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ALISON VANDER MANDELI
Dissertao de Mestrado:
WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENAS RELIGIOSAS
LONDRINA2012
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ALISON VANDER MANDELI
Universidade Estadual de Londrina
Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao PROPPG
Centro de Letras e Cincias Humanas CLCH
Secretaria de Ps-Graduao CLCH
Departamento de Filosofia - Mestrado em Filosofia
rea de Concentrao: Filosofia Contempornea
WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENAS RELIGIOSAS
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Filosofia da UniversidadeEstadual de Londrina, como requisito para aobteno do grau de mestre.
Orientao: Profa. Dra. Mirian Donat
LONDRINA2012
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Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central daUniversidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
M271w Mandeli, Alison Vander.
Wittgenstein sobre as crenas religiosas / Alison Vander M andeli.
Londrina, 2012.
110 f.
Orientador: Mirian Donat.
Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Estadual de Londrina, Centro de
Letras e Cincias Humanas, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, 2012.
Inclui bibliografia.
1. Wittgenstein, Ludwig, 1889-1951 Teses. 2. Religio Filosofia. Teses.
3. Deus Prova de Existncia Teses. I. Donat, M irian. II. Universidade Estadual
de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-graduao em
Filosofia. III. Ttulo.
CDU 1(436)
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ALISON VANDER MANDELI
WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENAS RELIGIOSAS
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Filosofia da UniversidadeEstadual de Londrina, como requisito para aobteno do grau de mestre.
Orientao: Profa. Dra. Mirian Donat
COMISSO EXAMINADORA
_________________________Profa. Dra. Mirian DonatUniversidade Estadual de Londrina
_________________________Prof. Dr. Marcos Nalli
Universidade Estadual de Londrina
_________________________Prof. Dr. Darlei DallAgnol
Universidade Federal de Santa Catarina
Dissertao aprovada: ____/____/____
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora Profa. Dra. Mirian Donat. Aos professores que se
dispuseram em discutir o trabalho em sua fase de elaborao: o Prof. Dr. MarcosNalli e o Prof. Dr. Jos Fernandes Weber, participantes da banca de qualificao. Ao
Prof. Dr. Darlei DallAgnol pela disponibilidade em participar da banca de defesa
(juntamente com o Prof. Dr. Marcos Nalli). Ao Prof. Dr. Eder Soares Santos e todos
os professores do Departamento de Filosofia da UEL que de uma forma ou outra
auxiliaram em minha formao. Capes pelo auxlio financeiro. minha famlia por
todo apoio e confiana. minha esposa Aline, pela cumplicidade, motivao (e
principalmente pacincia). Aos grandes amigos que fiz nesses anos de estudo(vocs sabem quem so e saibam que so importantes para mim). A todos vocs,
deixo registrado meus sinceros agradecimentos.
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Bach escreveu na pgina de ttulo do seu Orgelbuechlein:Paraglria do Deus Altssimo, e que
os meus semelhantes possam colher benefcios. o que eu gostaria de dizer do meu trabalho.
Ludwig Wittgenstein
Um pensador religioso honesto como um equilibrista.
Quase se poderia dizer que ele no anda sobre mais nada do que o ar.O seu apoio o mais fino que se pode conceber.E, no entanto, verdadeiramente possvel andar sobre ele.
Ludwig Wittgenstein
Deus no pensa, cria.Deus no existe, eterno.
Sren Kierkegaard
J sentia, ento, que era mais razovel e menos enganoso sermos obrigados a crero que no demonstrava, quer houvesse prova [...] quer a no houvesse. [...]
Censurveis eram os que no criam. Por isso no lhes devia dar ouvidos, se poracaso me dissessem: "como sabeis que tais livros foram entregues ao gnero
humano pelo Esprito do nico Deus verdadeiro e infalvel?" Ora, era issoprecisamente o que havia de crer. [...] Nenhum ataque das inumerveis
controvrsias e calnias, que lera em filsofos entre si desavindos, me pde
arrancar a f. Por isso nunca deixei de acreditar na vossa existncia, apesar deignorar o que reis e desconhecer que o governo das coisas humanas Vos pertence.
Santo Agostinho
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MANDELI, Alison. Wittgenstein Sobre as Crenas Religiosas. 2012, 102 pginas.Dissertao de Mestrado (Ps-Graduao em Filosofia) Universidade Estadual deLondrinaLondrina 2012.
RESUMO
A dissertao tem como principal objetivo apresentar uma interpretao da filosofiada religio de Wittgenstein, mostrando como as ideias do filsofo, referentes screnas religiosas, so melhor compreendidas quando contrapostas spressuposies de uma tradicional interpretao da religio, que chamaremos deviso factual das crenas religiosas. Mostraremos que dois pressupostos da visofactual no se sustentam frente ao enfoque wittgensteiniano, a saber, tratar Deus
como se fosse um objeto entre objetose considerar as proposies religiosas comoproposies empricas, que para serem justificadas precisariam se basear emevidncias. A abordagem wittgensteiniana mostrar que ao analisarmos a gramticado conceito Deus e a categoria lgico/gramatical das proposies relig iosas, ospressupostos da viso factual revelam confuses. Para melhor apresentao dapesquisa dividimos o texto em trs captulos. No primeiro captulo, apresentaremosos pressupostos da viso factual atravs da reconstruo dos clssicos argumentosem favor da existncia de Deus, o argumento ontolgico, cosmolgico e fsico-teolgico. No segundo captulo apresentaremos as ideias de Wittgenstein em
relao s crenas religiosas, mostrando como elas se afastam radicalmente daviso factual. No terceiro captulo apresentaremos algumas objees e possveisrespostas.
Palavras-chave: Filosofia analtica da religio Proposies gramaticais evidencialismo religiosoGramtica religiosa
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MANDELI, Alison. Wittgenstein Sobre as Crenas Religiosas. 2012, 102 pginas.Dissertao de Mestrado (Ps-Graduao em Filosofia) Universidade Estadual deLondrinaLondrina 2012.
ABSTRACT
The dissertation has as main goal to present an interpretation of Wittgensteinsphilosophy of religion, showing how his ideas, referring to religious beliefs, are bettercomprehend when opposed to presuppositions from traditional interpretation ofreligion, which we will call target view of religious beliefs. We will show that twopresumptions of the target view dont support themselves in front of Wittgensteinsapproach namely, to treat God as if an object between objects and to consider
religious propositions as empirical propositions, that to be justified need to be basedon evidences. Wittgensteins approach will show that by analyzing the grammar ofthe concept God and the logical/grammatical category of religious propositions, thetarget views presumptions reveal confusions. For the best presentation of theresearch we divided the text in three chapters. In the first chapter, we will present thepresumptions of the target view throughout the reconstruction of classical argumentsfor the existence of God, the ontological argument, cosmological and the argumentfrom design. In the second chapter we will present Wittgenstein ideas due to religiousbeliefs, showing how they radically stray from target view. In the third chapter we will
present some objections and possible answers.Keywords: Analytical philosophy of religion Grammar propositions religiousevidentialism religious grammar.
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................ 09
1VIS O FACTUAL DAS CRENAS RELIGIOSAS............................................ 12
1.1 VISO FACTUAL..... ........................................................................................... 12
1.2 EXEMPLOS DA TEOLOGIA NATURAL...... ........................................................... 15
1.2.1 ARGUMENTO FISICO-TEOLGICO (ARGUMENTO DO DESGNIO)......... 16
1.2.2 ARGUMENTO COSMOLGICO............................................................. 19
1.2.3 ARGUMENTO ONTOLGICO...... .......................................................... 23
1.2.3.1 VERSO ANSELMIANA...... ..................................................... 24
1.2.3.2 VERSO CARTESIANA............................................................ 27
1.3 CONSIDERAES FINAIS DO CAPTULO............................................................ 29
2 WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENAS RELIGIOSAS................................. 35
2.1 CRENTES E DESCRENTES SEPARADOS POR UM ABISMO............................... 35
2.2 GRAMTICA DO CONCEITO DEUS................................................................... 39
2.3 PROPOSIES RELIGIOSAS COMO PROPOSIES FULCRAIS........................ 60
3 ALGUMAS OBJEES E POSSVEIS RESPOSTAS.................................... 71
3.1 SUPOSTAS DESANALOGIAS ENTRE OS CONCEITOS DEUSE OBJETO........ 71
3.2 OCORRNCIA DE MILAGRES............................................................................. 77
3.3 HISTORICIDADE BBLICO-RELIGIOSA................................................................. 84
CONCLUSO.............................................................................................................. 92
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................ 96
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INTRODUO
O objetivo desta pesquisa apresentar uma interpretao da filosofia da
religiode Wittgenstein, entendendo-a como uma forte rejeio a uma compreensotradicional da religio que chamaremos de viso factual das crenas religiosas. Mais
especificamente, mostraremos como a viso factual compreende as proposies
religiosas e como as ideias de Wittgenstein sobre a religio surgem justamente da
crtica viso factual. Ora, o que quero dizer com filosofia da religio de
Wittgenstein e com viso factual das crenas religiosas? Comecemos elucidando a
segunda.
A viso factual1 sustenta que as crenas religiosas dizem respeito a estados
de coisas de uma realidade existente de forma independente dos indivduos ou
comunidades que possuem as crenas. Assim, as proposies religiosas sero
verdadeiras se possurem referncias atuais para elas, e se for possvel
apresentarmos evidncias para que o estado de coisas afirmado seja realmente o
caso. Por exemplo, a proposio Deus existe, ser verdadeira se realmente existir
um ser de forma independente das crenas e prticas relacionadas a ele, com
atributos que o tornem divino,e se existirem evidncias que nos faam concluir (se
no de forma necessria, ao menos com alta probabilidade) a sua existncia. Ser a
partir dessa discusso da existncia de Deus que aprofundaremos nossa
compreenso da viso factual. No primeiro captulo, apresentaremos a viso factual
das crenas religiosas atravs da reconstruo dos tradicionais argumentos em
favor da existncia de Deus, a saber, o argumento ontolgico, cosmolgico e o
fsico-teolgico.Se o ponto de partida do argumento for o mero conceitode Deus,
que analisado revelaria a existncia como um atributo necessrio da divindade,
teremos a prova ontolgica. Se o fundamento da argumentao for no um conceito,
mas a experincia sensvel, teremos as provas cosmolgica e fsico-teolgica. A
caracterstica da primeira inferir uma causa primeira e necessria, identificada com
Deus, a partir da existncia contingente do mundo. A caracterstica da segunda
basear-se na aparente ordem e finalidade encontradas na natureza, concluindo a
partir delas, a existncia de um projetista divino. Reconstruir estes argumentos ser
1Neste momento a apresentao da viso factual ape nas pano rmica. Ela se r di scutida com detal h es em todo oprimeiro captulo.
