e
seus grandes mitos de julgamento aparecem quase sempre no final dos diaacutelogos
66
tempo-irreversiacutevel devir relativo dos mortais se define atraveacutes do seu correlativo oposto o
paradigma absoluto o tempo-reversiacutevel dos deuses eternos Toda cosmogonia pressupotildee o
referencial absoluto do tempo primordial e do centro coacutesmico (ELIADE 1977 p 29-30)
Quando eacute chegado o tempo fixado pela sorte do nascimento dos mortais os deuses
os modelam a partir da terra misturada ao fogo e de tudo o que se mistura ao fogo
Era um tempo em que os deuses jaacute existiam mas o gecircnero dos
mortais natildeo Quando chegou o tempo de sua gecircnese fixado pelo
destino os deuses os modelaram no interior da terra realizando
uma mistura de terra de fogo e tudo o que se mistura agrave terra Em
seguida quando veio o momento de os trazer para a luz eles
encarregaram Prometeu e Epimeteu de repartir as potecircncias em
cada um deles em boa ordem como conveacutem30
(Protaacutegoras 320d)
Os mortais todos os thnētoi satildeo modelagem divina a partir de princiacutepios fiacutesicos
primordiais mistura de fogo terra e tudo o que a ele se mistura A demiurgia divina se
inscreve na terra com esse fogo primordial compondo uma mistura Em sua gecircnese os
mortais satildeo compostos da mistura de elementos fiacutesicos e inteligecircncia divina na sua
modelagem O divino modela o inanimado mediante a liga primordial entre terra e fogo
movente Seguem-se a partir disso novas oposiccedilotildees terra inanimada e fogo elementos
fiacutesicos destituiacutedos de inteligecircncia e inteligecircncia demiuacutergica dos deuses31
30 Texto estabelecido por A Croiset Traduccedilatildeo de F Idelfonse 31 O esquema da gecircnese dos mortais esboccedilado no mito evoca o fragmento 62 DK de Empeacutedocles
67
Quando chega o momento de trazer os mortais agrave luz (phōs) e distribuir os lotes com
kosmiacutea dois intermediaacuterios polarizados se interpotildeem Prometeu e Epimeteu Os filhos de
Jaacutepeto personificam a previdecircncia luacutecida antecipaccedilatildeo temporal de conexotildees inevitaacuteveis e a
imprevidecircncia cega indeterminaccedilatildeo e desacerto do devir A astuacutecia fulgurante (aioloacutemētis)
se opotildee ao errocircneo pensar (hamartiacutenooacuten)32
O equiliacutebrio entre os opostos exige a
compensaccedilatildeo muacutetua (Feacutedon 71e) Todavia haacute uma inversatildeo de papeacuteis e Epimeteu
astuciosamente persuade a Prometeu para que imprevidentemente delegue toda a tarefa de
distribuiccedilatildeo das potecircncias ao seu duplo miacutetico A distribuiccedilatildeo equilibra potecircncias opostas
nos seres vivos de maneira a assegurar a sobrevivecircncia diante dos perigos muacutetuos e diante
dos perigos naturais Todos os gecircneros de seres equilibram-se e justificam-se em seu
existir A hamartiacutea erro faltoso de Epimeteu resulta em uma aporiacutea a situaccedilatildeo impediente
B 62 SIMPL Phys 381 29
[v1] [I 335 5 App]
[v5]
[I33510App]
SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 381 29
Agora vem e como de homens e mulheres
de muitos prantos
noturnos rebentos trouxe agrave luz separando-
se o fogo destes ouve pois natildeo eacute mito sem
alvo e sem ciecircncia Inteiriccedilos primeiro (os) tipos de terra surgiam
de ambos de aacutegua e de forma brilhante
tendo parte estes fogo faziam subir
querendo ao semelhante chegar
nem ainda de membros amaacutevel forma
mostrando (eles)
Nem voz nem (tal) qual o membro
proacuteprio dos homens
(2000 Trad Joseacute Cavalcante de Souza)
(Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B acessso em 03032010)
Segundo Clemence Ramnoux as operaccedilotildees artesanais constituem o modelo para a criaccedilatildeo as teacutecnicas de
ldquofusatildeo dos metais da combinaccedilatildeo de cores as receitas de panificaccedilatildeordquo configuram as noccedilotildees de ingredientes de mistura de proporccedilatildeo nas misturas e do artesatildeo fabricador Assim como um pintor pode com poucas
cores representar diversas formas de coisas variegadas assim tambeacutem a natureza pode criar todos os seres
naturais com poucos elementos (LONG 1999 p 160) O fogo emerge saltando em direccedilatildeo do Fogo do
alto levando ldquopequenas massas plaacutesticas feitas de terra com uma parte de calor e um lote
umidade Segundo a leitura de Ramnoux este esquema segue o padratildeo 3 + 1 trecircs lotes e um artesatildeo
(1968 p 187 ss) No mito de Protaacutegoras haacute trecircs elementos (terra fogo e elementos que se misturam aos
precedentes) e os deuses como artesatildeos 32 HESIOacuteDO Teogonia 511
68
ameaccediladora o homem no momento mesmo de sair de dentro da terra para a luz estaacute
inteiramente desprovido de capacidades
Eacute estabelecimento fixado pelo destino a saiacuteda do homem do seio da terra para a luz
(exieacutenai ek gḗs eis phōs Protaacutegoras 321c06-07) A ambiguidade da passagem anuncia a
duplicidade do existir humano que pressupotildee a saiacuteda da obscuridade do interior da terra
para a luz No Craacutetilo a personagem de Soacutecrates identifica a claridade seacutelas com a luz
phōs e por essa razatildeo a luz da lua eacute ao mesmo tempo nova e antiga sua luminosidade eacute
ambiacutegua por refletir a luz do sol (409b) A liga divina de fogo que surge para a luz eacute
ambiacutegua pois o estado de carecircncia dos homens anuncia a cataacutestrofe de seu
desaparecimento
A passagem da obscuridade da terra para a luz concatena uma sequecircncia
paradigmaacutetica de imagens e sugere uma mutaccedilatildeo no regime do ser Haacute a transposiccedilatildeo do
natildeo-ser atemporal mediado por uma geraccedilatildeo modeladora ateacute o ser e o devir Essa
sequecircncia eacute exemplar e narra como o homem veio a ser e por essa razatildeo funda e norteia
todo fazer toda praacutexis e todas as instituiccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas Eacute porque o homem foi
gerado por deuses sobrenaturais que a suma de suas condutas e praacuteticas pertence a um
tempo primordial As praacuteticas e instituiccedilotildees possuem sua razatildeo de ser porque na aurora do
tempo humano houve uma sequecircncia primordial de geraccedilatildeo e gestaccedilatildeo A modelagem
primordial constitui um modelo exemplar para todo fazer e toda fabricaccedilatildeo que remetem agraves
gestas operadas pelos deuses para a engendraccedilatildeo do koacutesmos e dos mortais A cosmogonia
primeva representa uma sequecircncia de imagens que configuram a passagem do khaacuteos
tenebroso matriz e Noite para a luz coacutesmica ou a passagem daquilo que natildeo existe o natildeo-
ser para o ser (ELIADE 1959 p 12-21)
69
Quando se trata de iniciar um neoacutefito na praacutexis poliacutetica o mito de emersatildeo e a
antropogonia do seio da terra re-atualiza o itineraacuterio complexo de accedilotildees que configuram a
passagem da obscuridade para a luz do sol A narrativa da criaccedilatildeo dos homens justifica o
ritual de refazer formar de criar uma nova situaccedilatildeo espiritual ou psiacutequica (ELIADE
1957 p 200) As imagens de uma iniciaccedilatildeo apontam para um novo iniacutecio mediante o qual
se anuncia a molda de um modo de ser superior da indistinccedilatildeo desordenada Nas imagens
antropogocircnicas o homem eacute modelado ele natildeo se faz a si mesmo Na origem do tempo
cronoloacutegico haacute uma accedilatildeo demiuacutergica que inscreve ordem em princiacutepios desordenados e
misturados accedilatildeo por conseguinte divina e produto de potecircncias invisiacuteveis Por outro lado
a iniciaccedilatildeo de um neoacutefito pressupotildee uma transmissatildeo operada por mestres de sabedoria
que se vincula e remonta a uma longa cadeia da tradiccedilatildeo ancestral Essa tradiccedilatildeo consolida-
se atraveacutes da transmissatildeo ritual que prepara o neoacutefito para um novo modo de ser mediante a
repeticcedilatildeo de gestas e imagens pertencentes a um cenaacuterio que natildeo pode ser descrito mas
somente narrado e dramatizado (ELIADE 1959 p 20)
O embate de Soacutecrates com o mestre de sabedoria Protaacutegoras dramatiza modos
concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas afetos e
imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um novo
gecircnero de vida e um novo tipo de homem Com isso Platatildeo coloca em questatildeo e em
combate singular transposiccedilotildees antagocircnicas de paideiacutea e paradigmas eacutetico-poliacuteticos para o
novo homem
Protaacutegoras transpotildee as iniciaccedilotildees e oraacuteculos das seitas de misteacuterio praticadas por
Orfeu e Museu para a atividade sofiacutestica33
(Protaacutegoras 316d08) A passagem da noite
trevosa para a luz do sol imagem da emergecircncia para um novo plano de ser eacute doravante
33
70
associada aos mestres de sabedoria cuja aparecircncia ocultava a verdadeira natureza do seu
saber e do seu poder Todas as modalidades de iniciaccedilotildees que conferem a possibilidade de
ascensatildeo aos planos superiores de humanidade satildeo no fim iniciaccedilotildees sofiacutesticas O mito de
retorno agraves origens eacute a fala razoaacutevel que consolida este postulado
A terra gḗ identifica-se com o uacutetero feminino e a gestaccedilatildeo gaicirca seria o nome
correto para geratriz gennḗteira e derivaria de gegennḗsthai ser engendrado (Craacutetilo
410c) A terra eacute matriz paradigmaacutetica para a gestaccedilatildeo e o nascimento
Ora eacute pela terra mais que pela mulher que eacute preciso receber tais
provas pois natildeo eacute a terra que imitou a mulher na concepccedilatildeo e na
gestaccedilatildeo mas eacute a mulher que imitou a terra
(Menexeno 238a 03-05)
A operaccedilatildeo fundidora do fogo com a terra expressa uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre a
gestaccedilatildeo e o nascimento a partir da matildee terra e a metalurgia A gestaccedilatildeo ctocircnica constitui o
ato exemplar para a gestaccedilatildeo humana conjugaccedilatildeo solidaacuteria entre a moldagem metaluacutergica e
a sexualidade34
e nesse sentido a antropogonia se conjuga a uma ontogenia (ELIADE
1977 p 30)
Para assegurar a fusatildeo mediante o fogo primordial eacute preciso a intervenccedilatildeo do
artiacutefice vivo a forja dos homens pelo fogo eacute animada pelos deuses Mas as suas potecircncias
advecircm de mediadores que delimitam planos de ser distintos
A imprevidecircncia de Epimeteu suscita a aporiacutea impediente os homens estatildeo
desguarnecidos e desadornados diante do equiliacutebrio kosmeacutetico dos animais sem fala A
distribuiccedilatildeo das potecircncias aos mortais implica a sua determinaccedilatildeo O homem ao contraacuterio
34 Na menccedilatildeo de Simpliacutecio a Empeacutedocles (DK 71) haacute accedilatildeo artesanal operada por Afrodite que se assemelha agrave
de um pintor que mistura cores Terra aacutegua eacuteter e sol satildeo harmonizados numa mistura amorosa da qual
surgem as formas e as cores dos mortais As noccedilotildees de operaccedilatildeo mistura e harmonizaccedilatildeo se conjugam agrave
noccedilatildeo de forma visiacutevel como produto da accedilatildeo artesanal de Afrodite (RAMNOUX 1968 p 188-189) A
conotaccedilatildeo sexual eacute assimilada agrave operaccedilatildeo artiacutestica de mistura e produccedilatildeo de cores e formas visiacuteveis
Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics31-B
71
ndash desprovido de todas as potecircncias ndash eacute indeterminado Para compensar a falta desmedida
de Epimeteu eacute preciso um expediente ao mesmo tempo astucioso e sobrenatural Prometeu
natildeo tendo qualquer salvaccedilatildeo para os homens recorre ao instrumento divino do engenho
mecacircnico e furta o saber teacutecnico e o fogo de Hefestos e Athena35
Hefestos eacute o mestre do fogo e da luz (phaacuteeos hiacutestōr) o Brilhante (Phaicircstos) e
Athena eacute a inteligecircncia divina (Hatheonoacutea) a que tem inteligecircncia das coisas divinas (tagrave
theicirca nooucircsa)36
O domiacutenio do fogo evoca natildeo somente as imagens ligadas agrave inteligecircncia
teacutecnica mas indica a determinaccedilatildeo de um estatuto superior do ser que comporta um
aspecto maacutegico ou sobrenatural intriacutenseco a toda atividade fabricadora O ferreiro divino
portador do fogo aperfeiccediloa a obra dos deuses a organizaccedilatildeo do Koacutesmos e confere ao
homem a inteligecircncia que o distinguiraacute dos animais sem fala e a capacidade de apreender a
ordem coacutesmica (ELIADE 1977 p 65ss)
Prometeu sem ser visto entra oculto (lathōn eiseacuterkhethai) nas oficinas celestes
rouba o fogo e o presenteia aos homens Com isso mediante o saber portado pelo fogo os
homens adquirem as teacutecnicas e os meios para a manutenccedilatildeo da vida e para a proteccedilatildeo
contra as intempeacuteries naturais Se a dimensatildeo demiuacutergica permitiu ao homem superar sua
falta de determinaccedilotildees foi somente mediante as teacutecnicas que o homem descobriu a
possibilidade de agir livremente A eleutheria natildeo eacute um presente dos deuses (Protaacutegoras
312b) O homem soacute pode agir livremente pela capacidade antecipatoacuteria e valorativa
propiciada pelo caacutelculo do mais vantajoso e isso soacute ocorre porque ab initio ele eacute desprovido
de determinaccedilotildees no seu agir Ao contraacuterio dos animais cujo agir eacute preacute-determinado do
35
(Protaacutegoras 321c08-d01) 36 Craacutetilo 407b-c
72
nascimento ateacute a morte o homem eacute essencialmente indeterminado (GALIMBERTI 2009
p 2)
As artes suscitam ainda a demarcaccedilatildeo entre o estatuto divino e humano cuja
natureza ambiacutegua participa ao mesmo tempo do divino e do mortal37
O lote de participaccedilatildeo
e parentesco divino justifica a instauraccedilatildeo miacutetica do sacrifiacutecio e do culto aos deuses
mediante as estaacutetuas oferendas imageacuteticas de joalheria e elevaccedilatildeo de templos O lote de
participaccedilatildeo nos seres mortais determina a especificidade do uacutenico dos vivos zdōion que
pode nomear os deuses pela fala regrada
O esquema causal se esboccedila no mito de Protaacutegoras i) uma falta original a
imprevidecircncia de Epimeteu suscita uma situaccedilatildeo impediente ii) o quadro problemaacutetico
exige a busca da causa e o diagnoacutestico eacute feito por Prometeu iii) o mediador divino
mediante astuacutecia dolosa busca o expediente sobrenatural do fogo iv) o meio astucioso
teacutecnico eacute empregado e a cataacutestrofe remediada por um presente v) um novo estatuto eacute
determinado mas o dolo usurpador reclama nova retribuiccedilatildeo
Embora o saber teacutecnico salvaguarde a equipagem para a sobrevivecircncia natural os
homens natildeo obstante natildeo possuem o saber poliacutetico e a arte da guerra que participa da
poliacutetica Por essa razatildeo incapazes de dominar os instrumentos da guerra sucumbem diante
da forccedila dos animais e procuram agrupar-se em cidades para garantir a seguranccedila muacutetua
Todavia mostram-se igualmente destituiacutedos da philiacutea e acabam por cometer injusticcedilas
destruindo-se mutuamente A carecircncia da arte poliacutetica implica a incapacidade de seguranccedila
e salvaguarda da justiccedila necessaacuterias para a formaccedilatildeo de comunidades e cidades
37
(Protaacutegoras 322a04-08)
73
Todo presente exige o contra-presente a justa compensaccedilatildeo Em Hesiacuteodo o mito de
Prometeu esboccedila a narrativa na qual simultaneamente ocorre a separaccedilatildeo entre plano dos
deuses e o plano dos homens mortais mas tambeacutem entre o masculino e o feminino O
mito de Prometeu eacute tambeacutem o mito da primeira mulher Dom de todos os deuses artefato
moldado e adornado pela inteligecircncia oliacutempica Pandora eacute a contrapartida para a vida e o
fogo biacuteos e pyacuter Anti-pyacuter o contra-presente de Zeus instaura o poacutelo de um novo geacutenos o
feminino que demarca a ambiguidade humana Ao saber teacutecnico previdente e antecipatoacuterio
se contrapotildee a indefiniccedilatildeo dos males indefectiacuteveis e a espera indistinta de elpiacutes a
expectaccedilatildeo exclusivamente humana do bem indeterminado e natildeo dataacutevel38
(VERNANT
2005) Em Pandora equilibram-se o apelo irresistiacutevel do encanto da forma de virgem e da
graccedila determinaccedilotildees essenciais de Afrodite e Athena e a mentira conduta dissimulada e
olhar obliacutequo e traiccediloeiro do catildeo instilados por Hermes (HESIacuteODO 2006 v 59-85)
Mas no mito de Protaacutegoras se haacute uma polarizaccedilatildeo entre Hefestos e Athena opostos
divinos de saber e metalurgia teacutecnicas natildeo haacute por outro lado nenhuma menccedilatildeo a um
paacuterthenos o feminino no plano dos homens Por que Protaacutegoras rompe com a simetria de
contrapartidas da tradiccedilatildeo miacutetica Qual eacute a justa retribuiccedilatildeo para o dolo astucioso de
Prometeu O que estabelece definitivamente a natureza humana apoacutes a instrumentaccedilatildeo do
saber teacutecnico que simultaneamente distingue os homens dos animais e define a separaccedilatildeo
entre o plano dos deuses e o plano dos mortais Hermes mensageiro e arauto divino natildeo
retribui a fraude de ocultaccedilatildeo de Prometeu com a graccedila visiacutevel da mulher e com a
ambivalecircncia da mistura de bens males e incertezas caracteriacutesticos do biacuteos Em vez disso
opera a passagem para um novo plano de mediaccedilotildees
38 Beall (1991 p 367) conecta Elpiacutes com o auto-engano que nega a presenccedila visiacutevel dos males
74
O domiacutenio do fogo as artes metaluacutergicas e demiuacutergicas propiciadas pelo saber
teacutecnico natildeo encontram equivalentes simeacutetricos no plano da natureza Em vez do contra-
presente que estabelece o equiliacutebrio Protaacutegoras amplia a estrutura da narrativa para fundar
no registro da encantaccedilatildeo e do referencial absoluto das origens primordiais um novo plano
que se opotildee agrave natureza a poliacutetica Uma nova sequecircncia de accedilotildees emerge i) a injusticcedila
dolosa decorrente da carecircncia da arte poliacutetica anuncia uma situaccedilatildeo calamitosa ii) a
destruiccedilatildeo suscita a busca das causas e o diagnoacutestico iii) o mensageiro sobrenatural se vale
dos meios divinos astuciosamente forjados iv) os artifiacutecios divinos remediam a situaccedilatildeo
problemaacutetica v) os dolos subsequentes satildeo retribuiacutedos com a lei infaliacutevel de Zeus
Qual eacute a nova compensaccedilatildeo para o roubo oculto de Prometeu Pandora personifica a
ambiguidade feminina da natureza humana numa obra de arte divina concebida para ser
irresistiacutevel ao olhar Ao presente propiciado pela fraude oculta se contrapotildee o presente
concebido para ser visto como bem irresistiacutevel mas que esconde males invisiacuteveis No novo
plano de ser inaugurado por Protaacutegoras agrave fraude oculta se contrapotildee o par de presentes
essencialmente ligados ao olhar de todos aidōs e diacutekē
As accedilotildees de Zeus natildeo se desenrolam num combate singular de astuacutecias retribuiccedilatildeo
da hyacutebris desmedida O temor (deiacutedō) oliacutempico expressa a necessidade de manutenccedilatildeo da
ordem e simetria naturais e justifica a instauraccedilatildeo das condiccedilotildees primordiais para a
existecircncia da comunidade poliacutetica e de seus princiacutepios de determinaccedilatildeo
A sequecircncia de poacutelos opostos eacute homoacuteloga agrave sequecircncia de imagens do mito que
esboccedilam a natureza ontoloacutegica determinante do existir ndash ser ndash dos deuses e o natildeo-ser dos
mortais no princiacutepio os deuses eram e os mortais natildeo Ao par primordial corresponde uma
atividade mediadora que engendra novo par os deuses inscrevem inteligecircncia demiuacutergica
nos elementos primordiais inanimados terra elementos intermediaacuterios para a liga e fogo A
75
passagem do natildeo-ser para o ser eacute homoacuteloga agrave passagem do interior da terra para a luz do
sol imagem paradigmaacutetica da iniciaccedilatildeo
Surge assim a polarizaccedilatildeo entre inteligecircncia divina animada e elementos
inanimados destituiacutedos de inteligecircncia A mistura engendra a polarizaccedilatildeo entre deuses
imortais e seres mortais e instaura a separaccedilatildeo entre o tempo dos deuses e o tempo dos
mortais O regramento ordenado pressupotildee a distribuiccedilatildeo coacutesmica de potecircncias operada por
intermediaacuterios opostos divinos Prometeu e Epimeteu A imprevidecircncia e incapacidade de
antecipaccedilatildeo temporal de Epimeteu se opotildeem agrave astuacutecia engenhosa e antecipatoacuteria de
Prometeu A distribuiccedilatildeo desmedida das potecircncias aos animais salvaguarda a vida natural
mas determina a carecircncia completa de potecircncias para o homem
O estatuto humano estaacute sem lugar na oposiccedilatildeo entre imortais e mortais e a
determinaccedilatildeo exige a intervenccedilatildeo do fogo instrumento astuciosa e ocultamente
intermediado por Prometeu O estatuto humano implica a passagem da obscuridade da terra
para a luz fixada pela necessidade do destino O fogo teacutecnico dolosamente artificiado
permite o acabamento da iniciaccedilatildeo primordial que engendra o ser do homem e compensa a
sua impotecircncia original mas se opotildee ao fogo das forjas oliacutempicas Haacute entatildeo a oposiccedilatildeo
entre uma demiurgia divina que inscreve inteligecircncia no desregramento inanimado e a
demiurgia teacutecnica humana cuja funccedilatildeo eacute instrumental e mediatizada Enquanto a demiurgia
divina cumpre a finalizaccedilatildeo de determinaccedilotildees temporais absolutas a demiurgia humana
instrumentaliza recursos na indeterminaccedilatildeo da temporalidade do devir Ambas operam
iniciaccedilotildees opostas a iniciaccedilatildeo divina traz o homem agrave existecircncia pela saiacuteda do seio escuro
da terra para a luz a iniciaccedilatildeo nas artes humanas retira o homem da ignoracircncia trevosa dos
animais instaura seu parentesco com o plano dos deuses e demarca suficientemente
76
(hikanoacutes) a separaccedilatildeo entre o detentor do saber e os profanos os idioacutetai (Protaacutegoras
322c07)
A demiurgia humana e o domiacutenio do fogo definem o estatuto intermediaacuterio dos
homens diante dos deuses e animais A natureza do homem participa ao mesmo tempo do
divino e do mortal As teacutecnicas instauram as relaccedilotildees entre os planos e inauguram o culto o
sacrifiacutecio e os artefatos que definem os opostos entre visiacutevel e invisiacutevel As estaacutetuas
aacutegalmata e templos delimitam no plano visiacutevel a homologia estrutural entre o sagrado e o
profano o tempo dos deuses e devir dos mortais a presenccedila visiacutevel da imagem do deus
invisiacutevel e o reconhecimento invisiacutevel da inteligecircncia do deus presente
Entretanto ponte de mediaccedilatildeo entre o humano e o divino a inteligecircncia teacutecnica natildeo
salvaguarda a vida da violecircncia dos animais e da injusticcedila humana Intermediaacuterio entre
poacutelos opostos o plano dos homens requer para o seu perfeito acabamento a intervenccedilatildeo
dos princiacutepios divinos providenciados por novo mensageiro mediador Para compensar a
distribuiccedilatildeo fraudulenta oculta e desigual da participaccedilatildeo no saber teacutecnico Hermes com
equidade reparte abertamente aidōs e diacutekē entre os homens e arauto dos deuses proclama
em nome de Zeus suprema lei a de levar agrave morte como praga da cidade aquele que natildeo
tiver a potecircncia de participar de aidōs e diacutekē
O par aidōs e diacutekē natildeo constitui somente princiacutepio de possibilidade da comunidade
poliacutetica e existir das poacuteleis Ele eacute o contra-presente que compensa o furto e o dolo eacute a
contrapartida visiacutevel para a astuacutecia invisiacutevel Mas se Pandora eacute a personificaccedilatildeo
ambivalente do bem irresistiacutevel da graccedila divina visiacutevel e dos males indeterminados
invisiacuteveis qual deve ser a ocultaccedilatildeo sob o bem aparente de aidōs e diacutekē Se Pandora eacute
essencialmente modelagem de opostos visiacuteveis e invisiacuteveis qual eacute a oposiccedilatildeo essencial
subjacente a aidōs e diacutekē
77
Luc Brisson (2003 p 141-166) seguindo a majestosa esteira de Georges Dumeacutezil
desenvolve no mito encenado pela personagem platocircnica de Protaacutegoras uma interpretaccedilatildeo
de tonalidade positivista calcada numa estrutura tri-funcional A partir dos dois eixos
basilares da natureza e cultura Brisson distingue pares de opostos nos eixos seguranccedila
equipamentos e alimentaccedilatildeo As trecircs oposiccedilotildees fundamentais seriam deusesmortais
homensanimais teacutecnica demiuacutergicateacutecnica poliacutetica
I ndash Oposiccedilatildeo deuses mortais ndash Desse poacutelo derivam seres com existecircncia
independente e natildeo derivada seres com existecircncia dependente e derivada Satildeo enviados
delegados para distribuir poderes e terminar a organizaccedilatildeo Haacute uma triparticcedilatildeo divina Zeus
(soberania arte poliacutetica) Hefesto e Atena (detentores da arte do fogo e outras artes) A
triparticcedilatildeo relaciona-se com uma triparticcedilatildeo espacial Olimpoacroacutepolepeacute da elevaccedilatildeo Os
mortais devem sua existecircncia aos deuses
2 ndash Oposiccedilatildeo homens animais ndash O mundo dos animais eacute o reverso do mundo dos
homens animais desprovidos de razatildeo homens racionais que devem viver na cidade
determinismo sabedoria praacutetica O mundo dos animais implica um equiliacutebrio fechado e
suas necessidades satildeo satisfeitas o determinismo substitui a razatildeo Os homens
caracterizam-se pela condiccedilatildeo precaacuteria e vulnerabilidade que implica a indeterminaccedilatildeo das
necessidades Haacute a exigecircncia de mediaccedilatildeo do saber teacutecnico e da razatildeo A sobrevivecircncia
exige o domiacutenio da teacutecnica poliacutetica e da teacutecnica militar o que implica o uso irrestrito da
teacutecnica demiuacutergica O plano do possiacutevel compensa a carecircncia do plano do que eacute
determinado A razatildeo supera o determinismo
78
3 ndash Oposiccedilatildeo teacutecnica demiuacutergica teacutecnica poliacutetica -
Deste poacutelo surge a analogia fundamental modeterminis
razatildeo
animais
homens O saber
teacutecnico implica a oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica O mundo dos deuses eacute tripartite e dele deriva
um reflexo funcional na cidade A cidade pressupotildee a poliacutetica que inclui a arte militar A
cidade exige o setor produtivo que abarca demiurgia e agricultura As necessidades
humanas satildeo tambeacutem tripartites seguranccedila equipamentos alimentaccedilatildeo As necessidades
humanas satildeo mediadas pelas teacutecnicas que garantem os trecircs planos A seguranccedila eacute absorvida
na Poliacutetica (guardas de Zeus) A funccedilatildeo produtiva se assimila agrave demiurgia A triparticcedilatildeo eacute
reduzida agrave oposiccedilatildeo demiurgiapoliacutetica e eacute sustentada pelos mediadores de Zeus Prometeu
(demiurgia) e Hermes (poliacutetica) O fogo simboliza a arte demiuacutergica e estabelece um
parentesco com o divino atraveacutes do culto uso do fogo sacrifical e a relaccedilatildeo entre o humano
e o divino A demiurgia implica especializaccedilatildeo de funccedilotildees e a divisatildeo do trabalho A
divisatildeo por sua vez acarreta a incapacidade de vida comunitaacuteria e a dispersatildeo Por isso
Zeus envia Hermes para levar aidōs e diacutekē (pudor e justiccedila) que se opotildeem agrave potecircncia
demiuacutergica a integraccedilatildeo se opotildee agrave divisatildeo A fundamentaccedilatildeo da existecircncia poliacutetica da
cidade depende da integraccedilatildeo entre todos Aidōs e diacutekē satildeo distribuiacutedos por Hermes de igual
maneira entre todos ao passo que a demiurgia representa um saber teacutecnico que cabe a
pequeno nuacutemero de especialistas Quem natildeo participar das duas virtudes deve ser excluiacutedo
e punido como se fosse uma doenccedila As relaccedilotildees cultuais estabelecem uma uniatildeo entre os
homens e os deuses mas estas natildeo satildeo suficientes para a uniatildeo dos homens entre si O fogo
teacutecnico eacute fator de divisatildeo e natildeo de uniatildeo A justiccedila no sentido largo para o cumprimento
das regras exige um sentimento iacutentimo de contenccedilatildeo que leva em conta a opiniatildeo do outro e
que confere vida ao direito Enquanto a demiurgia abarca a necessidade de equipamentos e
79
alimentaccedilatildeo a poliacutetica institui laccedilos de uniatildeo e seguranccedila Segundo Brisson o mito do
Protaacutegoras representa o surgimento da cidade e funda sua divisatildeo fundamental a partir da
oposiccedilatildeo demiurgia poliacutetica Tal divisatildeo eacute descrita como natural e espelha a oposiccedilatildeo
Natureza Cultura
Deuses
Mortais Homens
Animais Teacutecnicas militar e poliacutetica
Demiurgia
As oposiccedilotildees destacadas por Brisson embora esclarecedoras parecem
condicionadas agrave concepccedilatildeo positiva do Direito elaborada por Louis Gernet
Diacutekē eacute a justiccedila tal qual ela se manifesta antes de tudo no
julgamento ndash e por conseguinte na condenaccedilatildeo na execuccedilatildeo ndash e
tambeacutem por referecircncia impliacutecita e expliacutecita a um outro termo algo
como o jus strictum () Pode-se dizer que (aidoacutes) designa um
sentimento de respeito ou de moderaccedilatildeo que se aproxima pelo
menos da reverecircncia religiosa ndash que de fato pode ter por objeto a
divindade ndash mas vale essencialmente na ordem das relaccedilotildees
humanas onde ele comanda certas abstenccedilotildees ou certas atitudes
diante de um parente de um ser eminente em dignidade de um
suplicante sentimento social e moral jaacute que aidoacutes eacute
simultaneamente zelosa com a opiniatildeo puacuteblica da qual ela aparece
muitas vezes como a contrapartida e preocupada em um sentido de
bom grado aristocraacutetico com o que o sujeito deve a si mesmo
(GERNET 1982 p 14-15)
Em contrapartida ao aspecto afetivo que emana da opiniatildeo coletiva Walter Otto
realccedila a interpretaccedilatildeo de que originariamente Aidoacutes natildeo designa ldquoa vergonha de algo que
faz enrubescer mas a apreensatildeo sagrada face ao intocaacutevel a delicadeza do coraccedilatildeo e do
espiacuterito as consideraccedilotildees o respeito e na vida sexual o silecircncio e a vida da virgemrdquo
(1995 p 81) Todas as acepccedilotildees de Aidoacutes seriam abarcadas pelo charme ambivalente da
80
figura divina que eacute ao mesmo tempo respeitaacutevel e respeitoso puro e a piedosa apreensatildeo
diante daquilo que eacute puro
Derivado de aiacutedomai (que indica o respeito a um deus e laiciza-se no emprego
juriacutedico do perdatildeo ao assassiacutenio involuntaacuterio) Aidoacutes significa o sentimento de honra e
neacutemesis o temor da infacircmia de outro raramente no sentido ativo de tiacutemido e taacute aidoicirca que
designa as partes vergonhosas De Aidoacutes foi tirado 1) aidoicircos ndash divindades ou pessoas
respeitaacuteveis e 2) o composto anaidḗs impudecircncia (CHANTRAINE 1999 p 31) A palavra
aidoicirca originalmente designativa da genitaacutelia origina a palavra que designa a vergonha A
experiecircncia baacutesica da vergonha segundo B Williams (1993 p 78-80) eacute a ldquode ser visto
inapropriadamente pelas pessoas erradas na condiccedilatildeo erradardquo Tal experiecircncia eacute
diretamente conectada com a nudez sobretudo em conexotildees sexuais O afeto que decorre
da inadequaccedilatildeo decorrente da violaccedilatildeo da intimidade suscita reaccedilotildees imediatas de
evitamento Evitar a experiecircncia intoleraacutevel da vergonha serve para um propoacutesito antecipar
o afeto que se padeceria sob a exposiccedilatildeo ao olhar alheio A violaccedilatildeo de aidoacutes implica o par
reflexivo de neacutemesis uma reaccedilatildeo que varia do choque do ressentimento ateacute a justa
indignaccedilatildeo A vergonha pode ser antecipatoacuteria de uma exposiccedilatildeo possiacutevel prospectiva ou
derivada da exposiccedilatildeo irreversiacutevel agrave humilhaccedilatildeo retrospectiva
Por outro lado se o enfoque de Otto que vincula Aidoacutes ao temor reverente estiver
correto o emprego poliacutetico no contexto do Protaacutegoras indica uma transposiccedilatildeo semacircntica
para um afeto dependente sobretudo do olhar coletivo ainda que seja sancionada pelo
respeito devido a uma phḗmē declaraccedilatildeo divina de Zeus A mutaccedilatildeo da acepccedilatildeo do termo
indica a passagem de um temor religioso exteriorizado para uma vergonha interiorizada
resultante da coerccedilatildeo da opiniatildeo coletiva
81
A leitura que Brisson faz do mito tem como corolaacuterio o reconhecimento de que a
Poliacutetica eacute natildeo somente uma teacutecnica superior mas ldquoa uacutenica que eacute outorgada pelos deuses e a
uacutenica teacutecnica positiva o que implica que o ensino desta teacutecnica seja ao mesmo tempo o
mais elevado e o uacutenico positivordquo O que transpareceria insoacutelito em Platatildeo seria o fato de ele
ldquonatildeo dar nenhuma atenccedilatildeo agraves virtudes que o indiviacuteduo enquanto indiviacuteduo deve praticar
Soacute contam para ele as virtudes cujo exerciacutecio deve permitir a um indiviacuteduo encontrar seu
lugar numa sociedade harmoniosa onde natildeo interveacutem nenhuma mudanccedilardquo (2003 p 166)
Entretanto como observa Leacutevi-Strauss a maior oposiccedilatildeo que se observa em
estruturas miacuteticas ocorre no plano cosmoloacutegico que expressa a transcendecircncia insuperaacutevel
de uma realidade em relaccedilatildeo ao mundo percebido (1993 p 152-205) A antropogonia de
Protaacutegoras eacute tambeacutem uma cosmologia cuja funccedilatildeo mais marcante eacute da ordem de algo que
vem a ser
Ao se colocar como mestre de excelecircncia poliacutetica que se diferencia dos demais que
