Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Economia
Desenvolvimento Socioeconômico da China
Alunas: Beatriz Ferrari, Fabianna Bacil e Larissa Losanoff
Novos Caminhos da Proteção Social Chinesa
1 Introdução
A China é o país mais populoso do mundo, com 1,36 bilhão de habitantes, o que
configura quase um quinto da população mundial. É a segunda maior economia do
mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, tendo registrado uma taxa anual média de
crescimento de 9,8% nas últimas três décadas. Em 2009, apesar da grande crise
econômica internacional, a China obteve uma taxa de crescimento de 8.7% e superou
pela primeira vez o PIB per capita dos Estados Unidos (NBS, 2010). O crescimento
econômico chinês se destaca não apenas pela velocidade acelerada em que ocorre, mas
também por ser alcançado a partir de um modelo singular, denominado "socialismo de
mercado". Esta nação apresenta diversas características culturais, econômicas e políticas
únicas, o que a torna um país extremamente interessante para ser objeto de estudo de
políticas públicas e seu impacto social.
Gráfico1: O Crescimento do PIB Chinês
O desenvolvimento da China, apesar de ter retirado milhões da situação de
extrema pobreza, tem sido acompanhado pelo aumento da desigualdade social, ainda
mais acentuada na comparação entre os trabalhadores rurais e urbanos, uma vez que a
política de desenvolvimento chinesa enfocou majoritariamente a economia urbana e
seus benefícios sociais são fortemente separados por região. A desigualdade crescente,
que acarreta diversos problemas e movimentos sociais, explicitou a necessidade da
revisão das políticas sociais, o que perpassa diversas questões, como, por exemplo, os
investimentos em educação, política de proteção ao trabalho, política voltada
diretamente ao trabalhador migrante e salário mínimo (Medeiros, 2008).
Para Wang (1997), a emergência de múltiplas crises sociais foi resultado do
avanço da modernização, pautada apenas na eficiência e no avanço do mercado de
organização, tendo gerado o aumento da desigualdade social e obstáculos à
democratização política. O estudo e a discussão das mudanças nas políticas sociais
chinesas é portanto de suma importância para o melhor debate acerca da questão da
modernização no país. Seguindo tal raciocínio, Juwei (2010) aponta que o
desenvolvimento do Sistema de Proteção Social chinês é o próximo passo no avanço do
plano de modernização do Partido Comunista Chinês (PCC). A escolha desse objetivo
precisa ser entendida em seu contexto plural, analisando as questões política, econômica
e social recentes.
O esforço para montar e expandir um Sistema de Proteção Social adaptado às
peculiaridades do país e que consiga suprir as necessidades de seus habitantes é um
grande desafio ao PCC. Neste sentido, torna-se interessante o estudo da construção de
tal sistema. Assim, o objetivo do presente trabalho é analisar tal construção a partir da
análise do modelo existente anteriormente, do contexto que gerou os impulsos para sua
revisão e modificação, o estudo do sistema estabelecido atualmente, como se dá seu
funcionamento, gargalos e perspectivas futuras.
2 Antecedente histórico
2.1 Primórdios da proteção social na China: Período Maoísta
Com a vitória do movimento comunista e criação da República Popular da China
em 1949, iniciou-se a implantação de uma economia socialista no país. Sob a liderança
de Mao Tsé-Tung, a China realizou uma transformação econômica estrutural, passando
a ser um país industrializado, embora tenha como peculiaridade a simultânea não
urbanização. Assim, a política de Mao foi responsável por elevar os indicadores sociais
(saúde, alfabetização, alimentação) básicos do país, garantindo ainda via forte controle
de migração a baixa desigualdade entre campo e cidade.
O primeiro plano quinquenal (1952-1956) visava o estímulo ao investimento, de
forma a alcançar o desenvolvimento econômico. Tal plano obteve resultados e os
investimentos, com ampla predominância dos investimentos nacionais, passaram de
10% do PIB em 1952 para 36,5% em 1978. Houve ainda a preocupação de impedir a
centralização deste processo, permitindo uma industrialização bem dividida
territorialmente. Conforme abordado, esta industrialização não foi acompanhada pela
urbanização: a população rural em 1950 consistia em 88,8% da população, passando
para 85,6% em 1982, resultado do forte controle migratório. O hukou, registro que
mostra a regionalidade de seu detentor, era um dos instrumentos para tal, além da
condicionalidade do acesso às cotas de alimento às comunas de origem da população
rural. Nas cidades, a distribuição de alimentos se dava a partir de cupons, também
especificados pela naturalidade regional. Assim, já se colocava um grande entrave aos
movimentos internos de migração (Nogueira, 2011). Por conseguinte, a concessão e
abrangência dos benefícios sociais era – e ainda hoje permanece sendo – muito
condicionada à região à qual o trabalhador relacionava-se via hukou, havendo grandes
diferenças entre o campo, onde a proteção se dava via comunas rurais, e as áreas
urbanas, em que havia o danwei.
2.1.1 Comunas Rurais
Conforme afirma Nogueira (2011), o período maoísta pregava a premência do
campo, dando-se prioridade ao desenvolvimento agrário. Estabeleceu-se a eliminação
da propriedade, o que levou à redistribuição da terra e consequente redução da
desigualdade; e a criação do sistema de comunas rurais. As comunas rurais consistiam
em unidades autônomas de produção rural, cujo objetivo era consistir em unidades
autossuficientes. Elas eram o instrumento utilizado para suprir as necessidades da
população da região em que se localizava, devendo ser capaz de fornecer alimentos,
serviços e produtos industriais (a partir da produção de indústrias de pequena escala).
Desta forma, era o sistema de comunas rurais era o que provinha a "proteção
social" aos trabalhadores rurais no período maoísta, provendo segurança alimentar,
serviços médicos e educação pública a mais de 80% da população chinesa, o que
garantiu a melhoria dos indicadores sociais durante essas décadas. Entretanto, é preciso
ressaltar que tais proteções sociais não eram completas ou muito eficientes, uma vez que
a pouca integração entre tais unidades limitava a abrangência das respectivas produções
e dos serviços oferecidos.