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importante para ns, pois eles revelaro pressupostos da viso factual que no
sero aceitos por Wittgenstein, o que tornar este primeiro captulo um contraponto.
Por filosofia da religio de Wittgenstein, no sugiro algo unificado como seWittgenstein tivesse um escrito sistemtico sobre o tema. Na verdade, o que existe
sobre o tema religio em sua obra, como diz Cottingham (cf. 2009, p.204), uma
dispersa, mas altamente frtil, coleo de anotaes. Mas, essa dificuldade inicial
no nos impede de buscar caractersticas gerais e compatibilidade entre as ideias de
Wittgenstein sobre religio e o restante de sua filosofia2. E essa interpretao que
vamos propor no segundo captulo, onde mostraremos a abordagem de Wittgenstein
em relao s crenas religiosas em contraste radical com a abordagem da visofactual. No que Wittgenstein argumente com o intuito de elucidar que as
concluses dos argumentos em prol da existncia de Deus sejam falaciosos, mas
sim que a empreitada como um todo no passa de uma confusoque precisa ser
esclarecida. Wittgenstein, dessa forma, no concordar nem com os crentes nem
com os descrentes adeptos da viso factual. Para Wittgenstein, crentes e descrentes
esto em planos completamente distintos, e no divergem em opinies, como
pressupe a viso factual, mas em formas de vida. Assim eles estariam no apenas
contradizendo as palavras um do outro, mas estariam em mundos diferentes,
interpretando a vida e comportando-se de diferentes maneiras, por partirem de
regras diferentes. Para chegar a tais concluses, mostraremos que dois
pressupostos da viso factual no se sustentam frente ao enfoque wittgensteiniano,
a saber, tratar Deus como se fosse um objeto entre objetos e considerar as
proposies religiosas como proposies empricas, que para serem justificadas
precisariam se basear em evidncias.
Teremos ainda um terceiro captulo, onde apresentaremos algumas objees
s concluses do segundo captulo e possveis rplicas. Trs objees sero
discutidas. A objeo que intitulamos desanalogias entre os conceitos Deus e
objeto procura criticar um trecho de nossa exegese dos escritos de Wittgenstein.
As objees intituladas ocorrncia de milagres e historicidade bblico-religiosavisam
2Usa r o termo restante de s ua filosofia muito amplo pa ra um au tor como Wittgens tei n. neces s rio um recorte.Tenta remos compatibilizar os escritos sobre religio dispersos pela obra do au tor com o que tem si do chama do de su asegunda filosofia. Em pa rte considervel do meu texto usarei a obra Da Certeza, mas no tenho inteno nenhuma (aomenos nesta pes quisa ) de discutir se existe ou no um terceiro Wittgenstein.
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apresentar contraexemplos tese wittgensteiniana3 de que no possvel
apresentar evidncias para justificar universalmente as crenas religiosas.
Mostraremos que possvel responder a essas objees o que fortalece ainda mais
as opinies de Wittgenstein em relao religio.
Assim, com a presente abordagem, espera-se poder atingir o objetivo
proposto por esta pesquisa, a saber, apresentar uma interpretao para melhor
compreendermos a filosofia da religio de Wittgenstein, que contrapor as ideias do
filsofo tradicional viso factual das crenas religiosas.
3Ao criticarmos a vis o fa ctual , no se gundo captulo, aprofundaremos a explicao dess a tese.
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CAPTULO 01
VIS O FACTUAL DAS CRENAS RELIGIOSAS
1.1) VISO FACTUAL
Em 12 de abril de 1961, Yuri Gagarin, a bordo da nave Vostok-1, foi o
primeiro homem a viajar pelo espao. Durante a viagem, ao olhar pela janela da
nave, Gagarin declara algo mais ou menos assim: a Terra azul, mas no vejo
Deus; ele no existe. Tal declarao no contexto sovitico da poca no era nada
surpreendente, pois estava de acordo com o regime poltico de sua ptria, baseado
no materialismo-dialtico. Grosso modo, Deus seria neste contexto, uma inveno
perversa das classes sociais dominantes visando incutir medo e facilitar o domnio
sob as classes subjugadas4. Enfim, no nos interessam aqui esses detalhes
ideolgicos ou histricos, mas a declarao mesma do astronauta. Obviamente uma
discusso sria sobre filosofia da religio, ao menos em um primeiro momento, no
deve levar em conta tal declarao. Ora, no espao sideral esperamos encontrar
cometas, estrelas, nebulosas, planetas, mas no Deus. Deus, se existir algo assim,
ser encontrado por outros meios, seja por argumentos lgico-racionais,
experincias msticas, vivncia religiosa, etc. Mas, no obstante a aparente
ingenuidade filosfica da declarao do astronauta, ela exemplifica uma maneira
amplamente difundida, e nada ingnua, de compreenso das crenas religiosas nas
tradies filosficas e teolgicas ocidentais, que podemos chamar de viso factual
das crenas religiosas (cf. SCHNBAUMSFELD, 2007, p.157; VASILIOU, 2004,
p.30).
A viso factual (a partir de agora VF) pode ser entendida como a viso quesustenta que as crenas religiosas dizem respeito a estados de coisas ou fatos do
mundo e as asseres religiosas podem de alguma forma ser epistemicamente
justificadas, bastando para isso que os fatos asseridos por elas sejam o caso. A VF
parte da ideia de que a realidade religiosa ser verdadeiramente existente se as
crenas religiosas possurem (ao menos em parte) coerncia racional e
concordncia com o mundo; sustenta tambm que as proposies formuladas pelos
religiosos dizem respeito a essa realidade religiosa e que tais proposies podem
4Para uma boa introduo ao perodo poltico e h is trico de Gaga rin, e uma dis cuss o do material is mo di al tico:GUERREIRO, Mario A. L.. Deus existe? Uma investigao filosfica. Londrina: Edies Cefil, 2000. p. 21-61
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ser consideradas significativas ou no significativas a partir da aplicao de critrios
racionalmente vlidos de anlise lingustica (MOORE; SCOTT, 2007, p.01).
Devemos perceber que a VF pode ser mantida tanto por defensores, quantopor acusadores das crenas religiosas. No artigoA crena religiosa como realmente
bsica, Plantinga cita Bertrand Russell, Antony Flew e W.K. Clifford como exemplos
de acusadores das crenas religiosas que sustentam a VF. Segundo Plantinga,
estes filsofos defendem que a crena em Deus irracional, ou no razovel, ou
racionalmente inaceitvel, ou intelectualmente irresponsvel, porque segundo dizem,
no h prova suficiente (cf.: PLANTINGA, 2003, p.279). Defensores das crenas
religiosas que se enquadram na VF, ou seja, que acham que existem provassuficientes, sero exemplificados no decorrer do captulo. A esta tendncia que
pensa que as crenas religiosas devem passar por um crivo de justificao racional,
que Wittgenstein, como veremos, se opor. Obviamente, os defensores da religio
adeptos da VF, argumentaro que as crenas religiosas so, na medida do possvel,
racionais, de alguma forma correspondem com o mundo e que as sentenas so
significativas; por outro lado os crticos da religio diro que as crenas religiosas
no so justificadas racionalmente e/ou as sentenas religiosas so piores que
falsas, pois no fazem nem mesmo sentido. O que une os dois lados a opinio de
que o mbito religioso deve ser demonstrado pelo conhecimento emprico ou
racional, fazendo com que os adeptos da VF, tanto testas quanto atestas, busquem
alicerar seus argumentos com a ajuda da cincia ou da filosofia. A doutrina
religiosa, a teologia5, se mostrariam assim como algum tipo de teoria cientfica ou
como sustento metafsico das crenas. Por isso fiz aluso declarao de Gagarin,
que mesmo aparentemente tosca, remete ideia de que a proposio Deus existe
pode ser examinada por algum tipo de verificao racional ou emprica.
Essa apresentao inicial da VF nos mostra que seus adeptos pressupem
algum tipo de evidencialismo como teoria epistemolgica que precisa ser aplicada
para justificar as crenas religiosas. Podemos definir o evidencialismo como uma
tese sobre a natureza da justificao epistmica por um lado, e como uma tese
sobre a natureza do conhecimento por outro; a primeira sustenta que a justificao
5 No pe nso que doutrina religiosae teologias ejam sinnimos. Em l inhas gerais, a te ologia teria mais liberdade de reflexo,pod endo por isso desenvolver um discurso conflitante com a doutrina religiosa de um credo especfico. O que me i nteressano momento somente enfatizar uma caracterstica da VF (que ficar clara no decorrer do texto) que compreender adoutrina, ou o discurso teolgico, como uma teoria metafsica ou cientfica.
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epistmica deve se fundar em evidncias, e a segunda sustenta que as evidncias
so necessrias para o conhecimento (cf. FELDMANN, CONEE, 2005, p.95-96). Em
outras palavras, o evidencialismo pode ser entendido como a posio prima facie
plausvel, de que a crena justificada se (e somente se) ela proporcional s
evidncias. Uma declarao de Clifford apresenta retoricamente bem o esprito do
evidencialismo: sempre errado, em qualquer parte, e seja para quem for, acreditar
em qualquer coisa com base em provas insuficientes (in.: TALIAFERRO, 2003,
p.277).
O evidencialismo nos apresenta uma teoria que pode ser aplicada de forma
global a todas as nossas crenas, mas, muito frequentemente, ele aplicadolocalmente s crenas religiosas. O evidencialismo um tpico central na filosofia
analtica da religio (cf. FORREST, 2009, (Online); VANARRAGON, 2010, p.34-35),
e quando sustentado por um descrente, impe um desafio s crenas religiosas que
pode ser formulado da seguinte forma (onde a varivel X pode ser trocada por
qualquer assero religiosa, como por exemplo: Deus existe, haver um juzo
final, etc.):
1. Se no existe evidncia suficiente para X, ento errado ou irracional crer em X.
2. No existe evidncia suficiente para X.
errado ou irracional crer em X.