ensinam disciplinas teacutecnicas comuns como caacutelculo astronomia e muacutesica Protaacutegoras
afirma o itineraacuterio de uma nova modalidade de iniciaccedilatildeo quem recebe suas liccedilotildees torna-se
melhor a cada dia e sempre recebe acreacutescimos em direccedilatildeo ao melhor (aeigrave epigrave tograve beacuteltion
epididoacutenai 318a) Protaacutegoras transpotildee as antigas iniciaccedilotildees de Orfeu e Museu para o
itineraacuterio ritual de progredir em direccedilatildeo ao melhor e adquirir um novo estatuto de ser A
finalidade de suas liccedilotildees eacute desenvolver os dons naturais de que todos participam e levaacute-los
ao melhor acabamento criando um gecircnero superior de homem num novo plano de ser
Assim como os ritos das teletaiacute operam a repeticcedilatildeo coacutesmica dos atos primordiais e um
retorno vivido agraves origens constitutivas da realidade presente assim tambeacutem o rito do seu
ensino reproduz a estrutura de imagens de seu mito Protaacutegoras aparece como o novo
mensageiro divino o portador do fogo ou o arauto que eacute depositaacuterio dos instrumentos
82
oliacutempicos salvaguardas para a vida e condiccedilatildeo de organizaccedilatildeo da cidade Protaacutegoras eacute um
novo Hermes e seu ensino eacute ferramenta divina que eleva o homem e o aproxima do plano
dos deuses imortais Mas para isso eacute preciso aperfeiccediloar-se no exerciacutecio de sua proacutepria
concepccedilatildeo de aidōs e diacutekē
Quais satildeo as polarizaccedilotildees condensadas no par miacutetico aidōs e diacutekē Ambos satildeo
determinaccedilotildees de Zeus personificaccedilatildeo da soberania acompanhadas por lei suprema
inexoraacutevel Aleacutem disso satildeo os constituintes primordiais que possibilitam a existecircncia das
comunidades poliacuteticas Mas assim como Pandora compotildee modelaccedilatildeo de opostos do
visiacutevel bem aparente e dos males invisiacuteveis ocultos da determinaccedilatildeo maacutexima da forma de
virgem e da indeterminaccedilatildeo imprevisiacutevel aidōs e diacutekē devem representar compensaccedilatildeo
simeacutetrica para a potecircncia piacuterica da demiurgia
Quais satildeo as caracteriacutesticas intriacutensecas agraves teacutekhnai Na delineaccedilatildeo das imagens do
mito as teacutekhnai surgem como resultado da potecircncia demiuacutergica aportada pelo fogo Elas
satildeo o resultado de um dolo oculto da accedilatildeo fraudulenta impermeaacutevel ao olhar Aleacutem disso
caracterizam-se pela participaccedilatildeo desigual dos homens Sua reparticcedilatildeo foi feita de modo
que um uacutenico homem que possui a arte da medicina eacute suficiente para um grande nuacutemero de
profanos39
Haacute pois uma relaccedilatildeo de participaccedilatildeo que confere o saber teacutecnico40
Eacute por
participar do saber teacutecnico e pelo domiacutenio do fogo que cada demiurgo pode iniciar-se em
sua especificidade que o distingue dos profanos idioacutetais A participaccedilatildeo desigual engendra
39
(Protaacutegoras 322c06-07) 40 Karl Reinhardt (2007 p 51 52) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o mito narrado por Protaacutegoras suscita o
gosto a delicadeza o divertimento mas natildeo faz nenhuma menccedilatildeo ao tema da alma A diferenccedila entre um
mito narrado por um Sofista e o mito filosoacutefico reside nessa negaccedilatildeo da alma e do delineamento negativo que
Platatildeo esboccedila da figura do Sofista Para que Platatildeo consignasse ldquoseu coraccedilatildeordquo a um mito ldquoseria necessaacuteria
uma conversatildeo uma transformaccedilatildeo de sirdquo Contudo o que Reinhardt chama de ldquoconversatildeordquo estaacute jaacute ingresso
na oposiccedilatildeo entre a concepccedilatildeo protagoriana de teacutekhne ndash e sua correspondente iniciaccedilatildeo demiuacutergica ndash e a
iniciaccedilatildeo ao Ser poliacutetico
83
os opostos dēmiourgoi e idioacutetais que reproduzem no plano do devir as oposiccedilotildees
cosmoloacutegicas entre deuses e mortais sagrado e profano inteligecircncia e ausecircncia de
inteligecircncia Aleacutem disso as teacutecnicas instrumentalizam a violecircncia e a morte Depois do
domiacutenio do fogo os homens puderam forjar instrumentos para a caccedila mas tambeacutem
passaram a destruir-se mutuamente
Agrave participaccedilatildeo desigual na potecircncia das artes Hermes distribui de maneira
equacircnime aidōs e diacutekē como potecircncias definidoras do estatuto humano Todo aquele que
natildeo puder participar delas deve ser morto como peste A natildeo participaccedilatildeo no par de
potecircncias implica a exclusatildeo da determinaccedilatildeo essencial para a formaccedilatildeo das cidades e por
conseguinte da proacutepria humanidade como um todo A ausecircncia de aidōs e diacutekē representa a
desumanizaccedilatildeo a perda da determinaccedilatildeo essencial que torna possiacutevel que os homens
convivam sem se destruiacuterem mutuamente Mais do que mera forccedila de integraccedilatildeo como
afirma Brisson aidōs e diacutekē determinam a existecircncia do homem como ser poliacutetico e por
conseguinte da existecircncia da humanidade toda Ademais Hermes distribui as potecircncias
determinantes com a sanccedilatildeo aberta de Zeus em oposiccedilatildeo ao furto oculto de Prometeu A
participaccedilatildeo nessas potecircncias essenciais implica por consequecircncia a exposiccedilatildeo ao olhar
coletivo Agrave inteligecircncia teacutecnica fraudulenta e oculta que resulta na destruiccedilatildeo de todos por
todos se opotildee a participaccedilatildeo essencial em aidōs e diacutekē que pressupotildee o olhar de todos
sobre todos Desse modo pode-se destacar a oposiccedilatildeo entre aquilo que eacute recocircndito ao olhar
e aquilo que exige o olhar de todos sobre todos A ocultaccedilatildeo ao olhar acarreta a destruiccedilatildeo
muacutetua Os homens cometiam injusticcedilas uns aos outros por natildeo possuiacuterem a teacutekhnē poliacutetica
cuja ausecircncia configura um quadro de violecircncia muacutetua (ēdiacutekoun allḗlous haacutete ouk eacutekhontes
tḗn politikḗn teacutekhnēn 322b08) O olhar de todos sobre todos acarreta a renuacutencia ou
impedimento ao uso da violecircncia Ao oacutedio oculto se opotildee a philiacutea manifesta
84
A existecircncia da coletividade humana depende da associaccedilatildeo propiciada pela philiacutea e
da capacidade de cooperaccedilatildeo organizada O plano humano abarca duas estruturas coletivas
que se desdobram em dois mundos o do interior da cidade e o do exterior o mundo da
philiacutea e o mundo da morte (BURKERT 2005 p 31)
Mas quais satildeo as determinaccedilotildees mais distintivas de aidōs e diacutekē41
Em primeiro
lugar assim como a participaccedilatildeo na sabedoria teacutecnica e o domiacutenio do fogo constituem
potecircncias essenciais para a existecircncia do gecircnero humano o par de opostos compensatoacuterios
instituiacutedo por Zeus constitui condiccedilotildees de determinaccedilatildeo da existecircncia dos homens em
conviacutevio nas poacuteleis Tais determinaccedilotildees se opotildeem agraves demais teacutekhnai pela igualdade
participativa e pela abertura ao olhar coletivo Elas abarcam simultaneamente os afetos
vinculados ao olhar e agrave opiniatildeo coletiva e agrave retribuiccedilatildeo ineludiacutevel ao dolo Zeus
efetivamente daacute justiccedila aos homens condiccedilatildeo para a existecircncia da philiacutea o viacutenculo afetivo
determinante para a vida comum e exigecircncia de retribuiccedilatildeo divina que estabelece o caraacuteter
absoluto da consecuccedilatildeo infaliacutevel agrave accedilatildeo poliacutetica
Mas o par aidōs e diacutekē eacute inextricaacutevel dos afetos que suscita Na fundaccedilatildeo mesma da
existecircncia cosmoloacutegica das cidades subjazem afetos psiacutequicos Haacute uma homologia
estrutural entre as condiccedilotildees afetivas que possibilitam a existecircncia das cidades e impedem a
41
Sahonhouse faz um levantamento das traduccedilotildees sobre o termo no Protaacutegoras ldquoGuthrie traduz
como respeito pelos outros e respeito pelos companheirosW C Taylor como consciecircncia Sinclair como
dececircncia Cropsey o descreve como um complexo amaacutelgama entre respeito e susceptibilidade agrave vergonha ou
desgraccedila Bartlett o traduz como vergonha e acrescenta as notas de temor respeitoso e reverecircncia (2008 p 63
n 9) Segundo Douglas Cairns o conceito de honra nunca esteve afastado da avaliaccedilatildeo daquilo que eacute
constitutivo em tanto no que diz respeito agrave proacutepria honra de algueacutem ou status como no
reconhecimento das exigecircncias de se honrar os outros como algo que deve inibir as proacuteprias accedilotildees de algueacutem
Assim os diversos usos conferem unidade ao termo Ele pode indicar por exemplo vergonha diante da
proacutepria falha ou humilhaccedilatildeo embaraccedilo social inibiccedilatildeo em agir por medo do que os outros vatildeo dizer e
respeito diante do estatuto dos outros ou ainda para legitimar exigecircncias para tratar bem os hoacutespedes
suplicantes Todos os sentidos compartilham o foco no balanccedilo apropriado entre a proacutepria honra de algueacutem e
a honra dos outros seria uma emoccedilatildeo que cobre tanto o sentido de vergonha como de respeito e foca
simultaneamente a proacutepria honra como a dos outros (CAIRNS 1993)
85
destruiccedilatildeo muacutetua dos homens A homologaccedilatildeo eacute suscitada pelos afetos que constituem a
determinaccedilatildeo de homens e cidades
Se o homem eacute a medida de todas as coisas das que satildeo como satildeo e das que natildeo satildeo
como natildeo satildeo42
haacute todavia uma norma divina absoluta que determina o criteacuterio de que o
afeto determinante da philiacutea seja remetido ao olhar aberto coletivo e agrave retribuiccedilatildeo infaliacutevel
que se segue agraves accedilotildees injustas O tatildeo celebrado relativismo de Protaacutegoras deriva de norma
divina e por conseguinte absoluta que institui a medida do olhar de todos sobre todos
condiccedilatildeo poliacutetica da convivecircncia
O olhar muacutetuo configura afetos restritivos cuja funccedilatildeo primaacuteria consiste em
contrabalanccedilar os afetos violentos que se expressam em accedilotildees injustas e na violecircncia
destrutiva Tais afetos levam em conta o olhar e por conseguinte estatildeo na ordem
constitutiva da alteridade do levar em conta a existecircncia do olhar alheio como outro de si
A desconsideraccedilatildeo ao olhar implica a retribuiccedilatildeo punitiva como contrapartida causal para a
violaccedilatildeo deste princiacutepio de accedilatildeo afetivo que eacute tambeacutem o princiacutepio da accedilatildeo valorativa A
teacutecnica poliacutetica eacute primordialmente a teacutecnica valorativa da alteridade Ela estabelece a
medida pela qual o homem eacute meacutetron o olhar aberto que define a accedilatildeo aceitaacutevel na cidade
Como afirma Saxonhouse o conhecimento da desgraccedila implicada pela transgressatildeo
desses limites surge somente a partir das interaccedilotildees com os outros A vergonha dissolve
aquele que desconhece e natildeo reverencia os costumes e desconsidera as opiniotildees da
coletividade de seu entorno A irreverecircncia para com o olhar do outro eacute incompatiacutevel com a
vergonha (SAXONHOUSE 2008 p 63)
42
Protaacutegoras 80 B 1 DK SEXTUS EMPIRICUS adv math VII 60 Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics80-B
(Teeteto 160e09)
86
Aidōs e diacutekē compotildeem os afetos que inibem os impulsos para a morte e para a
destruiccedilatildeo e implicam as accedilotildees retribuidoras absolutas para a violecircncia cometida Se a
cidade e a comunidade poliacutetica existem eacute porque aidōs e diacutekē satildeo os princiacutepios que
possibilitam a coexistecircncia artificial entre os homens a partir da diferenciaccedilatildeo das accedilotildees
rudimentares que terminavam na violecircncia destrutiva Aidōs e diacutekē satildeo princiacutepios de
inibiccedilatildeo primordiais ao impulso para matar Eles emergem diretamente do temor que Zeus
experimenta ao prever a destruiccedilatildeo humana Mas eacute preciso ainda acrescentar a educaccedilatildeo
para que os homens tenham seu completo acabamento e possam conviver vinculados por
um afeto de pertenccedila muacutetua
Para cumprir seu papel ao mesmo tempo de caccediladores e guerreiros protetores da
polis os homens precisam conciliar a coragem para afrontar os perigos e a confiabilidade
exigida pela amizade Eacute preciso a previdecircncia astuciosa que permite a renuacutencia agrave satisfaccedilatildeo
do desejo imediato o domiacutenio da palavra a demiurgia das teacutecnicas manuais e instrumentais
para a forja de armas e ferramentas As accedilotildees humanas satildeo regradas artificialmente por uma
dupla tensatildeo de opostos o uso das armas e os afetos destrutivos devem ser dirigidos para
fora da cidade e o afeto integrador da philiacutea deve manter a coesatildeo coletiva interna e
amalgamar a unidade ciacutevica Aidōs e diacutekē conciliam em tensatildeo o amor e a morte Se a
vergonha eacute o afeto decorrente da transgressatildeo ao temor respeitoso que delimita a existecircncia
ciacutevica pela philiacutea as leis implicadas por diacutekē guiam e regulam os afetos destrutivos a
previsatildeo teacutecnica e a adaptabilidade para o proveito coletivo para o melhor do homem
como medida de todas as coisas Diacutekē implica que para ser medida de todas as coisas o
homem deva submeter-se agraves leis de modo que a violecircncia seja sancionada pela arte da
guerra na exterioridade e interdita pela poliacutetica no domiacutenio da poacutelis O que configura a accedilatildeo
heroacuteica num domiacutenio por ser necessaacuterio eacute absolutamente interdito em outro O homem
87
medida submetido agrave diacutekē eacute aquele cujas gestas heroacuteicas de um plano satildeo accedilotildees criminaacuteveis
em outro noacutesos peste da cidade
A concepccedilatildeo de diacutekē como dom compartilhado e determinaccedilatildeo do gecircnero humano
ultrapassa a noccedilatildeo primitiva ligada a uma ordem coacutesmica cujo equiliacutebrio exige a
compensaccedilatildeo de opostos A ordem da natureza associa-se agrave noccedilatildeo religiosa de um tempo
perioacutedico A adikiacutea se expia afirma Anaximandro segundo a ordem do tempo43
Pois donde a geraccedilatildeo eacute para os seres eacute para onde tambeacutem a
corrupccedilatildeo se gera segundo o necessaacuterio pois datildeo eles mesmos
justiccedila e deferecircncia uns aos outros pela injusticcedila segundo a
ordenaccedilatildeo do tempo
Aidōs e diacutekē eacute um par de opostos em tensatildeo A paz interna que deve reinar no seio
da cidade pressupotildee os limites da norma da ordem ciacutevica e os limites impostos pelos
afetos que levam em conta o olhar coletivo e a dissoluccedilatildeo afetiva inexoraacutevel que se segue agrave
violaccedilatildeo desses limites O estabelecimento desses limites suscita a dissoluccedilatildeo intriacutenseca agrave
vergonha ao medo a inibiccedilatildeo e a culpabilidade mas fora do centro ciacutevico as barreiras satildeo
ordenadamente levantadas pela arte da guerra dessacralizaccedilatildeo da violecircncia pelo uso das
armas a philiacutea se equilibra no seu oposto o oacutedio A comunidade poliacutetica assenta-se no
amor mas tambeacutem no sangue e na morte
A gecircnese da ordem poliacutetica da cidade inclui o seu elemento contraacuterio em tensatildeo
permanente A vergonha e a culpabilidade que emergem desta tensatildeo exigem desejo de
compensaccedilatildeo e reparaccedilatildeo que soacute pode efetivar-se no itineraacuterio de um acabamento em
direccedilatildeo ao melhor prometido pela educaccedilatildeo (BURKERT 2005 p 30-34)
43
DK 1 SIMPLIacuteCIO Fiacutesica 24 13 Disponiacutevel em httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics12-B
acesso em 042010 Traduccedilatildeo de Cavalcante com ligeira modificaccedilatildeo
88
Todavia para Platatildeo se o valor supremo do homem depende do olhar coletivo
entatildeo a excelecircncia deve se moldar a partir da exterioridade aberta que configura os afetos
ligados a aidoacutes A formaccedilatildeo poliacutetica passa a ser assim uma iniciaccedilatildeo agrave teacutecnica de domiacutenio
do olhar e da opiniatildeo teacutecnica da exterioridade cambiante que valora todas as coisas a partir
do aacutentrōpos em detrimento do seautoacuten do si mesmo teacutecnica que ganha o prestiacutegio na
cidade mas perde a alma
A encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras eacute a miacutemesis de uma iniciaccedilatildeo nos misteacuterios
que coloca em perigo a alma44
O inventaacuterio histoacuterico das iniciaccedilotildees e misteacuterios
empreendido por Walter Burkert (1993 527-577) permite a distinccedilatildeo dos elementos
alusivos da encenaccedilatildeo dramaacutetica do Protaacutegoras O jovem Hipoacutecrates desejoso de iniciar-se
nos misteacuterios da praacutetica da sabedoria45
pretende receber um ensino transmitido por um
guia embora natildeo saiba o que dizer sobre o seu conteuacutedo efetivamente inexprimiacutevel
anaacutelogo do aacuterreton o segredo dos misteacuterios Protaacutegoras aparece como um guia um
mystagogos a quem Hipoacutecrates confiaraacute sua alma esperando adquirir um novo estatuto e
experimenta simultaneamente o medo proacuteprio ao grande perigo de expor sua alma ao
desconhecido e a promessa de uma nova realidade radiante O questionamento eroacutetesis
socraacutetico induz agrave revelaccedilatildeo de que o desejo pelo destaque e excelecircncia poliacutetica eacute
incompatiacutevel com a vergonha de aparecer ao olhar puacuteblico com o estatuto e desvalor de um
sofista em meio ao lusco-fusco do alvorecer que se anuncia Hipoacutecrates manifesta
fisicamente o sinal inequiacutevoco da vergonha enrubesce (Protaacutegoras 312a)
44
(Protaacutegoras 313a01-02) 45 (312d05) fabricante de praacuteticas do saber equivalente ao
saacutebio (LIDDELL SCOTT 1997 p 554)
89
Como profano suplicante o recipiendaacuterio protomyacutestes se dirige agrave casa do rico
Caacutelias equivalente do telesteacuterion templo das iniciaccedilotildees ou da caverna siacutembolo secreto
do oculto e do transcendente (BURKERT 1993 p 555)
Apoacutes percorrer a rota de peregrinaccedilatildeo o candidato se depara com a porta que separa
o sagrado do profano A passagem pela porta exige a passagem pelo seu guardiatildeo um
eunuco que parodia os temiacuteveis guardas de Zeus (Protaacutegoras 320d) ou os guardiotildees
postados agrave entrada do Hades (BURKERT 1993 p 558) Soacutecrates como espeacutecie de
hierophanteacutes que iraacute mostrar as coisas sagradas termina o assunto profano impuro antes de
bater agrave porta pois natildeo eacute permitido misturar o impuro ao puro
A entrada eacute vetada porque o guarda os toma por sofistas e fecha violentamente a
porta A porta eacute a imagem que abarca a correspondecircncia estrutural entre modalidades
muacuteltiplas de passagem das trevas para a luz do sol da preexistecircncia do homem para a
humanidade da vida para a morte e do novo nascimento para um estatuto de ser mais
elevado A abertura da porta torna possiacutevel a passagem para um modo de ser cosmicizado
pois todo Koacutesmos pressupotildee a passagem Uma vez que o homem vem agrave luz ele natildeo eacute um
ser acabado Eacute preciso repetir o vir a ser primordial e os vaacuterios planos de determinaccedilotildees
originaacuterias mediante ritos de passagem de iniciaccedilotildees sucessivas que propiciam a ascensatildeo
a modalidades mais elevadas de ser (ELIADE 1965 p 153)
O jovem Hipoacutecrates pretendia buscar o mediador da transmissatildeo do ensino
iniciaacutetico secreto que o levaria ao acabamento do homem pleno ao progresso gradativo em
direccedilatildeo ao melhor agrave melhor disposiccedilatildeo dentre a infinidade de aparecircncias que configuram a
medida de cada um dos homens A iniciaccedilatildeo protagoriana opera a mudanccedila em direccedilatildeo ao
90
melhor mudanccedila no estatuto do ser transformando metabaacutellō e metabletḗon46
Assim
como o meacutedico mediante os phaacutermakoi muda as disposiccedilotildees do corpo o sofista muda as
disposiccedilotildees da alma pelo seu ensino iniciaacutetico (Teeteto 167a04-06) A porta fechada e
guardada da casa de Caacutelias separa os ritos internos discretos da abertura ao olhar coletivo e
delimita a ocultaccedilatildeo do misteacuterio aos profanos
O apresentante Soacutecrates enuncia uma explicaccedilatildeo que serve de syacutenthema palavra de
passe que franqueia a entrada no recinto sagrado A declaraccedilatildeo de que natildeo satildeo sofistas
possui o efeito ritual de garantir que natildeo satildeo impuros e anuncia a iniciativa individual pela
iniciaccedilatildeo myacuteēsis atraveacutes do encontro com Protaacutegoras (314c-e)
A entrada no recinto sagrado revela o rito dos discursos sagrados hieroigrave loacutegoi de
Protaacutegoras Um seacutequito de estrangeiros encantados como se fora pelo charme do proacuteprio
Orfeu o segue cosmicamente em evoluccedilotildees circulares ritualmente regulares A viacutevida e
espetacular caricatura da cena fornece natildeo obstante a ironia indiacutecios caracteriacutesticos da
accedilatildeo ritual O ritual eacute ldquoalgo ataviacutestico compulsivo insensato no miacutenimo circunstancial e
supeacuterfluo mas ao mesmo tempo sagrado e misteriosordquo (BURKERT 1997 p 35-37)
O ritual eacute um conjunto de accedilotildees redirecionadas para a demonstraccedilatildeo exposiccedilatildeo
apontada para o olhar eacute um falar mediante gestos estereotipados e padronizados
independentes da situaccedilatildeo e afetos atuais O rito repete e ordena accedilotildees exageradas
aparentemente desvinculadas do contexto imediato com o escopo de esboccedilar um tipo
especiacutefico de efeito teatral eficaz ao olhar e de transmitir uma significaccedilatildeo mimeacutetica natildeo
mediada pela palavra
46
(Teeteto 167a04-06)
91
A harmonia do coro provoca alegria em Soacutecrates A alegria o devaneio e o ecircxtase
das iniciaccedilotildees oacuterficas satildeo intimamente ligados agrave danccedila e agrave muacutesica riacutetmica (BURKERT
1993 p 557) ldquoA repeticcedilatildeo faz nascer o ritmo o acompanhamento dos gestos por sinais
acuacutesticos daacute nascimento agrave muacutesica e agrave danccedila ndash duas formas de solidarizaccedilatildeo humanardquo
(BURKERT 2005 p 35) ldquoO ritual dramatiza a interaccedilatildeo poliacutetica a ordem existente sem
excluir que um rito possa fundar e definir um novo estatutordquo (ibid p 37) Segue-se a alusatildeo
direta agrave descida ao Hades katabasis siacutembolo da iniciaccedilatildeo em que Heraacutecles e Tacircntalo satildeo
ironicamente substituiacutedos por Hiacutepias e Proacutedico de Ceacuteos (315b-d)
A paroacutedia iniciaacutetica eacute mais do que irocircnica Platatildeo encena a laicizaccedilatildeo dos discursos
sagrados e sua transposiccedilatildeo num ensino na transmissatildeo iniciaacutetica de um saber que enseja a
condiccedilatildeo dos espectadores poliacuteticos os epoacutepatai os iniciados que ascendem a um estado
superior que promete a riqueza e a bem-aventuranccedila
A dramatizaccedilatildeo irocircnica sugere o falseamento de um ensino cuja eficaacutecia pretende
remontar agrave antropogonia primeva e dela tirar seu sentido Mas o perigo natildeo consiste
somente no risco e no terror que antecede a experiecircncia da prova iniciaacutetica O grande perigo
consiste em entregar a alma a misteacuterios cujos efeitos natildeo se pode afirmar que a melhorem
ou a piorem Para discriminar a natureza dos efeitos do ensino sobre a alma eacute preciso que o
olhar perscrutador do eacutelenkhos socraacutetico coloque os misteacuterios da iniciaccedilatildeo sofiacutestica sob
exame
92
III - RELACcedilOtildeES ESTRUTURAIS NO MITO DO GOacuteRGIAS O EacuteTHOS EM
QUESTAtildeO
31 Eros e Loacutegos
Audaacutecia e ardor tais satildeo os afetos divinos que incutidos na psykheacute fazem com que
o guerreiro sobreexceda o acircnimo das accedilotildees tatildeo somente humanas que encenam a batalha (Il
V 3)
Audaacutecia e ardor ndash tais satildeo os afetos pelos quais a dialeacutetica socraacutetica choca-se
ingente com a retoacuterica daquele que viria a ser ao mesmo tempo o mais violento e o mais
brilhante dos interlocutores que travam combate com Soacutecrates Caacutelicles
Batalha e guerra poacutelemos kaiacute maacutekhe eis o cenaacuterio com que Platatildeo monta o campo
dramaacutetico dialoacutegico em que satildeo confrontados os princiacutepios e valores ordenadores que
configuram dois modos de vida diametralmente opostos ndash cada qual com exigecircncias
especificidades procedimentos e formaccedilotildees perenemente antagocircnicas Um e outro
culminam no aacutegon retininte dos loacutegoi de seus campeotildees Moldado no apaixonado manifesto
de Soacutecrates o loacutegos dialeacutetico denuncia a ambiccedilatildeo unacircnime desmascara a injusticcedila e a
desfaccedilatez coerciva da maioria em torno da voluacutepia O discurso antagonista defendido
pelos retores e poliacuteticos eacute modelado pelo apetite desmesurado de poder de Caacutelicles que
reclama o testemunho histoacuterico dos grandes homens que se tornaram notaacuteveis
No retinir dos loacutegoi insinua-se a reverberaccedilatildeo da imprecaccedilatildeo a araacute que soa como
o vaticiacutenio do vidente que antecipa a praga o modo de vida implicado pela Filosofia
entendida como disciplina que se estende para aleacutem da educaccedilatildeo juvenil eacute indigno das
coisas belas nobres e bem reputadas entre os homens de valor eacute um modo de vida proacuteprio
da condiccedilatildeo dos sub-homens de escravos Ineficaz nos debates puacuteblicos a Filosofia
93
perverte a alma e resulta na incapacidade decisoacuteria em questotildees de justiccedila do que eacute
provaacutevel e crediacutevel incapacidade que redunda na impossibilidade de defesa diante de um
tribunal estabelecido por acusaccedilatildeo injusta levada a efeito por acusador desonesto e que
ineludivelmente acabaria na condenaccedilatildeo de Soacutecrates agrave morte (Goacutergias 485c-486b)
O manifesto socraacutetico se forja pela disposiccedilatildeo simeacutetrica da oposiccedilatildeo norteadora dos
valores Gecircneros de vida opostos satildeo determinados pela ordenaccedilatildeo simetricamente oposta
de valores incompatiacuteveis ndash ordenaccedilatildeo que implica praacuteticas e modos de inteligibilidade
distintos que por sua vez exprimem-se no esgrimir de discursos multifacetados Um e
outro identificam diferentes pragas psiacutequicas diferentes noacutesoi que exigem compensaccedilatildeo
mediada pela eficaacutecia discursiva do adivinho porta-voz das potecircncias ofendidas e
diferentes prescriccedilotildees A perversatildeo e a miseacuteria para Caacutelicles consistem na gradual
ignoracircncia determinada pela praacutetica filosoacutefica das leis em vigor na cidade da maneira de
falar exigida nas relaccedilotildees particulares e nos contratos puacuteblicos na perplexidade diante dos
prazeres e das voluacutepias dos homens e dito numa soacute fala em tornar-se irresoluto para com
todas as coisas que dizem respeito agraves maneiras de viver ao caraacuteter47
Valores opostos implicam caracteres que se contradizem e por conseguinte
pressupotildeem a multiplicidade de princiacutepios ordenadores opostos (DIXSAUT 2001 p 133)
Natildeo obstante a diversidade soacute pode ser unificada mediante a unidade do afeto na
afetividade do mesmo paacutethos (Goacutergias 481 d) A significaccedilatildeo unificadora deriva da
(Goacutergias 484 c09-d07)
94
possibilidade de se fazer mostrar um para o outro os proacuteprios afetos48
Soacutecrates e Caacutelicles
padecem do mesmo afeto eroacutetico direcionado para objetos distintos que caracterizam a
natureza do Eacuteros
O amor de Soacutecrates por Alcibiacuteades de um lado injunge a ordenaccedilatildeo cataacutertica da
encantaccedilatildeo a accedilatildeo terapecircutica dos belos discursos que toma a alma do ouvinte de assalto
como um canto de Sirena (Banquete 215c-216c) de outro deixa-se modelar pela Filosofia
ndash um desejo que eacute determinado pelo desejo mais elevado o desejo que aspira a ldquotocarrdquo o
belo visto que a Filosofia eacute ao mesmo tempo a muacutesica mais elevada (Feacutedon 61a) e o desejo
puro pelo que eacute ldquoem si mesmordquo (DIXSAUT 2001 p 184) Tal desejo faz do filoacutesofo um
carente e um amante incessantemente agrave procura do objeto de seu amor movido pela ldquobela
esperanccedilardquo (Feacutedon 114c) de encontraacute-lo e encontrando-o com a aspiraccedilatildeo imorredoura de
quem haveraacute de continuar procurando
O amor de Caacutelicles eacute simultaneamente modelado pelas pretensotildees e desejos de
Demos o filho de Pirilampo e demos o povo reunido na assembleacuteia (Goacutergias 481e) Em
Soacutecrates o amor eroacutetico deixa-se ordenar pelo desejo mais elevado e transpotildee-se como
forccedila encantatoacuteria do loacutegos ordenador na psykheacute do amado Em Caacutelicles o amor eroacutetico
segue o movimento inconstante da multiplicidade de desejos caoacuteticos da multidatildeo e
aquiesce aos apelos do amado de maneira que se transpotildee em discurso lisonjeiro no loacutegos
agradaacutevel cujo efeito eacute o incitamento e o acirramento dos apetites que o geraram Em
Soacutecrates o discurso eroacutetico afasta as falsas ilusotildees da alma e forceja o amado ao
reconhecimento das proacuteprias carecircncias e da falta de cuidado de si (Banquete 216a) Em
Caacutelicles o discurso compotildee-se na indeterminaccedilatildeo das aparecircncias ilusoacuterias que se
Goacutergias 481 d)
95
entrelaccedilam com a praacutetica poliacutetica Em Soacutecrates o discurso eacute engendrado a partir do desejo
sobre-determinado pelo desejo mais elevado e constante da Filosofia Em Caacutelicles o
discurso eacute engendrado pela inconstacircncia dos desejos indeterminados dos objetos de seu
amor o povo reunido na assembleacuteia Num e noutro o desejo se aconchega agrave inteligecircncia
para engendrar um discurso Em Soacutecrates inteligecircncia e desejo estatildeo em consonacircncia
harmonizam-se num uacutenico movimento ndash o da inteligecircncia do desejo e o do desejo da
inteligecircncia tal como o sopro da flauta se harmoniza com a danccedila do saacutetiro flautista
(Banquete 216c) O desejo possui a inteligecircncia de si mesmo e a inteligecircncia discerne seu
proacuteprio movimento como o movimento do desejo (DIXSAUT 2001 p 143) Em Caacutelicles
desejo e inteligecircncia satildeo asyacutemphonoi49
satildeo dissonantes de modo que o desejo subjuga e
arrasta a inteligecircncia para discernir somente aquilo que o atende o desejo torna-se entatildeo
apetite Quando desejo e inteligecircncia satildeo sinfocircnicos o discurso visa o melhor o beacuteltiston e
porta a explicaccedilatildeo racional (Goacutergias 464c-465e) e as causas de sua natureza50
Quando o
desejo domina a inteligecircncia o discurso visa o prazer e a inteligecircncia discerne apenas os
meios que determinam o seu assentimento num ldquoempirismordquo que atende agrave voluacutepia Num
49 A menccedilatildeo agrave desarmonia indica um desarranjo da multiplicidade de opiniotildees ou um desarranjo de uma
multiplicidade proacutepria ao si mesmo A metaacutefora ingressa uma homologia entre a multiplicidade dos muitos e
uma multiplicidade do si mesmo A intermitecircncia das opiniotildees de Caacutelicles implica a intermitecircncia correlativa
do seu psiquismo Tais questotildees determinam a hermenecircutica da leitura do Haacute uma divisatildeo na
natureza psiacutequica de Caacutelicles que se expressa na dissonacircncia de opiniotildees que natildeo satildeo sustentadas pela
refutaccedilatildeo da tese oposta A metaacutefora da harmonia como concordacircncia bem ajustada indica que o
opera uma concordacircncia no acircmbito do si mesmo ( ) em contraposiccedilatildeo com o
ajustamento e concordacircncia com as opiniotildees e desejos da multidatildeo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
110)
(Goacutergias 482b04-c03) 50
(Goacutergias 465a)
96
caso e noutro eacute a natureza do desejo que determina o estado da psykheacute O amor eroacutetico faz a
mediaccedilatildeo entre um desejo paradigmaacutetico (a Filosofia ou os desejos da multidatildeo) e a
personificaccedilatildeo do amor Mediaccedilatildeo que engendra loacutegoi e modos distintivos de hierarquizar
valores que por sua vez implicam gecircneros caracteriacutesticos de vida opostos um voltado para
a inteligecircncia da justiccedila do que eacute sempre idecircntico e imutaacutevel o vasto oceano do belo e do
bem (Banquete 211a) e outro voltado para a inteligecircncia do gozo irrefreaacutevel visto o
discernimento e a inteligecircncia de prazeres diversos serem prerrogativas da alma (Goacutergias
465d)
A inconstacircncia do alvo do amor de Caacutelicles determina a intermitecircncia de suas
opiniotildees e a ambivalecircncia de seus afetos Assim como seus afetos oscilam de um fito para
outro o movimento de seus pensamentos se estende em direccedilotildees muacuteltiplas opostas
expressando opiniotildees contraacuterias sobre um mesmo assunto Sua ambivalecircncia alterna-se
entre a doccedilura amistosa e a hostilidade raivosa na tentativa de esconder sua autodissensatildeo
mediante algum pronunciamento dogmaacutetico para logo em seguida contradizer-se
relutante ou involuntariamente revelando seus princiacutepios de accedilatildeo conflitantes Pervertido
pelo medo e atormentado pelos apetites Caacutelicles eacute simultaneamente um mau amante e um
bom odiento sobretudo em relaccedilatildeo a si mesmo (PLOCHMANN ROBINSON 1988 p
105)
A simetria das oposiccedilotildees indica uma estrutura de relaccedilotildees anaacutelogas e homoacutelogas
assim como haacute uma boa disposiccedilatildeo do corpo haacute uma boa disposiccedilatildeo da alma Assim como
a boa disposiccedilatildeo do corpo eacute assegurada por duas artes uma preservadora e outra
