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Editoração eletrônica: E. Reuss
Capa: Petter
VIDAS DIGITAIS
SUMÁRIO
VOANDO SOBRE UM NINHO DE CHOCOBOS ....... 6
IMPACTA ................................................................... 15
PLAYER ..................................................................... 45
VERITAS VOS LIBERABIT ...................................... 60
PUZZLES ................................................................. 115
KONTINUUM .......................................................... 125
VOANDO SOBRE UM NINHO
DE CHOCOBOS
_______________
Luiz Mariano
7
Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
Era uma vez, nem duas, nem quatro, nem três
Que Urameshi ia pra escola
Imaginem só vocês
O bom menino até dava esmola.
Filho de viúvo pai
Um intelectual fracassado
Bibliotecário fã de bonsai
Era um senhor aposentado.
Treze anos tinha o menino
Muitos eram seus amigos
Era o mais pobre deles, franzino
Na rua passava muitos perigos.
Por isso, o pai rugia
De felicidade genuína
Quando acompanhada sua criança ia
Com os colegas em suas casas com piscina.
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
Jogavam, era uma festa:
De tiro, corrida, espadas
Todos eram índios na floresta
Armados com seus controles e risadas
E eram vários consoles, muitos
Tinham também computador
Circulavam os tantos assuntos
De vencedor e perdedor
Urameshi urrava na vitória
Na derrota ficava emburrado
Sempre inventava uma história
Do porque tinha sido derrotado.
Mas ninguém sabia do segredo
Tão bem guardado por Urameshi
Era sagrado esse enredo:
“Em time que ganha não se mexe.”
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
A verdade é que o menino não tinha
Nem jogo, nem controle, nem fita
Na casa dos outros fazia sua rinha
Mas na sua casa nunca teve visita
Era pobre, ele, muito pobre
Muito sagaz, de bolsa na escola
Particular, ensino de cobre
A ferro e fogo, não dava cola
Não: era um menino honesto
(com exceção nos jogos de luta!)
Com centavos ajudava com o resto
Sempre com alegria absoluta.
Mas ele gostava demais era
Dos jogos de interpretação:
Mundos, personagens, à vera
A trilha sonora, a ilusão
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
E se colocava naqueles lugares
De cabelo espetado e espada bastarda
Ou explodia tudo pelos ares
Com metralhadora no tudo ou nada
Se fantasiava de verde
No reino da criatividade
Nesses jogos matava sua sede
Brincadeira era uma meia verdade
E, brincando, inventou um jogo
Dentro da sua cabeça
Com cenário, música e até o logo
Tinha comando, é bom que não se esqueça
Televisão para quê? Se tinha o muro
Cinza, manchado e sólido
Para onde Urameshi fazia um furo
De tanto olhar, sério, tórrido
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
Contava as peripécias para os seus
Que perguntavam, “que jogo é esse?”
Ninguém tinha jogado, meu Deus!
Seria lançamento, alguém conhecesse!
Mas Urameshi era liso,
Não sabia o nome da plataforma;
Dentro de casa era só riso
Inventaria a próxima fase, de que forma?
Já dizia o pai: mentira tem perna pequena
E a curiosidade passou a ser tão grande
Que os amigos não teriam pena:
Jogariam na senzala, os da casa grande
“E agora, Urameshi? E agora?”
Descoberta a farsa, e depois?
Caçoariam dele como catapora
Como se não bastasse mal ter feijão e arroz!
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
Como explicar aquela parte
Em que o monstro conversa com o herói
Quando este adentrou na caverna, com arte
E passaram a brincar de índio e caubói?
Como explicar quando o encanador
Tomou chá com o porco espinho azul
Ou quando, num xadrez competidor
Eles riram de norte a sul?
Pediu conselho a seu velho
E tudo o que o homem pôde dizer
Foi que “a realidade não está no evangelho
Mas no quanto que você coloca o poder”
Sem entender, Urameshi se rendeu.
No dia seguinte, ao centésimo pedido
De visitar a casa do filisteu
Prometeu: iriam todos jogar. (“estou perdido!”)
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
Era um sábado (porque hoje é sábado)
E de manhã já estavam os algozes na frente
E teve quem estranhou o telhado
Ser tão de telha carente.
De dentro veio Urameshi. Inventou coragem
Conduziu os meninos ao muro
Arranjou cadeiras de folhagem
Estava ele de rosto duro.
E, apresentando à meninada
Começou a jogar com controle e tudo:
Mãos se mexendo, sem nada
Muitos já achando um absurdo.
“Vocês não estão vendo o mago?”
“Tenho que quebrar o encanto!”
“Ela está no meio do lago,”
“Ali ó, a espada do espanto!”
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Voando Sobre um Ninho de Chocobos – Luiz Mariano
“Ele só pode estar brincando”,
“Urameshi, cê tá louco?”
“Tô vendo nada, do que ele tá falando?”
“Vou é embora, daqui a pouco.”
Jorjão, o maior deles, se levantou.
Urameshi pensou: “vai me bater”
Em vez disso, o grandão apontou:
“Quero ser o segundo player!”
E juntos jogaram, passaram de fase
Até que todo mundo ria e opinava
De repente um morria, “cheguei quase!”
E a turma toda gargalhava
E foi assim, trabalhando em conjunto
Que zeraram o jogo, os meninos lobos.
Quem quiser jogar, vai o nome junto:
Voando sobre um ninho de Chocobos.
IMPACTA
_______________
Alef
Fabiano dos Santos Araújo
escuridão, os pôsteres e os recortes de
revistas sobrepostos cobriam cada
centímetro das paredes, pegando os
visitantes desprevenidos.
Lia-se os títulos de novos e velhos jogos em
alguns recortes, no pôster ao lado via-se uma arte
conceitual revelando grandes galhos de árvores
que ascendiam aos céus ultrapassando as nuvens
negras de uma tempestade que se aproximava.
Em outros, monstros, robôs ou planetas dividiam
espaço com logomarcas de empresas produtoras
de jogos.
A
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Assim era o ambiente do quarto de Juca,
este era o templo dos universos eletrônicos, que o
garoto tanto amava, e os consoles eram os altares
onde ele os venerava.
Sua fascinação era evidente, estes universos
eletrônicos ocupavam constantemente seus
sonhos e pensamentos. O seu grande sonho era
um dia poder trabalhar junto com as estrelas
deste meio, e quem sabe um dia se tornar uma
delas.
No entanto, o sonho dava sinais de que
enfraquecia. A maioria das pessoas próximas não
notou, com exceção de Alberto, um dos seus
amigos mais próximos.
Alguma coisa de errado se passava com
Juca, mas o que poderia ser?
A inteligência e perspicácia de Alberto eram
inegáveis, todos queriam estar próximos dele.
Nas avaliações escolares, quem sabe a simples
proximidade “ajudasse” os menos preparados.
Por mais inteligente que fosse, não se
vangloriava de suas capacidades, ao contrário,
estava sempre próximo dos companheiros,
disposto a ajudar quando sua intuição exigia uma
ação de sua parte. O que era o caso desta vez.
Após algumas observações e algumas
tentativas infrutíferas de obter informações
diretamente da fonte, ele se sentiu forçado a
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
buscar as informações que precisava de outra
forma. Tarefa esta que foi duplamente
recompensadora...
Em um dos intervalos na escola, ele
procurou Carol, irmã de Juca, na sua busca por
respostas.
– Oi Carol, tudo bem?
– Tudo. O que você quer? – respondeu Carol
secamente.
– Preciso falar com você.
Ela mudou a expressão, mas antes que ela
pudesse reagir, Alberto atalhou:
– Tem uma coisa muito errada com o seu
irmão... Então, podemos conversar?
Com um aceno Carol concordou e se
afastaram das amigas dela para poderem
conversar sem interrupções.
– Do que você está falando? O que está
acontecendo com o Juca?
– Você não percebeu?
– Percebi? Percebi o que?
“A situação parece mais grave do que eu
imaginava...”, pensou Alberto.
Um dos motivos da admiração de Alberto por
Carol era o fato de ela ser diferente das outras
meninas. Ela era inteligente e não se encantava
por qualquer um. Por este motivo ela o tratou
18
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
secamente, quando ele se aproximou. Ela achava
que naquele momento ele faria o que os outros
meninos faziam quando se aproximavam de uma
garota bonita.
Se ela, tão inteligente e atenta, não
percebera nada com o irmão até então, o que
poderia estar acontecendo na casa deles?
Com certeza não eram problemas com os
pais deles, poucos têm pais mais presentes do que
os deles...
Alberto continuou a falar tentando medir as
palavras para não revelar suas suspeitas reais e
com isso gerar reações que pudessem espantá-la,
antes que ele pudesse expor a situação com
calma: – Ele não parece mais o mesmo... Está
sempre quieto, meio abatido... Sei lá, até seu
olhar parece diferente.
Em resposta, ela apenas arregalou os olhos e
demonstrou uma expressão de espanto, como se
após muito tempo tivesse percebido uma
obviedade que passou por debaixo de seu nariz
como se fosse invisível.
Alberto estranhou a reação, mas conteve o
que pensava a respeito, precisava descobrir tudo o
que pudesse.
– Será que ele não está doente, Carol?
– Não, acho que não – respondeu Carol algo
perturbada. – Onde você quer chegar com isso?
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Ela fez menção de se levantar após terminar
a frase.
Alberto rapidamente agarrou seu braço para
que ela ficasse. Antes que ela pudesse reagir,
continuou: – Escute, isso pode ser algo bem sério,
não apenas uma suspeita sem fundamento. Ele
não vai lá em casa há semanas, nunca mais
ninguém ouviu ele falando sobre videogames...
– Isso deve ser apenas uma fase! Já estou
sentada te ouvindo. Quer fazer o favor de me
largar antes que eu faça um escândalo? Você não
quer isso, quer?
Ele a largou um pouco envergonhado e
continuou: – Como se o que eu te falei não fosse
estranho o suficiente, ouvi que ele anda vendendo
quase tudo o que ele tem relacionado a jogos...
– Ele comprou com o dinheiro dele. Pode
fazer o que... Ele vendeu o videogame?
– É o que parece.
– Ele não largaria o videogame por nada...
O sinal indicando o fim do intervalo tocou.
Cada um teria que seguir para sua respectiva
sala, sem que a conversa pudesse ser terminada.
Carol pegou um pedaço de papel nos bolsos,
anotou alguma coisa, despediu-se de Alberto com
um aperto de mão, deixando o papel com ele.
Alberto o abriu e leu:
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Precisamos terminar essa conversa. Espero
você em minha casa à tarde. Exatamente as três.
Nenhuma palavra a ninguém! Não quero que
pensem mal de mim. Venha preparado...
– Muito bem Sr. Alberto, não é o encontro
que você esperava. Mas é um encontro de
qualquer forma... Veja pelo lado positivo...
No horário marcado Alberto esperava no
portão da casa de Carol.
– Você é mesmo pontual – disse Carol.
– Tenho os meus motivos... Não vai me
deixar entrar?
– Me acompanhe.
Entraram na casa e seguiram até o quarto
de Juca.
– Veio preparado?
– Sim.
– Ótimo. Todos os dias por volta das duas ele
sai e só retorna depois das seis. Uns dias chega
um pouco mais cedo, outros mais tarde, mas
nunca antes disso. Como pode ver, o quarto dele
está trancado.
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
– Como entraremos? Posso saber e fazer
muitas coisas, mas, arrombar portas não é uma
delas...
– Não se preocupe com isso. Temos
problemas maiores...
– Como o que?
– Desde que éramos pequenos, o Juca tem o
costume de trancar o seu quarto quando não está
nele. Sempre que ele ficava zangado comigo, ele
pegava alguma coisa minha e escondia em seu
quarto, às vezes ele ficava tanto tempo bravo, que
até eu mesma me esquecia das coisas que
estavam com ele. Um dia descobri que havia uma
cópia da chave de cada porta da casa, com a
minha mãe, pra que fossem usadas em caso de
emergências. Eu esperei o momento certo para
que ele não notasse que eu estava visitando o
quarto dele.
– Sei.
– Mas, de uns tempos pra cá temos nos
falado pouco, eu nem me lembro da última vez em
que estive aqui. E hoje quando conversamos no
intervalo é que eu percebi isso. Até mesmo os
meus pais parecem estar estranhos. E só consegui
ver isso agora! Tentei falar com eles se não
estavam achando o meu irmão estranho, me
disseram que deveria ser apenas uma fase, que
logo passaria. Estou ficando assustada com isso.
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Alguma coisa tem que ser feita e você é o único
que pode me ajudar!
– Se acalme! Estamos sozinhos aqui? –
Alberto mal podia acreditar que pronunciara
estas palavras... Ao mesmo tempo em que ficara
eufórico, se entristeceu, pois a frase não fora dita
no sentido ou na circunstância que ele gostaria.
– Já disse, só haverá gente aqui em casa
depois das seis. Primeiro as damas – disse Carol
abrindo a porta.
– Estou morrendo de rir, piadista.
– Agora Alberto, esse é o verdadeiro
problema.
O quarto parecia, à primeira vista, estar da
mesma forma que Alberto se lembrava, com
exceção dos consoles e jogos que não ocupavam
mais as suas posições de destaque no quarto.
Carol ficou chocada ao ver o quarto sem os
consoles. Ela não esperava por isso.
– Você quer continuar?
– Sim.
– Então se acalme, pois nem mesmo
começamos.
Olhando com mais calma o quarto parecia
organizado. Juca era relativamente organizado
com suas coisas, mais do que se esperava de um
adolescente, especialmente com os videogames,
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
embora não dedicasse o mesmo cuidado com suas
outras coisas.
No entanto a organização agora parecia
excessiva, muito além do que era costume para
Juca, e ainda mais além do que seria normal para
qualquer outro adolescente. Era como se a
organização estivesse lá para desviar a vista de
alguma coisa.
A única coisa que estava levemente
bagunçada era o seu material escolar, mas ainda
assim o material não parecia estar em uso
constante, era como se vez ou outra, algum
daqueles materiais fosse revirado rapidamente
para dar a impressão que estavam sendo usados...
Aqui e ali, viam-se marcas de poeira como se
alguns pontos do quarto estivessem intocados a
meses, e recentemente tivessem sido limpos às
pressas, para que as aparências fossem mantidas.
Alberto aproximou-se do computador. Ele
estava ligado, apenas aguardando que fosse
inserida a senha.
– O que alguém que nada tem a esconder,
teria a esconder?
– O que disse, Alberto?
– Estou pensando alto... Só tentando usar a
lógica. Pense comigo, se ele tranca o seu quarto
sempre que sai, nunca suspeitou que o quarto
tivesse sido visitado por algum intruso enquanto
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
estava fora. O que ele teria a esconder, se não
existe ameaça alguma?
– Faz sentido... O problema maior é que
todos aqui em casa estiveram meio zumbis – disse
Carol, fazendo uma careta – e por isso algo
importante pode ter sido dito, mas passou
despercebido.
Alberto virou-se para Carol e olhou para o
pôster em suas costas.
– É isso!
Carol assustou-se pisando em falso num
livro, quase caindo.
– É isso o que?
– Cuidado! Você não pode tirar nada do
lugar. Entendeu? Nada!
– Você me assusta, quase me faz cair, e a
culpada ainda sou eu? E ainda tenho que levar
sermão... Eu não tirei nada do lugar, relaxe... O
que você descobriu.
– Desculpe... Vê o pôster atrás de você?
– Tem um dragão, uns bruxos e uns
zumbis... O que tem demais nisso? Os jogos não
estão repletos disso?
– Exato. Este é um pôster do Golden Dragon,
é um dos últimos jogos que me lembro dele
comentar. Era um dos jogos favoritos dele. Não vê
nada de estranho no pôster?
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
– Não... Sim! Eu vejo uma das laterais meio
dobrada.
– Isso mesmo. Ele jamais permitiria que o
pôster do seu jogo favorito fosse danificado, veja
se há alguma coisa atrás dele.
– Na parede não há nada, mas no pôster tem
uma palavra.
– Que palavra?
– Impacta, mas...
– Ótimo!
Alberto digitou a palavra dita por Carol
como senha, mas não conseguiu acesso. Com o
erro, surgiu uma mensagem de que ele teria
apenas mais duas tentativas.
– Qual era mesmo a palavra? Não deu certo.
– Como você coloca a primeira coisa que
surge como senha? Agora só temos duas chances.
– Não é a primeira vez que essa palavra
surge, ao menos pra mim. Já vi esta palavra
antes, era o nome de um grupo de jogadores em
que Juca e eu fazíamos parte. Uma época fiquei
um tempo afastado e me expulsaram. Isso já faz
um bom tempo, não sabia que ainda existisse, ou
que o Juca ainda fizesse parte dele. Até agora
tinha me esquecido dele... Tem certeza que está
escrito isso?
– Sim. É claro que eu tenho certeza, mas...
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
– Erro! Temos só mais uma chance! Mas não
faz sentido. A senha tem que ser esta!
– Será que você pode me ouvir antes que
acabem as tentativas?
– Sou todo ouvidos.
– Não está escrito impacta. Mas sim,
impaCta. Toda a palavra é escrita com letras
minúsculas, mas a letra “C” é maiúscula.
– Tem certeza disso?
– Se tivesse me ouvido da primeira vez, não
estaríamos perdendo tempo com essa coversa.
– Desculpe. Vamos lá i-m-p-a-C-t-a! Enter.
– E então?
– Veja.
– Conseguimos!
– Calma, falta uma coisa para termos acesso
as informações. Precisamos da Jynx.
– Jynx? Quem é ela? Um Pokémon?
– Sim e não. Sim é um Pokémon, mas não
falo desta Jynx, mas sim de um programa que
fará uma varredura no PC do Juca. Esse
programa vale ouro. Tive muito trabalho para
conseguir ele. É uma das coisas mais importantes
que eu consegui até hoje.
Alberto conectou um HD externo na
máquina e executou o programa Jynx. Quando o
relatório foi gerado, trouxe uma surpresa
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
desagradável. A máquina estava limpa. Nenhum
arquivo suspeito foi encontrado.
– O que alguém que nada tem a esconder,
teria a esconder?
– E agora, o que faremos?
– Nada.
– Como nada? Mal começamos e você já vai
desistir?
– Já estamos próximos das seis. Em breve
ele pode chegar. Não podemos confiar que ele vai
chegar mais tarde hoje. E ainda tem os seus pais.
O que eles diriam se nos vissem sozinhos em casa
no quarto que deveria estar trancado. Imagine o
seguinte, nós ficamos aqui um pouco mais, tempo
suficiente para descobrir alguma coisa, mas
conseguimos sair antes que Juca chegue. Ele se
senta na cadeira do PC e sente que ela está
quente. Se ele tocar no gabinete do computador,
também vai perceber que está quente, mais do
que deveria se tivesse ficado a tarde inteira no
modo de espera.
– Tem razão.
Eles seguiram até o portão, Alberto montou
em sua bicicleta, colocou o boné e saiu dizendo: –
Confie em mim. E aguarde por notícias minhas.
O coração de Carol apertou em seu peito.
Não que ela não confiasse em Alberto. Ela apenas
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
não tinha um bom pressentimento do que poderia
vir adiante.
Passado algum tempo, era Alberto que
parecia estar estranho. Estava quase sempre em
silêncio, envolto em seus pensamentos. Ele
evitava conversas com todos, estava perturbado,
evitava principalmente Juca e Carol. Esta sempre
que podia o procurava atrás de respostas, mas
sempre recebia a resposta padrão: – Fique calma!
Estou descobrindo uma porção de coisas a cada
dia, mas por enquanto não tenho nada
confirmado. Não quero te trazer desespero
desnecessário... Confie no que eu digo.
O tempo continuou passando. Dias viraram
semanas, semanas viraram meses. Faltando
apenas um dia para as férias escolares, Carol foi
até a casa de Alberto atrás de respostas.
Ele pareceu muito abatido e doente ao
atendê-la, e sequer a convidou para entrar.
– Alberto, o que está acontecendo? Pare de
me enrolar! Tudo está fora de controle! Amanha é
o último dia de aula antes das férias, nós vamos
viajar logo após a aula, mas o Juca não vai. Meus
pais permitiram que ele ficasse em casa. Eles
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
agem como zumbis se o assunto for o Juca e suas
esquisitices. Estou desesperada!
– Carol, desculpe, não estou bem...
– Não feche a porta! Esperei tempo demais
por isso. Essa pode ser a nossa última chance de
fazer alguma coisa, antes que algo realmente
sério aconteça com ele. O que acha que ele vai
fazer esse tempo todo em que estivermos fora? A
cada dia ele chega mais tarde. Isso nos dias que
ele dorme em casa. Já vi a cama dele ficar três
noites seguidas intacta.
– Carol, eu... – Alberto hesitou – Um
momento.
Minutos mais tarde, ele retornava com uma
pequena bolsa acolchoada.