Neste contexto, podemos pensar na resposta de Bertrand Russell questo:
O que diria, se quando morrer for levado presena de Deus e te perguntarem por
que no foi um crente? Russell respondeu: Eu diria que no tive evidncia
suficiente. Obviamente, nem todos concordam com a premissa 2. Basta um
pequeno olhar para a histria da filosofia, para vermos quantos filsofos e telogos
tentaram compatibilizar as verdades da f com as verdades da razo. Pensemos
como exemplo, em Agostinho, Anselmo, Toms de Aquino, Escoto, Descartes,
Leibniz... Todos esses, dentre inumerveis outros, esforaram-se em proporcionar
evidncias para as asseres religiosas, em um projeto que est ainda presente na
filosofia analtica da religio na contemporaneidade. Assim vrias provas da
existncia de Deusforam formuladas, como por exemplo, as cinco vias de Toms de
Aquino, as provas ontolgicas de Santo Anselmo e Descartes, dentre outras. Mas
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no somente provas lgico-racionais so evocadas para fundamentar as crenas
religiosas. Muitas vezes outros tipos de justificao entram em cena, como por
exemplo, a ocorrncia de milagres ou a historicidade de certos acontecimentos
bblico-religiosos. Neste captulo discutiremos as provas lgico-racionais. No terceiro
captulo discutiremos as outras duas.
A VF comum na teologia natural do ocidente e os exemplos que daremos
neste captulo serviro para enfatizar algumas de suas teses. Gostaria de deixar
claro que os exemplos dados so tentativas de justificar a proposio Deus existe,
mas no precisaria ser exatamente esta proposio. Poderamos elencar
argumentos sobre a imortalidade da alma, a existncia de valores morais queridospor Deus, ou qualquer tpico da religio. O que nos interessa deixar claras as
pressuposies da VF, que trata as questes religiosas como hipteses filosficas e
busca respostas ltimas e universalmente racionais (ou no mnimo, com alto grau de
probabilidade) para elas. Tudo isso nos interessa, pois podemos compreender as
anotaes de Wittgenstein sobre religio como uma clara rejeio a estas teses
pressupostas. Assim, este captulo tem o intuito de evidenciar caractersticas de uma
viso religiosa para que nos prximos captulos as opinies de Wittgenstein surjam
do contraste com estas ideias.
1.2) EXEMPLOS DA TEOLOGIA NATURAL
A teologia natural pode ser definida como o projeto voltado produo de
claras e coerentes explicaes da natureza de Deus e de argumentos convincentes
para demonstrar sua existncia. Deve partir de premissas acessveis a todos,
independentes da tradio religiosa ou de algum tipo de revelao divina (cf.
SWINBURNE, 2001, p.03; TALIAFERRO, 2010, p.196). A teologia natural tem uma
histria longa e impressionante, que chega aos alvores do cristianismo. Grandes
pensadores do mundo ocidental fazem parte dessa tradio. O esprito da teologia
natural pode ser ressaltado na frase de Whichcote:No existe nada verdadeiro na
divindade que seja falso na filosofia, ou o contrrio (cf. CRISP, 2009, p.33). Neste
tpico daremos alguns exemplos do tipo de pensamento desenvolvido pela teologia
natural, para depois percebermos a oposio e distanciamento de Wittgenstein em
relao a ela.
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Muitas provas da existncia de Deus foram formuladas pela tradio
teolgico/filosfica. Podemos iniciar classificando essas provas para facilitar a
exposio e o estudo das mesmas. Kant6diz que existem trs caminhos possveis
para tentarmos fundamentar argumentos em favor da existncia de Deus. Esses
argumentos:
[...] ou comeam com a experincia determinada e com o modo deser do nosso mundo dos sentidos conhecido atravs dela, daascendendo segundo leis da causalidade at a causa suprema forado mundo; ou pe empiricamente como fundamento somente umaexperincia indeterminada, isto , uma experincia qualquer; oufinalmente, abstraem de toda a experincia e de modo totalmente a
priori inferem de simples conceitos a existncia de uma causasuprema. A primeira prova a fsico-teolgica, a segunda a
cosmolgica e a terceira a ontolgica. (KANT, CRP, A591- B619)
Esses trs tipos de provas so recorrentes na histria da filosofia e
reconstruiremos cada uma delas a partir de agora. Apenas um ltimo comentrio.
Poderamos, para nossos propsitos, apresentar argumentos que tentassem provar
a inexistncia de Deus, (o que Plantinga chamaria de Ateologia Natural), pois o que
est em jogo aqui no a posio no debate, mas os pressupostos do debate.
Escolhemos provas da existncia, pois pensamos que elas revelam melhor os
pressupostos da VF que, no fim das contas, so aceitos tanto pelos crentes quanto
pelos descrentes adeptos dessa viso. Passemos reconstruo das provas.
1.2.1) ARGUMENTO FSICO-TEOLGICO (ARGUMENTO DO DESGNIO)
Podemos iniciar com algumas passagens da Bblia crist onde j existem
aluses teologia natural. Paulo, na carta aos Romanos, diz que possvel aos
povos que desconhecem a revelao judaica conhecer a Deus por via intelectual,
pois:
[...] o que se pode conhecer de Deus lhes manifesto, j que Deusse manifestou a eles. Desde a criao do mundo, sua condioinvisvel, seu poder e divindade eternos, se tornam acessveis razo para as criaturas. Por isso no tm desculpa. Pois emboraconhecessem a Deus, no lhe deram glria e nem graas, mas seperderam em vos raciocnios, e sua mente ignorante ficou sescuras. Alardeavam de sbios, resultaram nscios. (BBLIASAGRADA, Rm 1, 19-21)
6A cla ssificao de Kant clebre e ainda hoje mantida em muitos livros de filosofia da rel igi o , por exe mpl o: MURRAY,Michel.An Introduction to the Philosophy of Religion. Cambridge Introductions for Philosophy. New York, 2008, p. 123-157.TALIAFERRO, Charles.A Companion of Philosophy of religion. Bl ackwell: Malden, 2010. p. 359-384. MANN, Wi l lian.BlackwellGuide to the philosophy of religion. Bla ckwell Publis hing: Mal den, 2005. p. 81-147. Dentre outros.
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Saindo do mbito teolgico da revelao, Paulo declara que o acesso a Deus
possvel universalmente, pois a razo humana capaz de alcan-lo. No
especifica claramente qual seria essa via racional de acesso, mas sob a luz de outrapassagem bblica o texto paulino se esclarece: Eram naturalmente vos todos os
homens que ignoravam Deus, e foram incapazes de conhecer aquele que , a partir
das coisas boas que esto vista, e olhando suas obras no reconheceram o
artfice(BBLIA SAGRADA, Sab 13,1).
Tais passagens revelam germens do famoso argumento do desgnio (Kant o
chamou de fsico-teolgico) onde a contemplao da ordem da natureza revelaria a
existncia de um Criador inteligente, pois pela grandeza e beleza das criaturas,
descobre-se por analogia aquele que lhes deu o ser(BBLIA SAGRADA, Sab 13,5).
Neste tipo de argumento, a fundamentao da argumentao acerca da existncia
de Deus a aparente ordem e finalidade que encontramos no mundo. Cleantes, um
dos personagens dos Dilogos sobre religio natural de David Hume, apresenta
elegantemente esse argumento:
Olhem para o mundo ao redor, contemplem o todo e cada uma desuas partes: vocs vero que ele nada mais que uma grandemquina, subdividida em um nmero infinito de mquinas menoresque, por sua vez, admitem novamente subdivises em um grau queultrapassa o que os sentidos e as faculdades humanas podemdescobrir e explicar. Todas essas diversas mquinas, e mesmo suaspartes mais diminutas, ajustam-se umas s outras com uma precisoque leva ao xtase todos aqueles que j as contemplaram. A singularadaptao dos meios aos fins, ao longo de toda a natureza,assemelha-se exatamente, embora exceda-os em muito, aosprodutos do engenho dos seres humanos, de seu desgnio,pensamento, sabedoria e inteligncia. E, como os efeitos so
semelhantes uns aos outros, somos levados a inferir, portanto, emconformidade com todas as regras da analogia, que tambm ascausas so semelhantes, e que o autor da natureza de algummodo similar ao esprito humano, embora possuidor de faculdadesmuito mais vastas, proporcionais grandeza do trabalho que elerealizou. (HUME, DRN, p.30).
A passagem de Hume nos diz que existe uma analogia entre a natureza e
alguns artefatos (por exemplo, mquinas) produzidos pelos homens.As mquinas
so produzidas por seres inteligentes. Nossos relgios, automveis, avies, etc., so
projetados e construdos graas inteligncia humana. Assim, depois de
considerarmos a estrutura ordenada do universo, seria totalmente implausvel
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concluirmos a inexistncia de uma mente inteligente que o tenha projetado. Seria a
mesma coisa que encontrar um relgio no meio do deserto e concluir que o mesmo
no possui um construtor. O grau de preciso que se encontra nas invenes
humanas, como por exemplo, em relgios, nos faz concluir que tais objetos possuem
autores ou inventores. Muito mais ordem e preciso existem na natureza, dir o
defensor do argumento do desgnio; tudo na natureza segue leis, e de forma to
precisa que podemos fazer, com eficcia, muitas previses. Quem quer que perceba
as estaes do ano, a trajetria dos planetas e das estrelas, o movimento das
mars, a gestao dos animais, etc., concluir como improvvel que tudo seja
apenas obra de um acaso cego. preciso que exista um projetista inteligente para o
universo. Podemos formalizar o argumento da seguinte forma (cf. MEISTER, 2009,
p.94):
a) Mquinas (por exemplo, relgios), com sua complexa preciso, so produtos do
desgnio inteligente humano.
b) As obras da natureza (por exemplo, o olho humano) se assemelham a
mquinas.
c) Assim, as obras da natureza provavelmente so produtos de desgnio
inteligente.
d) Alm do mais, as obras da natureza so muito maiores em nmero e
complexidade.
Logo, as obras da natureza so provavelmente produtos de um grande
projetista, mais inteligente e poderoso que os projetistas humanos.
O argumento possui outras formulaes ilustres. Das famosas cinco vias emprol da existncia de Deus a quinta pode ser considerada um argumento do
desgnio. Argumenta Toms de Aquino:
A quinta via se depreende do ordenamento das coisas. Ns podemosver que algumas coisas, que carecem de conhecimento, como oscorpos naturais, agem em funo de um fim. E isso evidente pelofato de que sempre, ou quase sempre agem do mesmo modo [...].Portanto est claro que no alcanam seu fim por acaso, mas poruma predisposio. Ora, tudo o que no tem inteligncia no tendeao fim, a menos que seja dirigido por algum ente dotado deconhecimento e inteligncia. Por isso existe algum ser inteligente quedirige todas as coisas para o seu fim. E esse ser ns chamamosDeus. (AQUINO, ST, Parte I, q.2, art.3).