restauradora a boa disposiccedilatildeo da alma eacute assegurada por duas artes do mesmo gecircnero
Assim como as artes relativas ao corpo satildeo conduzidas pelo desejo do melhor a boa
disposiccedilatildeo da alma eacute impelida pelo desejo do melhor Assim como as artes do corpo
97
implicam a inteligecircncia da natureza dos seus procedimentos e das causas assim tambeacutem as
artes da alma implicam o loacutegos de sua natureza e de suas causas
Assim como uma imagem eacute uma aparecircncia do modelo original as imagens das artes
autecircnticas satildeo aparecircncias de seus originais A lisonja kolakeiacutea estaacute para a Poliacutetica como as
aparecircncias estatildeo para os originais A cosmeacutetica estaacute para a ginaacutestica como a culinaacuteria estaacute
para a medicina A sofiacutestica estaacute para a legislaccedilatildeo como a retoacuterica estaacute para a justiccedila O
discurso persuasivo estaacute para o discurso racional como o prazer estaacute para o melhor e o
bem A inteligecircncia do prazer imediato estaacute para a inteligecircncia dos prazeres proacuteprios como
a inteligecircncia do empirismo da vantagem estaacute para a inteligecircncia das causas da boa
disposiccedilatildeo O Eros do retor estaacute para o Eros do filoacutesofo assim como a epithymia da
multidatildeo estaacute para a Filosofia
A Filosofia comporta um discurso que por sua proacutepria natureza eroacutetica desfaz a
ilusatildeo gerada pelo apetite as opiniotildees os falsos saberes e a valoraccedilatildeo do que eacute contingente
do que estaacute imerso no devir um discurso que busca refutar por amor da verdade e natildeo por
amor da vitoacuteria e das disputas a philoneikiacutea (Goacutergias 457e-458b) O amor de Soacutecrates por
Alcibiacuteades comporta o paradoxo da abstenccedilatildeo do deleite mesmo tendo-lhe compartilhado o
mesmo leito (Banquete 216e-217e) Soacutecrates soacute pocircde desprezar a beleza dos corpos a
riqueza e todas as vantagens apreciadas pelos muitos porque ascendeu ao cliacutemax do Eros
Tal eacute a razatildeo pela qual o discurso filosoacutefico eacute elecircntico a unificaccedilatildeo do desejo almeja o
plano mais alto e contrapotildee agrave incompletude que se dispersa na multiplicidade a visatildeo
sempiterna do belo
Ardor e audaacutecia - trata-se efetivamente do entrecruzar de dois discursos que
digladiam-se pelo manejo experimentado de dois amorosos animados pelo mesmo afeto
Eros que natildeo obstante volta-se para direccedilotildees excludentes O discurso expressa o
98
movimento da inteligecircncia que por sua vez acopla-se ao Eros ou identificando-se com ele
num uacutenico e mesmo movimento ou submetendo-se a ele (DIXSAUT 2001 p 153-ss) O
movimento eroacutetico do loacutegos acarreta disposiccedilotildees concordantes com seu direcionamento O
discurso pode suscitar o convencimento associado ao saber ou se natildeo emerge do
conhecimento das causas o assentimento engendrado pela aparecircncia visto que saber eacute
diferente de crer A persuasatildeo mesma divide-se em par de naturezas distintas ndash a crenccedila e o
conhecimento (Goacutergias 454 d-e) e por conseguinte o discurso distingue-se pela direccedilatildeo de
seu movimento e de seu alvo Mas tal qual glaacutedio que possui dois gumes o discurso natildeo
pode ser proferido sem que seu efeito seja duplo e sem que a resultante do golpe se volte
para sua origem Animado por um afeto eroacutetico o movimento discursivo natildeo pode ser
desferido sem que haja uma ordenaccedilatildeo preacutevia dos afetos que o engendram sem que o
proacuteprio movimento psiacutequico lhe seja condizente A palavra natildeo pode ser proferida sem que
haja ressonacircncias no acircmago da psykheacute que a engendra
32 ndash Vida e ḗthos
Batalha e guerra - valores organicamente opostos resultam em modos de vida que se
potildeem em pugna que implicam praacuteticas eacutetico-poliacuteticas opostas e que buscam na maacutekhe dos
loacutegoi no combate singular da palavra os posicionamentos que demarcam a estrateacutegia dos
antagonismos
Caacutelicles e Soacutecrates buscaratildeo defender natildeo somente suas teses mas seus gecircneros de
vida e seus valores a partir de razotildees enredadas em discursos estruturados de modo
excludente Retoacuterica e dialeacutetica entrecruzam-se como armas que reclamam o kraacutetos sobre a
inteireza da vida
99
O golpe de Caacutelicles eacute posto de iniacutecio muitas vezes natureza e lei51
se contradizem
uma agrave outra52
- tais satildeo as divisotildees que comportaratildeo todas as diferenccedilas A divisatildeo de um
todo em partes explica ao mesmo tempo as causas pelas quais Goacutergias e Polos caiacuteram em
contradiccedilatildeo e o procedimento refutativo empregado por Soacutecrates O argumento da divisatildeo
haure toda sua forccedila de uma oposiccedilatildeo efetivamente presente na mentalidade aristocraacutetica
grega e por isso justifica-se plenamente como ponto de partida da argumentaccedilatildeo de
Caacutelicles Tratar-se-ia de tese que natildeo sofreria contestaccedilatildeo direta53
O procedimento de dissociar duas noccedilotildees que se pretendem exaustivas permite a
afirmaccedilatildeo de que certos elementos independentes e irredutiacuteveis se mantecircm associados e
confundidos A cilada de Soacutecrates consistiria em se reportar agrave natureza quando se fala
51 Guthrie observa que noacutemos e phyacutesis adquirem significados opostos a partir do clima intelectual do seacuteculo
V ldquoO que existia por noacutemos natildeo existia por phyacutesis e vice-versardquo Nos sofistas historiadores e oradores da
eacutepoca e tambeacutem em Euriacutepides a antiacutetese passa para as esferas da moral e da poliacutetica ldquoNoacutemosrdquo passou a
significar basicamente (a) ldquouso ou costumes baseados em crenccedilas tradicionais ou convencionais quanto ao
que eacute certo ou verdadeirordquo (b) ldquoleis formalmente esboccediladas que codificam o uso corretordquo O sentido de
ldquophyacutesisrdquo por outro lado toma corpo a partir dos filoacutesofos preacute-socraacuteticos Embora o sentido de ldquonaturezardquo seja
claro pode-se pensar em termos poliacuteticos em ldquorealidaderdquo contrastada com as convenccedilotildees da lei positiva Em
Tuciacutedides a decadecircncia moral acarretada pela guerra faz sobressair o viacutenculo existente entre a ldquonatureza
humanardquo e o interesse ) em oposiccedilatildeo agrave justiccedila O interesse a vantagem e o uacutetil satildeo princiacutepios
inerentes agrave natureza humana e parte da realidade em que o mais forte se impotildee ao mais fraco Satildeo
significativos os relatos das negociaccedilotildees travadas entre os atenienses de um lado e Melos ou Mitilene de
outro A histoacuteria era a principal testemunha de que ldquoera da natureza humana tanto para os Estados como para
os indiviacuteduos comportar-se egoiacutestica e tiranicamente se dada a oportunidaderdquo Para o Caacutelicles platocircnico isso
natildeo soacute ldquoera inevitaacutevel senatildeo tambeacutem justo e adequadordquo (GUTHRIE 1995 p 57-103) Dodds afirma que ldquoA
fonte antiga mais importante aleacutem de Platatildeo satildeo os fragmentos dos manuscritos do sofista Antiacutefonte ()
mas inuacutemeras passagens em Euriacutepides Aristoacutefanes e Tuciacutedides mostram que a antiacutetese era imensamente examinada e compreendida nos anos posteriores do seacuteculo Vrdquo (DODDS 2002 p 263) A concepccedilatildeo
difundida no quadro mental herdado por Platatildeo no iniacutecio do quarto seacuteculo que alccedila o sucesso e o interesse ao
primeiro plano e preconiza ldquofazer bem aos amigos e mal aos inimigosrdquo natildeo reclamava justificaccedilatildeo uma vez
que era aceita universalmente Daiacute as teses defendidas por Soacutecrates soarem tatildeo chocantes e bizarras Nada
atentava mais ao senso comum do homem grego de entatildeo e de certa forma como mostra uma citaccedilatildeo feita
por Guthrie datada do seacuteculo XVIII nada atenta mais contra o senso comum de todos os tempos 52
(Goacutergias
482e) 53 Como Marian Demos afirma ldquoA antiacutetese entre e aparece com frequecircncia na literatura
Grega nos seacuteculos VI e V Caacutelicles natildeo diz nada revolucionaacuterio nesse ponto ele apenas estabelece o cenaacuterio
para aquilo que subsequentemente eacute sancionado pela A oposiccedilatildeo entre e eacute tambeacutem
refletida na discrepacircncia entre os verdadeiros sentimentos de Polos e sua relutacircncia em proclamaacute-los Pode-se
inferir que a de alguma forma corresponde com a visatildeo da realidade de Polos enquanto o
designando bdquoo consenso geral‟ o impede de expor sua visatildeo (DEMOS 1994 p 85-107)
100
segundo a lei e aludir agrave lei quando se lhe fala segundo a natureza54
(483a) A questatildeo dos
valores depende do ponto fixo a partir do qual eles seratildeo coordenados A noccedilatildeo de ldquojusticcedilardquo
pressupotildee seu proacuteprio esquema de coordenaccedilatildeo de valores cuja aquilataccedilatildeo muacutetua depende
de um padratildeo fixo Postula Caacutelicles que tal padratildeo expressa os interesses de quem o
estabelece segundo os dois gecircneros disjuntivos ou a lei ou a natureza55
A noccedilatildeo
convencional de justiccedila exprime o fato de que a aceitaccedilatildeo dos interesses da maioria inferior
determina o tratamento apropriado para cada pessoa e constitui o padratildeo pelo qual as accedilotildees
satildeo reputadas como justas ou injustas O princiacutepio rival invocado por Caacutelicles estabelece
que os interesses dos homens superiores devam constituir o uacutenico padratildeo de justiccedila uma
vez que o que promove a superioridade desses homens eacute naturalmente justo56
e coincide
com a proacutepria natureza (IRWIN 1995 p 103) Sofrer injusticcedilas eacute proacuteprio de escravos que
nem sequer podem ser chamados ldquohomensrdquo para quem a morte seria melhor (kreittoacuten) do
que a vida A lei eacute estabelecida para defender os interesses desses homens fracos dos
muitos que proclamam que toda superioridade eacute desonrosa (toacute kataacute noacutemon aiskhiacuteon
leacutegontos) e que cometer injusticcedila eacute censuraacutevel Para os muitos a injusticcedila (adikiacutea) consiste
em avantajar-se (pleonektecircin) em ter mais (pleacuteon eacutekhein) (483b-c) Satildeo os interesses das
54 Aristoacuteteles nas Refutaccedilotildees Sofiacutesticas menciona explicitamente Caacutelicles e refere-se agrave oposiccedilatildeo entre
e como um muito difundido que leva os homens a proferir paradoxos na aplicaccedilatildeo
dos padrotildees da natureza e da lei ldquoque todos os antigos consideravam vaacutelidordquo (ARISTOacuteTELES 2005 173a p
571) Kerferd argumenta que embora seja possiacutevel que a expressatildeo ldquotodos os antigosrdquo se refira natildeo soacute aos
sofistas mas tambeacutem a preacute-sofistas a clara referecircncia de Aristoacuteteles aos dois loacutegoi indica que ele tinha
sobretudo os sofistas em mente (KERFERD 2003 p 194) 55 Segundo a interpretaccedilatildeo que Kerferd (2003 p197 ss) faz do fragmento DK 87B44 (87 B 44 [cfr 99 B
118 S) de Antifonte fica clara a antiacutetese entre phyacutesis e noacutemos As vantagens preconizadas pela lei satildeo
impedimentos para a natureza ao passo que as vantagens da natureza levam agrave liberdade e devem ser
preferidas agraves prescriccedilotildees da lei A justiccedila deve ser usada em proveito do interesse se houver presenccedila de testemunha Na ausecircncia destas somente a natureza deve ser obedecida Infere-se que o que eacute vantajoso
favorece a natureza e eacute da natureza humana ter vantagem Tudo aquilo que favorece a vantagem e o interesse
constituem um bem As leis e provisotildees satildeo cadeias que impedem a realizaccedilatildeo da natureza humana 56 Irwin afirma que o princiacutepio de Caacutelicles soacute eacute imparcial se a dominaccedilatildeo dos fortes for boa natildeo somente para
as pessoas superiores mas desejaacuteveis para algum outro ponto de vista distinto do delas O exame dessa
posiccedilatildeo exige que se prove que (1) violar regras de outras perspectivas de justiccedila eacute do interesse de algumas
pessoas que (2) estas pessoas satildeo superiores que (3) o que promove o interesse destas pessoas eacute naturalmente
justo (IRWIN 1995 p 103)
101
multidotildees fracas que delimitam o estabelecimento das leis cujo objetivo eacute limitar os
melhores e os mais robustos dos homens
Pois eu penso que aqueles que estabelecem as leis satildeo os homens
fracos e os muitos Por conseguinte eacute para si mesmos que
estabelecem as leis e atribuem elogios e censuras com os olhos em
sua proacutepria vantagem Eles aterrorizam os mais robustos dos
homens e potentes para ter mais e previnem estes homens de que
possuir mais do que eles mesmos e ter mais eacute vergonhoso e injusto
E que fazer injusticcedila eacute isto procurar ter mais do que os outros
Eles estatildeo satisfeitos se tecircm uma partilha igual quando satildeo
inferiores Eacute por isso que pela lei eacute dito ser injusto e vergonhoso
procurar ter mais do que os muitos e eacute isso que eles chamam
injusticcedila57
(Goacutergias 483b04-c08)
A questatildeo da justiccedila eacute por conseguinte indissociaacutevel da afetividade da vergonha
que configura aquilo que eacute aceitaacutevel e elogiaacutevel coletivamente A desonra deriva
diretamente do olhar coletivo que sanciona o elogiaacutevel e o censuraacutevel determinaccedilotildees de
todos os valores compartilhados pelos quadros mentais da cidade Aquilo que eacute vergonhoso
(aiskhiacuteon) eacute intrinsecamente associado ao afeto do senso de honra (aidōs) que por sua vez
brota da estima puacuteblica58
Aleacutem disso o desejo e a cobiccedila de ter mais a ambiccedilatildeo que
caracteriza a pleonexiacutea afeto primaacuterio estatildeo na ordem constitutiva do que Caacutelicles
considera justo por natureza A polarizaccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos sugere em seu bojo a
Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
58 O termo expressa a vergonha e a ignomiacutenia segundo Chantraine (1999 p 40) e eacute empregado na
prosa aacutetica para indicar a feiuacutera repugnante O adjetivo deriva deste sentido original da vergonha provocada
pela deformidade mas possui tambeacutem o valor de ldquosenso de honrardquo Derivado de o tema de
exprime em Homero o sentimento de respeito diante de um deus ou superior e sobretudo o
sentimento que proiacutebe a covardia ao homem O sentimento tambeacutem estaacute ligado a partes
vergonhosas a genitaacutelia
102
tensatildeo mais basilar entre os apetites aquilo que Dodds chama de ldquoimpulsos individuaisrdquo e
a pressatildeo coletiva que instaura os valores considerados aceitaacuteveis ou a ldquopressatildeo de
adaptaccedilatildeo social caracteriacutestica de uma cultura baseada na vergonhardquo (DODDS 2002 B p
26) Desejos cobiccedila honra vergonha discursos e os pensamentos que os movem
configuram os princiacutepios basilares que justificam a noccedilatildeo da justiccedila e o gecircnero de vida
honoraacutevel
O termo Aidōs eacute empregado na narrativa de Gygeacutes para designar a respeitabilidade
de uma mulher o senso de honra da mulher daquilo que pode ser visto e daquilo que natildeo
pode ser olhado Heroacutedoto narra a desmedida do rei que contrariamente agraves interdiccedilotildees
longamente moldadas pela tradiccedilatildeo desejava mostrar a nudez de sua mulher usurpando e
violentando a sua respeitabilidade
Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se
despe() Gygeacutes natildeo podendo fugir agrave situaccedilatildeo declarou-se pronto
a obedecer Candaulo agrave hora de dormir conduziu-o ao quarto
para onde a rainha natildeo tardou a se dirigir O guarda viu-a despir-
se e enquanto ela lhe voltava as costas para alcanccedilar o leito
esgueirou-se para fora do aposento mas a rainha percebeu-lhe a
presenccedila Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o
ultraje em silecircncio fingindo nada ter notado mas decidindo no
fundo do coraccedilatildeo vingar-se de Candaulo pois entre os Liacutedios
como entre quase todos os povos baacuterbaros constitui um oproacutebrio
mesmo para um homem o mostrar-se nu (HERODOTE I VIII-X
1850)
A conotaccedilatildeo da pudiciacutecia emerge do sentido original das partes vergonhosas a
genitaacutelia que deve estar coberta para os olhares dos outros Esse sentido segundo observa
Arlene Saxonhouse (2008 p 58) se estende para um contexto praacutetico-poliacutetico no qual o
olhar puacuteblico determina o entendimento comunitaacuterio daquilo que deve ser escondido e
daquilo que deve ser revelado Em Heroacutedoto a vergonha denota a transgressatildeo aos
costumes aos noacutemoi longamente sedimentados que se expressam nas leis reverenciadas
103
pela tradiccedilatildeo A violaccedilatildeo do rei Candaulo consiste em identificar as coisas belas com a
beleza natural da silhueta da mulher em detrimento da reverecircncia agraves leis A longevidade dos
costumes sedimenta as interdiccedilotildees que configuram a esfera do que eacute vergonhoso e
desonroso e por isso os limites das leis ancestrais exigem uma observacircncia e reverecircncia
que se aproximam da natureza A origem remota perdida num tempo em que satildeo gestadas
as belas coisas taacute kalaacute associa a reverecircncia a um acervo de valores que possui a mesma
caracteriacutestica do enclave miacutetico a ausecircncia de dataccedilatildeo Transgredir esses limites implica
uma exposiccedilatildeo e uma impudecircncia equivalente agrave nudez
O eacutelenkhos socraacutetico expotildee a nudez de afetos e pensamentos que reclamam
encobrimento agrave dissoluccedilatildeo do olhar coletivo59
Por essa razatildeo Goacutergias e Polus foram
constrangidos nas amarras da dialeacutetica preferiram deixar-se refutar a exporem-se na sua
nudez Eacute necessaacuterio pois que se faccedila a exposiccedilatildeo das causas do seu embaraccedilo Lei e
Natureza frequentemente se contradizem
A proacutepria natureza pode ser invocada como testemunho e prova de que a justiccedila eacute
precisamente contraacuteria agrave lei os animais os chefes de famiacutelia os homens nas cidades o
grande Rei da Peacutersia e o proacuteprio Zeus exemplificam que a lei da natureza a verdadeira
natureza do direito eacute contraacuteria agraves leis estabelecidas que subjugam os homens mais
vigorosos agrave escravidatildeo A igualdade entre homens desiguais (toacute iacuteson eacutekhosin oacutentes)
subverte a natureza O homem de natureza suficientemente bem nascido para pisar em
todas as ldquomagias encantaccedilotildees e leis estabelecidasrdquo faria ldquobrilhar a justiccedila da naturezardquo
(483e-484b)
59 Arlene Saxonhouse vecirc na personagem do rei Candaulo narrada por Heroacutedoto um precursor de Soacutecrates A
dialeacutetica socraacutetica revela aquilo que na perspectiva da tradiccedilatildeo aristocraacutetica deveria permanecer oculto e isso
acaba por levaacute-lo agrave morte (2008 p 59)
104
A exemplaridade paradigmaacutetica de Goacutergias resplandece na fala de Caacutelicles
Koacutesmos60
para a cidade virilidade para o corpo beleza para a alma sabedoria para o ato
excelecircncia para o discurso verdade (Elogio de Helena 1) Soacutecrates sob pretexto de
perseguir a verdade (aleacutetheia) profere discursos populares (demegorikaacute ndash Goacutergias 482e)
Cabe pois ao loacutegos exaltar o homem excelente por natureza e detrair o contraacuterio pois eacute
um erro louvar o censuraacutevel e censurar o louvaacutevel61
Assim como o discurso exemplar de
seu mestre promove a inversatildeo da maacute fama de Helena urdida pelos poetas assim tambeacutem
Caacutelicles empreende exposiccedilatildeo (dieacutegesis) que inverte a crenccedila gerada pelas encantaccedilotildees dos
que estabelecem as leis Anunciada a verdade de que a justiccedila eacute o direito natural do mais
capaz a loacutegica (loacutegismos) discursiva de Caacutelicles enuncia as razotildees pelas quais as leis satildeo
estabelecidas e propotildee o elogio da lei verdadeira a lei da natureza que eacute a primeira entre os
animais entre as famiacutelias entre os reis e entre os deuses tal como Helena por natureza
(phyacutesei) eacute a primeira entre os primeiros homens e mulheres e divina entre os deuses
(Elogio de Helena 3) A enumeraccedilatildeo dos exemplos consolida as bases da tese Tal como
brilha a beleza da primeira dentre as mulheres o homem vigoroso faz resplandecer o brilho
da justiccedila da Natureza Pela Natureza tal como por Helena vinham todos tanto pelo amor
aacutevido de vitoria quanto pela invenciacutevel avidez de honra reuacutenem-se os melhores e maiores
homens de riqueza gloacuteria forccedila e sabedoria adquirida (Elogio de Helena 4)
60Wardy (1996 p 30) chama atenccedilatildeo para o fato de que a palavra Koacutesmos conforme eacute empregada no Elogio
de Helena designa simultaneamente a ornamentaccedilatildeo e o artifiacutecio do discurso Originalmente o termo
designava a atraccedilatildeo especiosa arranjos impostos como a maquiagem de meretrizes Eacute improvaacutevel argumenta
Wardy que Goacutergias tivesse em vista um raciociacutenio loacutegico pelo qual a verdade como excelecircncia do loacutegos fosse adquirida somente atraveacutes de uma histoacuteria verdadeira O proecircmio do Elogio deve ser interpretado no
sentido de que Koacutesmos natildeo significa um mero ornamento artificial oposto agravequilo que a realidade eacute de fato
Seu objetivo eacute mostrar a verdade Adriano Ribeiro explicita e desenvolve a indicaccedilatildeo de Wardy afirmando o
significado de Koacutesmos como ornada ordenaccedilatildeo Eacute funccedilatildeo do loacutegos expor modelos de ornamentos de modo
ordenado A argumentaccedilatildeo ordena ressaltando o que conveacutem ao que eacute afirmado e afirmando o que eacute
propriamente verdadeiro A ornamentaccedilatildeo da palavra eacute sua verdade e a ela cabe pois distinguir o certo do
incerto o elogiaacutevel do censuraacutevel (RIBEIRO 2002 p 167) 61 GORGIAS Elogio de Helena Adoto a traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli 2009
105
A exposiccedilatildeo das causas confere razoabilidade agrave fala e Caacutelicles justifica sua tese com
razotildees No caso de Helena62
as primeiras causas justificam sua ida para Troacuteia mediante um
toacutepos aceito universalmente ndash o de que eacute natural que o mais forte subjugue o mais fraco eacute
natural o mais forte conduzir e o mais fraco seguir (Elogio de Helena 6) No caso de
Caacutelicles as leis satildeo reputadas injustificaacuteveis porque constituem reaccedilatildeo dos mais fracos para
se protegerem da forccedila dos fortes e escravizaacute-los agrave condiccedilatildeo mais baixa Nos dois discursos
o mesmo toacutepos eacute alccedilado agrave condiccedilatildeo de verdade universal visto natildeo reclamar justificaccedilatildeo e
ter acolhimento em qualquer ouvinte sensato Eacute tatildeo natural ser constrangido pela
Necessidade ou por decreto divino quanto pela sobreexcelecircncia do homem superior
Ademais a forccedila da Necessidade dos deuses e do guerreiro armado eacute equiparada agrave forccedila
persuasiva do discurso O loacutegos age como senhor poderoso e a persuasatildeo possui a forccedila de
um rapto Tanto para Goacutergias como para Caacutelicles a natureza passa a ser ldquoum tipo de base
material conveniente para construir uma teoria da persuasatildeordquo (CROCKETT 1994 p 78)
Mas para Goacutergias o constrangimento pela forccedila eacute ato terriacutevel cujo agente deve
receber pelo discurso a acusaccedilatildeo pela lei a desonra pelo ato o castigo (Elogio de Helena
7) Os encantamentos divinos mediante os loacutegoi encantam a alma e nela induzem calafrio
de medo compaixatildeo e pesar comprazido (Elogio de Helena 8) Encantamento e magia se
encontram como teacutecnicas que geram erros da alma e ilusatildeo da opiniatildeo63
ndash os loacutegoi movem
os prazeres e removem as tristezas (Elogio de Helena 10) O uso abusivo do loacutegos por
natureza arrebata a psykheacute e por isso deve ser condenado A retoacuterica eacute uma arte de
62 A retoacuterica no Goacutergias observa Andy Crockett eacute feminina eacute mulher assim como a natureza e a desordem ao passo que o kosmos eacute masculino A concepccedilatildeo de que o mais forte subjuga o mais fraco eacute reforccedilada pelo
fato de a mulher ser naturalmente mais fraca do que o homem e pela misoginia da mulher no regime
democraacutetico ateniense fundamentalmente falogocecircntrico (CROCKETT 1994 p 71 ) 63
106
combate que deve ser usada de maneira legiacutetima contra os inimigos e criminosos como
meio de defesa e natildeo de agressatildeo (Goacutergias 457e) O mestre natildeo deve ser considerado
ldquoculpado ou criminosordquo pelo mau uso da arte Os criminosos satildeo ldquoos indiviacuteduos que fazem
mau uso de sua arterdquo (Goacutergias 457a) A forccedila encantatoacuteria e arrebatadora dos discursos por
constituir princiacutepio de accedilatildeo autocircnomo e causalidade proacutepria justificam a imputabilidade
Tem a mesma relaccedilatildeo tanto o poder do discurso para o
ordenamento da alma quanto o ordenamento dos faacutermacos para a
natureza dos corpos Pois assim como alguns dos faacutermacos
expulsam alguns humores do corpo e fazem cessar uns a doenccedila
outros a vida assim tambeacutem dentre os discursos uns afligem
outros deleitam outros atemorizam outros conferem ousadia aos
ouvintes outros por alguma maacute persuasatildeo drogam e enfeiticcedilam
completamente a alma
(Elogio de Helena 13)
A accedilatildeo conquistadora subjugante eacute movida pelo desejo eroacutetico e a passividade
daquele que eacute conquistado eacute como doenccedila que afeta a alma (Elogio de Helena 18) Se
poreacutem eacute uma doenccedila humana e um desconhecimento por parte da alma natildeo se deve
imputar como erro mas se deve julgar como infortuacutenio A accedilatildeo condenaacutevel do discurso eacute a
usurpaccedilatildeo psiacutequica que equivale agrave violecircncia do rapto
Caacutelicles ao contraacuterio de Goacutergias condena a limitaccedilatildeo da forccedila e a supressatildeo do fato
natural apoiado na polarizaccedilatildeo entre ativo e passivo conquistador e conquistado forte e
fraco capaz e incapaz desregramento e regra phyacutesis e noacutemos Sua defesa despudorada da
forccedila o tipifica como personificaccedilatildeo do disciacutepulo que desconhece a noccedilatildeo de justiccedila e que
por isso faz mau uso da retoacuterica e dos seus efeitos proacuteprios Caacutelicles elogia o belo e
censura o feio A persuasatildeo do loacutegos deve ser posta a serviccedilo da incontinecircncia do apetite
Condenaacuteveis satildeo os muitos que defendem seus interesses com as encantaccedilotildees e maacutegicas
com que estabelecem as leis Condenaacutevel eacute o eacutethos a moralidade do escravo Caacutelicles
advoga a justificaccedilatildeo retoacuterica da violecircncia cometida em prol do prazer com base na
107
constataccedilatildeo factual de uma ordem natural que premia o mais forte No plano da vantagem
nua e crua no campo dos interesses em conflito natildeo eacute natural que o menos capaz sobrepuje
o mais capaz
Na sua apologia agrave forccedila Caacutelicles promove uma re-significaccedilatildeo para o sentido de
noacutemos ao citar Piacutendaro a lei eacute de todos o rei64
dos mortais e dos imortais Como observa
Marian Demos ldquoo uso que Piacutendaro faz do termo (noacutemos) eacute livre de qualquer conotaccedilatildeo
ulterior Piacutendaro vecirc noacutemos como algo poderoso e inevitaacutevel que manteacutem todas as coisas
ldquocompensadasrdquo que regula todas as coisas Ao contraacuterio do que afirma Caacutelicles o poema
de Piacutendaro refere-se agrave forccedila (biacutea) de Heacuteracles qualificando-a como violecircncia e natildeo para
retratar seus trabalhos como modelo exemplar para a aquilataccedilatildeo daquilo que eacute mais justo
(DEMOS 1994 p 94) Enquanto o noacutemos no poema de Piacutendaro indica uma limitaccedilatildeo para
a violecircncia de Heacuteracles Caacutelicles usurpa o poeta e cita o trecho para sustentar sua tese de
que o uso da forccedila eacute a lei da natureza e justiccedila65
Estaacute advertido de que o recurso ao poeta
de renome e agrave comparaccedilatildeo com Heacuteracles possui um apelo persuasivo poderoso Toda
comparaccedilatildeo implica a aproximaccedilatildeo e transferecircncia de valores que satildeo acompanhadas por
afetos proacuteprios Os afetos ligados ao valor do modelo transferem-se para o termo
comparado Assim como Heacuteracles se valeu da violecircncia para roubar os bois de Geriatildeo a
violecircncia do homem superior encontra guarida na celebridade do precedente e nos valores
64 (Goacutergias 484b) 65 Segundo Apolodoro 2 4 8-9 (CARRIEgraveRE MASSONIE 1991 p 63) Heacuteracles filho de Zeus e
Alcmeacutene ultrapassava a todos em altura e forccedila Sua aparecircncia manifestava a todos que o viam que era um
filho de Zeus Seu corpo media quatro cocircvados seus olhos brilhavam com o claratildeo do fogo e suas flechas ou
dardos natildeo erravam o alvo A beleza do semideus se contrapotildee agrave monstruosidade de Geriatildeo seu corpo era
formado por trecircs dorsos reunidos na cintura e que se cindia novamente em trecircs a partir dos quadris e das
coxas (id 2 5 10 106 p 70) Morto por uma flecha de Heacuteracles o disforme Geriatildeo encarna a feiuacutera
monstruosa que estaacute na origem do afeto da vergonha O semideus por sua vez belo e poderoso cruza o
Oceano na taccedila de ouro do deus Heacutelios com o seu espoacutelio o gado puacuterpuro roubado de Geriatildeo
108
que o acompanham trata-se do modo de agir do semideus sobre-humano ndash o maior dos
heroacuteis da Heacutelade
Eacute notaacutevel o uso que Caacutelicles faz de coordenadas miacuteticas para a fundamentaccedilatildeo da
sobreexcelecircncia da forccedila natural e para a significaccedilatildeo do vergonhoso e do honroso A forccedila
encantatoacuteria arrebatadora maacutegica e enfeiticcediladora dos discursos eacute originada segundo
Goacutergias no divino (Elogio de Helena 10)66
Caacutelicles se vale de esquemas miacuteticos
longamente sedimentados nos quadros mentais gregos para consolidar afetos e valores A
encantaccedilatildeo estaacute na base da afetividade que configura modela e justifica as crenccedilas e a
opiniatildeo (NUNES SOBRINHO 2008 p 48ss) e o princiacutepio de accedilatildeo mais poderoso para a
identidade coletiva de uma sociedade baseada no combate e na disputa eacute configurado pelos
afetos ligados ao crivo puacuteblico
Segundo Burkert a busca pelo gado de Geriatildeo exprime uma tradiccedilatildeo preacute-grega
(1979 p 84) e segue um esquema de accedilotildees bem definido (1) o heroacutei empreende uma
busca (2) chega ao lugar de destino (3) comeccedila uma luta com o possuidor (4) derrota-o
(5) leva o gado (6) e retorna Este padratildeo segundo Burkert determina um esquema
antropoloacutegico invariante67
A narrativa miacutetica de Geriatildeo possui a especificidade de
descrever uma geografia coacutesmica Heacuteracles deve atravessar o Oceano no rumo do Sol por
meio da taccedila dourada presenteada por Heacutelios O Oceano eacute o ponto de encontro entre o ceacuteu e
a terra mediaccedilatildeo entre os poacutelos opostos delimitados pelo terrestre e pelo celestial O heroacutei
se vecirc diante de uma situaccedilatildeo problemaacutetica o trabalho de roubar o gado do monstro Geriatildeo
66 67 Walter Burkert segue a estrutura padratildeo e os motifemas estabelecidos por Vladimir Propp Segundo este
padratildeo o trabalho de Heacuteracles teria o seguinte esquema na ordem proposta por Propp Para apanhar o gado
de Geriatildeo sob o comando de Euristeu (9) Heacuteracles parte para uma longa viagem (11) Encontra o Velho
Homem do mar que lhe fornece algumas direccedilotildees (12 13) depara-se com Heacutelios o deus do Sol do qual
obteacutem um objeto maacutegico a taccedila de ouro para atravessar o Oceano (14) quando aporta agrave ilha Vermelha de
Eriteacuteia (15) trava um combate com o chefe dos animais um rugidor de trecircs cabeccedilas Geriatildeo (18) e apodera-
se da manada (19) (BURKERT 2001 p 88)
109
Para realizar a mediaccedilatildeo implicada pela tarefa recebe como recurso um instrumento
divino a taccedila de ouro presenteada por Heacutelios A travessia ou passagem de um plano
coacutesmico para outro soacute eacute realizada mediante o emprego de um recurso divino A ilha
vermelha Eryteacuteia (paiacutes vermelho) onde se encontra o gado puacuterpuro evoca o ocaso
momento de encontro coacutesmico A luta o emprego de recursos divinos a forccedila sobre-
humana e finalmente a vitoacuteria sobre o monstro disforme justificam a soberania e o poder
(VERNANT 2002 p 250 ss) A universalidade deste esquema miacutetico de pensamento
confere segundo Burkert significaccedilatildeo para a vida pastoral cujo maior problema era a
possibilidade de que o rebanho fosse perdido ou roubado O desaparecimento dos animais
era atribuiacutedo sempre agrave accedilatildeo de algum daiacutemon O heroacutei eacute venerado e cultuado em funccedilatildeo de
encarnar dar expressatildeo e significaccedilatildeo para a necessidade vital de lidar com o medo difuso
(ansiedade) da perda do rebanho e do roubo perpetrado por adversaacuterios funestos Eacute preciso
encontrar coragem para a busca daquilo que foi extraviado por potecircncias demoniacuteacas e
haurir proteccedilatildeo efetivada na forccedila heroacuteica que modela a exemplaridade do sucesso
(BURKERT 1979 p 85)
33 Aiskhyacutene Aidōs e Causalidade
Na Apologia Soacutecrates se vale do recurso ao paradigma miacutetico com o escopo de re-
significar o afeto da vergonha Diante da questatildeo da vergonha provocada pelo perigo de
morte decorrente de suas ocupaccedilotildees praacuteticas 68
Soacutecrates recorre aos valores heroacuteicos da
bela morte de Aquiles como meio de reformular a hierarquia daquilo que eacute temiacutevel
vergonhoso e desonroso Nenhum valor pode estar acima de uma vida honrada nem