– Aqui está. Isso é tudo.
– O que é isso?
– Abra a bolsa, aí dentro estão as suas
respostas. Mas tome cuidado... Pode ficar com ele.
Adeus, não me espere na escola amanhã. Estou
doente.
Alberto bateu a porta ao terminar de falar,
ele não pareceu fazer isso por mal, a presença de
Carol parecia o incomodar de alguma forma, e a
única forma de se sentir melhor era fazendo com
que ela saísse dali.
Carol foi para casa o mais rápido que pôde,
para descobrir o que havia naquela bolsa, que
30
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
estava afetando seu irmão, os seus pais e agora,
aparentemente, Alberto.
Chegando em casa ela retirou da bolsa um
HD externo muito parecido com o que Alberto
levara ao quarto de Juca meses antes. Dentro
dele a surpresa desagradável a aguardava depois
de alguns cliques.
O HD estava praticamente vazio, havia
apenas a pasta do Jynx e dentro dela os arquivos
do programa e uma pasta contendo e-mails. Era
bem estranho ele ter lhe dado o HD externo
contendo o Jynx, sendo que ele mesmo havia
falado da dificuldade que teve para consegui-lo.
Será que ele falou aquilo mesmo ou ele apenas
teria se expressado mal? De qualquer forma os
emails a aguardavam, e depois que terminasse
ela devolveria o HD para ele.
Dentro da pasta “e-mails” ela verificou
mensagem após mensagem e as horas foram se
passando. No início, eram mensagens típicas de
qualquer adolescente conversando com os amigos
sobre partidas de jogos online e outros assuntos.
Seguindo a separação que Alberto fizera nas
mensagens, o início de tudo foi com um email do
Grupo Impacta do dia 07/01/2012.
31
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
A mensagem informava que naquele ano o
Grupo Impacta passaria por uma reestruturação
e pedia que os membros do grupo não se
preocupassem com nada, pois as atividades
normais seriam mantidas. A diretoria prometia
novos eventos para o ano de 2012, e anunciava
eventos especiais ainda para o primeiro semestre
no game Golden Dragon. O primeiro deles seria
no dia 13/02/2012, em uma clareira escondida da
Floresta da Neblina, onde ocorreria o encontro
das Bruxas à meia noite. Nas semanas que se
seguiram, Carol leu dezenas de e-mails dos
membros do grupo comentando sobre o evento,
impressionados com tudo o que viram e sentiram
durante o tempo que estiveram lá. Tudo parecia
ser muito realista, muitos diziam.
Novos e-mails anunciando um evento no dia
13/04/2012 prometiam o acesso pela primeira vez
a um local proibido, conhecido como Cemitério dos
Dragões, Lar dos Zumbis. Nas mensagens que se
seguiram o entusiasmo visto nos primeiros e-
mails pareceu ter se multiplicado por dez. Mais
uma vez, os membros do grupo elogiavam a
experiência, e pareciam surpresos com o realismo
dos detalhes, as sensações e os cheiros...
Carol notava a estranheza aumentando a
medida que lia as mensagens, será que alguns
deles se drogavam antes de jogar? Juca também
32
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
demonstrava entusiasmo nas mensagens, mas em
medida bem menor do que os outros, como se para
ele faltasse alguma coisa durante a experiência.
Ela continuou lendo os e-mails entre o
Grupo Impacta e os jogadores, e logo após o
evento do dia 13/07/2012, novas mensagens
aumentavam a estranheza da situação. Nesse
evento, o Grupo Impacta anunciou o vencedor da
Prova do Aprendiz, e Carol começava a se
perguntar até que ponto era mérito tecnológico, e
até que ponto era loucura de cada um. Entre uma
descrição e outra, muitos comentários surgiam
sobre a premiação do evento. Notava-se algum
descontentamento com os jogadores escolhidos. O
fanatismo e a ansiedade cresciam a medida que a
data das mensagens avançava e as mensagens do
Grupo Impacta pararam de chegar. O desespero
era facilmente notado pelas mensagens de alguns.
No dia 06/01/2013, surgiu o primeiro e-mail
do Grupo Impacta relacionado a um novo evento
especial. Eles agradeciam pelo apoio dos membros
que fizeram o sucesso dos eventos anteriores ser
possível. Informavam que em algum momento do
ano de 2013 um novo evento ocorreria. Mais uma
vez, o Grupo entrou em um silêncio prolongado.
Em muitas mensagens era difícil não crer que
muitos deles já haviam ultrapassado a barreira
da loucura. Reclamações, súplicas, demonstrações
33
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
de amor e ódio povoavam as mensagens e
também os relatos das partidas.
O silêncio foi quebrado em 01/06/2013, data
em que um novo e-mail foi recebido anunciando
um novo evento no dia 13/09/2013. Uma onda
gigantesca de mensagens formou-se com o
anúncio do evento, e o clima hostil cada vez mais
patológico que se espalhava pelos membros do
Grupo se dissipou como num passe de mágica.
Seu irmão sempre se mostrava entusiasmado com
a possibilidade de um novo evento, ao contrário
dos outros jogadores, que demonstravam um
fanatismo quase doentio.
No início de 2014, o Grupo Impacta voltou a
se pronunciar. Uma nova Prova do Aprendiz foi
anunciada para 13/06/2014. O nível doentio das
conversar continuava alarmante durante o
período que antecedeu o evento. Seu irmão,
embora demonstrasse um comportamento normal
até a data do evento, começou a apresentar
mudanças sutis quando sua vitória foi anunciada.
Mensagem após mensagem, ele parecia ficar cada
vez mais parecido com os outros.
Os e-mails do Grupo Impacta voltaram a
aparecer no dia 31/01/2015, anunciando um novo
evento para aprendizes que ocorreria no dia
13/02/2015, na clareira Floresta da Neblina,
durante a reunião das Bruxas à meia noite. Outro
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
e-mail recebido em março anunciava um evento
para o dia 13/03/2015. Carol continuava a
observar as menções a imersão no universo do
jogo. As mensagens que se seguiram eram bem
mais explicitas em seus comentários, cada um dos
aprendizes, inclusive seu irmão, contava
características cada vez mais detalhadas das
regiões do jogo, de batalhas e situações que
segundo estes, realmente teriam vivenciado.
O cansaço tomara o controle de Carol, já era
madrugada e ela acabou adormecendo sobre a
mesa do computador.
Horas mais tarde ela despertou e ao abrir os
olhos visualizou as anotações que fizera
anteriormente, fixando-se nas datas. Ela tinha o
estranho costume de somar todos os números que
via em sequência. Vendo as datas fez o mesmo e
para a sua surpresa a maioria delas acabava com
o resultado da soma sendo o número treze.
Seguindo o padrão das datas dos eventos,
Carol buscou no calendário a data que deduzia
que seria o próximo evento. Mas já era tarde, a
sexta 13/11/2015, já havia ocorrido há duas
semanas.
Ela vasculhou os últimos e-mails da pasta
em busca de alguma pista que a colocasse à
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Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
frente, e viu um recibo de compra com alto valor
do Grupo Impacta. Era uma réplica do livro de
feitiços do jogo.
Estaria nesse livro o dinheiro da venda do
console e seus jogos? Carol pegou a chave do
quarto do irmão e correu até lá. Faltavam alguns
minutos para o amanhecer, Carol não se
importava com o horário ou se poderia ser
descoberta pelo irmão, o tempo se esgotava e ela
precisava fazer algo.
Ao se aproximar da porta o uso da chave não
foi necessário, ela estava apenas encostada. Carol
teve um mau pressentimento, mas mesmo assim
entrou no quarto. A cama permanecia intacta, as
mesmas coisas estavam nos mesmos lugares,
como da última vez que esteve lá com Alberto.
Sobre a mesa do computador havia um
grande livro com capa de couro. Ela o folheou e
página após página, encontrou textos e pequenas
notas com a letra do irmão. Eram listas de
ingredientes, instruções e impressões pessoais
sobre o uso de poções e encantamentos, além de
constantes menções a visitas aos locais do jogo
Golden Dragon.
Os textos tinham detalhes tão ricos e
verossímeis, que era difícil duvidar que não
fossem verdadeiros.
36
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Folheando mais algumas páginas chamava a
sua atenção a descrição da criação de um zumbi e
a poção do esquecimento. Além de ingredientes e
modo de preparo, haviam também comentários de
Juca sobre as dificuldades em se conseguir alguns
ingredientes, no preparo e principalmente nos
testes bem sucedidos que fizera com a sua
família. Ele relatava que ninguém suspeitava de
sua vida dupla e que, em breve, ele poderia enfim
seguir definitivamente para as terras de Golden
Dragon.
Na última anotação, Juca escreveu sobre o
que faria no dia 30/11, o último dia de aula.
Ele havia juntado tudo o que precisaria em
sua nova vida, os aprendizados dos últimos
tempos. Buscaria o que faltava para partir, a
“oferta de bom grado e a oferta própria”. Sairia
cedo com as ofertas, para purificá-las e prepará-
las para o ritual final.
Em local algum do livro, havia anotação ou
menção ao endereço ou o que seria a oferta de
bom grado.
Desesperada, revirou o quarto em busca de
respostas sem conseguir nada. Olhou para o
pôster do Golden Dragon e se lembrou da senha
anotada no verso, talvez houvesse algo mais que a
ajudasse. Ao levantar a borda solta do pôster, um
37
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
pedaço de papel caiu no chão e nele havia apenas
o logotipo do curtume de cidade.
– O que o Juca queria no curtume? Ele foi
desativado há algum tempo e...
Ela entendera, todas as noites em que ele
não retornava era para lá que ele ia. Talvez ainda
houvesse tempo, se ela fosse rápida e fria, talvez
ainda houvesse tempo.
Já era quase hora de ir para escola. Antes
que sua mãe a chamasse, aprontou-se
rapidamente enquanto seus pais tomavam café.
Despediu-se rapidamente dos pais evitando
levantar suspeitas. Levando o livro na mochila
seguiu para casa de Alberto.
Pelo caminho lembrou-se que ele estava
doente e que não iria à escola aquele dia, na
verdade, poucos seriam os que iriam naquele dia.
Na casa de Alberto, sua mãe atendeu a porta,
quando Carol tocou a campanhinha.
– Bom dia, Dona Marta.
– Bom dia, Carol.
– O Alberto está bem?
– Sim, ele não deveria estar?
– É só forma de falar... Eu gostaria de falar
com ele.
– Desculpe Carol, ele já foi para a escola.
Saiu mais cedo, hoje ele tinha que chegar mais
38
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
cedo para ajudar nos preparativos da festa de fim
de ano, sabe? A sua sala também vai fazer?
– Sim, eles vão... Mas me diga uma coisa, ele
saiu sozinho?
– Claro! Ele não tem más companhias! –
respondeu D. Marta com rispidez.
– Só mais uma coisa, a senhora já viu um
livro semelhante a este com Alberto?
– Não vi. Se me der licença tenho muitas
coisas me esperando.
No fim da conversa D. Marta estava
visivelmente irritada, tendo até batido a porta
quando terminou de falar.
A casa de Alberto ficava longe do local onde
era o curtume. Ela seguiu até lá, mesmo sem a
ajuda de Alberto, pois este era o último local a ser
verificado.
Entre uma pedalada e outra no decorrer do
trajeto ela pensava na última anotação do livro. O
que seria a oferta de bom grado e a oferta
própria? Num estalo entendeu, Alberto fora o
único a perceber a estranheza do seu irmão, e de
bom grado, se dispôs a saber o que se passava
com ele. Agora que ela havia lido os e-mails,
percebera que a pesquisa afetara Alberto de
alguma forma...
Talvez quando ele entregou o HD a ela, ele
tivesse feito o último esforço consciente na
39
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
esperança de ajudar o amigo. E a oferta própria
poderia ser o irmão, ele mesmo se ofereceria! Com
todas as forças que tinha, pedalou o mais rápido
que pôde para o curtume.
Muitas pedaladas mais tarde o mau cheiro
no ar já denunciava que ela estava próxima do
curtume. Era estranho o curtume ainda ter tanto
mau cheiro, sendo que estava fechado há tanto
tempo... Muitas coisas se passaram pela mente
dela, a maioria delas macabras. Ela fazia o que
podia para afastar os pensamentos negativos que
poderiam atrapalhar o seu raciocínio.
Carol desceu da bicicleta assim que se
aproximou da entrada do curtume. Ela se
escondeu entre algumas árvores, chamou a polícia
e não se moveu até que a viatura chegasse. Os
policiais desceram do carro e entraram no
curtume. Apenas o silêncio e o cheiro de podridão
ficaram suspensos no ar. Algum tempo depois, os
policiais saíram reclamando que haviam recebido
um trote e foram embora.
Carol ficou em um impasse, se a polícia saíra
de lá daquela forma, não havia nada naquele
local, e por isso, sua busca teria sido infrutífera.
Assim, ela deveria sair dali, pois aquele local não
teria nada a acrescentar em sua busca.
Ao mesmo tempo, algo dentro dela dizia que
ela deveria ir até lá e verificar, se a polícia saiu
40
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
de lá sem alarde, perigo não havia. Carol tocou na
mochila em suas costas e sentiu o livro. Em um
impulso de loucura seguiu ao curtume.
Caminhando pelo local, ela viu o mato
crescendo, corredores e salas vazias. Não havia
realmente nada ou ninguém para se ver.
Pouco antes de desistir, notou de onde vinha
a fonte do mau cheiro, já caminhara tanto, um
pouco mais não faria diferença antes de sair.
Ela caminhou até chegar a um grande pátio
repleto de grandes máquinas, tudo isso a céu
aberto. No centro deste pátio havia diversos
fragmentos de papel queimado sendo levados pelo
vento, junto com cinzas e fuligem.
Até então nenhum sinal de qualquer outra
coisa estranha, ou de qualquer pessoa no local.
Mais adiante, num espaço que ocupava vários
metros quadrados, alguma coisa líquida refletia a
luz do sol.
Ao se aproximar viu que era uma poça
gigantesca de um líquido vermelho que se parecia
com sangue. Ela avançou vários metros no meio
da poça e seus passos levantavam várias gotas
daquele líquido, que respingavam em suas
roupas.
Quando estava no meio da poça, olhou a sua
volta e viu vários pedaços de papel queimado,
41
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
cinzas e fuligem voavam pelo ar e pousando com
leveza no chão e no maquinário.
Carol retirou a mochila das costas e a jogou
na poça vermelha, retirou o livro dela e o agarrou
com força, abraçando-o junto ao peito. Não havia
sinal de ninguém por ali. Não havia sinal de luta
em parte alguma, além do líquido vermelho e dos
papéis, nada mais havia de incomum no local.
Uma lágrima rolou pelo seu rosto e ela caiu
de joelhos na poça vermelha, que poderia muito
bem ser o sangue do seu irmão. Ela largou o livro
de Juca no chão, que foi lentamente absorvendo o
líquido e se tingindo de vermelho.
Ela batia com força na poça com os braços
até que ficou coberta pelo líquido. Gritava e
chorava desesperada, sem demonstrar que se
consolaria em algum momento.
Carol não queria, mas ela sabia. Ela não
queria acreditar, mas ela sabia...
Epílogo
42
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
Terminava mais um dia de visita, eles se
perguntavam quando tudo começara, o que
poderia ter dado errado, se algo poderia ter sido
feito para aquilo ser evitado.
Carol era uma menina normal, como tantas
outras, mas há alguns meses parecia diferente,
fazia perguntas estranhas... Seria o cansaço por
ser o seu último ano na escola?
Perguntava vez ou outra sobre o seu irmão.
Mas como? Ela nunca teve irmão! Por que só
revelara esta falta agora e não antes? Numa
época em que algo poderia ter sido feito. Se ao
menos o filho esperado antes dela tivesse
vingado...
Pobrezinha, na véspera de nossa viagem de
férias que poderia ser um descanso para a mente
dela, chegou ao cúmulo de invadir o curtume da
família, agredir funcionários e se trancar no velho
parque fabril em reformas.
O que ela buscava por lá? Todo o teto estava
sendo trocado, naquele local só havia máquinas
obsoletas. Qual propósito haveria em se espalhar
tantos galões de tinta vermelha criando uma
enorme poça e chafurdar nela abraçada a um
velho manual farmacêutico com capa de couro,
logo após queimar várias páginas dele.
Ela gritava e esperneava desesperada na
poça de tinta vermelha, bradando a todo pulmão
43
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
que era o sangue de seu irmão Juca e do amigo
Alberto, que ela criara junto com a história do
irmão meses antes. Que eles haviam se
sacrificado para partir a um mundo medieval
dentro de um jogo e a única coisa que restara
deles era o sangue espalhado pelo piso.
E todo o plano diabólico que culminou com a
morte deles foi orquestrado pelo Grupo Impacta, o
mesmo nome do grupo responsável pelo serviço de
limpeza terceirizado no curtume.
Os pais dela saíram tristes, algo
desnorteados do sanatório, desviando da água no
corredor. Já era hora da limpeza, eles se
apressaram o mais que podiam, pois sempre que o
zelador passava perto do quarto dela, ela gritava
por socorro, mesmo estando sedada.
O simples ruído dos passos do zelador a
alertava. Quando notava sua proximidade,
gritava desesperada que aquele homem estava a
observando esperando o momento certo para
matá-la. Pois ele era um deles.
Os pais dela deram uma última olhada no
corredor antes de saírem, viram o zelador
carregando vários lençóis que pareciam ser
vermelhos ao quarto dela. Isso não lhes chamou a
atenção, eles continuaram caminhando e como
última visão do corredor puderam ver de relance
44
Impacta – Alef & Fabiano dos Santos Araújo
o que estava escrito em suas costas: Serviços
Terceirizados Grupo Impacta.
PLAYER
_______________
Fábio Guastaferro
iros! Estes estouros estão vindo do lado de
fora. Tenho certeza que são tiros. Me
aproximo da amurada da sacada do
camarote e percebo um homem de chapéu e
sobretudo passar pela enorme e decorada porta
dupla que dá acesso ao salão. Neste momento as
mesas estão praticamente vazias, as poucas
pessoas presentes assistem a banda sobre o palco
na outra extremidade do salão, ensaiando um
numero de jazz para a apresentação da noite.
T
46
Player – Fábio Guastaferro
Seria corriqueiro o fato de um homem entrar no
salão se não fosse a Thompson M- 1928 em sua
mão, pronta para atirar. Sei que chegou a hora.
Minhas mãos suam com a possibilidade de ter que
apontar o rifle e atirar naquele homem. A dúvida
e o medo me tomam quase que por completo. Será
que consigo acertá-lo daqui? E o barulho não vai
chamar atenção dos que estão do lado de fora?
Será que há outros que entraram sem eu ver? E a
banda, será que não perceberam? Eles continuam
tocando, cada vez mais alto.
Escuto o som de vozes, vozes próximas à
escada que dá acesso às sacadas. Sei que são eles.
Bem que avisaram que iriam tentar matar o Capo
em uma destas reuniões de famílias. Me distraio
com o barulho nas escadas e quando olho para
baixo o homem já sumiu. Quero correr, tenho que
correr e me esconder, pois se me avistarem eles
vão atirar, vão me acertar, vão me matar. Mas
não consigo. Minhas pernas não se movem. Não
consigo sair do lugar, sinto como se estivesse
rastejando, estou cada vez mais desesperado e a
música, a música não para de tocar, cada vez
mais alta, cada vez mais familiar...
47
Player – Fábio Guastaferro
O despertador! Estou sempre sonhando com
as músicas do meu despertador. E esse sonho
agitado deve ser por conta da casa nova, da vida
nova, de novos desafios que agora se abrem para
mim.
Meu primeiro dia nesta casa, neste bairro,
neste mundo. Tem tanta coisa para fazer, tanta
coisa para conhecer, para viver. Mas vou começar
do básico, atendendo as minhas necessidades
fisiológicas.
O banheiro ficou um pouco distante do
quarto. Bem que poderia ter dois banheiros. Este,
aqui na área de serviços e outro dentro do quarto.
Esta nova casa é até bonita. Muita coisa me
agrada, mas têm outras de muito mau gosto, a
começar pelo piso de ladrilhos preto e branco na
cozinha, parecendo um tabuleiro de xadrez. Bem
que poderia ter feito ela maior também. Acho a
sala apertada e a disposição dos movíeis não me
agrada, dá um aspecto de entulhado. Já o jardim
é lindo, a grama ainda tá verdinha e tem uma
garagem, vazia ainda, mas por pouco tempo.
Hoje quero dar uma volta pela vizinhança. É
sempre bom conhecer os vizinhos e quero fazer
muitas amizades. Preciso também trabalhar, vou
dar uma olhada nas opções de emprego para
ganhar algum dinheiro. Quero comprar algumas
48
Player – Fábio Guastaferro
roupas novas, móveis novos e arrumar essa casa
de acordo com o meu gosto.