O sistema de comunas também era um entrave ao crescimento, uma vez que a
valorização da autossuficiência minava a formação de um sistema integrado que se
completasse e viabilizasse a maior diversificação da produção, que era muito limitada
neste período. A produtividade agrícola estagnou, o que teve resultados desastrosos. Em
1959 eclodiu na China o que ficou conhecido como "A Grande Fome", que perduraria
até 1961 e ocasionaria a morte de parcela relevante da população. Este episódio resultou
da combinação de desastres naturais, como inundações, com decisões políticas errôneas
tomadas na época.
2.1.2 Danwei
O danwei consiste em uma unidade de trabalho estatal que provêm serviços de
proteção social de forma a suprir as necessidades básicas de seus trabalhadores.
Resumidamente, o danwei resultava da política maoísta de pleno emprego e proteção
social nas cidades e garantia à China a peculiaridade de ter baixas taxas de desigualdade
urbanas, em oposição às taxas registradas na região rural (Nogueira, 2011).
Conforme explicado por Qing Lai, Yu Xie e Xiaogang Wu (2009), os
acadêmicos chineses divergem quanto aos primórdios do sistema de danwei: alguns,
como Lu e Perry, creditam sua origem ao movimento comunista da China ou à cultura
corporativista do período republicano. Outros, entretanto, analisam o danwei como
existente desde o período imperial, sendo atualmente a "encarnação moderna" do
sistema burocrático de então, no sentido de que, assim como outrora o papel de
intermediário entre imperador e população era representado pela burocracia estatal, na
China maoísta o danwei intermediava as relações entre governo central e povo. Desta
forma, muitos dos elementos morais, políticos e econômicos formadores do danwei pré
1978 podiam ser encontrados no Império, quando o desempenho dos burocratas era
avaliado pelo critério de eficiência na provisão de bem estar à população. Nylan (1996)
afirma que: "The ideal official was someone considered to be a true 'father and mother'
of the people" (Nylan in Lai, Xie e Wu, 2009).
Antes das reformas de 1978, o danwei abrangia praticamente todas as
necessidades dos trabalhadores urbanos, sendo comparável aos Estados de bem estar
social europeus mais desenvolvidos. Praticamente todos os empregados das cidades
eram organizados como membros de um danwei, que tinham múltiplas funções
econômicas, sociais e políticas, englobando desde o suprimento das necessidades
materiais básicas ao provimento de serviços, fornecimento de status, oportunidades de
crescimento na carreira e mobilidade social. Os trabalhadores e suas famílias eram
fortemente dependentes do danwei para a provisão de recursos materiais, fenômeno este
que passou a ser denominado organized dependency.
Os danweis, entretanto, não eram uniformes. Neste período, os salários dos
trabalhadores eram fixados pelo governo, que os estabelecia de acordo com os critérios
de tempo de serviço, status e posição administrativa. Assim, as unidades de trabalho não
tinham muita liberdade para recompensar em dinheiro seus empregados. Desta forma, a
desigualdade entre danweis se manifestava não na forma de salários monetários, mas
sim em termos dos benefícios oferecidos. Aqueles mais próximos do governo (as
agências estatais, por exemplo), tinham prioridade na obtenção de recursos do governo,
conseguindo mais casas e cupons subsidiados. Por conseguinte, quanto mais alto o
danwei estivesse na hierarquia administrativa estatal, mais poder de barganha ele tinha
com os planejadores centrais, logo mais recursos materiais esta unidade detinha para
prover bens e serviços aos seus trabalhadores.
Assim, a China maoísta apresentava elementos paradoxais. Embora o sistema de
comunas tenha conseguido avanços, a ênfase extrema à independência e
autossuficiência de cada uma levou ao fomento de uma estrutura econômica celular
caracterizada pela baixa especialização de cada unidade e consequente ineficiência.
Houve a estagnação da produtividade agrícola (embora a renda do campo tenha
continuado a crescer), enquanto o aumento da produtividade nas indústrias não se
traduziu em um aumento similar nos salários reais dos trabalhadores urbanos. Desta
forma, foi criado um gargalo no crescimento chinês e houve um aumento da
dependência externa.
Resumidamente, o período maoísta promoveu a redução da desigualdade na
China, via eliminação da renda da terra e industrialização nacional, além de ter
conseguido alcançar a melhoria dos indicadores básicos de bem estar. Os problemas
econômicos, entretanto, significaram a piora das condições de vida e desequilíbrio entre
o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento agrícola.
2.2 Transição e desmantelamento
Em 1966 houve a Revolução Cultural (1966-76), que abriu um vácuo de poder
significativo na estrutura do Partido após o expurgo de diversas lideranças. Com a
morte da chamada “velha guarda” do PCC na segunda década de 1970 e do próprio Mao
em 1976, houve a mudança não apenas da liderança do partido, mas também a política
econômica adotada, que se diferenciou muito de sua anterior. No período maoísta, a
ênfase econômica era dada à agricultura e, apesar de todos os problemas deste período,
os trabalhadores rurais, que representavam a maior parte da população, contavam com
um sistema de apoio social, tendo acesso à educação e saúde. Após 1978, quando houve
a transição e uma revisão das políticas do mesmo, o sistema de assistência existente até
então foi se desintegrando gradualmente. Esta alteração do modelo de crescimento,
passando para um no qual a igualdade social foi relegada ao segundo plano, explica-se
pela situação econômica difícil na qual a China se encontrava em 1978, o que tornava
premente a necessidade de reformas. Assim, o crescimento econômico consistiu na
prioridade nacional, sendo a direção na qual todos os esforços do governo se
concentraram, sendo iniciada a transição para uma economia socialista de mercado.
Houve, então, a mudança de enfoque: se antes, para Mao, o essencial era o setor
rural, Deng Xiaoping, e a nova guarda do PCC acreditavam que o crescimento
econômico precisava ser liderado pela ciência, tecnologia e desenvolvimento das
indústrias. O slogan deste período, não por acaso, era das “quatro modernizações”,
abarcando a agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa nacional.
Neste contexto, a modernização da agricultura teve grande relevância no sentido
de aumentar sua produtividade. Essa política teve um grande sucesso, sendo responsável
por uma impressionante redução da pobreza, de modo que a população que vivia na
pobreza caiu de 53% para 8% entre 1981 e 2001 (Chen et al., 2006). Nos últimos 30
anos, essa redução foi equivalente à saída da pobreza de cerca de 500 milhões de
pessoas.