mesmo o perigo da morte pois nada eacute pior do que viver na desonra Por menor que seja o
68
(Apologia 28b03-04)
110
valor de um homem a vida praacutetica natildeo deve calcular o perigo da morte mas somente se eacute
justa ou injusta se as accedilotildees satildeo as de um homem bom ou mau (28b05-09) Se o risco da
morte ensejasse a vergonha a vida dos semideuses de Troacuteia seria uma vida inferior jaacute que
o filho de Theacutetis natildeo se preocupou com o perigo da morte perante a ameaccedila da vergonha
A morte e o perigo nada satildeo em comparaccedilatildeo com a infelicidade de uma vida em que os
amigos do heroacutei natildeo satildeo vingados (28c08-29d01)
Em uma sociedade de confronto na qual para ser reconhecido eacute
preciso derrotar os rivais em uma competiccedilatildeo incessante pela
gloacuteria cada indiviacuteduo estaacute colocado sob o olhar do outro cada
indiviacuteduo existe por esse olhar Ele eacute o que os outros veem dele A
identidade de um indiviacuteduo coincide com sua avaliaccedilatildeo social da
derrisatildeo ao louvor do desprezo agrave admiraccedilatildeo Se o valor de um
homem permanece assim ligado agrave sua reputaccedilatildeo toda ofensa
puacuteblica agrave sua dignidade todo ato ou comentaacuterio que atinge seu
prestiacutegio seratildeo sentidos pela viacutetima enquanto natildeo forem
abertamente reparados como uma forma de rebaixar ou destruir
seu ser sua virtude iacutentima e de consumir sua queda Desonrado
aquele que natildeo conseguiu que o homem que o ofendeu pague pelo
ultraje perde com sua timḗ o renome o lugar na hierarquia e os
privileacutegios Separado das solidariedades antigas afastado do
grupo de seus pares o que resta dele Caiacutedo abaixo do vilatildeo do
kakoacutes que ainda tem seu lugar nas hostes do povo torna-se um
errante sem paiacutes ou raiacutezes eacute um exilado despreziacutevel um homem
sem nenhum valor
(VERNANT 2001 p 407-408)
A simetria das imagens miacuteticas garante a transitividade dos valores secularmente
preservados assim como a bela morte indica que os desvalores e perigos da vida nada satildeo
em comparaccedilatildeo com a gloacuteria reservada pela memoacuteria imortal assim tambeacutem os valores
seguros nada satildeo diante da desonra reservada pela injusticcedila do viver O risco do oproacutebrio
coletivo torna a vergonha e a desonra mais insuportaacuteveis do que o risco da morte
Eis a verdade destas questotildees Atenienses qualquer que seja a
ordem que algueacutem ocupe quer tenha se tornado melhor por si
mesmo ou fixado por um arkhonte o dever se impotildee como eacute minha
opiniatildeo de permanecer nele qualquer que seja o perigo sem
111
calcular nem a morte nem outra coisa acima da desonra
(Apologia 28d06-10)
O emprego argumentativo das imagens confere significaccedilatildeo agraves accedilotildees mediante o
aporte afetivo suscitado pela encantaccedilatildeo Soacutecrates opera uma transposiccedilatildeo e re-valoraccedilatildeo
dos valores a partir de esquemas psiacutequicos compartilhados incontestes no enclave da
paideacuteia miacutetica Assim como uma vida de desonra natildeo vale a pena ser vivida uma vida sem
exame natildeo merece ser vivida69
A simetria das imagens miacuteticas engendra por outro lado a
reversatildeo dos valores o melhor dos homens cidadatildeo da mais importante e mais renomada
cidade pelo saber e pelo poder deve se envergonhar por cuidar (epimeloumenos) das
riquezas da reputaccedilatildeo e da honra e por natildeo se preocupar de cuidar do pensamento da
verdade e da melhoria da alma (Apologia 29d) O emprego da encantaccedilatildeo miacutetica visa
transpor a triparticcedilatildeo de valores praacuteticos exteriores para a triparticcedilatildeo de valores psiacutequicos e
com isso re-significar o vergonhoso e o desonroso a epimeleacuteia da psykheacute valor supremo
interioriza o afeto da vergonha A vergonha e o honroso cujo escopo eacute a alma natildeo depende
do olhar coletivo e de suas sanccedilotildees mas referencia-se tatildeo somente no olhar da alma para
consigo mesma Mas o discurso revolucionaacuterio de Soacutecrates eacute incompatiacutevel com a
brutalidade da constataccedilatildeo do fato de que as riquezas a fama e o poder constituem os
maiores valores de todos os tempos A sobrelevaccedilatildeo desses valores natildeo pode apoiar-se
numa tradiccedilatildeo miacutetica cujo apanaacutegio consiste em consolidar mediante a crenccedila os afetos
que sancionam os esquemas psiacutequicos tradicionais
No Goacutergias a menccedilatildeo ao deacutecimo trabalho de Heacuteracles ao mesmo tempo justifica
a soberania natural do mais forte e define a exemplaridade para aquilo que eacute assimilado ao
disforme e vergonhoso Caacutelicles habilmente qualifica o processo de estabelecimento das
69 (Apologia 38a05-06)
112
leis como encantaccedilotildees70
e sortileacutegios71
cujo fim eacute a subjugaccedilatildeo da sobreexcelecircncia natural
A inculcaccedilatildeo das leis nos jovens eacute uma violecircncia tatildeo antinatural como a domesticaccedilatildeo dos
leotildees O mau uso da encantaccedilatildeo potecircncia intriacutenseca do discurso eacute assacado ao
estabelecimento das leis e natildeo agrave retoacuterica Mas a forccedila retoacuterica das imagens miacuteticas serve
ainda para desqualificar o anti-heroacutei encarnado por Soacutecrates
Pois agora se fosses preso tu e todos os teus semelhantes e jogado
na prisatildeo sob o pretexto de uma injusticcedila natildeo cometida tu estarias
sem defesa tomado de vertigem e com a boca aberta sem nada
dizer depois levado diante de um tribunal colocado diante de um
acusador sem talento nem consideraccedilatildeo tu serias condenado a
morrer se ele quisesse se honrar com tua morte
Goacutergias 486a-b
A falta de recurso de Soacutecrates identifica-se com a ausecircncia do expediente divino que
interveacutem nos mitos de culpa Destituiacutedo dos expedientes retoacutericos Soacutecrates estaacute na posiccedilatildeo
do anti-heroacutei que natildeo pode superar as situaccedilotildees impedientes A retoacuterica eacute recurso divino
sub-repticiamente associado agrave analogia entre o homem justo por Natureza e Heacuteracles Com
isso Caacutelicles extrai da valoraccedilatildeo miacutetica a forccedila persuasiva da encantaccedilatildeo fundamento da
70
(Goacutergias 484e05-06) 71
Segundo Elizabeth Belfiore (1980) Platatildeo recorrentemente usa o vocabulaacuterio dos sortileacutegios
( ) dos encantos () remeacutedios e venenos ( ) para condenar um
inimigo (Sofista 234c 235a 241b) (Repuacuteblica 598d 602d 601b 607c-d) Em outras passagens os prazeres
afrodisiacuteacos satildeo apresentados como enfeiticcedilamento (Feacutedon 81b) (Filebo 44c) (Repuacuteblica 584a) Soacutecrates eacute
apresentado tambeacutem como feiticeiro encantador (Meacutenon 80b) (Banquete 215c-d) A tese de Belfiore
consiste em identificar na Filosofia uma contra-maacutegica e o papel de desfazer ilusotildees Em Repuacuteblica III (412e
413a) a identifica-se com a exposiccedilatildeo agrave ilusatildeo e ao fortalecimento da opiniatildeo Haacute trecircs meios de
privar-se da verdade de maneira natildeo consentida ( ) pelo roubo pela forccedila e pela Os que
satildeo encantados mudam a opiniatildeo por prazer ou pelo medo (413c) O enfeiticcedilamento muda as opiniotildees opera
por meio dos afetos prazeres e do medo ( ) e implica o abandono da opiniatildeo verdadeira de maneira natildeo
consentida Conforme jaacute notava Goacutergias (Elogio de Helena 10) as encantaccedilotildees persuadem por
meio da mas tambeacutem podem causar o medo O medo eacute um iacutendice e um signo de reconhecimento
de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o pensamento apanaacutegio da alma (Feacutedon 68c) Eacute do medo que
derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as accedilotildees humanas (NUNES SOBRINHO 2008 p 51) A Filosofia 1) afasta as falsas opiniotildees por meio do eacutelenkhos 2) habilita a resistir contra o prazer e o medo e 3)
capacita a agir sem compulsatildeo Natildeo obstante o discurso como natildeo pode prescindir do concurso
das encantaccedilotildees que predispotildeem a alma agrave (Caacutermides 155e05-08) As encantaccedilotildees afastam os
medos destrutivos curam os afetos violentos e satildeo condiccedilotildees para o pensamento purificado (Feacutedon 66d)
113
opiniatildeo justificada pela crenccedila e inaugura no diaacutelogo o emprego da narrativa miacutetica como
elemento integrado agrave argumentaccedilatildeo
O processo de cinco etapas estabelecido por Burkert para descrever a sequecircncia
universal de accedilotildees que caracterizam as narrativas de situaccedilotildees impedientes emerge do
vaticiacutenio de Caacutelicles i) surge uma experiecircncia ameaccediladora inquietante do mal ou da
desgraccedila ii) a calamidade suscita a procura da causa iii) surge um mediador com
conhecimentos sobre-humanos um vidente areter ou adivinhador iv) um diagnoacutestico eacute
feito a causa do mal eacute definida atraveacutes do estabelecimento da culpa e da identificaccedilatildeo do
erro cometido v) uma vez definida a causa expedientes para a salvaccedilatildeo satildeo prescritos
como medidas expiatoacuterias rituais que natildeo excluem procedimentos de natureza racional
uma arte dolosa eacute requerida para a salvaccedilatildeo (2001 p 142) Esta eacute exatamente a estrutura
do argumento que estabelece o anti-heroiacutesmo de Soacutecrates A causa eacute identificada mas
faltam os recursos necessaacuterios para a salvaccedilatildeo O argumento indica uma conexatildeo entre
responsabilidade e puniccedilatildeo ou cataacutestrofe Haacute um nexo causal entre culpa e castigo
personificado na moira (DODDS 2002 B p 41) O vaticiacutenio de Caacutelicles eacute antes de tudo a
afirmaccedilatildeo de uma conexatildeo causal Soacutecrates acabaraacute condenado agrave morte por ser o uacutenico
responsaacutevel por sua proacutepria aporiacutea Falta-lhe o expediente encantatoacuterio propiciador da
salvaccedilatildeo
Se a finalidade do discurso for uacutenica e exclusivamente a persuasatildeo e a adesatildeo
suscitados mediante a mobilizaccedilatildeo afetiva e valorativa a mestria de Caacutelicles esboccedila outro
aspecto intriacutenseco aos loacutegoi aos sortileacutegios e agrave maacutegica72
ndash todos endereccedilados agrave multidatildeo
eles satildeo espetaculares Agrave hoplomakhiacutea dos discursos cabe por princiacutepio estabelecer o bom
72 (Elogio de Helena 10)
114
e o mau uso dos seus efeitos a encantaccedilatildeo e o assentimento pela crenccedila Este uso dos
efeitos determina o bom e o mau uso da retoacuterica em suma a sua moralidade
Kerferd sustenta a tese de que a posiccedilatildeo de Caacutelicles natildeo eacute imoral pois (a) ldquoenvolvia
a rejeiccedilatildeo do direito convencional em favor do direito natural como algo reivindicado como
mais alto melhor e moralmente superiorrdquo e (b) Caacutelices natildeo eacute culpaacutevel de simplesmente
reduzir ldquodeverdquo a ldquoeacuterdquo como resposta agrave questatildeo do que eacute certo visto que simplesmente
constata que o que acontece na natureza deve ser melhor (KERFERD 2003 p 201)
Todavia ao contraacuterio do que afirma Kerferd parece ser mais correto atribuir muito
mais arguacutecia a Caacutelicles e com mais razatildeo ainda a Platatildeo Caacutelicles como demonstra
Demos promove conscientemente uma inversatildeo no sentido de noacutemos conforme aparece
em Piacutendaro Isso indica a mestria de uma presunccedilatildeo que constitui um dos recursos retoacutericos
mais poderosos e que se tornaria perenamente vaacutelido no campo da argumentaccedilatildeo
verossiacutemil o da alegaccedilatildeo de que o habitual por ser sempre esperado pela opiniatildeo comum
continuaraacute sempre ocorrendo Caacutelicles parece perfeitamente ciente de que pode alegar que
o que eacute habitual torna-se normativo e por isso sem receios opera a passagem do eacute para o
deve
A parte final da peccedila retoacuterica de Caacutelicles constitui-se em exortaccedilatildeo A filosofia eacute
desqualificada como adestramento disciplina que participa (meteacutekhein) da educaccedilatildeo
propedecircutica que deve ser abandonada em favor das coisas maiores73
Tal adestramento eacute
semelhante ao dos animais que se pretende domesticar e ldquoeacute orientado no sentido de
extraviar e iludir sistematicamente as naturezas fortes e manter de peacute o poder dos fracosrdquo
(JAEGER 1995 p 668) O argumento aporta ao recurso da reprovaccedilatildeo pelo ridiacuteculo
(katageacutelastos) o exerciacutecio filosoacutefico eacute uma desmedida punida pelo riso puacuteblico Desajuste
73 (Goacutergias 484c)
115
entre a praacutetica particular e o que eacute aceitaacutevel publicamente extravagacircncia de um exerciacutecio
indecoroso que se opotildee ao que eacute conveniente e bem reputado (eudoacutekimon) pela cidade a
formaccedilatildeo filosoacutefica e o seu modo de vida correspondente satildeo contraacuterios agrave natureza O
resultado disso eacute a perplexidade a irresoluccedilatildeo (apragmosyne) diante da efetividade poliacutetica
e a incapacidade de prover defesa de si mesmo o criteacuterio uacuteltimo para um modo de vida
calcado no conflito de interesses
A Filosofia eacute desqualificada mediante a sua identificaccedilatildeo com parte de uma Paideacuteia
mais ampla e voltada para as questotildees poliacuteticas A inclusatildeo desvalorizadora num conjunto
de disciplinas equivalentes exige a aplicaccedilatildeo a um momento oportuno da formaccedilatildeo do
homem A excrescecircncia eacute assimilada ao desajuste ao despudor A fala de Caacutelicles promove
a reversatildeo da presunccedilatildeo que associa a sabedoria ao presbyacuteteros em vez de ser associada agrave
sabedoria do mais velho Soacutecrates eacute comparado ao adulto que se porta com a conduta de
uma crianccedila balbuciante O homem que age de modo infantil parece ridiacuteculo (katageacutelastos)
e desvirilizado (anaacutendros) e deve por isso receber o mesmo tipo de correccedilatildeo que se aplica
agrave crianccedila e que Soacutecrates faz por merecer pancadas74
(MICHELINI 1998 p 55)
Toda a forccedila moral do golpe retoacuterico deriva do fato secular e lentamente cristalizado
na noccedilatildeo de que o maior princiacutepio de accedilatildeo para um homem bem reputado eudoacutekimon natildeo
eacute ldquoo medo de um deus mas o respeito agrave opiniatildeo puacuteblica aidōsrdquo (DODDS 2002 B p 26)
Tanto a atitude moral de Polos como a de Caacutelicles expressam simultaneamente a boa
reputaccedilatildeo como um objetivo social a ser atingido e a vergonha como fracasso ambas
exploradas pela habilidade retoacuterica (DODDS 2002 A p 11 ss) Nada mais insuportaacutevel
74
o
(Goacutergias 485c)
116
para um psiquismo coletivo fortemente impregnado pela ldquovergonhardquo do que a exposiccedilatildeo ao
desprezo e ao ridiacuteculo
Natildeo eacute por acaso que a vergonha seja reconhecida como um leimotiv de toda a
encenaccedilatildeo dramaacutetica a palavra aiskhyacutene juntamente com suas formas verbais e o adjetivo
aiskhroacutes ocorrem setenta e cinco vezes no diaacutelogo Por essa razatildeo a estrateacutegia de
desvalorizaccedilatildeo da retoacuterica promovida pela dialeacutetica socraacutetica implica o esvaziamento
eacutetico-afetivo de princiacutepios de accedilatildeo tradicionais baseados na reputaccedilatildeo e na vergonha
puacuteblicas (RACE 1979 p 197ss) que satildeo constituintes basilares da mentalidade
aristocraacutetica ateniense Goacutergias e Polos foram viacutetimas Sua derrota foi causada sobretudo
pelo constrangimento decorrente da proacutepria vergonha que os forccedilou agrave assunccedilatildeo de que eacute
mais vergonhoso cometer injusticcedila a ter de sofrecirc-la (DODDS 2002 A p 263) Essa
vergonha equivale agrave pudiciacutecia que natildeo deve despir-se ao olhar coletivo a beleza natural das
partes iacutentimas a nudez A contradiccedilatildeo que torna o discurso insustentaacutevel emerge a partir
de afeto insuportaacutevel suscitado pelo discurso demagoacutegico o paacutethos da vergonha75
Afeto e
discurso satildeo congruentes implicam-se e significam-se mutuamente
Entatildeo Goacutergias foi envergonhado disse Polos e admitiu ensinar (a
justiccedila segundo o haacutebito (eacutethos) dos homens para que algueacutem natildeo
se indignasse se dissesse o contraacuterio Foi por causa dessa
concordacircncia que Goacutergias foi constrangido a contradizer-se o que
muito te satisfaz Por isso Polos te ridicularizou corretamente
segundo penso Agora ele sofre o mesmo constrangimento
(eacutepathen) E por causa disso eu mesmo natildeo admiro Polos pelo
consentimento de que cometer injusticcedila eacute mais desonroso (aiskhiacuteon)
do que cometecirc-la Pois por causa dessa concordacircncia ele foi
enredado (sympodistheigraves) por ti nos argumentos e foi emudecido
por se envergonhar de dizer o que pensa76
75
Goacutergias 482c05-07 76
(Goacutergias 482d03-e02) Traduccedilatildeo modificada a partir de Irwin (1979)
117
Caacutelicles fundamenta a divisatildeo entre natureza e lei no afeto da vergonha segundo a
lei (kataacute noacutemos) eacute vergonhoso cometer injusticcedila mas segundo a natureza ocorre
precisamente o contraacuterio Haacute dois sentidos para a vergonha concernentes a cada um dos
dois termos da divisatildeo77
Qual das duas vergonhas deve fundamentar o respeito a
reverecircncia e a honra que possibilitam o criteacuterio para a escolha da melhor vida Seraacute a
vergonha que emerge do olhar coletivo longamente moldado na tradiccedilatildeo e nos noacutemoi ou a
vergonha aristocraacutetica que remete para a forccedila natural sem consideraccedilatildeo para com as
convenccedilotildees A disjunccedilatildeo entre natureza e lei sempre haure sentido na exterioridade
Soacutecrates subverte o sentido da vergonha ao vinculaacute-la ao cuidado da alma e agrave virtude O
criteacuterio para a escolha dos valores deriva da auto-sēmasiacutea ele brota do olhar da alma para
consigo mesma
Mas para Caacutelicles phyacutesis e noacutemos satildeo incompatiacuteveis e se a vergonha constituir um
impedimento para que ousadamente se fale aquilo que se pensa necessariamente haveraacute
contradiccedilatildeo (482e-483a) O afeto da vergonha indica uma incompatibilidade entre as
crenccedilas o pensamento (noeacuteō) e o discurso publicamente assumido O principal elemento
que caracteriza as ldquoamarrasrdquo da dialeacutetica socraacutetica natildeo eacute meramente proposicional e natildeo
77 Bensen Cain critica o procedimento refutativo de Soacutecrates mediante a distinccedilatildeo semacircntica do que eacute
moralmente vergonhoso e do que eacute mau ou prejudicial Polos admite a existecircncia factual de uma vergonha
convencional mas natildeo assente ao fato de que accedilotildees injustas sejam maacutes Ao contraacuterio o exemplo de Arquelau
seria suficiente para provar que o homem mais injusto eacute o mais feliz A refutaccedilatildeo de Polos eacute de ordem
semacircntica e ocorre por identificar o vergonhoso com o prejudicial Cain qualifica a falsa refutaccedilatildeo socraacutetica como falaacutecia de ambiguidade um deslizamento (sliding) ou oscilaccedilatildeo ambiacutegua entre duas acepccedilotildees
semacircnticas da vergonha (2008 p 221 ss) A anaacutelise de Cain expotildee com bastante clareza o fato de que as
interpretaccedilotildees do eacutelenkhos satildeo insuficientes por natildeo levarem em conta o exame semacircntico do afeto da
vergonha Natildeo obstante sua leitura aleacutem de empregar a terminologia proposicional moderna de Vlastos
pressupotildee o princiacutepio natildeo explicitado de que a significaccedilatildeo semacircntica faz referecircncia a uma realidade objetiva
exterior Caacutelicles personagem platocircnica aponta exatamente o problema da distinccedilatildeo semacircntica dos dois
sentidos de aiskhroacutes aiskhiacuteon como expediente demagoacutegico empregado por Soacutecrates A questatildeo da
significaccedilatildeo afetiva todavia deveria ser auto-referenciada no acircmbito interno da alma
118
pode ser reduzido agrave consecuccedilatildeo de conclusotildees que decorrem de premissas fracas78
O iniacutecio
da contradiccedilatildeo aponta para uma dissociaccedilatildeo psiacutequica a oposiccedilatildeo entre a vergonha suscitada
pela reprovaccedilatildeo coletiva e as crenccedilas subjacentes ao pensamento79
O proacuteprio Caacutelicles
afirma que natildeo seria presa da vergonha em funccedilatildeo de discernir com exatidatildeo a distinccedilatildeo
entre phyacutesis e noacutemos Esta ausecircncia de vergonha eacute inversamente proporcional agrave ousadia
(toacutelmacirci) no falar que configura a sua ldquofranquezardquo No tinir das espadas da palavra
emergem os afetos e atributos psiacutequicos como princiacutepios da accedilatildeo e do gecircnero de vida
aceitaacutevel e honoraacutevel o apetite de ter mais a vergonha e a honra o pensamento os
discursos e seus efeitos o caraacuteter e a justiccedila A verdadeira contradiccedilatildeo (enantiacutea) eacute
contradiccedilatildeo entre discurso afetos manipulaccedilatildeo dos afetos (encantaccedilatildeo e goēteiacutea) e
pensamentos determinantes para a melhor vida a vida de mais brilho de maior valor forccedila
e significaccedilatildeo A verdadeira contradiccedilatildeo ocorre no acircmbito da complexidade da alma
A divisatildeo entre phyacutesis e noacutemos implica uma oposiccedilatildeo que procura reduzir a questatildeo
da justiccedila a duas partes tornadas incompatiacuteveis pelos interesses em oposiccedilatildeo que
configuram a inteireza da cidade A exaustividade das duas partes exclui a possibilidade de
qualquer outra subdivisatildeo e reduz o debate a duas posiccedilotildees antagocircnicas entre as quais se
78 Irwin aponta o ldquoescruacutepulo convencionalrdquo como base do diagnoacutestico do embaraccedilo em que se meteram
Goacutergias e Polos mas somente reconhece na passagem uma criacutetica proposicional ao meacutetodo refutativo
empregado por Soacutecrates Caacutelicles teria oferecido duas objeccedilotildees ao eacutelenkhos (i) Soacutecrates muda as premissas
do argumento preacutevio (ii) Soacutecrates depende de premissas concedidas pelo interlocutor e com isso
simplesmente fia-se nos preconceitos do interlocutor ou em visotildees com as quais natildeo concorda inteiramente
(1979 p 170) O desenvolvimento da criacutetica de Caacutelicles no entanto indica que o embate dialoacutegico gira em
torno da questatildeo do gecircnero de vida e da decorrente significaccedilatildeo do paacutethos da vergonha 79 Vlastos consigna ao eacutelenkhos a funccedilatildeo de testar ou provar o modo de vida e o caraacuteter ou a honestidade do interlocutor mediante a afirmaccedilatildeo de uma crenccedila que este efetivamente possui O gecircnero de vida nessa
perspectiva seria somente uma garantia da veracidade das teses defendidas e da seriedade na busca da
verdade Embora Vlastos reconheccedila que o eacutelenkhos possua o duplo papel existencial de ldquomostrar como cada
ser humano deve viver e testar aquele ser humano uacutenico que estaacute respondendo a fim de descobrir se ele vive
como algueacutem deve viverrdquo sua anaacutelise do eacutelenkhos padratildeo possui um enfoque inteiramente proposicional
segundo o qual o esquema baacutesico seria a anaacutelise ad hoc de proposiccedilotildees q e r natildeo conectadas logicamente agrave
crenccedila p do interlocutor a fim de se chegar agrave assunccedilatildeo de natildeo-p
olympiodoro
119
deve forccedilosamente escolher O artifiacutecio retoacuterico de Caacutelicles eacute paradigmaticamente
estrateacutegico apoacutes reduzir o debate a dois poacutelos excludentes passa-se a desqualificar a
posiccedilatildeo do adversaacuterio mediante a reduccedilatildeo ao ridiacuteculo para logo em seguida conferir
primazia para a uacutenica alternativa possiacutevel Por essa razatildeo a exortaccedilatildeo caricatura o modo de
viver filosoacutefico num quadro em que Soacutecrates passa o resto de seu tempo cochichando
(psithyriacutezdonta) sem que seja capaz de murmurar (phtheacutenxasthai) o que eacute livre grande e o
que vem a propoacutesito (Goacutergias 485d-e)
Sob a aparecircncia da disposiccedilatildeo amigaacutevel80
a admoestaccedilatildeo segue impulsionada pela
alegaccedilatildeo de um paacutethos de perigo iminente que enseja a estrateacutegia de mais uma comparaccedilatildeo
depreciativa segundo a qual a situaccedilatildeo protagonizada por Soacutecrates evoca aqueloutra
encenada na Antiacuteope de Euriacutepides81
Como o muacutesico Amphion Soacutecrates esquece o modo de conduzir as ocupaccedilotildees e
torna a natureza de sua alma pueril natildeo sabe cuidar de si natildeo eacute capaz de um loacutegos reto em
conselhos de justiccedila natildeo poderia apreender nem o razoaacutevel (eikoacutes) nem o persuasivo
(pithanoacutes) e nem poderia pocircr a serviccedilo de outro um conselho decidido (bouacuteleuma
80
81 Segundo M Canto (1993 p 333) o tema principal da trageacutedia de Euriacutepides era a libertaccedilatildeo de Antiope por
sues filhos gecircmeos Zḗthos e Amphion O primeiro era pastor e Amphion muacutesico Na encenaccedilatildeo Euriacutepides
opotildee dois modos de vida conflitantes mediante a tipificaccedilatildeo dos dois irmatildeos ao deslocamento de um artista e
filoacutesofo que se afasta das atividades puacuteblicas se opotildee a atividade praacutetica de um homem de accedilatildeo Croiset
(2003 p 284-285 n 1) afirma que Zḗthos era vigoroso e eneacutergico se dedicava agrave caccedila e agrave criaccedilatildeo de animais
ao passo que Amphion desdenhava os exerciacutecios violentos por possuir uma natureza mais fina e mais
sensiacutevel Amphion teria recebido de Hermes a lira com a qual se dedicava agrave muacutesica e agrave poesia E R Dodds atribui a Euriacutepides uma visatildeo anti-racionalista que vai de encontro com a concepccedilatildeo platocircnica de
uma ordem racional que perpassa o Koacutesmos Para Euriacutepides o homem eacute escravo da Necessidade e o divino eacute
muito mais um conjunto de potecircncias irracionais do que a expressatildeo de uma racionalidade A atitude de
Amphion em relaccedilatildeo agrave poliacutetica torna manifesto o artifiacutecio da comparaccedilatildeo desqualificadora usado por Caacutelicles
na sua exortaccedilatildeo No Fr 201 Amphion suplica conceda-me o dom da muacutesica e da afirmaccedilatildeo sutil natildeo
permita de forma alguma que eu me meta nos destemperos do Estado A alusatildeo agrave personagem da Antiope de
Euriacutepides caricatura e desvaloriza Soacutecrates Natildeo obstante Dodds acentua as diferenccedilas entre o poeta traacutegico e
Platatildeo ldquoO contemplativo platocircnico estaacute em casa no Universo porque ele vecirc o Universo como sendo
penetrado por uma razatildeo divina e portanto eacute acessivel agrave razatildeo humana tambeacutem Mas o homem de Euriacutepides
eacute o escravo e natildeo a crianccedila favorita dos deuses e o nome da bdquoordem sem idade‟ eacute a Necessidade
chora o Coro na Alcestis (DODDS 1929 p 101)
120
bouleuacutesaio)82
Ao comparar a sua exortaccedilatildeo com a reprimenda que Zḗthos dirige ao irmatildeo
por causa de uma atividade lassa Caacutelicles coloca Soacutecrates e Amphion num mesmo plano
Natildeo haacute modo mais direto de desqualificar o adversaacuterio do que comparaacute-lo com uma
personagem reconhecidamente despreziacutevel A contundente desqualificaccedilatildeo eacute endereccedilada
simultaneamente ao homem e agrave sua atividade e possui o inegaacutevel valor retoacuterico de suscitar
a adesatildeo sem reclamar justificaccedilatildeo pois se vale do proacuteprio processo mental com que o
homem comum forma a sua opiniatildeo
A fala de Caacutelicles deixa entrever que o tipo de racionalidade pretendida pela retoacuterica
natildeo se preocupa com a explicaccedilatildeo e as causas de seu procedimento mas tatildeo somente aduz
arrazoados que se valem das opiniotildees arraigadas no quadro mental da cidade para forcejar a
persuasatildeo A elaborada construccedilatildeo do discurso de Caacutelicles torna patente o fato de que
Platatildeo natildeo nega a eficaacutecia da engenhosidade retoacuterica Pelo contraacuterio eacute em funccedilatildeo da
eficaacutecia de uma praacutetica que se vale de esquemas de pensamento que natildeo satildeo explicitados eacute
que Platatildeo contrapotildee agrave retoacuterica a Filosofia como a uacutenica racionalidade legiacutetima A
racionalidade genuiacutena eacute aquela que natildeo somente sustenta seu loacutegos em causas mas que
garante a excelecircncia do ḗthos a partir de uma noccedilatildeo de justiccedila que ultrapassa a efemeridade
das circunstacircncias e das conveniecircncias
Agrave rhḗsis retoricamente bem acabada de Caacutelicles Soacutecrates sem detenccedila evoca a
alma como a instacircncia na qual os seus efeitos se manifestam A psykheacute eacute a origem e o fim
do loacutegos Este por sua vez eacute um meio pelo qual os movimentos psiacutequicos interatuam e
influenciam-se mutuamente engendrando inteligecircncia ou ilusatildeo miriacuteades de afetos
significaccedilotildees ou perplexidades Se a alma fosse de ouro (khryacutesen) Caacutelicles seria o liacutethos a
82 icirc
(Goacutergias 485e06-a03)
121
pedra de toque abrasiva que prova a preciosidade Assim como a pedra de toque prova o
ouro agrave alma prova o loacutegos
Agrave ordenaccedilatildeo da rhḗsis segue raacutepida a sutileza da eironeiacutea Baacutesanos eacute
simultaneamente a pedra de toque que prova o ouro e a interrogaccedilatildeo sob tortura ndash a forma
mais brutal e desumanizadora de violecircncia e de manifestaccedilatildeo de poder83
A exortaccedilatildeo
retoacuterica de Caacutelicles eacute pedra de toque ou tortura Olympiodoro observa que a metaacutefora
ressalta o papel de teste do eacutelenkhos assim como uma pedra friccionada agrave outra provoca a
faiacutesca que se torna chama uma dificuldade friccionada agrave outra se torna a causa da
descoberta Assim como a pedra prova o ouro a pureza da alma eacute provada pela dureza do
caraacuteter de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 194)
O emprego irocircnico da ambiguidade enseja o estabelecimento de condiccedilotildees
diretrizes Para provar (basanieicircn) suficientemente se uma alma vive retamente ou natildeo eacute
preciso trecircs qualidades o saber (episteacuteme) a benevolecircncia (eunoacuteia) e a franqueza
(parrhēsiacutea)84
Tais condiccedilotildees satildeo determinaccedilotildees da alma e se contrapotildeem discursivamente
agrave divisatildeo bipolar postulada por Caacutelicles entre phyacutesis e noacutemos A questatildeo da valoraccedilatildeo das
accedilotildees pressupotildee a esfera psiacutequica e essa triparticcedilatildeo (triacutea) de determinaccedilotildees psiacutequicas
83
Michael Gagarin (1996 p 1) mostra que a tortura era praacutetica corrente na democracia ateniense como
instrumento juriacutedico usado nos tribunais Uma norma bem conhecida sustenta que na maioria dos casos os testemunhos dos escravos soacute eram admissiacuteveis no tribunal se eles fossem levados sob tortura e nos discursos
forenses de sobrevivecircncia os oradores frequentemente descrevem as regras que regem e enaltecem
a praacutetica como a mais eficaz e ateacute mesmo ldquomais democraacuteticardquo (Lycurg 129) Era um toacutepos que a informaccedilatildeo
mediante era preferiacutevel ao depoimento de testemunhas livres Sendo assim um orador afirma
(Dem 3037) Certamente vocecircs (jurados) consideram como a prova mais precisa de todas em
ambos os casos privado e puacuteblico e quando escravos e pessoas livres estiverem ambas disponiacuteveis e vocecircs
precisarem descobrir algum fato sob investigaccedilatildeo natildeo usem o testemunho das pessoas livres mas sujeitem
os escravos ao dessa forma procurem descobrir a verdade E isso eacute bem razoaacutevel senhores do
juacuteri pois vocecircs sabem muito bem que no passado algumas testemunhas pareceram depor falsamente
enquanto ningueacutem que se sujeitou ao comprovadamente jamais falou falsamente sob 84
(Goacutergias 487a)
122
aponta ao mesmo tempo para um modo de unificaccedilatildeo e um modo de dissociaccedilatildeo ou de
fragmentaccedilatildeo
34 Parrhēsiacutea e Epithymiacutea
Polos ndash Por quecirc Natildeo me eacute permitido falar o quanto eu quiser
Soacutecrates ndash Terriacutevel sofrimento terias oacute excelente se desde tua
chegada a Atenas a cidade da Heacutelade onde a liberdade de falar eacute a
maior tu fosses o uacutenico homem que tivesse essa falta de sorte
Goacutergias 461d85
A liberdade da fala reflete o igualitarismo ateniense e a expectativa de que o
cidadatildeo se engaja na assembleacuteia mediante o discurso aberto A participaccedilatildeo direta na vida
ciacutevica pressupotildee a fala consonante com o pensamento de quem a profere A parrhēsiacutea
constitui-se na abertura do discurso que revela o pensamento de quem fala Qualquer
expediente que ofusque o pensamento como a retoacuterica86
denota a prevalecircncia dos
interesses particulares em detrimento do bem-estar da cidade
Nesse sentido a parrhēsiacutea aparece inicialmente como a fala aberta que revela o
pensamento e as verdadeiras crenccedilas do proferidor A parrhēsiacutea eacute a fala que desvela e
revela eacute o tipo de discurso mediante o qual o cidadatildeo da democracia ateniense se engaja
com igualdade junto aos demais concidadatildeos na assembleacuteia deliberativa para expor sem
impedimentos o seu pensamento Na democracia do Vordm seacuteculo as principais caracteriacutesticas
da parrhēsiacutea praacutetica distintiva da democracia de Atenas como observa Arlene
Saxonhouse satildeo i) a ousadia corajosa da praacutetica que envolve o risco de afrontar os
85 ΠΩΛOS Τί δέ νὐθ ἐμέζηαη κνη ιέγεηλ ὁπόζα ἂλ βνύιωκαη
ΣΩKRATES Δεηλὰ κεληἂλ πάζνηο ὦ βέιηηζηε εἰ Ἀζήλαδε ἀθηθόκελνο νὗ ηῆο Ἑιιάδνο πιείζηε
ἐζηὶλ ἐμνπζία ηνῦ ιέγεηλ ἔπεηηα ζὺ ἐληαῦζα ηνύηνπ κόλνο ἀηπρήζαηο 86 No seu trabalho acerca da liberdade da fala na democracia ateniense Arlene Saxonhouse afirma que a