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Uma das premissas de Toms neste argumento a constatao da ordem e
finalidade da natureza. Os corpos naturais sempre tendem a um fim especfico, sem
possuir neles mesmos as causas desse movimento harmnico. A regularidade com
que atingem o fim mostra que no chegam at ele por acaso, e essa regularidade s
pode ser intencional ou desejada. Como so desprovidos de conhecimento, essa
regularidade deve ser dada aos entes por um ser ordenador, capaz de dot-los
desse modo especfico de atuao, e esse ser ordenador chamamos Deus (cf.
GILSON, 1995, p.660).
A prova fsico-teolgica esboada neste tpico uma prova a posteriori, pois,
como vimos, parte de premissas baseadas na experincia que temos no mundo dossentidos, neste caso, experincia de um mundo ordenado, complexo e harmonioso.
Veremos agora outro tipo de argumento a posteriori, tambm muito clebre na
tradio filosfico/religiosa: o argumento cosmolgico.
1.2.2) ARGUMENTO COSMOLGICO
Kant definiu o argumento cosmolgico como aquele que pe seu fundamento
empiricamente, a partir de uma experincia indeterminada. Mais claramente,podemos definir este tipo de argumento como aquele que parte de alguns fatos
contingentes do universo, concluindo que alguma coisa fora do universo a causa,
ou explicao, para existncia deles. Normalmente, o argumento dividido em duas
etapas (cf. ROWE, 2005, p.103):
(i) Em um primeiro momento, argumenta-se da existncia do mundo para
a existncia de uma causa primeira, ou ser necessrio, que explica a
existncia contingente do mundo.
(ii) Na segunda etapa, argumenta-se que esse ser necessrio, ou causa
primeira, tem as propriedades associadas com a ideia de Deus.
A prova cosmolgica se aproxima da fsico-teolgica, pois ambas partem de
argumentaes a posteriori, a partir de premissas extradas (ou supostamente
extradas) do mundo emprico. A diferena entre as provas o tipo de experincia
colocada na base do argumento. As provas do projetista, como dissemos, partem da
ordem existente no universo concluindo que ela melhor explicada atravs de um
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projetista racional. As provas cosmolgicas partem normalmente da contingncia
dos entes do mundo, alegando que a causa primeira, ou sua razo explicativa,
algo externo ao mundo, identificado depois com Deus (cf. MEISTER, 2009, p.66).
Argumentos cosmolgicos podem ser divididos em dois tipos bsicos: aqueles
que admitem um retrocesso infinito de causas e aqueles que negam este retrocesso
(cf. ZALTA, 2010 (online); ROWE, 2005, p.105). As trs primeiras vias de Aquino so
exemplos clssicos deste ltimo tipo, e o argumento de Leibniz, a partir doprincpio
de razo suficiente, o exemplo clssico do primeiro tipo. Explicaremos cada um
deles com mais detalhes, iniciando pelos argumentos cosmolgicos que no
admitem um regresso causal infinito.
Como vimos, a quinta via de Aquino um argumento do tipo fsico-teolgico.
J as trs primeiras vias podem ser classificadas como argumentos cosmolgicos,
pois no partem da ordem e harmonia do mundo, mas de fenmenos especficos
que requerem explicao. Gilson (1995, p.658) diz que essas provas formuladas por
Aquino pem em jogo dois elementos distintos: a constatao de uma realidade
sensvel que requer explicao e a afirmao de uma srie causal de que essa
realidade a base e Deus o topo . Assim, as premissas assumem como ponto de
partida algum fenmeno sensvel e ascendendo segundo leis causais, alcanam a
Deus. Partem do efeito para a (suposta) causa (Deus). Apresentarei as duas
primeiras vias.
A primeira, parte do movimento, e segundo Aquino a mais clara, pois certo
e percebido por nossos sentidos que existe movimento no mundo e que tudo o que
movido movido por outro. Argumenta:
Tudo o que se move movido por outro. Mas se o motor por suavez movido, ele deve ser movido por outro, e este por outro. Ora, nose pode proceder assim infinitamente, pois no se chegaria aoprimeiro que move, e, por conseguinte, no haveria motor algum,pois os motores segundos, ou intermedirios no movem senoenquanto movidos pelo primeiro motor. (AQUINO, ST, Parte I, q.2,art.3).
Aquino, completando o argumento, d um exemplo analgico: o basto s
move algo se for movido pela mo. Da mesma forma, as coisas s se movem seforem movidas por um primeiro motor. A analogia no to clara, mas a ideia central
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do argumento negar a validade de uma regresso infinita, neste caso, de
movimentos. No possvel que uma srie causal se estenda infinitamente, sendo
por isso necessrio a existncia de um primeiro motor que mova a si mesmo. Ou a
srie causal infinita, no existindo um primeiro motor e, por isso, nada explicaria a
existncia do movimento, ou admitimos que a srie finita e existe um primeiro
termo. Esse primeiro motor seria Deus.
A segunda via tem uma estrutura bem semelhante a esta. Os sentidos nonos colocam apenas o problema do movimento, mas o problema da existncia em
geral. Ora, as coisas antes de se moverem existem, e na medida em que so reais,
possuem causas para sua existncia. O que se diz das causas do movimento pode
ser dito das causas em geral. Nada pode ser causa de si mesmo, pois a causa
anterior ao efeito, e impossvel a algum ente ser anterior a ele mesmo:
No possvel proceder indefinidamente nas causas eficientes. A
primeira causa da mdia e essa da ltima, sejam as mdias muitasou uma s. E como, se removemos a causa, removemos tambm oefeito, logo, se nas causas eficientes no houver primeira, nohaver ltima nem mdia. [...] Portanto necessrio admitir umacausa eficiente primeira, qual damos o nome de Deus. (AQUINO,ST, Parte I, q.2, art.3).
Podemos estruturar a segunda via da seguinte maneira:
a) Percebemos pelos sentidos que existem coisas que so causadas (criadas) por
outras coisas.
b) Nenhuma coisa pode ser causa eficiente de si prpria.
b1) Se assim fosse estaramos diante de uma situao absurda, pois se algo
fosse causa eficiente de si mesmo, teria de ser anterior a si mesmo.
c) Tambm no pode haver uma sucesso infinita de causas, pois tem de haver
uma primeira causa das intermdias.
c1) Se assim no fosse, deixariam de haver causas e, como tal, efeitos.
d) Ora, o mundo prova que h causas intermdias e efeitos.
Logo, deve haver uma primeira causa a qual chamamos Deus.
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Ao organizar o argumento dessa forma, percebemos novamente a rejeio a
uma regresso causal infinita. A premissa c deixa isso claro ao negar uma
sucesso infinita de causas. Como na primeira via, que no aceita uma regresso de
motores, a segunda via no aceita uma regresso de causas, concluindo que deve
existir uma causa primeira iniciando a srie.
Outro tipo de argumento cosmolgico pode aceitar uma regresso infinita de
causas e mesmo assim concluir a existncia de Deus. Isso ocorre com o argumento
de Leibniz, baseado no Princpio de razo suficiente. Segundo Leibniz, neste
princpio:
Consideramos que no pode haver nenhum fato verdadeiro ouexistente, nem alguma enunciao verdadeira sem que exista umarazo suficiente para que seja assim e no de outro modo. Mesmoquando essas razes nos podem parecer, na maioria dos casos,desconhecidas. (LEIBNIZ, MONADOLOGIA, 32); (cf.: LEIBNIZ,TEODICIA, 44 e 196).
Assim, uma explicao E vale como razo suficiente de x quando E fornecer a
razo completa para a existncia de x, de tal forma que uma resposta definitiva para
a pergunta por que x existe? seja satisfeita (cf. ARRUDA, 2003, p.114). Mas ao
buscarmos a explicao do porqu da existncia de x, podemos concluir que x
existe por que r existe, e dessa forma, a explicao definitiva da existncia de x no
estar satisfeita at no descobrirmos a razo suficiente de r; mas, pode ocorrer que
ao tentarmos explicar r constatemos que a sua razo suficiente a existncia de p,
e assim, a razo completa para a existncia de x vai sendo levada ao infinito na
explicao dos elos contingentes:
A srie de contingncias pode alongar-se para trs em um tempo infinito, mas
se assim for, se considerarmos a srie como um todo, ou recuarmos o mais longe
que pudermos, tudo que teremos ainda ser contingente e, portanto, a razo
suficiente precisa estar fora da cadeia, ancorada em um ser que no possui a
doena da contingncia (cf. MACKIE, 2003, p.336), um ser que no precisa de umarazo fora de si, um ser cuja existncia fundada em si mesmo, e isto o que
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chamamos Deus (cf. LEIBNIZ, MONADOLOGIA, 38). A ideia de Deus rompe a
sequncia relativa de explicaes e nos remete a uma explicao completa. A
existncia de Deus mostra-se ento como necessria para a explicabilidade dos
fatos contingentes. Para essa verso do argumento cosmolgico, diferente do
anterior, irrelevante se ocorre ou no um regresso causal infinito, pois em ambos
os casos o princpio de razo suficiente aponta para um fundamento ltimo de
inteligibilidade da srie. Neste contexto nos diz Arruda:
A reconstruo leibniziana do argumento cosmolgico com base noPrincpio de Razo Suficiente leva s mesmas concluses que oargumento tradicional [tomista]. Se o ser necessrio no existisse,ento no existiria nada contingente; coisas contingentes existem,ergo o ser necessrio existe. Na verso leibniziana, porm, oargumento menos frgil, uma vez que ele no se baseia noprocesso fsico de surgimento das coisas no tempo. (ARRUDA, 2003,p.115)
Dessa forma, como temos dito, no importa para o argumento de Leibniz se o
mundo eterno, se as causas contingentes se estendam ao infinito, pois a causa
explicativa de toda cadeia causal est fora da srie, em um esquema mais ou menos
assim:
Essas so as duas tradicionais verses do argumento cosmolgico. O timo
exemplo que daremos o clebre e polmico argumento ontolgico.
1.2.3) ARGUMENTO ONTOLGICO
Os dois argumentos anteriores podem ser classificados como argumentos a
posteriori, pois dependem de premissas retiradas das nossas experincias do
mundo, seja experincia da ordem e finalidade, seja experincia da contingncia dos
entes. Outro tipo de argumentao, agora a priori, ou seja, partindo do mero
conceito de Deus, tambm muito clebre na teologia natural. Tradicionalmente a
demonstrao de Deus mediante simples conceitos, sob a abstrao de toda
experincia, chamada prova ontolgica. Essa prova foi primeiramente
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desenvolvida por Anselmo no Proslogion, e na poca moderna foi retomada, dentre
outros, por Descartes. Apresento brevemente as verses anselmiana e cartesiana
do argumento ontolgico.