Entretanto, após essa primeira fase a ênfase foi dada à indústria, por meio de
medidas que buscavam principalmente estimular o investimento na China. Neste
sentido, as reformas significavam uma "redução" do papel do Estado, sendo respeitada a
orientação do mercado. Novamente, tal política foi muito bem sucedida, sendo por sua
vez responsável pelo grande crescimento econômico apresentado pela China. Em
termos sociais, contudo, esta mudança significou que os moradores de áreas rurais
passaram a representar uma parcela da população deixada ainda mais à margem das
benesses que esse crescimento econômico trouxe. As reformas econômicas não
priorizavam a distribuição da renda, mas sim seu crescimento em si. A desigualdade
rural-urbana traduzia-se (e era consequência) ainda no acesso desigual aos benefícios
sociais.
Conforme abordado anteriormente, as comunas rurais eram o instrumento que
concedia certo nível de proteção social aos trabalhadores rurais durante o período
maoísta. Embora seja preciso ressaltar que tal sistema não era perfeito e que a proteção
concedida era mínima (no sentido de que as comunas eram deficientes em diversos
aspectos), a população dessas regiões estava assistida (Medeiros, 2011).
A partir das reformas do final da década de 1970 e começo da década de 1980, o
sistema de comunas foi gradualmente desmantelado e substituído pelo sistema de
produção agrícola familiar. No novo modelo, a terra, cuja propriedade era estatal e
coletiva, era dividida pelo governo local entre as famílias da região, que ganhavam o
direito de produzir e construir nela por um período determinado de tempo, angariando
ainda maior independência na decisão de produção. Com a política de preços adotada
no início da modernização do campo, as famílias que batiam sua cota de produção
podiam vender seu excedente no mercado agrícola ou ao governo em condições
vantajosas. Por conseguinte, inicialmente a perda da proteção social foi menos sentida
graças ao aumento da renda. No entanto, gradualmente parcela maior desta renda passou
precisar ser utilizada para bancar os serviços antes garantidos, comprometendo o bem
estar dessas famílias, o que acarretou a emergência de manifestações.
Nas cidades, entretanto, ainda vigorava o sistema de danwei. Com o início das
reformas, o papel do danwei foi modificado, mas não chegou a ser reduzido
propriamente. Com a maior influência das orientações de mercado e a introdução de
empresas privadas e joit ventures, alguns serviços deixaram de ser oferecidos ou foram
limitados, como a provisão de casas e alimentos subsidiados. O danwei como um todo
deixou de ser tão abrangente, mesmo no referente a empresas e órgãos estatais, o que se
insere na lógica de maior controle orçamentário do governo.
No entanto, o danwei manteve um papel social muito relevante, tendo
permanecido sua influência na determinação da estratificação social urbana. O papel do
Estado, mesmo tendo sido relativamente reduzido, se manteve forte e os interesses
governamentais e empresariais andaram lado a lado. Assim, mesmo com a introdução
de agentes econômicos privados e estrangeiros (através das joint ventures), que se
expandiram rapidamente durante as reformas e representavam novas oportunidades aos
trabalhadores urbanos, o sistema de danwei foi mantido. Ao contrário do que ocorreu
em outros locais, os empregadores urbanos na China optaram por não reduzir ao
mínimo os custos trabalhistas pela redução dos benefícios, o que seguiria a lógica de
maximização de lucro e equilíbrio de mercado, de forma que os trabalhadores urbanos
continuaram a ser fortemente afetados pelas condições financeiras de seus danweis. Por
causa desta configuração, mesmo as unidades de trabalho privadas deste período são
denominadas de danwei, uma vez que elas mantiveram a concessão de benefícios aos
seus trabalhadores.
Com a reforma, foi concedida mais autonomia às unidades de trabalho estatais
individuais, logo, aos próprios danweis. O maior poder de decisão permitiu que uma
parcela maior do excedente produzido nas unidades estatais fosse transferida na forma
de benefícios aos trabalhadores. Uma forma utilizada para ampliar os benefícios era
através da possibilidade de criação de subsidiárias para gerar renda: era permitido que
as fábricas alugassem espaços estivessem inativos e começassem ali algum tipo de
negócio (como restaurantes e lojas, por exemplo), as chamadas "indústrias terciárias"
(negócios cuja posse era do danwei) ou san chan. Os lucros gerados por este meio,
embora se utilizassem se recursos materiais estatais, não eram remetidos ao governo,
sendo retidos pelas unidades.
O danwei, mais do que a unidade produtiva concreta, passou a ser uma
instituição, reproduzida na economia urbana como um todo, abrangendo o setor privado
e público, alcançando ainda algumas indústrias instaladas em vilas rurais. Novamente,
os danweis não eram uniformes: normalmente as firmas privadas priorizavam a
redistribuição de renda via aumentos de salários, enquanto os danweis estatais se
baseavam mais na concessão de serviços, além da divergência quanto à disponibilidade
de benefícios a serem distribuídos (Lai, Xie e Wu, 2009).
O PCC identificava no danwei uma oportunidade positiva de controle social;
como consequência, as fábricas funcionavam como o centro da formação e da
organização da comunidade nos sentidos social e cultural. A fonte de organização e
provisão de serviços básicos era baseada inteiramente no trabalho (Lu & Jerry, 1997).
Assim, mesmo modificado, o danwei permanceu um importante instrumento na
proteção social da China. Todavia, o danwei valia apenas para os moradores urbanos,
conforme abordado anteriormente. Nas regiões rurais, a "proteção social" se dava
através do uso da terra, que garantia subsistência básica, e da organização das
cooperativas coletivas, através das quais os agricultores contavam com um atendimento
de saúde em clínicas rurais. Isto resultou em um aumento da desigualdade entre as áreas
urbanas e as áreas rurais, uma vez que os moradores urbanos usufruíam de benefícios
bem superiores àqueles oferecidos aos residentes de áreas rurais.