parrhēsiacutea se opotildee mais do que suporta a praacutetica da retoacuterica que obscurece e distorce a verdade em favor do
benefiacutecio individual O verdadeiro falante parresiaacutestico repudia a arte da retoacuterica A retoacuterica com seu
objetivo de enganar natildeo eacute uma expressatildeo de parrhēsiacutea mas sua perversatildeo () O contraste entre a retoacuterica
e a parrhēsiacutea eacute um tropo familiar que perpassa as falas dos oradores do quarto seacuteculo A retoacuterica de acordo
com suas proacuteprias promessas obstrui a praacutetica da parrhēsiacutea e mina o papel da liberdade da fala como uma
atividade que procura a verdade no regime democraacutetico (2008 p 92)
123
princiacutepios legais e cultos ciacutevicos e ii) o aspecto de desvelamento envolvido na praacutetica que
simultaneamente expotildee os verdadeiros pensamentos do interlocutor e sua resistecircncia a
ocultar a verdade por causa da coerccedilatildeo decorrente do olhar puacuteblico da vergonha coletiva
(SAXONHOUSE 2008 p 87)
A retoacuterica aparece como teacutecnica que promete a liberdade entre os homens e o poder
sobre o outro na cidade87
o poder de dominar o olhar coletivo mediante a persuasatildeo ndash
encantaccedilatildeo dos loacutegoi A retoacuterica eacute a dyacutenamis de dominaccedilatildeo das grandes massas (en toicircs
plḗthesin Goacutergias 457a06) Seu ensino intrinsecamente voltado para o espetaacuteculo na
assembleacuteia natildeo requer nem o conhecimento nem a verdade mas o poder de mobilizar os
afetos e suscitar a persuasatildeo A potecircncia da retoacuterica eacute a potecircncia da ocultaccedilatildeo da ilusatildeo e
da elisatildeo aos impedimentos derivados do olhar coletivo Trata-se de um procedimento
discursivo que suprime a necessidade da verdade e torna a vergonha ineficaz pelo poder
encantatoacuterio da persuasatildeo No Goacutergias a parrhēsiacutea aparece como condiccedilatildeo epistecircmica do
discurso investigativo Fala do desvelamento e da abertura ao olhar a parrhēsiacutea se opotildee
encobrimento retoacuterico assim como a igualdade se opotildee agrave dominaccedilatildeo e agrave usurpaccedilatildeo e assim
como a instruccedilatildeo (maacutethesis) se opotildee agrave crenccedila (piacutestis Goacutergias 454d)
Goacutergias e Polos se contradisseram por causa da indiscriccedilatildeo elecircntica de Soacutecrates que
desnudou crenccedilas e princiacutepios de accedilatildeo cujo papel no acircmbito do jogo poliacutetico deveriam
permanecer ocultas Goacutergias e Polos foram refutados por causa da vergonha que os impediu
de usar a fala aberta da qual os atenienses se orgulham88
Estrangeiros eles satildeo
87 κὲλ ἐιεπζεξίαο αὐηνῖο ηνῖο ἀλζξώπνηο ἅκα δὲ ηνῦ ἄιιωλ ἄξρεηλ ἐλ ηῇ αὑηνῦ πόιεη Goacutergias (452d07) 88
ηὼ δὲ μέλω ηώδε Γνξγίαο ηε θαὶ Πῶινο ζνθὼ κὲλ θαὶ θίιω ἐζηὸλ ἐκώ ἐλδεεζηέξω δὲ
παξξεζίαο θαὶ αἰζρπληεξνηέξω κᾶιινλ ηνῦ δένληνο πῶο γὰξ νὔ ὥ γε εἰο ηνζνῦηνλ αἰζρύλεο ἐιειύζαηνλ ὥζηε δηὰ ηὸ αἰζρύλεζζαη ηνικᾷ ἑθάηεξνο αὐηῶλ αὐηὸο αὑηῷ ἐλαληία ιέγεηλ ἐλαληίνλ
πνιιῶλ ἀλζξώπωλ θαὶ ηαῦηα πεξὶ ηῶλ κεγίζηωλ
124
considerados saacutebios e amigos mas ao mesmo tempo deficientes de parrhēsiacutea e
excessivamente envergonhados Satildeo carentes de liberdade no falar e plenos de vergonha A
vergonha que sofrem eacute tatildeo grande que os impede de ter audaacutecia ambos se contradizem sem
poder contraditar a multidatildeo dos homens acerca de questotildees que para Soacutecrates satildeo as
maiores Ao contraacuterio do cidadatildeo ateniense tiacutepico os estrangeiros Goacutergias e Polos
suportam excessiva vergonha mas natildeo suportam a firmeza da palavra e de seus verdadeiros
pensamentos Mas ao contraacuterio de Goacutergias e Polos Caacutelicles eacute ateniense e pode falar
livremente (parrhēsiaacutezdesthai) sem se envergonhar (megrave aiskhyacutenesthai Goacutergias 487d05)
Todavia a parrhēsiacutea praticada nas assembleacuteias puacuteblicas atenienses pressupotildee a fala aberta
entre iguais iacutesoi ao passo que Caacutelicles eacute apologista da excelecircncia dos melhores dentre
desiguais Em que difere o livre-falar de Caacutelicles e a parrhēsiacutea isonocircmica ateniense Quais
satildeo as determinaccedilotildees que operam as distinccedilotildees entre franquezas antagocircnicas
A parrhēsiacutea aparece no Laacuteques ligada agrave questatildeo da consonacircncia entre o discurso e o
gecircnero de vida de quem o profere Jaacute no iniacutecio do proacutelogo Lisiacutemaco estabelece o falar
francamente89
como condiccedilatildeo preacutevia agrave discussatildeo que teraacute iniacutecio Os conselhos mais
importantes exigem consonacircncia entre o pensamento e opiniatildeo ao contraacuterio daqueles que
buscam conformar o discurso agrave opiniatildeo da maioria (Laques 178b01-03)
A questatildeo do cuidado (epimeacuteleia) necessaacuterio para que os filhos se tornem excelentes
(aacuteristoi) reclama a franqueza muacutetua (parresiasoacutemetha) no falar90
(Laques 179c01) A
consonacircncia entre discurso e pensamento eacute condiccedilatildeo sine qua non para o aconselhamento
conjunto (symbouleuacuteomai) acerca de questotildees importantes A deliberaccedilatildeo acerca do melhor
Goacutergias 486a06-487b05 89
(Laacuteques 178a04) 90 Emlyn-Jones interpreta o desejo de Lisiacutemaco em ser franco como uma exposiccedilatildeo de si proacuteprio ao potencial
ridiacuteculo e sacrifiacutecio do prestiacutegio social por fazer a revelaccedilatildeo da incompetecircncia paterna Essa exposiccedilatildeo ao
ridiacuteculo seria uma demonstraccedilatildeo praacutetica do seu desejo reiterado de cooperaccedilatildeo (1999 p 126)
125
pressupotildee natildeo somente o conhecimento daquilo que vai ser ensinado (maacutethēma) e de seus
efeitos mas a comunhatildeo (koinōniacutea) de fins que suscita um discurso veraz sobre o cuidado a
ser dado aos filhos (Laacuteques 179e)
O cuidado (epimeleacuteia) se opotildee agrave libertinagem dos que chegam agrave adolescecircncia e
fazem o que querem91
A preocupaccedilatildeo com o cuidado para com os filhos configura um
conflito dos valores proacuteprios agraves atividades da democracia ateniense do V seacuteculo a
dedicaccedilatildeo agraves atividades puacuteblicas dos homens bem reputados implica em negligenciar a
educaccedilatildeo dos proacuteprios filhos As belas accedilotildees empreendidas pelos eudoacutekimoi tanto na
guerra como na paz na ocupaccedilatildeo das coisas dos aliados e da polis (179c) engendram
como contrapartida a corrupccedilatildeo da aristeiacutea das geraccedilotildees subsequentes em razatildeo do
descuidar (ameleicircn) Filhos de pais nobres e bons Lisiacutemaco e Meleacutesias envergonham-se
(hypaiskhynoacutemethaacute) diante dos proacuteprios filhos por natildeo terem accedilotildees valorosas a narrar O
descuido implica uma vida de moleza (tryacutephan) cuja consequecircncia eacute a licenciosidade92
A
dedicaccedilatildeo agraves coisas dos outros (tōn aacutellōn praacutegmata eacutepratton) implica a ameleiacutea
negligecircncia que torna a vida poliacutetica incompatiacutevel com a excelecircncia e a nobreza que
configura o homem bem reputado (179d) O cuidado epimeleacuteia e terapecircutica exigidos
pela excelecircncia se opotildeem agrave ameleiacutea e agrave vergonha A encenaccedilatildeo dramaacutetica sugere que a
democracia aristocraacutetica ateniense carrega em seu bojo a vergonha que emerge da
incompatibilidade interna de seus valores
O proacutelogo do Laacuteques encena a oposiccedilatildeo entre tipos de comunhotildees excludentes O
cuidado com as praacuteticas poliacuteticas exige a comunhatildeo com a maioria e consequentemente
um gecircnero de discurso que se pauta pela opiniatildeo dos muitos em detrimento do pensamento
91 179a06-07 92 Sobre Lisiacutemaco e Meleacutesias personagens do Laacuteques ver introduccedilatildeo de L A Dorion (PLATON 1997 p
15-20)
126
O cuidado com os filhos exige a comunhatildeo e a atenccedilatildeo simultacircnea de todos os pais e
reclama um gecircnero de discurso inteiramente consonante com o pensamento (Laques 180b)
Essa consonacircncia constitui a franqueza muacutetua (parrēsiaacutezomai) que possibilita o bom
conselho Haacute pois ao mesmo tempo um viacutenculo entre o falar franco e o pensamento que
lhe corresponde e um viacutenculo da licenciosidade no falar com os desejos da maioria Satildeo
tipos opostos de franqueza A franqueza muacutetua que instaura a comunhatildeo do bom conselho
mediante o confiar (pisteuacuteesthai 180b06) se opotildee agrave fala livre empregada nas atividades
poliacuteticas
A comunhatildeo gera a veracidade a veracidade gera a boa reputaccedilatildeo (181b08) e a
confianccedila a confianccedila gera a maior benevolecircncia (eunouacutestaton 181b08) e a benevolecircncia
manteacutem salva a amizade A encenaccedilatildeo dramaacutetica do proacutelogo do Laacutequesingressa
simultaneamente a conexatildeo entre o cuidado com o eacutethos e a investigaccedilatildeo das maiores
questotildees e entre a parrhēsiacutea a eunoacuteia e a episteacuteme A comunhatildeo dos pais em torno da
finalidade comum da formaccedilatildeo e da excelecircncia abarca a competecircncia no ensino a
franqueza muacutetua a benevolecircncia e a amizade ndash condiccedilotildees epistecircmicas da investigaccedilatildeo
Laacuteques admite que sua atitude diante dos loacutegoi eacute dupla a saber que ora eacute tomado de
paixatildeo ora eacute tido como homem que os detesta Seu amor pelos discursos eacute condicionado
pelo fato de haver uma harmonia entre o homem e seu discurso homem que em funccedilatildeo
dessa harmonia eacute ldquoverdadeiramente umrdquo (188c) e ldquomuacutesico completordquo natildeo por tocar
instrumentos que divertem mas por acordar suas palavras (loacutegoi) com seus atos (erga) sua
proacutepria vida Os discursos bem falados que natildeo estatildeo em consonacircncia com o modo de vida
devem ser detestados Soacutecrates poderia se permitir belos discursos e falar com toda
franqueza (parrhēsiacuteas) pois seus atos eram suficientemente provados (189a) A
incompatibilidade entre o modo de vida e o discurso entre os erga e os loacutegoi indica uma
127
fragmentaccedilatildeo no acircmbito da alma Soacute eacute verdadeiramente ldquoumrdquo aquele que harmoniza seu
loacutegos com os seus atos que em uacuteltima instacircncia derivam de seus desejos
Em outras passagens a parrhēsiacutea aparece ligada aos apetites No Banquete apoacutes o
veemente desabafo em que Alcibiacuteades confessa seu amor eroacutetico por Soacutecrates diante de
todos os circunstantes ldquotodos riram da sua franqueza (parrhēsiacuteas) por parecer que ele
ainda era apaixonado de Soacutecratesrdquo (Banquete 222c) Na Repuacuteblica apoacutes a associaccedilatildeo da
origem do governo democraacutetico com a revolta da pobreza as caracteriacutesticas da polis
democraacutetica satildeo identificadas com a liberdade licenccedila de se fazer o que se desejar93
e
franqueza de falar (parrhēsiacutea) que permitem que cada um possa ter um gecircnero de vida
particular segundo sua proacutepria fantasia A polis democraacutetica eacute caracterizada pela
multiplicidade dispersatildeo de prazeres (hedeiacutea) pela anarquia (aacutenarkhos) e variabilidade
(poikiacutele) O homem democraacutetico eacute dominado pelos apetites (aphrodisiacuteon) desejos
supeacuterfluos que natildeo produzem nenhum bem e prejudicam simultaneamente o corpo a
alma o discernimento e a temperanccedila (558c-559d) A parrhēsiacutea eacute nesse contexto o loacutegos
licencioso que exprime o predomiacutenio dos apetites No Fedro a distinccedilatildeo entre o desejo de
prazeres e a aspiraccedilatildeo ao melhor determina tendecircncias psiacutequicas que ldquoora se acordam ora
se combatemrdquo (237b) O descomedimento caracteriza o predomiacutenio do desejo que arrasta
em direccedilatildeo aos prazeres e aquele que eacute dominado pelo desejo e escravo dos prazeres
(238e) procura obter do amado o maior prazer possiacutevel ao preccedilo dos maiores prejuiacutezos para
o corpo e para a alma O ciuacuteme e a inveja incitam no homem dominado pelo apetite uma
vigilacircncia tiracircnica que se expressa em censuras insuportaacuteveis e infamantes ldquose o amante se
embriaga e fala com uma franqueza (parrhēsiacutea) grosseira e impudenterdquo (240a) Mais uma
vez a parrhēsiacutea aparece num contexto em que se discorre sobre a escravizaccedilatildeo aos apetites
93 (Repuacuteblica 557b)
128
e um discurso licencioso que lhes corresponde No livro X das Leis a parrhēsiacutea eacute associada
ao discurso licencioso em relaccedilatildeo aos deuses proferido pelos iacutempios cuja caracteriacutestica eacute a
incapacidade de dominar o prazer e a dor (908c) De maneira geral a parrhēsiacutea eacute
relacionada ao discurso desimpedido sem peias impulsionado pelo apetite pelo vinho ou
excesso de liberdade (Leis 649b 806d 829d-e)
No Goacutergias a parrhēsiacutea eacute mencionada na ambiguidade irocircnica com que Soacutecrates
alude ao mesmo tempo ao livre curso dos apetites de Caacutelicles que engendram a violecircncia
do seu loacutegos e a qualidade psiacutequica pela qual a investigaccedilatildeo dialeacutetica assimilada ao exame
da alma pode chegar a bom termo A franqueza eacute a garantia pela qual o assentimento do
interlocutor a uma tese expressa sem dissimulaccedilatildeo sua crenccedila e sua opiniatildeo mas eacute
tambeacutem um indicativo de que certa ordenaccedilatildeo psiacutequica transpotildee seu movimento proacuteprio
para o loacutegos O discurso sem peias reproduz de modo direto a trama que entretece os afetos
neste princiacutepio de movimento e inteligecircncia que eacute a psykheacute (Fedro 245d)
Caacutelicles independentemente da questatildeo de sua historicidade congrega e personifica
uma ordenaccedilatildeo de valores tiacutepica Ele eacute como afirma Jaeger a encarnaccedilatildeo perfeita de um
tipo de homem o adulador (JAEGER 1995 p 682) Tal como Soacutecrates e as grandes
personagens que protagonizam um papel de primeiro plano nos diaacutelogos Caacutelicles torna-se
um mito pois adquire a atemporalidade e a exemplaridade dos tipos psiacutequicos que soacute o
mito pode abarcar (DIXSAUT 2001 p 157-161) Eacute justamente a atemporalidade miacutetica
que faz com que o tipo psiacutequico personificado por Caacutelicles possa ser revivido em todas as
eacutepocas como um tipo de homem
Muito se tem discutido se a personagem de Caacutelicles esconde uma adaptaccedilatildeo
platocircnica de uma ou mais figuras histoacutericas da alta aristocracia de seu tempo (CANTO
1993 p 38-39) ou se a viacutevida imagem que Platatildeo faz do oponente de Soacutecrates trai um
129
ldquoconflito que se passa dentro de uma soacute menterdquo conflito que faria de Caacutelicles um ldquoretrato
do eu rejeitado de Platatildeordquo (GUTHRIE 1995 p 102-103) mas que seria tambeacutem integrado
a ele mediante a expressatildeo de ldquosincero interesse pela seguranccedila de Soacutecratesrdquo (DODDS
2002 A p 13) Werner Jaeger afirma que Platatildeo se deu ao trabalho de ldquocompreender
Caacutelicles antes de subjugaacute-lordquo e talvez tenha sentido ldquono seu natural essa acircnsia irreprimiacutevel
de poder com poder suficiente para em Caacutelicles atacar uma parte de seu proacuteprio eurdquo
(JAEGER 1995 p 666)
Que Platatildeo tenha tido a inteligecircncia das fiacutembrias da afetividade humana mais
perversa o demonstram a eloquumlecircncia e brilhantismo das falas antoloacutegicas de suas
personagens Mas no Laacuteques a incompatibilidade estabelecida entre o discurso e as accedilotildees
indica que a questatildeo dos valores implica a harmonia ou o conflito na instacircncia da proacutepria
psykheacute No Goacutergias a mesma concepccedilatildeo se repete eacute preferiacutevel tocar uma lira mal afinada
ou dirigir mal um coro ou ainda natildeo estar de acordo com a maioria do que natildeo estar em
consonacircncia consigo mesmo e contradizer-se (482c) A distinccedilatildeo socraacutetica de uma
triparticcedilatildeo de determinaccedilotildees psiacutequicas sugere que o problema da ordenaccedilatildeo dos valores
remete sobretudo para o modo como satildeo ordenadas certas instacircncias da psykheacute A
triparticcedilatildeo de qualidades implica uma triparticcedilatildeo funcional Eacute o conflito e a desarmonia da
proacutepria psykheacute que determina a incompatibilidade entre os valores professados e o discurso
de um lado e as accedilotildees de outro
Que o Goacutergias retrata um conflito entre modos de vida e valores opostos o atestam
os combates eriacutesticos das personagens e o seu mito de julgamento final Mas Platatildeo foi
muito aleacutem de divisar um conflito entre seus valores e aspiraccedilotildees ocultas A espantosa e
imortal vivacidade da personagem ndash que talvez tenha feito a mais mordaz e impactante
130
apologia do poder e do apetite de todos os tempos ndash constitui o principal testemunho de que
Platatildeo estaacute advertido de que na psykheacute de cada homem vive um Caacutelicles
A bela terapecircutica da alma (kalocircs tetherapeucircstai tegraven psykheacuten) pressupotildee que o
assentimento agraves opiniotildees da alma (psykheacute doxaacutezei) seja tomado como princiacutepio
verdadeiro94
Para que se examine a questatildeo do que eacute justo e por conseguinte do melhor
modo de vida eacute preciso que se examine a constituiccedilatildeo psiacutequica a partir das opiniotildees Mas
para isso eacute preciso que se tenha a determinaccedilatildeo preacutevia da benevolecircncia (eunoacuteia)
A eunoacuteia aparece no Protaacutegoras95
como determinaccedilatildeo proacutepria dos amigos que
entretecircm discussatildeo Apoacutes exortar Soacutecrates para que natildeo abandone sua discussatildeo com
94
Callicles natildeo tenciona assentir equivocadamente por causa de estupidez embaraccedilo ou insinceridade Sua
franqueza assegura que ele defenda firmemente sua posiccedilatildeo anti-convencional Assim Soacutecrates parece
exagerar quando demanda que tudo aquilo que for aceito de comum acordo seja verdadeirohellip Ainda que ele o prenda atraveacutes de sua concordacircncia o que garante a verdade das conclusotildees (IRWIN 2003 p 102) Dodds
por sua vez observa que a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates tem sido tipicamente vista como sinal do valor excessivo
que Platatildeo atribui ao meacutetodo do eacutelenkhos A acidentalidade e a particularidade da opiniatildeo do interlocutor
implicaria um bdquodefeito‟ e inferioridade do eacutelenkhos (Robinson) em relaccedilatildeo agrave axiomaacutetica universal de
Aristoacuteteles (DODDS 2002 p 279-280) Todavia como o proacuteprio Irwin admite Platatildeo natildeo vecirc a posiccedilatildeo de
Caacutelicles como sendo a de um excecircntrico com um ponto de vista extremamente radical da justiccedila
convencional Trata-se simplesmente de uma declaraccedilatildeo convincente de pontos de vista atraentes para
muitos contemporacircneos de Soacutecrates e Platatildeo A concepccedilatildeo de uma virtude e de uma boa pessoa que eacute focada
no poder individual na riqueza e no status eacute bem estabelecida no pensamento eacutetico Grego e coexiste
problematicamente com a concepccedilatildeo de virtude vinculada agraves outras obrigaccedilotildees concernentes agrave justiccedila (ibid p
103)rdquo A identificaccedilatildeo das teses assumidas pelo interlocutor com a verdade natildeo constitui exagero nem do ponto de
vista da dialeacutetica socraacutetica nem do ponto de vista da retoacuterica Caacutelicles representa natildeo somente uma corrente
de pensamento que configura uma concepccedilatildeo de virtude e justiccedila proacuteprias ao pensamento grego de entatildeo mas
encarna certos valores e tipifica um tipo de caraacuteter que exerce um papel decisivo no jogo poliacutetico ateniense
Por mais absurdas que possam ser as teses assumidas como ldquoverdaderdquo o tratamento do eacutelenkhos possui o
objetivo justamente de conduzir o raciociacutenio ateacute as uacuteltimas consequecircncias dos postulados assumidos Teses
verdadeiras natildeo podem implicar conclusotildees contraditoacuterias e absurdas A refutaccedilatildeo frequentemente se faz
pelo absurdo ou incompatibilidade das conclusotildees com um acordo inicial em torno de algum postulado A
incompatibilidade denuncia mais um conflito entre valores e gecircnero de vida do que propriamente de
proposiccedilotildees contraditoacuterias Como nota Charles Kahn o eacutelenkhos eacute mais uma maneira de testar o modo de
vida do que de testar proposiccedilotildees (KAHN 1996 p 98 133) Ademais do ponto de vista retoacuterico natildeo existe adesatildeo e por conseguinte persuasatildeo sem o assentimento e o
acordo em torno de teses que demarcam o ponto de partida do arrazoado De qualquer maneira o acordo em
torno de opiniotildees deve ser tomado como se fosse uma verdade A dialeacutetica socraacutetica eacute sempre hipoteacutetica em
seu iniacutecio 95 Hiacutepias de Elis estabelece no Protaacutegoras a mesma distinccedilatildeo entre phyacutesis e noacutemos que eacute empregada no
argumento de Caacutelicles Mas ao contraacuterio da distinccedilatildeo estabelecida no Goacutergias para Hiacutepias os semelhantes
satildeo iguais por natureza e as leis satildeo as causas pelas quais se estabelece uma desigualdade arbitraacuteria entre os
homens Ver KERFERD 2003 189-221
131
Protaacutegoras Proacutedico opera a distinccedilatildeo entre ldquodiscutirrdquo (amphisbetheicircn) e ldquodisputarrdquo
(eriacutezein)
As pessoas presentes a semelhantes discussotildees devem ouvir
imparcialmente as duas partes natildeo poreacutem de modo igual o que
natildeo eacute a mesma coisa ambos devem ser ouvidos com a mesma
atenccedilatildeo mas natildeo podemos conceder aos dois igual interesse
poreacutem maior ao que se revelar mais saacutebio e menor ao de menor
preparo Eu tambeacutem Soacutecrates e Protaacutegoras peccedilo que vos mostreis
mais condescendentes cada um poderaacute dissentir (amphisbetheicircn)
da opiniatildeo do outro poreacutem sem brigar (eriacutezein) Entre amigos pode
haver discussatildeo com simpatia (benevolecircncia bdquoeunoacuteia‟) soacute brigam
adversaacuterios e inimigos
(Protaacutegoras 337a-b)
A disposiccedilatildeo amistosa eacute diretiva na dialeacutetica visto que o questionamento capcioso
natildeo visa agrave busca da verdade mas sobrelevar ao adversaacuterio (Meacutenon 75c-d) Na Repuacuteblica a
eunoacuteia designa a disposiccedilatildeo amistosa que se contrapotildee agrave hostilidade e agrave cupidez que leva agraves
dissensotildees e conflitos de gregos contra gregos A benevolecircncia impede o despojamento das
armas dos cadaacuteveres (Rep V 470a) e constitui o desiacutegnio amistoso de Glauco quando este
se propotildee a defender Soacutecrates da ira dos adversaacuterios diante da estranheza provocada pela
tese de que a cidade natildeo pode ser feliz a menos que o Rei seja Filoacutesofo (474a) No Teeteto
a benevolecircncia eacute a atitude socraacutetica associada agrave expurgaccedilatildeo das falsas opiniotildees mediante a
eroacutetesis (Teeteto 151c) O efeito da dialeacutetica eacute analogicamente um partejamento da alma
que pode trazer agrave luz tanto fetos saudaacuteveis como imagens que devem ser rejeitadas A
atitude de hostilidade de alguns causada pela refutaccedilatildeo se contrapotildee agrave benevolecircncia que
constitui o princiacutepio operador do procedimento cataacutertico dialeacutetico O desejo da verdade eacute o
princiacutepio de accedilatildeo que constitui a dialeacutetica e o desejo do bem eacute o princiacutepio de accedilatildeo de sua
aplicaccedilatildeo praacutetica Assim como nenhum deus eacute hostil aos homens Soacutecrates possui a
atribuiccedilatildeo divina de natildeo fazer concessatildeo agrave falsidade e de natildeo enfraquecer o brilho da
132
verdade (Teeteto 151d) A operaccedilatildeo dialeacutetica eacute impulsionada por benevolecircncia em
oposiccedilatildeo agrave malevolecircncia No Fedro a benevolecircncia designa a manifestaccedilatildeo praacutetica em
relaccedilatildeo ao amado do Eros divino que se infunde no amante Tal manifestaccedilatildeo permite que
o amado se decirc conta da superioridade acima de qualquer comparaccedilatildeo do amor eroacutetico que
supera todos os afetos reunidos que se lhe possam devotar (255b)
Em todos esses contextos a benevolecircncia configura uma disposiccedilatildeo e uma funccedilatildeo
psiacutequica conciliatoacuteria entre instacircncias que de outra maneira estariam em conflito Trata-se
efetivamente de uma mediaccedilatildeo que promove o acordo que harmoniza reconcilia que
opera amistosamente promovendo o bem trata-se de uma funccedilatildeo que determina um modo
pelo qual se instaura a therapeacuteia psykheacute funccedilatildeo que pressupotildee um saber preacutevio um noucircs
que eacute a inteligecircncia do bem
No Goacutergias a eunoacuteia eacute sobretudo exigecircncia para o exame da alma e por
conseguinte exigecircncia para o bom andamento da investigaccedilatildeo discursiva A eriacutestica se
contrapotildee agrave dialeacutetica assim como a alma dissociada e fragmentada por conflitos se
contrapotildee agrave alma harmocircnica e unificada A eunoacuteia assegura que o desejo seja orientado na
direccedilatildeo da episteacuteme Ela eacute a funccedilatildeo mediadora entre o Eros e a inteligecircncia a funccedilatildeo que
permite que um se sobreponha ao outro fecundando-se mutuamente para gerar os belos
discursos Mas eacute tambeacutem a disposiccedilatildeo altruiacutesta a interaccedilatildeo que faz com que o Filoacutesofo
autecircntico seja antes de tudo o amigo que faz com que dialeacutetica e philiacutea se pressuponham e
que o Filoacutesofo veja-se no amigo como num espelho (Fedro 255d)
A implacabilidade do eacutelenkhos socraacutetico no Goacutergias evidencia de maneira
inelutaacutevel que Caacutelicles natildeo eacute nem franco nem benevolente e nem tampouco ciente Isso
133
implica que Caacutelicles seja a imagem de uma fragmentaccedilatildeo psiacutequica96
Por outro lado o
movimento dramaacutetico do Goacutergias realccedila a figura de Soacutecrates reluzente como a imagem da
verdadeira franqueza da verdadeira benevolecircncia e da verdadeira paideacuteia (JAEGER 1995
p 671)
As questotildees de se saber qual eacute o tipo de homem que se deve ser e qual atividade
deve reclamar o primado da vida humana (Goacutergias 488a) natildeo podem ser respondidas no
plano dos interesses em conflito A questatildeo da justiccedila reivindica um paradigma que esteja
acima do plano das relaccedilotildees praacuteticas um modelo absoluto ao qual sejam reportados os erga
e os loacutegoi Tal paradigma natildeo pode ser circunscrito a uma esfera particular de tempo
cronoloacutegico e por isso a questatildeo do eacutethos e dos valores temporais deve ser aquilatada por
um modelo atemporal e absoluto que lhes sirva de norma e medida Mas o atemporal e o
que estaacute para aleacutem da reportaccedilatildeo muacutetua dos valores humanos que configuram a
mentalidade da cidade o modelo perenamente vaacutelido exige um discurso proacuteprio com
estruturas homoacutelogas agrave grandeza das noccedilotildees que ele pretende abarcar A esse discurso
Soacutecrates chama de um belo logos (kaloucirc loacutegos) que eacute tambeacutem um myacutethos
96 Olimpiodoro interpreta as personagens do diaacutelogo como personificaccedilotildees de tipos de caracteres Assim os
erros seriam cometidos por trecircs razotildees 1) uma opiniatildeo pervertida 2) por causa da ira 3) por causa do apetite
O caraacuteter mal orientado foi refutado nos argumentos com Goacutergias o caraacuteter irasciacutevel foi refutado com Polo e
o caraacuteter apetitivo deve ser refutado na figura de Caacutelicles (OLYMPIODORUS 1998 p 195)
134
35 ndash A retoacuterica da alma
No Goacutergias o recurso ao mito (que aparece em 492e ss) permite que a personagem
de Soacutecrates discorra filosoficamente sobre esferas que natildeo podem ser atestadas ou
verificadas A existecircncia da alma como instacircncia que congrega faculdades distintas e da
equaccedilatildeo somasema satildeo postulados atribuiacutedos a um engenhoso homem (kompsoacutes aneacuter)
Siciliano ou Itaacutelico Natildeo se trata de um filoacutesofo mas de um mitoacutelogo cuja identidade como
o demonstram Dodds (1986 p 297) Burkert (1972 p 248) e Huffman (1998 p 404 ss)
natildeo pode ser conhecida Segundo a alegoria da narrativa a alma eacute uma instacircncia complexa
e possui uma parte que eacute sede dos apetites (epithymiacuteai) e que em funccedilatildeo do seu
desregramento e da insaciabilidade eacute comparada a um tonel furado No mundo invisiacutevel o
Hades os miseraacuteveis satildeo os natildeo-iniciados eternamente condenados a encher toneacuteis furados
com crivos A alma dos irrefletidos seria como uma peneira que nada reteacutem por causa da
descrenccedila e do esquecimento (493b-d)
Por que Soacutecrates interrompe a linha argumentativa do eacutelenkhos com imagens que
ele mesmo reconhece como algo estranhas (ti aacutetopa) Qual a razatildeo do emprego em uma
argumentaccedilatildeo complexa com um interlocutor resistente e hostil de uma narrativa que o
proacuteprio Soacutecrates antecipa como impotente para persuadir Caacutelicles de que uma vida bem
ordenada eacute preferiacutevel agrave vida incontida e insaciaacutevel
A narrativa lanccedila matildeo de um acervo tradicional de crenccedilas que segundo Burkert
(1972 p 249) satildeo semelhantes aos escritos do papiro de Derveni Carl Huffman alega por
outro lado que a noccedilatildeo de uma alma que constitui a sede de todas as faculdades psiacutequicas e
do pensamento eacute posterior a Filolau de Croacutetona cuja concepccedilatildeo de alma eacute muito mais
restritiva Independentemente da fonte do mito seus elementos remontam ao que Vernant
(1987 p 89 ss) chama de ldquomisticismo gregordquo uma corrente de grupos fechados associados
135
a uma busca de imortalidade bem-aventurada obtida mediante a observaccedilatildeo de uma regra
de vida pura reservada aos iniciados
O uso filosoacutefico de um acervo miacutetico concerne a um estoque de crenccedilas que
moldam o quadro mental da cidade e representa segundo Brisson (1994 p 28) um
ldquoinventaacuterio indissociaacutevel de um sistema de valoresrdquo cuja importacircncia determina sua
conservaccedilatildeo em memoacuteria coletiva Mas eacute tambeacutem um meio que confere significaccedilatildeo para
a atitude socraacutetica que preceitua a regra de que eacute preferiacutevel sofrer injusticcedila a cometecirc-la
Atitude incompatiacutevel com a expectativa coletiva de se fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos
A referecircncia recorrente a uma antiga tradiccedilatildeo que aparece no Feacutedon justifica a
inflexatildeo que o proacuteprio Platatildeo opera na homologia entre a Filosofia e a iniciaccedilatildeo esboccedilando
modos concorrentes de interpretar e re-significar um acervo de saberes potecircncias crenccedilas
afetos e imagens religiosas em uma transposiccedilatildeo determinante para a mentalidade de um
novo gecircnero de vida e um novo tipo de eacutethos A homologia entre o biacuteos dos cultos de
misteacuterio e suas correspondentes imagens miacuteticas exigidos para a iniciaccedilatildeo indica que a
significaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica aportada pelo exerciacutecio filosoacutefico natildeo encontra referentes no
mundo fiacutesico mas somente num acervo compartilhado de crenccedilas e afetos que modelam os
quadros mentais de uma comunidade valores coletivos que configuram o psiquismo
norteador para as percepccedilotildees e o agir humanos (WINKELMAN 2010 p 14 ss)
Assim como na chamada antiga tradiccedilatildeo (palaiograves loacutegos - Feacutedon 70c) dos misteacuterios
haacute uma transmissatildeo iniciaacutetica para que os puros encontrem a bem-aventuranccedila no Hades na
Filosofia haacute o exerciacutecio cataacutertico da vida virtuosa e do pensamento depurado A pureza
ritual eacute assimilada aos raciociacutenios isolados das sensaccedilotildees corporais a alma raciocina mais
136
belamente quando despreza os sentidos e foge das sensaccedilotildees corporais e procura o mais
possiacutevel isolar-se em si mesma e tornar-se si mesma (dzēteicirc degrave autḗ kath‟autḗn giacutegnesthai)
Este isolamento da alma atraveacutes dos raciociacutenios (logiacutedzesthai) eacute correlato ao modo
de aquisiccedilatildeo do conhecimento e da manifestaccedilatildeo da realidade daquilo que ocupa o
pensamento A grandeza a sauacutede a forccedila e a realidade (tēs ousiacuteas) de todas as coisas e o
que cada uma delas eacute em si mesma exigem uma cataacutertica das sensaccedilotildees (taacutes aistheacutetaacute)
Somente o pensamento em si mesmo (autḗ tḗ diacircnoia) o pensamento sem mistura isolado
e sem comunhatildeo com o corpo pode sair agrave caccedila (epikheiroicirc thēreuacuteein thēreuacuteein tōn oacutentōn)
dos seres da verdade e da inteligecircncia purificada (phroacutenēsin) A purificaccedilatildeo anunciada por
um filoacutesofo genuiacuteno (Feacutedon 65b-67e) representa o sumaacuterio daquilo que jaacute representa uma
transposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos ritos purificatoacuterios das seitas de misteacuterio
Pierre Boyanceacute (1994 85-95) correlaciona esta ascese filosoacutefica a um acervo oacuterfico
cujo escopo seria a separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos da psykheacute de sua parte divina O
discurso que Soacutecrates consigna a um anocircnimo descreve um caminho sagrado purificatoacuterio
uma trilha (atrapoacutes) que demarca o itineraacuterio da razatildeo e da investigaccedilatildeo O alvo da
investigaccedilatildeo eacute identificado com a verdade e seu princiacutepio de accedilatildeo com um apetite pela sua
posse (me pote ktēsōmetha hikanōs hougrave epithymoucircmen) Na prescriccedilatildeo iniciaacutetica do filoacutesofo
genuiacuteno haacute uma concepccedilatildeo quase material de que a alma estaacute dispersa como sopro nos
elementos corporais e que a sua mistura com o corpo engendra toda sorte de males e
