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Contação de histórias

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Rio de Janeiro

Prieto Produções Artísticas

2011

1ª edição

organização

Benita Prieto

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© 2011 Organizadora Benita Prieto

© Direitos de publicação

prieto produções artísticas www.benitaprieto.com.br

Coordenação editorial: Benita Prieto

Assistente editorial: Priscila da Cruz Vieira

Revisão: Ana Letícia Leal

Design de capa e projeto gráfico: Marcos Corrêa

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL-LÚCIA FIDALGO-CRB7/4439

C759 Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes/ Organização Benita Prieto. - Rio de Janeiro: s. ed, 2011. 240p.

ISBN 978-85-65126-00-7

1. A arte de Contar Histórias. 2. Contadores de Histórias. I. Prieto, Benita, org. II. Título CDD: 808.068543 22. ed.

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Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios.

Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provér-

bio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao

acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a

própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia.

O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que

sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dig-

nidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia

deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a

mecha de sua vida.

O Narrador. Walter Benjamin.

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prosas

....................................................................prosa de abertura13 Contação de estória: vida e realidade Affonso Romano de Sant’Anna

............................................................................................) 19 Contar histórias é alimentar a humanidade da humanidade Carlos Aldemir Farias

25 Contos indígenas: uma experiência com narrativas dos primeiros povos brasileiros Daniele Ramalho

31 Negras histórias (a valorização da cultura oral afro-brasileira) Rogério Andrade Barbosa

37 DeusNumDé: dom da visão Edmilson Santini

............................................................................................(45 Vozes, corpos e textos nos vãos da cidade Júlio Diniz

49 Muitas vidas, muitas vozes, muitas histórias Júlio Diniz & Morandubetá

59 Impressões de uma contadora de histórias – meu encontro com a arte narrativa Bia Bedran

67 A terceira margem da cena José Mauro Brant

73 A voz quente do coração do rádio Gilka Girardello

79 Contando na telinha Augusto Pessôa

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85 Cinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na fogueira da sala escura

Paulo Siqueira

95 Blog, uma janela para o mundo Marcio Allemand

101 Paiquerê Piquiri Fiietó, um experimento com as linguagens Cléo Busatto

105 Duas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos Role-Playing Games (RPG) Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho

115 Como as histórias foram entrando na minha vida... Ana Luísa Lacombe

121 Da boca da noite para a acolhida na escola Almir Mota

127 Bibliotecas: vozes silenciadas? Nanci Gonçalves da Nóbrega

137 A contação de histórias vivenciada no chão da universidade: um quase relato de experiência

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues

143 Por onde passo, levo comigo os contadores de histórias Maria Helena Ribeiro

151 Narrativas na empresa Fernando Goldman

157 Fagulhas habitam multidões Célia Linhares

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163 Nos caminhos da Maré Lene Nunes

169 Entre hospitais gerais e psiquiátricos: histórias humanas e literárias como um rio de caudaloso fio, tecendo redes de encontros na diversidade de afluências do viver saudável

Kika Freyre

177 Contos na prisão: um espaço chamado liberdade Rosana Mont’Alverne

185 Histórias em sinais Lodenir Karnopp

191 Palavras táteis AnaLu Palma

............................................................................................*196 E eles foram felizes para sempre. Regina Machado

203 O ofício de viver contando histórias Cristiano Mota Mendes

209 O paciente como contador de sua própria história: o olhar de um médico homeopata Conrado Mariano

...............................................................................prosa final215 As águas da memória e os guardadores da corrente de histórias Maria de Lourdes Soares

............................................................................................&

225 De quem são essas vozes

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:prosa de abertura

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oContação de estória: vida e realidade

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Vou arriscar uma definição.

Mais uma.

Já tentaram de várias maneiras dizer o que é que define essencialmente o ser humano.

Uns dizem, “homo faber”, porque ele sabe produzir instrumentos industriais de

trabalho ou de guerra;

outros dizem – “homo economicus”, porque conseguimos estabelecer uma socie-

dade baseada na economia, na qual viramos objeto de consumo;

outros dizem – “homo ludens”, como Huizinga, e assim estudam o “jogo” pre-

sente na guerra, na poesia, no direito, etc.

E assim continuam as intermináveis classificações que vêm desde o “homo sapi-

ens” até aquilo que levou Cassirer a dizer que o homem é “animal simbólico” (“homo

simbolicus”), ou seja, nossa habilidade em forjar símbolos exprime nossas perplexi-

dades e faz nossa história.

Outro dia li um texto que falava do “homo academicus”, referindo-se a esses indi-

víduos com a cabeça ilhada dentro das universidades, falando um “trobar clus” moderno.

Todas essas características são verdadeiras. E cada uma é uma maneira de entrar

no mistério da natureza humana. Penso se nessa sequência se poderia introduzir um

outro traço que nos caracteriza e que não é desprezível. Não vou mais usar a seródia

palavra “homo”, isto já prescreveu depois que o feminismo botou por terra muitos

preconceitos. Não dá para repetir aquela frase que, dizem, é de Monteiro Lobato: “um

país se faz com homens e livros”. Bota mulher nisto.

[Affonso Romano de Sant’Anna]

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Portanto, falemos de pessoas e de indivíduos incluindo aí necessariamente as mulheres.

Então, digo: somos seres que contam e ouvem histórias. E nisto as mulheres, até mais que

os homens, são as grandes contadoras de história: mães, babás, tias, avós, madrinhas...

Podemos avançar um pouco mais e dizer: o ser humano é não apenas um ser que

conta histórias e ouve histórias, mas sobretudo é um ser que faz história. Fazer história

é a suprema audácia dos humanos. Os romancistas, os cineastas e os líderes sociais,

por exemplo, operam isto mais claramente. Não se contentam em ser atores, querem

também ser autores, protagonistas de seu tempo.

Portanto, somos seres irremediavelmente históricos.

Digo isto e penso: eis uma observação banal. Qualquer pessoa sabe disto, não é

necessário ser um erudito para chegar a essa conclusão. Aliás, até os analfabetos, que

alimentam seu imaginário de contações de estórias, sabem disto. Então, por que fazer

essa observação?

Primeiro por uma razão, digamos pleonasticamente, “histórica”. Ou seja, a contação

de estórias passou a ser revalorizada de maneira notável nas últimas décadas, sobretudo

a partir dos anos 1980. Uma diversificada bibliografia que permeia diversos ramos do

conhecimento nos dá conta de uma verdadeira redescoberta da arte de contar histórias.

Isto está até mesmo nos consultórios psicanalíticos, que utilizam a “narratividade” dos

clientes como estratégia de tratamento, aperfeiçoando o que Freud há uns cem anos

já praticara quando adotou “a cura pela palavra”, revalorizando assim a palavra falada

capaz de destravar neuroses e traumas.

E isto se tornou tão visível e notável que as universidades se voltaram para este fenô-

meno estudando o renascimento da contação de estórias em nossa cultura. Cursos de

contadores de história se espalham por todas as partes, ao mesmo tempo em que, parale-

lamente, cursos sobre leitura, casas de leitura, secretarias de leitura e até mesmo Cátedras

de Leitura (a exemplo da PUC–Rio) começam a ser criados nas universidades.

Quer dizer, a leitura e a contação de estórias não apenas estão na moda, mas estão

irremediavelmente geminadas.

E isto, surpreendentemente, ocorre dentro de uma sociedade televisiva altamente

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tecnológica, em que o cinema, a TV, a internet e os novos suportes ocupam espaços

imensos no nosso cotidiano. Isto sucede numa sociedade que, segundo alguns, reju-

bilando-se de cultuar a imagem, desprezaria a oralidade como se ela fosse um suporte

primitivo e ultrapassado. Nesse sentido, assim como nos últimos cem anos alardearam

tantas mortes em nossa cultura – morte do autor, morte da arte, morte do homem, etc.

– seria de se esperar que tivesse ocorrido a “morte” da arte de contar estórias.

Não ocorreu. Ocorreu o contrário.

Anotemos que uma das falácias de nosso tempo, seduzido pela visualidade, foi

dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Será? Ou se poderia dizer o con-

trário: uma metáfora, um hai-kai, uma estória valem mais que mil imagens? De qual-

quer forma, são afirmativas radicais que não ajudam muito a entender a riqueza do

nosso contexto cultural.

Penso, para efeito de raciocínio, nuns exemplos concretos, dentro da própria arte da

visualidade: o cinema, por exemplo. Poderia citar o caso de um filme nacional, Narra-

dores de Javé, de Eliane Caffé: aí toda uma comunidade recorre à narração para salvar-se

do naufrágio no tempo e espaço, quando uma projetada represa expandisse suas águas

sobre as casas da comunidade. A estória, a narratividade e a memória passaram a ser

a barragem imaginária contra a destruição, a ilha de salvação do imaginário humano.

A filmografia sobre o valor das estórias orais tornou-se mais rica nos últimos tem-

pos. E isto é sintomático do que estou dizendo. Penso num outro filme: Balzac e a cos-

tureirinha chinesa, tirado do romance homônimo de Dai Sigie. De novo estão o cinema

e o romance nos dizendo da importância da narrativa oral. Mais do que isto, dentro

deste filme/romance há algo fascinante: uma personagem confessa gostar mais da nar-

rativa de um determinado filme do que do filme propriamente dito. Eis o cinema pres-

tando homenagem à contação de estórias como uma predecessora da arte de narrar. E

assim poderíamos lembrar mais um filme, A camareira do Titanic, película que repousa

sobre a inventiva capacidade de um personagem de ir incrementando sua estória falsa

& verdadeira e assim aumentando cada vez mais sua plateia até transformar a sua

estória num espetáculo à parte.

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Anteriormente à modernidade, foram os românticos os responsáveis pela revalori-

zação da memória oral das comunidades. Os romances foram uma recriação das nar-

rativas orais. Por outro lado, os irmãos Grimm na Alemanha, o dinamarquês Hans

Christian Andersen e os romancistas, como Alexandre Dumas, Walter Scott e José de

Alencar, foram buscar nas lendas, na história, no folclore, o imaginário coletivo.

E, na modernidade, ocorrem insólitas revalorizações da palavra. A arte contem-

porânea, depois de ter chegado ao abstracionismo, deu uma meia-volta em direção à

palavra e institucionalizou a “arte conceitual” como uma das mais nítidas tendências

do século XX. E isto se deu de tal forma que o “discurso” sobre os quadros ou obras

passou a ser mais relevante que as próprias obras e a terem em relação a elas certa

independência. (Tratei disto no livro O enigma vazio, editado pela Rocco).

A indústria das novelas de televisão, o cinema, o teatro, as estórias em quadrinho e

os romances continuam mais fortes que nunca. A publicidade tornou-se uma forma de

narrar e de seduzir. Uma cidade é um livro, cheia de letras, como para o índio é a floresta.

Disto tudo sobressai a palavra – narratividade. Narramos sem saber que narramos

e somos lidos até sem nos darmos conta de que nos estão lendo. Mais do que nunca

torna-se urgente que as pessoas tenham consciência de que ler o mundo é uma tarefa

contínua, desafiadora e propiciadora do sucesso pessoal e social.

Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias

vidas numa só.

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oContar histórias é alimentar a humanidade da humanidade

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Se o ato de sonhar não é uma exclusividade dos humanos, contar histórias é

uma arte milenar exclusiva das sociedades humanas. Foi graças à tradição oral que

muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas de uma geração para outra. Tudo

começou em uma caverna, quando os primeiros caçadores e coletores se reuniram em

volta das chamas da fogueira para contar histórias uns aos outros, sobre suas aventu-

ras na luta pela sobrevivência, para dar voz à percepção fenomenológica dos eventos

naturais e sobrenaturais, e, assim, entrar em conformidade com a ordem social e

cósmica. Algumas dessas histórias ficaram registradas nas paredes das cavernas e ainda

resistem às intempéries acontecidas durante os milhares de anos.

As conquistas de uns povos por outros, a passagem da caça à agricultura, as migra-

ções e as guerras foram difundindo e transformando as histórias das diferentes tradições

culturais em elementos reconhecidos pelo corpo social, no qual o contador de histórias

exercia o papel de guardião da memória e as narrativas formavam a enciclopédia do

saber coletivo das sociedades.

Até hoje, em diferentes grupos sociais espalhados pelo planeta, por exemplo, indí-

genas, comunidades rurais, ribeirinhas e remanescentes de quilombos, predominam

as formas orais de comunicação; a cultura é transmitida por meio da oralidade. Essas

sociedades têm um conhecimento espetacular, pois desenvolveram um tipo de dis-

curso argumentativo por meio das narrativas.

No decurso do processo histórico, as histórias ancestrais, somadas a tantas outras,

foram recriadas em função das circunstâncias e passaram a ser contadas pelas amas,

[Carlos Aldemir Farias]

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pelos avôs e pais, no calor da família. Séculos depois, a invenção da imprensa salvou

do esquecimento muitas dessas histórias tradicionais que continuam sendo reconta-

das em diferentes espaços sociais, como escolas, universidades, teatros e encontros de

contadores. Outras se perderam, talvez para sempre ou, quem sabe, as carreguemos

adormecidas dentro de nós sem saber.

Narrar uma história é um modo de estruturar o mundo em função das nossas

ações individuais. Implica um trabalho de organização da memória individual, feito a

partir da acumulação e organização de dados de uma experiência não necessariamente

vivida, visto que a memória é uma reorganização de ideias, impressões, subjetividades,

afetos e conhecimentos adquiridos no vivido, na leitura, no imaginado.

O ato de narrar requer um domínio do tempo narrativo, que corresponde a

uma enunciação verbal do passado. Todos os contadores mantêm, por meio de suas

histórias, um elo entre passado e presente, real e sobrenatural, possível e impossível,

razão e imaginação.

Por que é importante contar e ouvir histórias? Porque quando fazemos isso alimenta-

mos duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa

e a oratória. Somente os humanos dizem era uma vez... Somente nós fazemos isso: con-

tamos a nossa história, a dos outros, escrevemos histórias, acrescentamos detalhes, cria-

mos situações que não aconteceram de fato, imaginamos outros mundos, outros seres,

outras paisagens, outras formas de ver e viver neste e em outros mundos imaginados.

Os outros animais vivem e experimentam alegrias e dores, mas não sabem contar

o que sentem. Não criam nem imaginam situações, não contam para os outros o seu

passado. O mais fascinante é que usamos o recurso do antropomorfismo, ou seja,

atribuímos formas e características humanas aos entes naturais e sobrenaturais. Nesse

mundo mágico, as plantas, os animais e os humanos dialogam; as fábulas são bons

exemplos disso.

Mas há, também, outras razões para ouvir e contar histórias. A primeira é que,

quando as ouvimos, despertamos para situações que não tínhamos pensado antes.

Dessa forma, ampliamos nossos conhecimentos, o que nos permite rever e reelaborar

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alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imagina-

ção, da criatividade, da curiosidade, da ludicidade. Elas despertam o espírito juvenil

que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias,

certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe de mais conhecimentos

para enfrentar situações novas durante o seu percurso de vida, uma vez que, ao con-

trário da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verdades unívocas

e permitem soluções múltiplas.

É bom lembrar que, embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias

conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não mor-

rerão. Na condição de animais gregários, atualizamos dia após dia o ato de narrar.

Talvez para entender quem somos ou para tomar consciência de que existimos. Para

Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido

forte que pode aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias”1. Somente elas

revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas

tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para

ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa.

Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mun-

do, para harmonizar nossas vidas com a realidade2. Sempre que me perguntam porque

gosto tanto de histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas

ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra dessa tradição dos meus antepas-

sados no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Desde cedo

fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias

sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos

contadores tradicionais do lugar onde nasci ou pelos vários livros de literatura lidos e

relidos por mim ao longo dos anos.

Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias

permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação de emoções

extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional.

Na minha tenra idade nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções de

1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.2. O poder do mito. Palas Athena, 1998

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afetos literários emanados dos sábios contadores, que dedicaram parte de seu precio-

so tempo às crianças. Considero um privilégio ouvir histórias, essa sensação de mara-

vilhamento diante do espetáculo da imaginação humana. Para mim não existe um

afeto poético maior. Se pudesse voltar no tempo não teria palavras para agradecer por

aqueles momentos mágicos. Sou grato a todos os contadores que, com suas legiões de

personagens, iluminaram a minha vida.

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oContos indígenas:uma experiência com narrativas

dos primeiros povos brasileiros

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Ninguém respeita aquilo que não conhece.1

Wabuá Xavante

No ano de 1500 os europeus chegaram ao território que hoje chamamos de

Brasil. Havia aqui cerca de mil povos indígenas cuja população foi drasticamente

reduzida e que hoje se concentra em cerca de 280 etnias, que falam 160 línguas – um

Brasil que certamente precisamos conhecer.

No ano de 2000 comecei a contar histórias indígenas. Havia alguns anos da pri-

meira visita ao Museu do Índio do Rio de Janeiro. Ficava admirada com a riqueza

da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes de nossa terra e perplexa com

nosso desconhecimento sobre sua realidade – apesar de terem se passado mais de

quinhentos anos do primeiro contato.

Yawanawá, Xavante, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Apurinã, Kuikuro, Mehinaku.

Pesquisei diversas histórias e escolhi para estarem em “Contos indígenas” – aquele

que seria meu primeiro espetáculo com este tema – narrativas das etnias bororo

(“Subida para o céu”), kaxinawá (“A lenda da lua cheia”) e nambikwara (“O menino

e a flauta”). A primeira conta a origem dos animais e das estrelas, a segunda mostra a

origem da lua e da menstruação das mulheres e a terceira narra a origem dos alimen-

tos e da flauta sagrada Wairu, que só pode ser vista pelos homens.

As perguntas eram muitas: – Por que contar histórias indígenas em nossa socie-

dade? Como colaborar para difundir a tradição destes povos? Como utilizar versões

dos mitos tradicionais e fazer com que alguns de seus símbolos possam ser apreendi-

dos por pessoas de outra formação cultural? Como abordar temas como sexualidade e

morte, que para nossa sociedade são tabus, e que nas histórias indígenas são tratadas

com naturalidade? De que modo eu deveria contá-las?

1. Frase que norteia o trabalho do Instituto das Tradições Indígenas, para o qual trabalhei no projeto Rito de Passagem.

[Daniele Ramalho]

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Divido com você “que me escuta” algumas reflexões após 11 anos de trabalho com

a cultura indígena brasileira.

Meu primeiro passo foi perceber que não há uma cultura indígena no Brasil, mas

muitas, já que há grandes diferenças entre o modo de vida das etnias encontradas

em nosso território. Como sugeriu Lévi-Strauss, para que haja uma compreensão dos

mitos indígenas o melhor é entendê-los em seus próprios termos, ou seja, compreen-

dendo o pensamento de quem os produz2.

Fui buscar então maiores informações sobre as etnias e mitos que escolhi. Procu-

rei referências que indicassem a que rituais se referiam, a que se destinavam e com

que finalidade. Dois deles preparavam os jovens para a iniciação ritual que marcava

sua passagem para a vida adulta. Esta pesquisa foi fundamental para guiar algumas

escolhas na construção do trabalho.

Citarei um exemplo. No mito kaxinawá “O menino e a flauta” conto a origem da

flauta wairu, que apenas aos homens é permitido ver. Como na historia o menino e

seu pai escutam o som da flauta, poderia ter sido o meu primeiro impulso usar uma

flauta durante a narração. Com a pesquisa compreendi que, se a história trata exata-

mente da flauta wairu como um tabu para as mulheres, nada mais coerente do que eu,

como mulher, não usar o instrumento na contação. Resolvi a questão reproduzindo

o som da música ritual com minha voz. Mais que preciosismo, para mim este é um

exemplo claro de como a pesquisa é importante no respeito às tradições do povo cuja

história desejamos apresentar.

Durante o longo período em que coletei versões dos mitos, encontrei muitas dife-

renças nas adaptações. Achei preciosidades como a coleção Morená, da escritora e

ilustradora Ciça Fittipaldi, cujas versões uso no espetáculo.

As narrativas dos mitos nos chegam normalmente em livros de antropólogos, escri-

tores e pesquisadores que conviveram com povos indígenas. Há casos em que são nar-

radas em português pelos indígenas – onde costumam se perder detalhes importantes

em função das histórias não serem recolhidas na língua de origem do narrador. Há

casos também em que os mitos são gravados ou escritos na língua indígena, e, posteri-

2. Claude Lévi-Strauss revolucionou a antropologia através do estruturalismo, com importantes estudos sobre a análise de ritos e mitos

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ormente, traduzidos – o que costuma apresentar melhores resultados.

A importância de encontrar várias versões de uma mesma história é a possibili-

dade de perceber o quanto foi preservado da essência daquela narrativa e o quanto

há de adaptação do autor, que muitas vezes “adultera” ou “corrige” o conteúdo do

mito para que o seu teor “primitivo” não entre em atrito com as normas sociais de

conduta de nossa cultura.

Após o contato de nossa sociedade com os povos indígenas, foram criados proje-

tos que visam registrar sua história mítica como, por exemplo, nas publicações utiliza-

das nas escolas indígenas ou em livros publicados por escritores indígenas – que, em

diversos estilos literários, revelam a tradição ancestral. É a palavra dos antigos – que

fala do tempo em que o mundo foi criado – apresentada pela nova geração, que

mesmo após incorporar à sua cultura inovações como o uso da internet, luta para

manter vivo o pensamento e o modo de vida harmônico de seu povo. Assim, apesar

de terem sofrido mudanças significativas em seu imaginário, eles encontram meios de

manter a sua identidade e reverenciar a sabedoria ancestral.

Voltando a “Contos indígenas”: optei por trabalhar no espetáculo com a corpo-

ralidade como um meio de contar as histórias. Sempre me saltava aos olhos a maneira

como os indígenas narram seus mitos. Um exemplo: na época em que trabalhei no

projeto Rito de Passagem, do Instituto das Tradições Indígenas /IDETI, durante uma

conversa com “Seu” Joaquim Yawanawá, ouvi-o narrando em pano (sua língua de

origem) o trecho de uma história. Eu não entendia o significado do que ele dizia,

mas era impressionante o vigor e intensidade com que me contava os fatos; os gestos

que fazia. Era como se revivesse na frente de sua ouvinte cada personagem e acon-

tecimento. Sei que há outras possibilidades, mas neste trabalho optei por uma forte

presença da corporalidade para, de algum modo, trazer ao imaginário do público um

encantamento e uma espécie de sentido ritual que considero bastante adequados para

uma narração mítica.

Como abordava três etnias diferentes, acabei optando por uma pesquisa mais

genérica sobre referências corporais dos povos, encontrando uma corporalidade

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única, que permeasse todo o espetáculo. No começo da construção do espetáculo

“Contos indígenas”, eu e André Masseno, diretor do trabalho, utilizamos fotogra-

fias de pessoas dos povos abordados em ações físicas cotidianas. Reproduzimos estas

ações num treinamento corporal, codificadas em partituras físicas, que depois foram

devidamente esquecidas. Posteriormente, na composição das narrativas propriamente

ditas, os gestos e movimentos foram reaparecendo. E o corpo encontrado se refletiu

também na sonoridade. Aprendi palavras e cantos das etnias cujas histórias escolhi

em sua língua original, aprendi sons que os indígenas fazem em seu cotidiano – e, aos

poucos, codifiquei um modo diferenciado de abordar o som nas narrativas.

E qual é a importância de contar mitos indígenas hoje? Sabemos que as narrativas

míticas ajudam a compreender uma sociedade, trazendo sua visão sobre a ordem do

mundo, suas regras de convívio – o que não só fortalece seu sentido de grupo, como

carrega a sua memória. As histórias também preparam os indígenas para rituais de

passagem. Trazem a conexão entre mundo material e espiritual e falam de um encan-

tamento que pode nos conectar novamente com a magia da vida gerando uma nova

compreensão de nossa existência através de uma ancestralidade viva. Gosto muito de

Joseph Campbell quando ele diz que os mitos “...ensinam a se voltar para dentro...” e

“...nos permitem uma leitura das mensagens que o mundo nos emite”. As narrativas

indígenas podem, portanto, nos conectar para “além da internet” e gerar uma real

ligação com o outro e com a sociedade.

Sabemos que os mitos se referem a questões arquetípicas, tratando de símbolos

que acessam emoções e imagens simbólicas que constituem a condição humana – o

que nos leva a pensar que somos todos iguais! O africano Amadou Hampátê Bâ disse

– referindo-se à tradição dos mitos de iniciação peuls – que “Um conto é um espelho

onde qualquer um pode descobrir a sua própria imagem.”3

Por outro lado, o mito traz um caráter específico da cultura a que pertence – ou

seja, trata da identidade de um povo; aquilo que o faz único – o que sugere que somos

todos diferentes! Acredito que esta dicotomia presente nas narrativas míticas é que

pode gerar reflexões que nos levem a ter maior tolerância com a diversidade cultural e

3. Amadou Hampátê Ba foi escritor, historiador, poeta e contador de histórias nascido no Mali; um grande defensor da tradição oral africana.