Tal sistema de danwei, contudo, mostrou-se insustentável ao levar grandes SOEs
(State-owned Enterprises) à falência. Isso pode ser explicado pela fragmentação
excessiva do sistema, no qual cada empresa provia serviços aos seus empregados,
fazendo com que a provisão fosse ineficiente; além do peso econômico que os
benefícios significavam, principalmente para as empresas estatais, uma vez que o
danwei preconizava a distribuição de benefícios e não a maximização de lucros.
O final da década de 1980 foi marcada por problemas de ordens distintas:
econômicos (com destaque à inflação que o país apresentava), sociais e políticos, que
culminavam em uma crise de representatividade do PCC e na resposta em forma de
forte repressão via força por parte do partido1. Entendia-se que era premente a
necessidade de novas reformas econômicas que guiassem a China ao socialismo de
mercado e ao desenvolvimento desejado de forma a superar este momento de
instabilidade. Neste período houve ainda uma revisão de conceitos adotados no período
maoísta, com destaque à valorização do igualitarismo, característica do governo de
Mao, o qual foi marcado pela baixa desigualdade urbano rural, apesar dos problemas
econômicos que ocorreram.
A década de 1990 foi marcada por importantes reformas que objetivavam
transformar a economia chinesa em uma economia de socialismo de mercado. Dentre
essas reformas, destaca-se o processo de privatização, no qual o Estado chinês buscou
manter sua atuação em áreas estratégicas (por exemplo, energia, siderurgia.
aeroespacial, infraestrutura e militar) e privatizar as indústrias estatais (SOEs) e
coletivas (TVEs) dos demais setores. O resultado foi uma concentração de renda
acelerada, agravada ainda pelo modelo de privatização adotado em diversos casos,
denominado insider privatization, em que a venda era feita para os gerentes de suas
respectivas fábricas, sendo uma base para a geração de grandes fortunas. Outra
consequência foi o início do desmonte do danwei (que era garantido via empresa, sendo
que muitas foram privatizadas ou à falência), o que se inclui na lógica de revisão da
valorização ao igualitarismo.
O que o Estado chinês desejava era a formatação de um mercado de trabalho
cuja alocação de recursos fosse mais eficiente, contudo o danwei e a distribuição de
benefícios atrelada a ele era um obstáculo a mobilidade de trabalho necessária. Desta
forma, uma das mudanças mais importantes da reforma foi a quebra da ligação entre a
unidade de trabalho e a concessão de benefícios. Por exemplo, o setor de habitação foi
privatizado, cessando a concessão de casas subsidiadas que havia anteriormente no
danwei. O seguro de saúde e as pensões, também concedidos via danwei, foram alvo de
transformação, também sendo retirados da tutela da empresa.
1 É emblemático deste período o que ficou conhecido como "O Massacre da Praça da Paz Celestial" ou
"Massacre de 4 de junho", que encerrou uma série de protestos pacíficos que demandavam principalmente maior democracia e liberdade. No dia 4 de junho de 1989 quando um protesto pacífico, composto majoritariamente de intelectuais e estudantes foi reprimido com tanques e o exército, resultando em mortes (as estimativas variam entre 2.000 e 5.000 mortos) e muitos feridos (entre7.000 e 10.000, segundo a Cruz Vermelha). Fonte: <http://www.dw.de/1989-massacre-na-pra%C3%A7a-da-paz-celestial/a-567775 > Acesso em: 15 de junho de 2015.
A discussão do desmonte do danwei gerou muita insegurança entre os
trabalhadores urbanos, mas também uma forte resistência pela população. Em um certo
sentido, o danwei continha um elemento cultural e ideológico, pois presumia a ideia de
que a comunidade era responsável pelo "cuidado" com aquele trabalhador, no sentido de
garantir salário, bem estar e controle social. Assim, a possibilidade de esfacelamento
descontentou a população também por causa disso; a sociedade chinesa apresentou
resistência à adoção de um sistema trabalhista mais individualista.
Medeiros (2008) afirma que o grande crescimento chinês, baseado fortemente
nos investimentos público e privado, apesar de acompanhados por um processo de
queda da pobreza e mobilização social ascendente, resultou também no grande aumento
da concentração de renda. Este modelo de expansão econômica através de investimentos
e comércio favoreceu a acumulação privada por parte de capitalistas e trabalhadores de
maior qualificação do ambiente urbano, em detrimento dos trabalhadores assalariados
de menor qualificação, migrantes e do ambiente rural. Assim, esse crescimento
econômico foi acompanhado pela crescente desigualdade social, sendo caracterizado
por ser um desenvolvimento com “víeis” industrial, conforme enfatizado por Arjan de
Haan (2013). O mesmo autor aponta ainda que diversas áreas foram negligenciadas,
como a saúde, por exemplo. A atuação governamental objetivava fortemente o
crescimento, mantendo-se muito controlado os gastos na área social.
A necessidade de mudanças do sistema de proteção social chinês foi sentida
principalmente nas últimas duas décadas. Um dos sinais foi o alarmante aumento do
índice de Gini2, conforme demonstrado nos gráficos abaixo, que demonstram ainda a
desigualdade urbana-rural, impulsionada pelos distintos tratamentos dados a essas áreas,
conforme abordado anteriormente.
2 Índice de Gini: cálculo usado para medir a desigualdade social. O coeficiente varia de 0 a 1, sendo o 0
correspondente à completa igualdade e o 1 a completa desigualdade (http://desigualdade-social.info/indice-de-gini.html)
Gráfico 2: Coeficiente de Gini na área urbana e na área rural da China (1980-1999)
Fonte: The Economist (http://www.economist.com/node/639652)
Gráfico 3: Coeficiente de Gini e o gap rural-urbano de renda
Fonte: National Bureau of Statistics (NBS) various years, China Statistical Yearbook, China Statistics
Press, Beijing.
É importante ressaltar, no entanto, que o aumento da desigualdade da
distribuição de renda expressa pelo índice de Gini resulta do aumento em escala menor
da renda do campo em relação à renda das cidades. Em outras palavras, embora a
desigualdade social tenha apresentado crescimento alarmante, houve uma grande
redução da pobreza e a qualidade de vida da população como um todo melhorou. Em
dez anos, a renda da base da população elevou em cerca de 46%, enquanto a renda dos
mais ricos cresceu 94% (Banco Mundial, 2013).