impedimentos para a aquisiccedilatildeo da verdade e a caccedila aos seres A mistura da alma ao corpo
segue na esteira do mito de Dioniso Zagreu esquartejado e devorado pelos Titatildes Natildeo
obstante a trilha iniciaacutetica descrita no Feacutedon natildeo promove a separaccedilatildeo dos elementos
divinos do elemento corporal titacircnico mediante ritos purificatoacuterios Em vez disso a
exaltaccedilatildeo iniciaacutetica daacute lugar a um apetite pelo pensamento purificado a phroacutenesis Haacute uma
137
homologia entre o caminho sagrado dos ritos iniciaacuteticos e a trilha filosoacutefica Todavia o
alvo deste itineraacuterio natildeo eacute mais a pureza ritual mas a posse da verdade e o pensamento
isolado do corpo
A purificaccedilatildeo teleacutestica tem como finalidade a remoccedilatildeo das faltas do miasma que
determina o destino futuro apoacutes a morte Como afirma Vernant (1994 p 107) ldquoo miasma
se purifica sempre com uma lavagem mas tambeacutem bdquose consome‟ bdquoadormece‟ bdquose
dispersa‟ Eacute uma mancha e tambeacutem uma coisa que rouba um bdquopeso‟ uma bdquodoenccedila‟ uma
perturbaccedilatildeo bdquouma ferida‟ bdquoum sofrimento‟
O vocabulaacuterio indica que Platatildeo se apropria de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica associada agraves
praacuteticas rituais de lustraccedilatildeo como os misteacuterios de Elecircusis e outras praacuteticas iniciaacuteticas
comodamente rotuladas de oacuterficas Assim como as faltas os crimes de sangue ou a
impiedade transmitem-se numa cadeia de impureza a purificaccedilatildeo estaacute relacionada agrave
transmissatildeo iniciaacutetica a ritos que suscitam a passagem de um estado para outro mais
elevado Essa transmissatildeo consolida todo um gecircnero de vida modelado por exerciacutecios
espirituais A iniciaccedilatildeo tal como o miasma pressupotildee uma cadeia de transmissatildeo que
remonta agrave antiga tradiccedilatildeo o princiacutepio e a fonte da pureza
No seu comentaacuterio agraves lacircminas de ouro oacuterficas Giovanni Carratelli observa que as
instruccedilotildees mortuaacuterias objetivam servir de guia para que a alma do iniciado seja liberta das
faltas mediante a iniciaccedilatildeo (myacuteēsis) Os ritos compreendem instruccedilotildees foacutermulas de
reconhecimento (syacutenthēma) ou palavras de passe o segredo provas dolorosas
(pathḗmatha) e a referecircncia constante a Mneacutemosyne personificaccedilatildeo divina da memoacuteria Haacute
o importante papel do guia o mystagogos na conduccedilatildeo de estatutos diversos entre os
recipiendaacuterios os Baacuteckhoi satildeo superiores aos myacutestai A palavra de passe ou a foacutermula de
reconhecimento pressupotildee o exerciacutecio menemocircnico que faculta o conhecimento da origem
138
divina anterior agrave vida terrestre As expiaccedilotildees e as lustraccedilotildees cataacuterticas suscitam a
prevalecircncia do elemento divino da alma Na lacircmina mortuaacuteria encontrada na necroacutepole de
Hipocircnio em uma tumba datada no fim do seacutec V encontram-se as instruccedilotildees
Tu iraacutes na morada bem construiacuteda de Hades agrave direita haacute uma
fonte
ao lado dela se ergue um cipreste branco
eacute laacute que descem as almas dos mortos e onde elas se refrescam
Desta fonte tu natildeo te aproximaraacutes
Mas mais adiante tu encontraraacutes uma aacutegua fria que corre
do lago de Mnemosyacutene acima dela se encontram guardas
Eles te interrogaratildeo em seguro discernimento
porque tu exploras as trevas de Hades obscuro
Dize bdquoEu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado
Eu queimo de sede e desfaleccedilo Decirc-me raacutepido
De beber da aacutegua fria que vem do lago de Mnemosyacutene‟
E eles te interrogaratildeo pelo querer do rei ctocircnico
Eles te daratildeo de beber do lago de Mnemosyacutene
E tu quando tiveres bebido percorreraacutes a via sagrada
Sobre a qual tambeacutem os outros mystai e baacuteckhoi avanccedilam na
gloacuteria 97
(I A 1 9-11)
Como observa Radcliffe Edmonds (in CASADIO 2010 p 72 ss) as referecircncias a
Perseacutefone a Mnemosyacutene e a Dioniso tem levado os historiadores da religiatildeo grega a rotular
as instruccedilotildees iniciaacuteticas contidas nas lacircminas funeraacuterias de ouro como oacuterficas baacutequicas
egiacutepcias e pitagoacutericas ou ainda eleusinas Embora alguns editores correlacionem as
instruccedilotildees das lacircminas de ouro a uma katabasis que remontaria a um poema oacuterfico ou a um
livro dos mortos pitagoacuterigo Edmonds salienta que infortunadamente os textos
escatoloacutegicos satildeo excessivamente vagos para identificaacute-los precisamente com alguma
vertente religiosa
Muitos eruditos esforccedilam-se no sentido de encontrar um estema de influecircncias que
permita delimitar suas origens em certos contextos Mas as imagens miacuteticas e alusotildees ao
misticismo grego que aparecem em Platatildeo sugerem um emprego caleidoscoacutepico de
97 Traduccedilatildeo de Giovanni P Carratelli (2003 p 35)
139
elementos tradicionais que varia segundo o movimento de cada diaacutelogo Para o inteacuterprete
dos diaacutelogos o contexto eacute a suma tradicional das seitas de misteacuterio gregas
Para Giovanni Casadio se haacute uma fronteira ndash e isto estaacute aleacutem de questatildeo ndash que
demarca os limites entre Dionisismo (uma realidade concreta) e o Orfismo (uma realidade
muito mais nebulosa) noacutes somos incapazes de determinar precisamente onde esta fronteira
se encontra (CASADIO 2010 p 36-37) Mais do que estabelecer distinccedilotildees canocircnicas
entre dionisismo orfismo ou pitagorismo cumpre focar os esquemas invariantes de
pensamento nas seitas de misteacuterio e as homologias correspondentes que emergem no
movimento dramaacutetico-dialoacutegico dos mitos platocircnicos
A personificaccedilatildeo da memoacuteria relaciona-se com o rito de purificaccedilatildeo pela aacutegua que
permite o acesso agrave via sagrada A purificaccedilatildeo propiciada pela memoacuteria ressalta a primazia
do pensamento nocircus na experiecircncia iniciaacutetica que ascende o aspirante agrave alḗtheia A
foacutermula de reconhecimento eu sou filho da Terra e do Ceacuteu estrelado identifica o aspirante
com a estirpe divina e sugere sua purificaccedilatildeo ritual preacutevia ela serve como palavra de passe
que garante o acesso agrave divindade A katabasis descrita na lacircmina funeraacuteria alude ao
cumprimento de uma purificaccedilatildeo preacutevia pressuposta agrave prova da passagem e ao esforccedilo
vinculado a uma potecircncia psiacutequica personificada em Mnemosyacutene Platatildeo se apropria desse
acervo da antiga tradiccedilatildeo com a finalidade protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um
exerciacutecio de morte e a kaacutetharsis como purificaccedilatildeo do pensamento
A verdade a realidade da sabedoria da justiccedila da coragem
consistem sem duacutevida em uma purificaccedilatildeo de todas as coisas e o
proacuteprio pensamento (phroacutenēsis) natildeo eacute senatildeo um meio de
purificaccedilatildeo Haacute uma grande chance de que aqueles que
estabelecerem entre noacutes as iniciaccedilotildees natildeo tenham sido homens
fracos Mas a realidade dos seres deve ser oculta em enigmas
(ainiacutettesthai) quando eles dizem que ldquoaquele que chega no Hades
sem ter conhecido os misteacuterios sem ser iniciado aquele seraacute
140
deitado na lama mas aquele que foi purificado e iniciado uma vez
laacute chegando habitaraacute com os deuses De fato como dizem aqueles
que tratam das iniciaccedilotildees ldquonumerosos satildeo os portadores de tirso
(narthekophoacuteroi) raros os Baacutekkhoi
(Feacutedon 69b12-c2)
A distinccedilatildeo hieraacuterquica entre os impuros e os puros de um lado e entre os myacutestai e
os baacutekkhoi de outro indica a tese protreacuteptica de apresentar a Filosofia como um exerciacutecio
iniciaacutetico de ascensatildeo ao princiacutepio uacuteltimo da realidade dos seres A purificaccedilatildeo eacute transposta
para a purificaccedilatildeo do pensamento e das virtudes por meio da phroacutenesis A homologia entre
o segredo e a realidade posta sob forma enigmaacutetica para evitar a apropriaccedilatildeo por aqueles
que natildeo passaram pelo longo exerciacutecio cataacutertico eacute mantida natildeo ser puro e se apossar do
que eacute puro e de fato eacute preciso temecirc-lo eacute algo interdito (ou themitoacuten Feacutedon 67b01)
Todavia a menccedilatildeo aos portadores de tirso e baacutekkhoi no Feacutedon suscita
controveacutersias A qual tradiccedilatildeo se refere o passo Quais satildeo os ritos e qual eacute o contexto que
suscita a analogia entre iniciaccedilatildeo aos misteacuterios e iniciaccedilatildeo filosoacutefica Ana J Cristoacutebal em
um instigante estudo acerca do campo semacircntico das expressotildees baacutekkhos e bakkheuacuteein
indica que os termos possuem significados diferentes entre os ciacuterculos reconhecidos como
oacuterficos e o culto a Dioniso Baacutekkos e baacutekkhoi satildeo denominaccedilotildees daqueles que passaram por
ritos purificatoacuterios ou extaacuteticos vinculados a Dioniso Tais ritos induzem a um estado
miacutestico de intensa afetividade decorrente da exaltaccedilatildeo e entusiasmo provocado pelo deus
Baacutekkos eacute o atributo de um seguidor de Dioniso Bakkhos O verbo bakkheuacuteein por outro
lado denota a possessatildeo divina e dentre todos os testemunhos somente Euriacutepides o
emprega no sentido de adoraccedilatildeo a Dioniso A accedilatildeo de bakkheuacuteein descreve
simultaneamente os afetos experimentados no transe delirante e a performance ritual que
envolve procissotildees carregar e agitar tirsos ornamentados gritos sacrificiais (eyoicirc) danccedila e
vinho (CASADIO 2010 p 46-60)
141
A terminologia empregada na inscriccedilatildeo da lacircmina de Hipocircnio evidencia que as
expressotildees myacutestai e baacutekkhoi pertencem a um acervo cultural comum de imagens que
configura o mesmo pano de fundo para a classe geral dos cultos de misteacuterio As instruccedilotildees
funeraacuterias evocam uma ascensatildeo iniciaacutetica na via sagrada para que o recipiendaacuterio seja
acolhido entre os bem-aventurados gloacuteria reservada aos puros que passaram pelas provas
Somente os puros possuem a potecircncia psiacutequica unificadora da memoacuteria condiccedilatildeo para o
proferimento da palavra de passe o syacutentema e o conhecimento da aleacutetheia reservado aos
baacutekkhoi mediante o inaudito ndash os apoacuterrheta Como salienta Boyanceacute as purificaccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas referenciam-se no mito de Dioniso Zagreu desmembrado pelos Titatildes e
podem perfeitamente coexistir com rituais baacutequicos de livramento com hinos danccedilas
coros e a alegria extaacutetica as paidiaacute hēdonōn censuradas por Platatildeo como um tipo de
orfismo baacutequico
Eles produzem uma multidatildeo de livros de Museu e Orfeu filhos da
Lua e das Musas diz-se Eles regram seus sacrifiacutecios sob a
autoridade destes livros e fazem acreditar natildeo somente aos
particulares mas agrave cidade que se pode pelos sacrifiacutecios e jogos
prazerosos (paidiaacutes hēdonōn) ser absolvidos e purificados de seu
crime enquanto vivo e mesmo apoacutes sua morte Eles chamam
iniciaccedilotildees estes ritos (teletaacutes) que nos livram de males no outro
mundo e que natildeo se pode sacrificar sem esperar terriacuteveis supliacutecios
(Repuacuteblica 364 e ndash 365 a)
Boyanceacute assimila as teletai com os misteacuterios de Elecircusis Mas como evidencia a
exegese do comentador de Derveni a criacutetica agrave degeneraccedilatildeo do viacutenculo entre longas praacuteticas
de exerciacutecio espiritual e do papel da inteligecircncia na busca pela verdade com o segredo e a
transmissatildeo oral de uma sabedoria jaacute fazia parte da reflexatildeo filosoacutefica preacute-socraacutetica No
Teeteto (155e-156a) Platatildeo adverte en passant que o jovem olhe em derredor para que
natildeo aconteccedila que algum natildeo iniciado ouvisse o que era dito Este cuidado indica a
transposiccedilatildeo filosoacutefica do estatuto iniciaacutetico para a investigaccedilatildeo terapecircutica operada pela
142
Filosofia que exige a preparaccedilatildeo da alma A separaccedilatildeo dos elementos titacircnicos operada
pela encantaccedilatildeo musical e da harmonia de afetos coexiste com as praacuteticas cultuais de
exaltaccedilatildeo baacutequica dionisiacuteaca e com a ventura eleusina
A tensatildeo entre a multidatildeo dos portadores de tirso e os poucos bakkhoi sugere uma
gradaccedilatildeo entre narthēkophoacuteroi e iniciados No Goacutergias a oposiccedilatildeo entre os ininteligentes
natildeo-iniciados (anoḗtous amyacuteetous Goacutergias 493a07) e os myacutestai aponta para uma
polarizaccedilatildeo radical entre seres irrefletidos que se entregam aos apetites e aqueles que
buscam a proporccedilatildeo harmocircnica da alma
A tradiccedilatildeo pitagoacuterica vinculada a Alcmeacuteon de Croacutetona define a sauacutede como
isonomia e como mistura simeacutetrica de qualidades (tḗn syacutemmetron tōn poiōn kraacutesin) A
harmoniacutea resulta de um equiliacutebrio ao mesmo tempo espacial e temporal e nesse sentido haacute
uma equivalecircncia semacircntica kairoacutes-syacutemmetros o momento oportuno num arranjo
ordenado Kairoacutes symmetriacutea e eurythmiacutea configuram uma percepccedilatildeo refinada de
harmonia A noccedilatildeo de symmetriacutea se desdobra entre os preacute-socraacuteticos como proporccedilatildeo ou
uma identidade de relaccedilotildees A transposiccedilatildeo de semelhanccedila de relaccedilotildees se desdobra na
analogia identidade ou semelhanccedila de loacutegoi A funccedilatildeo da analogia consiste em remeter
uma multiplicidade de loacutegoi a uma unidade Funccedilatildeo unificadora a proporccedilatildeo geomeacutetrica e
a expressatildeo matemaacutetica da identidade de relaccedilotildees designam outro aspecto correlato da
harmonia a noccedilatildeo de mediania o meacuteson o meio-termo ndash mēsoacutetēs ndash que se estende para o
acircmbito da psykheacute como metreacutetica dos afetos A medida do tempo e o esforccedilo de conciliaccedilatildeo
entre o periacuteodo lunar e o solar engendram o problema matemaacutetico e geomeacutetrico da
comensurabilidade A harmocircnica pitagoacuterica conecta simultaneamente noccedilotildees qualitativas e
quantitativas temporais e espaciais ritmo e consonacircncia musical com o equiliacutebrio de
opostos no corpo na alma e na cidade (PERILLEacute 2005 p 24-65)
143
A menccedilatildeo ao Hades indica que os mitos escatoloacutegicos discorrem sobre o invisiacutevel
(Feacutedon 81c Craacutetilo 404b) sobre a natureza da alma seu destino futuro e seu papel na
economia cosmoloacutegica Em particular a passagem do Goacutergias postula o fato de que a alma
eacute complexa e que os apetites satildeo atributos psiacutequicos e natildeo corporais
Segundo Olimpiodoro o mito filosoacutefico eacute elaborado para que o invisiacutevel seja
inferido a partir do visiacutevel e aparente Como a alma natildeo eacute constituiacuteda somente pelo
pensamento mas tambeacutem pelos afetos e desejos o discurso deve ser multifacetado de
modo a corresponder a cada esfera psiacutequica Uma estrutura psiacutequica complexa exige uma
inteligecircncia complexa que por sua vez pressupotildee uma estrutura discursiva complexa
Conforme a tese claacutessica de Pierre Boyanceacute adotada pela maioria dos inteacuterpretes
que abordam os mitos platocircnicos o principal efeito da narrativa miacutetica eacute a ldquoencantaccedilatildeordquo
(epoidḗ) o efeito cataacutertico e terapecircutico irresistiacutevel do charme O mito filosoacutefico eacute o
discurso que expressa um pensar por imagens que eacute endereccedilado agrave parte afetiva da psykheacute
Em funccedilatildeo de sua accedilatildeo eficaz sobre os afetos o mito exerce uma accedilatildeo persuasiva que
consolida os postulados inverificaacuteveis que conferem significaccedilatildeo para as accedilotildees praacuteticas
A alegoria do tonel furado como nota Vernant eacute uma alusatildeo agrave condenaccedilatildeo infligida
agraves Danaides Segundo Apolodoro (II 1 5) na sua noite de nuacutepcias as filhas de Dacircnao em
colusatildeo com o pai decapitam seus maridos e primos filhos de Egito Por causa disso os
juiacutezes divinos condenaram-nas a encher eternamente toneacuteis furados no Hades
Carl Kereacutenyi alude ao fato de que o casamento eacute para os gregos um importante
teacutelos que demarca um rito de passagem (1998 p 46) As penas eternas indicam uma falta
vinculada agrave ausecircncia de teacutelos de completaccedilatildeo ou iniciaccedilatildeo
A iniciaccedilatildeo eacute transposta por Platatildeo em exerciacutecio filosoacutefico no esforccedilo que culmina
na phroacutenesis no pensamento puro que implica o isolamento psiacutequico No Goacutergias as
144
almas dos natildeo iniciados satildeo como toneacuteis furados que nada retecircm por descrenccedila e
esquecimento (493b) A ausecircncia de teacutelos eacute segundo Vernant (1990 p 146 ss)
indissociaacutevel do esquecimento que implica o ciclo do devir e da necessidade O
esquecimento representa a imersatildeo no eterno ciclo do tempo o eterno recomeccedilo a roda do
nascimento que faz com que a alma tome o breve instante da vida como se fosse totalidade
do tempo O mal supremo para a alma consiste em tomar a causa de um afeto violento
como se fosse a realidade mais verdadeira (Feacutedon 83c)
A transposiccedilatildeo filosoacutefica operada por Platatildeo insere o esquecimento e a memoacuteria
numa teoria do conhecimento que seraacute desenvolvida a partir do Meacutenon e do Feacutedon A
ameacuteleia ou ausecircncia de inquietaccedilatildeo configura o estado psiacutequico da vida voltada para os
apetites em detrimento da anaacutemenesis que suscita o exerciacutecio filosoacutefico que culmina na
inteligecircncia das verdades eternas A anaacutemenesis tende para o teacutelos que implica a visatildeo
unificada da totalidade do tempo pacircs khroacutenos
Na transposiccedilatildeo platocircnica meleacutete thanaacutetou eacute o exerciacutecio de morte mencionado no
Feacutedon pelo qual o pensamento puro eacute isolado da inconstacircncia do devir e da eterna
insaciabilidade dos apetites A menccedilatildeo breve do Goacutergias anuncia postulados ingressivos
que comporatildeo ao longo das obras centrais de Platatildeo uma visatildeo cosmoloacutegica unificada na
qual as questotildees eacuteticas satildeo abarcadas no domiacutenio mais amplo de uma epistemologia e
psicologia que por sua vez satildeo alicerccediladas numa ontologia
As imagens subsequentes correlacionam modos de vida excludentes com o
regramento e desregramento Um gecircnero de vida eacute representado por um homem que possui
toneacuteis repletos de conteuacutedos valiosos e que por isso natildeo se preocupa e se aquieta o outro eacute
representado por um homem cujos toneacuteis satildeo furados e que por isso eacute forccedilado agrave atividade
penosa de preenchecirc-los incessantemente O gecircnero de vida eacute determinado pela constituiccedilatildeo
145
psiacutequica que define um tipo de homem A alma temperante possui a inteligecircncia da ordem e
do regramento A inteligecircncia institui ordem naquilo que eacute desregrado A alma epitymeacutetica
eacute aquela inexoravelmente voltada para a repleccedilatildeo do vazio para o movimento sempre
renovado de uma saciedade que eacute continuamente relanccedilada na efemeridade do tempo
(DIXSAUT 2001 p 138) Desejo que nenhum recipiente pode conter esquecimento de
todo teacutelos o apetite eacute um estado penoso (Goacutergias 496d) que nunca se aquieta com a posse
do alvo desejado e que por isso reclama ausecircncia de limites
Por conseguinte mesmo que algueacutem seja de outro ponto de
vista na verdade aquele que realmente eacute tirano eacute realmente
escravo vive no cuacutemulo da bajulaccedilatildeo e da escravidatildeo e eacute adulador
dos maiores malfeitores Ele natildeo satisfaz de nenhum modo seus
desejos mas apareceria inteiramente desprovido de todas as coisas
e pobre se pudeacutessemos considerar a inteireza de sua alma Ele
extravasa de medo ao longo de toda a sua vida e eacute repleto de
sobressaltos e sofrimentos se de fato se assemelha agrave disposiccedilatildeo da
cidade que dirige
(Repuacuteblica 579e)98
Mas como pode se justificar a conexatildeo entre a inteligecircncia e o regramento Somente
a ordenaccedilatildeo e o regramento podem segundo Soacutecrates modelar uma visatildeo unificada que
vincula o ceacuteu a terra os deuses e os homens num conjunto articulado numa comunidade
cingida pela amizade ou amor da ordem (Goacutergias 507e-508a)
A lei universal que governa todas as esferas do kosmos que dirige ao mesmo
tempo o plano eacutetico-poliacutetico e a physis eacute a igualdade geomeacutetrica ndash todo-poderosa (mega
dyacutenatai) tanto entre os deuses como entre os homens O gecircnero de vida filosoacutefico norteia-se
pelo postulado de que haacute um princiacutepio unificador que cinge todo o kosmos o humano e o
divino segundo uma ordenaccedilatildeo matemaacutetica
98 Trad de Pierre Pachet (1993 p 466)
146
Walter Burkert (1972 78 n 156) Dodds (1959 339) Vlastos (1981 195 n 119) e
Irwin (1979) concordam que Platatildeo estaacute fazendo uma referecircncia direta a Arkhytas de
Tarento nas passagens em que satildeo mencionadas a geometria e a proporccedilatildeo no Goacutergias De
acordo com Carl Huffman um proeminente tema do final do pensamento do seacutec V aC
conecta a ambiccedilatildeo pleonexiacutea com o que eacute por natureza em contraste com o que eacute por
convenccedilatildeo Para Arkhytas a pleonexiacutea eacute a maior causa de discoacuterdia e instabilidade poliacutetica
do seu tempo A pleonexiacutea eacute associada com o abuso de poder tanto por um tirano quanto
por uma oligarquia rica Para combatecirc-la eacute necessaacuterio natildeo somente a lei mas a logistikeacute a
ciecircncia do caacutelculo e da geometria
No Goacutergias a pleonexiacutea de Caacutelices eacute explicada em termos da negligecircncia da
geometria e da igualdade geomeacutetrica No fragmento 3 (Stobeu e Jacircmblico) da ediccedilatildeo de
Huffman a igualdade que resulta do caacutelculo das proporccedilotildees como cura para a pleonexiacutea eacute
notavelmente paralela agrave do Goacutergias
Pois eacute necessaacuterio tornar-se ciente sendo insciente ou aprendendo
de um outro ou descobrindo por si mesmo Aprendendo a partir de
outro pertence a outro enquanto descobrindo por si mesmo
pertence a si mesmo Descoberta enquanto natildeo investigada eacute
difiacutecil e infrequumlente mas enquanto investigada faacutecil e frequumlente
mas se algueacutem natildeo sabe ltcomo calculargt (logiacutezdestai) eacute
impossiacutevel investigar
Uma vez que o caacutelculo foi descoberto impede a discoacuterdia e
aumenta a concoacuterdia Pois natildeo procuram ganacircncia desmedida
(pleonexiacutea) e igualdade existe uma vez que isto veio a ser Pois por
meio do caacutelculo (proporccedilatildeo) veremos reconciliaccedilatildeo em nossas
transaccedilotildees com os outros Por causa disso entatildeo o pobre recebe
do poderoso e o rico daacute para o necessitado ambos crendo que
haveraacute igualdade Isto serve como um cacircnon e um impedimento
para a injusticcedila Impede aqueles que sabem como calcular antes
que eles cometam injusticcedila persuadindo-os que eles natildeo poderatildeo
ficar ocultos sempre que eles aparecem para ele (o cacircnon) Impede
aqueles que natildeo sabem como calcular de cometer injusticcedila tendo
revelado a eles como injustos por meio dele (do caacutelculo) (STOBEUS IV 1139 IAMBLIKHUS Sobre a ciecircncia matemaacutetica
geral II 4410-17 apud HUFFMAN 2005 p 183)
147
O verbo pleonekteacuteō significa ter mais levar vantagem ter ganacircncia e o substantivo
pleonexiacuteaindica o iacutempeto depossuir mais do que o devido ambiccedilatildeo vantagem injusta
arrogacircncia Mas Platatildeo se apropria do viacutenculo estabelecido por Arkhytas entre a
organizaccedilatildeo poliacutetica e a matemaacutetica para promover uma generalizaccedilatildeo que ascende a uma
visatildeo unificada do kosmos e usa o termo ldquoigualdade geomeacutetricardquo num sentido muito mais
geral como equivalente a proporccedilatildeo ou regramento geomeacutetrico
A pleonexiacutea a negligecircncia do regramento geomeacutetrico que unifica o kosmos
constitui a fonte de todas as injusticcedilas A investigaccedilatildeo sobre a origem dos apetites e a
relaccedilatildeo destes com a inteligecircncia estabelece a alma como princiacutepio de accedilatildeo e causa da
justiccedila e da injusticcedila Ao postular um viacutenculo entre o domiacutenio da praacutexis e o da Natureza
pelo regramento geomeacutetrico Platatildeo estabelece o primado da alma como causa e da
inteligecircncia como condiccedilatildeo da kosmiacutea
O desenvolvimento da concepccedilatildeo de que a alma configura uma instacircncia complexa
cuja causalidade eacute intriacutenseca agrave natureza desejante estende o acervo conceptual pitagoacuterico
concernente agrave harmonia ao postulado fundamental de que a harmonia eacute uma inscriccedilatildeo a
posteriori de modalidades diversas de arranjo psiacutequico conferidas pelas proacuteprias escolhas
Em Platatildeo a alma eacute causa de sua proacutepria natureza e princiacutepio de harmonizaccedilatildeo
Essa subversatildeo nocional seraacute decisiva na causalidade platocircnica e no estabelecimento da
funccedilatildeo mediadora da alma entre o devir e a realidade inteligiacutevel
No Feacutedon Platatildeo inaugura a concepccedilatildeo de que uma harmonia de elementos
materiais pressupotildee a possibilidade de gradaccedilotildees diversas segundo o maior ou menor grau
de consonacircncia dos elementos Quanto maior for a combinaccedilatildeo maior seraacute a harmonia
148
Se a alma fosse uma harmonia de elementos materiais uma alma carregada de
viacutecios seria menos harmoniosa do que uma alma virtuosa e por conseguinte seria menos
alma o que natildeo pode ser admitido Em contrapartida se natildeo haacute uma alma que seja menos
alma que outra entatildeo natildeo haacute harmonia que seja mais intensa que outra ou seja uma
mesma harmonia natildeo pode participar ao mesmo tempo da harmonia e da ausecircncia de
harmonia Aleacutem disso a alma natildeo pode ter um estatuto secundaacuterio em relaccedilatildeo ao corpo A
alma natildeo deriva nem obedece aos processos corporais mas como sede da razatildeo regra pelo
domiacutenio dos desejos as necessidades corporais Como a alma natildeo segue aos impulsos
determinados pelos elementos em tensatildeo no corpo mas os domina e tem mestria sobre eles
a sua natureza eacute diferente das dos elementos do corpo e por isso a alma natildeo pode ser uma
harmonia ela possui harmonia Platatildeo transpotildee o conceito material de harmonia para a sua
concepccedilatildeo de consonacircncia e afinidade com o divino Essa transposiccedilatildeo enseja o argumento
de que a alma eacute princiacutepio de regramento e tende a assemelhar-se com as Formas
Toda a discussatildeo acerca das causas que daacute origem agrave concepccedilatildeo das Formas estaacute
calcada numa criacutetica a concepccedilotildees pitagoacutericas sobretudo as de Alcmeacuteon e de Filolau Haacute
causas necessaacuterias e causas uacuteltimas verdadeiras Os quatro elementos da physis e as
relaccedilotildees numeacutericas inteligiacuteveis satildeo necessaacuterios para a inteligecircncia mas natildeo se identificam
com o inteligiacutevel As verdadeiras causas satildeo as ldquocoisas em si mesmasrdquo ordenadas e
harmonizadas segundo o Bem O meio de inteligibilidade do kosmos eacute a phroacutenesis cuja
sede eacute a alma As relaccedilotildees numeacutericas indispensaacuteveis para a inteligibilidade natildeo satildeo
intriacutensecas agraves coisas nem a harmonia configura uma consonacircncia de coisas mas estatildeo no
acircmbito da psykheacute e constituem uma consonacircncia com as Formas causas fundamentais de
todas as coisas
149
36 Julgamento e nudez
O mito de julgamento do Goacutergias alude ao tempo primordial de Kroacutenos no qual a lei
da justa retribuiccedilatildeo foi instituiacuteda O destino futuro da alma depende da natureza de suas
accedilotildees pregressas A conexatildeo causal infrangiacutevel que rege ateacute mesmo os deuses estabelece a
correspondecircncia entre o estado psiacutequico e a praacutexis eacutetico-poliacutetica A bem-aventuranccedila ou os
sofrimentos a felicidade ou a infelicidade derivam dos princiacutepios da accedilatildeo O estado
caoacutetico representado pelo Taacutertaro prisatildeo das potecircncias coacutesmicas da violecircncia e da
desordem reflete a proacutepria natureza da alma Assim como haacute uma homologia estrutural
entre a alma do tirano e as disposiccedilotildees da cidade que governa haacute uma homologia entre a
desordem coacutesmica e a natureza psiacutequica do agente injusto
Todavia neste tempo primordial que remete ao primado do Intelecto noucircs os juiacutezes
vivos referenciavam seus criteacuterios no mesmo plano da vida e do devir e seus decretos eram
promulgados no proacuteprio tempo das accedilotildees submetidas a julgamento A auto-referecircncia dos
juiacutezos em que o vivo era a medida do vivo implicava o erro e a destinaccedilatildeo incompatiacutevel
com a natureza das almas Uma situaccedilatildeo impediente catastroacutefica eacute anunciada a ameaccedila agrave
validade universal da lei de Kroacutenos Zeus astucioso dentre todos os mediadores o mais
privilegiado diagnostica a causa do mal os julgamentos satildeo distorcidos pelas aparecircncias
das roupagens que ocultavam a verdadeira condiccedilatildeo das almas e interditavam a
perscrutaccedilatildeo de sua natureza pelo olhar
A justiccedila eacute recoberta pelas roupagens dos valores que norteiam a vida praacutetica e os
sinais visiacuteveis testemunhas oculares das sanccedilotildees que determinam os bens ndash o prazer as
riquezas e as honrarias ndash impedem o conhecimento da verdade Para que os julgamentos
possam se desprender dos sinais materiais e possam discernir segundo o melhor valor eacute
preciso referenciar a vida em outra coisa que natildeo seja ela mesma Todas as teacutecnicas
150
discursivas e persuasivas todos os signos de valores fundados na opiniatildeo coletiva satildeo
empregados para forcejar a adesatildeo dos juiacutezes a uma imagem ilusoacuteria de justiccedila
Os proacuteprios juiacutezes natildeo possuem outro acesso agrave investigaccedilatildeo que natildeo sejam
mediados pela falibilidade dos sentidos Diante do diagnoacutestico Zeus prescreve o
expediente astucioso que remediaraacute o mal
Primeiro eacute preciso diz Zeus que os homens cessem de
conhecer de antematildeo a hora da morte Pois agora eles sabem
em qual momento iratildeo morrer Ora eu acabo de dizer a
Prometeu para que lhes retire este conhecimento Em seguida
eacute necessaacuterio que os homens sejam julgados nus despojados
de tudo o que eles tecircm Eacute por isso que se lhes deve julgar
mortos E seus juiacutezes devem estar igualmente mortos nada
aleacutem daquilo que uma alma vecirc em outra alma Que desde o
momento da morte cada um esteja separado de todos os seus
proacuteximos que deixe sobre a terra todo este decoro ndash este eacute o
uacutenico meio para que o julgamento seja justo
(Goacutergias 523d-e)99
O expediente elucubrado por Zeus eacute poacutelo simeacutetrico ao expediente instrumental do
mito de Prometeu no Protaacutegoras A previsatildeo propiciada pela inteligecircncia utilitaacuteria
representada pelo fogo furtado deve ser retirada dos homens pelo filantropo Prometeu A
capacidade de engenho teacutecnico garante natildeo somente a provisatildeo e a compensaccedilatildeo para as
carecircncias humanas mas ocasionam a violecircncia e a injusticcedila endoacutegenas Se a vida do gecircnero
humano soacute pode ser assegurada pela inteligecircncia instrumental engenhosa a existecircncia da
comunidade poliacutetica depende da participaccedilatildeo no par aidoacutes-diacuteke sem a qual ocorre a
desumanizaccedilatildeo inevitaacutevel A retirada da capacidade projetiva implica uma divisatildeo no plano
cronoloacutegico em que se estabelece a consecuccedilatildeo entre accedilatildeo e consequecircncia A separaccedilatildeo
entre o tempo cronoloacutegico da vida e o tempo apoacutes a morte representa a dissociaccedilatildeo entre o
visiacutevel e manifesto e o invisiacutevel oculto
99 Trad de Monique Canto (PLATON 1993 p 304)
151
O corte radical impede a eficaacutecia dos signos exteriores de justiccedila mediados pelas
teacutecnicas do engano e da ilusatildeo Todos os recursos satildeo inelutavelmente abandonados todos
os apegos afetivos satildeo impotentes apoacutes a travessia A remissatildeo a paradigmas absolutos
exige o postulado de que a morte eacute a separaccedilatildeo entre o e a alma Eacute preciso crer na alma
separada e isolada para que se vislumbrem os paradigmas da vida de maior valor
A verdadeira natureza psiacutequica revela-se em funccedilatildeo de suas causas remotas e nada
pode violar a lei causal eacutetico-psiacutequica de Kroacutenos A nudez remove os sinais exteriores do
engano e inverte a relaccedilatildeo entre a ocultaccedilatildeo e a vergonha entre a exposiccedilatildeo e o juiacutezo A
vergonha natildeo depende mais da coerccedilatildeo do olhar coletivo das gestas reputaacuteveis e
censuraacuteveis que configuram os valores da cidade e os noacutemoi humanos A vergonha eacute o
afeto que revela a inadequaccedilatildeo da natureza psiacutequica com sua destinaccedilatildeo final afeto que
deixa de ser prospectivo e passa a ser retrospectivo acerca dos males que poderiam ser
evitados sem a tirania dos apetites
Na planiacutecie invisiacutevel em que as hierarquias da vida satildeo equalizadas no mesmo
meacutetron as foacutermulas de reconhecimento as palavras de passe e a memorizaccedilatildeo de