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fazer com que encontremos modos de convívio mais harmônicos com outras pessoas

e culturas na grande aldeia global em que nos encontramos. É preciso, então, ver a

oralidade como uma atitude diante da realidade, ligada a uma visão de mundo e à

vontade de comunicação com o outro.

Espero, de verdade, que possamos dar voz à tradição indígena de nosso país;

que as histórias destes povos possam gerar respeito à riqueza da diversidade cultural

brasileira e que elas sejam, cada vez mais, contadas e escutadas por todos e para todos,

gerando mais compreensão e interação entre os povos.

Leituras Inspiradoras

u O poder do mito. Joseph Campbell. Pallas Athena, 1990.

u Subida pro céu. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.

u O menino e a flauta. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.

u Memória e construção de identidades. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos e Nilson

Alves de Moraes (Orgs.). 7 Letras, 2000.

u Mito e significado. Lévi-Strauss. Edições 70, 1985.

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oNegras histórias (a valorização da cultura

oral afro-brasileira)

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Eu me lembro muito bem... Tanto o meu pai quanto a minha mãe me contavam

histórias antes de eu dormir. As narrativas de meu pai, que era escritor, tinham

um sabor especial, pois eram em capítulos inventados por ele mesmo, recheados de

aventuras mirabolantes, que se sucediam a cada noite. Foi assim que iniciei meus

primeiros passos pelo fantástico mundo da contação de histórias.

Depois vieram os livros que despertaram em mim, desde cedo, a vontade de via-

jar. Mais tarde, trabalhei durante dois anos como professor-voluntário a serviço das

Nações Unidas na Guiné-Bissau, África. Ali, me encantei com as apresentações dos

griots e com a diversidade dos contos tradicionais africanos, tema de inspiração para

muitos de meus livros.

Essa experiência foi também importante para minha atuação como contador de

histórias e pesquisador da cultura oral afro-brasileira e africana.

Nos últimos anos, graças aos movimentos organizados e, sobretudo, depois da

lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e

afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, público e particular, a

literatura de raízes negras, nem sempre valorizada anteriormente, tem sido destaque

em nosso panorama editorial.

Também, pudera! Nós, brasileiros, somos frutos da união entre diversos povos e

crescemos convivendo com uma rica pluralidade de culturas.

Os versos da canção de um violeiro das barrancas do Rio São Francisco, em Minas

Gerais, resumem a questão:

[Rogério Andrade Barbosa]

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Sou índio, sou branco, sou negro.

Eu sou brasileiro.

Portanto, as diferenças culturais devem ser reconhecidas e, não, ignoradas, ou

alvo de discriminação.

O negro brasileiro, cujos ancestrais foram trazidos a ferro e fogo do continente

africano, amontoados nos porões dos navios tumbeiros, trouxeram com eles um de

seus bens mais preciosos, que ninguém lhes tiraria: as suas histórias.

E nesse “baú fabuloso” vieram os contos, lendas e fábulas transmitidas de pais

para filhos, há várias gerações.

Um dos aspectos mais relevantes da cultura oral africana talvez seja a maneira

como os contadores interpretam as histórias usando apenas o corpo, os gestos e a voz

para cativar os ouvintes. Esses mestres da palavra, verdadeiras “bibliotecas vivas”, que

mantêm um elo entre o presente e o passado, persistem até hoje.

A presença de personagens negras contadoras de histórias é marcante na obra

de vários escritores brasileiros. José Lins do Rego em Menino de engenho, descreve em

detalhes uma delas, que nunca se apagou de sua memória:

A velha Totonha de quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meni-

nada. Ela vivia de contar histórias... Que talento ela possuía para contar suas histórias, com

um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e

com uma voz que dava todos os tons às palavras.... A velha Totonha era uma grande artista

para dramatizar.... Tinha uma memória de prodígio”

Já Viriato Corrêa, em Cazuza, evoca outra dessas contadoras geniais:

Vovó Candinha é outra figura que nunca se apagou de minha recordação.... É que ninguém

no mundo contava melhor histórias de fadas do que ela. Devia ter seus setenta anos: rija,

gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão em pasta... Não sei se é impressão

de meninice, mas a verdade é que, até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito

para contar histórias infantis...

Monteiro Lobato, em Histórias de Tia Nastácia, emprega a voz de Pedrinho para

exaltar uma de suas personagens mais conhecidas e que tem sido alvo de tantas

polêmicas e releituras:

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... Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve

saber.... – As negras velhas – disse Pedrinho – são sempre muito sabidas. Mamãe conta de

uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas... Todas as noites ela sentava-

se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se Tia Nastácia não é uma

segunda tia Esmeréria?

Já em O Saci, Tio Barnabé, outra das inúmeras criações de Monteiro Lobato, é o

típico Pai João: “Negro de mais de 80 anos, descalço...”

Embora estereotipado, ele é o grande conhecedor dos segredos da mata que

envolve o sítio do Picapau Amarelo. A sua longevidade, no melhor estilo africano, é

a fonte de sua sabedoria. É a ele que Pedrinho vai recorrer quando quer saber se Saci

existe mesmo: “– Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de 80 anos? Quem muito

veve, muito sabe...”

Contadores e contadoras de histórias tradicionais ainda são encontrados, prin-

cipalmente em comunidades afastadas dos grandes centros urbanos. Em 2008, em

minhas andanças pelo Brasil, tive a oportunidade de entrevistar uma senhora negra

de 93 anos na ilha de Itaparica, Bahia, dona de memória invejável, que me contou

histórias do seu tempo de criança, cantando e imitando as vozes de diferentes perso-

nagens de uma forma emocionante.

Nossas histórias, danças, canções e saberes tradicionais têm uma grande influên-

cia da Mãe-África. Nesse aspecto, os livros destinados aos mais jovens têm um papel

fundamental: o de contribuir para que a criança sinta-se orgulhosa de pertencer a

uma cultura, seja ela qual for, e de aprender a respeitar às diferenças, contribuições e

valores de sua própria comunidade e também de outros povos.

A valorização passa pelo reconhecimento. As palavras e as ilustrações de um livro

são como um espelho. E se a pessoa não vê a sua imagem refletida, pode se sentir

desinteressada e desmotivada. A sua autoestima é afetada.

Aos autores de livros para crianças e jovens, aos contadores de histórias e aos

educadores cabe preservar, valorizar e divulgar as tradições orais. As histórias são

importante fator de enriquecimento e afirmação de identidade social, especialmente

em um país plural como o nosso.

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E não se esqueçam: as histórias foram feitas para serem contadas e recontadas.

Leituras Inspiradoras

u Cazuza. Viriato Corrêa. Companhia Editora Nacional, 1976.

u Histórias de Tia Nastácia. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1947.

u Viagem ao céu e O Saci. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1960.

u Menino de engenho. José Lins do Rego. José Olympio, 1960.

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oDeusNumDé:dom da visão

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Eis que a cadência da roda, no compasso da ciranda, dava o tom de todas as vozes,

que em coro cantavam: “Até pro ano, se eu vivo for”. Era o encerramento do Circui-

to Estadual das Artes, realizado numa das praças da cidade de Caxias-RJ. Fazendo jus à

tradição que, desde séculos aos dias atuais, acompanha a trajetória de artistas populares,

em praças, ruas... o chapéu logo é mostrado... Feito pedra de anel, de mão em mão é

passado, quando vê, está enriquecido em notas e moedas. O que não significa que ali

está a paga pela função apresentada ao respeitável público. No andar das contações de

histórias – vozes das praças – rodar o chapéu, no desfecho de cada função, é hábito que

se mantém mais como um complemento brincante, eu diria. Dito isso, a presença de

espírito, em carne, osso e voz, do contador de história, perante a sociedade atual (lou-

camente urbanizada, até certo ponto) se dá como proposta de lazer, educação, cultura...

aos ouvidos de um público volante (sempre passando), personagem carente de um pou-

co de poesia nos fins-de-tarde-cair-da-noite de seus dias, em grande parte estressantes.

Caía de vez a noite sobre o viaduto, quando os participantes do recém-encerra-

do espetáculo foram deixando a Praça, cada qual pegando seus adereços de cena e

rumando em destino ao Lar, Doce Lar. Eu, apesar de já ter tomado parte em inúmeras

apresentações de rua, com semelhante dimensão humana povoando a roda, vi ali um

dos mais iluminados Pontos de Encontro Marcado com a Poética do Circo, por meio

dos Pernas-de-Pau, que encenavam Ditos Populares, do Homem que fazia fogo jorrar

por sua Boca de Palhaço... Enfim, tantas foram as provas do Poder Poético nas Vozes

e Voos daquela Praça que, ao sair de lá, no intento de ir também pra casa, no meio

[Edmilson Santini]

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do caminho dei com Outra Praça, e dá-lhe gente em volta de uma figura que cantava,

ao meu ver, de forma encantadora. Eu poderia muito bem fazer “ouvidos-de-tô-com-

pressa”, passar, literalmente, ao largo da dita praça, mas, em vez disso, me vi atraído

de tal maneira pelo entoo da Cantiga (era uma Cantiga de Roda em tom de peditório,

acreditem), que pra lá fui levado a correr.

Quando me dei conta, estava de cabeça, juízo e tudo, enfiado no meio daquela

plateia que, mesmo compacta, me parecia uma imensidão humana, tamanha a simbo-

logia do acontecido no meio daquele círculo de expressões atentas: Um Cego-Trova-

dor. No impulso de quem tem a vivência de “rodar o chapéu, a cada função, perante o

respeitável público (no meu caso, rodo sempre o Folheto de Literatura de Cordel), fiz

zunir uma moeda no ar, que tilintou no miolo de um chapéu, que figurava no Centro

da Roda. No boca a boca de todos ali presentes, ouvi um “Viva! Viva a moeda da

sorte, que de longe acertou a boca do ganha-pão...”. Num gesto-meio-passe-de-mágica,

o cego fez calar o vozerio e suspendeu a cantoria. Cada um ali em volta fazia vez de

quem tinha uma história pra contar. Vendo no Cego uma História Viva em Pessoa,

não hesitei em dimensionar a importância do que ali chamei – lá entre meus botões

e pensamento – Teatro de Circunstância: aconteceu, virou diálogo. E um diálogo

comecei – meio prosa, meio verso –, perguntando como o Cego se chamava:

“Deusnumdé”! Respondeu ele. “Deus num quê”!? Saiu a exclamação, num coro

de muitas vozes. “Deus num deu olhos pra ver, mas deu o dom da visão”. O Cego

assim respondeu, em tom de improvisação. Em torno ouviu-se o estalar de mãos,

como se a praça inteira o aplaudisse de pé. No Centro da Roda – boca para o céu vira-

da – o chapéu num instante havia multiplicado os valores. Levado por certo encanta-

mento, no Cego quase me encostei. Olhando em seus olhos, vi que o Cego “me via

por dentro”. Situação de um sonho enriquecedor, da qual eu dou testemunho: ele era

eu, eu era ele e a Roda já era Outra. Um Mar de Encantaria fez vulto em meu pensa-

mento. E na Cadência do Verso de DeusNumDé tive a prova: o danado do Cego em

seu Universo Popular, nos abre os olhos para o lugar que ocupa, muitas vezes invisível,

nesta Ciranda de Histórias, no dia a dia a rodar...

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Por meio do inconsciente – ciente do encanto ali vivido – me vi inteiro tomado pelo

zumbir sem fronteira da Tradição Oral. Logo, em vez de servir de guia, me vi guiado pela

voz de DeusNumDé, numa Viagem, eu diria, de Retorno ao Mundo do Maravilhoso.

Bem, na real, mesmo, àquela hora, encerrado o espetáculo acima citado, eu me

encaminhei foi direto pra casa, como o mais comum dos mortais. Foi assim que

me vi na Concreta Travessia da Avenida Brasil, à mercê de um trânsito emperrado,

repleto de arruídos, que meu pensamento voou, ligando o itinerário da Via Expressa

ao imaginário poético-viajante do Cego DeusNumDé. Estou ciente de que meu teste-

munho, a essa altura, vai tomando ares de metáfora errante, mas foi por meio dessa

errância que eu pude ver, em tempo real, por irreal que pareça, a entrada de Deus-

NumDé, agora, na Praça do Reino Encantado: Lugar dos Contos Populares. Lá vi

DeusNumDé ser recebido ao som do Canto e Dança do Pastoril, Boi da Ressurreição,

Maracatu do Baque Virado, com baque solto na festa. Isso me abriu uma Terceira

Visão nos Sentidos, pois logo vi Meu Avô; que era ali um Velho Guardião de Muitas

Vozes, mantendo em constante renovação (narrador de bom guardado), entre outras,

as Histórias de Exemplos e Trancoso. Com DeusNumDé bem à vista, vi Meu Avô

trancando e abrindo as feições, lá de seu rosto – sorrindo ou enfezado – conforme

pedia o clima da história que estava contando, à beira do fogo, na Praça do Reino.

Velho narrador de ontem, como hoje, desempenhando seu papel sagrado.

A essa altura da viagem (concreta e imaginária) me ocorre dizer que, nos dias de

hoje, o contador de histórias, seja sua atuação por meio do verso ou da prosa, é um ser

essencial a uma sociedade que se vê necessitada em “dar um tempo ao tempo da poesia”.

Cruzando, enfim, um Terceiro Sinal Verde, antes de chegar em casa, vi Deus-

NumDé já transitando entre a Praça do Reino e a Praça da Pedra Medieval.

Assim que entrei em casa, liguei a televisão, direto no programa Narradores do

Tempo – Canal da Voz do Futuro. Quem eu vejo aparecer? DeusNumDé, lá desafi-

ando Homero. Não estando eu maluco – assim espero –, juro que isso eu vi suceder.

Coisa do mundo da tevê.

Partindo de um plano que se fechava nos dois, a tevê foi revelando uma grande

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arena, onde se viam de gente antiga a modernosa... Ambiente de Encontro Celebrativo.

De repente, em plano médio, eu vi e reconheci: um Médium, ao seu lado uma

Alma Viva do Teatro. Se não me falha a imagem, o Espírito Dionísius também vi. Vi

um Poeta mais atrás, só pela rima do olhar. Olha quantos entes da Criação Humana...

Logo ao lado vi um senhor que tinha pinta de palhaço. Era uma Praça povoada de

Porta-Vozes dos Saberes Populares. Vi a tevê fechar o plano de novo em Homero e

DeusNumDé. A peleja entre ambos alcançava seu clímax. Desenrolando o desfecho,

Homero desfiava lá um fuminho de rolo. A figura de seu rosto agora, do meu ponto

de vista, era, escrito, a de meu Avô.

Tevê voltou ao plano médio, e o poeta – reconhecido por mim – emendou contan-

do um Conto dos Dias de Hoje. Aí eu tive a certeza: espaço de contador de história é

espaço de precisão: vai onde é preciso ir. Nesse preciso momento, o cansaço se insinu-

ando, me dominou as pestanas, meus olhos foram deixando os Narradores no Ar...

Dia seguinte, as tantas vozes de um homem davam vez ao Teatro De Bonecos:

Era o início do Festival Nacional de Teatro, nas Ruas de Angra dos Reis, onde a Cia.

Chegança, do Maranhão foi chegando, já cantou pra guarnicê; e em pé sobre seu

Banquinho, entre ruas e sinais, vestido só de jornais, Dalmo Saraiva fazia vez de “O

Homem De Papel: Coberto de Notícia, sem Ler um Terço da Missa”. Num rito de

itinerância, prossegui ouvindo e vendo, entre tantas semelhanças de fala, as diferen-

ças na prosódia, nos sotaques... Seguindo minha abordagem, dei com a performance

da “Mulher Que Roda e Cai”. Entre a Mulher e o Cais, outras histórias ouvi. À Beira

do Mar de Angra, portanto a Praça do Porto, foi bonito de se ver: a Poética de Cordel

(Teatro de Precisão, Indo Onde é Preciso Ir, como eu já disse) fez a Ponte entre o Nar-

rado, o Vivido e o Cantado.

No rastro desse convívio da arte de contar-encenar com outras artes afins, dei

uma espichada de pernas, fui a becos e recantos, – que pareciam invisíveis aos olhos

programação oficial –, até me achar num picadeiro, bem na frente da igreja. Pen-

sei: Profano e Sagrado, numa alegre interação: Circo inteiro e ativo, compartilhando

acrobacias com as preces do sacristão. Mal pensei, fui avistando, lá noutra esquina

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um caboclo. Vi logo que era cria do lugar: um pescador de palavras. Sua voz estava na

praça, mas apenas sussurrava uma história-para-dois. “Quem cochicha, o rabo espi-

cha”. Pensando assim, espichei o meu pescoço, meti o nariz entre os três (narrador e

seu público de dois): “Sou Seu Cochicha-Língua-Espicha!“ Ele a mim se apresentou.

E continuou contando sua história agora pra três. Pensei nessa modalidade: Público-

micro em meio à macro-visão de gente. Ideia só dele ou não, foi um jeito encontrado

de ser ouvido com atenção, valorizando, de verdade, cada palavra então falada. É nes-

sas pequenas grandes nuances, por entre ouvidos e praças, que se percebe: espaço do

contador de histórias nos dias atuais não se mede apenas pelo volume de público à

sua volta, mas também pelo conteúdo e boa qualidade que se imprime em seu contar.

Já em pleno pôr do sol, um céu de plasticidade: Azul, vermelho, amarelo, suave-

mente mandou a estrela-guia alumiar a cidade, pro Cortejo das Linguagens. Assim

sendo: Do Homem de Papel ao Mímico, passando pelo Narrador-Para-Três, Mamu-

lengos, Cirandeiros... Até Mestre Vitalino, com Bonecos de Lampião e Maria Bonita,

acrescentaram pontos diversos na interação de contadores com outras artes. Desse

ponto de partida, ao som de tambores, cantos, danças, contos, etc. – por ruas, praças

e beira-mar o Cortejo circulou. Sendo o Ponto-de-Chegança o mesmo de onde par-

tira: Frente à igreja: lugar do Circo Armado. Cortejo chegou, fez-se a Roda, rodou-se,

então, o chapéu. Era o mesmo chapéu do começo dessa Jornada de Palavras.

Sem mais o que dizer, peço licença a Guimarães Rosa pra indagar: “Aqui, a

história acabada?”. Acaba é nada! A história é dada a se verter, virar outras, conforme

muda de voz ou de lugar. Toda história que se preza ser contada, guarda em si outras

versões. Falando nisso...

Lá Não vi foi DeusNumDé,

mas ele segue no ar,

contando, pra quem quiser

em seu mundo navegar

e contar, como puder,

a história que imaginar.

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Meu Avô também não vi.

Não quis ele aparecer

em Angra, mas eu ouvi,

– caro leitor pode ver, –

suas palavras, dizendo:

“Estou escutando, estou vendo,

em Angra a Ema Gemer”.

Este artigo foi pedido,

pra ser em prosa, eu sei,

mas me vi tão dividido,

que um jeito no fim eu dei.

Assim, versejado eu deixo,

registrado este desfecho

da história que contei.

Leituras Inspiradoras

u Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa. Nova Fronteira.

u Cantadores. Leonardo Mota. Itatiaia.

u Zé Limeira, poeta do absurdo. Orlando Tejo. A União.

u Patativa do Assaré, a trajetória de um canto. Luiz Tadeu Feitosa. Escrituras.

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oVozes, corpos e textos nos vãos da cidade

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A liberdade, segundo o senso comum, é um direito inalienável de todo ser

humano. Mas a luta para que ela seja valor imprescindível nas relações sociais,

políticas e econômicas é um exercício que se perpetua na contemporaneidade. É

impossível para o (e)leitor de nosso momento histórico conceber a arte submetida

a regimes estéticos, mercadológicos e ideológicos autoritários. A liberdade, além de

ser um segredo, como diz Clarice Lispector, tem uma densidade uma oitava acima de

qualquer tom.

Contar uma história, para mim, é sempre um exercício em liberdade. Não consigo

entender como, diante dos impasses do presente, as narrativas individuais e coletivas

possam ser controladas e/ou orientadas por forças externas a sua fundação como dis-

curso. Estar diante do outro e falar para o outro do outro que habita em si é o grande

gesto político, artístico e ético que um contador de histórias pode fazer num mundo

de descasos e banalizações.

Há quem ainda acredite e perpetue a ideia de que o autor morreu. Parece que

alguns proto-pós-modernos de plantão não leram bem ou passaram apressadamente os

olhos pelos textos de Foucault e Barthes que discutem essa questão. Como falar de

morte do autor num momento de histeria coletiva diante do conceito de intimidade

e da proliferação das narrativas do eu, das autobiografias e das autoficções?

As narrativas urbanas que moldam o corpo textual e sonoro do contador formam

um contínuo e caudaloso rio que contempla margens e penetra territórios que vão da

família à rua, da solidão ao encantamento, da loucura à memória. Infância, paixões, pre-

[Júlio Diniz]

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conceitos, violência, espanto, desejo e dor são tratados em liberdade por vozes que nar-

ram vozes em trânsito, corpos em suspensão, discursos entortados pela potência da vida.

Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberdade aprisionante do

espaço branco do papel, da imobilidade do corpo como máquina desejante, do silên-

cio imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo,

os contadores de história, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam

num delicado jogo de tensões.

Se o contador se dispuser a embaralhar a ordem de performatização dos textos e

construir a sua própria escolha, encontrará no vão do sentido a possibilidade de exer-

citar seus dons de bricoleur. Esse convite à trapaça, à invenção de um outro, tem um

forte aliado nos cenários imagéticos da cidade de nosso tempo. Imagens, textos e vozes

em dialogia e em rotação contínua. A liberdade, antes de tudo, é um jogo de seduções.

Acredito muito na potência da figura e da ação dos contadores diante da amnésia

imposta pelo capitalismo cognitivo para vender a memória como mercadoria. Há nos

contadores que erram pelas cidades um desejo de trazer do subsolo das reminiscên-

cias das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São griots e griotes

que resistem na contemporaneidade ao descaso com a história dos afetos e das nar-

rativas que a liberdade nos provoca.

Como tentar revelar as múltiplas faces da liberdade até agora? Como a contação

de histórias pode se transformar no lugar da resistência e de afirmação da precarie-

dade humana? Como os (e)leitores de nosso tempo lidam com a vontade que poten-

cializa o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópícos nos reservam?

Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas de desejos e dúvidas. Ler

em liberdade é o dispositivo possível de sua apreensão e entendimento.

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oMuitas vidas, muitas vozes,

muitas histórias

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Júlio Diniz – A palavra Morandubetá, o que significa?

Morandubetá – É uma palavra Tupi que significa “muitas histórias”.

Júlio Diniz – Como o grupo surgiu? Qual é a formação original? Houve pessoas que

entraram, ficaram um tempo e saíram?

Morandubetá – Em 1989 aconteceu no Rio de Janeiro um curso de contadores

de histórias com o grupo da Venezuela “En Cuentos y Encantos”, formado pela

venezuelana Isabel de los Ríos e o brasileiro Luiz Carlos Neves. Foram convida-

dos por Eliana Yunes que era Diretora da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro

Infantil e Juvenil, onde trabalhavam também Lúcia Fidalgo, Maraney Freire e Inês

Rocha. As quatro fizeram o curso e foram a semente do futuro grupo, mas ainda

não era o Morandubetá. Nesse meio tempo o Celso Sisto entrou para a FNLIJ,

como especialista da área de literatura, e se juntou ao grupo. Começamos a nos

reunir e contar histórias no Instituto Nazareth, um colégio dirigido por Regina

Yolanda que ficava na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Eliana participava da

equipe pedagógica e nos levou para lá. Ali nasceu o Morandubetá. Pouco depois

a Inês foi viver na França. E o grupo ficou composto por Eliana Yunes, Celso

Sisto, Maraney Freire e Lúcia Fidalgo. Então a Maraney saiu e chegou a Benita.

A formação que existe até hoje – Benita Prieto, Celso Sisto, Eliana Yunes e Lúcia

Fidalgo – começou em 1991. E o nome do grupo foi escolhido por causa do livro

Morandubetá, de Heitor Luiz Murat, da Editora Lê, uma colheita de diversas fábu-

las indígenas. Quando vimos o nome, falamos quase que ao mesmo tempo: mas

[Júlio Diniz & Morandubetá]

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que nome interessante, Morandubetá! Uma palavra diferente. Que remete ao que

a gente quer... Homenagear os povos indígenas.