Gráfico 4: Desigualdade de Renda na China: 1981-2012
Fonte: Banco Mundial
Gráfico 5: Renda Familiar Per capita (2002 e 2007)
Fonte: Banco Mundial
O que o aumento da desigualdade de fato expressa é que, embora tenha havido
uma melhora geral, as benesses desse crescimento não são distribuídas de forma
igualitária, o que facilita a emergência de diversos problemas sociais. A ocorrência dos
chamados “incidentes em massa” – eles incluem greves, protestos, tumultos, entre
outros – aumentou nos últimos anos, o que demonstra insatisfação por parte da
população. Segundo o Epoch Times (2013), houve 40.000 manifestações e revoltas, de
um modo geral, em 2000; 110.000 em 2009 e 280.000 em 2010. O número de pessoas
que participam destes movimentos teria aumentado também, passando de 1,63 milhão
em 2000 para 5,72 milhões em 20093.
A insatisfação social tem potencial de gerar maior instabilidade política: por
exemplo, o movimento trabalhista, que se dá de forma espontânea, sem estar na sob o
controle do sindicato controlado pelo governo e sem uma liderança única. Além disso,
há problemas que se manifestam nas próprias cidades: migrantes saem das áreas rurais e
vão para as cidades de forma irregular, ou alterar o seu hukou, formando uma população
marginalizada e que permanece sem acesso a auxílio público (médico, escola pública,
creche, entre outros), pois o fornecimento do mesmo é atrelado à região do hukou do
cidadão, havendo uma forte separação regional no sistema de seguridade chinês. Por
fim, o sistema de saúde pública, que deixou de ser prioridade com o fim do período
maoísta, voltou a ter mais enfoque com a crise ocasionada pela epidemia de SARS em
2003.
Assim, tornou-se premente a realização de uma reforma no sistema de proteção
social da China que reduzisse esse gap e desse mais auxílio à população como um todo.
O Partido Comunista Chinês reconheceu tal necessidade e tem agido nos últimos anos
em busca de uma “sociedade harmoniosa”.
3 O processo contemporâneo de reforma do Sistema de Proteção Social
Conforme abordado, o aprofundamento da desigualdade entre classes e entre as
regiões acirrou tensões sociais, de modo que a liderança do PCC gradualmente percebeu
3 Segundo dados oficiais, no entanto, os números seriam menores: teria havido 58.000 incidentes de
massa em 2003 e 180.000 em 2010.
a existência de um Sistema de Proteção Social como necessária para sustentação de um
crescimento da economia de mercado.
Em 2010, o então Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao, afirmou que a
sociedade nacional era “desarmônica” e “insustentável”, o que explicita a mudança de
inclinação do governo do país no que concerne o sistema de proteção social. Foi
durante o governo de Hu Jintao (2003-2010), do qual Wen Jiabao foi Primeiro Ministro,
que se fortificou a tendência de revisão de prioridades em direção à questão social.
Neste período, o slogan, frase pela qual o governo vigente busca especificar sua
prioridade, foi justamente “sociedade harmoniosa”. Ainda em 2010 foi aprovada no
congresso chinês a primeira Lei Social de Segurança Nacional, resultante do processo
de profundas reformas que a China tem realizado neste aspecto (Ngok & Ringen, 2013).
Algumas das principais políticas adotadas no período para garantir o
desenvolvimento de uma sociedade harmônica via melhoria dos indicadores sociais
foram: esforço para expansão da cobertura da previdência social, com aumento das
contribuições e criação da previdência rural; políticas de redução da pobreza urbana e
rural, como eliminação da taxação sobre agricultura rural e flexibilização da entrada de
trabalhadores migrantes em áreas urbanas, que agiram sobre a estabilidade social rural,
renda dos agricultores e crescimento da agricultura; reforma no sistema de saúde, que
buscou controlar os custos dos serviços de saúde e melhorar a relação entre médicos e
pacientes; e reforma de moradia, que tentou lidar com o aumento dos preços de moradia
resultantes da bolha imobiliária (Li, 2012).
3.1 O Sistema Tributário Chinês
As mudanças políticas e econômicas se refletiram também no Sistema Tributário
chinês, que sofreu grandes mudanças no final do século XX. Na década de 1980, os
instrumentos de arrecadação tributária estavam nas mãos dos governos locais. Apesar de
a legislação fixar o controle centralizado das bases tributárias e das alíquotas, na prática
ocorria uma grande descentralização da arrecadação, que posteriormente era transferida
ao centro. Eram estabelecidos contratos entre as províncias e o governo central,
determinando quais impostos cada instância de governo arrecadaria e como seriam
partilhados os recursos.
Esse sistema possuía problemas, como a tendência de algumas províncias a
esconder receitas arrecadadas por meio da criação de tributos locais de contabilização
extra orçamentária de modo a não transferi-las ao governo central. Também implicava
no baixo esforço dos governos locais em arrecadar os tributos que deveriam ser
enviados ao governo central, o que diminuía a arrecadação tributária e impedia que o
governo central tivesse instrumentos de gestão macroeconômica em suas mãos. Ao
mesmo tempo, gerava-se um sistema tributário confuso no qual cada província possuía
seus próprios tributos, implicando em grandes custos às empresas sediadas em mais de
uma província.
Desde o ano de 1994, o Sistema Tributário chinês vem sofrendo uma reforma
gradual de modo a se adequar aos padrões internacionais de economias capitalistas e
contornar os problemas mencionados. Essa reforma de natureza tributária teve impacto
direto nas relações federativas uma vez que até tarefas típicas de governo central, como
previdência social, ficavam por conta das províncias. Desse modo, a centralização
tributária veio acompanhada de um sistema de transferências intergovernamentais.
Essas mudanças implicaram não só na criação de uma autoridade fazendária no governo
central, como também de colocar nas mãos das autoridades desse nível de governo
instrumentos para operação da política fiscal com a intenção de atingir objetivos
macroeconômicos. O objetivo macro da reforma foi à elevação da participação do
governo central na receita total de 35% para 58%.