Sim, quero começar uma vida nova. Mas
agora estou com fome. Preparo um café na
cozinha de ladrilhos pretos e brancos. Enquanto
o café não fica pronto eu ligo o rádio e a música
que toca me deixa bem animada. Distraidamente
me pego cantando as frases que reconheço na
música, apesar de que, acho que nunca ouvi essa
música. Depois do café vou dar uma olhada na
caixa de correios, lá tem um anúncio de uma
agencia de empregos. Preciso trabalhar. Vou ligar
e ver o que eles podem me oferecer. Preciso de um
cachorro também. Sinto-me muito sozinha nessa
casa. Após a ligação a agência me oferece uma
infinidade de opções de trabalho, mas a minha
formação é ainda básica, decido pela profissão que
exige menor capacidade. Vou ser auxiliar, mas
ainda não sei de que. Tudo bem! Amanhã
pretendo estudar mecânica ou quem sabe
informática. Tem uma estante com alguns livros
aqui, com algumas horas de estudo eu me
capacito para um emprego melhor. Mas vou ficar
com esse por enquanto. Retorno à ligação e estou
contratada. Amanhã começa o serviço. Ligo a TV
e a manhã logo passa. Já estou com fome e vou
preparar algo para comer, quem sabe um almoço.
A refeição é boa, mas simples. A comida tem gosto
de borracha, mas eu como sem me importar. Após
49
Player – Fábio Guastaferro
o almoço lavo a louça, não gosto de cozinha suja,
decido que vou dar uma volta no bairro, quero
conhecer a nova vizinhança, mas antes uma
passadinha no banheiro.
A caminhada foi longa, mas infrutífera. O
bairro é bonito, mas não vi quase ninguém, esse
horário todos deve estar trabalhando. O sol
estava bem quente e chego ensopada de suor.
Preciso de um banho, mas quero também dar
uma relaxada no sofá, me sinto um pouco
cansada, e também sinto um pouco de fome, mas
não muita.
O cheiro do quarto chegava a ser
nauseabundo. Uma mistura azeda de cheiro de
comida podre com chulé, mofo e até urina. Era
um cheiro forte, mas que não o incomodava. Na
verdade, Marcelo já havia se acostumado. Aquele
era o seu cheiro.
O ambiente estava escuro, apenas a luz do
monitor iluminava o quarto e a pessoa a sua
frente. Uma luz forte, porém direcionada. Não
precisava de luz no teclado. O seu teclado era dos
mais sofisticados, com leds para cada tecla,
podendo ser configuradas cores para as teclas
mais usadas. Recentemente ele o configurara
50
Player – Fábio Guastaferro
para este último jogo, e poucas teclas se
destacavam no negrume da mesa.
A temperatura não era muito agradável.
Estava um pouco quente e abafado, mas ele não
se importava. Já que estava sozinho, poderia ficar
só com a sua pequena roupa intima. Uma cueca já
manchada de mijo. Ele não a trocava havia três
dias, desde a última vez que tomou banho.
A cama ainda estava do mesmo jeito que a
deixara quando levantou. Não quis arrumar.
Imaginou que logo estaria deitado nela de novo, e
não se deu ao trabalho de estender os lençóis.
Marcelo tinha uma confortável cadeira de
escritório, daquelas de chefe, na qual ele estava
sentado há quase nove horas. Ele terminou um
dos seus serviços de free-lancer e se enveredou por
mais um jogo. Sempre que ele iniciava, ele queria
jogar o máximo de tempo possível. Após tanto
tempo seus olhos já começavam a arder. As costas
também já o incomodavam, era muito tempo
sentado ali, e o corpo clamava por descanso. Ele
precisava esticar as costas, de preferência numa
posição horizontal, e quem sabe, até dormir um
pouco, mas antes tinha que comer alguma coisa.
Sua última refeição foi um copinho de iogurte,
que ainda estava sobre a mesa, empurrado ao
fundo, junto à parede por cima de fios
empoeirados. Lá ainda tinha mais dois daqueles
51
Player – Fábio Guastaferro
copinhos, com resquícios de um liquido já meio
enegrecido.
Levantou. As costas estalaram. As pernas,
um pouco dormentes começaram a formigar.
Marcelo esfregou as mãos para ajudar o sangue a
correr, e resolveu dar um pulo até a cozinha, já
programando um assalto à geladeira. Decidiu ir
de cueca mesmo, imaginava que às quatro da
manhã não haveria ninguém acordado para julgá-
lo um louco seminu.
Marcelo morava com a tia que o criara.
Atualmente eles tinham a companhia de uma
enfermeira, que acompanhava a tia já idosa e
doente. Marcelo não tinha muito contato com as
duas, apenas quando precisava de um pouco de
dinheiro e, claro, de um pouco de comida.
Na cozinha fez um sanduíche de pão de
forma gelado, com bastante maionese e ketchup,
comeu junto com um restinho de refrigerante já
sem gás, e foi dormir. Ao deitar na cama, toda
desarrumada, Marcelo dormiu quase de imediato,
e sonhou. Sonhou que ainda jogava. Era sempre
assim após uma maratona de um jogo novo.
O despertador toca, não posso enrolar mais
na cama. Tenho um compromisso e não quero me
atrasar para o trabalho. Levanto rapidamente,
52
Player – Fábio Guastaferro
coloco a roupa do serviço, passo no banheiro. Vou
até a cozinha combater a fome e saio para
trabalhar. O emprego é simples, mas é bom. Já
tenho planos para o dinheiro e pretendo
aumentar o meu nível de proficiência para buscar
um lugar que pague mais.
Chego do serviço no final da tarde. Corro ao
banheiro para uma e aproveito para tomar banho
e colocar a roupa de ginástica. Hoje vou fazer uma
caminhada. No serviço conheci alguns amigos, e
marquei um encontro em casa para um lanche e
um bate papo, não quero me demorar no
exercício.
Ao chegar, vou arrumar algo para comer e
aguardar a chegada do pessoal. Vieram três
pessoas, todos chegaram quase ao mesmo tempo.
Dois deles se incomodam por eu ainda não ter
móveis para melhor atendê-los, mas no geral está
tudo bem. Decido ligar o rádio, e logo a nossa
reunião fica bem animada. Formamos dois casais
e dançamos.
Logo começa a ficar muito tarde e eles
resolvem ir embora. Gostei da reunião, mas a
casa ficou bem suja, quero limpar antes de ir
dormir. Gostei do encontro, eles são animados,
mas tenho que me lembrar de comprar uma mesa
e de ligar para o meu parceiro de dança, um novo
encontro até que seria bom.
53
Player – Fábio Guastaferro
Após a limpeza, vou escovar os dentes para
dormir, já passou da hora e terei menos horas de
sono. A rotina é praticamente a mesma do dia
anterior. Só que não tenho encontro. Resolvo
fazer compras. O dinheiro que recebi do serviço
não é muito, mas já dá para fazer algumas coisas.
Posso comprar alguns móveis para a casa, posso
comprar alguns livros para estudar ou então
trocar o chão da cozinha que tanto me incomoda.
Posso também comprar um cachorro. Ter um
cachorro seria legal. Decido por um piano, não
fazia parte dos meus planos, e mal cabe na sala
da minha casa, mas eu sempre quis tocar. Depois
junto mais dinheiro e aumento essa sala.
Marcelo tinha sido demitido fazia quase
duas semanas. O chefe gostava dele. Sabia que
era um cara inteligente e capaz, o problema é que
não era muito compromissado. Ele resolvia o
problema, mas não vestia a camisa. Infelizmente
era um cara que não podia contar com ele.
Marcelo estava sempre perdendo prazos e fazendo
as coisas na correria porque deixava tudo para
última hora. Por algum tempo, seu chefe pensou
que ele tinha outras atividades, que acabava por
comprometer seu desempenho durante o dia,
principalmente pela manhã. Realmente ele fazia
54
Player – Fábio Guastaferro
outros serviços, mas sem vínculos, os conhecidos
bicos que ele gostava de chamar de “freela”.
Marcelo é um exímio programador, tem um
bom raciocínio para lógica de programação e
conhece algumas linguagens que estão em alta no
mercado. Serviço realmente não lhe falta, o
problema é com ele mesmo. Desde que saíra do
ultimo emprego, decidiu trabalhar por conta
própria em um projeto. Um projeto próprio que
desenvolveu com um amigo que conheceu em um
MMO. Esses jogos online onde diversos jogadores
jogam simultaneamente. Este é o principal meio
social que Marcelo frequenta.
Lá ele também conheceu a sua atual
namorada que entrou para experimentar e ficou
quase dois anos imersa no jogo. Atualmente,
Tábata não joga tanto quanto antes. Ela está
trabalhando, estudando e namorando.
Namorando nem tanto. Tem alguns dias que ela
não vê Marcelo. Na verdade ela o via mais
através jogo, mas ainda prefere os encontros
físicos.
Marcelo havia sugerido esse projeto a outra
empresa que trabalhara, mas o gerente geral não
lhe deu muita importância, mesmo ele
apresentando um detalhado plano de negócios.
Aquilo ficou engavetado esperando a
oportunidade chegar, e agora que tinha tempo
55
Player – Fábio Guastaferro
para desenvolver faltava a Marcelo o foco. Ele
havia elegido este projeto o seu objetivo
primordial, de certa forma, ele sonhara em
ganhar muito dinheiro com este empreendimento,
o suficiente para mantê-lo no mercado,
caminhando com as próprias pernas. Estava
pegando um ou outro trabalho simples para não
ficar totalmente sem grana, mas iria dedicar todo
o seu tempo ao seu próprio projeto. Porém, as
coisas não passavam de planos, que se recusavam
a deixar a cabeça de Marcelo.
Acordar cedo, escovar os dentes, usar o vaso
sanitário, trocar de roupa, tomar café, fazer um
exercício físico, passear com o cachorro, sair para
trabalhar, voltar do trabalho, passear com o
cachorro, tomar um banho, fazer um lanche,
estudar, ver TV, dormir.
A rotina se repete quase todos os dias, com
pequenas variações. Às vezes, recebo amigos, às
vezes, um encontro amoroso. Agora tenho um
companheiro, ele vem sempre a minha casa, mas
não de uma forma frequente. Tenho um cachorro
também. Troquei o piso da cozinha, inclusive
aumentei o cômodo, agora tem uma grande mesa.
Fiz um banheiro no quarto. Troquei alguns
móveis, aumentei alguns cômodos. Aprendi a
56
Player – Fábio Guastaferro
tocar piano, mecânica, eletrônica e informática.
Também estou graduada em comunicação. O meu
emprego paga bem e, assim, comprei um carro e
muitas roupas novas. No meu jardim tem um
pequeno anão que chegou pelos correios. Talvez
eu me case, mas não sei se existe essa
possibilidade.
Minha rotina se repete quase todos os dias,
com algumas exceções.
A sua volta tudo está parado, mas Marcelo
sente que está progredindo. Ele passa de dez a
doze horas na frente do computador, trancado
dentro do quarto, a maior parte do tempo seminu.
Tem se encontrado menos com os amigos, na
verdade, ele não gosta muito desses encontros de
bar, de balada, de curtição. Vez ou outra vai a
algum evento cultural, algum show de música. Ia
também ao cinema, principalmente com a Tábata,
mas acha mais fácil ver os filmes pela internet, no
conforto do seu quarto escuro e mal cheiroso.
Tábata também parou de procurá-lo.
Ultimamente ele só sentia falta dela para o sexo,
e resolveu isso com os milhares de vídeos que tem
nos favoritos do seu browser. Ele não fala com ela
já há alguns dias, e também não se importa. Acha
que nunca gostou dela, era mais pelos poucos
57
Player – Fábio Guastaferro
interesses que ambos partilhavam. Ela parecia
entendê-lo, mas parece não suportá-lo. Não mais.
Ele não se importa.
Marcelo acabou de acordar e resolveu
almoçar, se ainda tivesse almoço. Sua tia tem
uma alimentação diferenciada, voltada para a
doença dela e ninguém faz comida em casa. Às
três horas da tarde vai ser difícil Marcelo achar
comida fresca, e ele decide assar um congelado.
Mais um congelado. Enquanto a massa esquenta
no forno Marcelo liga o computador, logo ele está
comendo em frente ao monitor, ainda com a
mesma roupa que acordou. Não se importa com o
refrigerante que entorna na mesa cheia de
objetos, com uma meia ele limpa parcialmente e
volta a se concentrar no monitor.
Seus dedos são ágeis e ele faz diversos
comandos no teclado. Marcelo gosta dos que faz,
está concentrado e sabe que aquela tarefa vai lhe
tomar o resto do dia e possivelmente a noite toda.
Talvez ele dê uma pausa para tomar um banho,
quem sabe dar uma volta. Faz três dias que não
sai na rua, há dois não vê as pessoas que estão
dentro de sua casa. Também não se importa com
a TV. Marcelo não sabe muito bem o que acontece
no mundo, mas ele não está preocupado, ele só
que terminar, terminar mais esse. Ele sabe que
falta pouco, que já progrediu bastante, sabe que
58
Player – Fábio Guastaferro
está chegando ao fim, mas falta uma coisa ainda
que ele precisa fazer, talvez leve mais algum
tempo, mas ele tem que tentar para fechar com
chave de ouro. Não sabe se existe essa
possibilidade, mas ele precisa casar. Só assim vai
zerar este jogo.
Acordo como se estivesse em transe. Estou
muito assustado. Ouço meus companheiros
engatilhando as armas e conferindo os
equipamentos. Sinto a tensão no ar e me coloco
em posição. Engatilho a Kalashnikov, prendo ao
cinto uma granada explosiva e outra de fumaça e
carrego a pistola Desert Eagle com um pente de
sete balas. Estamos na principal parte da missão,
agora que invadimos o local, só falta plantar a
bomba, e este é o meu principal objetivo.
VERITAS VOS LIBERABIT
_______________
Fabiano dos Santos Araújo
ais uma vez tudo se iniciava da mesma
forma. A experiência e tudo o que
acontecia à sua frente se descortinava
com extrema naturalidade.
Estava no controle. Poderia fazer qualquer
coisa que quisesse, tinha acesso a todos os locais
possíveis, saberia de todas as coisas. Mesmo com
tamanho poder e as infinitas possibilidades que
ele poderia lhe trazer, mais uma vez, o início era o
mesmo.
M
61
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Ele conhecia o processo e suas
particularidades, mas sempre que chegava até
“lá” sentia medo.
Talvez hoje fosse um pouco diferente, pela
experiência adquirida ao longo dos anos. Ainda
assim, por mais irracional que parecesse, ainda
tinha medo.
O mundo a sua volta se apresentava com
cores estranhas, evidentemente, se você
conseguisse distinguir as cores num mundo quase
totalmente em preto e branco. Tudo tinha um
toque noir...
Ele encostou seu Ford 1949 próximo da casa
número 37. Tudo parecia congelado no tempo, o
vento soprava e o sol aquecia, isso era um fato,
mas não havia naturalidade em tudo o que via.
Ao descer do carro, percebeu que a única
presença que existia ali era a dele. Seguiu casa
adentro, a mesma solidão se repetiu.
Apesar da situação da senhora, ele não
esperava encontrar tudo tão quieto. Olhou os
cômodos da casa decorados como nos anos 50.
Desta vez não tinha nenhuma intenção de
interferir. Não queria ser invasivo de forma
alguma, se possível, entraria na casa sem nem
mesmo abrir a porta. Mas este tipo de coisa ele
ainda não sabia fazer.
62
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Tinha a impressão de que não haveria mais
segredos a serem escondidos, portanto, sua
postura não invasiva se justificava.
Em seu passeio pelos cômodos, percebeu que
tudo estava bastante organizado. Mas havia aqui
e ali alguns documentos sobre os móveis. A
maioria deles era pálida e possuía a mesma
aparência “preto e branco” do resto do mundo.
Finalmente, um deles aparentou ser
diferente, era sutil, parecia emanar um brilho
próprio, o diferenciando dos outros.
Aproximou-se do móvel em que ele jazia e
olhou sem tocá-lo. A primeira vista o papel estava
limpo, nada havia nele, mas ao aproximar o rosto,
alguns símbolos se transformaram numa
sequência de números.
– “0015327509” – leu em silêncio –“030502”
– continuou quando outros números surgiram
abaixo dos primeiros.
Quando ele se preparava para sair, os
números que estavam no papel sumiram e em seu
lugar algumas palavras foram se formando, mas
diferentemente dos números, cada uma tinha um
formato, algumas estavam cortadas, outras
invertidas.
– Desculpe, isso é tudo... Agora será com
vocês... Cuidado! Obrigado – leu desta vez em voz
alta.
63
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
A folha de papel foi escurecendo das
palavras para as bordas, até ficar completamente
negra. Ele deu uma última olhada para ela, e
seguiu para fora de casa até seu carro, arrancou e
seguiu adiante, saindo daquele lugar da mesma
forma que surgira.
Várias pessoas estavam na sala de vistas da
mansão do Sr. Carlos, quando Matt pela primeira
vez em minutos piscara como uma pessoa normal,
não apenas executando a função mecânica de
lubrificar os seus globos oculares.
Após a primeira piscada, piscou novamente
seguidas vezes como se seus olhos estivessem
muito secos. Respirou fundo, pegou um bloco de
anotações e passou a anotar as informações que
fora incumbido de buscar.
Vendo Matt se recompondo e fazendo
anotações, pela primeira vez o Sr. Carlos soltou a
mão da esposa e fez um sinal para que todos
saíssem da sala.
Antes que todos saíssem, Matt terminou de
escrever no papel e olhou para a Sra. Valda, que
estava a sua frente ao lado do Sr. Carlos.
Devido ao derrame que sofrera meses antes,
ela ficou com uma expressão bastante vazia no
rosto. Mas desta vez por um breve instante,
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
apenas Matt percebeu o esboço de um sorriso em
seus lábios, seus olhos, naquele momento,
perderam a expressão morta que tinham e
brilharam intensamente.
Quando todos deixaram a sala, Matt se
curvou em direção ao Sr. Carlos, lhe entregando o
bloco de anotações e a caneta num tom seco: –
Aqui está. Isso é tudo.
O Sr. Carlos agradeceu fazendo uma leve
reverência enquanto pegava o papel e o lia em voz
baixa, para que apenas Matt ouvisse: –
0015327509 e 030503.
Pouco antes de ler o que estava na
sequência, hesitou antes de prosseguir: – Me
desculpe meu bem, isso é tudo. Agora será só
você... Tenha muito cuidado com o que buscas...
Poderá alcançar. E será que estarás pronto para
lidar com as consequências? Sempre lhe amarei.
V.
O Sr. Carlos olhou para sua esposa por um
instante, estava imóvel como nos últimos meses.
Rapidamente procurou sua mão e chorou. Já
era tarde demais. Não fossem os apoios que a
mantinham na mesma posição, talvez ela tivesse
tombado o pescoço no momento final pensou ele,
tentando se iludir. A verdade era esta, mas pela
primeira vez ele não queria acreditar nela.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– A mentira conforta o coração, Sr. Carlos. –
disse Matt quebrando o silêncio – Não caia nesta
armadilha.
– Já está aqui dentro? – questionou o Sr.
Carlos com um risinho irônico apontando para a
testa, enquanto começava a enxugar as lágrimas.
– Não. Você sabe que não. – retorquiu Matt
secamente – Já vi esta cena vezes o suficiente
para deduzir o que se passa em sua mente. Se
você seguir por este caminho, não serei de grande
ajuda para o senhor.
O Sr. Carlos o olhava quase sem piscar, em
resposta apenas respirou fundo e caiu sobre o
próprio colo chorando.
Matt seguiu para uma das janelas atrás do
Sr. Carlos, e ficou observando o jardim enquanto
pensava: – “As pessoas são realmente muito
interessantes... Quem diria que o “Rochedo”
poderia amolecer assim?”
Enquanto observava o jardim viu os
seguranças se posicionando discretamente entre
as árvores, prontos para atacar ao menor sinal de
perigo.
Por um tempo o silêncio entre os dois se
manteve. Não fosse o choro do Sr. Carlos, o
silêncio na sala seria absoluto.
– Obrigado por tudo meu rapaz – agradeceu
o Sr Carlos – Você foi de grande ajuda nos
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
últimos meses. Seu carro o espera há alguns
minutos.
Matt fez uma reverência e seguiu até a
porta, que fora aberta por um comando dado pelo
Sr. Carlos.
– Seus serviços são únicos, rapaz. Tem
certeza que não gostaria de trabalhar conosco?
– Desculpe. A minha busca é outra.
– Caso precise de você ainda poderei contar
com sua ajuda? – perguntou o Sr. Carlos voltando
ao seu tom característico.
Matt apenas assentiu positivamente com a
cabeça e saiu.
– Suas coisas estão no carro. – informou o
segurança do lado de fora da sala.