Júlio Diniz – Iluminar o Brasil pouco iluminado, deixá-lo vazar e brilhar, não é?

Morandubetá – Isso! É, tudo nasceu daí e assim! Foi muito... Bonito e mágico!

Júlio Diniz – E aí vocês começaram a fazer o quê em 91/92?

Morandubetá – Contávamos no projeto “Meu livro, meu companheiro”, da FNLIJ,

que acontecia no INCA – Instituto Nacional de Câncer, onde foi montada uma

sala com uma biblioteca chamada Bibliolândia, nome escolhido pelos frequen-

tadores. Nesse momento começamos também a viajar pelo Brasil para formar

contadores pelo Proler.

Júlio Diniz – Qual era o repertório? Era só para pacientes, para adultos e crianças?

Morandubetá – A sala e o repertório eram voltados para a literatura infantil e

juvenil, mas acabou virando um espaço de convivência de todos, porque nesse

momento também nascia no INCA um grupo de voluntários que estava sendo

formado para trabalhar com as crianças. Daí surgiu a ideia de que, além de contar,

poderíamos ministrar um curso de contador de histórias para esse grupo que teria

a possibilidade de difundir essa ação nas suas atividades. Nós também íamos às

enfermarias para contar, quando o paciente não podia se deslocar.

Júlio Diniz – Podemos dizer que antes dos doutores da alegria chegarem ao Rio de

Janeiro vocês já estavam lá e faziam esse trabalho?

Morandubetá – Sim! Com certeza! Nessa época inclusive começamos a pensar em

fazer essa ação num trabalho voluntário, a ideia de contar histórias para os enfer-

mos. Em 1995 fomos convidados para participar do projeto da Secretaria Muni-

cipal de Cultura Teatro é Vida, que era só com atores. Quando eles perceberam

que já havíamos feito isso no INCA, resolveram nos chamar. Então tivemos a

ideia de criar o projeto voluntário Cesta de Histórias que foi feito com o nosso

dinheiro em seis hospitais da rede pública. Compramos as cestas de vime, doa-

mos os livros, demos formação de contadores de histórias. Acabamos ganhando

uma Moção de apoio da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro por essa ação.

Foi uma bela surpresa!

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51

Júlio Diniz – Como era ser um contador de histórias no início dos anos 90? Havia

já essa importância? Esse lugar? Esse reconhecimento? Vocês tiveram que respirar

fundo e desbravar essa floresta selvagem?

Morandubetá – A narração de histórias é algo milenar, ninguém inaugurou nada.

O que aconteceu refere-se ao surgimento e crescimento da narração urbana, que

efetivamente se reintroduziu na prática social do brasileiro. Começamos muito

timidamente, com muitos cuidados. Nós não saíamos dando oficina por aí,

não. Assumimos que contar histórias fazia parte de um programa de formação

de leitores, que ouvir narrativas organizava a cabeça das pessoas. Então quando

surgiu o Proler – Programa Nacional de Incentivo à Leitura, da Fundação Biblio-

teca Nacional, fomos pelo Brasil. O Proler é que disseminou o nosso trabalho,

mas nós somos os pioneiros na contação de histórias numa perspectiva contem-

porânea. Fomos também os precursores nessa história de grupos de contadores

de histórias e de uma série de outras coisas: começamos as oficinas de contadores

de histórias, começamos a organizar as sessões de contos como se fosse um espetá-

culo, demos os primeiros passos para o aparecimento de encontros de contadores

de histórias, transferimos nossas experiências da prática para livros. E tudo isso

começou numa época em que as pessoas não sabiam direito o que faziam os con-

tadores de histórias. Em muitos lugares as pessoas achavam que os contadores de

histórias liam histórias para crianças. Também creditamos ao Morandubetá essa

ampliação de público, uma vez que também fomos nós que começamos a gestar

apresentações para um público adulto, exatamente para fugirmos dessa ideia

de que contar história é só para crianças. E podemos dizer, seguramente, que a

experiência com o teatro do Celso e da Benita também abriu as portas para que

outros atores descobrissem a “contação de histórias” como caminho. Abrimos,

inclusive, a possibilidade dos contadores de histórias trabalharem em feiras de

livros (via Bienal do Rio), que depois se espalhou para todo o país. Outra coisa: o

Morandubetá sempre investiu em apresentações de histórias literárias, sendo pre-

cursor dessa prática de levar para a oralidade os textos escritos de vários autores,

quando o comum era as pessoas contarem contos populares!

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Júlio Diniz – De onde vem essa palavra, “contação”?

Morandubetá – Essa palavra é do grande contador Gregório Filho. Primeiro ficá-

vamos cheios de receios de usar, pois a palavra não existia. Mas Gregório nos

convenceu. É melhor falar de um jeito que todo mundo entenda. A língua portu-

guesa aguenta tudo isso. Ele define assim contação, ação de contar.

Júlio Diniz – Quando é que vocês deram um salto, ou seja, modificaram um pouco

o trajeto, se profissionalizaram e foram para o teatro? Já tive oportunidade de ver

o trabalho de vocês em vários esquemas diferentes. Até no palco do CCBB – Cen-

tro Cultural Banco do Brasil – aqui no Rio

Morandubetá – Fomos evoluindo sem perceber. A gente não tinha um plano.

Ocupávamos os espaços. Houve um fato importante que marcou o início de nossa

trajetória – o trabalho no Museu Histórico Nacional. A revista Veja fez uma maté-

ria e aí despertamos o interesse do público, da imprensa e dos gestores de cultura.

Passamos a ser chamados para projetos em várias instituições, nós fazíamos tudo

ao mesmo tempo.

Júlio Diniz – A partir daí, o que aconteceu?

Morandubetá – Naquele momento veio uma vontade de profissionalização. Decidi-

mos ter um logotipo, assessoria de imprensa, pensar em ter produtos, virar uma

microempresa. E decidimos sair da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,

para não parecer que pertencíamos à FNLIJ. Despedimo-nos com uma linda carta

que está lá nos arquivos da Fundação.

Júlio Diniz – A partir das vivências no Proler e no Leia Brasil, vocês formaram conta-

dores de história, é isso? Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse assunto.

Morandubetá – Percebemos que não daríamos conta de tudo, já que o Proler e o

Leia Brasil estavam crescendo por todos os cantos do país. Nessa época também

surge a Casa da Leitura em Laranjeiras que abre espaço para os contadores. A

Casa começa com a gente contando histórias porque ainda não havia a formação

continuada de grupos. Ministramos também cursos na PUC-Rio, Ler UERJ, uni-

versidades, SESC, SESI. Era tanto lugar, uma loucura saudável.

Júlio Diniz – Vou adaptar a frase do Millôr Fernandes que é muito boa para falar

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desse aspecto. O Rio de Janeiro estava irreconhecivelmente inteligente naquele

momento. É isso?

Morandubetá – É isso mesmo! No início não havia muito público. Tudo acontecia

numa salinha. Levávamos nossos parentes e amigos para encher a sala. Depois o

público foi crescendo, tinha disputa... Tinha senha. Às vezes fazíamos duas ses-

sões no mesmo espaço. Todo o processo foi muito lindo. Tanto no CCBB quanto

na Casa da Leitura.

Júlio Diniz – Vocês se tornaram multiplicadores e formadores de novos contadores

de história e de grupos, não é mesmo?

Morandubetá – Há vários grupos e contadores que são importantes no Brasil hoje

que foram formados por nós. Praticamente deixamos um grupo em cada cidade

por onde passamos. O Morandubetá possibilitou, junto com essas andanças,

junto a esses projetos de que estamos falando, não só formar contadores como

descobrir contadores, porque essa é a nossa missão também.

Júlio Diniz – Agora falem um pouco do repertório.

Morandubetá – A história de repertório é a seguinte. Como as nossas sessões tinham

sempre um tema, precisávamos pesquisar muito. Começamos com literatura infan-

til, depois passamos para literatura adulta, dentro da Biblioteca Nacional. A ideia

foi sumamente rejeitada. As críticas eram pesadas. Alguns achavam um absurdo

funcionários ouvindo histórias, fazendo círculo de leitura. Achavam que era lou-

cura contar histórias para gente que não sabia ler.

Júlio Diniz – O pessoal da limpeza?

Morandubetá – É, porque só sobrou o pessoal da limpeza, porque ninguém, fun-

cionário nenhum queria efetivamente participar. Quando passamos a fazer para o

público em geral, escolhíamos histórias de acordo com a época, segundo o calen-

dário. Tivemos que literalmente caçar nossas leituras, consultar outras pessoas

e mergulhávamos na biblioteca para ver os acervos. Foi aí que a Lúcia e o Celso

viraram escritores. Na medida em que não encontrávamos um repertório do que

queríamos, tínhamos que criar. Chegamos a ter um repertório de cem contos

cada um de nós. E também nos encontrávamos para estudar. Fazíamos reuniões

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semanais para ensaiar. Toda essa pesquisa nos deu segurança para trabalhar com

a literatura oral e a autoral.

Júlio Diniz – Vocês começaram localmente, depois ganharam uma importância

regional, projeção nacional e agora o desafio é dialogar com grupos no exterior.

Eu gostaria que vocês falassem sobre isso.

Morandubetá – Na verdade já temos um ótimo diálogo com os contadores dos

países de fala hispânica e portuguesa principalmente. Através dos encontros que

participamos desde 1996 com a viagem da Benita para fora do Brasil e dos que

produzimos por aqui desde 1999 construímos uma rede poderosa de ação.

Júlio Diniz – Como é que vocês explicam o fato de estarem há mais de vinte anos

juntos, sem se separarem, sem rachas, discordâncias maiores, essas coisas? O que

une essas quatro pessoas de uma forma tão forte, além da amizade?

Morandubetá – O compromisso que temos com a promoção da leitura. Isso é um

compromisso de vida. Não contamos por contar.

Júlio Diniz – E o plano de vocês daqui pra frente? Tem alguma coisa mais imediata?

Fazer um livro, fazer outro espetáculo?

Morandubetá – O grupo teve que aprender a trabalhar de forma dividida. Os pro-

jetos individuais foram ganhando espaço também, junto com as atividades do

grupo. E fomos investir na nossa formação profissional, qualificando-nos mais

ainda. Mas o nome do Morandubetá sempre acompanha nossos trabalhos, mes-

mo os individuais. Temos muitas coisas a fazer, como divulgar a coleção Histórias

das terras daqui e de lá, da Editora Zeus. A Lúcia fez a coordenação editorial e cada

um de nós escreveu um livro em parceria com um contador estrangeiro. Tentar

que o grupo se reúna duas vezes por ano para contar junto, porque a gente está

muito disperso. Ter o nosso repertório registrado em CDs, pois gravávamos todas

as nossas sessões de histórias, na Casa da Leitura, no início desse trajeto. Temos

um livro pronto com contos indígenas, mas ainda sem editora. E também o No

coração da palavra, que é um livro todo teórico e sobre nossas experiências. Que-

remos fazer um livro de contos autorais. Depois de tantos anos na estrada temos

importantes contribuições a dar.

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Júlio Diniz – A última pergunta para cada um de vocês. Quais são as expectativas da

contação de histórias?

Benita Prieto – Estamos construindo uma bela história. Mas precisamos mapear o

Brasil para ampliar as nossas bases nacionais. E solidificar as relações que mante-

mos com outros contadores no mundo construindo uma rede de cooperação que

possibilite cada vez mais a troca de experiências e os intercâmbios. E algo que me

aflige é a renovação. Há extrema necessidade de jovens contadores de histórias,

para que todo esse trabalho não desapareça. Afinal e infelizmente eternas são

somente as histórias.

Celso Sisto – A contação de histórias no Brasil de hoje está bem difundida. Mas

falta mais, falta muito mais. Primeiro é preciso investir enormemente na forma-

ção de grupos. Eu acredito nisso. Contar histórias coletivamente tem uma força

incalculável, e o que a gente vê com mais frequência é o surgimento de contadores

individuais (é mais fácil contar sozinho! ser dono de tudo!). Mas sou a favor dos

grupos, dessa experiência coletiva e socializante, inclusive como maneira de “bar-

rar” os estrelismos. O que importa é a literatura, o compromisso com as obras de

qualidade. O que assistimos hoje é o que chamo de “pasteurização” da arte de

contar histórias. Explico: o contador de histórias tem que se adequar à história

que ele conta, e não o contrário. A história é quem deve determinar a forma, a

maneira, o estilo requerido por ela, para ser contada, e não o contrário. O que

se vê são contadores de histórias usando as histórias para ressaltarem suas quali-

dades artísticas e não “iluminarem” as histórias que contam. Toda e qualquer

habilidade individual deve estar a serviço da história, para engrandecimento da

história que se conta, e não do contador.

Eliana Yunes – A contação de história sempre foi uma fórmula de abertura para

ler o mundo. Pensando assim, como o mundo chega organizado às cabeças das

pessoas, elas não sabem mais quais são as relações com as coisas. Que o mundo

é o mundo da cultura, não é? As histórias fizeram esse papel. A oralidade sobre-

vive porque ela dá para organizar as sociedades, mesmo quando essas formas são

muito sofisticadas como o caso das formas gregas. Elas prevalecem, permanecem

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porque a oralidade dá a possibilidade de ter um sentido para a compreensão do

mundo e das coisas. Eu acho que a gente pode ter um caminho todo da escrita

digital, da escrita eletrônica, mas ouvir uma história de viva voz, com a respiração

do contador, com o olhar do contador, é algo imbatível porque aproxima as pes-

soas. E as pessoas estão na verdade carentes de aproximação, de trocas pessoais.

Penso que precisamos investir não como uma forma de institucionalizar ou de

criar certas cerquinhas, em aspectos como a performática do contador de história,

a questão da voz, do corpo, que não tem que se confundir com o palco, com o

teatro. Como é que a gente transborda, transpira uma história? Isso merece um

estudo mais sistemático.

Lúcia Fidalgo – Há um problema hoje com a questão do repertório. A escolha dos

textos tem que ser ampliada porque os contadores infelizmente começaram nessa

onda de cópia, cópia, cópia, usando sempre as mesmas histórias. Devemos nos

preocupar bastante com isso. Estamos numa sociedade da informação. A gente

não tem que ter somente competência informacional para trabalhar com ela.

Eu acho que temos que ter competência informacional e emocional. Creio que

o papel do contador nisso funciona muito bem. Me preocupo muito com essa

questão do repertório, de formar repertórios novos pra gente não ficar repetidor,

como um papagaio. Então, só sendo leitor, não é?

Page 57: 00 livro contadoresdehistorias

Esta conversa com os participantes do grupo Morandubetá ocorreu na Cátedra UNESCO de Leitura da PUC-Rio. Era uma segunda-feira ensolarada, e a vontade de compartilhar experiências, relatos, sentimentos e lembranças nos aproximou naquela manhã de céu azul e luz na alma. Eu desempenhei o difícil e ao mesmo tempo prazeroso papel de mediador da conversa que contou com a presença de Benita Prieto, Lúcia Fidalgo e Eliana Yunes. Como o Celso Sisto estava no sul do Brasil, enviei por e-mail as questões para ele comentar. Suas observações foram incorporadas a este bate-papo.

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oImpressões de uma contadora de histórias

– meu encontro com a arte narrativa

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Embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem...”

Assim a autora Clarissa Pinkola Estés encerra seu livro escrito no início dos anos

1990, O dom da história. Nesta obra ela pretende desvelar a amplitude do alcance das

narrativas orais através dos tempos e seu efeito de longa duração. Os componentes do

mundo mítico associados ao “feitiço libertador dos contos de fadas”, que se destina

a provocar uma sensação de felicidade, e ao acolhimento do conselho, têm a capaci-

dade de perdurar e coexistir num mundo técnico que corre cada dia mais em busca

do sentido para a vida. E do mesmo modo Walter Benjamin cita os elementos consti-

tutivos dos contos de fadas: “E se não morreram, vivem até hoje...”.

O estudo acerca do valor de longa duração dos contos oriundos das tradições

orais é tema recorrente na obra de Câmara Cascudo (1898-1986) desde a década de

1930. Especialmente em Literatura oral no Brasil, escrito entre 1945 e 1949, o autor nos

fornece dados relevantes sobre a atmosfera sagrada que envolve a prosa do narrador

e suas situações simbólicas apresentadas. Segundo ele, alguns segredos constituem as

técnicas da narrativa popular:

Os velhos irlandeses têm repugnância de contar estórias de dia porque traz infelicidade.

Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma cabaça ao nariz ou a mãe do narrador

transformar-se-á numa zebra selvagem. Os Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam

fulminados por um raio. Os Tenas, do Alasca, contam histórias de dia, mas o local deve

estar na mais profunda obscuridade. Essa interdição é a mesma em Portugal e Espanha,

decorrentemente para o continente americano. Quem conta estórias de dia cria rabo de

cotia. (CASCUDO, 1984, p. 228).

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De fato, se recorrermos à memória de nossa infância, verificamos que talvez tenha

sido dentro da noite, na penumbra de um quarto, na proximidade aconchegante da

presença de um narrador primeiro, que grande parte das situações simbólicas em

nossas vidas puderam se apresentar. Assim foi o meu encontro com a arte narrativa e

o canto, entremeando o enredo dos contos. Aconteceu muito cedo, na infância ainda

não alfabetizada, quando a forma de ler o mundo se apresentava através das histórias

contadas e cantadas por minha mãe. A exemplo do que Câmara Cascudo mostra ser

o que acontecia no Brasil-Colônia, com as amas contando histórias e acalentando

as suas crianças e as das sinhás, o material que me era passado por minha mãe foi o

meu primeiro “leite intelectual” recebido. O pesquisador trabalha com o conceito de

literatura oral no Brasil e o estudo por ele realizado é uma eterna fonte de inspiração

para meu próprio trabalho criativo. A partir do vasto material de sua pesquisa escrevi

livros infantis com adaptações de temas de contos tradicionais, compus centenas de

canções também para crianças e gravei boa parte desta obra em CDs, por acreditar

que, na ausência de um narrador tradicional, seja possível reinstalar aqueles momen-

tos mágicos e encantadores por intermédio de suportes contemporâneos.

Penso o quanto aquele rico e descompromissado momento proporcionado por

minha mãe, era recheado de uma memória cultural de sua infância nos anos 1920,

e o quanto esta memória transferiu-se para o meu imaginário, contribuindo para a

construção do potencial imaginativo e criador que tenho hoje comigo. Logo em 1960,

eu então com cinco anos, tive a chance e o privilégio de escutar as maravilhosas nar-

rativas da Coleção Disquinho criadas por Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha

para os amigos, e o João de Barro, para o mundo artístico. Aquelas encantadoras

narrações de contos populares do Brasil e também clássicos da literatura infanto-

juvenil do mundo, eram entremeadas por músicas igualmente belas que pontuavam

os momentos das histórias e as traziam mais oníricas e lúdicas para dentro do coração.

A partir daí, não somente minha infância se enriqueceu e se encantou com a arte

de cantar e contar histórias, como também esta arte sinalizou o caminho profissional

que eu seguiria posteriormente. Prossegui ouvindo e inventando histórias e canções

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na minha meninice e, mesmo antes de aprender a escrever, lembro-me de meus pais

registrando poemas e músicas que eu criava e não sabia ainda colocar no papel...

Costumo dizer como se fosse um lema do meu trabalho artístico enquanto criadora

musical e contadora de histórias para crianças, que o ato de ler e escrever histórias é fazer

um bem; ouvi-las e contá-las, também. Assim como repito sempre: Era uma vez, era uma

outra vez, era sempre uma vez. Ou quando canto: É bom cantar, é bom ouvir, é bom pensar, é

bom sentir, procuro demonstrar o quão perto habitam a palavra que se canta e a palavra

que se fala, pois elas desvelam sentidos múltiplos para cada pessoa que as recebe.

Considero o contador de histórias o detentor de uma arte não exclusiva ao mun-

do dos artistas profissionais. As narrativas orais sempre estiveram ao lado do homem

e de suas conquistas dentro da arte de viver, então concordaremos que a arte de

narrar faz parte de sua própria história no mundo e traz imbricados os conceitos de

ancestralidade e contemporaneidade. Portanto sempre haverá encantamento quando

alguém conta ou canta uma história, seja esta pessoa letrada ou não. A arte narrativa

se manifesta tanto no contador tradicional, cujas histórias foram criadas e recriadas

ao longo do tempo através da narração de sua experiência e de sua memória, quanto

no contador contemporâneo, que se instrumentaliza através da pesquisa, da leitura

e a insere na prática pedagógica. O professor contador de histórias promove em seu

cotidiano o fazer artístico das crianças, que passam a construir obras criativas a partir

da repercussão que as imagens poéticas das narrativas promovem dentro delas.

Um simples desenho ou uma pintura que transpõe através de formas, cores ou

texturas o que foi percebido de um momento específico narrado do conto, pode tor-

nar-se uma experiência significativa de aprendizagem, pois ali estão expressas a leitura

particular de cada indivíduo do mesmo fato objetivo da narrativa. A forma plástica

escolhida, pela criança ou pelo adulto, ao desenhar uma narrativa é uma apropriação

sua do significado objetivo do conto e sua consequente tradução subjetiva.

Esta leitura singular de cada um, expressa em desenhos tão diferentes entre si,

nos comprova a existência daquele “cinema mental” proposto por Ítalo Calvino,

que afirma ser impossível que os cenários imaginados pelos ouvintes de uma mesma

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história possam ser semelhantes... E seguimos na esteira do conceito de Bachelard

acerca da relação íntima da imagem poética com o devaneio, pois o ouvinte de uma

história entra no estado de devaneio ao escutá-la e engendra em sua imaginação cria-

dora um mundo sonhado, que dialoga com a função do real, ao mesmo tempo que o

liberta dela. A imaginação modifica certos aspectos da narrativa e é capaz de ampliá-los

enquanto os assimila, portanto talvez possamos alçar que o conto ajuda a memória a

lembrar e a imaginação a imaginar...

Quando uma vez me perguntaram numa entrevista porque seria importante para

as crianças entrarem em contato com qualquer forma de expressão da arte, respondi

que preferia inverter a questão e dizer que é a arte que nos proporciona entradas no

mundo. A arte nos dá um olhar diferenciado ao que se nos apresenta em bombardeio

diário pelos meios de comunicação. Ela nos propicia um olhar crítico para esse mun-

do moderno impregnado das necessidades fabricadas pela sociedade de consumo e

distantes das necessidades essenciais do indivíduo.

Eu diria que a arte de contar histórias se faz hoje mais do que nunca necessária

exatamente porque quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda

informal de contos ou mesmo no contexto do que chamamos de indústria do espetá-

culo, o maravilhoso se instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais

que vêm caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas e

quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a imaginação cria-

dora do ouvinte, seja ele criança ou adulto. É nesse momento que o indivíduo realiza

sua mais importante operação: a de significar sua relação com o mundo.

Diz Herbert Read que a arte é um contágio, e se transmite como fogo, de espírito

para espírito. Permito-me apropriar de sua colocação e dizer que a arte de contar

histórias é uma transmissão que contagia por ser imanente à capacidade do homem

de intercambiar experiências e produzir sentido para a vida. Quando a criança per-

cebe que a história contada pelo professor pode continuar nela habitando, reper-

cutindo, produzindo sentidos, cores, formas, texturas, e até “recriando memória”,

expressão cunhada por Clarissa Pinkola Esthés, ela adquire poder para enfrentar a

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difícil tarefa de viver e conviver. A narrativa é dirigida ao olhar do outro, é frontal. O

contador entrega, oferece um texto oral, uma ideia, uma imagem poética, e as pessoas

a recebem como se fosse uma bola que é devolvida com reflexão, expressão e criação.

Os contos da tradição oral vieram através dos tempos instigando os sonhos, colo-

cando à prova seus personagens diante da vida e da morte, revelando e derrubando

valores, descobrindo mistérios, sortilégios, desventuras, alegrias e esperanças, e nos

falam desta grande experiência compartilhada por todos nós, que é a aventura de viver.

É também compartilhada por Walter Benjamin e Ítalo Calvino a afirmação de que a

característica principal das melhores narrativas é a de evitar explicações psicológicas

para as situações contidas na história. A presença do maravilhoso e o elemento capaz

de surpreender estão incrustados na natureza dos contos tradicionais e são eles que

provocam encantamento e suscitam novas criações. O extraordinário e o miraculoso

são narrados sem que o contexto psicológico seja imposto ao leitor ou ouvinte.

A imagem mais contundente que traduz a força ancestral que têm as narrativas

orais é cunhada por Benjamin:

Uma história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e

reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram

fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças

germinativas”. (BENJAMIN, 1994, p. 204).