Aliado a isso, houve o reestabelecimento dos tributos que passaram a ter novas
características: unificação da tributação sobre a renda das empresas e racionalização da
base tributária e da estrutura de alíquotas, com extinção de diversas categorias de
dedução; unificação do imposto de renda de pessoa física e simplificação dessa
legislação; redução das inúmeras alíquotas do IVA (imposto sobre o valor acrescentado)
para apenas duas; e introdução da tributação da exploração de recursos naturais.
Essa decisão de passar para as províncias competências tributárias tipicamente
do governo central é explicada pela oposição a então forte descentralização das
competências tributárias e pelo fato dos governos locais arcarem com a maior parte da
provisão de serviços públicos, precisando de renda suficiente para financiá-los.
Ainda assim, há controvérsias ligadas às reformas tributárias. A cobrança do
imposto de renda a nível local pode gerar maior facilidade de evasão e estimular guerra
fiscal entre províncias para atrair investimentos e altos custos de cumprimento das
obrigações tributárias a empresas. Pode-se utilizar o mesmo argumento para o imposto
de renda à pessoa física, que ao ser cobrado a nível local, induz a imigração por motivos
fiscais e tem problemas administrativos de cobrança (dificuldade do fisco provincial ter
conhecimento de renda de seu residente obtida em outra província).
3.2 Imposto de renda
Piketty (2013) destaca a progressividade do imposto de renda como mecanismo
importante para redução da desigualdade de renda, além de possibilitar maior receita
para atendimento de demandas sociais por educação, saúde, previdência social e
assistência social. Isso porque se garante que a população não seja subtaxada e haja
recursos substanciais para se prover esses serviços básicos.
Antes da abertura econômica todos os trabalhadores eram trabalhadores do Estado
e pagavam um tributo implícito a partir de seus salários. Com a expansão do setor
privado gerada pelas reformas de mercado, reduziu-se a habilidade do governo de
tributar diretamente os cidadãos. Nesse contexto, seguindo o exemplo de outros países,
a China desenvolveu um sistema individual de tributação da renda que começou a ser
oficialmente realizado nos anos 1980.
É preciso ressaltar que a lei de imposto de renda permaneceu basicamente
inalterada desde a sua criação em 1980. A única mudança significativa foi a elevação do
limiar de isenção do pagamento do imposto de renda para assalariados de 9.600 yuans
por ano fiscal (1980-98) para 12.000 yuans (1999-2003) e finalmente para 14.000 yuans
a partir de 2004.
Além disso, o sistema de imposto de renda chinês trata de forma prioritária a renda
dos salários em relação à renda de capital e negócios. Enquanto os assalariados são
tributados progressivamente apenas se seu salário anual for alto o suficiente, todas as
rendas de capital e negócios são sujeitas a tributação, sem direito à isenção. As rendas
provenientes de negócios são taxadas de acordo com uma classificação de taxas
progressivas enquanto as rendas do capital são taxadas a uma taxa flat de 20%.
A primeira importante implicação desse sistema é que a elevação da taxa de isenção
para assalariados cresceu menos do que a inflação desde 1986, o que resultou em um
massivo aumento da população sujeita a tributação da renda na China. Tal fato somado
ao grande crescimento da renda média da população, faz com que o sistema de
tributação progressiva venha se tornando um importante instrumento político e
econômico na China. A tributação de renda progressiva está começando a atingir uma
parte não desprezível da população e a elevar receitas tributárias, de modo que ajuda no
financiamento da expansão da Proteção Social e relativo controle do crescimento da
desigualdade de renda. Entretanto, o potencial de desenvolvimento do sistema de
tributação de renda chinês é limitado na medida em que os assalariados nas faixas mais
altas de renda são subtaxados em relação aos não assalariados (capital e negócios) nas
faixas mais altas de renda.
4 O Sistema de Proteção Social chinês atual
4.1 Financiamento
O gasto estatal chinês é extremamente descentralizado, enquanto as receitas
governamentais são altamente centralizadas. Os governos locais contam com
aproximadamente 80% do gasto total orçamentário e tem a responsabilidade de prover
serviços públicos vitais incluindo saúde e educação básicas, sistema de pensão, seguro
desemprego, programas de habitação, infraestrutura e renda mínima de apoio.
As receitas locais disponíveis pelas transferências fiscais intergovernamentais e
o mecanismo de distribuição dos recursos dos tributos não são proporcionadas de
acordo com as responsabilidades de gasto dos governos locais. Neste contexto, os
governos das províncias tem relativo poder discricionário em determinar o montante de
recursos a ser repassado aos governos locais. Em média, essas receitas transferidas do
governo central aos governos locais financiam entre 40% e 50% dos gastos desses.
A descentralização do sistema fiscal e o descasamento nos governos locais entre
a disponibilidade de recursos e as responsabilidades de gasto social, levaram a grandes
diferenças no gasto governamental per capita em proteção social entre áreas rurais e
urbanas, províncias interiores e costeiras. É em nível local, nas jurisdições mais pobres,
em que o desequilíbrio entre recursos disponíveis e responsabilidade de provisão de
serviços públicos é mais agudo. Isso porque essas jurisdições mais pobres possuem
também menor montante de impostos arrecadados já que há poucas grandes empresas
nessas regiões para se arrecadar imposto de renda, entre outros tributos. Além disso, as
disparidades quanto ao gasto em proteção social levaram a disparidades de acesso a
esses serviços. Por exemplo, as taxas de jovens que vivem em áreas rurais e tem
diploma universitário continua muito inferior à das áreas urbanas. Pode-se ressaltar
também a “desigualdade de qualidade” nos serviços de educação, saúde e no nível de
proteção social oferecido por programas de pensão e seguro saúde. Essas disparidades
levaram a desigualdade de oportunidades de trabalho, produtividade, renda e até
capacidade de gerenciar riscos.
De modo a alavancar o crescimento e motivados pela realização de grandes
projetos, dada à proibição de governos locais pegarem crédito junto aos bancos, esses
encontraram maneiras inovadores de arrecadar recursos. Entre essas, podemos destacar
o estabelecimento de taxas especiais de direito de uso da terra, as taxas de transações no
mercado imobiliário, e outras.
Segundo Banco Mundial (2013), a geração de recursos locais não só levou a
distorções nos mercados de financiamento, como também pode ter exacerbado
desigualdades. Províncias pobres e pequenas vilas podem não ser capazes de gerar
recursos suficientes para prover serviços de qualidade enquanto outras, que apesar de
não receberem recursos suficientes via transferência do governo central e arrecadação
de tributos locais, conseguem gerar esses recursos por meio de instrumentos especiais e
pouco regulamentados.