À medida que Matt seguia pelo corredor,
todos que estavam na sala anteriormente foram
passando por ele desesperadamente até a sala de
visitas onde estavam o Sr. Carlos e o corpo da
Sra. Valda.
A noite já havia começado e o velho letreiro
do Dino’s Dinner já estava aceso, ao menos
estavam acesas as lâmpadas que ainda não
queimaram.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Dino era italiano, mas já havia passado por
tantos lugares que se considerava um cidadão do
mundo.
Sempre que você chegasse ao Dino’s Dinner,
se esqueceria em que lugar do mundo você estava,
ao entrar no local você se sentia em um dos
restaurantes baratos que vemos nos filmes
americanos.
Dino gostava assim, ele dizia que era uma
lembrança permanente de uma de suas viagens.
Quase sempre o mesmo número de pessoas
ocupava o lugar, mas a mesa do canto esquerdo
nunca era ocupada.
Entre um atendimento e outro no balcão, os
olhos quase sempre irritados de Dino fitaram a
mesa do canto esquerdo, ocupada por um homem
solitário que olhava o cardápio.
Dino deixou os clientes com um de seus
funcionários, indo até lá com a feição carrancuda
de sempre.
– Deveria fechar melhor suas lixeiras meu
senhor. Os animais de rua às estão atacando –
disse Matt sem tirar os olhos do cardápio.
Dino resmungou sonoramente, tirou o
cardápio das mãos e colocou outro mais
desgastado no lugar.
– Cuide de seus negócios rapaz! –
resmungou saindo.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Dino fez um sinal com os olhos para um
funcionário, que levou à mesa de Matt uma xícara
com água quente e um envelope de chá.
Matt abriu o envelope, colocou o saquinho na
xícara e o envelope vazio no bolso.
Quando o conteúdo da xícara ficou escuro
demonstrando que o chá estava pronto, Dino
retornou a mesa, desta vez sentando-se em frente
a Matt, pegou a xícara e começou a bebericar o
chá. – Earl Gray... Delicioso realmente! –
exclamou saboreando o chá – Mas é uma pena
estar tão quente... – obviamente queimara a
língua.
– Eu pensei que você era italiano... –
indagou Matt ironicamente.
– Sou cidadão do mundo! Mas, já sabe disso,
não é mesmo?
– É... Já faz tempo que não vou aí. E não é
hoje que pretendo voltar... – respondeu Matt com
ar de repulsa.
– Você tem trabalho hoje.
– Que bom Dino! Sempre tem algo de bom
para mim.
– Uma hora dessas... – resmungou Dino com
o rosto já vermelho – Está tudo pronto! Suma
daqui!
– Sem nada para comer... Você costumava
ser mais generoso...
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Não sou um albergue! Meu restaurante
precisa vender para se manter aberto. Cada vez
mais morto de fome... Não há comida no mundo
que chegue para você! – retrucou Dino.
– Espero que seja algo divertido desta vez...
– atalhou Matt, tentando mudar de assunto.
– E será! Será amigão! – respondeu Dino
sarcasticamente.
Matt o olhou com medo nos olhos, pois nunca
havia recebido esse tipo de resposta de Dino.
Normalmente ele reclamava ou brigava com ele.
Em silêncio ele se levantou, enquanto Dino
acabava de tomar seu chá, seguiu até os fundos
do restaurante, entrando no carro deixado para
ele e seguindo pela escuridão que havia a frente.
Muitos minutos e quilômetros à frente, Matt
parou no centro velho da cidade, onde velhas
construções abrigavam em muitos quartos e
apartamentos, centenas de famílias mais pobres,
os solteiros e os estudantes que não podiam pagar
por um lugar melhor.
Matt olhou novamente o bilhete que estava
no envelope de chá, e este confirmava que o
endereço estava correto. Ele o jogou no porta-
luvas, parou o carro e se pôs a pensar por um
instante.
Ele havia realmente chegado ao seu destino,
mas normalmente, Dino o mandava encontrar os
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
seus clientes em bairros mais desocupados ou
muito mais violentos do que este...
Como já parara o carro em frente ao prédio
onde encontraria o seu cliente, deu com os
ombros, tirou este pensamento da mente e
adentrou o prédio, buscando o apartamento 21.
Ao chegar ao segundo piso ele se deparou
com a porta que procurava. Em todas as outras
portas havia uma mensagem proibindo a entrada
ou uso daqueles apartamentos.
Ele tocou a maçaneta e com uma leve torção
a porta se abriu. –“Talvez o cliente já esteja me
esperando.” pensou Matt.
O apartamento era muito pequeno, muito
sujo, sombrio e pouco mobiliado, como ele já
suspeitava. Na verdade havia apenas um sofá de
couro marrom no lado esquerdo da sala, olhou em
volta, e rumou até o sofá, que era parcialmente
iluminado pela luz dos postes que entrava pela
janela. Lá ficou sentado por uns 40 minutos, em
silêncio.
De repente fez menção de se levantar, talvez
para olhar pela janela, se o cliente já estava
chegando, ou mesmo para sair dali, devido à
demora.
Mas ele hesitou. Acomodou-se mais ereto no
sofá e um sorriso surgiu em seu rosto quando
falou: – Até onde quer chegar com isso?
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Após isso, manteve-se em silêncio, como se
esperasse uma resposta de algum canto do
apartamento vazio.
– O combustível não é de graça sabia? –
insistiu, mas novamente, não obteve resposta.
Mais uma vez, não sendo respondido, Matt
levantou os braços como se fosse pegar o volante
de um carro.
– Pois bem! Se quer me obrigar a este
ridículo, tudo bem...
Ele manteve uma das mãos na mesma
posição e “bateu” com a outra onde deveria ser a
buzina. Evidentemente, nenhum som foi emitido,
mas na rua pode-se ouvir uma freada brusca,
seguida do som longo de uma buzina.
Com isso Matt não se sentiu inibido. Sentiu-
se incentivado.
– Só vou lhe dar um último aviso. Os gases
do escapamento logo tomarão este lugar e nos
sufocarão até a morte! – ameaçou ao novamente
repetir o movimento.
Novamente o som não saiu. Ao invés disso,
na sombra do lado oposto do sofá uma voz surgiu:
– Ei! Tudo bem! Você venceu! Pare de chamar
atenção.
O apartamento ao redor de Matt foi
desaparecendo, logo ele se viu novamente dentro
do carro, o banco vibrava com o funcionamento do
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
motor e os gases do escapamento invadiam o
habitáculo.
– Você é quem procuro! Rápido! Já sabe onde
devemos ir – disse a voz no banco do carona.
Matt pisou no acelerador e sumiu pela
escuridão novamente. Ele deu a volta com o carro
e passou novamente em frente ao Dino’s Dinner.
O letreiro estava idêntico, tão decadente como o
vira da última vez, mas o prédio estava diferente,
estava irreconhecível, parecia agora um
restaurante comum, como os outros da cidade.
Não tinha mais sua aparência americana.
Após passar em frente ao restaurante de
Dino, seguiu pelo mesmo caminho que “usara” há
pouco.
Ao chegar ao mesmo bairro, seguiu pela
mesma rua, parando o carro em frente ao mesmo
prédio. Desceu do carro e entrou, sendo seguido
por seu acompanhante, que nada falara durante o
percurso.
Matt caminhou pelo térreo e seguiu pelas
escadas apenas parando no final delas. Em todo o
percurso ele agiu com a familiaridade e
naturalidade de um morador do prédio.
Desta vez ele notou que não havia avisos nas
portas dos outros apartamentos, impedindo a
entrada neles.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Aqui seria um bom lugar para
conversarmos, Marco? – indagou Matt.
A pessoa que o acompanhara subiu
calmamente as escadas, enquanto isso, Matt
observava as suas feições. Tinha cabelos já
brancos, apesar de sua aparência não ser tão
velha, usava grandes óculos de aros grossos e
escuros, isto sim o envelhecia.
Seu rosto era praticamente liso, não fosse o
ralo bigode que surgia acima de seus lábios ele
pareceria ainda mais jovem.
O homem seguiu calmamente com sua
postura e expressão sempre serena até a porta.
– Se este é um bom lugar para
conversarmos? Eu diria que sim. É um bom lugar.
Mas não preferiria conversar estando
confortavelmente sentado? – finalmente
respondeu Marco destrancando a porta e o
convidando para entrar – E eu sei que há uma
coisa lá dentro que você precisa.
Matt aceitou o convite assentindo com a
cabeça. Pouco antes de entrar, ele imaginou que
encontraria o mesmo espaço sujo com apenas um
sofá velho encostado na parece.
Ele não podia estar mais enganado. O
apartamento era muito limpo e bem organizado,
era bem mobiliado e decorado, era como se aquele
lugar fosse familiar a ele.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Pelo cansaço que sentia, não deu
importância a essa impressão que teve, ele
deveria ser a sua causa.
Logo ao entrar ele viu acima do sofá da sala
um grande retrato onde estavam Marco, com
cabelos ainda negros e sem o bigode ralo,
abraçado a uma mulher com um grande sorriso
no rosto. Esta abraçava um garoto com uns doze
ou treze anos no máximo, ele estava bastante
sério, com os braços cruzados, talvez não estivesse
à vontade para tirar aquela foto.
Marco ao entrar se dirigiu a cozinha, puxou
duas cadeiras colocando uma de frente para
outra.
– Gostaria de alguma coisa antes de
começarmos? – perguntou ele.
– Água seria muito bom. – respondeu Matt
tirando finalmente a mão do bolso.
Ao pegar o copo d’água ele colocou alguma
coisa na boca e com a ajuda do líquido engoliu.
– Era exatamente o que eu precisava.
Obrigado – agradeceu Matt.
– Não há de que.
– Bem, como eu poderia ajudar alguém tão
bem preparado nas técnicas de Mnemósine? –
perguntou Matt.
– Na verdade todos temos nossas limitações.
E acima disso é sempre bom alguém de fora nos
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
ajudar a enxergar melhor um ponto de vista. Não
concorda Matt?
– Tem razão. Mas diga-me uma coisa. Por
que escolher essa técnica tão básica? Sabe que
caso eu queira fazer alguma coisa, você não teria
defesa alguma. Eu poderia fazer o que bem
entendesse. Você não saberia se algo o atingisse –
indagou Matt.
– Tenho uma coisa perdida aqui. – disse
Marco apontando para a sua cabeça – Já consegui
com muito esforço, recuperar algumas
informações ligadas ao que perdi. Mas o principal
ainda está perdido. E pelo que vi há pouco, você é
o único que pode encontrar. E sobre os riscos, sei
que posso confiar em você. Enquanto estive aí, –
disse apontando para a cabeça de Matt – consegui
confirmar o quanto você é honesto. Eu já
suspeitava disso enquanto você vasculhava a
mente da Sra. Valda usando Mnemósine. Sempre
que pude, verifiquei em segredo o que você tinha
feito. Era como se ninguém tivesse passado por lá.
Não haviam danos ou interferências. E tudo o que
você trouxe de lá era verdadeiro.
Matt corou levemente e sorriu em resposta.
– Pensei que me questionaria se não havia
nada de errado com a água... – perguntou Marco,
ao mesmo tempo que apontava para a cadeira na
sua frente, para que Matt sentasse nela.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Me mostrou há pouco um lugar que
considerava tão seguro, que não teria nada a
esconder – respondeu Matt se sentando.
– Não há mais nenhum lugar seguro ou
familiar para mim no mundo. Tudo isso a nossa
volta é um grande engodo, para mim mesmo...
Mas está certo quando diz que não tenho nada a
esconder.
– O que gostaria que eu recuperasse para
você?
– Este é o problema rapaz. Tiraram do lugar
onde deveria estar. Quem o fez não sabia ainda
como apagar. Fez apenas isso.
– Podemos começar?
Marco concordou com um aceno da mão
direita. Os dois começaram a se olhar, um nos
olhos do outro, piscaram lentamente como se
tentassem lubrificar os olhos o máximo possível.
Marco foi o primeiro a se levantar, rumando
para a sala, sendo seguido por Matt.
– Eu não tenho nada a esconder. Mesmo se
eu quisesse, sabe que eu não poderia. A única
coisa que você irá se deparar é com a verdade. –
esclareceu Marco, parando próximo à porta de
entrada.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– O que haveria de tão sinistro e revelador a
me dizer? – desafiou Matt.
– Bem, o que há para ser dito estará em
breve ao seu alcance. A questão é: Você está
preparado para o que verá?
Matt concordou com a cabeça, e se
aproximou mais da porta.
– A história que tenho a lhe contar é esta.
Ela será uma estrada para lhe guiar, espero que
complete as partes que faltam – disse Marco
abrindo a porta – A estrada lhe espera.
Matt olhou fixamente para Marco por um
instante. Virou-se para a porta e seguiu pelo
caminho que se formava do lado de fora do
apartamento.
Às vezes alguns ofícios parecem ser meio
ingratos, principalmente quando sua atividade
envolve o fato de se estar de pé antes mesmo do
sol pensar em sair.
Este tipo de pensamento constantemente
povoava a mente de Marco. Estava muito
enraizado devido a sua constituição física e
mental, e principalmente por uma de suas
paixões: dormir o máximo possível todas as
noites.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Mas como poderia alguém que trabalhava
numa empresa que entrega jornais e revistas
usufruir deste gosto?
As pessoas jamais param de surpreender,
como alguém que detesta acordar cedo, poderia
ficar no mesmo emprego por mais de dez anos,
sem faltas ou reclamações? Às vezes fazemos
coisas contrárias ao nosso ser em favor de outros.
Enquanto Marco acabava de verificar os
itinerários e os colocava nas caixas com a entrega
daquela manhã, um dos entregadores chegou até
ele trazendo uma má notícia, antes mesmo do dia
começar.
– Senhor... Bom dia... – gaguejou o
entregador.
– Bom dia, do que se trata? – perguntou
Marco, sabendo que a gagueira significava
problemas.
– Um dos entregadores não virá hoje. E
talvez por algum tempo ele não volte.
– O que o Túlio fez desta vez?
– Na verdade... Não foi o Túlio... – hesitou o
entregador – Aconteceu com o Júlio. Ele se
acidentou. A família dele me avisou há pouco.
Mas não parece ter sido grave.
– Meu Deus! Espero que ele esteja bem. –
respondeu Marco num misto de tristeza e
surpresa. Daquele dia em diante estaria sem o
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
seu melhor entregador, sabe Deus por quanto
tempo – Hoje assumo o posto dele. Mais tarde
remontarei os itinerários de todos para podermos
nos organizar por enquanto.
– Certo... Mas, eu fiquei com a área de
entrega dele por hoje, pois a moto dele não ia
conseguir ir tão longe antes do conserto.
– É verdade, é a sua área que precisa de
alguém. Felizmente, para mim, – disse Marco
sorrindo ao olhar o itinerário – hoje você teria
poucas entregas. É melhor que eu vá, uma das
entregas é algo que está sendo esperado há muito
tempo.
Marco pegou a caixa com as entregas e saiu.
Por mais cedo que fosse, ele queria terminar o
quanto antes.
Quando só faltava uma entrega para
finalizar o serviço, Marco seguiu até a sua casa.
Chegando lá ele viu a esposa já de pé, não era só
ele que precisava iniciar seu dia bem cedo. Ele
mostrou um pacote que trazia para ela enquanto
se dirigia ao quarto do filho.
– Que bom meu bem! Ele já estava quase nos
deixando loucos. – disse ela rindo – Ele ainda está
deitado!
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Ele chegou à porta do quarto do filho e viu
uma folha de papel com fundo preto com letras
brancas estilizadas: “VVL”. Bateu nela como se
estivesse na porta de entrada e aguardou que
fosse aberta.
Por três vezes ele tentou, e por três vezes
não obteve resposta. Ele pegou um apito metálico
escondido sobre o portal e soprou com toda a
força.
Antes que ele terminasse de soprar, a porta
se abriu com seu filho o fitando, com uma
expressão de sono misturada com nervosismo.
– Pai, isso não é justo! Ainda falta uma hora
para eu me levantar. – disse o garoto em um tom
seco, no entanto só faltavam vinte minutos.
– Desculpe, filho, mas a vida não é justa.
– O que é isso com você? – perguntou ele com
os olhos brilhando.
– O que você acha que é Bob?
– Não é possível!
– Claro que é. Está na sua frente. Pegue!
Acordar um pouco mais cedo é um preço pequeno
por isso.
– Obrigado!
– Só uma coisa. Você pode abrir a caixa
agora, mas não irá testar nada antes que eu
chegue. Temos que arrumar a tomada no seu
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
quarto – disse ele dando um beijo na testa do filho
– E também não quero que se atrase para a escola
por causa disso.
– Até mais pai! Obrigado!
Como um raio o garoto voltou ao quarto e
abriu a caixa como uma fera que dilacera uma
presa, dentro dela havia uma caixa menor, uma
carta, uma edição especial da revista Game Plus,
e alguns envelopes já selados.
– Filho! Vá já se arrumar antes que se
atrase! – gritou sua mãe da cozinha.
O garoto mesmo contrariado deixou todas as
coisas no meio do quarto e correu até o banheiro,
se arrumou numa fração do tempo que
normalmente gastava.
Em poucos instantes ele estava arrumado,
se dirigindo a mesa da cozinha, com uma pequena
caixa preta em uma das mãos e a carta da
produção da revista na outra.
– Nossa! Como eu gostaria que recebesse
uma entrega para você todos os dias. Só assim
você se levanta e se arruma sem me dar trabalho.
O garoto apenas sorriu sarcasticamente em
resposta.
– Infelizmente nada é perfeito mesmo... –
disse ela limpando o resto de espuma do creme
dental, que ficara no canto da boca do filho.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Enquanto sua mãe lhe falava, ele começou a
olhar a caixa que trouxera a mesa. Era toda em
preto fosco e apenas haviam três letras
estilizadas na tampa: “VVL”, semelhantes às que
estavam na porta do seu quarto.
Abrindo a caixa, ele retirou as proteções de
espuma e pegou um bilhete escrito com letras
vermelhas: “Leia as instruções. – LiberTeam”.
Ele retirou o cartucho de dentro da caixa e
além do fato dele ser diferente por ser uma demo
do jogo, era transparente com um pequeno
adesivo escrito VVL. A carcaça do cartucho dava
destaque ao chip especial branco que dava
características únicas a este game.
Ele examinou com cuidado todos os detalhes
do cartucho, retirou a proteção dos conectores, e
se abaixou para pegar a carta que caiu no chão.
Ao fazer isso, derramou sua caneca próxima
ao cartucho do jogo. Rapidamente sua mãe o
pegou, e aparentemente apenas a parte externa
se molhou. À primeira vista os contatos da placa e
o interior do cartucho estavam intactos.
Antes mesmo que ele pudesse dizer algo ou
esboçar alguma reação, uma buzina tocou duas
vezes.
– Filho, eu termino isso. Vá logo que a van
está esperando, hoje é o primeiro dia.
– Mas mãe...
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Vá rápido! Esse jogo estará te esperando
quanto você voltar. E nem pense em levar nada
disso para a escola!
O garoto ficou emburrado, mas atendeu as
ordens da mãe. Rapidamente pegou as suas
coisas e foi para a escola sonhando com o
momento em que poderia ficar com o seu jogo sem
interrupções.
Finalmente ele chegara em casa, sua mãe,
que também chegara há pouco do trabalho, estava
no jardim cuidando das plantas.
Pegou o cartucho do jogo e novamente o
examinou por um tempo, como se procurasse
algum defeito, sujeira ou mancha. Olhava-o como
se tivesse ficado longos anos longe dele.
Deixou o cartucho de lado por um momento e
começou a ler a carta enviada pela produção da
revista.
Ao
Senhor Marco,
É com grande satisfação que lhe entregamos
o cartucho demo, do tão falado game VVL.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Em anexo seguem as instruções, e uma carta
detalhando informações sobre o envio de sua
opinião sobre o jogo, além de algumas palavras da
produção da Revista Game Plus, escritas
especialmente para você.
Aproveite o jogo da melhor maneira que
puder. Esperamos ansiosamente por sua opinião.
Atenciosamente,
Equipe da Revista Game Plus.
As folhas que se seguiram eram as
instruções no idioma original dos produtores do
jogo. Bob não reconhecia nenhum dos símbolos
nas páginas, desta forma, não fazia ideia de qual
era o idioma deles.
Na sequência estavam as instruções em
português traduzidas pela própria equipe de
desenvolvedores. Antes das instruções
propriamente ditas, havia um pequeno texto
escrito ao jogador que faria o teste do jogo.
É uma grande honra para todos nós da
LiberTeam Games, lhe entregar esta demo do
nosso mais novo jogo.
Esperamos sinceramente, que todo nosso
trabalho e dedicação ao jogo possam lhe conceder
85
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
uma experiência única, mesmo sendo apenas uma
demonstração dele.