Há meio século minha própria história está imbricada com a arte narrativa: num

primeiro e definitivo momento, como ouvinte de uma contadora, cantadeira e encan-

tadora mãe, e num período seguinte e até hoje, como uma amante das palavras conta-

das e cantadas propagadas pela estrada afora. Braguinha criou, na década de 1950, ao

adaptar a história de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault em música e versos:

“Pela estrada afora eu vou bem sozinha levar esses doces para a vovozinha...”. E desde

então eu sigo cantando e contando.

Mas eu não estou sozinha nesta estrada, onde as histórias são vaga-lumes que

sina-lizam com poesia, mistério e sabedoria os caminhos de todas as gentes e contam,

desde sempre, a história de nossa história no mundo. Muitos escritores, poetas, filóso-

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fos, teóricos e artistas populares me ajudam a pensar o valor desta antiga arte milenar,

onde a palavra é indicadora de rumos passados, presentes e futuros, são unânimes em

relacionar a arte narrativa com a arte de viver. E todos eles precisam dos contadores de

histórias e dos cantadores para que a palavra se dirija alma adentro e possa repercutir

profundamente na forma de imagem poética. Letrados e não letrados leem o mundo e

contam suas histórias. É preciso contá-las para que o mundo possa ouvi-las. Onde desa-

parece a arte de narrar, também desaparece o dom de ouvir, já dizia Benjamin:

A narrativa mergulha a coisa na vida no narrador para em seguida retirá-la dele. Assim

se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do barro.

(BENJAMIN, 1994, p. 205)

Aí está a relevância das narrativas orais que se mantiveram vivas e germinativas

antes mesmo dos suportes que as pudessem registrar: a narrativa é uma forma arte-

sanal de comunicação que se prolonga e repercute, ao contrário da informação que

se esgota rapidamente. As narrativas estão imbricadas com a arte de viver. Portanto a

arte de narrar e o dom de ouvir se entrelaçam para que a maior aventura do homem

possa acontecer.

Leituras Inspiradoras

u A poética do devaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.

u Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.

Walter Benjamin. Brasiliense, 1994. (obras escolhidas I)

u Memória e sociedade – Lembrança de velhos. Ecléa Bosi. Cia. Das Letras, 1994.

u A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.

Vozes, 2007.

u Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Ítalo Calvino. Compan-

hia das Letras, 1990.

u Literatura oral no Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Universidade de São Paulo, 1984.

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u O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Clarissa Pinkola Estés.

Rocco, 1998.

u A renovação do conto. Emergência de uma prática oral. Maria de Lourdes

Patrini. Cortez, 2005.

u A redenção do robô: meu encontro com a educação através da arte. Herbert

Read. Summus, 1986.

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oA terceira margem da cena

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Hoje, o interesse do teatro contemporâneo pela encenação de textos literários

sem transposição de gênero é crescente. A ideia de fazer viver no palco o texto nar-

rativo sem adaptações teatrais fez ressurgir na cena contemporânea a presença do ator-

narrador, O Ator Rapsodo. O titulo aqui alude à própria gênese do ator, a figura dos

poetas rapsodos, contadores de histórias da Grécia antiga, detentores da poesia oral que

estiveram em cena em vários momentos históricos do teatro. Neste teatro “narrativo”

o Ator Rapsodo preserva a voz autoral, sendo o responsável direto pela comunicação.

Ele quebra a quarta parede e se projeta do espaço dramático; se distanciando da obra

e encontrando o público e, desse espaço de cumplicidade, ele pode narrar, comentar,

descrever e até viver os personagens da obra que está encenando.

O diretor Aderbal Freire filho, um dos grandes praticantes desse gênero e criador

do Romance em cena define: “(...) o ator rapsodo é títere e titeriteiro. Ele representa em

primeira pessoa mas narra em terceira. Se no cinema o ator faz e a câmera mostra, no

‘romance em cena’ o ator faz e mostra.” O trânsito livre entre o narrado e o vivido

cria um jogo franco com o público, sem ilusões, resultando numa teatralidade viva e

instigante na qual o espectador é convocado como leitor, embarcando num exercício

criativo de imaginação onde ele completa as imagens e os sentidos do texto.

Mesmo dispondo das mesmas ferramentas e oferecendo ao público um mesmo

exercício de recepção, o ator rapsodo parece distante do que hoje chamamos de Con-

tador de Histórias – na realidade, os pontos de partida de ambos são diferentes. O

Ator Rapsodo tem os pés fincados no palco e, da cena, abre uma janela pra vida real,

[José Mauro Brant]

A voz é querer dizer e vontade de existência.Zumthor.

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interagindo com o público. Apesar de se alimentar da linguagem do seu ancestral em

comum, o ator rapsodo hoje costuma ser apenas uma importante peça de uma engre-

nagem na qual o grande contador de histórias é o próprio encenador. O Contador de

Histórias, por sua vez, tem os pés na vida, e dali, do mesmo lugar que o público, abre

uma janela pra fantasia.

A faculdade de contar histórias é um dom de todos os seres humanos e os atores

hoje são minoria no mundo dos narradores. Os contadores de histórias contemporâ-

neos são escritores, educadores, leitores, pesquisadores, promotores de leitura e tam-

bém atores, são indivíduos que possuem em comum um “impulso rapsódico”. Mais

do que intérprete de um texto narrativo, o contador é também uma autoridade sobre

o que está contando. Seu repertório é resultado de uma experiência individual com a

literatura, com o seu universo mais íntimo de significações, com sua história de amor

com a linguagem; ele tem o dom de trazer para a voz a palavra autoral por meio de

um processo de apropriação que faz seu texto se transformar em oralidade. A questão

que se coloca, a partir daí, é: seria essa prática, que é de todos, uma linguagem cênica?

Polêmico narrador e teórico das artes cênicas, o cubano, radicado na Espanha,

Francisco Garzon Céspedes, cunhou o termo: narração oral cênica para designar a

prática dos contadores de histórias do nosso tempo. No seu livro El arte escénico de

contar cuentos [A arte cênica da contação de histórias] ele afirma: a arte de contar oral e

cenicamente é uma arte cênica. Mas para Céspedes dizer cena não é dizer teatro, e é na

oposição: teatro versus narração de histórias, que ele busca os paradigmas que vão

apontar as direções dessa nova linguagem. “O teatro é ação. A narração oral cênica é

sugestão. (...) O teatro é representação. A narração oral cênica é apresentação.”

Meu mestre Fernando Lébeis dizia: “O ator bota máscaras, o contador de histórias

tira as máscaras.” Diga-me o que contas e te direi quem és! Despido de personagens,

descolado de qualquer “encenação”, o contador de histórias está pronto para, em

qualquer espaço sob as condições mais adversas, fazer acontecer o seu “teatro”.

Oriundo de uma sociedade em que a oralidade tem papel secundário, o conta-

dor de histórias urbano elege seu acervo a partir das muitas possibilidades que sua

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história de leituras oferece, textos autorais, poesias, crônicas e também as histórias

da tradição oral que reencontramos nos livros. Afinal ler é sempre escutar uma voz.

Ao escolher um texto para contar o narrador vira dono desta voz. Ele tem o dom de

saber escutar e sentir os movimentos subjacentes ao texto. As leis da cena ajudam

no processo artístico, administrando essas reverberações e as transformando em algo

expressivo. A memória (e não só a memorização) age como cocriadora do texto que

é incorporado pelo narrador. Assim o conto vira carne, sangue, gesto, olhar, escuta,

suor, respiração; ou seja, corpo; e especialmente, voz, sua principal emanação.

Essa conquista se deve à sua capacidade de ver e ouvir a sua audiência e se entregar

para um jogo onde o público não é mero espectador e sim interlocutor, tudo isso sem

perder o fio da história. Sua autoridade cênica é absoluta e vem do seu compromisso

quase sagrado com o texto e com a sua transmissão.

Um dos maiores encenadores e pensadores do teatro contemporâneo, Peter

Brook, conta no livro A Porta Aberta suas experiências observando a prática dos con-

tadores de histórias tradicionais da Índia, Irã e Afeganistão, que mantém vivos os

mitos ancestrais. Com um misto de alegria e gravidade os velhos narradores não per-

dem nunca a relação com seus ouvintes, não para agradá-los, mas para partilhar com

eles as qualidades sagradas do texto. Os grandes narradores nunca perdem o contato

com a grandeza do mito que estão fazendo viver: “Tem um ouvido voltado para o seu

interior e outro para fora.” Assim Brook sintetiza a maior lição dos velhos narradores:

estar em dois mundos ao mesmo tempo.

O narrador artístico sabe transitar por esses dois mundos e sabe também que

ele é responsável por criar um terceiro mundo, imaginário. O espaço de construção

conjunta da história, espaço de comunhão com os indivíduos da plateia onde de fato

toda ação do conto acontece. A terceira margem da cena.

Um dos mais frequentes colaboradores de Peter Brook, o ator japonês Yoshi Oida

(que traz na sua história a prática do gidaiyu, tradicional estilo de narração que tem

seu lugar nas encenações do teatro Kabuqui), conta em um de seus livros que certa vez

um talentoso ator interpretou um gesto que no Kabuqui indica “Olhar para Lua”. Ao

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ver o ator apontando com o indicador para o céu, com elegância, todos admiraram

a beleza do seu movimento e o virtuosismo técnico com que ele realizava a tarefa.

Outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele

tinha realizado ou não um movimento elegante; simplesmente viu a lua. O nome do

livro? O ator invisível. Sonho contar uma história em que eu, ao final, desapareça e só

reste, para o público, as imagens do conto.

Foi a paixão por essa generosa arte de fazer visível o invisível e meu amor pela pala-

vra dita, cantada, escrita que me fez ser contador de histórias. Contar histórias liber-

tou a minha voz das armadilhas do teatro e hoje ela está por aí, em bibliotecas, salas

de aula, hospitais, livros, CDs, e, é claro, e sempre, no meu lugar de origem, o palco.

Sonho com um teatro que volte a nascer de um impulso rapsódico. Do desejo de contar.

Contar histórias, pra mim, é sentir na pele a verdadeira função do oficio do ator.

É tocar a essência do próprio teatro.

Leituras Inspiradoras

u A porta aberta. Peter Brook. Civilização Brasileira, 2008.

u Contadores de Histórias: Oralidade, Narração Oral e Narração oral cênica. Francisco

Garzón Céspedes. In: O teatro dito infantil. Maria Helena Kühner (Org.). Cultura

em Movimento, 2003.

u O ator invisível. Yoshi Oida. Via Lettera, 2007.

u Introdução à poesia oral. Paul Zumthor. UFMG, 2010.

u Performance, recepção, leitura. Paul Zumthor. Cosac Naify, 2007.

u Do livro para o palco: formas de interação entre o épico literário e o teatral. Luiz Arthur

Nunes. In: O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8, Número 9.

u O lugar das histórias(vídeo) In: Coleção Teatro. Volume 1. Fundação Joaquim Nabuco,

2010.

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oA voz quente do coração do rádio

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Com a novela de rádio aprendemos a ansiar pela continuação de uma história:

para muitas gerações de brasileiros, a radionovela foi a primeira Scherazade.

Na minha vida, por exemplo, o primeiro rádio foi um Telefunken grandão,

encaixado num móvel de madeira de um estilo que naqueles anos 1960 chamávamos

de moderno. Esse móvel era o centro da sala do nosso apartamento em Porto Alegre:

tinha toca-discos, um nicho espelhado para guardar bebidas… e o rádio.

Depois do almoço, lavada a louça, minha mãe sentava conosco no tapete junto ao

rádio – éramos quatro crianças – e amontoados escutávamos os acordes de abertura

da novela. O rádio era quente, e quentes eram as vozes da mocinha, do galã, da vilã.

Choros, soluços, suspiros, sussurros, batidas de portas, passos pelo chão, acordes de

violino e sustos de tambor: como era quente tudo o que ouvíamos com o ouvido

colado numa novela de rádio!

De onde vinha aquele calor todo? – fico pensando. Um pouco vinha das válvulas

aquecidas do corpo físico do radião, claro. Outro pouco do aconchego das famílias

que se embolavam em colo, café e cafuné na moleza das tardes daquele tempo mais

lento. Mas muito vinha mesmo de uma linguagem íntima, de vozes que falavam cola-

das no microfone, a ouvidos que as escutavam colados na tela palpitante do rádio.

Essa intimidade tinha a ver também com o espaço doméstico: não havia cenas

externas nas radionovelas daquele tempo. O vento e os ruídos da cidade certamente

atrapalhariam gravações de rua, e além disso os enredos em si eram intimistas: segre-

dos atrás da porta, confissões no leito de morte, cartas encontradas em gavetas, promes-

sas e maldições ao pé do ouvido.

[Gilka Girardello]

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Anos depois, já quase mocinha, ganhei um rádio de pilha de aniversário. Ia

dormir com ele grudado no ouvido, o volume no mínimo e ainda por cima abafado

pelo cobertor, pra não incomodar as irmãs nas camas ao lado. Caçava as vozes dos

locutores dos primeiros programas de rock, ainda marginais naqueles tempos, pres-

sentindo as emoções que a cultura dos jovens guardava pra quem a fosse descobrindo.

Era revigorante a possibilidade de buscar e encontrar sozinha aqueles mundos, ao

sabor das excursões pelo dial. Intuir que milhares de outras meninas e meninos da

minha idade estavam ao mesmo tempo sozinhos em seus quartos, de ouvido nos

radinhos, escutando a mesma coisa, dava um arrepio na espinha, como o prenúncio

de uma revolução.

O rádio permite uma intimidade, uma presença tátil, um tipo de conspiração

narrativa entre quem fala e quem ouve. Ele envia pra longe a palavra encarnada e ao

mesmo tempo preserva a proximidade que a voz humana instaura, em sua condição

de corpo vivo. Afinal, “toda voz emana de um corpo, que permanece visível e palpável

enquanto ela é audível”, como diz Paul Zumthor. Por isso, o rádio faz com que cada

um dos milhares de ouvintes se sinta único, capaz de criar um rio de imagens mentais

para acompanhar o fluxo da fala do parceiro, aquele locutor que está no estúdio.

Que o rádio tem grande poder de animar a imaginação, é coisa já dita e redita. Em

uma pesquisa feita há alguns anos com centenas de crianças, por exemplo, pediram que

elas fizessem desenhos a partir de histórias ouvidas no rádio e na televisão. A versão

em rádio estimulou desenhos mais imaginativos: as crianças escolheram uma variedade

maior de conteúdos da história para representar graficamente, e incorporaram mais

conteúdos exteriores à história em seus desenhos1.O apreço pelo rádio fez parte também da vida de um dos pensadores modernos

mais apaixonados pela imaginação e pela narrativa oral, Walter Benjamin. Entre 1929

e 1933, o grande teórico cultural escreveu e apresentou programas semanais de rádio

para crianças, em Berlim e Frankfurt. Nesses programas de vinte minutos, ele con-

tava, como se estivesse conversando ao pé da lareira, casos como o da destruição de

1. Pesquisa relatada em Patricia Marx Greenfield, Mind and Media: The effects of television, video games, and computers. Harvard University Press, Cambridge, MA, 1984.

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Pompeia pelo Vesúvio, o do terremoto de Lisboa, e muitas anedotas surpreendentes

como esta, que se passa em Nova Orleans, no tempo da Lei Seca:

Dois rapazes negros andam pelo corredor de um trem que acaba de parar, escondendo sob a

roupa frascos de diferentes formatos, onde se lê em letras graúdas: “chá gelado”. Um viajante

faz sinal a um dos vendedores e compra um dos frascos, pelo preço de um terno, escondendo-

o em seguida. Outro faz a mesma coisa, depois mais dez, vinte ou cinquenta. “Senhoras e

senhores”, imploram os rapazes, “esperem que o trem volte a andar antes de beberem seu

chá”. Todos piscam o olho em cumplicidade... O apito soa, o trem parte, e os passageiros

levam os frascos aos lábios. Mas o desapontamento logo nubla seus rostos, pois o que estão

bebendo é mesmo chá gelado2.

Nem a TV nem a internet acabaram com o rádio, que se acomodou à primeira e

se acoplou à segunda, passando hoje muito bem, obrigado. No Brasil inteiro existem

hoje rádios nas escolas e comunidades, rádios de curto e longo alcance, rádios feitas

por crianças, por jovens, por velhos, rádios que falam todas as línguas que se fala no

Brasil, muito além do português. Tanto existem emissoras interativas on-line, quanto

emissoras captadas pela antena do radinho de pilha que o pedreiro escuta na obra, a

professora enquanto corrige provas em casa, e o motorista, no táxi.

Nem só de música, esporte e notícias se faz a programação dessas rádios. Em

muitos projetos, nas grandes cidades e vilarejos do interior, as vozes no rádio contam

histórias de vida, contos, poemas, fazem teatro com a textura da voz, experimentam

linguagens e temas contemporâneos. As histórias que o rádio conta abastecem de

emoções, arte e companhia os dias e noites das mulheres e dos homens em seus

momentos de intimidade ou solidão, falam aos românticos, aos visionários, e a todos

os que simplesmente buscam sintonizar seus semelhantes. O coração quente do rádio,

nos cantos das casas brasileiras, aquece o cotidiano de milhões, e é um dos nossos

grandes e nem sempre reconhecidos parceiros na aventura de povoar o cotidiano com

histórias contadas, e portanto com mais sentido na vida.

2 Em MEHLMAN, Jeffrey: Walter Benjamin for children: an essay on his radio years. Chicago: University of Chicago Press, 1984, p. 8.

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Leituras Inspiradoras

u Voz, presença, imaginação: a narração de histórias para crianças pequenas. Gilka

Girardello. In: Infância: imaginação e educação em debate. Celdon Fritzen e Gladir

Cabral. Papirus, 2007.

u Teorias do Rádio – Textos e Contextos. Eduardo Meditsch (org.). Insular, 2005.

u O corpo tornado voz: a experiência pedagógica da peça radiofônica. Mirna

Spritzer. Tese de doutorado em educação. UFRGS, 2005.

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oContando na telinha

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Acho que contar histórias é um exercício de intimidade. Uma relação pro-

funda entre o narrador, a história e o ouvinte. Tendo como elemento principal

a narrativa, o texto que é dito. A contação de histórias não necessita de imagens, de

encenações ou outros subterfúgios. Eles podem até fazer parte do trabalho, mas esses

elementos devem servir ao texto e somente a ele. O grande trabalho do contador é

dizer o texto de forma clara para que ele seja elaborado na imaginação do ouvinte.

Sou contador de histórias há muito tempo. Descobri recentemente que já tenho

18 anos de contação. Pra mim, parece que foi ontem. Mas já vivi várias experiências

interessantes durante esse tempo. Uma realmente interessante é a relação da contação

de histórias com a televisão. É curioso porque supostamente são linguagens que não

combinam: a televisão vive de imagem. Uma imagem que é mostrada. Não há muito

espaço para imaginação. O telespectador precisa ver e acreditar naquilo que é mostrado.

Uma vez li uma entrevista do autor de novelas Silvio de Abreu onde ele dizia

mais ou menos isso: “A realidade não precisa ser real, mas a teledramaturgia sim”. Na

minha opinião essa frase é bastante significativa do trabalho realizado nas emissoras.

Além disso, a televisão também precisa de dinamismo. As imagens não podem ficar

mais de dois minutos no ar. Os cortes são rápidos. As informações aceleradas.

Já a contação de histórias necessita exatamente do contrário. Precisa do tempo,

do olho no olho, da intimidade. As informações são lentas, não precisam ser “reais”

e necessitam da imaginação do ouvinte.

As emissoras de televisão desejam essa intimidade com o telespectador e tentam

colocar dentro do seu formato uma atividade que aparentemente não cabe nele.

[Augusto Pessôa]

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Dentro dessas tentativas de aproximação, participei de algumas reuniões com a

intenção de afinar os formatos. Certa vez tivemos uma reunião na Casa da Leitura no

Rio de Janeiro com um diretor e produtores de uma emissora de televisão. Tínhamos

gravado algumas histórias num estúdio e esse trabalho foi apresentado aos senhores

da emissora. Por coincidência, uma história que eu conto até hoje foi a primeira a

ser apresentada: “Uma aposta”. Uma narrativa cheia de lirismo e romance de Artur

Azevedo. A história tem aproximadamente oito minutos o que levou o diretor da

emissora à loucura. O tal senhor ficou extremamente exaltado. Elogiou a história e a

contação (para minha alegria), mas ficou espantado com a duração da história. Disse

que seria impossível realizar o trabalho com narrativas desse tamanho. A discussão

ficou acalorada e o projeto subiu no telhado.

Numa outra tentativa, fomos para um estúdio gravar pilotos de um possível pro-

grama sobre contação de histórias. O diretor pediu para que eu contasse uma história

para crianças. Escolhi “A rã e o boi”, uma deliciosa fábula. Conto essa história

utilizando uma bola de encher, soprando até ela explodir. Por já ter vivido outras

experiências frustradas com o veículo, contei a história de uma forma bem contida

numa tentativa de enquadrá-la no formato televisivo. Não deu certo. O diretor me

perguntou se era assim que eu contava normalmente. Respondi que não. Quando

conto, me movimento muito. Os gestos são largos e grandes. Tentei explicar que, da

forma que faço normalmente, não caberia na telinha. Mas o homem insistiu. E fiz.

Confesso que até exagerei um pouquinho. E, como eu já desconfiava, o diretor ficou

espantado e o projeto subiu no telhado também.

Depois de muitas tentativas, surgiu um convite de uma emissora estatal. Fiquei

mais animado principalmente porque, por ser estatal, a emissora não teria uma grande

preocupação com a parte comercial. Mas foi só ilusão minha. A proposta era gravar

vinte histórias que seriam apresentadas durante o mês de outubro numa homenagem

as crianças. As narrativas teriam no máximo três minutos e uma animação gráfica. Eu

faria a adaptação e a contação das histórias.

E aí, começaram os problemas: como adaptar as narrativas para o tamanho pro-

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posto? Optei por adaptar histórias curtas e fragmentos de histórias. Entreguei os tex-

tos e eles me pediram para diminuir o tempo para dois minutos. Fiz as novas adapta-

ções e... pediram para diminuir para um minuto. Um minuto?! Agora fui eu que tive

um espanto: Impossível!! Não conseguiria contar uma história em um minuto por

mais curta que ela fosse. Pensei em recusar e apresentei minhas alegações. Para minha

alegria, voltaram aos dois minutos, mas eu tinha que cronometrar as histórias para

que tivessem realmente o tempo exigido. Fiz.

Na época eu estava produzindo um espetáculo teatral baseado no conto popular

“O rei doente do mal de amores”. Como eram vinte histórias e eu estava enrolado

com a produção do espetáculo, pedi para que os textos adaptados fossem coloca-

dos num teleprompter. Eles aceitaram, mas aí veio a surpresa: seriam três câmeras!

Não tenho muito experiência com o veículo. Não sei bem como agir na frente de

uma câmera. Como ator, estou mais acostumado com o teatro. No teatro o gesto é

grande, a voz é empostada e precisa atingir a famosa velhinha surda que está sentada

na última fila. Como contador de histórias, dependendo do público, o processo é

semelhante ao do teatro. Com o diferencial que na contação de histórias o texto é

transmitido exclusivamente para o público.

E ainda tinha o problema das tais três câmeras. O tempo de mudança de uma

câmera para outra não tinha sido cronometrado. Resumindo: todas as adaptações

ultrapassaram o limite de dois minutos. Para meu alívio, eles gostaram do resultado

e não pediram para refazer as adaptações. Mas ainda tinha um problema: o olhar.

Quando você vira de uma câmera para a outra, o seu olho vai antes do que seu

rosto. Já imaginou? Nunca tinha pensado nisso! Precisava controlar meu olhar que,

teimoso, insistia em ir antes do meu rosto. E também tinha que imaginar algumas

figuras que seriam colocadas posteriormente pela computação gráfica. Como se eu

interagisse com essas figuras. Foi difícil. Principalmente porque não tinha um único

olhar para aquecer a contação. Somente o frio olho da câmera. Gravei em três dias.

Três manhãs para ser mais preciso. Não podia me mexer muito e tinha que estar com

uma “cara boa”. Essa era a pior parte. Como estava produzindo um espetáculo, tinha

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muito trabalho. Várias vezes o diretor chamou a maquiagem para esconder minhas

olheiras. Realizei o trabalho e fiquei esperando o resultado final com os desenhos da

computação gráfica. Não tinha muita certeza de como ficaria. Vi alguns trechos, mas

não o resultado completo. Sinceramente, desconfiava de que não iria dar certo.