1.2.3.1) A VERSO ANSELMIANA
Com efeito, no busco compreender para crer, mas creio para compreender.
Efetivamente creio, porque, se no cresse, no conseguiria compreender
(ANSELMO, PROSLOGION, Cap. I). Com essas palavras Anselmo encerra o
captulo 1 do Proslogion e d a entender que o seu ponto de partida para
demonstrar a existncia de Deus a f. O Deus, cuja existncia ele demonstrar,
o Deus que a f crist impe crena. Isso to certo que o Proslogion inicia-se
com uma prece. De forma alguma isso irracionalidade, pois, para ele, a f e a
razo se complementam. Ele no estaciona nos dogmas de f, mas busca
compreender racionalmente os dogmas. A ideia aqui de um tesmo racionalista
religioso (GUERREIRO, 2000, p.31), onde as verdades da f podem ser aclaradas
pela razo humana. Isso um aspecto da VF das crenas religiosas e, como
veremos mais a frente, ser criticado por Wittgenstein. Seguindo com o argumento
de Anselmo:
A f o ponto de partida que move a ao intelectual de SantoAnselmo. Mas esta ao no mera passividade. A f exige esforodo homem. o homem que cr e compreende. O argumentoontolgico se aplica muito bem dentro da antropologia filosfica.Santo Anselmo parte da revelao, por que entende que o homemno poderia buscar aquilo que no lhe foi dado. (STREFLING, 1993,p. 42-43)
Assim, o que move a ao intelectualde Anselmo seria interno revelao
crist. As sentenas iniciais do Proslogion, que se constituem em uma prece, nos
deixa isso bem claro. Strefling (1993, p. 45) destaca esse momento inicial, dizendo
que com esse pano de fundo que precisamos tentar entender a prova anselmiana:
quisramos reiterar essa ideia, pois no com outro esprito que devemos penetrar
no argumento ontolgico. Dessa forma,Anselmo precisa partir da ideia de Deus
fornecida pela f, e depois compreender essa ideia racionalmente. Mas qual essa
ideia? Quem esse Ser que chamamos Deus? Ora, cremos que Deus existe, e que
Ele um ser do qual no se pode pensar nada maior,diz Anselmo (PROSLOGION,
Cap. II). A questo saber se existe ou no tal ser.
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Mesmo um ateu, que afirma em seu discurso a no existncia de Deus,
precisa convir que compreende a frmula de definio da Divindade usada por
Anselmo, a saber: o ser do qual no possvel pensar nada maior (cf.
PROSLOGION, Cap II). Ora, o que ele compreende, existe em sua inteligncia,
ainda que no compreenda sua existncia real. Isso ocorre por que existir na
inteligncia e existir na realidade so coisas distintas. Anselmo d um exemplo: um
pintor, ao imaginar a obra que est prestes a iniciar, a possui em sua inteligncia,
mas nada compreende de sua existncia real. Depois de terminada a pintura, o
artista compreende sua existncia real e ainda a possui em sua inteligncia
(PROSLOGION, Cap. II). Portanto, pode-se convencer o ateu, que ao menos em
sua inteligncia existe o ser do qual no possvel pensar nada maior, por que
compreende o que isso significa, e tudo o que se compreende existe na inteligncia.
Anselmo, a partir desse ponto, segue assim a argumentao:
Mas, o ser do qual no possvel pensar nada maior, no podeexistir somente na inteligncia. Se, pois, existisse apenas nainteligncia, poder-se-ia pensar que h outro ser existente tambmna realidade, e que seria maior. (ANSELMO, PROSLOGION, Cap. II)
Se esse ser do qual no possvel pensar nada maior, existir somente na
inteligncia das pessoas, os seres que existem na inteligncia e na realidade sero
maiores do que ele; pois existir na realidade melhor do que existir somente na
inteligncia7. A concluso de que Deus existe somente na inteligncia ento
absurda, pois assim, existiria algo maior do que o ser do qual no possvel pensar
nada maior. Logo, esse ser, que Deus, existe no s na inteligncia, mas tambm
na realidade.
A este primeiro raciocnio, segue-se outro8(ANSELMO, PROSLOGION, Cap.III), em que a concluso ser a impossibilidade de sequer pensar na no existncia
de Deus. certo que podemos pensar algo que no pode ser pensado como
inexistente. inegvel que esse algo maior do que aquilo que podeser pensado
como inexistente (assumindo que existir melhor que no existir). Visualizaremos
melhor pelo esquema abaixo:
7
Press uposio a nsel miana (cf. Prosl ogion Cap. II ).8Segundo Malcolm (2003b, p.373) neste momento Anselmo estaria apresentando (talvez sem perceber) u m argumentodi ferente daquele apresentado no ProslogionI I. Voltaremos a esse ponto no tpico 2.2 quan do discutirmos agramtica doconceito Deus.
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Algo que no pode ser pensado como inexistente, chamaremos A.
Algo que podeser pensado como inexistente, chamaremos B.
Ora, A maior que B, pois em Aesto intrnsecos, ao pensar o objeto, a sua
existncia em todos os tempos e lugares, e a impossibilidade da sua inexistncia.
Em B, s posso pensar objetos que tm a caracterstica de existentes por um
perodo de tempo e depois findando rumo ao no-ser, ou existindo em um lugar do
espao e no em outro, ou no existindo de forma alguma.
Logo:
Se pensar Deus como inexistente, coloco-o no grupo B:
Mas quem Deus? Deus o ser do qual no possvel pensar nada maior.Como ento A pode ser maior que Deus? Pensar Deus como no existente um
absurdo lgico. Deus existe de tal forma que impossvel pens-lo como no
existente.
No captulo IV do Proslogion, depois das concluses que j expus, surge a
seguinte questo: Como possvel o ateu insistir pensar no existe Deus, se tal
afirmao impossvel de ser pensada? Anselmo responde da seguinte forma:
podemos pensar uma coisa de dois modos, pensando na palavra que expressa a
coisa, ou compreendendo a prpria coisa. Quando o ateu pensa na no existncia
de Deus, ele no est compreendendo realmente o que Deus . Est pensando
somente na palavraque expressa a coisa. Quem compreende verdadeiramente que
Deus o ser do qual no se pode pensar nada maior, conclui sem sombra de dvida
que ele precisa existir. Esse, brevemente exposto, o argumento ontolgico de
Anselmo.
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1.2.3.2) A VERSO CARTESIANA
Passemos a verso da prova ontolgica de Descartes, conforme aparece na
Quinta Meditao da obra Meditaes Metafsicas. Para melhor compreenso daprova cartesiana, seguindo Curley (1997, p.52), devemos partir da seguinte
premissa: Tenho ideias de coisas que, quer existam, quer no existam, e quer eu
pense nelas ou no, tm naturezas imutveis ou essncias . Descartes defende
essa pressuposio apresentando um exemplo matemtico:
Como, por exemplo, quando imagino um tringulo, ainda que nohaja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamentouma tal figura, e que nunca tenha havido alguma, no deixa,
entretanto, de haver uma certa natureza ou forma, ou essnciadeterminada, dessa figura, a qual imutvel e eterna, que eu noinventei absolutamente e que no depende, de maneira alguma, demeu esprito. (DESCARTES, MEDITAES V, 5)
Mesmo sem saber se fora do meu pensamento existem realmente tringulos9,
posso, a partir da ideia que tenho, demonstrar diversas propriedades deles, por
exemplo, que a soma de seus ngulos internos igual a 180 graus, ou que o maior
lado oposto ao maior ngulo, dentre outras.
No criamos nem inventamos as verdades da matemtica. Elas possuem
uma natureza ou essncia imutvel, e podemos pensar e deduzir novas
propriedades dessas verdades, mesmo sem saber se realmente existem os objetos
matemticos. Diante da clareza e distino dessas ideias no h como o esprito
concluir que tais ideias so falsas, mesmo, como eu disse, se no soubermos se
essas ideias possuem correspondentes na realidade. No h como concluir como
falsa a proposio a soma dos ngulos de um tringulo 180, a no ser por umapatologia que atinge a razo.
Munido dessa pressuposio inicial, Descartes apresenta o contedo de uma
de suas ideias, a saber, a ideia de Deus. Segundo Descartes, Deus um Ser
Sumamente Perfeito, e Curley em seu artigo, acha que Descartes pretendia que
essa definio fosse compartilhada por todos (1997, p.55). Como destacado na
9Ne ste momento dasMeditaes Metafsicas,Descartes realmente duvida se existe m trin gul os ou q ua is que r objetosmate riais. As dvidas cessaro depois de provar a existncia de Deus e verificar que este nos gara nte a verdade . N o hcomo a profundarmos neste texto o p apel do argumento ontolgico nos sistemas cartesiano e anselmia no;detenho-meapena s na reconstruo da prova ontolgica.
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primeira premissa, as ideias matemticas tm naturezas ou essncias imutveis, e
raciocinando sobre elas podemos concluir vrias coisas. E se usarmos o mesmo
mtodo com a ideia de Deus? O que podemos concluir?
Habituado em todas as outras coisas a fazer distino entre aexistncia e a essncia, persuado-me facilmente de que a existnciapode ser separada da essncia de Deus e de que, assim, possvelconceber Deus como no existindo atualmente. Mas, no obstante,quando penso nisso com maior ateno, verifico claramente que aexistncia no pode ser separada da essncia de Deus, tanto quantoda essncia de um tringulo retilneo no pode ser separada dagrandeza de seus trs ngulos iguais a dois retos ou, da ideia deuma montanha, a ideia de um vale; de sorte que no sinto menosrepugnncia em conceber um Deus (isto , um ser soberanamenteperfeito) ao qual falte existncia (isto , ao qual falte algumaperfeio), do que em conceber uma montanha que no tenha vale.(DESCARTES, MEDITAES V, 7)
Segundo Descartes, quando analiso a ideia de Deus que existe em meu
esprito, devo concluir necessariamente sua existncia. Ele pressupe, na passagem
acima, que existncia uma perfeio. Ora, se Deus um ser soberanamente
perfeito, ele deve possuir todas as perfeies, inclusive a perfeio de existir. No
somos livres para pensar um Deus sem existncia. A ideia de Deus nos impe a
concluso de sua existncia, da mesma forma que a ideia de um tringulo impe aconcluso de que a soma de seus ngulos seja 180.