Durante o desenvolvimento do jogo, sempre
buscamos fazer da experiência trazida por este
game algo único, mas para que este nosso objetivo
fosse alcançado, notamos que precisaríamos do
auxílio da comunidade gamer de todo o mundo.
Assim surgiu o sorteio que o escolheu como
um dos primeiros a testar o jogo. Por este motivo a
sua opinião é muito importante para nós. Não
deixe de contar tudo o que você pensa sobre o jogo.
Uma última informação: O chip de
inteligência artificial Human Unit 3 (Hu3), é
extremamente sensível a umidade, tome os
cuidados listados nas instruções e nenhum dano
ocorrerá ao mesmo.
Saudações,
LiberTeam Games.
Veritas vos Liberabit
– Conteúdo exclusivo aos beta-testers –
O que você faria caso tivesse acesso a toda a
verdade do mundo? O que faria caso pudesse ser o
senhor desta verdade? Estaria preparado para
todas as conseqüências que isso lhe traria?
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
M. Parker, não é apenas mais um detetive
que se costuma ver nas novelas policiais. Ele tem o
poder de implantar memórias na mente das
pessoas. Caso ele não consiga obter as informações
que busca, apenas com sua persuasão.
Memórias podem ser implantadas nas
mentes dos suspeitos, se estas forem convincentes o
suficiente não existirá barreira alguma para
obtenção da verdade.
Um grande poder? Uma maldição? Você
decide! Os rumos da historia serão modificados
por suas escolhas no jogo, questionamentos e
reações quase infinitos poderão surgir. Além de
um sem número de possíveis finais que poderão
ser criados de acordo com as decisões que você
tomar.
Estará pronto para encarar o peso da
verdade? Poderá de fato a verdade libertar M.
Parker? Ou ela poderá libertar você do destino que
suas escolhas o levarão?
O garoto ao terminar de ler estava trêmulo.
Devido à tamanha excitação que sentia pelo jogo.
Tudo isso era realmente possível? Perguntava-se.
Ele precisava testar o jogo imediatamente.
Até aquele momento sua mãe não o havia
chamado. Não havia como saber por quanto
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
tempo ele poderia ficar em seu quarto sem ser
chamado.
Apesar de seu pai o advertir para que não
ligasse o console, devido o problema na tomada do
seu quarto, ele não podia esperar mais.
Ele fitou o console por um breve instante,
estava entre a realização de seu desejo e o
cumprimento do pedido do pai.
O emocional lhe falava com mais força do
que o racional. Saiu do impasse, ligou a TV e
nada de errado ocorreu, ligou o console,
novamente nada de errado ocorreu.
Respirou fundo, desligou o console, pegou o
cartucho do VVL, e o colocou no console. Mas ele
hesitou. Ficou imóvel por um instante, como se
não conseguisse acreditar no que ia fazer, ou
ainda não conseguisse crer em seus olhos por
estarem lhe mostrando que o momento que ele
tanto aguardara, finalmente havia chegado e ele
estava há instantes de realizá-lo.
Por mais tolo que tudo isso pudesse parecer,
um misto de emoções e pensamentos tomou conta
do seu ser, no breve instante de torpor, que
parecia o deter.
Estava eufórico, excitado e feliz por poder
concretizar este sonho, mas ao mesmo tempo se
sentia mal, egoísta e mesquinho por não esperar
seu pai. Afinal, aquele momento não seria
88
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
possível se seu pai não tivesse se inscrito no
concurso, pois menores não podiam participar
dele.
– “O que eu faço?” – pensou Bob, no instante
anterior ao que decidira o que iria fazer.
Lentamente se curvou até seus braços
alcançarem o console, e num movimento muito
brusco o ligou, se afastando na mesma velocidade.
Abaixou o volume do televisor, a um nível que ele
pudesse ouvir, mas quem por ventura se
aproximasse de seu quarto não pudesse.
Inicialmente nada ocorreu, apenas uma tela
negra o olhava e refletia sua imagem. Ele se
manteve imóvel, esperando que algo ocorresse.
Logo uma barra de progresso surgiu na tela,
para o seu alívio, rapidamente ela se encheu, e o
logotipo da LiberTeam surgiu e sumiu dando
espaço a tela inicial do jogo.
Prontamente Bob, fez as escolhas nos menus
que surgiram e um pequeno filme se iniciou, com
um homem o fitando intensamente como se o
sondasse em busca de respostas. No canto da tela
surgiu o seu nome, M. Parker.
Por um instante o olhar sagaz de Parker
começou a incomodar o garoto. A ideia de que um
jogo tentava o analisar, por um instante o
preocupou.
89
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Antes que qualquer outra coisa pudesse
ocorrer na tela, talvez por mera coincidência, ou
talvez por influência do jogo no sistema elétrico
da região, as luzes de toda a casa começaram a
oscilar.
Evidentemente estava havendo uma queda
na tensão da energia elétrica. A tela da TV, ao
contrário do que as luzes indicavam, pareceu
brilhar ainda mais intensamente, com um brilho
especial nos olhos de Parker, que se tornaram
quase insuportáveis de se olhar.
À medida que as luzes ficavam mais fracas e
apagadas, a TV parecia brilhar mais
intensamente. Quando as luzes estavam quase se
apagando, Bob pulou rapidamente até o console,
com uma das mãos acionou o botão de energia
para desligar o aparelho, e com a outra mão, no
instante exato que desligava o aparelho, puxou o
cartucho com violência do console, por puro
instinto, sem pensar no que fazia.
A trava que segura os cartuchos já estava
frouxa e por isso ele não teve trabalho para
retirá-lo.
Toda a ação durou poucos instantes, mas
foram suficientes para o garoto no último instante
antes de desligar o console e retirar o cartucho
ver a imagem na tela mudar.
90
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Parker o olhava agora com uma expressão
de satisfação, não mais inspirava medo a quem
olhasse. Era como se ele tivesse conseguido algo
que a muito ele buscava. Quando o cartucho
acabava de ser retirado do console a imagem
desapareceu da tela, mas a expressão de Parker
se manteve inalterada até o fim.
Ao mesmo tempo em que a imagem sumia
da tela, Bob não percebeu, mas a tensão elétrica
voltava a subir, veio tão rápida e tão intensa, que
acabou atingindo o console no exato momento que
o cartucho fora retirado, passando parte da
corrente elétrica desde a tomada defeituosa até
Bob.
Com o susto ele gritou e se jogou um pouco
para trás.
– Está acontecendo alguma coisa de errado
por aí, filho? – gritou sua mãe do jardim.
– Não! Bati o dedo na quina do móvel! –
gritou o garoto numa resposta automática.
O garoto ficou por um momento na mesma
posição que caíra, sentado, meio atordoado, sem
entender o que havia acabado de ocorrer.
Logo, ele voltou a si e começou a avaliar o
que havia ocorrido, mesmo estando ainda parado.
Quando se levantou tremia e o suor escorria
por seu corpo. Mesmo neste estado de “choque”,
91
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
ele precisava organizar tudo antes de seu pai
chegar.
Desligou a TV, tirou o console da tomada, e
foi guardando tudo em seu devido lugar, para que
não houvesse suspeitas do que ele fizera.
A única exceção fora o cartucho, sempre que
se aproximava dele, ele hesitava tocá-lo. Seguia
para organizar outra coisa. Eventualmente teve
que enfrentá-lo. Pegou-o e colocou em sua caixa
sem o olhar. A caixa foi guardada junto com os
outros itens que chegaram a sua casa.
Havia poucas coisas a serem organizadas,
mas mesmo assim, Bob se sentiu exausto após
terminar de colocar tudo em seu devido lugar.
Ele olhou para sua cama e esta lhe pareceu
extremamente convidativa. Jogou-se nela e na
posição em que caiu ficou imóvel.
– “Este cansaço deve ser pelo susto...” –
pensou ele antes de adormecer.
No lugar onde eles estavam o tempo não
existia. Pelo menos, não como se conhece. O mais
próximo do registro de tempo que pode existir é o
tempo em que uma ideia se forma, que é mais
rápido do que uma fração de segundo.
Após Matt ter seguido o caminho que se
abriu fora do apartamento, Marco fechou a porta
92
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
e foi até o retrato sobre o sofá, e o olhou.
Praticamente só se movendo para respirar.
Subitamente baixou a vista e sentou-se no
sofá. Não sabia quanto tempo Matt demoraria.
Principalmente por já ter plena noção de como era
a “passagem” do tempo por lá.
Não tendo nada melhor a fazer neste
ínterim, pôs-se a pensar. Mas ao iniciar a ação,
sorriu. Pois a ideia de ter um pensamento dentro
de um pensamento, lhe pareceu divertida.
Um período incomensurável depois, Marco
ouviu três batidas na porta, que foram seguidas
pelo silêncio. Calmamente se levantou do sofá e
rumou até a cozinha. Chegando lá, viu Matt
sentado em uma das cadeiras, olhando fixamente
para a outra que estava a sua frente.
Marco se sentou na outra cadeira e quando
ficou no nível dos olhos de Matt, este lhe
perguntou: – Demorei?
Marco não esboçou qualquer reação em
resposta.
– Agora que retornei, não há nada mais que
queira me contar? – perguntou Matt sentando-se
mais ereto, e tirando pela primeira vez os olhos de
Marco.
– Com o que me trouxe agora, algumas
coisas passam a serem certezas, outras passam a
93
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
ser especulações e outras ainda, apenas delírios –
respondeu Marco.
Com a chegada de Matt, nada do que ele
acabara de presenciar era necessário ser
verbalizado, pois, como estavam na mente de
Marco, tudo o que ele vira e ouvira havia sido
transmitido imediatamente a seu anfitrião.
– Algumas coisas poderão estar fora da
ordem ou ainda não corresponderem com a
verdade, mas acredito que em alguns pontos,
jamais poderemos nos aproximar dela. – explicou
Marco, fazendo uma pausa – Poderia me
acompanhar até a sala?
Seguiram até a sala, Marco pegou o controle
remoto da TV, sentou-se no sofá sendo
acompanhado por Matt.
– Desculpe o esqueumorfismo, mas é a
melhor forma que eu tenho para lhe dizer isso. –
explicou Marco ligando a TV.
Bob dormiu por toda a noite, ao chegar em
casa, seu pai resolveu não acordá-lo, para
verificarem o problema da tomada. Ele mesmo
resolveu o problema, para que seu filho pudesse
usar o vídeo game no dia seguinte.
94
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
A noite passou, e o novo dia nasceu, o
despertador tocou por muitos minutos, mas Bob
não saiu do quarto.
Vendo a demora, sua mãe foi acordá-lo, mas
por mais que ela tentasse, não teve êxito. Ficou
aflita com a situação e o desespero tomou conta
de sua mente, pouco antes dela ligar para a
emergência.
Horas mais tarde, o médico chamou os seus
pais para finalmente lhes explicar o que se
passava com seu filho. Inicialmente os exames
nada diziam, era como se ele apenas estivesse
dormindo profundamente.
Com o passar dos dias, mais observações e
exames foram feitos, e descobriu-se que havia
algumas lesões em seu cérebro, mas
estranhamente a atividade cerebral dele estava
muito acima do esperado para a situação de coma
em que agora se encontrava. O nível de atividade
cerebral era semelhante ao de alguém
aprendendo algo novo.
Com o passar do tempo notou-se o aumento
no nível de atividade e que o impossível estava
acontecendo, as áreas lesionadas estavam
gradativamente se regenerando.
Nesta mesma época, cresceram as
esperanças e fé dos pais de Bob, mas
estranhamente, as visitas foram ficando mais
95
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
curtas, mais espaçadas, até que deixaram de
ocorrer.
– A partir daí, o quarto de Bob nunca mais
foi aberto. Foi como se ele nunca tivesse existido...
– completou Marco, após a tela da TV se desligar
com o fim das imagens – Meses depois disso,
minha esposa faleceu. Hoje sei que foi de tristeza,
pela falta de nosso filho. Sua mente podia até não
se lembrar dele, mas seu coração sabia.
Marco ficou em silêncio por um instante.
Quando conseguiu falar novamente, quebrou o
silêncio dizendo: – Agora vamos mudar o foco do
assunto, pois se eu me entristecer não sei se
conseguirei ter controle e equilíbrio para manter
tudo isso de pé.
– O que houve depois disso? – indagou Matt.
– Esta é a parte da especulação. Até onde sei
a série de microchips de inteligência artificial
Human Unit foram concebidos para trabalharem
junto com o cérebro de pessoas com lesões ou
deficiências cerebrais. Eles se mostraram tão
promissores, que podiam até mesmo substituir
um cérebro humano quase que completamente. –
respondeu Marco.
– Mas isso ainda não explica muita coisa...
96
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Eles eram microchips híbridos, pois eram
orgânicos em parte. Quando os molhou com as
proteínas do leite e os estimulantes como a
cafeína, na caneca, a atividade do chip especial foi
ampliada, porque as estruturas orgânicas se
fortaleceram com o líquido. Com isso sua
programação evoluiu.
– E com a descarga elétrica tudo se
potencializou. – concluiu Matt.
– Exato! De alguma forma ele está em sua
mente, filho. – afirmou Marco. – Por isso você tem
esta grande capacidade com Mnemósine, desde o
coma.
Matt sorriu tristemente, como se estivesse
tendo um devaneio e disse: – Por isso Dino não
sabia de onde vinha tanta facilidade e domínio
com a Mnemósine...
– Mas você sabe que isso tem cobrado um
preço de você... Seu corpo quase não consegue
acompanhar o estresse que tamanha atividade
cerebral tem lhe trazido. Por isso tem tomado
muitos medicamentos para tentar se manter
estável. Mas há uma forma de reduzirmos o
estresse que vem impondo ao seu corpo. É só...
Antes que Marco pudesse continuar a falar,
passos puderam ser ouvidos vindos da escada que
dava acesso aos apartamentos do segundo piso.
97
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Filho, me perdoe! Precisamos sair daqui
agora! Antes que seja tarde... – alertou Marco,
puxando Matt para a sala e de lá para fora do
apartamento.
Ao abrirem a porta, Matt viu Marco já fora
do apartamento, na mesma posição que estava
quando o convidara para entrar, e ele próprio
estava no mesmo lugar onde parara ao esperar
Marco subir as escadas.
Ao dar o primeiro passo para fora do
apartamento, Matt se sentiu arremessado com
violência da soleira da porta de volta ao seu
corpo.
– Mas o que foi isso? – questionou Matt.
– Você perguntou se este era um bom lugar
para conversarmos, lembra-se? E de qualquer
forma, eu não precisava levá-lo ao interior do
apartamento, aliás, eu nem faço ideia de como ele
é por dentro. Filho, você precisava vir aqui
dentro, – disse Marco apontando para a testa – e
conseguir abrir as portas que eu precisava e não
conseguia destrancar.
– E os passos? – indagou Matt. – Já
deveríamos ter sido encontrados...
– Isso é apenas um aviso. Mas eles não
demorarão... Me perdoe, filho. Quando suspeitei
que você existiu, que não era fruto da minha
mente, mexendo em algumas coisas, descobri o
98
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
seu quarto, que estava escondido atrás de uma
parede. Lá dentro estava o cartucho de Veritas
vos Liberabit. – explicou Marco medido as
palavras na tentativa de irritar Matt o mínimo
possível – Em meu desespero por respostas o Sr.
Carlos pareceu ser uma boa solução...
– Você se associou ao Sr Carlos? O rochedo?
– vociferou Matt – Como pode? Por que escolheu
este lugar, se ele não tem importância alguma?
– Sempre atendeu seus clientes em bairros
perigosos ou mais desertos. Eu acreditei que
assim poderíamos despistar os homens do Sr.
Carlos.
– Mas ao que parece você está errado.
– Sei que não mereço perdão. Especialmente
agora... Mas na época, me pareceu que era a
única escolha para descobrir a verdade. E parece
que de algum modo torpe, eu estava certo, filho...
Os dois se entreolharam fixamente por um
instante, mas foram interrompidos pelos ruídos
do celular de Marco. Provavelmente os homens do
Sr. Carlos já estivessem chegando, pensou Matt.
Matt o agarrou e o empurrou com força na
porta do apartamento 21. Devido à rapidez do
movimento de Matt, Marco bateu a cabeça com
força na porta, quase desmaiando com isso.
Quando começou a recobrar a consciência, se
aproximou de Matt, e o olhou fixamente nos
99
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
olhos. Quase não se podia distinguir ou perceber a
expressão que trazia na face.
Marco não carregava raiva, ódio ou
desprezo, na verdade os músculos da face
estavam quase inexpressivos, como se estivessem
anestesiados. Mas os seus olhos eram profundos e
reveladores como nunca antes. Tinham ternura,
compaixão e suplicavam perdão.
Com esta reação de Marco, Matt ficou ainda
mais raivoso e passou a empurrá-lo com força pelo
corredor.
Marco não esboçou qualquer tipo de reação
de ataque, tentou manter-se de pé cada vez em
que fora empurrado.
– Interessante você ter escolhido se chamar
Matt... – disse Marco – Sua mãe queria que seu
nome fosse Mateus. Eu que não deixei. Preferi
Roberto, o nome de meu pai. – revelou ele – Mas
se bem me recordo, nunca lhe contei isso...
Com o último empurrão, Marco ficou a um
ou dois passos da janela, após ele terminar de
falar Matt ficou furioso e o empurrou com toda a
força em direção a janela, que se despedaçou
fazendo Marco cair rumo à calçada fria.
Por um breve instante enquanto ele caia,
sorriu tristemente para Matt. Mas ele não teve
tempo suficiente para ver qual expressão trazia
no rosto no momento em que o vira caindo.
100
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Finalmente os seus olhos se abriram, depois
de tanto tempo fechados, as imagens do mundo a
sua volta estavam turvas. A luz incomodava
bastante, à medida que os olhos foram se
acostumando com a claridade, e os primeiros
contornos à sua volta começaram a se definir, e
ele percebeu que estava em um lugar
desconhecido.
No entanto esta primeira impressão foi
rapidamente desfeita, não por alguma imagem ou
objeto conhecido ter sido flagrado por seus olhos,
mas sim, por uma exclamação de espanto, que
ouvira sendo seguida por uma voz muito familiar:
– Que bom! Já está acordando. – exclamou Sr.
Carlos.
Com o som desta voz familiar ele se
despertou mais rapidamente, percebeu que dois
livros de bolso estavam no criado ao seu lado.
Percebeu também que ao ouvir a voz do Sr Carlos,
isso significava que ele estava em sua mansão.
Pois ele dificilmente iria até um hospital visitá-lo,
se fosse o caso.
Quando Marco virou o rosto na direção do
Sr. Carlos, que sentiu uma leve, mas
desagradável dor de cabeça surgindo, como se sua
presença ali a estivesse causando.
Aparentemente o Sr. Carlos percebeu que
Marco ao acordar não estava bem. Ele levantou-
101
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
se e seguiu até a porta dizendo: – Descanse mais.
A médica que cuidava de Valda virá vê-lo.
Quando ele saiu, o mal estar de Marco
passou quase que imediatamente. Mas, como ele
temia estar sendo vigiado, ele manteve a mesma
expressão de desconforto, pôs a mão sobre a testa
e a massageou por uns instantes, na “tentativa”
de fazer com que a dor passasse.
Depois de alguns minutos quando começou a
se “sentir bem”, lentamente começou a mudar de
posição e começou a olhar fixamente a jarra com
água que estava ao seu lado, ele estava sedento.
Quando finalmente mudou de posição na
cama e levantou o braço para servir um copo
d’água, a porta se abriu de supetão, como se a
pessoa que fosse entrar estivesse sendo forçada a
isso.
Com a rapidez com que a porta foi aberta,
Marco se assustou e por reflexo recolheu o braço,
como se fosse uma criança sendo flagrada fazendo
algo de errado.
– Desculpe assustá-lo. – disse a médica
tentando disfarçar a maneira que entrou no
quarto – Deixe eu lhe ajudar com isso. Se o
Senhor conseguir, sente-se na cama para que eu
possa examiná-lo.
102
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Ele sorriu, pouco à vontade com a situação,
mas sentou-se como fora pedido. Após ele
terminar de beber água o exame foi iniciado.
– O que ocorreu comigo? Onde estou? –
perguntou Marco.
– Primeiro diga-me como se sente, Marco. –
retrucou ela finalmente falando novamente.
– Estou bem Dra. Marta. – disse Marco
olhando para o nome da médica bordado no jaleco
– Saudável como um cavalo! – exclamou ele
exibindo o físico para ela.
– Que bom – disse Marta sorrindo com sua
brincadeira – Bem, você teve uma concussão e
alguns arranhões leves por causa do... – ela
hesitou – Dormiu por uns dois dias, logo que
chegou aqui. Estamos em um dos quartos de
hospedes da mansão do Sr. Carlos. Você não está
reconhecendo este lugar, pois nesta área da casa
apenas entravam as pessoas que cuidavam da
Sra. Valda. Aqui é como se fosse um pequeno
hospital.