No início de outubro, quando já imaginava que os programas nem iam mais

passar, realizei um trabalho no estado da Bahia, na cidade de Feira de Santana. Um

dia estava no hotel e liguei a televisão. Por uma feliz coincidência o aparelho estava

ligado exatamente na tal emissora e... vi o programa! Era um tipo de trabalho que

eles chamam de “interprograma”. Não tinha um horário certo para passar. Era trans-

mitido durante a programação, entre os programas fixos. Tive a sorte de ligar e dar

de cara comigo na televisão contando uma história. Lembro da narrativa: João mais

Maria. Era um fragmento do conto popular. Terminada a transmissão a sensação foi

boa. Boa e estranha.

Diferente do que eu desconfiava, o trabalho funcionou. Mas de repente me dei

conta de que o programa seria transmitido para o Brasil todo. Durante um mês eu

entraria, sem pedir licença, na casa das pessoas, para contar uma história. Mas tive

uma satisfação: a história estava ali! Não plena, pois faltava, no momento em que o

trabalho foi gravado, a figura do ouvinte. O espectador viria depois e eu não podia

me relacionar com ele. Mas mesmo assim, de alguma forma, a história alcançou o

seu objetivo. A animação não era excessiva e estava ali para realçar o que era dito. A

estrela continuava a ser a narrativa.

O trabalho, que deveria durar apenas o mês de outubro, foi estendido. Um dia

recebi uma ligação da produção da emissora falando do sucesso do programa e per-

guntando se eu me incomodava que ele se estendesse por mais um mês. Aceitei. No

final de novembro nova ligação com pedido para estender o trabalho e assim foi. Os

programas ficaram no ar por quase cinco anos. Por causa de problemas financeiros

(a televisão era estatal, lembra?) dos vinte programas, só treze foram finalizados. Mas

foi um sucesso. Mesmo com o fim das transmissões, até hoje sou parado na rua por

desconhecidos que perguntam sobre o programa e quando ele vai retornar. Tive outras

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experiências com a telinha contando ou lendo histórias. Mas, com certeza, a mais

bem sucedida até agora foi a dos “interprogramas”. Atribuo esse sucesso às histórias.

Ao poder que essas narrativas exercem e sempre exerceram sobre o ser humano. Inde-

pendentemente do formato, a história ainda consegue sobreviver e encantar.

Leituras Inspiradoras

u Contos populares do Brasil. Silvio Romero. Itatiaia.

u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Ediouro.

u O folclore no Brasil. Basílio de Magalhães. Imprensa Nacional.

u Guardados do coração – memorial para contadores de histórias. Francisco

Gregório Filho. Amais.

u Literatura oral para a infância e a juventude. Henriqueta Lisboa. Peirópolis.

u Como um romance. Daniel Pennac. Rocco.

u Gramática da fantasia. Gianni Rodari. Summus.

u As raízes históricas do conto maravilhoso. Vladímir Propp. Martins Fontes.

u A arte de ler e contar histórias. Malba Tahan. Conquista.

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oCinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na

fogueira da sala escura

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Meus avós eram da roça e eu passava todos os finais de semana ou férias lá. Me

lembro bem que minha avó realmente acreditava no Saci, assim como as pessoas

da região. Vejam bem, não era um folclore, as pessoas tinham visto, tinham tido ou

conheciam quem tivesse vivido alguma experiência com o Saci. É diferente dos adesi-

vos em carros do “eu acredito em duendes”. Não era uma questão de atitude, mas

uma realidade próxima. Meu avô nasceu em 1905, ele viu a cerca chegar ao nordeste,

e meus pais, que são de 1934, nasceram num país rural e participaram do processo

de urbanização do país. Hoje temos um Saci domesticado e tratado de forma lúdica,

não poderia ser diferente, vivemos num país moderno, urbano, virtual, digital e glo-

balizado. Para meus avós a escuridão do campo à noite, o som do vento, das corujas

piando no escuro, os insetos, as formas das árvores sob a lua, tudo isso possibilitava

uma sensação de obscuridade com relação à noite e aos entes que por ela corriam. A

noite urbana é diferente, cheia de luzes, sons de pessoas, carros, música, etc. Mas se

o Saci nos parece uma fantasia distante, por outro lado o E.T. de Varginha existe, ah

existe, sim! Existe porque eu conheço gente que viu o hospital cercado pelos soldados

da aeronáutica e que conhecem as meninas que os viram, lembra o segredo de Fátima,

né? Ou seja, tirando à parte a existência ou não desses mitos, a necessidade humana

de vivenciá-los ainda persiste. Graças a Deus! Por isso mantenho meu emprego. Mas

como se diz em física: na natureza nada se cria, nada se perde, o mito se transforma!

Se meu avô contava suas histórias de caçada de onça, se minha avó contava sobre o

cangaço e Sinhô Pereira, ou Neco Valõe, Lampião, Luiz Padre, Corisco... hoje, quan-

[Paulo Siqueira]

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do vou às favelas fazer algum documentário, os meninos me contam das histórias

do Caveirão, do Bonde que invadiu tal comunidade, do traficante que enfrentou o

helicóptero Águia da polícia, do Bope, da CORE... Ou seja, persiste a necessidade de

contar e ouvir histórias.

Epa! Aí eu posso ganhar dinheiro! O cinema é hoje um griot universal, a relação

candidato/vaga no vestibular das faculdades de cinema se aproxima das de medicina.

As pessoas querem deixar alguma coisa para o mundo, querem deixar histórias e seus

pensamentos. Se meu avô andava a cavalo, meu pai anda de carro, eu uso a inter-

net. Se meu avô contava histórias na fogueira com a viola, meu pai lê e vê televisão,

eu uso a internet. Minha geração (tenho 37) ainda foi alfabetizada antes da grande

rede. Vejo minha sobrinha de cinco anos, que nem sabe ler, mas já sabe navegar, e

imagino onde isso vai dar. Quer dizer: fizeram estradas, alguém um dia inventou o

carro, fizeram o projetor de imagens em movimento, alguém inventou o cinema. Taí

a internet... Eu ainda tive a referência rural, minha sobrinha só terá a audiovisual.

A minha relação com o tempo, que já é totalmente diferente da dos meus avós, será

muito mais complexa com minha sobrinha. A velocidade com que minha sobrinha

absorverá informação e portanto a velocidade contra a qual eu tenho que manter

sua atenção, são os fatores X da equação. Para o homem rural, o tempo se apresenta

cíclico, com as colheitas se repetindo, as estações, etc. Para o urbano do século XX,

o tempo industrial-linear, como a linha de montagem de uma fábrica, onde o metal

entra e sofre o processamento, até sair um carro do outro lado (assim foram escritos

os roteiros da grande maioria dos filmes ao longo do século). Pra minha sobrinha

virtual, o tempo digital é elíptico/polifônico, ou seja, ela pode estar pesquisando um

assunto numa wikipedia e se deparar com um hiperlink que a levará para universos de

interesse totalmente diferentes, e ela pode voltar ao assunto original ou seguir em suas

aventuras virtuais. Pior! (ou melhor), são várias páginas da internet abertas ao mesmo

tempo, junto com os sites de relacionamento, os messengers, a TV ligada, ouvindo

música... Tudo isso reestrutura em sua cabecinha digital-multimídia a relação com os

personagens ou heróis que iremos apresentar.

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O cinema é uma indústria cara, são investimentos de milhões para a realização

de um filme. Quando se chega a estas cifras, o objetivo econômico é um fator pre-

ponderante, sim! Não podemos nos enganar em achar que os filmes (claro que em

regras gerais) são regidos somente por princípios artísticos. Um filme tem o dever de

gerar lucro, ou seja, produtores tentam minimizar os riscos de um fracasso de bilhe-

teria. Opiniões ideológicas à parte (afinal é muito fácil pedir coragem com o pescoço

alheio), ao longo deste século cinematográfico, foram estudadas regras de construção

de roteiros que potencializam o prazer em se assistir a um filme. O cinema não pos-

sui o recurso presencial simultâneo. Com os recursos de que se dispõe hoje em dia

(internet, TV digital, TV por celular, jogos digitais), pode-se trabalhar uma intera-

tividade muito interessante, mas provavelmente dentro de um processo individual,

dificilmente numa experiência coletiva num futuro próximo. Porém, temos recursos,

como apresentação do primeiro corte para uma plateia experimental, etc. Mas até se

chegar ao primeiro corte, já foram gastos milhões, portanto na compilação do roteiro,

onde os gastos são ainda pequenos, precisamos garantir o máximo de eficiência.

Os produtores de cinema procuram ficar antenados às necessidades da plateia em

potencial. Hoje em dia os filmes americanos sobre a guerra ao terrorismo, superam

em muito os sobre a guerra do Vietnã. No processo de elaboração do roteiro se bus-

cam bússolas em pensadores como Aristóteles, Syd Field, Gabriel García Márquez,

Christopher Vogler (o preferido dos roteiristas de hoje em dia, que na verdade adapta

Joseph Campbell para o cinema e que trabalha não somente a estrutura macrodra-

matúrgica temporal do roteiro, mas principalmente os arquétipos dos personagens e

da jornada mítica).

A partir do momento em que se inventa o trem, a questão do tempo para o

homem se torna fundamental. Percebe-se a importância do fuso horário, por exem-

plo. A velocidade de locomoção humana vai evoluindo e hoje, com a internet, temos

tempos simultâneos, onde um acionista da bolsa de valores no Brasil investe na bolsa

de Tókio on-line.

Segundo Hitchcock, que além do grande cineasta, foi um pensador teórico do

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cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo

de montagem de um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo

contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do des-

montador da bomba, do mostrador de tempo, das vítimas, o som... estes cinco segun-

dos podem durar mais de um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem de tempo

de anos, se faz através de um corte de uma cena pra outra, numa fração de segundos.

Juntando todos estes pensadores, de Aristóteles a Vogler, muito me encanta o

conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psico-

logias dos personagens e do espectador.

Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o

cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São modelos que irradiam, em mão

única, o conteúdo ao espectador que só tem o poder de mudar de canal, ou sair da

sala, mas não pode interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso de

telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no

escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos

hipnotiza, né?), contando e ouvindo histórias, onde a via de interlocução é de mão

dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja de maneira mais agressiva, inter-

ferindo, emendando, contando também, ou de maneira mais sutil, com seu olhar,

sua reação ou sua concentração.

Quando fui realizar o filme Histórias me deparei com o seguinte problema: Como

fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imate-

rial? Porque num documentário sobre uma cidade, uma fábrica, ou uma pessoa, há o

objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos,

pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto,

pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo de imaginação

proposto. Uma peça de teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa

dá ao ouvinte o papel criador de imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhece-

dor teórico do assunto, afinal sou diretor de vídeo/cinema, o que sabia sobre contar

histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia

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imaginar que alguém vivesse disso, ou estudasse o assunto com tanta profundidade.

Mãos à obra. Fui contratado, tinha que me virar. Primeira conclusão óbvia: eu

não estava realizando uma narrativa oral, eu estava realizando um filme. Graças a

Deus! Isso muda tudo. Era um filme sobre a narrativa oral, mas era um filme, com

suas regras próprias da cinegrafia, seus códigos e truques. Ah sim, não acreditem os

contadores que nós do cinema, só porque não temos o recurso presencial simultâneo

– o que permite ao ator teatral ou ao contador sentir a plateia e assim utilizar inter-

jeições, mis-en-scènes, improvisações, olhares e até (e por que não?) modificar a história

– não somos capazes de manipular (no bom sentido, né gente?) o nosso público.

Senti-lo e com ele interagir.

O meu primeiro privilégio enquanto diretor é justamente o de ser o espectador

número um do meu trabalho. Enquanto estou editando o filme, eu sou também

plateia. Gente, não esqueçamos que o meu objeto é totalmente diferente do de um

narrador oral. A minha matéria-prima são o tempo, as imagens e os sons que eu

produzo. Imagens captadas por uma câmera, onde eu escolho o enquadramento, o

que significa que são imagens descritivas mas também críticas da cena. É como se

eu escrevesse um livro, onde eu leio e releio o quanto for necessário ou possível (há

um fator econômico limitador envolvido no processo) a minha obra. Mas se a escrita

é um ato individual (como conclui Boniface Ofogo) no filme Histórias, o cinema é

uma experiência coletiva, o que o difere em muito da televisão, do computador, da

leitura (se alguém lê em voz alta para uma plateia, o livro deixa de ser o veículo de

interlocução, este papel cabe ao leitor, sendo o livro ali, sua matéria-prima). O cinema

contém em si um processo ritualístico e também da oferta do mito. Uma plateia ci-

nematográfica respira junto, criam-se laços de sintonia, onde, quando um ri, contagia

os outros, é como num berçário, onde um bebê dispara o choro coletivo. A sala de

cinema remete às fogueiras do passado, toda escura, as chamas bruxuleiam da tela,

pra onde se voltam todas as atenções. Esse elemento é fundamental na compilação de

um roteiro que vai pro cinema ou pra televisão. Nesta última, a atenção é disputada

com a tensão do dedo sobre o controle remoto, o parente na cozinha, o vizinho na

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janela, o telefone que toca, a criança que brinca, o cachorro que late, etc.

Portanto, o cinema retoma o ritual da fogueira, (Opa! Olha um ponto de conexão

aí.) o ritual de sociabilidade. Quando vamos ao cinema, geralmente buscamos no

jornal o filme que nos chame a atenção, telefonamos para alguém, amigo, namoro,

paquera, etc. Combinamos o encontro. Antes de sairmos, tomamos banho, colo-

camos uma roupa melhorzinha, compramos o ingresso. Compramos a pipoca, con-

versamos até que comecem os trailers, e logo nos calamos para a vivência do filme.

Após este, vamos a algum bar ou restaurante e completamos nossa experiência social.

Hoje em dia, quando as ofertas de mídias são cada vez mais individuais, como TVs

por celular, internet, etc. O cinema exerce seu papel de oferecer histórias através dessa

experiência social.

Por tudo isto, o cinema potencializa o chamado processo de “Desligamento Vo-

luntário da Descrença” (vamos chamar de D.V.D.?), este é um acordo tácito entre o

espectador e o produtor da obra, onde o espectador se dispõe a mergulhar na vivência

do filme, esquecendo que aquilo é uma representação e realmente acredita no que vê.

Portanto se fazem ridículos certos questionamentos como, por exemplo, alguém que

contesta a inverossimilhança do super-homem não ser reconhecido quando coloca os

óculos e se disfarça de Clark Kent. Ora, se nós acreditamos que o sujeito voa, as balas

não penetram seu corpo, tem visão laser, ficarmos nos questionando com relação aos

óculos?!! Assistir ao super-homem só é possível por conta do D.V.D. A partir disto o

cinema nos proporciona algo fundamental, o mito e seus arquétipos. A possibilidade de

entrarmos no mundo do fantástico. É de um valor inestimável.

Nem todo contador tem à mão o recurso da fogueira, mas eu, através da sala de

cinema, tenho. Voltando ao “Histórias”, fui buscar dentro das várias culturas que

se apresentaram pra mim, os diferentes modelos de tempo, trabalhei numa macro-

estrutura de roteiro linear, partindo no início do filme das culturas pré-orais, até

os dias atuais, nesta cultura pós-moderna-virtual-multimídia-digital, mas usando o

tempo cíclico e elíptico ao longo dos vários momentos do filme. E mais, o tempo

do narrador é totalmente diferente no cinema, portanto editei as histórias narradas,

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cortando partes, dando dinâmicas a outras, no meu direito de diretor do filme. Fui

em busca dos personagens com seus arquétipos. Estes últimos me eram narrados e

eu não queria apresentá-los, mas manter o direito do meu espectador de imaginá-los.

Então, bruxuleei as imagens dos contadores em suas narrativas (afinal sua presença é

o cerne da narração) por entre imagens que não descreviam o que se contava, mas que

criticavam o conto (no sentido de construírem junto, ou desconstruírem, afirmarem,

potencializarem ou contestarem). Procurei trabalhar através dos recursos de edição,

sonorização e pictóricos, a interação com a plateia, trabalhando suas emoções ou

abstrações, de acordo com o objetivo de cada cena ou assunto abordado. Procurei que

o filme contasse sua história dentro das histórias contadas e das teorias levantadas,

assim como as experiências de vida relatadas.

Assim procurei que o filme Histórias cumprisse os seus papéis: o papel de sociabi-

lidade, levando gente ao cinema, o papel de trazer o mito e os arquétipos através dos

personagens narrados, o papel de discutir o tema do contar histórias, seja através da

narração, da literatura, de educar ao esclarecer sobre o assunto, o papel de divulgar o

assunto, de seduzir para “a causa”, de divertir e entreter.

Cheguei à seguinte bela e triste conclusão: a tradição oral tem sua maior força

onde é sua maior fraqueza, pois quando uma pessoa morre, leva consigo seu universo

de imaginação e uma biblioteca se queima aqui na Terra. Aí, não há livro que registre,

vídeo, filme... Talvez, a partir da captação audiovisual eu consiga reter um pouco mais

de seu jeito ou interpretação do que através da escrita, mas seu universo interior,

ainda não há técnica capaz de preservar.

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Leituras Inspiradoras

u Documentário “Histórias”. Paulo Siqueira. Ópera Prima.

u A poética. Aristóteles. Nova Cultural.

u Hitchcock / Truffaut: entrevistas. François Truffaut. Companhia das Letras.

u Esculpindo o tempo. Andreai Tarkovsky. Martins Fontes.

u A jornada do escritor. Christopher Vogler. Ampersand.

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oBlog, uma janela para o mundo

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Eu conto histórias desde muito moleque, se bem que custei a me dar conta disto.

Lembro que costumava deixar minha prima Mônica intrigada e de boca aberta

com tantas invencionices que saíam da minha mente pra lá de fértil. Afinal eu era o

primo mais novo, mas nestas horas a diferença de idade pouco importava. Na verdade

eu era só uma criança que não parava de pensar um segundo sequer, observava tudo

e a todos, criava as situações mais absurdas e tinha sempre uma ideia nova na cabeça.

Minhas tias diziam que eu gostava de inventar moda. Concordo. Por outro lado, tenho

um amigo que diz que eu tenho a mente voltada para o mal. Discordo totalmente.

Com os amigos da rua em que eu morava, no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro,

não era diferente. Eu era o que se pode chamar de arteiro. Não que eu fosse um

moleque levado, agitado, daqueles que não parava quieto. Muito pelo contrário. Mas

eu gostava de inventar arte e volta e meia deixava a vizinhança de cabelo em pé.

Até hoje nunca descobriram quem realmente jogava ovos na casa da vila ao lado do

meu prédio. Se desconfiarem de mim, continuarei negando. Já o caso do açougue,

este todos souberam. Houve também uma época em que as meninas da minha rua

começaram a receber cartas anônimas. Eram cartas onde eu me declarava apaixo-

nado, cheias de versinhos simples e rimas baratas. Eu me divertia mesmo era vendo

a cara das mães das meninas que, ao receberem as tais cartas, desciam para tentar

adivinhar quem seria o autor desta ou daquela. Muito provavelmente eu fui o respon-

sável pela maioria delas. Ou de todas, sei lá. Mas eu era precavido. Em meio aos versos

e rimas, escrevia um “apaichonado“, assim com ch mesmo, e todas as vítimas acaba-

[Marcio Allemand]

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vam desconfiando de um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas

carregava a má fama de ter uma certa dificuldade com a nossa ortografia. As meninas

nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu

não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo.

Anos mais tarde, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio –

cobrava para escrever cartas de amor para as namoradas de alguns amigos meus. Não

cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verdade eu nem

gostava de escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O

engraçado foi quando uma das namoradas de um destes amigos foi estudar no mesmo

colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar

no fundo da sala. Não deixava a menina se relacionar com ninguém e parou de falar

comigo. Quase um Cyrano de Bergerac.

Ao mesmo tempo que escrevia cartas de amor para a minha namorada ou para as

namoradas dos amigos, eu também gostava de escrever poesias e pequenas histórias.

Até hoje guardo com carinho um caderno com meus primeiros escritos. Ganhei da

Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado

conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor de

laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este caderno acompanhou toda a minha

trajetória na tentativa de me tornar escritor e aprendiz de poeta. Ainda não existia

internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e de difícil

acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida

cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acom-

panharmos a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como

disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios de comunicação, a linguagem,

a oralidade, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda

quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo caderno.

Durante muitos anos este caderno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da

sua existência. Ficava escondido. Só na faculdade resolvi revelar que ele existia e tudo

o que estava ali escrito virou material de um trabalho que tive de entregar num dos

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primeiros períodos. Tirei dez e minha autoestima foi às alturas. Meus amigos também

gostaram e para muitos deles foi uma surpresa saber que eu escrevia poesias. E escre-

via no meu caderno. Computadores ainda eram raros.

Lá se vão quase duas décadas e desde então eu perdi a conta das poesias e das

histórias que escrevi em todos estes anos. Formado em jornalismo, já fiz de tudo na

área da comunicação social. Hoje sou repórter de um grande jornal, mas já experi-

mentei o audiovisual, fiz uma centena de vídeos institucionais, alguns curtas-metra-

gens, sabe-se lá quantos roteiros e um documentário que me levou a Cuba. Foi com

este documentário, por sinal, que pude conhecer mais de perto o universo dos conta-

dores de histórias e pude me dar conta da importância da tradição oral para o desen-

volvimento da humanidade. Entre as poucas certezas que eu tenho nesta vida, uma é

que é primordial preservar nossas histórias. E contá-las a quem quer que seja. Porque

uma boa história faz bem para todo mundo.

Atualmente mantenho um blog chamado “Eu sei cozinhar” (www.euseicozinhar.

blogspot.com), onde as minhas poesias, memórias e os fatos do cotidiano servem de

ingredientes para incrementar a receita do que eu escrevo. Se a cozinha é lugar de

experimentar novas receitas, o meu blog é meu lugar de experimentação. Eu tenho

a sorte de ter alguns leitores fiéis, ou seguidores, como são conhecidos os leitores de

blog, que fazem lá seus comentários, sejam críticas ou elogios. É uma ferramenta que

me deu novo fôlego e estímulo para continuar a escrever. Se antes o meu caderno

ficava escondido, fechado numa gaveta, meu blog é literalmente um livro aberto.

Qualquer um pode ler, esteja onde estiver.

E isso me fascina na comunicação virtual. É um terreno fértil e promissor, pois

nada mais estimulante do que saber que seus textos, suas poesias, suas histórias, estão

na rede e que qualquer pessoa de qualquer parte do mundo pode ter acesso a elas. E

me fascina mais ainda poder interagir com estas pessoas, trocar ideias, fazer amigos

do outro lado do mundo e então perceber que esta é a verdadeira globalização, a glo-

balização das palavras e da perpetuação das histórias. Nestas horas eu volto ao caderno laranja de capa dura que ficava escondido. Era o

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meu maior segredo e só eu sabia o que nele estava escrito. Eu era o meu único leitor

e foi assim durante muitos anos. Até que a tal professora mandasse que seus alunos

escrevessem um livro. O meu já estava pronto. Do fundo da gaveta surgia um caderno

com as poesias de um menino. Este menino cresceu e nunca mais parou de escrever.

Hoje, com mais de 40 anos, não para de ter ideias e continua pensando no que vai

fazer quando o futuro chegar.

E se o futuro só chegar quando eu tiver 80 anos, eu vou querer acompanhar as

novidades de perto. Quiçá estar à frente delas. Seja plugado na internet ou no que

mais inventarem até lá. Por ora sigo falando a mesma língua que meus filhos – e daqui

a pouco meu neto – e transito muito bem nas tais redes sociais mais conhecidas atu-

almente. É engraçado e muito interessante ver como as novas gerações têm facilidade

com a linguagem da web. Tenho a impressão de que daqui a pouco os bebês já sairão

das maternidades com um tablet nas mãos. Se isto é bom ou ruim, eu não sei. O fato

é que estamos on-line, ligados no mundo via fibra ótica, escrevendo, lendo, buscando

informação e diversão. Tudo ao mesmo tempo agora. Num mundo que parece estar

a cada dia mais veloz, onde o que acontece lá do outro lado do planeta em poucos

minutos vira notícia do lado de cá.

E eu adoro fazer parte de um mundo que vem derrubando suas barreiras na

mesma velocidade em que a comunicação se fragmenta. É neste tipo de futuro que

acredito. Enquanto este mundo corre, minha imaginação voa e eu escrevo tudo. Esta

é a história que eu conto.

Leituras Inspiradoras

u We’ve got blog: how weblogs are changing our culture. Rebecca Blood. Perseus

Publishing.

u Blog: understanding the information reformation that’s changing your world.

Hugh Hewitt. Paperback.

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oPaiquerê Piquiri Fiietó, um experimento com

as linguagens

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Eu me lembro do fogo. Eu me lembro das histórias ao redor da fogueira. Lembro-me

das histórias que falavam do fogo. Imagem que salta da memória – fogo crepitando.