Podemos formalizar o argumento da seguinte forma:
a) Deus um ser sumamente perfeito (ou dito de outro modo, um ser que
possui todas as perfeies);
b) Existir uma perfeio;
Deus existe
Alqui (1999, p.58) diz que se enganam os que consideram a prova
ontolgica de Descartes falaciosa por contrabandear a concluso na primeira
premissa. Esconde-se o predicado existir na premissa e depois ele extrado na
concluso. No se trata disso, pois, segundo esse comentador, a prpria ideia de
Deus, e somente ela, que impe ao nosso esprito a concluso de sua existncia
necessria. Se o raciocnio quanto existncia de Deus estiver errado, estaro
erradas tambm todas as concluses da matemtica, pois o processo dedutivo o
mesmo:
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Nada pode esclarecer melhor esses espritos [aqueles que acham oargumento ontolgico falacioso, pelo motivo que citei] que aaproximao entre o argumento ontolgico e a matemtica, em queacreditam. Nas cincias matemticas, eu posso enunciar com
verdade o que o crculo, o que o tringulo, sem comear porsaber se existe no mundo um tringulo ou um crculo. Do mesmomodo, a prova ontolgica estabelece a existncia de Deussimplesmente a partir da sua essncia: ela deve, portanto, observaDescartes, passar por pelo menos to certa como as verdadesmatemticas (ALQUI, 1999, p.58).
A passagem abaixo parece corroborar a tese de Alqui:
Pois, com efeito, reconheo de muitas maneiras que esta ideia no de modo algum algo fingido ou inventado, que dependa somente demeu pensamento, mas que a imagem de uma natureza verdadeirae imutvel. Primeiramente, porque eu nada poderia conceber, excetoDeus s, a cuja essncia a existncia pertence com necessidade.(DESCARTES, MEDITAES V, 10)
Em resumo, o argumento cartesiano como segue: A ideia de um ser
Sumamente perfeito concebvel, e normalmente chamamos essa ideia de Deus.
Ora, da mesma forma que da ideia do tringulo, se pode deduzir que o maior dos
seus ngulos frontal ao maior lado, e isso, como j disse, sem supor que exista
qualquer tringulo, tambm da simples ideia do ser sumamente perfeito, isto ,
aquele ser que possui todas as perfeies, se pode deduzir que Deus existe.
Porque, se Deus no possusse a existncia, faltar-lhe-ia uma perfeio, o que
contrrio sua prpria definio.
1.3) CONSIDERAES FINAIS DO CAPTULO
O intuito deste captulo foi mostrar alguns exemplos de argumentos
tradicionais da teologia natural, para, nos prximos captulos, enfatizarmos a clara
rejeio da abordagem wittgensteiniana frente a essa tradio, que temos chamado
viso factual das crenas religiosas. No lado testa da filosofia analtica
contempornea, o grande nome da VF Richard Swinburne. Ele possui trs livros
em defesa da teologia natural - a trilogia sobre a filosofia do tesmoonde cada um
dos trs volumes constitui uma pea essencial. O primeiro volume, The Coherence
of Theism (1977),preocupa-se em mostrar o que significa dizer Deus existe, e se
esta declarao internamente coerente. Conclui que a declarao no em si
mesma contraditria, partindo depois disso para a segunda etapa, que ser a
demonstrao de sua verdade. Essa segunda etapa desenvolvida no segundo livro
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da trilogia, que The Existence of God (1979). Este livro concentra-se em evidenciar
que a proposio Deus Existe verdadeira, uma vez demonstrada sua coerncia
interna no primeiro livro. Swinburne, usando uma poderosa lgica indutiva, concede
que embora no possamos provar conclusivamente a existncia de Deus, ao
colocarmos na balana as razes contrrias e favorveis a sua existncia, a
probabilidade da existncia mostra-se com maior grau de plausibilidade. O terceiro
livro da trilogia Faith and Reason (2005), onde o filsofo investiga qual a relevncia
dos argumentos indutivos para as crenas religiosas, argumentos estes usados para
demonstrar a existncia de Deus em sua defesa do tesmo (cf. SWINBURNE, 2005,
p.10). Aprofundar a argumentao de Swinburne no pertence ao escopo deste
trabalho. Fazer isso seria repetitivo para nossos propsitos, pois aquilo que
queremos mostrar j est implcito nos argumentos tradicionais expostos acima.
Mencionamos Swinburne, pois o filsofo citado por Schnbaumsfeld quando
explica a viso factual da religio. Entendamos aqui a crtica sendo direcionada no
especificamente a Swinburne, mas a esse tipo de filosofia da religio apresentado,
onde a argumentao filosfica/cientfica teria papel central na demonstrao das
verdades religiosas. Pois bem, Schnbaumsfeld diz o que segue sobre a empreitada
apologtica de Swinburne (e da VF em geral):
Nas construes de Swinburne a declarao da existncia de Deus uma teoria cientfica, ou hiptese a ser provada, a qual diferesomente no escopo, e no no tipo da questo, digamos, de seexistem partculas elementares ou no. (SCHNBAUMSFELD, 2007,p. 158)
O julgamento correto, Swinburne realmente trata as crenas religiosas como
hipteses cientficas, supondo que o tesmo explica bem os dados observados e a
m compreenso do Deus testa pode gerar hipteses que no explicam to bem osdados observados.O prprio Swinburne deixa claro esse ponto:
Reivindico que supor que existe um Deus explica porque, por algummotivo (at all), existe um universo fsico; porque existem as leiscientficas existentes; porque animais e depois seres humanosevoluram; porque os homens so conscientes; [...], e muitos outrosfenmenos (SWINBURNE, 2008, p. 271).
A suposio da existncia de Deus assim parte de uma teoria maior, de
uma viso de mundo maior, capaz de dar conta, de forma mais eficaz que as
concorrentes, da explicao dos fenmenos do mundo. A proposio Deus existe
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seria no tesmo de Swinburne e, podemos dizer, na VF em geral, como uma
hiptese que precisa ser investigada da mesma maneira que as outras proposies
cientficas precisam. E por que deveramos acreditar naqueles que dizem que Deus
existe? Swinburne responde: para responder a esta pergunta temos de estudar os
critrios utilizados pelos cientistas, historiadores e outros, quando apresentam suas
teorias sobre as causas daquilo que observam(SWINBURNE, 2003, p.83).
Todos estes argumentos exemplificam bem o esprito da teologia natural e da
viso factual. Ao pressupor que as crenas religiosas dizem respeito a estados de
coisas do mundo a apresentao de argumentos e evidncias deve ser essencial
para que elas se fundamentem. A VF pressupe tambm a existncia de um terrenocomumde justificao das crenas onde ateus e crentes religiosos podem debater e
chegar a um acordo, independentemente do contexto pragmtico de cada um. Do
lado testa, a existncia de Deus pode ser comprovada pela racionalidade do
homem, basta que ele se disponha a verificar diligentemente os argumentos
apresentados (cf. BROWN, 1999, p.24). Do lado atesta as evidncias apresentadas
pelos crentes so muitas vezes ditas insatisfatrias. Dessa forma, como destaca
Schnbaumsfeld (2007, p.158) existiria na VF, uma nica maneira correta de
descrever o mundo, e essa maneira ou contm uma entidade chamada Deus, ou
no contm. A proposio Deus existe, tratada como uma hiptese (cientfica ou
filosfica) que precisa ser investigada emprica e/ou racionalmente.
Tudo isso, como veremos no prximo captulo, ser contrrio filosofia da
religio de Wittgenstein. Primeiramente, vamos observar que tratar a proposio
Deus existe em analogia com as proposies hipotticas da cincia ou da filosofia,
gera confuses que bloqueiam a verdadeira compreenso das questes religiosas.Uma questo importante e anterior est sendo negligenciada, a saber, o
esclarecimento gramatical do conceito Deus. Esse esclarecimento revelar que
Deus no deve ser tratado em analogia com algum objeto fsico do qual podemos
investigar a existncia, pois Deus no um objeto entre objetos. As caractersticas
gramaticais superficiais das proposies onde usamos o conceito Deus so
similares s caractersticas das proposies relativas a alguma pessoa humana ou
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algum objeto cuja existncia pode ser de alguma forma verificada10. Essas
caractersticas superficiais da gramtica levam a confuses relativas ao uso real do
conceito que a anlise da gramtica profunda (dis)solucionar. Veremos que as
caractersticas do conceito Deus devem ser entendidas como regras gramaticais
que regem o uso do conceito dentro de um contexto especfico. Longe de significar
que Deus, dessa forma, no existiria realmente, essa anlise nos mostrar que os
conceitos, principalmente o de existncia no devem ser tratados de forma
unvoca. Os conceitos ganham vida dentro dos contextos onde so utilizados. Essa
concluso no comprometer Wittgenstein com algum tipo de fidesmo, entendido
como a viso religiosa onde a existncia de Deus aceita por algum argumento
mstico ou teolgicoque dogmaticamente reconhece a transcendncia de Deus em
relao ao mundo fsico. Tal concluso se mostrar ao verificarmos a categoria
lgico/gramatical das proposies religiosas. Isso ficar claro nos prximos
captulos.
Tambm a pressuposio de que s possvel uma nica descrio correta
do mundo, - onde Deus ou existe ou no existe, onde um juzo final ocorre ou no
ocorre, em suma, onde se tm evidencias para as crenas religiosas ou no se tm -
no pode ser aceita por Wittgenstein. Para isso, teramos que ter a possibilidade de
fundamentar universalmente todas as nossas crenas e, segundo Wittgenstein, isso
no possvel. No existe possibilidade de um fundamento ltimo e universal para
justificao de nossas crenas. O que existe um sistema de referncia
(Bezugssystem), onde aceitamos algumas crenas fundamentais sem nenhum tipo
de prova. Crescemos dentro de um enquadramento de crenas, aprendendo e
absorvendo esse sistema, aceitando sem reflexo. Veja:
Toda verificao, toda confirmao e no confirmao de umahiptese acontece j dentro de um sistema. E este sistema no umponto de partida mais ou menos arbitrrio e duvidoso em relao atodos os nossos argumentos: ele faz parte da natureza daquilo quechamamos argumento. O sistema no tanto o ponto de partida,mas o elemento de que vivem os argumentos. (WITTGENSTEIN,DC, 105)
10 normal, no contexto religioso, usar expresses do tipo: O ol ho de Deu s tudo v ou Seu brao pode roso. Taisproposies, dentre i numerveis outras, podem levar falsa impresso de que devemos p ensar a existncia de Deus comoan loga a existncia de uma pes soa humana , pois uma p es soa humana tem olhos e braos. Este debate serdes envolvido no tpi co 2.2.