Atualmente a China possui quatro orçamentos : general budget- compreendendo
o grosso do gasto governamental, incluindo distribuição de receitas cetro-província e
transferências; government funded-budget, que compreende recursos e gastos fora do
orçamento; state capital budget, financiado pelo pagamento de dividendos das estatais;
social securtiy fund budget. A ausência de um orçamento agregado e transparente,
dificulta a alteração da alocação agregada de recursos do governo entre programas e
setores prioritários.
4.2 Apresentação do Sistema de Proteção Social atual
O Sistema de Proteção Social Chinês tem três pilares principais: sistema de
assistência social, sistema de seguridade social e sistema de provisão de bem-estar
social.
O Sistema de Assistência Social é baseado na tradição milenar chinesa de alívio
de pobreza. Seu principal componente é a Garantia de Mínimos de Subsistência, que dá
uma transferência de renda à famílias comprovadamente abaixo do nível mínimo de
subsistência, este determinado localmente. Tem provisão e financiamento no nível local,
tendo subsídios dos governos provincial ou central quando necessário. Os cidadãos de
hukou urbano tem acesso a esse benefício desde 1999, os de hukou rural desde 2008 e
os migrantes são excluídos (Ngok et al., 2013). Ao final de 2008, eram cobertos 23,34
milhões de residentes urbanos com a garantia de 205 yuan por pessoa por mês e 43
milhões de residentes rurais com a garantia de 82 yuan por pessoa por mês (Wu Hogxin
et al., 2009).
Existem outras formas de assistência social que variam conforme o governo
local, sendo elas: alívio de pobreza emergencial, assistência a sem-teto e indigentes,
educação, saúde e moradia. Assistência médica cobre despesas médicas de pessoas, com
residência urbana ou rural, que sofram de doenças graves que as impedem de levar uma
vida normal e cujo tratamento elas não podem pagar.
O Sistema de Seguridade Social é composto pela previdência, seguro-saúde,
seguro-desemprego para trabalhadores urbanos, seguro-maternidade para trabalhadores
urbanos e seguro-invalidez para trabalhadores urbanos. A Previdência chinesa se divide
em quatro categorias, a dos trabalhadores urbanos formais com hukou urbano, a dos
demais residentes urbanos, a dos residentes rurais e trabalhadores e a dos trabalhadores
do governo ou do PCC. A idade mínima de aposentadoria é de 60 anos para homens e
entre 50 e 55 para mulheres.
Na previdência do grupo de trabalhadores urbanos formais com hukou urbano,
há a pensão básica, que é compulsória. É organizada pelo governo e portanto há partilha
de riscos através de maior social pooling. A contribuição é de 28% da folha de
pagamentos, sendo 20% por parte dos empregadores e 8% dos empregados. O tempo
mínimo de contribuição é de 15 anos, sendo a pensão igual a 15% do salário médio
local. A cada ano adicional de contribuição, a pensão aumenta em 1% do salário médio
local (Ngok et al., 2013). Ao final de 2008, 218.91 milhões de pessoas participavam do
sistema básico de pensão para trabalhadores urbanos, sendo que 53.04 milhões recebiam
o benefício, que girava em torno de 1,100 yuan por pessoa por mês (Juwei, 2010).
O acesso à pensão básica é opcional, e não obrigatória, para os residentes
urbanos desempregados, trabalhadores urbanos autônomos, migrantes, trabalhadores
informais ou de meio-período. A contribuição é integralmente individual e, portanto,
cara (Ngok et al., 2013).
A pensão de empregados do governo e do PCC não requer contribuição e é
integralmente paga pelo orçamento público. O valor do benefício é relacionado ao
último salário dos trabalhadores, podendo chegar a 90% do montante em casos de 35
anos de serviço. (Ngok et al., 2013).
A previdência rural é recente, seu projeto piloto foi lançado em 2009 e cobria
apenas 10% dos municípios no país. A contribuição é uma mistura de subsídios do
governo com contribuição individual, sendo a última dividida em cinco níveis (100
yuan, 200 yuan, 300 yuan, 400 yuan ou 500 yuan por ano). São elegíveis para o
benefício residentes rurais entre 16 e 60 anos de idade (desde que não estudantes e não
participantes de outra previdência). O valor básico médio da pensão é de 55 yuan por
pessoa por mês (Juwei, 2010).
O sistema de seguro-saúde rural começou em 2003 e ao final de 2011 já cobria
97% da população rural chinesa. É um benefício opcional que busca cobrir o custo de
tratamentos de doenças. A contribuição é feita pelos governos central e local e pelos
coletivos rurais. A contribuição individual média é de 60 yuan por ano e o benefício
médio é de 240 yuan por pessoa por ano (Ngok et al., 2013).
O seguro-desemprego é financiado por contribuições de empregados e
empregadores. Busca prover assistência financeira temporária de até 24 meses para
trabalhadores desempregados, tendo como público-alvo trabalhadores urbanos em
empresas, trabalhadores urbanos de organizações e instituições não-empresariais e,
condicionalmente, trabalhadores urbanos autônomos. Estender o benefício a
trabalhadores desempregados migrantes está sendo considerado (Ngok et al., 2013). O
valor do benefício é menor do que o salário mínimo local, mas maior do que o mínimo
de subsistência. Empregadores contribuem com 2% do salário e o empregado com 1%
(Juwei, 2010). O total de pessoas que receberam o benefício do seguro-desemprego em
2014 foi de 2.07 milhões4.
O sistema de provisão do bem-estar social é tradicionalmente de
responsabilidade dos governos locais. Também é tradicionalmente caracterizado por
forte focalização em grupos vulneráveis, como portadores de necessidades especiais,
órfãos e idosos em situação de extrema pobreza. Tais características não foram mudadas
nas reformas recentes.
4 China Statistical Bureau, China Statistical Yearbook, 2014
O avanço foi feito no sentido de fortalecer a legislação de proteção de bem-estar
e direitos de portadores de necessidades especiais, idosos e mulheres. Instituições que
disponibilizam estabelecimentos com leitos a pessoas na condição de indigentes
acomodaram 1.89 milhão de pessoas até o final do ano de 2008 (Juwei, 2010).