Eu me lembro da água, me lembro de histórias contadas à beira do rio. Vejo

mulheres lavando roupa e cantando histórias. A memória traz a imagem de águas

rolando, cachoeira, rio com pedras.

Eu me lembro das histórias ao pé da cama, preparando o sono. Eram histórias

de amor. Não lembro muito bem o nome. Ah! É tão bom dormir depois de ouvir

histórias. Imagem mítica – noite bem escura com lua estreita pendurada no céu.

Estrelas despencando sobre a terra.

Eu me lembro das histórias no computador. Tem dessas também. Clica, arrasta, mini-

miza, maximiza, e de repente surge outra forma de se contar histórias. Imagem no tempo

presente – multimídia colorindo a tela anuncia a chegada de uma contadora virtual.

Assim começava o espetáculo Paiquerê Piquiri Fiietó que apresentei no teatro do

Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, durante o outono de 2009. Quase 7 mil pes-

soas, 80% de crianças passaram por lá. Resultado da investigação sobre as possibili-

dades da narração oral de histórias no século XXI. Antes disso, já vinha pesquisando

como as histórias podem se apresentar no meio digital. Esse trabalho originou quatro

CD-ROMs: Contos e encantos dos 4 cantos do mundo; Lendas brasileiras; Nos campos do

Paiquerê (a referência para o espetáculo) e Formosos monstros, um game, um livro virtual

que revisita os monstrengos da literatura universal.

São tantos os cenários, tantos suportes para um texto literário se materializar.

[Cléo Busatto]

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Do primeiro movimento, ao redor da fogueira, onde soou pela primeira vez a voz de

um contador de histórias, até a imersão no ciberespaço, onde pode soar a voz de um

contador do tempo de agora, se passaram séculos. Porém, o que sustenta essas ações é

a história que, enquanto sujeito, engendra o encantamento necessário para nos emo-

cionar. E na essência, a palavra que desperta a memória, reaviva lembranças e afetos,

propõe, instiga, efetiva vivências.

O século XXI é assim. Sugere a hibridez das linguagens. Em Paiquerê Piquiri Fiietó

foi assim. O presencial se fundia ao digital e nos mostrava como duas linguagens

distantes no tempo podiam gerar uma terceira, que trazia consigo a marca da contem-

poraneidade. Atuei na interface entre a arte e as novas tecnologias. Ao mesmo tempo

em que me utilizei de sofisticados recursos digitais, me apropriei da velha arte de con-

tar histórias, técnica ancestral que chega ao século XXI agregada a valores estéticos,

significados e significantes distintos. É dessa forma que em cena ocorreu um diálogo,

em tempo real, entre o narrador presencial e o narrador virtual.

Ora, se durante a contação presencial, o espectador se vê envolvido pelos senti-

mentos suscitados pelo sujeito-contador, na contação digital há um distanciamento

que permite ao sujeito-ouvinte comentar a ação e senti-la sob outro ângulo, não

menos envolvente, apenas distinto. Pensar a narração oral de histórias no século XXI

é pensar nos meios disponíveis para que se dê a fruição desse conto. Supõe a reflexão

sobre novas mídias e sobre o conceito de arte interativa. É de se considerar que a cri-

ança da atualidade encontra-se envolvida num imaginário construído por produções

que utilizam tecnologia de ponta e que chegam até ela através da internet, softwares,

blogs, games, redes de bate-papo. São os novos códigos geradores de poéticas. Novas

leituras e outros tantos sentidos. A hibridez do meio e dos processos expondo dife-

rentes significações.

E no Paiquerê Piquiri Fiietó o espetáculo foi se fazendo, devagarinho, apresentando

um personagem aqui, uma ação cênica acolá, revelando como a linguagem teatral

pode dialogar com a digital. A atriz cedia lugar à contadora de histórias que, de

posse da palavra, apenas sugeria e apresentava os personagens e as ações. Não mais

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representava um outro. Enquanto isso, nos espaços de projeções (três bolas de dife-

rentes tamanhos e dispostas numa diagonal direção frente-fundo do palco) surgiam

imagens, como se fossem faíscas da memória ficcional dos personagens que falavam

no palco: a narradora, o xamã, a criança, a velha, a gralha branca. As imagens intera-

giam com a narradora, as mãos que ocupavam o primeiro plano na tela era um corpo

expressivo em cena. Num exercício lúdico, eu, autora, atriz-narradora, me permitia

viver essas criaturas e oferecia meu corpo e minha voz para que os personagens se

materializassem, consciente de que, estivesse a contadora no palco ou na tela do com-

putador, era ela, a palavra falada, a palavra querida, a palavra revelada que criava a

história, fundava a magia e fazia um outro mundo acontecer.

Leituras Inspiradoras

u O livro depois do livro. Giselle Beiguelman. Peirópolis, 2003.

u A arte de contar histórias no século XXI – tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.

Vozes, 2008.

u Contar e encantar – pequenos segredos da narrativa. Cléo Busatto. Vozes, 2007.

u Cibercultura. André Lemos. Sulina, 2002.

u Máquina e imaginário. Arlindo Machado. Edusp, 2001.

u Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Janet H. Murray. Itaú

Cultural: Unesp, 2003.

u Cultura das mídias. Lúcia Santaella. Experimento, 1996.

Clé

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tto

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oDuas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos

Role-Playing Games (RPG)

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Aristóteles ensina em sua POÉTICA que uma história tem início, meio e fim. Todas as par-tes igualmente importantes para a representação da ação. Devemos lembrar, porém,

que todo ponto de chegada é novo ponto de partida. E nos caminhos da vida, histórias se entrelaçam, como neste texto, escrito a quatro mãos. Quem começa é o Carlos.

Em minha jornada, a estrada acadêmica que percorri foi talvez pouco usual,

com uma graduação em Administração, um mestrado em Design e um doutorado

em Letras (Literatura). Há, porém, um elemento em comum, são todas áreas que se

propõe a serem interdisciplinares, da prática administrativa à práxis estética educativa

do Design Didático ao saber com sabor da Literatura. É, pois, um sujeito mestiço que

vos fala pela escrita. Biologicamente, descendendo pela mãe de russos e pelo pai de

negros e índios. Culturalmente, carioca de nascimento e criação, filho de pai paulista

do interior e de mãe americana, mas sem inglês do berço devido à influência da avó

paterna, a língua materna da mãe foi aprendida fora do lar para ao lar retornar. A mes-

tiçagem é então assumida como posição, mais que condição, nesta vivência escrita.

Ao viver acadêmico, soma-se um viver prático desde 1992 escrevendo, publicando

e divulgando os Role-Playing Games (RPG) como livros de narrativa para o entreteni-

mento, tendo como primeira obra o RPG Desafio dos bandeirantes, primeiro RPG a

abordar a história, cultura e folclore do Brasil. Em 1998, comecei a jornada de apli-

cação do RPG à educação em escolas de Ensino Fundamental, principalmente para

História e Geografia. O retorno à academia se deu em 2002 e 2003 com o mestrado

[Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho]

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em Design, utilizando histórias interativas para auxiliar crianças surdas a adquirir por-

tuguês oral e escrito, além de desenvolverem criatividade. O doutorado em Literatura

trouxe o aprofundamento da pesquisa, na busca de se verificar se as histórias interati-

vas podem contribuir para a formação de habilidades de leitura e escritura críticas em

adolescentes do Ensino Médio.

Eu conheci as histórias dos Role-Playing Games com amigos, vivenciando aventuras

em tardes divertidas. Como observou o autor de RPGs estadunidense Ed Greenwood,

as sessões de RPGs são basicamente sobre criar memórias de momentos divertidos

com seus amigos. Divertir-se criando histórias interativamente, cooperativamente,

compartilhando fantasias.

Basicamente, no RPG, os praticantes criam suas personagens que participam de

histórias parcialmente contadas por um Narrador (também chamado de Mestre). No

livro (ou qualquer que seja o suporte) de RPG se encontra parcialmente descrito um

cenário, no qual se passarão as histórias. As personagens criadas pelos “jogadores”

e pelo Narrador serão coerentes com o cenário: bandeirantes e índios num cenário

de Brasil colonial; cavaleiros e alquimistas num cenário de Europa Medieval, etc. A

história começa a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” são livres para deci-

dir o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos da história são

frequentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verdade uma história

contada em conjunto pelas interações de seus praticantes, Narrador e “jogadores”.

Um dos temas mais usuais em RPG, devido a seu público ser majoritariamente

formado por adolescentes do sexo masculino e sua origem estadunidense, é o da

fantasia medieval. Este é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário em que

existem povos de diferentes “raças” (normalmente humanos, elfos, anões e hobbits/

halflings/pequeninos) em que heróis, como cavaleiros, magos, sacerdotes, bardos e

ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. A magia e os seres sobrena-

turais são presentes. O ambiente costuma ser inspirado no imaginário da Idade

Média europeia, com castelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragões, etc. Foi o primeiro

tipo de cenário dos RPGs e até hoje é um dos mais populares. Atualmente há uma

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grande diversidade de cenários (fantasia; terror; histórico; aventura etc.) e o RPG pas-

sou a ser aplicado para outros fins além do entretenimento. Surgiram outros termos

como “Narrador”; “História”; “Crônica”; etc., em clara “contaminação” do gênero

por reflexos da Teoria da Literatura.

Depois de jogar, vivenciar, as histórias interativas, nós quisemos criar um cenário

e, atrevimento juvenil, publicá-lo para compartilhá-lo com pessoas que nem conhecía-

mos. Buscando valorizar nossa brasilidade, criamos o RPG Desafio dos bandeirantes,

apresentando a fantasiosa “Terra de Santa Cruz” inspirada no Brasil de meados do

século XVII, onde os jogadores poderiam vivenciar personagens, como jesuítas, ban-

deirantes, pajés, quilombolas, feiticeiros e lidar com seres mágicos, como iaras, curu-

piras, sacis, lobisomens, boiúnas, boitatás, dentre outros. Nesse processo, conheci a

ilustradora, artista plástica, designer gráfica, pesquisadora, que viria a se tornar minha

esposa: Eliane Bettocchi. Iniciou-se uma parceria de 14 anos, cada vez mais profunda

e apaixonada.

A experiência com o RPG Desafio dos bandeirantes nos despertou para o potencial

do RPG como interface didática, pois não foram poucas as pessoas que nos disseram

que passaram a se interessar por História do Brasil depois de jogarem num cenário nela

inspirado. Parti então para as experiências com alunos do Ensino Fundamental.

Em 2002 tive a oportunidade de trabalhar com crianças surdas em meu mestrado,

nele as histórias interativas foram usadas para auxiliar as crianças a adquirir lingua-

gem escrita e oral em português e auxiliá-las a fixar a Libras (Língua Brasileira de

Sinais). Uma história interativa foi roteirizada e criada em dois suportes: um website,

para as atividades de fonoaudiologia, e um flanelógrafo para a Educação Infantil.

O website pode ser visitado em http://www.historias.interativas.nom.br/zoo

O flanelógrafo se constituiu em uma flanela presa ao quadro negro, as figuras

eram feitas de papelão com velcro colado no verso. A atividade era dinamizada por

um contador de histórias e as crianças manipulavam as figuras manualmente. Foi

interessante observar que em alguns momentos a interatividade alcançada era maior

no flanelógrafo porque as crianças tinham maior espaço para cocriarem a história

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com o contador de histórias, em vez de se limitarem a escolher entre as opções de

desenrolar de história apresentadas no website.

Em 2004, a oportunidade no doutorado foi atacar o problema do baixo desem-

penho na leitura e escrita de adolescentes alunos da rede pública. Educadores e escri-

tores veem a necessidade de “explicadores do escrito” em postos de atendimento públi-

co e o fracasso de estudantes nas universidades tanto na leitura quanto na elaboração

de textos como tendo uma origem em comum: um contato infeliz, mal realizado, com

a leitura que a transformou de portal para um universo de descobertas em abismo de

pesadelos. Isso numa realidade que efetivamente ampliou as possibilidades de leitura!

(Yunes, 2002).

O desafio é buscar um caminho para resgatar leitores desse trauma, desse encon-

tro mal-sucedido.

Cabe observar que enquanto professores reclamam que seus alunos leem e

escrevem cada vez menos e pior, no altamente interativo meio da internet cresce o

volume de e-mails e o número de blogs, diários virtuais que dão a cada um que o

desejar uma voz na grande rede de informática.

Portanto, parece plausível que trazer um nível mais evidente de interatividade na

relação do leitor com a obra e os colegas e dar-lhe voz seria um caminho para desper-

tar o gosto pela leitura e escrita.

Esta foi a proposta da pesquisa de campo feita com alunos do Ensino Médio de

um colégio da rede pública no Rio de Janeiro. O cenário escolhido foi a obra Capitães

da Areia, de Jorge Amado, tendo como suportes um website e um livro impresso

interativo, em que se podiam acrescentar páginas criadas pelos alunos e os elementos

que eles quisessem adicionar. As personagens dos alunos e alunas eram membros do

bando dos capitães da areia que interagiam com as personagens de Amado, que eram

interpretadas pelos narradores.

A produção dos alunos teve duas etapas, uma livre e outra obrigatória. Os resulta-

dos obtidos foram encorajadores com alunos produzindo criativamente e demonstran-

do terem apreendido as questões de Jorge Amado na obra, bem como seu entorno. Um

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elemento importante foi que os jogadores eram alunos do primeiro ano do Ensino

Médio e os narradores foram alunos voluntários do terceiro ano do Ensino Médio.

Maiores detalhes sobre a pesquisa podem ser encontrados em http://www.historias.

interativas.nom.br/incorporais/cpareia/index.html

A pesquisadora Janet Murray aponta que as narrativas tem um papel fundamental

na formação das comunidades e em nós como indivíduos, criamos nossas identidades

muito em função das histórias que compartilhamos. Não é à toa que os jesuítas usa-

vam o teatro como forma de educar e moralizar as pessoas já há séculos em nosso país.

Os RPGs por agirem de forma interativa, abrindo espaço para a criação cooperativa,

estimulando o trabalho de equipe e compartilhando fantasias, têm forte capacidade

socializante, motivando e facilitando uma produção criativa. Em qualquer uma de

suas formas, RPG de mesa com as pessoas sentadas ao redor da mesa e descrevendo as

ações de suas personagens, live-action RPG com os jogadores dramatizando as ações de

suas personagens em um teatro de improviso, ou através das ferramentas virtuais dos

Massive Multiplayer Online RPG (MMORPG), esses valores de cooperação, socialização

e criatividade devem ser mantidos para que o RPG possa alcançar todo seu potencial

na criação de histórias ludicamente ou lúdico-pedagogicamente. As novas tecnologias

trazem efetivamente grandes avanços quando vêm acompanhadas de novas formas de

pensar, do contrário apenas “passam a limpo”, como usar o computador para decorar

tabuada, em vez de inovar. Um filme de grande sucesso entre os fãs de RPG é Conan, o

bárbaro, em que o vilão Tulsa Doom diz para Conan: “o que é uma espada comparada

com o braço que a empunha?”. Parodiando, podemos dizer que se uma arma só é

tão forte quanto o braço que a empunha, uma interface educacional/narrativa só é

tão benéfica quanto a mente que a manipula. Interatividade implica ouvir e respeitar

o outro. As histórias interativas então não podem ser vistas apenas como meios de

transmitir conteúdos para os alunos e alunas, e sim como meios para que eles criem

a partir do que vivenciaram.

Passo a bola agora para a Eliane.

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O RPG apareceu na minha vida durante a graduação na UFRJ, quando um colega

percebeu meus desenhos nas folhas dos cadernos. Entre mitocôndrias, ciclos bioquími-

cos e cortes histológicos, surgiam guerreiras de espada em punho, dragões e castelos.

Conforme minhas personagens ganhavam pontos de experiência, eu fui migrando,

suavemente, mas não sem algum sofrimento, da Biologia para o Design: da anatomia

vegetal para a ilustração botânica e desta para a ilustração fantástica, que deu frutos na

editora GSA, responsável pelo lançamento do primeiro RPG feito no Brasil (Tagmar),

e do primeiro RPG com temática brasileira, o já mencionado Desafio dos bandeirantes.

Depois da pós-graduação lato sensu em Teoria da Arte pela Universidade do Esta-

do do Rio de Janeiro, levei minhas questões de arte e design para o mestrado em

Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e mergulhei de cabeça

nestas questões no doutorado em Design na PUC-Rio, concluído em 2008.

Assim, a arte me levou de volta para o método científico, agora na área humana.

E, por conta destas navegações, a motivação para minhas pesquisas visuais emerge jus-

tamente destas fronteiras pouco nítidas entre arte e design, entre comercial e poético,

entre lúdico e crítico, e procura sempre focalizar um olhar desejante sobre a indústria

cultural, com seus estereótipos cristalizados e suas possibilidades de deslizamento. E,

dentro da indústria cultural, o meu laboratório científico e artístico é o mundo dos

games, mais precisamente, o do Role-Playing Game, ou RPG.

Mesmo sendo um conteúdo interativo e hipermidiático, o RPG continua sendo

massivamente veiculado em suporte impresso, sob a forma de livros e revistas, sem

abrir espaço para uma intervenção mais direta dos usuários cada vez mais acostuma-

dos à flexibilidade dos suportes eletrônicos. Um problema que parece extrapolar o

universo restrito do RPG para um universo muito mais abrangente: o do próprio livro

como objeto, preocupação de Roger Chartier e do Núcleo de Estudos do Design na

Leitura (NEL – Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio), onde o projeto encontra-se

atualmente inserido. Os suportes impressos de RPG continuam seguindo o aspecto

mais tradicional do design de um livro na forma de códice: a linearidade.

Roland Barthes fala de uma “responsabilidade da forma” no processo de signifi-

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cação: certas preferências históricas sobre a maneira como se profere uma mensagem,

não sobre a mensagem em si. Se de início estas preferências são importantes para cons-

tituir e caracterizar um repertório, chega uma hora em que elas se esvaziam, sobretudo

quando se perdem suas referências. O que era antes parte de um contexto histórico

torna-se “inquestionavelmente natural”, não aquele natural “orgânico e fluido”, mas

aquele que, também remetendo à natureza, cristaliza e endurece. Assim, a forma que

vira fôrma fecha os links do código, limitando suas possibilidades e imprevisibili-

dades. Mas é pela própria forma que se pode reabrir as janelas, “trapaceando a lingua-

gem”. Deste modo, a abertura pode permitir novos significados, que segundo Roland

Barthes, consiste na escritura, ou em um fazer poético no sentido aristotélico de

recriação, como propõem Paul Ricoeur e Julio Plaza e o próprio Barthes na sua ativi-

dade estruturalista.

Na pesquisa de doutorado, desenvolvi um método denominado Design Poético

para concepção de um suporte que desse conta do RPG como uma obra aberta, em

que se permitam associações sígnicas de caráter crítico e questionador, como propõe

Barthes, tanto na sua construção quanto na sua fruição (Bettocchi, 2006).

O filho mais novo da parceria com Carlos Klimick nasceu em 2008 (a mais velha

nasceu em 2005 e se chama Alice), com auxílio da Faperj, como atividade de formação

continuada para professores do Colégio Estadual Vicente Januzzi, no Rio de Janeiro.

Chama-se TNI, ou Técnicas para Narrativas Interativas, que compõem um método

de utilização de histórias interativas do tipo Role-Playing Game (RPG) para construção

coletiva de histórias, expressão criativa e construção de conhecimento dentro de uma

pedagogia construtivista, cujas principais ações são a geração de suportes impressos,

projetados via Design Poético, para veiculação dos cenários, adaptados para a situação

de jogo para estimular e incorporar a produção dos jogadores; e a capacitação dos

jogadores, por meio de oficinas presenciais, na utilização destes suportes impressos

e da TNI para expansão do cenário jogado ou para aplicação da TNI a seus projetos

particulares, qualificando novos participantes, num efeito multiplicador.

Assim como meu primeiro trabalho publicado foi no RPG Tagmar, também no

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cenário deste RPG nasceu uma personagem guerreira, até hoje em jogo, durante um

evento em Juiz de Fora, Minas Gerais. E para as Gerais então retorno, agora, como

professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, espaço de acolhimento para mui-

tas aventuras hipertextuais e poéticas ainda por vir.

Leituras Inspiradoras

u Design poético: intersemiose e abertura no projeto gráfico de um RPG. Eliane Bettocchi.

In: Design, arte e tecnologia: espaço de trocas. Universidade Anhembi Morumbi,

PUC-Rio & Rosari, 2006. (CD-Rom/PC Windows).

u A imagem como link: autonomia, crítica e criatividade na aquisição de lingua-

gem. Eliane Bettocchi & Carlos Klimick. Espaço (INES), v. 18/19, p. 76-82, 2003.

u Escrita e leitura através de narrativas e livros interativos. Eliane Bettocchi &

Carlos Klimick. In: Os lugares do Design na leitura. Luiz Antônio Coelho et all. Novas

Idéias, 2008.

u RPG & Educação: jogando e aprendendo; diálogos possíveis; um intertexto; a

construção do conhecimento através do lúdico. Jane Maria Braga Silva. Universi-

dade Federal de Juiz de Fora.

u A leitura na escola: problemas e soluções. Jane Maria Braga Silva. In: Anais do I

Simpósio RPG & Educação. Devir, 2004. [2002] pg. 256-266.

u RPG: o resgate da história e do narrador. Kazuko Kojima Higuchi. In: Novas lingua-

gens na escola. Adilson Citelli. Cortez, 2001.

u Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de fantasia, video-

games e violência de faz-de-conta. Gerard Jones. Conrad, 2004.

u RPG & Educação. Carlos Klimick. http://www.historias.interativas.nom.br/educ

u Construção de personagem & aquisição de linguagem: o desafio do RPG no INES.

Carlos Klimick. Dissertação de mestrado, Depto. de Artes e Design - PUC-Rio. 2003.

u RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos role playing games. Carlos

Klimick. In: Design Método. Luiz Antônio Coelho (organizador). PUC-Rio, Novas

Idéias, 2006. pp. 143-161.

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u TNI (Técnicas para Narrativas Interativas). Carlos Klimick. Boletim Técnico do

SENAC, v. 33, p. 72-85, 2008.

u Uma ponte pela escrita – Histórias interativas como apoio à inclusão social e

estímulo a escrita. Carlos Klimick. Tese de doutorado. Depto. de Letras, PUC-Rio.

2008.

u Mini Gurps: O resgate de “retirantes”: uma aventura de RPG pela vida de Cân-

dido Portinari. Carlos Eduardo Lourenço. Devir, 2003.

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oComo as histórias foram entrando na minha vida...

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Na verdade, elas estavam lá o tempo todo, era só prestar atenção.

Nas férias, meu irmão e eu íamos para o sítio dos meus avós maternos. De manhã

vivíamos histórias de aventura que inventávamos nas nossas brincadeiras: encarapita-

dos no alto das árvores, fazendo acampamentos, pintando nosso corpo com urucum.

Na hora do lanche, sentados em torno da enorme mesa de madeira rústica da

cozinha, ouvíamos as histórias de quando minha mãe e meus tios eram crianças e

passavam as férias naquele sítio. Minha mãe narrava as brincadeiras que faziam, as

brigas, as tristezas e as histórias que sua avó contava para ela. Eram contos dos Irmãos

Grimm, vindos pela oralidade brasileira.

À noite, minha mãe lia para nós Monteiro Lobato, Condessa de Ségur, Coleção

Menina e Moça, A Ilha do Tesouro... Essa tinha sido a leitura de sua infância, e foi

também a minha iniciação aos livros.

Minha avó Lucia, mãe da minha mãe, me ensinou a bordar, a fazer tricô, tapeçaria

e um pouquinho de costura. Bem pequena, já me interessei pelo assunto e ela paci-

entemente me ensinou. Nessas horas conversávamos bastante e ela me contava um

pouco das histórias da família, um pouco de como eram os vestidos, sobre a moda...

Meu avô materno era brigadeiro da aeronáutica e adorava política. Comprava

TODOS os jornais, que lia de cabo a rabo. Com ele as histórias eram dos acontecimentos

do momento em discussões inflamadas onde defendia suas ideias.

Em casa, minha mãe sempre nos contava histórias na hora de dormir. A nossa preferida

“O anjinho que tinha medo do escuro”, criada por ela, hoje faz parte do meu repertório.

[Ana Luísa Lacombe]

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Meu pai tocava piano e tínhamos uma conexão pela música. Não me esqueço de

estar sentada em seu colo e ele me contando a história da suíte dos Pescadores de Dori-

val Caymmi. Ouvíamos o disco e ele explicava. Lembro-me da tristeza poética daquele

momento quando descobri que o homem morria no mar. Tristeza boa de sentir.