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Dentro desses sistemas de referncia, existem regras11 que no so
colocadas em dvida, pois elas moldam nossa forma de pensar e agir. Partimos
delas para agirmos no mundo, partimos delas para desenvolver argumentos. Tais
regras orientam nossa ao e podem ser chamadas regras fulcrais. Segundo
Dallagnol(2006, p.14) uma regra fulcral, seja lgica, seja matemtica, seja de uma
cincia emprica qualquer, seja do dia-a-dia, etc. uma proposio assumida como
verdadeira para que outras possam ser acreditadas, provadas, testadas, etc .. Por
isso, Wittgenstein diz que um jogo-de-linguagem somente possvel se confiarmos
em alguma coisa: No poder confiar, mas realmente confiar (DC, 509).Ou seja, a
justificao das crenas tem um fim, e algumas crenas, que esto nas bases de
nossas prticas, so aceitas sem reflexo.
Esse tipo de crena bsica equiparada, pelo prprio Wittgenstein, com a
crena religiosa12 (religiosem Glaubem) (DC, 459). Norman Malcolm (2003a, p.258)
interpreta essa comparao, enfatizando uma caracterstica importante da
compreenso que Wittgenstein tem das crenas religiosas, a saber, que no surgem
ou desaparecem com base em provas ou evidncias, como quer a VF. No prximo
captulo isso ser aprofundado, e veremos como as opinies de Wittgenstein sobre
religio se afastam da abordagem factual. Mostraremos que as proposies
religiosas esto relacionadas com regras para conduo da vida, servindo apenas
para descrever a cosmoviso religiosa, no servindo para justific-la. Mostraremos
que a fundamentao da religio se d internamente ao jogo-de-linguagem, na
prpria prtica do grupo religioso. Essa fundamentao interna no uma
caracterstica somente do sistema religioso, o que comprometeria Wittgenstein com
algum tipo de fidesmo, como j comentamos acima. Toda e qualquer cosmoviso
(Weltbild) no se funda em evidncias, mas no sistema de referncia herdado,
aprendido em um contexto prtico. Assim veremos que a abordagem factual (tanto
dos crentes quanto dos descrentes) e o desafio evidencialista, estariam confundindo
proposies empricas com proposies fulcrais, e a abordagem wittgensteiniana
(dis)solucionaria esse problema. A VF revela certa confuso, ao tratar as
11Que n o precisam n ecessariamente ter e strutura proposicional. Voltaremos a esse assunto nos p rximos captulos.12Segundo Malcolm (2001, p.59) Wittgenstein leu com cuidado as obras do telogo Henry Newma n e i sso certamen te oinfluenciou nessa fala. Logo no primeiro pargrafo doDa Certezavemo s Wittgenstein dizer que Newman tinha comentriosinteressantes sobre o assunto que ele estava tratando. Mais especificamente, podemos pensar que Wittgenstein se refere obra Ensaio a favor de uma gramtica do assentimento, onde Newman faz interessantssimas consideraes sobre o temada certezae da f.
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proposies religiosas como factuais, empricas, quando na verdade so
proposies assumidas que revelam os fulcros onde toda uma cosmoviso gira.
Obtivemos e mantemos essas crenas, expressas nas proposies fulcrais, no por
que nos convencemos que so epistemicamente justificadas, mas apenas por ser
um quadro de referncias herdado; as proposies fulcrais que descrevem a
cosmoviso tm papel semelhante s regras de um jogo, e o jogo pode ser
aprendido puramente pela prtica, sem quaisquer regras explcitas (cf.
WITTGENSTEIN, DC, 94-95). Passemos ao prximo captulo, para que tudo fique
mais claro.
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CAPTULO 02
WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENAS RELIGIOSAS
2.1) CRENTES E DESCRENTES SEPARADOS POR UM ABISMO
Dissemos no primeiro captulo que crentes e descrentes adeptos da VF
concordam que nossas crenas precisam se basear em evidncias para que sejam
epistemicamente justificadas (no concordam quanto qualidade das evidncias,
mas isso no influencia nosso argumento). Sam Harris, um dos proponentes do
assim chamado novo-atesmo, um bom exemplo para apresentarmos essa
concordncia quanto necessidade das evidncias. Veja:
Voc acredita que a bblia a palavra de Deus, que Jesus o filhode Deus e que apenas aqueles que tm f em Jesus alcanaro avida aps a morte. [...] eu gostaria de reconhecer que h muitospontos em que concordo com voc. Ns concordamos, por exemplo,que se um de ns est certo, o outro est errado. Ou a bblia apalavra de Deus ou no ; ou Jesus oferece humanidade o nicoverdadeiro caminho para salvao (Joo 10,6) ou no oferece. [...]
Assim, sejamos honestos. Com o decorrer do tempo um dos doislados vai realmente vencer essa discusso, e o outro lado realmentesair derrotado. (HARRIS, 2006, p. 22-23)
Assim, as controvrsias entre um sujeito religioso e um sujeito no-religioso,
seriam claramente calcadas sobre o princpio lgico do terceiro excludo, segundo o
qual a disjuno de qualquer frase ou proposio p, com a sua negao no-p,
invariavelmente verdadeira (ou pou no-p). No existe a possibilidade depe no-p
serem verdadeiras ao mesmo tempo; como diz Harris um dos dois lados vai
realmente vencer essa discusso. O que resolve a contenda a qualidade da
evidncia. Vimos no primeiro captulo que muitos testas concordam com isso,
desenvolvendo argumentos para convencer as pessoas da existncia de Deus.
Pois bem, parece trivial que o princpio do terceiro excludo e a apresentao
de evidncias devem estar na base das controvrsias, mas ao nos debruarmos
sobre as opinies de Wittgenstein perceberemos que no to trivial assim.
Segundo ele, as controvrsias religiosas so muito diferentes das controvrsias
normais. [Pois] so, de certo modo, assaz inconclusivas (WITTGENSTEIN, LC
p.132). Se concordarmos com os adeptos da VF, devemos concluir que ascontrovrsias tero sim um fim; e o vencedor, como diz Harris, ser aquele que
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apresentar os melhores argumentos, a melhor prova, as melhores evidncias.
Porque, para Wittgenstein, as discusses com temas religiosos seriam diferentes?
Antes de responder a questo daremos mais um exemplo. No necessrioque a disputa seja sobre a existncia ou no de Deus para que exista uma
controvrsia religiosa. Harris, por exemplo, citou a autoridade bblica e a salvao
vinda de Cristo, mas podemos pensar em qualquer outra afirmao religiosa com
sua respectiva negao para construirmos um debate: haver um Juzo Final;
podemos conceber um grupo de pessoas que ache isso absurdo e ilusrio
(DAWKINS, 2007) e um grupo que proclame a verdade da assero:
A ressurreio de todos os mortos, "dos justos e dos injustos" (At24,15), anteceder o Juzo Final. Este ser "a hora em que todos osque repousam nos sepulcros ouviro sua voz e sairo: os quetiverem feito o bem, para uma ressurreio de vida; os que tiverempraticado o mal, para uma ressurreio de julgamento" (Jo 5,28-29).(CIC, 1038).13
Temos duas posies contrrias, mas, diante desse quadro aparentemente
conflitivo entre crentes e descrentes, uma posio inicialmente estranha
sustentada por Wittgenstein: crentes religiosos e descrentes sustentam crenas
diferentes sobre a ocorrncia de estados de coisas, mas no esto disputando
opinies ou contradizendo um ao outro (cf. VASILIOU, 2004, p.31). Nas suas
Palestras sobre Crena Religiosa (LC), Wittgenstein diz o seguinte, justamente
sobre a crena (ou descrena) no Juzo Final: Suponhamos que algum acredite no
Juzo Final e eu no; significa isso acaso que eu acredite no contrrio, que no deve
existir tal coisa? Eu diria: de modo algum (WITTGENSTEIN, LC, p.129). De modo
algum, diz ele enfatizando, existe alguma contradio entre algum que acredita e
algum que no acredita na doutrina do Juzo Final. Em outra passagem o filsofo
diz que no existe nem possibilidade de contradio:
Se me perguntarem se creio ou no em um dia do Juzo, no sentidoem que creem nele as pessoas religiosas, no diria: no, no creioque haver tal coisa me pareceria completamente disparatado dizerisso. [...] No posso dizer nada. No posso contradizer essa pessoa.(WITTGENSTEIN, LC, p.132. grifo nosso).
13(CIC) CATECISMO DA IGREJA CATLICA. 10 edio. So Paulo: Loyola, 1999
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Ora, precisamos compreender melhor o que Wittgenstein est dizendo, pois
parece que, ao contrrio do que exposto nas citaes acima, existe sim uma
contradio quando algum cr e algum no cr no Juzo Final:
1. Ap (Acredito quepocorrer)
2. A~p (Acredito quepno ocorrer)
3. p v ~p (Oupocorre oupno ocorre.)
Parece, em um primeiro momento, que no h como as duas proposies
serem verdadeiras (ou falsas) ao mesmo tempo; p e ~p seria algo impossvel,
contraditrio. Como devemos entender isso? Uma passagem das Palestras sobre
Crena Religiosa pode nos auxiliar. Supem-se duas pessoas respondendo a
questo (i) Crs no juzo final? em que uma responde sim e a outra responde
no sei, no estou seguro; e uma questo (ii) Este avio que nos sobrevoa um
avio alemo? em que as respostas so as mesmas, ou seja, uma responde sim e
a outra responde no sei, no estou seguro. Wittgenstein diz que no caso (ii) onde
a questo faz parte de um contexto no-religioso, as pessoas esto muito prximas
uma da outra e no caso (i) onde o contexto religioso, existe um abismo entre
elas(cf. WITTGENSTEIN, LC, p.129). A tabela abaixo clarifica o esquema:
Wittgenstein estaria, como sugere Martin (1991, p.372), propondo uma
espcie de incomensurabilidade entre o discurso religioso e o discurso no religioso.
Assim, de certa forma, nas controvrsias religiosas o crente e o descrente no
estariam se entendendo. cedo para compreendermos com clareza que tipo de
incomensurabilidade seria essa, mas a passagem abaixo, tambm das Palestras
Sobre Crena Religiosa, pode nos dar uma boa chave de leitura:
Sujeito 1(S1)
Sujeito 2(S2)
Crs no Juzo Final? SimNo sei,
no estouseguro.