– Doutora, poderia me fazer um pequeno
favor? Já tem algum tempo que eu ouço um
zumbido nesse ouvido – disse Marco apontado
para o ouvido direito.
– Claro! Você está com sorte, estou com o
otoscópio aqui. – disse Marta – Sente-se e tente
não se mexer.
103
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Certo.
Ela se aproximou dele e ficou de costas para
o espelho que ficava do lado direito de Marco.
– Você não deveria ter dormido por tanto
tempo. Foi só uma concussão... O velho Carlos
está intrigado com isso. Cuidado. – sussurrou a
médica – Não estou vendo nada demais. Mas é
melhor que procure um especialista. – disse ela já
se afastando do ouvido de Marco, num tom de voz
normal.
– Quem recomenda doutora?
– Tem um amigo meu. O nome dele é Dr.
Ítalo. É um grande profissional. Ele me ensinou
muitas coisas.
– Obrigado – agradeceu Marco sorrindo.
– Pelo que? – respondeu Marta como se
estivesse voltando a si – Não foi nada, é o meu
trabalho – atalhou ela para encobrir a estranheza
que acabara de ocorrer – Caso precise de alguma
coisa, pressione o botão no criado mudo.
Assim que a médica saiu do quarto, Marco
voltou a se deitar na cama, por um longo tempo
ficou deitado contemplando o teto, como se ele
estivesse buscando alguma coisa na mente.
Depois de um tempo, levantou-se e foi até o
espelho que estava do seu lado direito, se
aproximou bastante dele e começou a contemplar
seu rosto.
104
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Sua aparência não era ruim, ele se parecia
com alguém que despertou depois de dormir
demais.
Aqui e ali, havia uns poucos arranhões, mas
eles eram um tanto estranhos, maioria deles
eram bastante rasos, mal romperam a pele.
Muitos deles pareciam ter sido feitos de propósito.
Além dos arranhões nenhum hematoma ou outro
tipo de marca foi notada por ele.
Enquanto ele se “examinava”, a porta abriu-
se calmamente, Marco continuou o que fazia
fingindo não ter ouvido nada.
O Sr. Carlos entrou no quarto e sentou-se na
mesma poltrona onde estava. Quando Marco viu
seu reflexo pelo espelho, virou-se calmamente e o
fitou por um breve instante.
– Desculpe entrar sem falar nada. Não
queria interrompê-lo – explicou Sr. Carlos.
– O Sr. não precisa se desculpar. Afinal a
casa é sua. Eu é que tenho que lhe agradecer pelo
cuidado que dispensou comigo.
– Tem razão. Mas educação e respeito são
coisas que prezo muito. E não posso exigi-los se
eu não oferecê-los antes. – disse o Sr Carlos se
levantando e indo até Marco para cumprimentá-lo
– É bom ver que você está bem.
– Estou realmente muito bem, obrigado. Mas
Sr. Carlos, qual o motivo de sua visita? O Sr. é
105
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
muito ocupado, como sabemos, para dispensar
tanto tempo a um mero funcionário. – questionou
Marco incisivamente.
– Preciso lhe contar uma coisa – respondeu o
Sr. Carlos secamente – E talvez, você também
tenha algo a me dizer...
– Sr. Carlos, será que poderíamos conversar
no jardim? Já estou aqui há nem sei quanto
tempo e estou começando a me sentir sufocado.
Lá fora está um belo dia. E respirar um ar “novo”
me fará bem.
O Sr. Carlos não gostou da ideia, isso podia
ser visto na leve mudança que ocorreu em sua
face. Mas ele sabia que precisaria abrir mão de
coisas menores em favor de outras maiores, que
poderiam estar mais adiante.
Ele acabou concordando com a ideia, mesmo
que isso significasse que qualquer registro ou
meio de controle externo, não seria dificultado ou
até neutralizado. Os dois foram até o meio do
jardim, onde havia mais sombra naquele horário.
Assim que se sentaram, o Sr. Carlos
começou a contar o que havia ocorrido naquela
noite. Que Matt realmente o tinha jogado pela
janela, conforme seus homens relataram, e que
ele não havia morrido com a queda, pois logo
abaixo da janela havia uma caçamba de entulho
106
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
cheia de sacos de cimento vazios e caixas de
papelão, que amorteceram sua queda.
Foi nesta caçamba de entulho onde ele foi
encontrado e levado para a mansão. Alguns deles
o trouxeram para a mansão e os outros seguiram
Matt que iniciara a fuga.
A perseguição se seguiu pelas ruas da cidade
seguindo até o túnel que levava a ponte norte.
Mesmo a pista estando interditada, pelas
reformas no túnel, ele ultrapassou o bloqueio e,
poucos metros adiante, acabou batendo em um
caminhão tanque dentro do túnel causando uma
grande explosão, destruindo a entrada do túnel.
Para comprovar o que ele falava, mostrou a
Marco alguns jornais dos últimos dias que
confirmavam o ocorrido, mas alegavam que um
incêndio no meio do túnel, ocorrido durante a
madrugada, causou a explosão do caminhão
tanque e o desabamento da entrada. Obviamente
a perseguição nunca ocorreu oficialmente e por
isso não fora citada.
Com a constatação do ocorrido, Marco largou
o jornal sobre a mesa e começou a chorar, quase
que silenciosamente.
O Sr. Carlos tentou se manter em silêncio,
mas não resistiu a oportunidade que surgiu: – O
que houve? Por que está chorando?
107
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Agora nunca mais conseguirei o que eu
buscava! – respondeu Marco, começando a se
desesperar.
– Se acalme! Você não pode se descontrolar
assim! Você acaba de sair de um momento muito
delicado – atalhou o Sr Carlos, percebendo que
havia perdido a oportunidade, se é que ela
existiu.
Quando finalmente Marco começou a se
acalmar, respirou fundo e deu a explicação que os
olhos do Sr. Carlos exigiam dele: – Não consegui
nada com ele... Logo que ele chegou até mim, e
percebeu que eu trabalhava para o senhor, ele
ficou furioso e se sentiu traído. Antes mesmo que
eu pudesse explicar alguma coisa, ele começou a
me agredir. Quando o meu celular tocou, ele
achou que eram os seus homens que estavam
chegando. E me empurrou pela janela.
– Entendo... Defenestração... Nunca pensei
que ele fosse capaz disso...
– E agora Sr. Carlos? O que eu farei? Agora
que ele não existe mais. Minhas esperanças de
descobrir a verdade se foram com ele... E sua
promessa? Como a cumprirá agora? Me prometeu
que iríamos descobrir o que tinha ocorrido com o
meu filho, se eu lhe entregasse o jogo! E agora
tudo acabou...
108
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
– Se acalme. Encontraremos uma solução
para isso. Ele não deve ser o único no que faz... –
justificou o Sr. Carlos. – Há alguma coisa que eu
possa fazer por você enquanto isso? – disse ele
tentando se desvencilhar de Marco.
– Eu gostaria de voltar para minha casa. –
respondeu Marco secamente.
– Vá se trocar no quarto onde você estava, lá
estão algumas roupas suas. Providenciarei que
seja levado a sua casa. Tire uns dias de folga,
quando estiver pronto retorne ao seu trabalho.
O Sr Carlos saiu, para resolver o que era
necessário para que Marco fosse levado para sua
casa. Fez isso pessoalmente, principalmente por
precisar de um pretexto para sair de sua
presença, por perceber que nada havia para se
tirar dele.
Antes de sair, pediu a um dos seguranças
que acompanhasse Marco até o seu quarto. Marco
seguiu com a companhia do segurança até lá, mas
quase sempre tinha a impressão de ver Matt pelo
caminho até o quarto. A notícia o tinha abalado
profundamente.
Quando estava pronto para sair, seguiu até o
carro ainda na companhia do segurança. Ao
sentar-se no banco traseiro, viu que os dois livros
que vira no criado ao lado da cama estavam ao
seu lado.
109
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Ele percebeu que eram os livros que sempre
levava consigo. Eram: Teoria dos órgãos: Zang Fu
e Tai Chi Chuam. Os folheou e percebeu que
faltavam nos dois a primeira página onde havia o
título dos livros e a assinatura de sua esposa.
Naquele momento ele não tinha ânimo para
ocupar sua mente com isso. Passou a olhar o
mundo pelas janelas do carro.
A paisagem dos bairros foi mudando e logo
ficando cada vez mais familiar. Num determinado
momento, ele disse num sobressalto: – Pare o
carro próximo aquele restaurante!
Devido ao desastre no túnel da ponte norte,
que era próximo dali, tiveram dificuldade para
conseguirem estacionar o carro devido a lentidão
no trânsito.
Ao entrar no restaurante, Marco logo seguiu
até a mesa do canto esquerdo, que era a única
disponível.
Além do nome, o restaurante nada tinha de
americano, esse era mais um dos resíduos na
mente de Matt, devido aos efeitos da medicação
que precisava tomar.
Um homem baixo de olhos irritados,
rapidamente o procurou, levando o cardápio e
uma xícara de água morna. Seus olhos estavam
irritados, devido ao clima seco daquele dia.
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Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Marco pegou o cardápio e sorriu ao homem,
que tentou retribuir o sorriso, mesmo que
tristemente. Ele pegou o saquinho de Earl Gray
que fora deixado por Dino sobre a mesa e o
mergulhou na xícara. Ao invés de jogar fora o
envelope do chá ele o guardou em seu bolso.
Enquanto aguardava o Earl Gray ficar no
ponto, olhou rapidamente o cardápio, mas nada
nele o interessou.
Como o chá ainda não estava no ponto,
passou a fitar a capa dos livros que trouxera, e
sempre que podia olhava através da janela e via
que o motorista ainda o aguardava no carro.
Quando o cheiro do Earl Gray indicava que
estava pronto, antes mesmo que ele pudesse
pensar em tocar na xícara, Dino apareceu e
retirou-a da mesa, em seu lugar colocou um prato
de fetuccine al pesto, ao sair levou o cardápio
consigo, sem falar palavra alguma com Marco.
Marco comeu o que lhe fora servido, apesar
de ele não ser um dos seus favoritos, acenou
pedindo a conta e Dino retornou com uma pasta
de couro. Marco verificou o valor e ao colocar o
dinheiro na pasta a derrubou, Dino abaixou-se
com dificuldade, pegou-a juntamente com os
livros que também caíram. Antes de sair ele
agradeceu a Dino, que correspondeu com a
mesma cortesia, agora um pouco mais animado.
111
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Ao chegar em casa, parou por um longo
tempo em frente ao quadro pendurado sobre o
sofá, assim como no apartamento em que levou
Matt. Nele, Marco, a esposa e o filho estavam
retratados. A decoração de sua casa era idêntica a
do apartamento onde estivera.
A fotografia foi tirada na primeira vez que
puderam sair juntos de férias. Na época foram
visitar o pai de Marco numa cidadezinha do
interior, a última vez que pode ver seu pai vivo.
Enquanto olhava para o retrato ele não
chorou, se entristeceu, nem mesmo respirou fora
do compasso. Já não havia mais motivos para
isso.
Por fim passou a olhar ao mesmo tempo sua
versão mais jovem e a paisagem de fundo daquela
cidade onde cresceu.
– “Como estarão as coisas por lá?” – pensou
ele. – “Será que ainda há algum morador vivo que
me conheça?”
Ele seguiu até o seu quarto e tomou um
longo banho. Vestiu suas melhores roupas,
preparou uma pequena mala, ligou para o táxi e
rumou ao terminal rodoviário.
Chegando lá, pegou o primeiro ônibus para o
interior do estado.
112
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Horas mais tarde, quando o ônibus já estava
quase vazio, ele fez uma pequena parada num
posto qualquer no meio da estrada.
Marco pegou o livro Teoria dos órgãos: Zang
Fu e folheou-o. A primeira página estava lá
novamente como que por mágica.
– “Devo estar mais cansado e desatento do
que nunca...” – pensou Marco.
Ao virar a página que não deveria estar ali,
havia uma mensagem:
Obrigado por sempre se importar comigo.
Mesmo não tendo certeza se eu era ou não real...
Usarei os conhecimentos destes dois livros para
me cuidar melhor.
O que queria me ensinar com estes livros, já
aprendi enquanto passei por aí...
De agora em diante estarei mais equilibrado,
não se preocupe, sei cuidar de mim mesmo.
Uma hora dessas, talvez nos veremos de novo
pai.
M.
113
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
Marco baixou a vista, respirou
profundamente e sorriu.
O ônibus deu um solavanco e ele acordou
assustado. O ônibus ainda estava cheio, porém
silencioso, não estava parado, mantinha-se em
movimento constante.
Ele procurou os livros e realmente as
páginas estavam lá. Mas nenhuma mensagem
estava escrita no Teoria dos Orgãos: Zang Fu.
Apenas a assinatura de sua esposa estava lá.
Mas no Tai Chi Chuam, na parte de trás da
primeira página, que também reapareceu,
estavam duas passagens de ônibus da mesma
empresa em que agora o transportava.
No verso de uma delas, havia uma chave
pregada com fita, e nesta estava escrito: Agência
dos correios caixa 001 – veritas.
Era uma passagem de ida e outra de volta,
para a cidade seguinte até onde ele iria, a ida
para o dia seguinte e a volta para dois dias
depois.
Marco fechou o Tai Chi Chuam, com as
passagens dentro, o guardou cuidadosamente
dentro da mala junto com o outro livro.
Ainda faltavam algumas horas para que ele
chegasse a seu destino. A oeste o sol se punha no
meio dos campos que se descortinavam a sua
frente, através da janela.
114
Veritas Vos Liberabit – Fabiano dos Santos Araújo
O dia terminava. Mas para ele, estava
apenas começando.
PUZZLES
_______________
Petter
xistia ainda uma última locadora no
bairro onde eu havia crescido. Este bairro
ficava na área mais afastada da cidade,
distante da produtividade e do foco. Um lugar
para o qual as pessoas só voltavam para dormir
no final de um dia de trabalho. Reencontrei a
locadora em uma peregrinação nostálgica. Alguns
dos locais mais felizes da minha vida não
existiam mais, mas a locadora estava lá, um
portal anacrônico. O dono dela ainda era o
mesmo, agora velho, magro e barbudo, cheirando
E
116
Puzzles – Petter
a tabaco, com um cigarro pendendo da boca.
Sentava em uma cadeira de plástico que havia
sido branca, com um controle de Mega Drive em
mãos. Não tirou os olhos caídos da tela: um
personagem corria cercado por zumbis em um
shopping, ao som de uma trilha sonora frenética.
Passei pelas prateleiras empoeiradas e vi que
nenhum jogo estava alugado. Escolhi Super
Metroid, Secret of Mana e uma fita com o rótulo
quase todo retirado, mas que eu supunha ser
Altered Beast pelo pouco papel que restava.
Perguntei para o dono do lugar que jogo era
aquele.
— Este é um difícil – Disse, já atrás do
balcão, com o rosto baixo.
Quando saí do lugar, olhei para trás e vi de
longe o velho sentado, olhando para mim. Não
consegui apagar a sensação absurda de que havia
esperado apenas por mim todos esses anos.
Quando olhei para trás de novo ele estava
abaixando o portão de aço da loja, coberto de
grafite.
Em casa, levei algum tempo para achar os
consoles escondidos em alguma gaveta. Joguei
Super Metroid até Brinstar.
Troquei de vídeo game e botei a fita sem
rótulo.
117
Puzzles – Petter
Não havia tela inicial. O protagonista era
alguns poucos pixels, que de tão poucos e tão
pequenos apenas sugeriam uma humanidade.
Parecia ter uma faca na mão. Você seguia em um
labirinto escuro, sala por sala, matando inimigos
e solucionando puzzles para abrir portas. Os
problemas lógicos eram variados e aos poucos iam
se tornando mais complexos; depois de algumas
semanas eu já passava mais tempo tentando
resolvê-los do que trabalhando, sem conseguir
deixar de pensar neles. Eu imaginava a
dificuldade dos enigmas subindo até um nível
sobre-humano, fazendo com que terminar o jogo
se tornasse impossível – um jogo feito por uma
entidade superior, indescritível, terrível. A partir
de certo ponto os enigmas passaram a utilizar
palavras, a língua sendo o japonês, o que me
obrigou a aprendê-la. Havia uma erudição
inerente ao jogo; questões que só podiam ser
resolvidas com ajuda de livros raros e
especialistas de diversos campos. Consultei com
tradutores de aramaico e cantonês, pois alguns
dos assuntos referenciados só podiam ser
encontrados nestas línguas. Viajei para o interior
da Índia à procura de mais um livro. Aos poucos
entendi que este jogo era como cofres dentro de
outros cofres. Quem guardaria algo insignificante
em um lugar de máxima segurança? Um piadista
era uma possibilidade, mas havia algo de pesado
118
Puzzles – Petter
e soturno neste jogo que me impedia de acreditar
em um final assim. O puzzle seguinte vinha em
uma língua que eu não conhecia. Tirei uma foto
da tela e a levei a diversos especialistas
linguísticos, sem nenhuma resposta positiva.
Restou-me a tentativa aleatória. Escolhi estes
símbolos desconhecidos em combinações
incontáveis. Depois de três anos, tentando todos
os dias, anotando cada combinação já testada,
achei a certa.
A porta se abriu. Atravessei. A tela preta.
“Fim.”
Uma música infantil e feliz. O protagonista
andando para cima, saindo da tela. Então tudo
ficou preto. Os créditos subiram. Apenas uma
pessoa: Hirokuni Kenmo, Akesaitomo 22,
Hokkaido.
Fiquei ali, por um tempo olhando a tela
preta que tocava uma musiquinha típica de 16-
bits, o meu quarto escuro, apenas com a luz
azulada da televisão de tubo. Viajei para o Japão
na semana seguinte.
Dirigi por horas, procurando o endereço dado
nos créditos, até por fim avistar um castelo
embrenhado entre as árvores. Havia a
possibilidade de Hirokuni estar morto, o que me
deixava apreensivo.
119
Puzzles – Petter
Dei uma volta no castelo. Dei uma segunda
volta, surpreso por notar o quão cansado e
nervoso eu estava, ao ponto de não perceber a
porta do lugar. Em seguida constatei que, de fato,
não havia porta. Pelo menos a princípio. Este foi o
primeiro puzzle de uma série que tentava me
impedir, sala após sala, de chegar ao topo do
castelo. Alguns deles eram parecidos com os que
eu havia solucionado no jogo. O interior, com suas
paredes de pedra, era um lugar estranho. Vivi
nove anos naquele castelo, me alimentando de
enlatados, até chegar à última sala.
Quando cheguei, fiquei alguns minutos
olhando para o grande cadeado e para as grandes
correntes depois de girar a chave. Entrei.
Hirokuni estava sentado em um escritório amplo,
lendo um livro. Era esquelético, careca e muito
enrugado. A sala era grande, com uma biblioteca
em volta e uma katana ao fundo. Entre eu e a sua
mesa existiam variadas plantas, iluminadas por
uma abertura gradeada no teto. Era possível ver
insetos por todos os cantos.
— Hirokuni! — Eu disse, com voz rouca.
Hirokuni se levantou. Apenas o barulho
abafado do livro sobre a mesa. Aproximou-se
devagar. Parecia estar muito emocionado.
— Você é o primeiro a terminar o jogo.
— Havia outras cópias?
120
Puzzles – Petter
— Sim. Mas você é o primeiro, tenho certeza.
Ninguém terminaria sem vir me visitar. A
vontade necessária para terminar os trariam até
mim.
Conversamos por algumas horas. Eu o
conhecia bem. De vez em quando, entre uma frase
e outra, Hirokuni pegava um inseto que estivesse
passando perto e o comia. Não conseguindo mais
me conter, finalmente perguntei.
— Hirokuni, estou pronto. Qual é o segredo?
— Que segredo?
— Do jogo. Tudo sugere um gran finale. O
jogo continuando na realidade, toda a dificuldade
e a genialidade por trás de cada puzzle... O final
tem que ser igualmente brilhante. O final da
minha dedicação total precisa de um significado.
Ele sorriu. Eu não conseguia identificar se
era um sorriso de pena ou de satisfação.
— Os enigmas eram perguntas, seria
contraditório eu oferecer uma resposta no final. É
claro que eu tinha as respostas, mas era só
quando você as dava que o jogo ia adiante. Não é
suficiente, o ato de resolver cada um dos
problemas? Estamos unidos por algo que apenas
nós temos em comum no mundo, um trabalho
colossal partilhado. Eu sou o prêmio, posso
oferecer a você tudo que sei. Você me libertou,
121
Puzzles – Petter
estou grato. É até mesmo uma história
romântica.
— Eu acho que não. — Respondi. Hirokuni
me olhou sem dizer nada, então se virou, indo
olhar a sua enorme prateleira entupida de livros,
e continuou falando, sem se virar:
— Na minha compulsão, me trancafiei, porta
atrás de porta, camadas me separando do mundo.