O pai de meu pai era o rei das histórias, só que com H maiúsculo. Era um grande

historiador e contava para nós a história do nosso país. Mas não era de um jeito chato

ou didático, nada disso! Aos domingos os netos reuniam-se na casa desses avós. Era

uma casa de três andares. No último ficava a biblioteca do Vovô Meco. Tinha mais de

não sei quantos mil livros. Uma delícia aquele cheiro! Meu avô mandava encadernar

todos os livros e colocar o seu Ex Libris. Às vezes as histórias vinham no meio da con-

versa, às vezes na dúvida de algum primo que estava estudando determinado assunto.

O vovô contava os episódios de nossa História como se tivesse participado de todos

os fatos. Era um ótimo contador de histórias!

Minha avó Gilda, mãe do meu pai, me ensinou a fazer crochê. Era muito cari-

nhosa e seu talento eram os doces. Que eu adorava comer, mas fazer... Este já não era

meu forte. Ela me apresentou Agatha Christie e seu indefectível Monsieur Hercule

Poirot, de quem eu fiquei fã. Vovó tinha a coleção completa. Minha adolescência foi

recheada desse tipo de literatura, adorava Arsène Lupin, um personagem tipo ladrão

de casacas. Este foi meu pai que me apresentou.

Em casa, almoçávamos e jantávamos quase sempre juntos e nesses momentos con-

versávamos bastante. Não havia TV na sala e tínhamos tempo de trocar ideias.

Tornei-me uma boa leitora. Com nove anos elegi como meu preferido Os colegas,

da Lygia Bojunga Nunes, que li nove vezes seguidas... Chegava ao fim, virava para a

primeira página e começava de novo. (Coincidência os nove anos e as nove vezes...)

Depois me apaixonei pela A fada que tinha idéias, da Fernanda Lopes de Almeida! Eu

queria ser a Clara Luz!

Meus pais sempre nos levaram para ver peças de teatro. Vi todas as montagens do

Tablado, do Grupo Navegando, do Ilo Krugli... Fui aluna do Ilo aos sete anos, numa

escola que ele tinha no Rio de Janeiro, chamada NAC (Núcleo de Artes Criativas),

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depois, na minha adolescência, fui aluna da Maria Clara Machado, no Tablado. Já

querendo fazer teatro como profissão.

Meu mundo simbólico foi incessantemente alimentado e eu aproveitei cada gota disso.

Hoje, quando dou aulas sobre “como contar histórias”, costumo conversar com os

alunos e pergunto sobre suas experiências.

Constato que é uma benção que de vez em quando falte energia elétrica, pois na

maioria das vezes os depoimentos se referem às historias contadas nesses momentos.

A família se reúne em volta de uma vela e pronto! Que maravilha! Conversam, con-

tam fatos, histórias, memórias...

Hoje são olhos grudados em telas.

Muitas vezes constato também que as pessoas esquecem as referências do seu pas-

sado e quando começamos a conversar sobre as lembranças e as narrativas do pas-

sado... Rememoram e se emocionam. Às vezes têm um mundo simbólico enorme,

cheio de experiências profundas, mas abandonam estas histórias, guardam-nas tão

fechadas e tão escondidas que se esquecem que elas existem e de como são impor-

tantes para a construção do ser que somos.

Com uma produção de livros infantis cada vez maior e mais rica nas livrarias, os

pais às vezes se contentam em oferecer belas publicações a seus filhos. Muitas vezes

a escolha é feita pela beleza e não pelo conteúdo. Perde-se a chance de compartilhar

com o filho o momento mágico de uma história que pode ser significativa para ambos.

Conversar, contar histórias faz com que a gente reflita sobre nós, sobre o mundo,

sobre as relações humanas. Assim, nos tornamos seres críticos e comprometidos com

a nossa vida e com a vida dos outros.

É com grata satisfação que vejo o crescimento dos contadores de histórias pelas

cidades e o interesse das pessoas em assistir a estas apresentações. É como se esse uni-

verso das histórias e da memória tivesse rompido as paredes das casas e invadido os espa-

ços da cidade. Surgiram contadores de histórias urbanos, que fazem cursos, misturam

linguagens, usam objetos, músicas, figurinos... A narração vira performance e entra em

espaços culturais. Os pais levam seus filhos e experimentam juntos o papel de ouvintes.

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Os contadores de histórias, que percebem o poder da palavra e a utilizam com

maestria, encantam crianças e adultos e mobilizam memórias e símbolos. Semeiam o

desejo de compartilhar narrativas...

Os pais que percebem o poder de sua emoção e envolvimento ao narrar para seus

filhos histórias e episódios de suas vidas mobilizam o afeto e significados profundos

no seu coração e no de seus filhos...

A sociedade que percebe que sua História, suas memórias, seus símbolos, seus

mitos é que tornam a vida e as relações significativas mobilizam seus cidadãos a uma

vida mais generosa e harmônica.

Leituras Inspiradoras

u Fiando palha tecendo ouro. Joan Gould. Rocco.

u Lin e o outro lado do bambuzal. Lucia Hiratsuka. SM.

u A fada que tinha idéias. Fernanda Lopes de Almeida. Ática.

u Os colegas. Lygia Bojunga. Casa Lygia Bojunga.

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oDa boca da noite para a acolhida na escola

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Quando eu era criança, na casa da minha avó, tínhamos o hábito de sentar na

calçada na “boca da noite”, para ouvir histórias. Era assim todos os dias, ali se

reuniam meus tios, tias, meus pais e minha avó paterna. E se preparavam depois do

jantar, sentados em cadeiras de couro de bode, para ouvir uma boa prosa. O terreiro

era de barro batido branco e, em noite de lua, tudo ficava claro ao redor da casa.

Ali surgia um novo mundo na minha cabeça. Distante daquela realidade difícil do

sertão, da falta de inverno e muita carestia. A roda de histórias na casa da minha avó,

a Dona Canela, era o momento de lazer de toda a família.

Chegado o meu tempo de escola, não me lembro de ter ouvido histórias na sala

de aula, acho que histórias a gente já tinha em casa, então a professora se preocupava

com outros conteúdos pedagógicos, além de ensinar a ler, escrever e fazer somas.

Reconheço que se tratava de uma escola pequenina, mas o rosto gordo da mestra eu

ainda lembro.

Observo que nos últimos vinte anos as histórias foram saindo dos lares e aos pou-

cos foram invadindo as escolas, ganhando a voz do professor. Hoje reconheço vozes

que tecem o imaginário, o lúdico e o literário na sala de aula. São as novas metas

educacionais. As promoções do livro, da leitura e da literatura fazem parte de novos

parâmetros, e na escola surge o professor encantador, aquele que prepara histórias deli-

ciosas para os seus alunos como se fossem biscoitos. O forno desta nova educação é

a memória do professor, a imaginação onde cada vez mais crianças e adolescentes são

convidados a sonharem os mundos que moram nos livros.

[Almir Mota]

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Nós, educadores e pais, sabemos que tem histórias de todo tipo e para qualquer

momento, com personagens e enredos diferentes. Tem aquelas para dormir, e se cenário

é um pai contando um conto para uma menina de oito anos na cabeceira de sua cama,

pode ser um conto de fadas; se um outro pai está com o filho na esteira na aldeia pode

ser uma lenda, mas se o cenário for de uma mãe sertaneja balançando o filho na rede

deve ser um causo de boi assombrado, deve ser assim ainda em alguns destes lares.

E qual é a voz da escola?

Os contos de fadas me parecem ainda favoritos, pois muitos professores foram

alimentados com eles, e na verdade são contos maravilhosos. Mas chega aquela hora

que o professor encantador de crianças, de tanto trabalhar com as mesmas histórias e

livros, cansa um pouco das princesas e príncipes, olhando com bons olhos para novas

histórias de autores bem vivinhos e até próximos da escola e da realidade brasileira.

Atualmente a contação de histórias na sala de aula é igualmente literária como

no passado, mas hoje utilizamos textos autorais. Antes no lar contavam-se histórias

populares, “causos” de domínio público onde ninguém lembrava quem era o autor.

Hoje os contos na escola, nos quais se propõe trabalhar a leitura, têm autores que são

bem conhecidos e isto é muito bom.

Aquelas vozes da professora impregnadas de literatura começam a aprender mui-

tos outros contos, às vezes um livro por semana, criamos assim a mulher-livro, ou

homem-livro, como queiram. Há entre os professores um esforço em preparar boas

histórias e colocar o universo do livro e da literatura, obras da literatura infantojuve-

nil de boa qualidade na escola.

É claro que estamos falando da prática da professora narradora, aquela que dá voz

às histórias e toda a escola a reconhece.

Mas temos práticas ditas de contação de histórias como a manipulação de bone-

cos em tendas, ou detrás da mesa, às vezes uma televisão artesanal para passar uma

história, isto é arte sim, mas não acredito que seja realmente o que se propõem. É

preciso dizer que o contador de histórias pode até usar alguns elementos para contar

um conto, música, outras interferências, ou nada, mas é bom lembrar que o mais

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importante é o que está dentro dele, guardado na sua memória, as histórias.

Veja o caso onde apresento uma professora e ela tem uma colega vizinha da sua

sala que não conta histórias para sua turma de educação infantil, é uma professo-

ra dedicada, brinca, canta e assobia, mas não conta histórias para suas crianças de

quatro e cinco anos. Quando chega a metade da tarde os seus alunos olham para a

sala em frente que às vezes dá até para ver a professora que eles chamam de Kaka, e

ficam apontando e balbuciando − história. É para a sala ao lado que sua professora e

outras levam suas crianças para ouvir uma professora enfeitiçadora.

Outra professora relatou-me que de tanto contar histórias na sala e devido a seu

desempenho é convidada para abrir eventos para toda a escola. O gosto pelas histórias

dos seus trinta alunos de quatro e cinco anos é o bastante para os mesmos ficarem

tentando encontrar, no cesto de livros do canto da sala, novas ou velhas histórias para

que ela as conte. E se ela ocultar a palavra, desandam a contarem tudo de novo.

Nota-se que em salas de aula onde as crianças estão sempre ouvindo histórias,

elas são também, frequentemente as mais expressivas, falantes. Claro que existem as

salas de aula onde não tem sessões de contos, mas sim de leituras, isto não é ruim.

Leitura e contação de histórias contribuem juntas para o mesmo objetivo de educar

e entreter, criando mundos para pequenos seres que no geral só conhecem a sala de

aula e a sua casa. Cada Floresta, fadas ou piratas, na voz da professora são pedaços de

mundos e muita aventura.

É verdade, às vezes fazemos atividades que não sabemos ao certo como realizamos,

mas, no fundo, sabemos que dá certo, pois identificamos resultados felizes nas crian-

ças, que “acham” os contos bem contados em livros coloridos, cheio de imagens, do

qual se apossam e não largam por nada, até ser contado novamente ou surgir uma

nova história contada pela professora.

No projeto que coordeno no Ceará, uma professora disse o seguinte sobre uma

criança que estava contando histórias para outras crianças, se apresentando na sua

escola e outras do seu bairro e vizinhança: “Ele é outro menino, realiza as tarefas

com mais entusiasmo e participa de tudo na sala.” A professora estava falando de um

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menino tímido, com problemas de fala, era assim, pois agora não erra mais as palavras

e nem troca mais.

Qual a mágica disto? Por que a voz da professora encanta tanto as crianças?

Seria alguma semelhança com a voz da mãe. A voz que escutamos antes de dormir?

Realmente eu não sei. Como pai, sempre contei histórias para o meu filho e ele

era muito pequeno quando conheceu certos contos. Atualmente engajado no mesmo

projeto cultural citado acima, Casa do Conto, ele busca livros que já tinha ouvido,

talvez sem lembrar daquelas histórias e ele conta para outras crianças, é como se uma

história que ouvimos carregássemos para sempre, vamos dizer que seja assim. Então é

melhor capricharmos em boas narrativas, pois nós seguiremos, e eles ficam.

Há muitas vozes na escola e precisamos primar para a realização de nossa intenção,

ou seja, vamos narrar contos e só isto. Os grandes enfeites musicais e produções vamos

deixar para os outros contadores que não têm plateia como você, que tem seus alunos

que lhe adoram e seguem seus passos. Os outros contadores de fora da escola têm que se

matar de estudar, ensaiar e esperar o público para realizar sua tarefa, mas isto para você,

professora contadora de histórias é moleza, faz parte do seu cotidiano escolar.

A sua voz, professora, e aqui faço questão de escrever professora, para fazer justiça

à grande maioria de mulheres que educam neste Brasil, sua voz faz a diferença para

estes meninos e meninas que buscam nela nada mais que um aconchego, às vezes não

encontrado no lar.

Aqui a nossa intenção, acredito, não é oferecer métodos para quem já pega no

batente todo dia como vocês, devo lembrar que é muito bom contar histórias quando:

‘ O livro que lemos, gostamos tanto que poderíamos contar na mesma hora;

‘ É um autor novo na sala de aula, e as crianças ainda não o conhecem;

‘ Crie dias diferentes na escola, onde seus alunos e os demais realizem uma mara-

tona de histórias;

‘ Se você gosta, fantasie-se, receba as crianças com um figurino de bruxa ou fada;

‘ Ou não realize nenhuma das alternativas anteriores e narre ótimas histórias.

O resto você sabe fazer. Como diz um conto dinamarquês: “Tudo que você faz é

sempre bem feito”.

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Leituras Inspiradoras

u A pedagogia Waldorf – caminho para um ensino mais humano. Rudolf Lanz.

Antroposófica, 1998.

u Da manhã ao anoitecer – jardim de infância cantando e brincando. Leonor von

Osterroht. Diagrama, 2008.

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oBibliotecas: vozes silenciadas?

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Ao conversar sobre bibliotecas, costumo iniciar falando sobre a etimologia do seu

nome: o histórico da palavra ensina que ela é biblion e théke, ou seja, compartimento

de guarda. Sendo assim, muitos fazem desta herança – a da preservação – a única pos-

sível. E, então, muitas bibliotecas reforçam a imagem de lugar inóspito, de penumbra,

de aprisionamento, onde é impossível estar sem medo, sem fastio, sem tristeza. Nessas,

impera o paradigma do silêncio. Ou, para ser mais exata, do silenciamento.

Quantas histórias já ouvi, principalmente sendo professora de Biblioteconomia

e Documentação! Histórias contadas por estudantes que, até mesmo fazendo essa

Graduação, confessam num murmúrio que não frequentam o tal espaço. Estão lá as

histórias de impedimentos, de recusas, de inacessibilidade às informações produzidas

e registradas, seja em que suporte informacional for.

Desta forma, se há algumas décadas os padrões informacionais eram baseados

em premissas de estocagem, guarda, provisão e distribuição, hoje, esses paradigmas

não alcançariam o vital poder interpretativo para os fenômenos comunicacionais da

sociedade contemporânea, cujo ambiente é o das redes e das novas tecnologias; ambi-

ente onde a troca de saberes é fundamental para a polifonia das múltiplas vozes que

querem, precisam e se fazem ouvir.

Minha conversa, então, passa a girar na contramão do persistente imaginário

social a respeito de bibliotecas. Em oposição a uma imagem de acervos como espaços

que estocam informação, como lugares de memória petrificada, discuto uma ação

para transformá-los em territórios de produção de sentidos. Em vez de espaço de morte,

[Nanci Gonçalves da Nóbrega]

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tento implementar sua potência de vida, de mudança, de movimento.

Rebelo-me contra a acepção das bibliotecas como estruturas de consagração somente,

onde é desnecessária a comunicação, a provocação, ou seja, onde há a manutenção do

apagamento, do silenciamento. Procuro eliminar a representação monumentalista que as

identificam como palácios da memória ou templos do Saber (assim, com inicial maiúscula

e no singular, demonstrando uma árida elitização). Insisto em trazer à tona sua face de

forum, de território de discussão semeadora. Potencializo em minhas conversas sobre

bibliotecas a conscientização acerca das algemas que podem significar sua etimologia e

buscando imaginar muito mais para nossos acervos – qualquer que seja sua tipologia

(acervo bibliográfico, acervo museológico, acervo arquivístico) –, a comparação com

uma cristaleira, onde tudo pode ser visto, escolhido, tocado, usado, pois cristaleira se

diferencia de um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai

recordações – lembranças representadas, por exemplo, pela última xícara do jogo de

porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço de fita de cetim com a qual se dançou

a valsa dos 15 anos –, nossas bibliotecas precisam ser também lugares de convívio, que

permitam a troca, a interlocução; onde a ambiência convide e, não, empurre o leitor

para fora, para o nunca mais. Um lugar de muitas e variadas vozes.

Neste sentido, quero aqui tramar a possibilidade de construção de um paradigma

outro para nossas bibliotecas: constituir nelas um território onde, sem o abandono à

necessária preservação dos tesouros da humanidade – acervos que foram elaborados

como representações da potência humana –, trabalhe-se muito mais com uma ação.

Nossas práxis com acervos deverão estar, então, sedimentadas numa ação cultural

e pedagógica com um viés tríplice: o da recepção/apropriação/expressão criadora a

fim de configurá-los como territórios de (re) significação para os sujeitos sociais, na

medida em que, servindo-lhes tanto como possibilidade de apropriação e produção,

quanto de organização, oportunize construção de singularidades, transformação de

realidades. Sendo assim, este é um trabalho em torno do sentido. E, pois, aquilo que

costumo chamar de uma pedagogia da transformação; uma pedagogia do imaginário.

Em resumo, trata-se de, partindo de nossa reserva simbólica, construída com os

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fragmentos de nossas interpretações singulares e coletivas, alimentar o imaginário dos

leitores das bibliotecas no desenvolvimento da função simbólica por meio de textos,

de imagens, de sons, das vozes que narram, conferindo uma dimensão universal aos

seus sentimentos. Já que temos desenvolvido muito mais a função lógica do educar, é

preciso reencantar a Educação, dando relevo à sua função simbólica, mágica.

Para isto, o trabalho primordial com as narrativas da tradição, com as vozes que

nos chegam do mais profundo de nós mesmos e das nossas coletividades. As narra-

tivas da tradição são tesouros do repertório humano arquitetado ao longo do tempo

e simbolizam a jornada da alma rumo às transformações pessoais. Reserva simbólica

da humanidade, portanto, estão repletas de figuras significativas que representam

estágios de evolução subjetiva e coletiva. Nelas, as imagens nos fazem apreender o

universo de modo instantâneo e as figuras significativas das narrativas da tradição – os

arquétipos – enquanto projeções da alma dos sujeitos, são resíduos psíquicos acu-

mulados no inconsciente da humanidade, são imagens primordiais, conteúdo eterna-

mente presente no inconsciente coletivo e, assim, projeções do espírito de uma época.

Nos contos tradicionais, as vozes encantadas que dizem de Bruxas, Velhos e Velhas

Sábios, Heróis etc., potencializam este reencantamento mencionado.

Quem são? O que significam? Quais suas características principais, seus atributos?

Nossas tentativas de respostas a essas indagações promovem o necessário olhar sobre

o duelo entre estar inserido no imaginário cristalizadamente insalubre da contempo-

raneidade ou pôr em movimento constante o pensar sobre outros possíveis significa-

dos. Para tanto, minha práxis nas bibliotecas é a tessitura de suas múltiplas vozes na

laçada fundamental possibilitada pelas narrativas e suas figuras de significação; é um

reviver da reverberação que tiveram em nossas almas.

Alguns se perguntam: será possível o resgate hoje? Haverá interesse, nesses tempos

fragmentados e fragmentadores, pelos contos da tradição? E outros trabalham, sim,

com o significado profundo dessas narrativas fundantes, incentivando o mergulho em

sua atmosfera para melhor compreender suas próprias lembranças, ressimbolizando o

passado, a fim de reescrevê-lo e à própria vida. Nesse sentido, enquanto Darnton nos

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ensina que essas narrativas da tradição são histórias que se prendem a um imaginário

coletivo, a uma memória de todos, Benjamin impulsiona em nós a necessidade do

resgate da própria arte de narrar. Traz à tona a potência das histórias que se prendem

ao imaginário popular, à memória coletiva; narrativas que constituem/são constituí-

das (como) nossa reserva simbólica. As que são insumo e produção de nossos acervos

pessoais e coletivos.

Assim, neste novo olhar, mais ampliado, a temática do imaginário nos auxilia a

compreender sobre a existência de uma base poética da mente, como nos ensina Hillman,

assim como sobre a dimensão fantástica da vida cotidiana, recriada pelas palavras de

Certeau, e é evidência do repertório simbólico de toda sociedade, desde a tradicional,

até as sociedades complexas da atualidade, conforme Durand. Nada mais incentivador

para o homem contemporâneo, “oco de sentidos” no dizer de Fernando Pessoa.

Nesta era homogeneizante, a Arte acontece como ponto de mutação, como ato

micropolítico de transformação. Assim, dispositivos ou artefatos artísticos, se assim me

posso expressar, em oposição a dispositivos de armazenamento será o mote para uma

ação relacionada aos acervos dentro de uma dinamização que é anima ação (ação de

alma). Dioniso integrado a Apolo, se me faço entender. Pois afinal somos homo sapi-

ens, homo faber e homo ludens, todos ao mesmo tempo.

Nesse sentido, valorizar as imagens significativas, singularizá-las enquanto movi-

mentos singulares e coletivos possuidores de valores para a alma, diz de uma dimen-

são psíquica e planetária e cósmica para este novo espírito pedagógico veiculado/

veiculador das imagens, do imaginário, pois nele compreendo a ética como funda-

mento capital. O primordial aqui é desenvolver uma metodologia da invenção, do

reencantamento, pois precisamos estar grávidos para poder criar. Assim, penso ser o

papel da Biblioteca emprenhar os leitores de poemas, de filmes, de sonhos, desejos,

risos, dores, imagens significativas, de vozes que ressoam no mais profundo de cada

um. Povoar o imaginário, mas não para a domesticação da imagem – as simplificações

deformantes das imagens, das narrativas; a preocupação em “dosar” a Fantasia; a

subnutrição do imaginário seria exatamente o contrário desta didática da invenção.

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O que aqui se diz é da Arte como ato ético-político de transformação. Ética e Estética

juntas no quefazer com os acervos.

Desta maneira, em nossos acervos, cada vez mais espaço às narrativas como estra-

tégias de autocriação. As narrativas que (se) compõem (a partir de) imagens singu-

larizadas, num movimento constante de (re) construção. Formas estéticas e vitais de

organização, são potência, elas próprias, para a provocação e o conhecimento. São

como instrumentos, ou brechas, para nossos universos interno e externo. Pois com

elas somos conduzidos ao terreno das subjetividades de nossos leitores, onde são rea-

lizadas as leituras próprias e singulares sobre os conteúdos todos do mundo, da vida.

Nesse sentido, proporcionar concretamente ambiências de leitura para a criação de

espaços de convivência; inserir a práxis com os acervos pessoais e coletivos utilizando

álbuns de retratos, objetos biográficos, relatos, histórias de vida, compondo mapas afeti-

vos; inserir a práxis com os acervos literários para a construção de conhecimento e a

fruição; possibilitar espaço para a criação, as várias formas de manifestação criadora: o

escrever, o desenhar, o cantar, o esculpir, o dançar, o inventar, o aprender; criar acervos

possíveis com almofadas, plantas, obras de arte, brinquedos e brincadeiras, sonhos e

desejos, contos, mitos, causos, águas, algodão doce, caixas de maquilagem, caixinhas de

música, anjos de verdade, ou não, latinhas de pó de mico, fantasmas, bicho carpinteiro,

livros e mais livros, etc. e coisa e tal. E as vozes das histórias que nos construiram e cons-

troem esses que somos, enfatizando o trabalho com a oralidade e a escuta, experiências

comunicativas fundamentais – o contar e ouvir histórias, o fazer com os falares, os can-

tares diversos, as conversas (as artes orais, como as denomina Havelock).

É preciso, entretanto, primeiro compreender este plano de ação como um palimp-

sesto1, pois que não deve haver receitas ou fórmulas, e há que se ter cuidado em não

cair na armadilha de um aporte funcionalista, se me faço entender. Ver a questão

em seu caráter dinâmico, não normativo, já que precisa ser uma práxis sempre em

andamento, construindo-se ela própria como narratividade, em que se possibilitam

estratégias de apropriação, produção e comunicação dos sentidos, que são sempre

moventes. Como as interpretações, como o mundo e a vida. Depois, pode-se elencar

1. Nos palimpsestos, a reescrita era feita por medida de economia: raspava-se no couro, no pergaminho as marcas dei-xadas do texto primeiro, para usar de novo o suporte onde estivera a escrita anterior. Aqui não me refiro ao objetivo econômico, mas ao fazer e refazer necessário, constante.