S1 e S2 separadospor um abismo
Este avio que nossobrevoa um avioalemo?
Sim No sei,no estouseguro.
S1 e S2 muitoprximos um dooutro.
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Seja o que for que acreditar em Deus possa ser, no pode seracreditar em algo que se possa por prova, ou encontrar meios depor a prova. Vocs poderiam dizer: Isso um contra-senso, pois aspessoas dizem que acreditam em provas, ou em experincias
religiosas. Eu diria: O simples fato de pessoas dizerem queacreditam em provas no me revela o bastante para capacitar-me adizer se eu posso afirmar, acerca de uma sentena como Deusexiste, que suas provas so insuficientes ou insatisfatrias.(WITTGENSTEIN, LC, p.137).
Na VF, se elaboram provas para tentar provar a existncia de Deus, mas,
para Wittgenstein, isso no possvel, pois a relao do religioso com os
fundamentos de sua crena outra: A questo que se houvessem provas, elas
destruiriam de fato toda a coisa. Nada do que eu chamo normalmente de prova me
influenciaria o mnimo que fosse (WITTGENSTEIN, LC, p.132). Ao discutir sobre a
questo emprica do sobrevoo do avio, a discordncia entre os falantes os deixa,
de certa forma, prximos um do outro, pois sabem qual evidncia resolveria o
impasse: talvez usar binculos para visualizar melhor qual bandeira est impressa
no avio, ou algo do tipo. No caso de discordncias sobre temas religiosos, segundo
Wittgenstein, o abismo se abre, pois as duas pessoas esto em planos totalmente
diversos (WITTGENSTEIN, LC, p.133), onde a relao com as crenas no a
mesma que a do discurso emprico cotidiano.
A partir disso uma primeira luz lanada sobre o porqu dos religiosos e no
religiosos no estarem contradizendo um ao outro, apesar das aparncias. Podemos
pensar que no existe contradio, pois o discurso religioso se produz em um plano
completamente distintoonde a relao com os fundamentos das crenas diferente
da relao que temos com as evidncias no discurso cotidiano. Como Wittgenstein
diz, as provas no devem influenciar nem o testa nem o atesta, ou mais
profundamente, se houver prova a essncia religiosa desaparece. Obviamente
outros problemas surgem: o que seria esse plano completamente distinto? Por que
as provas no devem influenciar uma possvel converso do atesta e uma possvel
apostasia do testa? O que faz o discurso religioso sui generis dessa forma?
Responder essas questes nos far compreender com mais profundidade a filosofia
da religio de Wittgenstein. Veremos que essa impossibilidade e ociosidade das
provas no que diz respeito ao discurso religioso, no devido a alguma
insensibilidade do crente ou descrente frente s evidncias, nem que o discurso
religioso , de alguma forma, transcendente e sagrado, sendo incompreensvel ao
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esprito humano. No por ser sagrado, mas pela categoria lgico/gramatical das
proposies que o discurso religioso revelar suas caractersticas peculiares. Vamos
iniciar verificando a gramtica do conceito Deus.Isso mostrar, contrapondo a VF,
que este conceito no deve ser tratado em analogia com outros conceitos dos quais
predicamos a existncia, ou seja, Deus no um objeto entre objetos. Depois disso
verificaremos que a proposio Deus existee a maioria das proposies religiosas,
no so hipteses ou asseres factuais, mas sim proposies que revelam as
regras e as bases onde toda uma cosmoviso se fundamenta, no sendo elas
mesmas fundamentadas em nada alm da prpria prxis dos participantes da
comunidade lingustica. Tais proposies, assim que formuladas, so aceitas
prontamente pelos participantes da cosmoviso, sendo imunes aos ataques cticos,
mesmo que no possuam evidncias em seu favor. Tentar sustent-las em
evidncias ou abandon-las por falta de evidncias no compreender seu status
lgico/gramatical.
2.2) GRAMTICA DO CONCEITO DEUS
Numa perspectiva wittgensteiniana, as tentativas de provar a existncia de
Deus, tal como vimos no primeiro captulo, escondem uma confuso que vicia o
debate desde o incio. D.Z. Phillips, que o autor que de forma mais sistemtica
desenvolve os escritos de Wittgenstein sobre religio, argumenta que uma questo
anterior est sendo negligenciada, a saber, o esclarecimento da gramtica do
conceito que ser investigado, no caso, o conceito Deus (PHILLIPS, 1993, p.01).
Muitas vezes, a discusso sobre a existncia de Deus, seja por argumentos a
posteriori (cosmolgico e fsico-teolgico) seja por argumentos a priori(ontolgicos),
ou quaisquer outros, ignora (ou pressupe como esclarecida) a categoria gramaticaldo conceito. Assim, precisamos compreender, ao menos brevemente, o que
Wittgenstein entende por gramtica, para mostrarmos por que a negligncia do
aspecto gramatical torna o tema da existncia de Deus confuso, e at mesmo
deslocado de um debate real.
De maneira geral, podemos entender a concepo wittgensteiniana de
gramtica, como as regras que governam o uso das palavras, e que constituem
assim seus significados (cf. FORSTER, 2004, p.7; GLOCK, 1996, p.193). Assim,
Wittgenstein diz que compreender a gramtica de uma expresso lingustica ou
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palavra, compreender as regras que normatizam seu uso (WITTGENSTEIN, GF,
44), considerando as consequncias de sua pronncia em um contexto especfico,
quais comportamentos e outros conceitos esto conectados a ela, etc.
(WITTGENSTEIN, LC, p.112). So as regras gramaticais que determinam o
significado (que o constituem) (WITTGENSTEIN, GF, 133.142; cf.: BT p.151).
Sendo que no podemos enunciar proposies dotadas de sentido sem regras
admitidas para isso, a gramtica seria o conjunto dessas regras que condicionam o
discurso significativo (cf. SCHMITZ, 2004, p.149).
Isso no quer dizer que as regras gramaticais sejam universais, e que cada
palavra ou proposio, para ser significativa, deva ajustar-se a essa estruturanormativa independente do contexto onde pronunciada. A filosofia madura de
Wittgenstein busca descrever um grande nmero de ordens possveis. Enquanto o
esforo filosfico do Tractatus(TLP) pode ser comparado, metaforicamente, com um
espelho, onde os signos lingusticos significativos tm a funo nica de espelhar os
objetos do mundo, revelando assim uma ordem nica, representativa, a filosofia ps-
Tractatus, em geral, faz dos signos lingusticos uma caixa de ferramentas onde as
regras da gramtica so reveladas pelo uso ordenado que os falantes fazem dos
signos dentro de cada contexto:
Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: L esto ummartelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, umvidro de cola, cola, pregos e parafuso. Assim como so diferentesas funes desses objetos, assim so diferentes as funes daspalavras. (E h semelhanas aqui e ali.) Com efeito, o que nosconfunde a uniformidade da aparncia das palavras, quando estasnos so ditas, ou quando com elas nos defrontamos na escrita e naimprensa. Pois seu emprego no nos to claro. E especialmente
no o quando filosofamos! (WITTGENSTEIN, IF, 11).
As funes das palavras so diferentes, e o contexto prtico, sua funo no
discurso daquele que fala, importante para definir sua significao. Mas, mesmo
nesse quadro, onde o discurso ganha significao a partir da prxis, existe ordem.
No bom que as palavras ora representem uma coisa ora outra, ou que signifique
algo para uma pessoa e algo diferente para outra. Como podemos enunciar regras e
preservar ao mesmo tempo uma multiplicidade de ordens possveis? Para
Wittgenstein os jogos-de-linguagem respondem a essa questo (cf. BARRET, 1994,
p.160). Perceber que as palavras funcionam dentro de jogos-de-linguagem nos
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liberta da busca de uma ordem ltima, desprendida do contexto prtico em que a
linguagem est envolvida. No clssico pargrafo 23 das Investigaes, Wittgenstein
pede para que imaginemos a multiplicidade dos jogos-de-linguagem por meio destes
exemplos (e outros similares):
i) Comandar, e agir segundo comandos;
ii) Descrever um objeto conforme a aparncia ou conforme medidas;
iii) Produzir um objeto segundo uma descrio (desenho);
iv)Relatar um acontecimento;
v) Conjeturar sobre o acontecimento;
vi)Expor uma hiptese e prov-la;
vii) Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas ediagramas;
viii) Inventar uma histria; ler;
ix) Representar teatro;
x) Cantar uma cantiga de roda;
xi) Resolver um enigma;xii) Fazer uma anedota; contar;
xiii) Resolver um exemplo de clculo aplicado;
xiv) Traduzir de uma lngua para outra
xv) Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar.
Considerar a linguagem do ponto de vista pragmtico nos capacita na
compreenso das suas funes, de acordo com a multiplicidade de ordens possveis
que a constitui. E essas ordens, esses jogos, so sistemas completos com suas
prprias regras gramaticais: No consideramos, contudo, os jogos de linguagem
como partes incompletas de uma linguagem, mas como linguagens completas em si
mesmas, como sistemas completos da comunicao humana (WITTGENSTEIN,
BrB, p.14). Poderamos dizer que os jogos-de-linguagem so como que condies
de possibilidade da significao. Veja:
Pode-se dizer, por conseguinte, que jogos-de-linguagem socondies de possibilidade da representao, pois assim como aproposio uma condio de possibilidade da referncia dosnomes (como o Tractatusargumentou), assim tambm um jogo-de-
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linguagem uma condio de possibilidade do sentido de umasentena, seja ela descritiva, prescritiva ou de outra natureza (comoWittgenstein se d conta enfim). (DALLAGNOLL, 2006, p. 11-12)
Por isso Wittgenstein diz que no podemos saber o que significa "xeque-mate", se nos limitamos a observar a ltima jogada de uma partida de xadrez
(WITTGENSTEIN, IF, 316). Com isto sugere que o significado de uma proposio
no est determinado pelas palavras individuais que a compem, mas, como j
dissemos, pela maneira que as usamos dentro dos jogos-de-linguagem. Esta prtica
pressupe o domnio de uma tcnica que depende do contexto e das circunstncias
particulares que a rodeiam. Uma fonte nica das regras gramaticais, desprendida da
forma de vida da comunidade, inexistente.
Dessa forma, para saber, por exemplo, se uma proposio do tipo "a Terra
o centro do universo", uma proposio religiosa ou cientfica, deve-se prestar
ateno no contexto de seu funcionamento. preciso atentar para a intenocom
que est sendo usada (est tratando de impor uma cosmogonia, ou parte de um