Algumas pessoas têm um desejo incondicional de
liberdade ou de decodificação, como você. Não são
vocações raras. Mas cada coisa tem um oposto. A
minha vocação sempre foi a oposta. Acredita que,
quando jovem, cometi um crime que não queria
(que, na verdade, me causou repugnância) só para
ver se a polícia conseguiria me descobrir, e
também para passar um tempo na cadeia? Veja!
— Apontou para uma caixa de metal quase
pequena demais para um homem, que ficava em
um canto da sala. Ela tinha pequenos furos no
topo para a entrada de ar.
— Estava prestes a me trancafiar nesta
última caixa e morrer ali de fome, em posição
estranha. Simplesmente porque não consigo
segurar a minha compulsão de criar desafios. A
racionalidade é parte essencial minha, como pode
ver na criação dos puzzles, mas ela só existe junto
à compulsão. A racionalidade a serviço da
compulsão irracional, este é o meu trabalho de
122
Puzzles – Petter
vida. Ainda não entrei na caixa porque há anos
trabalho na construção do enigma ideal, perfeito,
que me tranque ali. Vamos embora, não vejo a
rua há muitos tempo. Como são os novos
videogames?
Eu puxei a minha faca e me aproximei aos
poucos.
— Mente! Você é o chefe final. Sim. E se
esconde, se camufla como se fosse outra coisa.
Você é o último puzzle.
— Está louco. Acabou, não tem mais
nenhum passo. Tinha que acabar em algum
momento.
— Talvez, talvez seja preciso torturá-lo.
Então dirá o que realmente é o final. Entendo.
Você quer que eu tenha um comprometimento
total. E o seu, você está disposto a sofrer para que
eu chegue ao fim. Só dirá o final no último
suspiro. Talvez nem mesmo saiba esta frase final,
esta frase que vale todo o esforço, e por isso
precisa de mim, para tirá-la de você. Vou tirar ela
de você.
Corri atrás dele, que foi buscar a katana na
parede e conseguiu se virar a tempo para se
defender com a bainha. O confronto não era muito
bonito ou excitante: estávamos fracos, cansados e
lentos. Mas ele estava mais cansado. Derrubei a
katana das mãos de Hirokuni e caímos os dois de
123
Puzzles – Petter
forma patética no chão. Ele se arrastou para a
caixa, se espremeu ali como um contorcionista,
perna por cima da cabeça, e se fechou. Tentei
abrir, xingando. Como havia dito que ainda não
tinha um enigma pronto? Eu podia ver uma tela
digital por cima da porta com uma série de
símbolos. Supus que, apesar de não ter tido tempo
de bolar a pergunta perfeita, ele tinha já pronta
uma segunda, inferior, para um caso como este.
Isto me dizia que o enigma atual não era
impossível. Me pus a trabalhar, mas quando
consegui abrir a caixa, depois de alguns dias sem
pensar em outra coisa, correndo contra o tempo,
ele já estava morto. Eu o matei. Este era um teste
de confiança. Ele havia posto a sua vida nas
minhas mãos, acreditando que eu seria capaz de
abrir a caixa a tempo. Pensei, desesperado, que
talvez até mesmo me dissesse o próximo passo se
eu o salvasse. Enterrei-o e voltei para o castelo. O
meu trabalho de vida se resumia a um cadáver e
uma série de portas abertas. Sem um objetivo, o
tempo se arrastava. A minha vida não evoluía
como antes, apenas se mantinha, se decompunha
lentamente. Ali, naquele castelo, na última sala,
passei a entender melhor o ponto de vista de
Hirokuni. Sonhei com um mundo alternativo no
qual Hirokuni criaria puzzles incontáveis e eu os
quebraria, sempre um passo atrás, até o fim dos
tempos. Contemplei o suicídio. Pensei no meu
124
Puzzles – Petter
sonho. Os únicos resultados de todo o meu
esforço: portas abertas e um cadáver... Fui até
onde havia enterrado Hirokuni, debaixo de uma
árvore solitária. Cavei, puxando a terra com as
mãos. Quebrei o caixão e tirei o cadáver ainda
não totalmente decomposto. Vomitei sobre ele.
Fiz uma autópsia desajeitada, suja, abrindo cada
canto do seu corpo. No estômago, uma pequena
placa de metal com inscrições. Um endereço, mais
uma pergunta.
KONTINUUM
_______________
E. Reuss
im”, respondi. Cada centímetro do
meu corpo mergulhando numa
dormência induzida pelo medo, não só
o medo de perder Michele, mas também de
encarar o mundo físico, de perceber o tempo da
forma como ele transcorria para os outros, e de
acabar revelando aquelas memórias desbotadas
que ali dentro eu sabia que se recusariam a
retornar para sempre. Por isso preferi continuar
jogando.
“S
126
Kontinuum – E. Reuss
Michele me olhou com um sorriso contido,
disfarçado sob a tristeza de um rosto que poderia
muito bem ser o de outra pessoa. E eu podia
senti-lo, tão bem quanto sentia as linhas de
código do Kontinuum fluindo através de mim,
para depois se agruparem no código-fonte
implacável do jogo, dentro de loops infinitos.
Percebi que tudo o que eu tinha era uma obra do
Kontinuum, e senti uma aproximação quase
sagrada, uma devoção despertada pelo medo. Lá
fora, o céu parecia ter assumido uma decrepitude
que se assemelhava à morte, coberto por uma
camada acinzentada e intoxicante que parecia ter
sido expelida das fornalhas do inferno.
Fechei os olhos e busquei alguma memória
que me fizesse dormir. Lembrei, ironicamente, da
sala de reuniões do prédio da SkyLamb, onde na
época trabalhava como programador. O fedor da
falsidade corporativa imperava, e homens de
ternos, alguns fumando cigarros, outros bebendo
água com gás em taças abobadadas, todos, sem
exceção, alisando suas gravatas com certa
regularidade, se organizavam ao redor da mesa
circular em uma sucessão de clichês e risadas
extravagantes. Camisas eram puxadas, ombros
eram apalpados sob trajes com caimentos
perfeitamente ajustados pelo mesmo alfaiate, que
seria uma carcaça invisível ou a recordação do
que fora um homem que viveu a vida inteira
127
Kontinuum – E. Reuss
ajoelhado diante de coxas e pintos poderosos,
preparado para morrer antes de completar a
próxima lapela. E ele morreria sem saber que
durante esse tempo todo sua mente poderia ter o
salvado do sofrimento.
“Nos sonhos, as memórias são meros
objetos...”, eu discursava em um tom meio
profético, “que levamos desse universo como
lembranças deformadas de algo que já fomos,
uma herança totalmente sobrescrita e modificada
pelos atributos dos sonhos... E se pudéssemos
escolher quais dessas memórias ignorar? Ou
melhor ainda... Quais dessas substituir por uma
versão quase idêntica, mas levemente...
alterada?”, com os olhos cheios de sarcasmo, “um
tipo de polimorfismo onírico, he-he”. Eles se
entreolhavam e alguns já me ameaçavam com
suas risadas contidas. “Kontinuum é um jogo
revolucionário, uma interface funcional que ajuda
o jogador a criar aquilo que todos temos o desejo
de criar: um Universo... Inteiramente do zero.
Basta ingerir um comprimido de Zopiclona e
colocar esses eletrodos na cabeça”, disse, e foi o
suficiente para que os executivos caíssem em
gargalhadas histéricas e me expulsassem da sala.
Aquela reunião, aparentemente, havia sido
transmitida por meio de algum sistema de
comunicação secreto, construído em uma
128
Kontinuum – E. Reuss
linguagem desconhecida, que propagava aquelas
exibições de imbecilidade numa rede de
programadores, recepcionistas e analistas
entediados com uma necessidade quase fisiológica
de ridicularizar os outros. Assim que deixei a sala
de reuniões, me tornei, simultaneamente, uma
piada de mau gosto que envolvia histórias de
consumo exagerado de cogumelos, que levavam a
viagens alucinógenas pelo reino dos sonhos e
culminavam com a minha fixação transexual de
querer cortar meu próprio pênis.
Abri os olhos e senti a respiração de Michele
assumindo um ritmo decadente, seu corpo
lentamente cedendo ao sono iminente,
acompanhando a escuridão da noite, que dissolvia
todas as almas em sua sombra úmida e fria.
Menos eu. Decidi jogar, e mais uma vez senti a
culpa inexplicável. Kontinuum havia se tornado
uma perversão da qual eu não conseguia escapar.
Eu o havia programado para se comportar assim,
como um universo pacífico, acolhedor, e, ao
mesmo tempo, inexorável, inabalável, pois eu
havia escolhido ignorar a entropia, o tempo e a
própria morte. Nada poderia interferir na sessão,
muito menos o mundo real. Mas naquele dia, de
alguma forma, um cheiro podre de morte
penetrou aquela região profunda, onde de repente
se viu transformado em metáforas, se
129
Kontinuum – E. Reuss
materializando à medida que me resgatava da
obscuridade.
Caminhei até o quarto, tentando calcular o
tempo que passei jogando, e encontrei o corpo de
Michele sobre a cama. Os lençóis adquiriram um
tom marrom-avermelhado, a podridão lentamente
consumindo tudo a sua volta. Sua pele tinha a
textura morta de uma rocha, quase como se ela
tivesse acabado de sair da cúpula de alguma
catedral abandonada, um anjo desfigurado
coberto por uma camada repulsiva de umidade,
ferrugem e poeira. O odor era insuportável, o pior
cheiro de podre que eu já sentira, tão asqueroso
que penetrava a alma. Ao lado da cama, me
ajoelhei e comecei a chorar desconsoladamente.
As lágrimas se acumulavam em meus olhos numa
linha fria de um choro contido, cada vez mais
espessa, uma dor no peito se intensificando, a
própria manifestação de uma esperança que
parecia ser compartilhada até pelas lágrimas, que
se recusavam a descer como se esperassem o
momento em que Michele voltaria a respirar.
De repente, a tristeza se dissipou e ascendeu
no seu lugar uma curiosidade infantil e cristalina,
provocada por aquela visão distorcida pelas
lágrimas de um ponto verde se manifestando no
meio do rosto de Michele como o prelúdio de
alguma revelação divina. Me aproximei e estreitei
130
Kontinuum – E. Reuss
os olhos, e vi, brotando das profundezas de seu
globo ocular, um minúsculo botão de flor,
germinando com a ajuda de um caule tão estreito
quanto um barbante. Olhei as folhas sobrepostas
do broto, de um verde tão vivo que pareciam
emitir luz própria. Naquele momento, eu não
sentia mais a perda, como se Michele ainda
estivesse presente, apenas sob outra forma,
transformada pela natureza, assim como
Kontinuum transformava suas funções em
passeios oníricos por paisagens tão distorcidas e
distantes que era quase impossível acreditar que
foram criadas por linhas de código tão bem
estruturadas. Olhei para o cadáver sobre a cama,
como se fosse a sobra de uma ecdise reptiliana,
apenas a carcaça desocupada destituída de
qualquer tipo de espírito, e pensei no que poderia
fazer para tirá-la de lá. Ninguém nunca sabe o
que se deve fazer quando se tem um cadáver em
suas mãos. “Chamar a polícia?”, pensei, e quando
o policial de plantão atendeu ao telefone, me fez
dezenas de perguntas para as quais eu não tinha
resposta. “Ignorante”, ele me disse, com uma voz
tão aguda que poderia muito bem ser o guincho
de um porco se no meio eu não conseguisse
distinguir as palavras, “como é bonita a vida
desses viciados, ã? Não sabe nem por que a
mulher apareceu morta. Ããã?”. Não sabia se
aquela era, de fato, uma pergunta. “Não sou
131
Kontinuum – E. Reuss
viciado”, disse, mas eu era. “Claro que não”, ele
disse, e ficou em silêncio. “Vocês não podem
buscar o corpo?”, eu disse e ele “Éééééééééé”, em
um grito tão longo quanto doloroso, do qual tive
que me afastar para proteger meus ouvidos.
“Não”, me respondeu, ao fim da tortura, “Liga pro
SVO, os caras já tão mais acostumados a carregar
esses bostas”. A linha ficou muda.
Mais uma vez fui atraído pela planta e
larguei o telefone. Puxei-a delicadamente pelo
caule e pude sentir a dor de quase ser partido,
enquanto as raízes se desprendiam do olhar
vitrificado, como garras cadavéricas tentando se
agarrar em vão a uma máscara de mármore, fria
e escorregadia. Olhei para ela contra a luz
ofuscante do sol e lembrei que devia colocá-la em
um recipiente com terra.
Carreguei a planta para o lado de fora, onde
podia ouvir marteladas e buzinadas, gemidos,
animalescos e humanos, cantos de pássaros em
um desespero compartilhado pela perpetuação
das espécies, risadas de homens encharcados de
suor, suas britadeiras e serras circulares
castigando o asfalto, e o tintilar de garfos e facas
em pratos de porcelana, ecoando de casa em casa
e se misturando ao vento quente e úmido que
carregava essa profusão de sons delirantes como
se quisesse me fazer duvidar da aparente
132
Kontinuum – E. Reuss
tranquilidade da vizinhança. Desgosto, foi o que
senti. Tal como eu sentia toda vez que eu
penetrava o perímetro do mundo real. Me ajoelhei
ao lado dos sapos de gesso que habitavam a
sombra dos arbustos de Murta, plantados por
Michele, que acreditava que uma cerca-viva era o
que precisávamos para tornar nosso lar mais
convidativo, o lar de um relacionamento
construído por pessoas maduras. Ironicamente, os
arbustos se recusavam a se reproduzir e a crescer
mais do que trinta centímetros, enquanto minha
coleção de sapos de gesso continuava a crescer
exponencialmente, cada um com sua própria
personalidade, sua própria expressão facial,
esculpida por alguém em uma oficina que não
recebia a luz solar há décadas, de certa forma um
conhecedor da psicologia do olhar, que numerava
aquelas expressões relembradas e transferidas
para o gesso de acordo com a profundidade do
trauma. Ajeitei meu sapo preferido, um sujeito
esférico e deformado vestindo uma farda militar.
Seu olhar, cortante e sofrido, parecia indiferente
à beleza que o rodeava. Mesmo assim, meio que
pedi permissão, em silêncio, para roubar um
pouco de sua terra e colocá-la em um copo plástico
para sustentar as raízes da planta.
Por cima dos arbustos, Liro me encarava
com um olhar estreito, e eu o encarava de volta.
Às vezes, conseguia extrair de seus olhos
133
Kontinuum – E. Reuss
mensagens complexas, de um jeito que somente
ele poderia transmitir. Liro se abstém das
palavras e prefere se comunicar por meio de
grunhidos. Seu rosto adquiriu a rigidez de uma
rocha após um AVC e em respeito aos ouvintes ele
evitava pronunciar as consoantes, caso contrário
eles se viriam cobertos por baba. Mas algumas
palavras ainda podiam ser ouvidas saindo de sua
boca, naquelas horas solitárias em que o dia
lentamente cede à escuridão e os sons de repente
se tornam abafados, produzindo ecos que antes
não existiam, ressoando como sussurros
fantasmagóricos que acompanham os sons
originais e, às vezes, se desprendem, caminhando
sozinhos pelas sombras até atingirem ouvidos
desconhecidos, que pensam em sua inocência
estarem sonhando. Eu sabia que não estava
sonhando, era Liro cantando numa melodia ébria
e banhando-se numa baba densa. Naquelas
madrugas, a heroína ainda borbulhante se
prendia a consciência, penetrando lentamente
numa região onde memórias de repente se vêem
deformadas por um distúrbio químico, sugando
sua energia em troca de um prazer quase carnal,
quase astral, quase transcendente. Liro então
dormia e logo acordava como o Liro de
antigamente. “Ãooaoeio? Ããã... Ãoeuiuaua?”, ele
perguntou, com um olhar confuso. “Ééé...”,
hesitei, ainda tentando me recuperar de meus
134
Kontinuum – E. Reuss
devaneios, mas por fim respondi, “vamos”. E
fomos para o Bar do Ventinho. Decidi colocar o
broto no bolso interno do meu casaco, temendo
que ele fosse chamar a atenção de algum vândalo
com uma sensibilidade extremamente bem
desenvolvida. Em poucos minutos, comecei a
sentir cócegas no lado esquerdo do peito, que logo
se tornaram picadas irritantes, mas de qualquer
forma, toleráveis. As picadas se intensificaram e
se tornaram cada vez mais profundas, até que
chegamos ao bar do ventinho, em silêncio, Liro
com o olhar da heroína, eu recurvado, como se
reverenciasse constantemente uma autoridade
invisível, sentindo minhas vísceras serem
despedaçadas por seja lá qual fosse a força
sombria que habitava aquele invólucro vegetal.
Nesse momento, Michele já não ocupava minha
mente, mas figurava em algum ponto obscuro, um
lugar destinado a entes esquecidos e memórias
que emergiriam anos depois acompanhadas pela
doença e pelo desgosto, em cômodos fedendo à
urina e a remédios vomitados, esperando que
fossem resgatadas na forma daquele humor negro
tão característico da Morte.
Ventinho era um homem pequeno, fraco, a
aparência de um homem que ficou ao relento
grande parte de sua vida e acabou encolhendo por
isso. Suas roupas baratas e enrugadas pareciam
uma extensão de sua pele quebradiça, quase como
135
Kontinuum – E. Reuss
se houvessem absorvido a textura dos papéis que
cobriram seu corpo durante o tempo em que
morou na rua. Ventinho servia cerveja para uma
mesa de padres, todos vestindo camisas claras e
calças sociais pretas, devidamente armados com
crucifixos de madeira em seus pescoços.
Sentamos e o esperamos, e depois de alguns
minutos ele se manifestou como um espectro, uma
presença incorpórea da morte ou de algo ainda
pior, envolto por aquela manta podre fedendo a
centenas de banhos não tomados e cigarros
consumidos. “Epa”, cumprimentei indisposto, e
não recebi resposta. Me perguntei porque tinha
amizades tão estranhas, então senti uma fisgada
no peito. O broto. Ventinho aproximou sua cabeça
do centro da mesa, mantendo seus olhos vidrados
em mim, em Liro e em algo sentado ao nosso lado
para o qual olhamos em vão tentando enxergar.
Nos aproximamos. “Vocês perceberam...? O
degrau?”, ele disse. “Que degrau?”, perguntei,
olhando para a rua. “O primeiro degrau?”,
continuou, “se afastando do chão? Há uma
semana já...”, e abaixou a cabeça, “Gnomos...?”.
“Gnomos?”, eu disse, “Desgraçados...”, ele disse,
ficando em silêncio assim que um de seus clientes
passou ao nosso lado. “Eles querem levantar a
cidade... e construir uma outra cidade por baixo,
se estendendo...”, abrindo os braços e os movendo
de um lado para outro, fazendo questão de
136
Kontinuum – E. Reuss
apontar para todas as direções, “e aos poucos,
quando tiverem içado nossa civilização inteira,
construirão acessos ocultos, dentro das igrejas,
dos hospitais e... Até das casas, cara. Sugando a
população inteira para o inferno, um habitante de
cada vez”. Liro segurava o riso, prestes a perder o
controle, e eu tocava o seu braço com delicadeza,
como que pedindo para que ele mantivesse a
postura. Os olhos de Ventinho alternando seu foco
entre Liro, eu e a terceira presença, a testa
franzida, desaprovando nosso silêncio. “Ó u
eaaoaeia e ioo?”, Liro disse, recebendo um olhar
cortante de Ventinho, seus olhos se estreitando
ainda mais, passando do ponto em que se podia
dizer se estariam abertos ou não. “O que o
golfinho falou?”, ele disse, “’Você acredita em
Gnomos?’”, e eu traduzi, tentando amenizar as
palavras. “Falta de um nome melhor”, disse,
querendo explicar, “Pigmeus, será? Eu os
chamaria de demônios, se não estivessem tão
próximos”, com uma ênfase curiosa na palavra,
“apesar de viverem embaixo da terra, numa
profundidade em que podem até sentir o calor...
Vivendo embaixo de pedaços imensos de rocha,
agrupando estados inteiros, erguidos com bilhões
de parafusos, unidos de dois em dois por um tipo
de bigorna que funciona como um eixo, que na
medida em que vai sendo girada afasta esses
parafusos e ergue a rocha...”, e agora a
137
Kontinuum – E. Reuss
gesticulação de Ventinho havia adquirido uma
qualidade quase epilética. “E aqueles seres
diabólicos”, ele continuou, se levantando em meio
a um público cada vez mais atento, “baixos como
gnomos, adaptados para viver em uma fenda de
um metro de altura, com colunas deformadas e
joelhos estirados pra frente, mudando o centro de
gravidade dos seus corpos, fazem qualquer um
duvidar de que uma vez já foram humanos”, seus
olhos então se encheram de lágrimas, enquanto
ele tentava imitar os seres que descrevia, mais
preocupado em não cair no chão do que com os
olhares confusos que se espalhavam pelo bar.