prescriccedilotildees rituais dos antigos cultos de misteacuterio satildeo transpostas pelo escrutiacutenio imediato
do ldquoolhar da almardquo que vecirc outra alma O discurso sagrado natildeo expressa a natureza proacutepria
do recipiendaacuterio e por isso o sentido enigmaacutetico do discurso polissecircmico perde a
finalidade Somente o olhar perscrutador desembaraccedilado de qualquer obstaacuteculo pode
apreender a verdade dos seres e determinar o loacutecus consonante a cada alma Os verdadeiros
baacutekkhoi natildeo satildeo os que declaram ser puros mas satildeo aqueles que puros resplandecem em
sua proacutepria natureza psiacutequica as ordenaccedilotildees da justiccedila efetivada em vida
A feiuacutera do debochado Tersites (Goacutergias 526e) a chaga do voluptuoso os conflitos
e sofrimentos do tirano apetitivo e as desmedidas dos natildeo-iniciados configuram uma nova
152
acepccedilatildeo da vergonha na qual o feio e o vergonhoso necessariamente implicam-se
mutuamente
No movimento da transposiccedilatildeo iniciaacutetica operado pelas imagens miacuteticas a
autecircntica hyponoacuteia consiste em apreender as grandes verdades que se ocultam subjacentes
aos signos aparentes O filoacutesofo eacute aquele que investiga o regramento coacutesmico e a proporccedilatildeo
geomeacutetrica e os aplica ao regramento dos princiacutepios de accedilatildeo e inteligibilidade da alma A
alma justa eacute a alma bem ordenada consonante com a harmonia coacutesmica (Goacutergias 507a)
Segundo Monique Dixsaut (2001 p 171-173) a uacutenica verdade que o filoacutesofo pode
crer eacute aquilo que o loacutegos lhe significa e natildeo a vida Este loacutegos indica que haacute uma maneira
de viver que eacute a melhor porque concede tempo agrave busca da verdade Todavia as imagens do
mito final apontam para o fato de que a cataacutertica elecircntica do loacutegos filosoacutefico possui a
eficaacutecia de desnudar o interlocutor de suas falsas ilusotildees e envergonhaacute-lo mediante a
contradiccedilatildeo entre as crenccedilas professadas e o gecircnero de vida efetivamente praticado Natildeo
obstante o loacutegos eacute inoperante diante da hostilidade da violecircncia e da ignoracircncia
(apaideusiacutea 527e) O discurso filosoacutefico natildeo assegura a salvaccedilatildeo diante de juiacutezes
desonestos e natildeo evitam o ridiacuteculo e a violecircncia
Mas o verdadeiro filoacutesofo eacute como o piloto cujo papel eacute simultaneamente o de
conduzir em seguranccedila os tripulantes os valores e a si mesmo ao bom porto (Goacutergias
511c-512a) Sua funccedilatildeo eacute a de preservar dos males as almas dos seus concidadatildeos Para
tanto eacute necessaacuteria a retoacuterica da alma que ultrapassa a significaccedilatildeo discursiva para
culminar na inteligecircncia da visatildeo direta de uma alma para outra Quando uma alma observa
outra sem qualquer das mediaccedilotildees sensiacuteveis ela compreende o modo como o tempo
devotado a certo gecircnero de vida que ela julgou digno de ser vivido a afetou e quais marcas
imprimiu em sua qualidade proacutepria (Goacutergias 524d)
153
Se os loacutegoi suscitam o refuacutegio e o mergulho na verdade dos seres (Feacutedon 99e) a
qualidade proacutepria da alma soacute eacute determinada pela instauraccedilatildeo praacutetica da justiccedila poliacutetica Para
exercitar o saber eacute preciso tambeacutem crer mas como dizia o exegeta de Derveni ainda que
se esteja vendo eacute impossiacutevel crer ou aprender sem que se leve em conta as coisas terriacuteveis
(deinaacute) do Hades Natildeo se pode exercitar o saber sem que este seja vivido pois mesmo as
melhores naturezas estatildeo sujeitas agrave perversatildeo do pior gecircnero de apetites Tais satildeo os
apetites que se manifestam em sonhos e suscitam repleccedilatildeo recocircndita daquele que possui
disposiccedilotildees doentias para empreender unir-se agrave proacutepria matildee a qualquer homem deus ou
besta e de manchar-se de qualquer crime por causa da demecircncia e da renuacutencia agrave vergonha
(Repuacuteblica 571d) Assim como a qualidade proacutepria de um ser artefato ou da alma natildeo
resulta do acaso mas do modo como cada um eacute regrado assim tambeacutem a qualidade proacutepria
da alma soacute pode regrar-se atraveacutes da consonacircncia com a proporccedilatildeo geomeacutetrica
indissociaacutevel da accedilatildeo virtuosa que muda as disposiccedilotildees da poacutelis (Goacutergias 506e)
Ao fim e ao cabo de todos os discursos eacute preciso prestar a maior atenccedilatildeo natildeo tanto
em evitar sofrer a injusticcedila mas em natildeo cometecirc-la Eacute necessaacuterio natildeo se aplicar em parecer
bom mas em secirc-lo verdadeiramente tanto em privado como em puacuteblico (Goacutergias 527b)
Nenhum mal pode sobrevir ao homem de bem se ele pratica a virtude (527d) nenhum
ultraje pode envergonhaacute-lo nenhum sofrimento corrompecirc-lo ndash a natildeo ser a possibilidade de
que ele mesmo pratique o mal Toda modalidade discursiva seja a retoacuterica seja o eacutelenkhos
deve servir para a perenidade do justo (527c)
154
IV - NECESSIDADE E ESCOLHA
41 Imagens e causas no mito de Er
No espetaacuteculo de imagens narradas no mito de Er haacute uma proclamaccedilatildeo majestosa
de um Propheacutetes que em nome da virgem Laacutequesis anuncia a coexistecircncia simultacircnea de
noccedilotildees contraditoacuterias de um lado haacute a necessidade inelutaacutevel da ligaccedilatildeo de cada alma com
a vida de outro a radicalidade da escolha como fonte de virtude e imputabilidade
Como conciliar a necessidade inevitaacutevel do periacuteodo de nascimentos e mortes com a
escolha mais determinante Como conceber a sorte e a liberdade radical da escolha como
princiacutepios causais simultacircneos da natureza da psykheacute O inteacuterprete da Moira anuncia o
desconcerto da unificaccedilatildeo de poacutelos opostos entre o irrefragaacutevel e o indeterminado entre o
lote infaliacutevel e a autodeterminaccedilatildeo desejada
Logos da virgem Laacutequesis filha da Necessidade Almas efecircmeras
ireis iniciar novo periacuteodo de nascimentos na condiccedilatildeo mortal Natildeo
eacute um daiacutemon que vos escolheu a sorte sois voacutes que escolhestes
vosso daiacutemon O primeiro que a sorte designar escolheraacute primeiro
a vida agrave qual seraacute ligado em toda necessidade Pois virtude natildeo
tem deacutespota Segundo a honrar ou desonrar cada um a teraacute mais
ou menos Responsabilidade (aitiacutea heloumeacutenou) eacute de quem escolhe
O deus natildeo eacute responsaacutevel (theoacutes anaiacutetios) 100
Repuacuteblica X 617d06ndash617e05
Eacute um espetaacuteculo curioso observar de que maneira as diferentes almas escolhem suas
vidas nada mais lamentaacutevel ridiacuteculo e assombroso diz o panfiacutelio Er 101
A maioria eacute
guiada em suas escolhas pelos haacutebitos adquiridos em suas vidas anteriores haacutebitos que
100
Adoto traduccedilatildeo de Pierre Pachet com ligeiras modificaccedilotildees
Anaacutenkhes thygatrograves koacuteres Lakheacuteseos loacutegos Psykhaigrave epheacutemeroi arkhegrave aacutelles perioacutedou thnetoucirc geacutenous
thanatephoacuterou Oukh hymacircs daiacutemon leacutexetai hlrmymeicircs daiacutemona haireacutesesthe Procirctos drsquo hoacute lakhograven procirctos
haireiacutestho biacuteon hoacutei syneacutestai ex[ Anaacutenkhes Aretegrave degrave adeacutespoton hegraven timocircn kaigrave atimazon pleacuteon kaigrave eacutelatton
autecircs heacutekastos heacutexei Aitiacutea helomeacutenou theograves anaiacutetios 101 eleeineacuten te gaacuter ideicircn eicircnai kai geloiacutean kaigrave thaumasiacutean (Repuacuteblica X 620a 01-02)
155
acabam por condicionar uma homologia entre a natureza psiacutequica e o gecircnero de vida
Quando o gecircnero de vida estaacute em questatildeo emerge o primado da escolha
Sendo assim na travessia em que consiste a vida quais satildeo os meios e por quais
modos de viver poderemos conduzir a existecircncia da melhor forma possiacutevel ateacute o seu termo
Tal eacute a questatildeo crucial levantada pela imagem exemplar do Livro VII das Leis
Um construtor de navios no momento em que comeccedila a construccedilatildeo
do navio potildee em primeiro lugar a carena e esboccedila assim a
estrutura do navio Parece-me que eu faccedilo a mesma coisa quando
tentando distinguir a estrutura dos modos de vida em funccedilatildeo dos
caracteres das almas eu coloco realmente em lugar as carenas
destes modos de vida examinando por quais meios por quais
maneiras de viver conduziremos o melhor possiacutevel nossa existecircncia
ateacute o fim desta travessia que consiste a vida
Leis VII 803a-b
A questatildeo da investigaccedilatildeo da natureza da alma eacute explicitada a partir de uma
analogia o Estrangeiro de Atenas alvitra que assim como o construtor de navios inicia a
construccedilatildeo pela carena e esboccedila a estrutura do barco assim tambeacutem devemos tentar
estabelecer o delineamento dos esquemas de vida por meio dos gecircneros de almas102
O problema da indeterminaccedilatildeo do modo de vida conjuga-se com a questatildeo mais
fundamental do Goacutergias Qual eacute o melhor gecircnero de vida que eacute preciso ter103
A mais
fundamental de todas as questotildees da vida consiste em se determinar a natureza do proacuteprio
modo de viver Dentre toda a gama infinita de escolhas a vida filosoacutefica postula o princiacutepio
de que haacute uma hierarquia entre os afetos e uma escolha que eacute a melhor possiacutevel
Pois esta vida esta vida uacutenica seja ela longa ou curta eacute o que de
fato um homem verdadeiramente homem deve deixar de lado Natildeo
eacute a isso que ele deve devotar o amor de sua alma Ao contraacuterio no
que diz respeito a sua longevidade deve remeter-se somente ao
deus e crer somente no que dizem as mulheres que ningueacutem
poderia escapar ao seu lote Natildeo o que antes se deve procurar
102
tagrave tocircn biacuteon peiroacutemenos skheacutemata diasteacutesasthai katagrave tpoacutepous tougraves tocircn psykhoacuten (Leis VII 803a06-07) 103 oacutentina khreacute troacutepon zeacuten (Goacutergias500c03)
156
examinar eacute qual a maneira que se deve viver a vida para que ela
seja a melhor possiacutevel
Goacutergias 512 d-e
A vida esta vida uacutenica que equivale a uma travessia articula dois opostos
inseparaacuteveis a determinaccedilatildeo incontestaacutevel de uma longevidade que escapa ao poder
humano e o poder inalienaacutevel do modo como esta travessia seraacute feita Se a nenhum homem
cabe determinar a duraccedilatildeo da proacutepria vida a cada homem cabe decidir como iraacute viver a
vida que lhe cabe pois o viver eacute fruto de escolhas Se o gecircnero de vida eacute determinado pelas
escolhas o que delimita o acircmbito das escolhas por sua vez eacute a natureza uacuteltima dos desejos
e do caraacuteter Natildeo haacute escolha que natildeo seja resultante do movimento dos desejos A
orientaccedilatildeo dos desejos determina os valores os criteacuterios de discriminaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo
do preferiacutevel que por sua vez nortearatildeo o modo como a vida eacute vivida Esta orientaccedilatildeo
natural dos desejos eacute por conseguinte preacutevia agrave percepccedilatildeo da realidade vivida
O discernimento da estrutura psiacutequica pressupotildee por sua vez a distinccedilatildeo da
multiplicidade e da natureza dos desejos Trata-se de uma correspondecircncia biuniacutevoca em
que o pensamento discerne o desejo e o desejo se exprime num modo de vida Pensamento
desejos e modo de vida articulam-se numa relaccedilatildeo de implicaccedilotildees e consequecircncias muacutetuas
Pensamento e desejos acarretam consequecircncias inevitaacuteveis sobre o gecircnero de vida de modo
a urdir a trama que entrelaccedila necessidade e liberdade na tecedura que compotildee o viver
Todavia os patheacutemata da alma configuram impulsos agogecircs contraacuterios (Repuacuteblica
X 604 a-b) Quando num mesmo homem em relaccedilatildeo ao mesmo elemento e ao mesmo
tempo dois impulsos contraacuterios coexistem eacute necessaacuterio que haja nele duas partes104
Os impulsos antiteacuteticos da alma determinam accedilotildees opostas e por conseguinte
implicam a diversidade de partes jaacute que efeitos opostos natildeo podem provir da mesma causa
104 Enantiacuteas degrave agogecircs gignoacutemenes en toacutei anthroacutepoi peri to auto haacutema duacuteo phamegraven em autocirci anankaicircon
eicircnai
157
(Repuacuteblica IV 439bss) Tal postulado transpotildee para a esfera do psiquismo a
impossibilidade de que haja contradiccedilatildeo numa mesma instacircncia e num mesmo instante de
princiacutepios de accedilatildeo que fazem com que a psykheacute seja uma causa (REIS M D 2000 p
114) As pulsotildees conflitantes e opostas da psykheacute indicam a necessidade de sua
complexidade
Na complexidade de princiacutepios de accedilatildeo opostos a afliccedilatildeo ou os afetos violentos
impedem a alma de discernir o melhor aquilo que haacute de bem e mal (toucirc agathoucirc te kaigrave
kakoucirc) nas dificultosas sobrecargas (en taicircs xymphoraicircs) que sobrevecircm ao homem A
tristeza e a afliccedilatildeo uma vez dominantes fazem obstaacuteculo agrave inteligecircncia dos expedientes
(touacutetoi empodograven gignoacutemenon tograve lypeicircsthai) e por essa razatildeo nenhuma das coisas humanas
merece grande reverecircncia (ouacutete ti tocircn anthropiacutenon aacutexion ograven megaacuteles spoudecircs Repuacuteblica X
604b09-c03) A natureza da psykheacute eacute determinada pela similitude com sua ocupaccedilatildeo
ordinaacuteria (Feacutedon 82a) Por isso a experiecircncia de um prazer ou pena intensos suscitam o
mal supremo a psykheacute eacute conduzida a tomar o que causa o afeto mais intenso por aquilo
que possui a maior evidecircncia e a realidade mais verdadeira enquanto ele natildeo eacute nada
(Feacutedon 83c05-08) A realidade dos sofrimentos intensos eacute ilusoacuteria e o mais belo consiste
em manter a maior quietude diante deles (maacutelista hesykhiacutean aacutegein Repuacuteblica 604b09)
No Feacutedon (99b) Platatildeo distingue duas ordens de causas (i) as causas verdadeiras e
(ii) as causas sem as quais nenhuma causa seria causa As verdadeiras causas identificam-se
com o noucircs e exigem que se postule a faculdade psiacutequica da inteligecircncia discriminadora do
melhor (beacuteltiston) A complexidade de impulsos faz da psykheacute princiacutepio de movimento e
causa
Concluamos eacute princiacutepio de movimento aquilo que se move a si
mesmo Ora natildeo eacute possiacutevel nem que ele se anule nem que comece
a existir do contraacuterio o ceacuteu inteiro a geraccedilatildeo inteira vindo ao
158
ocaso tudo isso pararia e jamais se renovaria Uma vez posto em
movimento em um ponto de partida para sua existecircncia Agora que
eacute evidente a imortalidade daquilo que eacute movido por si mesmo natildeo
se faraacute escruacutepulo de afirmar que isto eacute a essecircncia da alma e que
esta eacute sua natureza De fato todo corpo que recebe de fora seu
movimento eacute um corpo inanimado Um corpo eacute animado ao
contraacuterio por algo de dentro e que tem em si mesmo o princiacutepio
uma vez que eacute nisto que consiste a natureza da alma
Fedro 245d
A essecircncia da noccedilatildeo agrave qual corresponde o nome alma eacute ser princiacutepio de movimento
Um princiacutepio natildeo pode ser engendrado visto que sua existecircncia nesse caso derivaria de
outra coisa Tudo o que eacute engendrado eacute necessariamente engendrado sob o efeito de uma
causa pois sem a intervenccedilatildeo de uma causa nada pode ser engendrado eis a relaccedilatildeo
necessaacuteria que a noccedilatildeo de princiacutepio de movimento expressa haacute um viacutenculo infaliacutevel entre
efeito e causa (Timeu 28a) O princiacutepio eacute aquilo cuja existecircncia eacute intriacutenseca a si mesmo
(ROBIN in Fedro p 83) Nesse sentido o movimento da alma a torna causa e princiacutepio
Em Platatildeo a alma eacute ao mesmo tempo movimento impulso e causa
Somente a inteligecircncia pode regrar o acaso pois a opiniatildeo a presciecircncia
(epimeacuteleia) o noucircs a arte e a lei satildeo anteriores aos elementos da Natureza (Leis X 892b)
A questatildeo do melhor (beacuteltiston) e das escolhas pressupotildee a configuraccedilatildeo psiacutequica e a
economia de seus impulsos Nesta economia os desejos determinam o alvo em que
terminam Todo desejo eacute orientado e aponta para um fim
No Goacutergias Soacutecrates afirma que de todos os preparativos humanos (paraskeuaigrave)
alguns visam somente o prazer e desconhecem o melhor e o pior outros conhecem o Bem e
o mal
Eu dizia se tu te lembras que haacute certos preparativos que querem
somente atingir o prazer e se ocupam somente disto numa
ignoracircncia total do que eacute melhor ou pior Mas existem outros que
conhecem o bem e o mal Goacutergias 500a
159
A questatildeo eacutetica da melhor escolha exige o plano epistemoloacutegico da distinccedilatildeo do
Bem e do melhor O conhecimento do Bem e do mal deve fundamentar a praacutexis eacutetico-
poliacutetica
Platatildeo subordina agraves escolhas a questatildeo ldquoqual o melhor gecircnero de vida que se deve
terrdquo Escolhas pressupotildeem desejos como impulsos para a accedilatildeo Neste sentido o psiquismo
eacute causa e por isso a Filosofia deve existir como Eros como orientaccedilatildeo natural do desejo
para o melhor Somente a inteligecircncia pode discriminar diferenccedilas e discernir o melhor
somente o movimento do pensamento apanaacutegio da psykheacute configura e inteligibilidade do
Bem (DIXSAUT 2001 p 130)
A escolha do alvo que eacute o fim do desejo determina simultaneamente os valores a
potecircncia do discurso e a realidade do real A realidade eacute determinada pelo modo como se
escolhe vecirc-la Instacircncia complexa a natureza psiacutequica determina o modo de inteligibilidade
pelo qual a realidade eacute apreendida
Mas para discorrer filosoficamente acerca de instacircncias que natildeo podem ser
justificadas logicamente Platatildeo emprega o registro da narrativa miacutetica As noccedilotildees
multiacutevocas que compotildeem a realidade e natildeo possuem justificaccedilatildeo loacutegica exigem a piacutestis
como consolidaccedilatildeo
42 ndash Mito e psykhḗ
Da ordem da mousikeacute os mitos platocircnicos esboccedilam mediante um pensar por
imagens um modelo de visualizaccedilatildeo de realidades inverificaacuteveis e satildeo endereccedilados aos
patheacutemata com a finalidade de consolidar uma crenccedila No Feacutedon (77e-78a) a encantaccedilatildeo
miacutetica (epoideacute) eacute reclamada como meio de afastar o medo crucial da morte O medo eacute um
iacutendice um signo de reconhecimento de que o corpo se manteacutem preponderante sobre o
160
pensamento (Feacutedon 68c) Do medo derivam as duacutevidas e as hesitaccedilotildees que paralisam as
accedilotildees humanas e impedem a atividade filosoacutefica
A encantaccedilatildeo miacutetica possui simultaneamente (i) a funccedilatildeo pedagoacutegica de esclarecer
e de propiciar a crenccedila e (ii) a funccedilatildeo epistemoloacutegica de engendrar noccedilotildees que natildeo possuem
referentes verificaacuteveis (NUNES SOBRINHO 2007 p 186 ss) Ademais como toda
estrutura musical a estrutura miacutetica implica ressonacircncias psiacutequicas haacute uma homologia
estrutural entre muacutesica mito e o psiquismo105
Os mitos platocircnicos fornecem modelos exemplares para o comportamento humano e
constituem um referencial que confere sentido e orientaccedilatildeo para as accedilotildees A estrutura
miacutetica possui uma homologia estrutural multiacutevoca e profunda com a estrutura do
psiquismo com a estrutura poliacutetica e com a estrutura de determinaccedilatildeo das realidades
Aleacutem disso a estrutura imageacutetica do mito suscita a partir de imagens familiares
visiacuteveis a inferecircncia de estruturas inevidentes106
Assim como o Ser estaacute para o devir
assim tambeacutem a verdade estaacute para a crenccedila afirma Timeu de Locri (Timeu 29c) A analogia
se estende para o plano das relaccedilotildees assim como se pode inferir o inteligiacutevel a partir de
relaccedilotildees invariantes observadas no devir assim tambeacutem se pode inferir a verdade a partir
das imagens que lhes servem de postulados
Narrativas miacuteticas filosoacuteficas possuem a pretensatildeo de tornar comunicaacutevel uma
realidade complexa Quando a complexidade eacute excessiva para ser abarcada pela
inteligecircncia o mito faz ver Os grandes mitos de julgamento operam a transposiccedilatildeo de
105 hoacutes philosophiacuteas megraven ouses megiacutestes mousikeacutes emoucirc degrave toucircto praacutettontos (Feacutedon 61a03) A Filosofia eacute a
mais alta muacutesica inextricaacutevel do pensamento puro (phroacutenesis) e da aspiraccedilatildeo agraves realidades mais verdadeiras
No Timeu a alma participa da razatildeo da harmonia e do nuacutemero o que faz com que possa engendrar o melhor
dos seres que sempre satildeo autegrave degrave aoacuteratos meacuten logismoucirc degrave meteacutekhousa kaigrave harmonias pykheacute tocircn noetocircn aeiacute
te oacutenton hypograve toucirc ariacutestou ariacuteste genomeacutene tocircn genetheacutenton (37e06-a02) 106 With regard to nature and task of demiurge one must note that the invisible is inferred from the visible
and the incorporeal from the bodily (OLYMPIODORO 1998 p 290)
161
imagens familiares visualizaacuteveis para uma teia de relaccedilotildees invisiacuteveis que satildeo fundamentais
para a unificaccedilatildeo da experiecircncia humana muacuteltipla com uma cosmologia107
Como falar filosoficamente daquilo que eacute inverificaacutevel como a alma e a morte A
significaccedilatildeo aportada pelo mito filosoacutefico indica a possibilidade de transposiccedilatildeo de um
registro de realidade para outro de modo a se consolidar o primado e a inscriccedilatildeo da
inteligecircncia naquilo que eacute destituiacutedo de ordem (akosmiacutea) ou de regras naquilo que eacute
desregrado (akolasiacutea) Como diria Dixsaut toda ontologia eacute miacutetica e todo mito pode servir
como justificativa ontoloacutegica (DIXSAUT 2001 p 130) Por essa razatildeo quando a
argumentaccedilatildeo chega ao impasse e ao limite para natildeo se cair na misologia (Feacutedon 89d ss)
eacute preciso contar com a perspectiva dos discursos divinos para se afrontar o risco (kiacutendynos)
da travessia da vida (Feacutedon 85d) Para se evitar a misantropia eacute preciso compreender que a
bondade e a maldade completas satildeo raras e as misturas satildeo muitas108
Para se evitar a
misologia eacute preciso empregar todo o ardor em fazer o discurso parecer verdadeiro natildeo
para os que ouvem mas tatildeo somente para si mesmo (Feacutedon 89e-90a)
Como o plano da vida e do devir eacute o plano da mistura (metaxyacute) eacute preciso identificar
aquilo que no real soacute pode ser justificado miticamente Eis aiacute o belo risco da Filosofia
crer que a alma eacute imortal no pacircs kroacutenos eis o risco que deve correr aquele que crecirc que eacute
assim Pois este risco eacute belo (Feacutedon 114d)
107 Segundo Leacutevi-Strauss realidades demasiado complexas exigem para sua inteligibilidade uma reduccedilatildeo a
relaccedilotildees compreensiacuteveis mediante a busca de invariantes em suas relaccedilotildees internas As relaccedilotildees internas de
certo niacutevel de realidade satildeo suscetiacuteveis de aparecer a outros niacuteveis Nesse sentido eacute possiacutevel analisar no acircmbito do psiquismo relaccedilotildees que satildeo observadas na Natureza Os mitos possuem a funccedilatildeo de apresentar
mediante suas relaccedilotildees internas a inscriccedilatildeo de ordem numa aparente desordem A inscriccedilatildeo de ordem naquilo
que se apresenta caoacutetico implica precisamente a funccedilatildeo psiacutequica por excelecircncia e consolida a proacutepria noccedilatildeo
de significado O que significa significar Segundo Leacutevi-Strauss a significaccedilatildeo representa a possibilidade de
traduccedilatildeo ou transposiccedilatildeo de um registro de realidade para outro Por essa razatildeo os mitos platocircnicos satildeo
portadores de significaccedilatildeo pois traduzem para o acircmbito imageacutetico da narrativa noccedilotildees que satildeo somente
pensaacuteveis Sua operacionalidade eacute nesse aspecto dianoieacutetica (LEacuteVI-STRAUSS 1978 p 22 ss) 108 tougraves megraven khrestougraves kaigrave ponerougraves sphoacutedra oliacutegous eicircnai hekateacuterous tougraves degrave metaxỳ pleiacutestous
162
O mito propicia a ultrapassagem da condiccedilatildeo temporal e da ignoracircncia (apaideusiacutea)
que constituem o quinhatildeo de todo ser que se identifica a si mesmo e ao Real com sua
proacutepria situaccedilatildeo particular
43 - ER O DECRETO DE LAacuteQUESIS
A questatildeo da escolha do melhor gecircnero de vida eacute apresentada no mito de Er como
risco inerente agrave mistura em que consiste o breve instante que vai do nascimento ateacute a morte
O breve tempo que separa a infacircncia da velhice nada eacute em comparaccedilatildeo com a eternidade
A correta valoraccedilatildeo deve levar ser posta na perspectiva da totalidade do tempo paacutes kroacutenos
Que pode haver de grande em um intervalo que tempo tatildeo restrito Pois todo o intervalo
que separa a infacircncia da velhice eacute muito pouco em comparaccedilatildeo com a eternidade
(Repuacuteblica X 608c) Um ser imortal natildeo deve dedicar tanto esforccedilo por um tempo tatildeo curto
e negligenciar a eternidade109
A oposiccedilatildeo entre tempo da vida e a totalidade do tempo
indica a necessidade de uma re-valoraccedilatildeo dos valores humanos na perspectiva de um
paradigma atemporal
O espetaacuteculo narrado pelo panfiacutelio Er evoca uma estrutura coacutesmica tripartite as
almas encontram-se num prado (leimoacuten) lugar democircnico toacutepon tinaacute daimoacutenion
(Repuacuteblica X 614c) que media a regiatildeo superior do ceacuteu e a inferior da terra
Todo lugar nos mitos platocircnicos toda geografia e cosmologia do invisiacutevel
concernem ou agrave estrutura psiacutequica ou dizem respeito agrave estruturaccedilatildeo de planos de realidade
diversos A triparticcedilatildeo refere-se ao mesmo tempo agrave condiccedilatildeo psiacutequica e a estruturas de
109
Mas aquele de pensamento superior que contempla a totalidade do tempo e a totalidade do ser supotildees que
eacute capaz de ter em grande opiniatildeo a vida humana
bdquo´Hi oucircn hypaacuterkhei dianoiacuteai megalopreacutepeia kaigrave theoriacutea pantograves megraven khroacutenou paacuteses degrave ousiacuteas hoicircon te oiacuteei
touacutetoi mega ti dokecircin eicircnai tograven antroacutepinon biacuteon
Repuacuteblica VI 486a 09-10
163
realidades Natildeo eacute outra a razatildeo pela qual os tiranos como Ardieu satildeo arrastados e jogados
no Taacutertaro ndash imagem do caos turbulento Suas almas satildeo caoacuteticas e por si mesmas suscitam
a imagem da realidade que se lhes assemelha Por outro lado O Feacutedon apresenta uma
estrutura fisiograacutefica tripartite (109b-110a) que indica planos de realidade com
determinaccedilotildees variadas Haacute uma ldquoverdadeira terrardquo invisiacutevel mais pura cristalina e bela do
que a cavidade na qual habitam os homens A verdadeira Terra estaacute para a nossa
ldquocavidaderdquo assim como a nossa cavidade estaacute para as profundezas marinhas110
Haacute uma
simetria de proporccedilotildees entre planos com diferenccedilas de determinaccedilatildeo
Apoacutes haver passado sete dias no prado Er deveria partir no oitavo dia e chegar a um
lugar onde se estende do alto atraveacutes de todo o ceacuteu e da terra uma luz como uma coluna111
(phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona) muito semelhante ao arco iacuteris (maacutelista teacute igraveridi prospheacutere) mas
mais brilhante e mais pura (lampoacuteteron degrave kaigrave katharoacuteteron) Esta luz era uma cadeia que
prendia o ceacuteu (xyacutendesmon toucirc ouranoucirc) tal como as cordas de uma trirreme (Repuacuteblica
616b-c)
A mediaccedilatildeo entre planos de realidade distintos eacute representada pela imagem de uma
coluna de luz que encadeia o koacutesmos A cosmologia constitui o paradigma de toda
atividade criadora porque o Koacutesmos eacute o modelo divino de todo fazer O Koacutesmos eacute poieacutesis
divina e sua estrutura serve de paradigma para todo fazer que se pretende harmonioso
ordenado e ornado numa palavra cosmicizado (ELIADE 1978) Mas como atribuir um
sentido mais preciso agrave imagem da coluna de luz
110Autegraven degrave tegraven gecircn katharagraven em katharoacute keicircsthai toacutei ouranoacute en hoipeacuter esti tagrave aacutestra hoacuten degrave aitheacutera onomaacutezein
Feacutedon 109b0708 111
Hilda Richardson (1926 p 117 ss) defende a tese de que a coluna de luz envolve circularmente as
esferas coacutesmicas e simultaneamente atravessa o eixo central que passa pela terra Tal imagem teria filiaccedilatildeo
na concepccedilatildeo pitagoacuterica de que um ciacuterculo de fogo abarca o Koacutesmos
164
No Craacutetilo (408b) o nome de Iacuteris eacute associado agrave eiacuterein dizer e por isso ela eacute
mensageira112
No Teeteto (155d) Iacuteris eacute apresentada como filha de Thauacutemas
Pois este sentimento de se espantar eacute inteiramente de algueacutem que
ama o saber Natildeo haacute outro ponto de partida para a procura do
saber aleacutem deste e aquele que disse eacute nascida de Thaumas113
natildeo
esboccedilou mal sua genealogia
(Teeteto 155d)114
Como nota Narcy115
Iacuteris eacute mensageira portadora do Leacutegein e por conseguinte
constitui uma personificaccedilatildeo do papel mediador da Filosofia A busca pela sabedoria eacute a
atividade divina mais proacutepria e a mediaccedilatildeo entre o plano da divindade e o plano humano se
expressa pela imagem do arco-iacuteris ponte entre o ceacuteu e a terra116
Universal antropoloacutegico a
imagem da coluna ou pilastra que liga planos diversos de realidade o celeste e o terrestre
indica que o espaccedilo miacutetico possui um referencial absoluto um eixo coacutesmico aacutexis mundi117
112 Homens aquele que maquinou (emeacutesato) a palavra (eiacuterein) noacutes deveriacuteamos chamaacute-lo Eireacute-mecircs e presentemente crendo haver-lhe adornado o nome o chamamos Hermecircs Em todo caso Iacuteris foi
verdadeiramente chamada assim a partir de eirein (dizer) porque ela eacute mensageira
Trad DALMIER C in PLATON Cratyle 1998 113 Espanto agrave filha do Oceano de profundo fluir
desposou Ambarina Ela pariu ligeira Iacuteris
e Harpias de belos cabelos Procela e Aliacutegera
que a paacutessaros e rajadas de vento acompanham
com asas ligeiras pois no abismo do ar se lanccedilam
(HESIacuteODO Teogonia 265-269 Trad Torrano J 2003)
De Pontos et Gegrave naquirent Phorcos Thaumas Neacutereacutee Eurybia et Cegraveto De Thaumas et Electra naquirent
Iris et les Harpyes Aellocirc et Ocypeacutetegrave puis de Phorcos et de Cegraveto les Phorcides et les Gorgones dont nous
parlerons lorsque nous en seron agrave Perseacutee (APPOLODORE I 2 10 in CARRIEgraveRE MASSONIE 1991) 114 Trad NARCY M in PLATON Theacuteeacutetegravete 1995 115 Id nt 121 p 325 116 Chantraine afirma a possibilidade de que ityacutes e iacutetea arco ciacuterculo de arco sejam derivadas de Iacuteris
(CHANTRAINE 1999 p 469) 117
Proclo (2005 200 p 149) empreende uma interpretaccedilatildeo alegoacuterica da passagem afirmando que a imagem
natildeo designa uma figura em forma de coluna mas consiste num sentido funcional de suporte firme e constante para os moacuteveis celestes A interpretaccedilatildeo alegoacuterica leva Proclo a rejeitar o pensamento de seus predecessores
segundo o qual a luz representa o eixo do mundo Embora Hilda Richardson (1926 p 115) confira um papel
estritamente poeacutetico ao mito sua interpretaccedilatildeo aventa a ausecircncia de dificuldades em correlacionar a luz e a
imagem da coluna com a noccedilatildeo matemaacutetica de um eixo coacutesmico It is hardly necessary to say that Plato quacirc
mathematician rightly conceived of the axis of the celestial sphere as na imaginary line and not as a material
body whether of light stuff or any other stuff But this is no real objection to his representing the axis
otherwise in a passage which is not scientific exposition but myth where he has a particular poetic and
imaginative purpose in view
165
que eacute o modelo exemplar que opera a mediaccedilatildeo entre o celeste e o terrestre entre o divino e
o plano do devir A noccedilatildeo de um eixo coacutesmico que vincula planos diversos eacute reforccedilada pelo
passo do Timeu
Quanto agrave terra nossa nutridora girando-a em torno do eixo que
atravessa o todo o deus a estabeleceu para ser guardiatilde e demiurga
da noite e do dia a primeira e a mais antiga das divindades
nascidas no interior do ceacuteu
Timeu 40b-c
Por que Platatildeo se vale de um rico acervo de imagens que aludem a um referencial
fora do devir e que implica uma evasatildeo do tempo humano cronoloacutegico No Feacutedon 96c-
97b Soacutecrates denuncia a perplexidade diante da tentativa de se aquilatar os particulares da
phyacutesis uns em relaccedilatildeo aos outros o que o leva a empreender o deucircteros ploucircs e empreender
a hipoacutetese das Formas No contexto do livro X da Repuacuteblica Soacutecrates aponta a contradiccedilatildeo
como condiccedilatildeo epistecircmica do devir
Os mesmos objetos parecem quebrados ou retos segundo se os
observa na aacutegua ou fora dela cocircncavos ou convexos segundo
outra ilusatildeo visual produzida pelas cores e eacute evidente que tudo isso
perturba nossa alma
Repuacuteblica X 602c
O socorro contra a ilusatildeo e a contradiccedilatildeo eacute o caacutelculo a medida e a pesagem de
modo que o que deve prevalecer eacute a faculdade da alma que lhes propicia (Repuacuteblica X