Moradia popular era um dos principais serviços providos pelo Estado antes da
reforma da proteção social. Os programas foram suspensos e as propriedades de
moradia popular foram privatizados em compras subsidiadas. Houve uma clara
transferência da responsabilidade da esfera pública para a esfera privada. Essa mudança
foi responsável pela criação de uma nova classe de proprietários de imóveis e pelo
aumento da desigualdade de renda e de classe.
4.3 Críticas e controvérsias
Depois dessa breve apresentação, podemos montar uma descrição do tipo de
Sistema de Proteção Social que está sendo desenvolvido atualmente na China. O acesso
da população ainda é extremamente limitado, desigual e segmentado. Como resultado, o
serviço é pouco eficiente e sofre com problemas de focalização (Ngok et al., 2013).
A grande peculiaridade do Sistema de Proteção Social chinês de ter uma divisão
entre as coberturas urbana e a rural é também um motivo pelo qual o mesmo não
consegue erradicar a desigualdade entre as áreas urbana e rural. Essa diferença de
cobertura é explicada pelo sistema de hukou e pela natureza do sistema de propriedade.
O hukou é o sistema de registro de moradia, estabelecido em 1958 em uma época de
economia planejada, que existe até os dias de hoje. Funciona como uma limitação à
migração da população entre áreas urbana e rural. Políticas e serviços sociais são
atrelados ao sistema de registro de moradia, de modo que um cidadão só tem acesso a
provisão de serviços no local onde está registrado, sendo os serviços diferentes entre as
áreas urbana e rural. A China não conseguiu, até o momento, estabelecer um sistema
que consiga conciliar as diferenças e atender às necessidades de ambas as regiões, e
provavelmente não conseguirá sem uma reforma no sistema de hukou. Calcula-se que
250 milhões de pessoas na condição de trabalhadores migrantes estejam excluídos do
sistema de Seguridade Social (Juwei, 2010).
O fato do sistema previdenciário ser organizado a nível local e não a nível
federal traz algumas importantes questões. O primeiro é mais ineficiente e mais
vulnerável a choques do que o segundo, uma vez que conta com menos contribuintes e
menor dispersão de riscos ligados a questões espaciais, como socioambientais e
socioeconômicos. Tendo em vista que a previdência é um mecanismo de seguro que
visa dispersar riscos entre os participantes, esse risco seria menor caso o sistema
previdenciário fosse organizado à nível federal. Outra questão é que a intenção do
governo central pode ser mal executada, sabotada ou ignorada pelos governos locais
devido a essa grande autonomia na prestação de serviços e benefícios e na regulação da
cobertura e dos níveis de benefícios.
A extensão da cobertura previdenciária ainda é muito baixa, um problema que se
agrava se levarmos em consideração a peculiaridade demográfica chinesa. Apenas ¼ da
população total chinesa pode contar com cobertura previdenciária. (Ngok et al., 2013).
Em 2014, 501.075 milhões de pessoas participavam do sistema básico de previdência
social, sendo a população chinesa total composta por aproximadamente 1.357 bilhão de
pessoas. Isso indica que ainda há um grande caminho a ser percorrido para que o
sistema de previdência alcance a grande maioria da população.
Outra peculiaridade chinesa é a pressão do envelhecimento da população devido
à política do filho único adotada desde 1979, ainda que essa tenha sido relaxada em
tempos mais recentes. Tal processo de envelhecimento é mais preocupante nas regiões
rurais.
É importante destacar que poucos detalhes orçamentários são disponibilizados
pelo governo chinês e pouca discussão em relação à quais seriam os setores prioritários.
Há também pouca informação em relação ao fato de se os governos gastam de acordo
de acordo com alocações orçamentárias (tirando no nível mais amplo) e fiscalização se
os gastos governamentais e programas levados a cabo geraram os resultados desejados.
Knight (Banco Mundial, 2013) aponta que são necessárias medidas de reforma
política, como a criação de uma agência anticorrupção, maior confiança nos dados
estatísticos, maior garantia de liberdade de expressão e de imprensa e o fortalecimento
da lei, tudo de modo a permitir mais voz e participação dos cidadãos chineses.
5 Conclusão
5 China Statistical Bureau, China Statistical Yearbook, 2014
Há um esforço recente do Partido Comunista Chinês em curso para montar e
expandir seu Sistema de Proteção Social. É resultante de um processo gradual de
percepção da melhoria dos índices sociais como necessária para sustentação do
crescimento e desenvolvimento econômico chinês e da estabilidade social e política. Tal
percepção foi motivado por uma insatisfação de movimentos sociais diante de um
processo de crescimento chinês pautado no aumento da desigualdade, além do
esgotamento do processo de redução da pobreza como resultado espontâneo do
crescimento econômico.
A criação do Sistema de Proteção Social em um país grande e diverso como a
China é um grande desafio. O resultado, no entanto, é ineficiente e desigual, e não busca
a universalização e uniformização do acesso.
O descolamento entre o gasto efetivo dos governos locais com habitação, saúde,
educação, seguro-desemprego e os recursos repassados pelo governo central geram
sérios prejuízos para o Sistema de Proteção Social chinês. Por essas transferências não
levarem em conta as responsabilidades de gasto dos governos locais, há dificuldade de
provisão desses serviços. Além da “desigualdade de qualidade” na provisão dos
serviços em áreas mais pobres que possuem baixa capacidade de arrecadação tributária
e portanto baixa capacidade de financiamento da proteção social em relação a áreas
mais desenvolvidas, há desigualdades regionais entre áreas costeiras e interioranas,
rurais e urbanas.
Ao se analisar as condições que motivaram o processo de mudança, assim como
a análise do Sistema de Proteção Social resultante desse esforço, chega-se à conclusão
de que o a criação desse sistema não seria um instrumento para alcançar o objetivo de
desenvolver uma economia socialista, mas uma forma de reproduzir o sistema
econômico do “socialismo” de mercado, que se utiliza de relações de produção
capitalistas, ao atenuar suas desigualdades (Ngok et al., 2013).
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