Olhávamos atentos, mas eu sentia meu corpo
secar, minha língua áspera como se estivesse
coberta de areia, minha vitalidade lentamente se
esvaindo por algum lugar do meu corpo e a dor
ficando mais intensa a cada segundo. Ventinho
me olhava e mexia seus lábios, mas sua voz soava
mais como um grito da morte, daqueles que soam
na noite e ficam suspensos, sem nunca serem
respondidos.
Coloquei a mão por baixo da camisa,
tentando me aproximar do ponto onde a dor se
intensificava, e vi o sangue correndo entre meus
dedos, deixando rastros pela palma da minha
mão até tingir meus braços de vermelho. Me
levantei e sangrei até a saída. Talvez tivessem me
chamado, mas de qualquer forma fui embora e
138
Kontinuum – E. Reuss
não vieram atrás de mim. Andei alguns metros e
me sentei sobre um jardim de azaleias, apoiando
minhas costas contra o muro de uma casa.
Pela primeira vez – ou pelo menos o que eu
achara que fosse a primeira vez – senti a
natureza aparentemente inofensiva me engolir,
não só o espírito daquele pequeno invólucro que
eu carregava em meu casaco, mas toda aquela
manifestação a minha volta, um espírito tão
contagioso que parecia me fazer afundar na
grama molhada, e as azaleias pareciam me
abraçar com afeto. Fiquei procurando o sol por
alguns minutos, tentando me situar no espaço.
Tudo o que vi foi o céu azul, nuvens se esticando e
tocando os topos das casas, que pareciam se
estender aos céus como torres imponentes,
catedralescas, e nesse momento tudo se tornou
translúcido, menos o azul penetrante, que logo se
rompeu nas cores de seu espectro, uma fenda no
próprio firmamento, que coloriu o mundo de uma
forma insana, o verde da grama e o violeta das
flores extremamente vívidos. E ali estava eu, na
fenda do universo com um copo plástico cheio de
terra em minhas mãos. Nenhum broto. Nenhuma
forma de vida. Os músculos do meu peito
continuavam a latejar e eu sentia o sangue
escorrer por baixo da camisa. Eu já não sabia
mais quem eu era naquele momento, tinha
apenas uma ideia remota de quem eu deveria ser.
139
Kontinuum – E. Reuss
Desabotoei a camisa e olhei para a pele
perfurada pelo broto, que comia minha carne e
penetrava cada vez mais fundo. Tentei puxá-lo,
mas a dor era insuportável. Caminhei até minha
casa, embora eu não me lembre de ter, de fato,
caminhado. Olhei meu reflexo distorcido no
espelho do banheiro, o corpo de Michele as
minhas costas e o broto cravado em minha pele.
Sentia meus dedos sobre suas folhas minúsculas e
a pressão sobre o seu caule. Com cuidado, puxei e
abafei o grito, até que ela se desprendeu,
ensanguentada. Ignorei o fato de que nesse
intervalo a planta parecia ter crescido uns bons
dez centímetros e fui até a sala jogar, na
esperança de que conseguisse camuflar a dor.
A sessão começou. Projeção do futuro? Seria
isso? Ou apenas uma recriação do passado? Ou
seria a materialização de algo que existia apenas
na minha imaginação? Fiquei encarando com os
olhos cheios de lágrimas, tentando entender em
que linha do código aquelas imagens estariam se
formando. Haveria no mundo outros
programadores que, depois de criar algo tão
grandioso, tão complexo, esqueceriam de seus
próprios códigos? Tal como se fossem mães
traumatizadas, não só tentando esquecer, mas
também negando a existência de um filho
indesejado, uma memória viva que poderia muito
bem levar alguém a loucura. E de qualquer
140
Kontinuum – E. Reuss
forma, esses códigos seriam tão inexoráveis que
estariam fadados ao isolamento, trabalhando em
ciclos infinitos e criando, no âmago de suas
funções, universos inteiros que estariam a dois
microssegundos de distância de serem totalmente
destruídos por uma consciência computacional
sem arrependimento. Talvez neles estivessem
presos outros programadores como eu, que não
conseguiriam quebrar a função e nem pensariam
em fazê-lo. E aqueles que encontrariam nossos
corpos paralisados e nossa consciência totalmente
submersa no jogo, não entenderiam... Pois para
eles a ideia de se olhar para dentro não faz
sentido. Deixam o universo dos sonhos para
mergulharem na fantasia escapista de suas vidas
diárias, e os malditos nem sequer lamentam não
poder estender o sono mais um pouco.
Um espectro de luzes vibrantes coloria o
interior dos meus olhos, até que a projeção se
estagnou no mesmo azul de antes. Um azul
estático, se abrindo ao toque dos meus dedos,
como uma fenda infinita no lençol dos meus
sonhos. Meu corpo atravessou as infinitas
camadas de um líquido azulado em queda e, à
medida que me aproximava do centro de tudo, o
azul se tornava mais denso. Eu ouvia estalos,
chiados, uivos e sopros. Os galhos a se quebrar
sob meus pés, o vento roçando em meus braços,
em meu rosto, as pequenas flutuações do solo.
141
Kontinuum – E. Reuss
Estremeci e senti o meu corpo ser inundado por
essa presença, como se meus pés descalços
servissem como porta de entrada para um espírito
que flui através do solo. As imagens começavam a
se projetar, não como telas em movimento
suspensas no vácuo, mas como memórias. Vi a
escuridão projetada pelas árvores a minha volta,
meus olhos se ergueram lentamente do chão
arenoso aos pequenos arbustos, para os troncos
lenhosos até o céu azul emoldurado pela cúpula
das árvores. A natureza tecia o caminho que eu
devia percorrer, e nesse momento ouvi a voz de
Liro. “Isso é foda, cara”, ele disse, olhando para os
pés descalços, seus olhos se enchendo de uma
felicidade pura, vazando na forma de lágrimas
que haviam ficado presas por muito tempo. Eu
sentia o peso de Liro sobre mim, e ele também me
sentia. “Vem cá, Liro”, eu disse, “Estamos
sonhando?”, e ele sorriu. E por ser esse um sorriso
autêntico, aquilo só poderia significar que
estávamos sonhando.
Avançamos floresta adentro e vimos as
árvores começarem a se afastar uma das outras, a
natureza cada vez mais ausente, cedendo seu
espaço para um obstáculo à nossa frente, que se
erguia em meio ao verde como um monólito cinza
levantado por uma civilização desconhecida.
Reconheci minha casa. A sala de estar surgiu
como uma imagem superexposta, lentamente se
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Kontinuum – E. Reuss
revelando a minha frente como num processo
químico. Portas onde não deviam estar, levando
para corredores que não existiam, sofás em
posições invertidas e janelas que se abriam em
paredes internas, mas pelas quais ainda podia se
enxergar a natureza. Na hora, tudo aquilo fez
sentido. No chão, Liro sofria uma convulsão,
ainda com os eletrodos na cabeça e sua mente
conectada ao jogo, sua face deformada, quase
liquefeita, e os seus olhos vidrados e sem vida,
enxergando aquilo que só ele poderia enxergar,
mas que de alguma forma se manifestava a nossa
frente, como se quisesse ser visto, provocante.
Caminhei até o quarto. Michele estava
sentada de costas sobre a cama, contemplando a
linha do horizonte através da janela. As árvores
não existiam mais, apenas o azul infinito,
penetrando nossos olhos. “Michele?”, chamei, e
ela contraiu os ombros, “Michele...?”. Ela se virou
e, no lugar de seu rosto, grandes folhas verdes
sobrepostas, formando um invólucro cravado de
nervuras que se abria no ritmo de sua respiração,
despejando das aberturas uma seiva esverdeada,
que escorria pelo seu corpo e formava ao seu
redor uma poça gosmenta de muco. De repente,
surgiu em frente aos meus olhos a mensagem:
“Você está jogando há mais de oito horas.
Tem certeza que deseja continuar a sessão?”.
143
Kontinuum – E. Reuss
Respondi que não e me levantei. Caminhei
até a porta do quarto e hesitei antes de abri-la.
Ficaria feliz em vê-la respirando, mesmo que seu
rosto houvesse sido tomado por um parasita
vegetal. Pensei em mergulhar mais uma vez no
Kontinuum e deixar que a minha mente recriasse
o universo do jeito que ela achasse necessário. De
qualquer forma, abri a porta e entrei num estado
de paralisia, tal era o meu terror em ver que a
planta havia adquirido o porte de uma árvore
madura, mas com galhos flexíveis, e o broto em
seu ponto mais alto havia crescido
desproporcionalmente, e eu sentia que continuava
a crescer, como um tumor diabólico no cerne da
natureza. Por um orifício, pingava um líquido
pútrido misturado à clorofila, e por ali o broto
gigante engolia Michele, de quem eu reconheci
apenas as pernas e os pés delicados pendurados
para fora. Toda aquela carne dissolvida era
transformada em energia e a planta se saciava,
em alguns momentos relaxando as contrações de
sua boca monstruosa como se entrasse em um
sono profundo induzido pela digestão. Corri para
fora e atravessei os arbustos de Murta em direção
a casa de Liro. “Me ajuda”, gritei, enquanto Liro
mergulhava na melancolia da heroína, com a
seringa ainda espetada em seu braço esquerdo.
Arranquei a seringa e puxei Liro do sofá, que
precisou se apoiar em meus ombros para
144
Kontinuum – E. Reuss
conseguir ficar de pé. “Me ajuda, por favor”, disse,
olhando em seus olhos, e corri até o submundo
obscuro que havia engolido meu quarto e de onde
eu podia ouvir o som da planta deglutindo a
carne, quase como se o som ressoasse dentro de
mim, o gosto da carne crua escalando pelas
paredes do meu esôfago e escapando na forma de
um hálito podre com o cheiro da morte. Conseguia
ver apenas as panturrilhas de Michele,
lentamente sendo engolidas pela planta. Olhei
para o tronco do vegetal, que agora parecia ter se
fortalecido e adquirido um aspecto mais robusto,
suas nervuras mais volumosas e estrias cada vez
mais profundas. Em uma delas injetei a heroína
com a seringa e vi o líquido subir pelos veios da
planta. Senti a seiva carregando a droga numa
correnteza fria e impiedosa, impulsionadas por
uma força invisível que naquele momento parecia
agir sobre nós. Ouvi a voz desesperada de Liro,
que disse, “e ôa é éa?!”, e eu disse “que?!”, e ele
repetiu, e Ventinho, que se projetou da porta
ouvindo o alvoroço e logo começou a rezar, “Pai
nosso, que estais no céu...”, e Liro, que voltou a
perguntar, e eu respondi, “é o meu broto,
caralho”, e Ventinho, que agora gritava “... venha
a nós o vosso reino...”, e Liro, que disse, “o e
ão’aêe?”, e eu disse “Puxa pelo pé!”, enquanto
tentava segurar Michele pela canela
ensangüentada, deslizando como sabão, “Puxa!”, e
145
Kontinuum – E. Reuss
Liro disse “éa áór’a!”, “...o pão nosso de cada
dia...”, e eu respondi “eu sei!”, e vimos a planta
desabar sobre a cama e ficar ali, paralisada,
enquanto Ventinho fazia o sinal da cruz e nós
puxávamos o corpo de Michele para fora. Os
restos mortais eram tão distantes da forma
humana, que não pareciam surtir um efeito tão
aterrorizador sobre nós. Encaramos perplexos as
sobras dos ossos e algumas porções de nervos e
músculos que, surpreendentemente, não foram
devorados pela fúria demoníaca do vegetal.
Lembro de ter me ajoelhado ao seu lado, e talvez
ter dito alguma coisa. Fixei meus olhos na parede
a minha frente e vi nossas vidas serem projetadas
como camadas de um processo de serigrafia em
que os tons eram separados em função de sua
melancolia inerente.
As estações transcorriam através do tempo,
mudando a paisagem sobre a qual nosso lar se
erguia, manhãs surgiam em que o silêncio era
absoluto, em que se dirigiam apenas olhares
indiferentes e infelizes, sob o som estridente de
uma nova família que se mudava, de uma nova
casa de alvenaria que era erguida, enquanto suas
mãos dobravam roupas recém-lavadas, e eu
reclamava do cheiro do amaciante, do modo como
ele influenciava a sessão. “Vai te foder”, ela
gritava, jogando as roupas dobradas no chão,
fazendo parecer que ela as havia dobrado apenas
146
Kontinuum – E. Reuss
para ter a satisfação de jogá-las daquele jeito,
“você e esse jogo desgraçado”, e eu explicava que o
jogo era sensível durante a abertura, e ela me
chamava de viado, e eu a ignorava, meus olhos se
revirando dentro das órbitas, encarando o interior
das minhas pálpebras, enquanto meus sonhos se
desenrolavam como um novelo de imagens e
memórias lançado no vazio do meu inconsciente.
Assisti minha indiferença e meu egoísmo
crescerem à medida que o Kontinuum passava a
ocupar as frações desocupadas da minha vida, e
que agora acabara de consumir tudo o que um dia
eu amei. Decidi deixar o que restou do cadáver
ali, como um prato recém preparado, a mercê
daquele apetite monstruoso. De alguma forma,
senti que devia deixar ela terminar o que havia
começado. Ouvi sussurros fantasmagóricos às
minhas costas, que imaginei serem de Liro e de
Ventinho, e logo senti sua presença diminuir até
me dar conta de que estava sozinho com a planta.
Vi ela recuperar seus sentidos e se erguer
lentamente, o broto em sua extremidade se
alongando, deslocando suas mandíbulas vegetais
e revelando a abertura que deveria lhe servir
como boca, o interior rosado como se fosse a polpa
de uma melancia gigante, com filamentos negros
que mais pareciam línguas bifurcadas de algum
tipo de réptil, oscilando e se aproximando do
cadáver a sua frente. Ela acomodou Michele
147
Kontinuum – E. Reuss
confortavelmente em sua boca, e começou a
digeri-la. Nesse momento, pude sentir mais uma
vez o gosto e ouvir o som do ácido corroendo a
carne, como se soasse dentro de mim. O sono me
consumiu lentamente, como um entorpecimento
alcoólico inesperado, daqueles que te fazem
duvidar da própria sanidade e da veracidade das
próprias memórias, até que cedi e dormi,
ajoelhado ao lado do monstro. Depois, duvidei se
havia dormido, pois naquele momento a escuridão
se tornou tão aniquiladora, tão palpável, que
parecia me engolir como se fosse uma entidade, e
eu podia senti-la na minha pele, sugando todo o
vestígio de luz que poderia haver ali, e deixando
para trás uma manta gélida, a própria
materialização do Nada. E em um lampejo
consciente meus olhos se abriram e se depararam
com a planta, que, para o meu espanto, agora se
encontrava do outro lado do quarto, me encarando
com seus olhos invisíveis, que poderiam muito
bem serem os meus próprios, porque naquele
momento eu me enxergava como num espelho,
um poço de arrependimento e desgosto. Tenho
certeza que a planta sentiu pena de mim, pois ela
se moveu, e vi que ela desenvolvera grandes
bases circulares cobertas por uma camada rígida
de celulose, que se movimentavam como grandes
pés humanos, um cravado no chão enquanto o
outro se deslizava alguns centímetros para frente.
148
Kontinuum – E. Reuss
De fato, tinham inclusive a forma de pés
humanos, e em alguns pontos minúsculos parecia
germinar sobre a crosta esverdeada pedaços de
pele humana. E o imenso vegetal, que agora se
curvava para se acomodar ao teto baixo do
quarto, se moveu até ficar ao alcance das minhas
mãos, paralisado em uma postura implacável,
olhando para dentro dos meus olhos como se
esperasse algum tipo de saudação.
Com toda a civilidade que uma planta
poderia dispor, ela fez uma reverência sutil e
esperou eu tomar coragem para tocá-la, e o fiz nos
pés, que agora encolhiam e assumiam um formato
delicado, quase feminino. Suas folhas cuneiformes
se desdobravam e se alongavam de modo
preguiçoso, crescendo o dobro do seu tamanho
original. As pontas de suas folhas se dobravam
delicadamente como os dedos de uma mão
humana e acariciavam meu rosto, e o cheiro da
relva lentamente se erguia do chão. Deitei sobre a
cama encarando o teto e senti o sono invadir
minha mente, crescendo à medida que eu sentia a
pressão de sua folhagem aumentar sobre mim, se
acomodando como um lençol gigantesco. E
naquela intimidade entre homem e vegetal,
isolados do universo, eu me sentia submisso,
como se a minha vida fosse só uma ramificação de
algo maior. Ouvia meu coração bater, bombeando
o que quer que fosse para milhares de outros
149
Kontinuum – E. Reuss
brotos, que, como eu, viveriam para sempre como
parasitas. Fechei os olhos e dormi, um sono tão
profundo que não se distinguiam os sonhos,
apenas o negrume absoluto.
Eu sentia a pressão das folhas sobre mim
diminuir e uma sensação única e estranhamente
familiar de estar flutuando. O cheiro da relva
diminuía e lentamente fui tomando consciência
de uma sensação externa, um zumbido constante
acompanhado de um hálito fresco sendo soprado
em meu rosto. E não sentia só aquele sopro físico,
logo percebi que havia outro tipo de sopro, algo
metafísico penetrando minha alma e sendo
projetado no lugar do que antes eu sentia como a
aura gélida do vegetal, mas que agora parecia ter
dado lugar a algo humano.
Quando abri os olhos, os últimos elementos
vegetais da planta se desprendiam de seu corpo,
cedendo como a pele de milhares de cebolas
descascadas, formando sobre a cama uma camada
vegetal morta e cobrindo parcialmente uma
silhueta magra, seios pequenos e flácidos, braços
tão magros quanto os galhos que há poucos
momentos ocupavam seus lugares, um cabelo
negro de um brilho descomunal que parecia se
enrolar em si mesmo como se contrariasse a
física, uma antítese do que se encontra na própria
natureza, e o sorriso mais lindo do universo,
150
Kontinuum – E. Reuss
situado em algum lugar entre a inocência infantil
e a esquizofrenia, quase de uma fofura lunática.
Um traço que apenas Michele era capaz de ter.
Acariciei seu corpo, tentando conter meu
desespero, e senti o calor inesperado da sua pele,
insistindo, e quase me convencendo de que ela
estava realmente ali. Merda! Senti medo, pelo
que parecia ser a primeira vez em minha vida,
um medo implacável, não só do desconhecido, não
só daquela... Ressurreição Vegetal, mas de não
saber o que fazer com sua presença, como se a
qualquer momento eu poderia destruir tudo mais
uma vez. “Que foi?”, ela disse, logo apagando o
sorriso, e de alguma forma, interferindo na
luminosidade do quarto. “Michele...?”, eu disse,
ela franziu o cenho e reduziu seus olhos ao azul
penetrante de sua íris, que me pareceu familiar
demais, até eu me dar conta de que já havia
mergulhado neles. “É você mesmo?”, perguntei.
“Você precisa parar de jogar esse videogame”, ela
disse, em um tom preocupado. Eu concordei,
mesmo que silenciosamente, mesmo que omisso,
tentando fazer o videogame não perceber o meu
deslize. Mas Kontinuum não deixaria aquilo
escapar, não quando ele vê tudo. No começo,
Kontinuum era apenas um universo a parte para
o qual eu poderia fugir sempre que eu quisesse,
quase um paraíso privado, completamente
explorado e registrado em minha memória como o
151
Kontinuum – E. Reuss
mapa de uma região conhecida. Mas como todo
mapa, algumas regiões obscuras se estendiam
para além daquelas distâncias que o mapa fazia
crer serem possíveis. E preso naquela caminhada
infinita, eu acabei sendo incorporado como um
acidente geográfico, parte de algo infinitamente
maior, claramente uma obra do universo. E agora
eu não conseguia distinguir onde meus sonhos
acabavam e onde começavam os dele. Por isso,
perguntei: “Estamos sonhando?”. E ela sorriu, e
por ser esse um sorriso autêntico, aquilo só
poderia significar que estávamos sonhando. Nesse
momento, educadamente, o jogo se colocou entre
nós:
“Você está jogando há mais de quatro mil e
trezentas horas. Tem certeza que deseja
continuar a sessão?”.
Através do texto, eu ainda conseguia
enxergar os seus olhos. “Você tá bem?”, ela me
perguntava, “Sim” ou “Não”, e o jogo me
perguntava.
“Sim”, respondi. Cada centímetro do meu
corpo mergulhando numa dormência induzida
pelo medo, não só o medo de perder Michele, mas
de encarar o mundo físico, de perceber o tempo da
forma como ele transcorria para os outros, e de
acabar revelando aquelas memórias desbotadas
que ali dentro eu sabia que se recusariam a
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Kontinuum – E. Reuss
retornar para sempre. Por isso preferi continuar
jogando.
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