602d) O paradigma para estas operaccedilotildees da alma deve estar fora do plano do devir no
inteligiacutevel para escapar agrave contradiccedilatildeo Por essa razatildeo os mitos filosoacuteficos recorrentemente
aludem a um referencial absoluto que sirva de norma ao mesmo tempo para as accedilotildees
eacutetico-poliacuteticas e para a inteligibilidade da phyacutesis
Toda a estrutura coacutesmica representada pelo fuso da Necessidade gira nos joelhos
de Anaacutenkhe Brisson (1994 469-513) em sua anaacutelise de Anaacutenkhe vincula de maneira
166
geral a noccedilatildeo agrave causalidade e agrave explicaccedilatildeo causal118
No Timeu o princiacutepio geral da accedilatildeo
da necessidade eacute indicado no fato de que a geraccedilatildeo do Koacutesmos tem por princiacutepio uma
mistura de necessidade e razatildeo A razatildeo domina a necessidade persuadindo-a a orientar a
maior parte dos elementos do devir para o melhor O Koacutesmos eacute constituiacutedo pela vitoacuteria da
persuasatildeo sobre a necessidade configurando uma mistura
Haacute pois um elemento de resistecircncia agrave accedilatildeo ordenadora da inteligecircncia intriacutenseco agrave
constituiccedilatildeo coacutesmica Tal accedilatildeo faria da Necessidade pura uma causa errante
ontologicamente anterior ao Koacutesmos que implica a inexorabilidade da ausecircncia de
regramento e de inteligecircncia caracteriacutesticos da Khoacutera ou do meio espacial cujo movimento
eacute desarmocircnico e indeterminado A accedilatildeo da Necessidade neste plano indica o caraacuteter
randocircmico e desordenado inerente ao meio material Depois da constituiccedilatildeo do Koacutesmos
Anaacutenkhe permanece como ausecircncia de inteligecircncia resiacuteduo de resistecircncia agrave accedilatildeo de
determinaccedilatildeo ordenadora da razatildeo
No mito de Er Anaacutenkhe eacute matildee das Moiras e como tal potecircncia divina causal Na
estrutura imageacutetica apontar a causa implica em designar o genitor e a accedilatildeo de engendrar
Segundo Proclo no mito de Er Anaacutenkhe comanda o domiacutenio coacutesmico e preside o ciclo das
almas Mantenedora da ordem Anaacutenkhe vincula necessariamente os gecircneros de vida com as
118 Brisson identifica trecircs momentos distintos que caracterizam a necessidade (i) causa errante que configura
uma resistecircncia agrave accedilatildeo do Demiurgo (ii) causa coadjuvante que coopera com a razatildeo do Demiurgo e (iii)
causa segunda em relaccedilatildeo agrave alma do mundo O primeiro momento ocorre antes da modelaccedilatildeo proporcional
operada pelo Demiurgo (Timeu 56c) Trata-se da Necessidade como causa errante ou necessidade pura
anterior agrave formaccedilatildeo do Koacutesmos que se identifica com o movimento caoacutetico e ausecircncia de accedilatildeo racional No
segundo momento a Necessidade passa a cooperar com a razatildeo mediante a persuasatildeo e se torna causa coadjuvante Trata-se da razatildeo persuadindo a Necessidade Todavia nem a necessidade nem a razatildeo
desaparecem apoacutes a constituiccedilatildeo do Koacutesmos Sua influecircncia continua a se exercer em um terceiro estaacutegio o
demiurgo se retira e seus ajudantes terminam seu trabalho e a accedilatildeo da razatildeo se perpetua A razatildeo se manteacutem
no Koacutesmos atraveacutes de sua alma O seu corpo por outro lado eacute submetido agrave lei de necessidade que dirige a
geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo Essa lei implica uma cadeia causal infaliacutevel consequumlecircncia da figura da relaccedilatildeo e do
movimento proacuteprio de cada elemento A necessidade se torna uma causa segunda submetida agrave alma do
mundo de modo que a mistura entre razatildeo e necessidade eacute constitutiva do universo
167
escolhas e a necessidade inelutaacutevel de que cada alma seja ligada agrave vida corporal (Repuacuteblica
X 617e) Como potecircncia causal e matildee das Moiras Anaacutenkhe no contexto do mito de Er
representa a geraccedilatildeo da lei inflexiacutevel de retribuiccedilatildeo e implica a transferecircncia do estatuto
divino do noacutemos para as distribuidoras das sortes
Ela eacute a potecircncia regedora da ordem coacutesmica da manutenccedilatildeo de todas as coisas e do
lugar proacuteprio para cada elemento da phyacutesis e para as almas Sua accedilatildeo abarca a composiccedilatildeo
total do Koacutesmos e como afirma Proclo (que assimila Anaacutenkhe a Theacutemis) seu domiacutenio
soberano sobre todas as coisas no mundo implica uma ordem inevitaacutevel e uma guarda sem
remissatildeo
Potecircncia divina primordial a accedilatildeo de Anaacutenkhe alude ao fato de que a Repuacuteblica
coacutesmica jamais eacute subvertida e que o universo eacute guardado por meio de estatutos
indissoluacuteveis Ela eacute o garante da causalidade primordial e preside a ordem inerente ao
koacutesmos e arranjo dos seres vivos Atraveacutes das Moiras Anaacutenkhe preside todos os
movimentos celestes e os movimentos que configuram as accedilotildees praacuteticas Sua imagem
personifica a infalibilidade dos viacutenculos de arranjo harmocircnico que regem a phyacutesis e da
necessidade ineludiacutevel que vincula as escolhas e os gecircneros de vida com a condiccedilatildeo e a
natureza das almas Mas Anaacutenkhe implica tambeacutem a tyacutekhe como elemento fortuito
inelutaacutevel no Koacutesmos e inalienaacutevel agraves escolhas e agrave mistura dos paradigmas de vida
As Moiras satildeo as filhas de Anaacutenkhe Suas accedilotildees remetem para uma potecircncia
unificadora e uma causaccedilatildeo uacutenica Isso significa que haacute um viacutenculo causal que abarca
simultaneamente as conexotildees fiacutesicas e a tecedura dos destinos As Moiras satildeo mediadoras
entre os movimentos inelutaacuteveis dos ciacuterculos celestiais O fuso que liga as esferas celestes
mediante uma luz em linha reta como coluna phoacutes euthyacute hoicircon kiacuteona e sua accedilatildeo tanto
168
sobre as esferas como sobre os lotes de tipos de vida indica uma triparticcedilatildeo coacutesmica da
causalidade
Essa triparticcedilatildeo indica domiacutenios de causalidade diversos que satildeo abarcados por uma
causalidade universal e unificadora Causantes e causados diferem pelos traccedilos uno e
muacuteltiplo universal e particular inteligiacutevel e devir A unificaccedilatildeo eacute operada no domiacutenio da
causalidade inteligiacutevel Nenhum domiacutenio causal escapa a Anaacutenkhe As Moirai satildeo as
repartidoras das porccedilotildees relativas a cada ser porque elas mesmas satildeo partiacutecipes do domiacutenio
causal primordial de Anaacutenkhe
Em nome de Laacutequesis a filha da Necessidade o profeta proclama que a necessidade
eacute de viver mas a escolha cabe ao gecircnero de vida e esta escolha introduz taacutexis e noacutemos na
necessidade Guardiatilde do passado Laacutequesis eacute autora do decreto pois o passado eacute
determinante da configuraccedilatildeo presente e por isso mais compreensivo numa perspectiva
causal
Na distribuiccedilatildeo das vidas haacute uma mixoacuterdia de uma miriacuteade de elementos
miscigenados segundo a sorte e nos mais variados graus possiacuteveis (Repuacuteblica X 618b)
Mas eacute possiacutevel escolher a melhor vida em funccedilatildeo de um caacutelculo que permite o
discernimento das consequecircncias de cada uma destas misturas e de seus componentes
(Repuacuteblica X 618c-d) O mito de Er tal como ocorre no Feacutedon alude a um risco a um
perigo (Repuacuteblica X 618b) o de escolher mal um gecircnero de vida sem avaliar as
consequecircncias
O perigo tal como no Feacutedon indica a necessidade da encantaccedilatildeo da persuasatildeo que
mova os afetos e suscite a crenccedila de que haacute algo que remanesce apoacutes a morte de que haacute
algo para aleacutem da evidecircncia apontada pelo senso da maioria do fato bruto do apetite e de
que todo valor temporal deriva do amor agrave riqueza do amor ao poder e do amor ao prazer A
169
filosofia natildeo constitui garantia absoluta para a felicidade haacute um elemento fortuito
contingente inextrincaacutevel da tyacutekhe implicada por Anaacutenkhe eacute preciso que a sorte natildeo
designe os uacuteltimos lugares na hora da escolha As maacutes escolhas satildeo feitas por aqueles que
natildeo foram suficientemente treinados nos sofrimentos (aacutete poacutenon agymnaacutestous) Platatildeo
confere no mito de Er um valor positivo ao sofrimento como se fora um treinamento
Segundo Dixsaut (2001 p 177) para bem viver natildeo basta pensar e ter prazer na
atividade de pensar Ao pensamento leve eacute preciso acrescentar a forccedila de encaminhar
para o alto o lote de fardo pesado de desgraccedila e de infelicidade que eacute o lote de toda vida
jaacute que toda vida eacute uma mistura
Natildeo haacute vida sem mistura de alegria e dor felicidade e sofrimento Tudo ser vivo
tem seu lote misturado de felicidade e dores E no entanto a ascensatildeo da alma para o alto
pressupotildee um paacutethos o Eacuteros filosoacutefico
No Goacutergias (507e-508) Soacutecrates lembra um saacutebio que afirma que o ceacuteu a terra os
deuses e os homens satildeo vinculados por philiacutea119
respeito agrave kosmiacutea agrave sophrosyacutene e agrave
justiccedila e por essa razatildeo eles satildeo chamados Koacutesmos e natildeo akosmiacutea e akolasiacutea Todos os
planos de realidade satildeo mantidos juntos por philiacutea Haacute uma lei que cinge o universo uma
119 Canto afirma que a menccedilatildeo agrave philiacutea eacute uma referecircncia a Empeacutedocles em funccedilatildeo da importacircncia atribuiacuteda agrave
amizade como princiacutepio coacutesmico (M Canto in PLATON 1993 nt 189 p 347) Dodds por outro lado
observa que natildeo haacute nada que implique o fato de Platatildeo ter Empeacutedocles necessariamente em mente sobretudo
porque a doutrina da ldquoigualdade geomeacutetricardquo natildeo seria empedocleana A koinoiacutea indica a comunhatildeo condiccedilatildeo
necessaacuteria para a philiacutea ambos princiacutepios necessaacuterios para o governo tanto do Koacutesmos como das relaccedilotildees
poliacuteticas e pessoais Tais noccedilotildees satildeo firmemente aceitas como heranccedila pitagoacuterica Os pitagoacutericos teriam sido
os primeiros a chamar o universo Koacutesmos e certamente foram os primeiros a correlacionaacute-lo com leis
matemaacuteticas regradoras (E R Dodds in PLATO 1990 p 337)
Irwin por sua vez foca sua anaacutelise na explicitaccedilatildeo argumentativa da tese de que a comunhatildeo e a amizade satildeo preacute-condiccedilotildees para a virtude e distingue alguns problemas suscitados pelo argumento Soacutecrates argumenta se
A eacute amigo de B entatildeo deve haver comunhatildeo entre A e B Se B eacute intemperante entatildeo B natildeo pode ter
comunhatildeo e por conseguinte amizade com A Segundo Irwin a intemperanccedila de B natildeo implica
necessariamente sua incapacidade de ter amizade com A e tampouco a falta de amizade de A implica um
prejuiacutezo necessaacuterio para B (Irwin in PLATO 2004 nt 507e p 225) A pontualidade da anaacutelise
argumentativa nesse caso deixa na sombra a primazia fundamental estabelecida nas inuacutemeras passagens
correlatas que sugerem a homologia estrutural entre regramento cosmoloacutegico poliacutetico e psiacutequico A oposiccedilatildeo
entre kosmiacutea e akosmiacutea eacute congruente agrave oposiccedilatildeo entre sophrosyacutene e pleonexiacutea
170
lei que alude a um paacutethos e que se harmoniza com o regramento geomeacutetrico do Koacutesmos
Paacutethos e regramento matemaacutetico constituem um arranjo harmocircnico
Este arranjo eacute reafirmado no Timeu a modelaccedilatildeo do Koacutesmos manifesta um acordo
resultante da proporccedilatildeo geomeacutetrica e as relaccedilotildees instauradas por esta proporccedilatildeo lhe
conferem philiacutea de modo que tornado idecircntico a si mesmo ele natildeo pode ser dissolvido a
natildeo ser por aquele que estabeleceu seus viacutenculos (Timeu 32c) A menccedilatildeo agrave philiacutea indica
que os patheacutemata juntamente com relaccedilotildees geomeacutetricas invariantes satildeo constitutivos de
uma cosmogonia A inteligecircncia eacute indissociaacutevel dos desejos o inteligiacutevel indissociaacutevel da
inteligecircncia Os mitos filosoacuteficos possuem esse eixo invariante cuja distinccedilatildeo primordial
consiste no estabelecimento do primado da inteligecircncia como forccedila ordenadora e regradora
que suscita a unificaccedilatildeo de planos opostos e diacutespares o eacutetico-poliacutetico com o cosmoloacutegico o
fiacutesico com o psicoloacutegico a Natureza com a Lei
Mas inteligecircncia e as escolhas exigem prudecircncia e coragem para que se evite a
precipitaccedilatildeo A precipitaccedilatildeo eacute incompatiacutevel com o discernimento prudente propiciado pela
Filosofia Os sofrimentos satildeo ao mesmo tempo resultado da justa retribuiccedilatildeo a faltas
pregressas e uma exigecircncia paidecircutica trata-se de um exerciacutecio que faculta a maior
capacidade e o maior discernimento nas escolhas Como os sofrimentos satildeo uma partilha
comum de todas as almas todos os seres tecircm de passar por eles Eles fazem parte da
Necessidade Anaacutenkhe elemento intriacutenseco ao Koacutesmos e por isso satildeo agentes de
desenvolvimento Por constituiacuterem uma funccedilatildeo epistemoloacutegica os sofrimentos permitem
que as escolhas natildeo sejam precipitadas (Repuacuteblica X 619d)
Mesmo diante do desfavor da tyacutekhe aquele que se dedica ao estudo da Filosofia tem
mais chances segundo o que se diz em relaccedilatildeo ao Hades de viver mais feliz nesta vida e de
retornar atraveacutes da rota celeste (Repuacuteblica X 619e) Mas para isso eacute preciso vencer o
171
Grande Combate meacutegas agoacuten que se trata de se tornar bom ou mau e natildeo se deixar
arrastar pela gloacuteria pela riqueza e esquecer a justiccedila e a virtude
Disse tambeacutem grande eacute o combate oacute amigo Glauco um combate
maior do que se pensa o que se trata de tornar-se bom ou mau
Natildeo eacute preciso deixar-se arrastar nem pela gloacuteria nem pela riqueza
nem por nenhuma dignidade nem pela poesia mesma e
negligenciar a justiccedila e as outras virtudes120
Repuacuteblica X 608b 04-08
O grande combate consiste em escolher o genuiacuteno valor entre as coisas e saber que
os sofrimentos do tempo presente satildeo derrisoacuterios diante da totalidade do tempo e natildeo valem
muita coisa nem satildeo algo terriacutevel (Goacutergias 527d) O zecircnite da exortaccedilatildeo filosoacutefica consiste
em procurar contrariamente ao combate no qual todos se engajam o precircmio do mais belo
combate que existe121
a potecircncia (dyacutenamis) da alma cuja beleza eacute proporcional agrave gravidade
do mal a ser combatido122
A Filosofia propicia a phroacutenesis que permite a distinccedilatildeo e a hierarquizaccedilatildeo de todos
os valores que se referem agrave vida e ao conhecimento Os males satildeo frequentemente
associados agrave dor sensiacutevel e aos afetos A Filosofia como gecircnero de vida virtuoso permite
viver a vida de maior valor e sair vitorioso do grande combate Todavia haacute sempre um
elemento de incerteza que remanesce e haacute a grandeza do risco Somente a encantaccedilatildeo
miacutetica e seu efeito crucial de afastar o medo permitem superar o fardo da mistura em que
consistem todos os lotes de vida Eacute preciso a crenccedila como condiccedilatildeo que suscita a coragem
para vencer a mistura de dores e prazeres
120 Meacutegas gaacuter eacutephen ho agoacuten oacute phiacutele Glauacutekon meacutegas oukh hoacutesos dokeicirc tograve khrestograven egrave kakograven geneacutesesthai
hoste ouacutete timecirci epartheacutenta ouacutete khreacutemasin ouacutete arkhecirci oudemiacirci oudeacute ge poietikecirci aacutexion amelecircsai
dikaiosyacutenes te kaigrave tecircs aacutelles aretecircis 121 kaigrave tograven agoacutena toucircton hograven egoacute phemi anti pantoacuten toacuten enthaacutede agoacutenon eicircnai
(Goacutergias 527e03-04) 122 hoacutes hekaacutestou kakoucirc meacutegethos peacutephyken houacutetoacute kaigrave kaacutellos toucirc dynatocircn eicircnai heacutekasta boetheicircn kaigrave aiskhyacutene
toucirc meacute
(Goacutergias 509c03-04)
172
A necessidade da vida implica a necessidade da mistura e a necessidade da
pluralidade de afetos Mas nem a dor nem a virtude possuem deacutespota Cabe a cada um ter
sophrosyacutene sobre os afetos proacuteprios que acompanham cada lote de dor e sensaccedilotildees A alma
discerne a realidade segundo a proacutepria constituiccedilatildeo de seus afetos Esta eacute grande
significaccedilatildeo da narrativa do deus marinho Glauco A exposiccedilatildeo continuada ao ambiente das
profundezas marinhas resultou na identificaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de Glauco ao ambiente do seu
viver A incrustaccedilatildeo de algas conchas pedregulhos e a accedilatildeo das vagas acabaram por
desfigurar sua natureza primitiva ateacute que ele se tornasse mais semelhante a uma fera
Analogamente os males que se incrustam na alma acabam por desfiguraacute-la desumanizaacute-la
ateacute que se torne irreconheciacutevel na aparecircncia bestial (therioacute) que resulta da identificaccedilatildeo
com o ambiente do seu viver (Repuacuteblica X 611c-612a)
A alma pura e saacutebia discerne a realidade de modo diferente da alma impura A
noccedilatildeo de felicidade muda conforme a natureza psiacutequica A alma dotada de phroacutenesis
encontraraacute a felicidade no pensamento elevado na virtude na obra bela e ateacute no sofrimento
contingente que ela vecirc como aacuteskesis As aspiraccedilotildees humanas ligadas ao devir perturbam e
obscurecem o pensamento o que por sua vez traz uma proporccedilatildeo de desventuras
equivalente (Repuacuteblica X 619c a escolha do tirano)
Para quebrar os viacutenculos que prendem a psykheacute aos apetites eacute preciso a excisatildeo
ciruacutergica do sofrimento Os afetos engendrados pelo sofrimento desde que postos na
perspectiva da totalidade do tempo predispotildeem a inteligecircncia a apreender realidades natildeo
vistas e natildeo percebidas
Na medida em que se obscurece a realidade do devir abre-se a realidade do
pensamento purificado O filoacutesofo eacute aquele que a tudo tendo sofrido pode voltar-se para as
realidades mais verdadeiras Ele eacute o coroamento de um itineraacuterio de sofrimentos Em meio
173
agrave desordem dos modelos de vida ele pode como afirma Dixsaut (2001 p 178) inscrever
ordem no decreto e hierarquizar os modos de vida mediante a articulaccedilatildeo da inteligecircncia
com a Necessidade Por essa razatildeo o filoacutesofo pode converter o aparente caos da
multiplicidade em uma inteligecircncia segundo o paradigma da ordenaccedilatildeo coacutesmica
Nos grandes mitos de julgamento a inexorabilidade da justa retribuiccedilatildeo da praacutexis se
conjuga com a causalidade de maneira que responsabilidade e causalidade coacutesmica
infaliacutevel sejam aspectos diversos de uma mesma kosmiacutea
174
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
1Goacutergias
GORGIAS Elogio de Helena Traduccedilatildeo de Daniela Paulinelli Belo Horizonte Anaacutegnosis
2009 Disponivel em
httpanagnosisufmgblogspotcom200910elogio-de-helena-gorgiashtml Acesso em
10032010
GORGIAS ΓΟΡΓΙΟΥ ΕΛΕΝΗΣ ΕΓΚΩΜΙΟΝ Disponiacutevel em
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics82-B11 acesso em 10032010
2 Aristoacuteteles
ARISTOacuteTELES Oacuterganon Traduccedilatildeo e notas por Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2005
3 Antifonte
87 B 44 [cfr 99 B 118 S] PAP OXYRH XI n 1364 ed Hunt Frammento A Disponiacutevel
httppresocraticsdaphnetorgtextsPresocratics87-B Acesso em 02052010
4 Isoacutecrates
ISOCRATES Discourses Translate by George Norlin Harvard The Loeb Classical
Library 2000
5 Heroacutedoto
HERODOTE Histoire Traduction par Larcher Paris Charpantier 1850 Disponiacutevel em
httpgallicabnffrark12148bpt6k203223nr=herodotelangPT acesso em 03052010 4
6 Hesiacuteodo
HESIOD Theogony Works and Days Testimonia Edited and translated by Glenn W
Most London Harvard University Press 2006
HESIacuteODO Os Trabalhos e os Dias Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Mary
Camargo Neves Lafer Satildeo Paulo Ed Iluminuras 2006
_________ Teogonia Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e comentaacuterios por Jaa Torrano Satildeo Paulo Ed
Iluminuras 2003
7 Homero
HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo por Haroldo de Campos Satildeo Paulo Ed Mandarim 2001
________ Odisseacuteia Traduccedilatildeo por Carlos Alberto Nunes Rio de Janeiro Ediouro 2002
8 Platatildeo
Ediccedilotildees e traduccedilotildees
Obras completas PLATON Œuvres Complegravetes Paris Les Belles Lettres 1983-2003
Obras selecionadas
PLATON Gorgias Œuvres Complegravetes Trad par Alfred Croiset Paris Les Belles Lettres
2003
________________ Translated with introduction and commentary by E R Dodds
Oxford Clarendon Press 2002 A
________________ Traduction par Monique Canto Paris Ed Flammarion 1993
________________ Translated with notes by Terence Irwin Oxford Clarendon Press
1979
Collection GF Flammarion
PLATON Pheacutedon Traduction introduction et notes par Monique Dixsaut 1991
________ Cratyle Traduction introduction et notes par Catherine Dalimier 1998
________ Ion Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 2001
________ Gorgias Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
175
________ Le Banquet Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Le Politique Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2003
________ Les Lois Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2005
________ Meacutenon Traduction introduction et notes par Monique Canto-Sperber 1993
________ Parmeacutenide Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2001
________ Phegravedre Traduction introduction et notes par Luc Brisson 2000
________ Philegravebe Traduction introduction et notes par Jean-Franccedilois Pradeau 2002
________ Protagoras Traduction introduction et notes par Freacutederique Idelfonse 1997
________ La Reacutepublique Traduction introduction et notes par Geoorges Leroux 2004
________ Le Sophiste Traduction introduction et notes par Nestor Cordero 1993
________ Theacuteeacutetegravete Traduction introduction et notes par Michel Narcy 1995
________ Timeacutee Critias Traduction introduction et notes par Luc Brissson 2001
9 Obras modernas
BEALL E F Hesiods Prometheus and Development in Myth Journal of the History of
Ideas 52 3 1991 p 355-371 BELFIORE E Elenchus Epode and Magic Socrates as Silenus Phoenix 34 1980 p128-
137
BENSEN CAIN R Shame and Ambiguity in Plato‟s Gorgias Philosophy and Rhetoric
41 3 2008 p 212-237
BENARDETE S Socrates‟s Second Sailing in Plato‟s Republic Chicago Chicago
University Press 1989
_______________ The Retoric of Morality and Philosophy Chicago Chicago University
Press 2009
BERRYMAN Sylvia Ancient Automata and Mechanical Explanation Phronesis
XLVIII4 p 344-369 2003
BLICKMAN Daniel R Styx and the Justice of Zeus in Hesiod‟s ldquoTheogonyrdquo Phoenix
41 4 p 341-355 1987
BOYS-STONES G R HAUBOLD J H Plato and Hesiod Oxford Oxford University
Press 2010
BRISSON Luc Leituras de Platatildeo Porto Alegre Ed PUCRS 2003
BURKERT Walter Ancient Mystery Cults London Harvard University Press 2001A
________________ Creation of Sacred London Harvard University Press 2001B
________________ Homo Necans Paris Les Belles Lettres 2005
________________ Lore and Science in Ancient Pythagoreanism London Harvard
University Press 1972
________________ Religiatildeo Grega na Eacutepoca Claacutessica e Arcaica Lisboa Fundaccedilatildeo
Kalouste Gulbenkian 1993
________________ Structure and History in Greek Mythology and Ritual Berkeley
University California Press 1992
CLAY J S Hesiod‟s Koacutesmos Cambridge Cambridge University Press 2009
CAIRNS D AIDOS The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek
Literature New York Oxford University Press 1993
CARRIEacuteRE J-C MASSONIE B La Bibliotegraveque d‟Apollodore Paris Annales litteacuteraires
de l‟Universiteacute Besanccedilon 1991
CASADIO G JOHNSTON P A Mystic Cults in Magna Graecia Austin University of
Texas Press 2009
176
CARRATELLI P G Les lamelles d‟or orphiques Paris Les Belles Lettres 2003
CONACHER D J Prometheus as Founder of the Arts Roman and Byzantine Studies 18
3 1977
CORNFORD F M Was the Ionian Philosophy Scientific The Journal of Hellenic
Studies 62 p 1-7 1942
COSMOPOULOS M Greek Mysteries London Routledge 2003
CROCKET Andy Gorgias Encomium of Helen Violent Rhetoric or Radical Feminism
Rethoric Review 1994 p 71-90
DETIENNE Marcel VERNANT Jean Pierre Les Ruses de L‟Intelligence La Mḗtis des
Grecs Paris Flammarion 1974
DELATTE Armand Eacutetudes Sur La Litteacuterature Pyithagoricienne Genegraveve Slaktines
Reprints 1999
DEMOS Marian Callicles‟ Quotation of Pindar in the Gorgias Harvard Studies in
Classical Philology 1994 p 85-107
DEWINCKLEAR D Philosophie et Initiation dans l‟Œuvre de Platon Revue de
Philosophie Ancienne Bruxelles Eacuted Ousia 1 2010 p 29 - 65
DIXSAUT Monique Le Naturel Philosophe Paris Vrin 2001
DODDS E R Euripides the Irracionalist The Classical Review 1929 p 97-104
DORTER K The Transformation of Plato‟s Republic Lanham Lexington Books 2006
EDMONDS III R G Myths of the Underworld Journey Plato Aristophanes and the
bdquoOrphic‟ Gold Tablets Cambridge Cambridge University Press 2004
_________________ (Ed) ldquoOrphicrdquo Gold Tablets and Greek Religion Cambridge
Cambridge University Press 2011
____________ Os Grego e o Irracional Satildeo Paulo Escuta 2002 B
ELIADE M Forgerons et Alchimistes Paris Flammarion 1977
__________Images et symboles Paris 1980
__________ Initiation rites societies secretes Paris Folio 1959
__________ Le Sacreacute et le Profane Paris Folio 1965
__________ Mythes recircves et mystegraveres Paris 1957
EMLYN-JONES C Dramatic Structure and Cultural Context in Platos Laches The
Classical Quarterly 49 1 1999 p 123-138
ENGMANN J Cosmic Justice in Anaximander Phronesis XXXVI 1 1991 p 1-25
FARRAR C The Origins of Democratic Thinking Cambridge University Press 1988
FINLEY Moses Technical Innovation and Economic Progress in Ancient World The
Economic History Review 18 1 P 29-45 1965
FUTTER D B Shame as a Tool for Persuasion in Platos Gorgias Journal of the History
of Philosophy 47 3 2009 p 451-461
GAGARIN Michael The Torture of Slaves in Athenian Law Classical Philology 1996 1
p 1-18
GALIMBERTI Umberto Psiche e Techne ndash o homem na idade da teacutecnica Satildeo Paulo Ed
Paulus 2006
____________________ Man in the age of technology Journal of Analytical Psychology
2009 54 p 3ndash17
GERNET Louis Antthropologie de la Gregravece Antique Paris Flammarion 1982
177
4 _____________ Droit et institutions en Gregravece antique Paris Flammarion 1982
5 _____________ Recherches sur le deacuteveloppement de la penseacutee juridique en Gregravece
ancienne Paris Albin Michel 2001
GUIGNIAUT PATIN GIRARD J Poegravetes Moralistes de la Gregravece Paris Garnier 1892
Disponiacutevel em ltftpftpbnffr026N0262657_PDF_1_-1DMpdfgt
GUTHRIE W K C Os Sofistas Satildeo Paulo Paulus 1995
HAMMERTON-KELLY R Ed Violent Origens Satnford Stanford U Press 1987
HOTTOIS Gilbert Teacutecnica In CANTO-SPERBER Monique Dicionaacuterio de Eacutetica e
Filosfia Moral Satildeo Leopoldo Ed Unisinus p 665-669 2003
HUFFMAN K Philolaus of Croton Cambridge C U Press 1998
HUFFMAN K Archytas of Tarentum Cambridge C U Press 2005
IRWIN Terence Plato‟s Ethics Oxford Oxford University Press 1995
JAEGER W Paideacuteia Satildeo Paulo Martins Fontes 1995
JOURDAIN F Le Papyrus de Derveni Paris Les Belles Lettres 2003
KAHN Charles A Arte e o Pensamento de Heraacuteclito Satildeo Paulo Loyola 2009
_____________ Plato and the Socratic Dialogue Cambridge Cambridge University
Press 1996
KERFERD G B O Movimento Sofista Traduccedilatildeo por Margarida Oliva Satildeo Paulo Loyola
2003
KONSTAN D The Emotions of the Ancient Greeks Toronto University of Toronto Press
2007
____________ Shame in Ancient Greece Social Research 70 4 2003 p 1031-1060
KOSKLO George The Insufficiency of Reason in Plato‟s Gorgias The Western Political
Quarterly 4 1983 p 579-595
_______________ The Refutation of Callicles in Plato‟s bdquoGorgias‟ Greece amp Rome 1984
p 126-139
6 KRAUT R (Ed) The Cambridge Companion to Plato Cambridge Cambridge
University Press 1992
LAKS A Between Religion and Philosophy the Function of Allegory in the Derveni
Papyrus Phroacutenesis Leiden Brill XLII 2 1997 p 121-142
LAKS A MOST G W (Ed) Studies on the Derveni Papyrus Oxford Clarendon Press
1997
LAMPERT L How Philosophy Became Socratic Chicago Chicago University Press
2010
LARSON J Ancient Greek Cults Oxford Routledge 2007
LEacuteVI-STRAUSS C Antropologia Estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 2003
________________ Antroplogia Estrutural Dois Rio de Janeiro Tempo Brasileiro1993
________________ O Pensamento Selvagem Satildeo Paulo Papirus 2004
7 LEE Desmond Science Philosophy and Technology in Greco-Roman World Greece
and Rome 20 1 p 65-78 1973
8 LONG A A (Ed) The Cambridge Companion to Early Greek Philosophy
Cambridge Cambridge University Press 1999
LONGRIGG J Greek Rational Medicine London Routledge 1993
LUCAS D La philosophie antique comme soin de l‟acircme Le Portique [En ligne] 4-2007
Disponiacutevel em lt httpleportiquerevuesorgindex948htmlgt Acesso em 10 abr 2010
178
MARQUES M P Platatildeo Pensador da Diferenccedila Belo Horizonte Ed UFMG 2006
MIRECKHI P MEYER M (Ed) Magic and Ritual in the Ancient World Leiden Brill
2002
MICHELINI A N Rudeness and Irony in Plato‟s Gorgias
Classical Philology 1998 p 50-59
MIKALSON J A Greek Popular Religion in Greek Philosophy Oxford Oxford
University Press 2010
MOSSEacute C Politique et Societeacute en Gregravece Ancienne Paris Flammarion 1995
MONOSON S S Plato‟s Democratic Entanglements Princeton Princeton University
Press 2000
MORGAN K Myth and Philosophy from the Presocratics to Plato Cambridge
Cambridge University Press 2000
NUNES SOBRINHO R Platatildeo e a Imortalidade mito e argumentaccedilatildeo no Feacutedon
Uberlacircndia EDUFU 2008
OGDEN D (Ed) A Companion to Greek Religion Oxford Blackwell Publishing 2007
OLYMPIODORUS Commentary on Plato‟s Gorgias Translated by Robin Jackson
Kimon Lycos and Harold Tarrant Boston Brill 1998
OTTO W F L‟Esprit de la Religion Grecque Ancienne Paris Berg International 1995
PLOCHMANN G K ROBINSON F E A Friendly Companion to Plato‟s Gorgias
Illinois Southern Illinois University Press 1988
PRADEAU Jean-Franccedilois Platon et les formes inteligibles Paris PUF 2001
PRICE A W Mental Conflict London Routledge 1995
RACE W H Shame in Plato‟s Gorgias The Classical Journal 74 3 1979 p 197-202
RAMSEY Eric Ramsey A Hybrid Techne of the Soul Thoughts on the Relation between
Philosophy and Rhetoric in Gorgias and Phaedrus Rhetoric Review 1999 17 2 p 247-262
RAMNOUX C Heacuteraclite Paris Les Belles Lettres 1968
REINHARDT K Les mythes de Platon Paris Eacuted Gallimard 2007
REIS M D Um olhar sobre a psykheacute o logistikoacuten como condiccedilatildeo para a accedilatildeo justa nos
livros IV e IX da Repuacuteblica de Platatildeo 2000 217 p Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash
Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade Federal de Minas
Gerais 2000
REIS M D Triparticcedilatildeo e unidade da Psykheacute no Timeu e nas Leis de Platatildeo 2000 304 p
Dissertaccedilatildeo (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas Universidade
Federal de Minas Gerais 2007
RIBEIRO A M O Reverso da Filosofia o caso Goacutergias 214 p Tese (Doutorado)
- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo
Paulo 2002
ROOCHNIK David Of Art and Wisdom Pennsylvania The Pennsylvania U Press 1996
SAXONHOUSE A W Free Speech and Democracy in Ancient Athens Cambridge
Cambridge University Press 2008
SAUNDERS Trevor Penology and Eschatology in Plato‟s Timaeus and Laws The
Classical Quarterly 23 2 1973 p 232-244
SEKIMURA M Platon et la Question des Images Bruxelles Eacuted Ousia 2009
SMITH Janet E Plato‟s Use of Myth in the Education of Philosophic Man Phoenix 40
1986 p 20-34
SCHOFIELD M Plato New York Oxford University Press 2006
179
TARNOPOLSKY C H Prudes Pervets and Tyrants Plato‟s Gorgias and the politics of
shame New Jersey Princeton University Press 2010
TSANTSANOGLOU K PARAacuteSSOGLOU G KOUROMENOS T (Ed) The Derveni
Papyrus Firenze Leo S Olschki Editore 2006
VERNANT Jean Pierre Entre Mito e Poliacutetica Satildeo Paulo Edusp 2002 A
___________________ Mito e Pensamento entre os Gregos Satildeo Paulo Ed Paz e Terra
2002 B
___________________ Mito e Sociedade na Greacutecia Antiga Rio de Janeiro Ed Joseacute
Olympio 1999
___________________ Mythe et Religion en Gregravece Ancienne Paris Ed du Seuil 1987
___________________ Pandora la preniegravere femme Paris Bayard 2005
VLASTOS Gregory Plato II A collection of critical essays Indiana Notre Dame Press
1978
_________________ Equality and Justice in Early Greek Cosmology in Classical
Philology 42 3 p 156-178 1947
_________________ Socrate Ironie et Philosophie Morale Paris Aubier 1994
_________________ Was Polos Refuted The American Journal of Philology 1967 p
454-460
VOGELIN Eric The Philosophy of Existence Platos Gorgias The Review of Politics 11 4
1949 p 477-498
WARDY R Birth of Rhetoric London Routledge 1998
WARNECK P A Descent of Socrates self-knowledge and cryptic nature in the
Platonic dialogues Indiana Indiana University Press 2005
WILLIAMS B A O Shame and Necessity Berkeley University of California Press
1994
WINKELMAN M Shamanism Sta Barbara Praeger 2010
Dicionaacuterios
BAILLY Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 2000
CHANTRAINE P Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris Klincksieck
1999
LIDDELL G H SCOTT R Greek-English Lexicon Oxford Oxford University Press
1997
Instrumentos de Pesquisa
LEXICON I Plato ed Roberto Radice Ilaria Ramelli Emmanuele Vimercati Electronic
ed Roberto Bombacigno Milano Biblia 2003
DAPHNET Digital Archives of Philosophical texts on the NET Disponiacutevel em
httpwwwdaphnetorgindex_frhtml