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como possíveis itens de elaboração alguns pontos-chave, tais como aqueles que utilizo

em minha vivência com as bibliotecas e seus leitores: a) um grande desejo de transfor-

mação; b) a leitura de múltiplas linguagens como propulsora e facilitadora dos encon-

tros – e a linguagem da Arte, aí, como fundamental; c) o trabalho com a singulariza-

ção das imagens; d) a inserção do que denomino de redes afetivas – mais do que com

as comunidades interpretativas; redes cuja comunicação é, no meu entender, uma

comum ação, uma comunhão; e) a constituição de um olhar indagador; f) o movimento

da Informação, instrumental das bibliotecas, ser percebido como recurso simbólico, e

a cultura ser compreendida como um reservatório, ou repertório de práticas e referen-

tes internos/externos; g) teoria e prática devem imbricar-se num quefazer que envolva

espaços teóricos de discussão e de prática com abordagem prazerosa da relação texto-

sujeito-contexto; h) uma ressignificação dos conteúdos muitas vezes dilacerantes da

realidade empreendida por grupos solidários entre si, por meio da ressignificação das

práticas informacionais das comunidades a que pertencem.

E, mais que tudo, compreender que um dos seus aspectos mais importantes é o

da significação, e que, portanto, perguntar-se sobre seu valor também é da ordem

das questões capitais.

O mito da busca do sentido, para Maffesoli, porque estamos vivendo momento de

profunda entropia, fragmentação, desintegração, é um mito que devemos buscar jun-

tos. Assim o autor defende, em sua obra mais conhecida, uma tribalização do mundo. E

é este o sentido contemporâneo de Estética para o autor: ela tem, agora, um sentido de

comunhão. Esta consciência estética se opõe a uma consciência racionalista; ela gira em

torno de uma compreensão da Totalidade, valendo-se da virtualidade que já existe em

nós (Forma/Força). Como ainda não compreendemos, pois nossa percepção ainda está

na linha da causalidade (causa/efeito), será necessária uma transfiguração – sair do que

nossos olhos percebem (a figura) e ir para o ícone (imagem com sentido).

O que implica numa metodologia de ruptura com os padrões até então vigentes.

Uma ruptura no modo corriqueiro de ver a Biblioteca, para uma ampliação do olhar

sobre ela; uma ruptura para um religare do homem consigo mesmo, com o contexto

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que o envolve e com o próprio Mistério.

Fácil não é. Por isso gosto de lembrar o conceito fantástico de equilíbrio precário,

de Eugenio Barba. Corpo/alma no mais extremo de si; o gesto intenso para o voo,

se assim posso me expressar. Conscientemente atento à intensidade do gesto, o ator

(estamos falando da antropologia teatral de Barba, mas também estamos falando do

ator que somos todos nós no teatro da vida) busca superar(-se), transformar. O equi-

librista no fio, na difícil e escolhida tarefa de dar o próximo passo. Ação sonhada e

possível, mas que requer desejo, este elemento vital a uma política.

E por isso há sempre um projeto político em potência nos acervos, numa bi-

blioteca. Por isso, nós, os que lidamos com acervos (e todos nós o fazemos, não é?)

precisamos ser guardiães dessas delicadezas e tesouros. Guardiães e hermeneutas.

Porque precisamos também perturbar o conforto institucional, conforme o nomeia Sil-

viano Santiago, que um acervo pode representar. Buscar brechas, janelas, possibili-

dades para, por exemplo, compreender o acervo como uma aventura (no seu sentido

mais profundo ad ventura, aquilo que vai acontecer). Tomar consciência a respeito

da potência dessas estratégias do fazer. Pois: o que eu quero dizer com o acervo que

elaboro, com o qual trabalho? O que estou pretendendo narrar? O que narram nossos

acervos? O que comunicam?

Uma ação político-pedagógica que traz à tona nossa clareza política e nossa com-

petência científica, ao nos perguntarmos – Bibliotecas: vozes silenciadas?

Leituras Inspiradoras

u Reencantar a educação. Hugo Assmann. Vozes, 2004.

u Poética do devaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.

u A canoa de papel: tratado de Antropologia Teatral. Eugenio Barba. HUCITEC,

1986.

u O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Walter Benjamin. In: Obras

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escolhidas / 1. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura. Brasiliense, 1994. p. 197-221.

u A invenção do cotidiano/ 1. Artes de fazer. Michel de Certeau. Vozes, 2004.

u História da Leitura. Robert Darnton. In: A escrita da História: novas perspectivas.

Peter Burke (Org.). UNESP, 1992. p. 199-236.

u As estruturas antropológicas do imaginário. Gilbert Durand. Martins Fontes, 2002.

u Oralidade. Eric Havelock. In: Cultura escrita e oralidade. David Olson e Nancy Tor-

rance (Orgs.). Ática, 1995.

u Psicologia arquetípica: um breve relato. James Hillman. Cultrix, 1983.

u A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Michel Maffesoli. Sulina, 1997.

u Cultura, Informação e Educação de profissionais de informação nos países em desenvolvimen-

to. Michel Menou. Ci. Inf., Brasília, v. 25, n. 3, 1996. Disponível em www.ibict.br/cionline

u A caverna, o monstro, o medo. Nanci Gonçalves da Nóbrega. FBN-Proler, 1995.

u De livros e bibliotecas como memória do mundo: dinamização de acervos. Nanci Gon-

çalves da Nóbrega. In: Pensar a leitura: complexidade. Eliana Yunes (Org.). PUC-

Rio; Loyola, 2002. p. 120-135.

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oA contação de histórias vivenciada no chão da

universidade: um quase relato de experiência

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Era uma vez, nos tempos das andanças do Morandubetá pelo Brasil afora, no

final do século XX, mais precisamente no ano de 1993, conduzidos pela nave mãe

do Módulo Zero, comandada pelo Proler, no meio de suas inúmeras manobras fan-

tásticas, fantasiosas, intrigantes e sedutoras de leitores, esta nave maravilhosa acabou

por aterrizar nas terras do Cerrado Goiano, atraindo professores, atores e agentes cul-

turais vinculados a várias instituições e dentre eles três professoras da Universidade

Federal de Goiás, das quais duas eram vinculadas ao Centro de Ensino e Pesquisa

Aplicada a Educação (CEPAE/UFG).

É importante dizer que durante o contato imediato estabelecido entre estas três

professoras e os tripulantes da nave mãe módulo zero, as duas professoras do CEPAE/

UFG foram contaminadas por um micro-organismo poderosíssimo que as tomou e as

transformou de tal forma que nunca mais elas foram as mesmas, haja vista que pas-

saram a ler compulsivamente e a contar histórias em suas salas de aula, de forma tão

constante e deliciosamente envolvente, que foram disseminando este hábito, numa

rapidez tal, que as pessoas foram sendo seduzidas a compartilhar leituras.

Aí... Alguns apaixonados por esta nova mania que havia se instalado, no âmbito

da Universidade começaram a se preocupar com a possibilidade de que algum cien-

tista desvairado se dedicasse a descobrir a cura para aquela deliciosa contaminação.

Então, demandaram, daquelas professoras, a fórmula para disseminarem aquela febril

vontade de ler e com ela aquela contagiante necessidade de contar as histórias lidas.

Ah! Aquelas professoras pioneiras se sentiam como Naftali, personagem do livro

[Edvânia Braz Teixeira Rodrigues]

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Coração de Tinta, de Cornélia Funke, em seu diálogo de preocupação com as crian-

ças desprovidas do acesso ao livro “– Mas como fazem essas crianças sem livros de

histórias? – perguntou Naftali. E Reb Zebelun respondeu: – Elas têm que se confor-

mar. Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles. – Eu não poderia

viver sem eles. – disse Naftali.”

Eu não poderia viver sem livros. Este foi o princípio básico da contação de história

que se vivenciava nas salas de aula do Colégio de Aplicação da UFG, naquele tempo...

contavam-se histórias para despertar o desejo pelo texto escrito e, para contá-las, era

necessário gostar muito delas, outro princípio básico.

Aquelas duas professoras, agora acompanhadas de outros colegas de trabalho,

então, fundaram um grupo de contadores de histórias, Grupo Gwaya Contadores de

Histórias, da UFG. Este grupo institucionalmente era um projeto de extensão e cul-

tura, que propiciou a elas o tempo necessário para saírem por aí em escolas, hospitais,

festas, seminários e eventos, contando muitas histórias. E, com isso, se depararam

com uma nova demanda, muitos e muitos professores que desejavam aprender a

contar histórias.

o ato de ler guarda sempre significados que estão além dele, transforma-se em metáfora que

alimenta desejos ancestrais que a humanidade sempre perseguiu, mesmo se em vão. Em

várias culturas, em várias épocas, ele foi promessa de revelação, de superação final da pre-

cariedade imposta como condição (PERROTI: 1990, p.39)

Eu buscava estes significados no trato com a leitura e com a escola básica e coletiva-

mente o grupo passou a construir o seu projeto de formação de novos contadores. Os

livros lidos, as discussões realizadas, as histórias contadas, o contato com o universo

da literatura e da arte cênica essencial para contar história foi me mostrando que o

livro tem um poder que se estabelece em duas perspectivas, na primeira ele se coloca

como objeto histórico que narra a história refletindo, difundindo, permitindo, teste-

munhado e me colocando como partícipe do tempo, dos costumes, dos valores, do

imaginário, do contexto e da época que ele me narra; na segunda o livro é constitutivo,

nele mesmo, de um imaginário de sua significação e, em meio a estas constatações me

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vi diante de questionamentos sobre o sentido das políticas de acesso ao livro que em

última instância estão atreladas às questões da construção da cidadania e da emanci-

pação humana, não me afastando, também, da percepção primeira que vivenciei em

minha vida de leitora, a do livro como momento de lazer, sonho, doação, aventura...

sempre trazido à minha presença pelas carinhosas mãos ora de minha mãe, ora de

minha avó materna.

É importante ressaltar o quanto pode ser significativo que os pais leiam histórias para seus

filhos, ou folheiem alguma literatura infantil, levando-os a dizerem o que imaginam o que

irá acontecer na página seguinte (JOLIBERT, 1994. p. 129)

Mas também sentia necessidade de refletir, construir, socializar as ideias de forma

fundamentada e sistematizada, assim, várias leituras, vários textos, vários projetos e

um livro foi produzido e publicado – Contação de HISTÓRIAS: uma METODOLO-

GIA de incentivo à LEITURA. Daqueles cursos foram surgindo outras ações em outros

espaços educativos: escolas, clubes, igrejas... e também a outros grupos, os integrantes

do Grupo Gwaya inicial iam e vinham, porém os princípios, os objetivos do trabalho

permaneciam, se ampliavam, se aprofundavam, se verticalizavam.

Hoje o Grupo Gwaya Contadores de Histórias/UFG é constituído por 15 inte-

grantes, dos quais a mais “antiga” sou eu, mas temos também integrantes que apren-

deram a contar histórias, quando estavam no terceiro ano do Ensino Fundamental

e, hoje, estão na faculdade.... Professores que conheceram o trabalho quando ainda

estavam na ativa e, hoje, já aposentadas continuam na ativa, contando histórias...

Professores de Física.... Estudantes de Engenharia... Não importa a área de conhe-

cimento, todos querem ler e compartilhar histórias... Enfim, as pessoas passam pelo

grupo... o grupo se renova... mas o amor pela leitura... o trabalho de formação de

novos leitores... a dedicação ao incentivo à leitura... ESTES PERMANECEM!

Atualmente, vivendo entre os livros de literatura infantojuvenil, os livros que

refletem sobre a educação, os livros que nos mostram dados, imagens, ideias... a cada

dia me convenço do árduo caminho a ser percorrido na luta pelo incentivo à leitura

de “textos de qualidade” que sejam prenhes da possibilidade de transformação de

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dogmas, de crenças, de preconceitos. Ah!!! Esse poder ilimitado dos livros, estampado

e construído dentro das possibilidades e limites do seu construtor, do seu leitor... Ele

é fonte de renovação e transformação do conhecimento, do mundo!

E a professora que existe dentro da contadora de histórias me diz para estar aten-

ta, para buscar sustentação teórico-prática, pois assim poderei contribuir melhor com

o processo de superação das barreiras encontradas pelos que nos procuram, no início

de seu processo de formação como novos contadores de histórias. A preocupação

com a formação de novos contadores fez com que professores integrantes do Grupo

Gwaya, associados a outros professores da UFG propusessem a realização de um

curso de especialização lato sensu em Metodologia da Arte de Contar Histórias Apli-

cada à Educação – este curso, presencial, teve sua primeira turma no ano de 2005.

Nosso projeto de formação de professores atende a Rede Estadual de Ensino de

Goiás, trabalhando com os Dinamizadores de Biblioteca e tem, como proposição,

tornar o espaço da biblioteca escolar mais dinâmico com o objetivo precípuo de

chegar aos estudantes de forma mais lúdica, participativa e cênica. Mas, também, o

grupo publica histórias: Iluminando histórias (Cleidna Landivar ) e Haja Fôlego! (Nilton

Murce), ambos pela Editora RHJ, temos ainda: Tem contação de histórias no céu! (Edvâ-

nia Braz Teixeira Rodrigues), pela CEGRAF/UFG edição comemorativa 40 anos da

UFG e, temos ainda: Deu queimada no cerrado (Diane Valdez), Deu macaco na cabeça

(Maria de Fátima Teixeira Barreto) e Bocó: um lobo muito bobo (Edvânia Braz Teixeira

Rodrigues) que compõem a coleção Coisas de bicho – Editora Gwaya. Sendo que, a

coleção Coisas de bicho foi especialmente preparada para ser distribuída nas escolas da

Rede Estadual de Ensino de Goiás e para os Colégios de Aplicação das Universidades

Federais.

A editoria destes livros da coleção foi mais uma experiência extremamente gratifi-

cante, pois pude experienciar o processo de produção do objeto de desejo “livro” em

sua completude, desde a sua idealização, o processo de escritura, a revisão, a ilustra-

ção, a definição do formato, o acompanhamento da editoração, impressão, pensar o

lançamento, acompanhar a distribuição... mas, posso afirmar com toda a certeza que

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nenhuma emoção bateu mais forte que a do brilho do olhar das crianças e adolescen-

tes ao lerem ou ouvirem a narrativa daquelas histórias!

“O prazer de ser transportado de forma benevolente e cuidadosa, ao universo das pala-

vras que possuem corpo, das histórias que se tornam tangíveis, daquilo que nos humaniza”

(SISTO: 2001, p. 32)

Leituras Inspiradoras

u Cenas de leitura. Verbena Maria Rocha Cordeiro. In: Leitor formado, leitor em

formação: a leitura literária em questão. M. Z Turchi e V. M. T. Silva (orgs). ANEP,

2006.

u Formando crianças leitoras. Josette Jolibert e colaboradores. Artes Médicas, 1994.

u Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Celso Sisto. Argos, 2001.

u Confinamento cultural, infância e leitura. Edmir Perrotti. Summus, 1990.

u Coração de tinta. Cornélia Funke. Cia. Das Letras, 2006.

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oPor onde passo, levo comigo os

contadores de histórias

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Contar histórias, apesar de ser uma arte milenar, para mim foi tomando uma

nova dimensão a partir de 1989, quando trabalhava no setor de projetos da Funda-

ção Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ. Havia um burburinho, algo de novo,

um frisson em torno de um tal curso, ministrado por um grupo estrangeiro, que algu-

mas pessoas fizeram, criando alma nova para a questão do livro, da biblioteca e da

formação do leitor. Esta foi a primeira notícia que me chegou.

Continuava sem saber bem o que era, mas via a movimentação das pessoas, um

entusiasmo no ar, um falatório nos corredores, até que a minha curiosidade chegou

ao máximo e me forcei a saber exatamente o que estava se passando.

O assunto girava em torno de algumas pessoas da Fundação que haviam feito um

curso de Contadores de Histórias. Esse curso mudou as suas vidas e, por tabela, as

nossas também, que não fizemos o curso. Houve uma contaminação de entusiasmo.

Era como se a narração de histórias precisasse de um empurrãozinho para se firmar

como a melhor estratégia de encantamento no processo de construção de um leitor.

Esse empurrãozinho foi dado, pois desencadeou uma nova história na promoção da

leitura, pelo menos por aqui.

Todos nós sabíamos da importância de contar histórias, porque como professores

e promotores de leitura já nos utilizávamos dessa ferramenta para incentivar a leitura.

Mas, parece que esse curso foi um marco na história da Contação de Histórias no

Brasil, inclusive originando, logo em seguida, o Grupo Morandubetá de Contadores

de Histórias, que foi a primeira escola para a formação de outros contadores.

[Maria Helena Ribeiro]

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Fiquei impressionada com a rapidez com que esse movimento se disseminou. As

pessoas ficavam encantadas com a nova forma de contar histórias, com os segredos

para fazê-las mais atraentes, com as novas técnicas de apresentar os textos dos livros,

seduzindo a plateia.

Aí, contavam-se histórias em todos os lugares, desde os corredores da Biblioteca

Nacional, para os funcionários, até em praças públicas e espaços culturais.

Um curso desses, eu nunca fiz, mas, naquele momento, fui contagiada pelos con-

tadores de histórias que começavam a se formar com essa nova orientação. Acreditei

neles e nunca mais os abandonei. Em todas as instituições que trabalhei, daí pra

frente, levei essa bandeira comigo, contribuindo assim, um pouco, para a concretiza-

ção dessa arte no Brasil

Migramos da Fundação do Livro para o Proler – Programa Nacional de Incentivo à

Leitura da Biblioteca Nacional, onde assumi a coordenação pedagógica do Leia Brasil

– Programa de Leitura da Petrobras, um programa de Bibliotecas Volantes em escolas

públicas, com capacitação de professores para a questão da leitura.

Levando comigo esse entusiasmo e a certeza da importância das histórias contadas

na formação do leitor, para que ele tomasse o impulso que precisava, logo acrescentei

ao Programa um curso de formação de Contadores de Histórias para os professo-

res do programa e apresentações de contadores nas escolas, nos dias das visitas do

caminhão-biblioteca.

Enquanto isso, na Casa da Leitura – sede do Proler e do Leia Brasil – a comu-

nidade de Laranjeiras e especialistas em Leitura e Literatura descobriam o encanta-

mento das histórias contadas pelos novos contadores. De todas as atividades que a

casa oferecia, o Curso de Contadores era o mais procurado. Artistas, atores principal-

mente, produtores culturais, educadores, psicólogos, leitores e até donas de casa iam

buscar algo que lhes trouxesse prazer.

Eliana Yunes, nossa diretora, e Francisco Gregório Filho, nosso querido chefe,

planejaram um curso de excelência por onde se formaram os hoje mais renomados

contadores de histórias e grupos de contação. Começou com esse curso uma com-

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pulsão pela leitura. Falava-se todo o tempo de textos, de escritores, de lançamentos

de livros, de temas interessantes para se contar, de cultura popular, contos da caro-

chinha, e, assim, circulavam os livros, trocavam-se experiências, formavam-se grupos,

pesquisava-se sobre a leitura da literatura.

O mais interessante é que os cursos não tinham exclusivamente o objetivo de

ensinar a contar histórias, pois isso já é quase inerente ao ser humano. Basicamente

visavam o incentivo à leitura pelo viés da arte, da literatura. Mas os alunos, além de se

descobrirem leitores, descobriam-se também contadores de histórias. Até hoje encon-

tramos nos cursos de Letras, ou já formados nas Universidades, pessoas que, a partir

dos cursos da Casa da Leitura, descobriram sua vocação e hoje são profissionais dessa

área; meu filho José Mauro Brant e minha neta Alluana Ribeiro são alguns exemplos.

O Leia Brasil, que chegou a ter, em 1998, 16 Bibliotecas Volantes em 89 cidades

de seis estados do Brasil, teve a contação de histórias como seu carro-chefe. Não havia

uma atividade do Leia que não iniciasse e acabasse com uma história contada pelos

novos contadores. Além disso, oferecíamos cursos de contadores de histórias para

todos os professores, o que tornava o Programa cada vez mais respeitado e querido

pelas Secretarias de Educação dos Municípios conveniados.

Nas cidades, muitos professores tornaram-se contadores, ou individualmente, ou

em grupos e, por essa atividade se apaixonaram também pela leitura e pela literatura

a ponto de mudar suas vidas. Não é exagero não, pois quem conta a história do Leia

Brasil sabe a influência que as histórias autorais e as populares, apresentadas daquele

jeito de contar, tiveram na formação de professores leitores, na sua atuação como

promotores da leitura e nas suas histórias pessoais. Houve uma melhoria significativa

na relação da escola com a leitura, dos professores com a leitura dos seus alunos e dos

professores entre si. Foi a questão do encantamento. Foram todos encantados pelos

contadores de histórias e trabalhar com leitura passou a ser um prazer.

Após quase sete anos no Leia Brasil, fui para o Sesc Rio, levando comigo essa baga-

gem de experiências bem sucedidas com a contação de histórias. No programa de leitura

que implantamos no Sesc, chamado Tecendo o Amanhã – Programa de Leitura do Sesc

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Rio, pude continuar abrindo espaços para a disseminação dessa arte e dessa prática.

Como o programa tinha como objetivos estimular a leitura, dinamizar os acervos

das Bibliotecas e promover, nas unidades do Sesc, eventos e atividades culturais em

torno da leitura, encontrei nele a melhor oportunidade para divulgar o trabalho dos

Contadores nas unidades do Sesc.

Nesse momento, o trabalho de contar histórias nas Unidades do Sesc Rio foi tão

bem aceito, que o desejo de ampliá-lo, para além dos espaços das bibliotecas, foi cres-

cendo, crescendo tanto, que deu origem à ideia de se criar uma rede de contadores e

juntá-los num só evento, aberto ao público em geral.

Benita Prieto, do Grupo Morandubetá, havia feito, em 1999, pelo Leia Brasil, o

Encontro de Contadores de Histórias com o maior sucesso. Eu participei desse pro-

cesso e achei que seria o evento de que necessitávamos.

E assim, em 2002, realizamos o Simpósio Internacional de Contadores de

Histórias, primeiro realizado no Brasil. Convidamos a participar os maiores nomes

nessa área, brasileiros e estrangeiros. Tanto sucesso fez, que até hoje, 2009, fica na

nossa memória o evento em si e o que ele representou para o nosso país, tornando-o a

referência mundial na contação de histórias e na questão da leitura e da oralidade. Foi

muito gratificante participar do início da história dos Contadores de Histórias no país.

Levar os contadores comigo pelas instituições por onde passava era como se tivesse

levando o Proler – Programa de Incentivo à Leitura da Biblioteca Nacional para dentro

delas. No Sesc Rio não foi diferente. Levei o Proler para dentro das unidades, agreguei

o valor da contação de histórias à formação das bibliotecárias, transformei as bibliote-

cas em ambientes bonitos, prazerosos para ler, ouvir e contar histórias. Eram crianças,

idosos, jovens, todos encantados pelas histórias que habitavam o interior das unidades.

As bibliotecas do Sesc nunca foram tão cheias de jovens como nas sessões de

histórias. Os livros saíam mais das prateleiras, e os velhos livros de gramática, que

eram vítimas das máquinas de Xerox, foram substituídos por novos livros de literatura

de qualidade, lidos na própria biblioteca ou emprestados para serem lidos em casa.

O movimento precioso de leitura que vivia o Sesc gerou um outro projeto Jornada

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de Leitura Sesc Rio: Formação de Jovens Agentes de Leitura, que talvez tenha sido o

melhor projeto social que realizei em toda a minha vida. Acreditei que os jovens podi-

am ser leitores apaixonados e promotores de leitura nas suas comunidades, contrari-

ando todo o estigma de que jovem não gosta de ler. Devo mais essa aos contadores de

histórias que, como eu, acreditaram nos jovens e enfrentaram essa jornada de trabalho

comigo. Quando saí do Sesc, foram eles que deram continuidade a esse nosso projeto.

As instituições, que no início estranhavam a minha insistência na utilização da con-

tação de histórias para tudo, logo se rendiam e concordavam em usar essa prática como

“panaceia para todos os males”: abrir e fechar reuniões, criar ânimo nas pessoas, para

relaxar, sensibilizar, entrosar equipes, minimizar conflitos, aumentar a autoestima.

Sempre foi muito importante a atuação dos contadores na vida da cidade, tanto

nas atividades de entretenimento, como nos projetos de grande relevância sociocul-

tural, como nos hospitais, favelas, creches, com jovens e idosos, com crianças com

dificuldades e comprometimentos de aprendizagem.

Convicta de que a contação de histórias se enquadrava em qualquer circunstância

educacional, cultural ou social, e que os contadores de histórias eram sempre excelentes

parceiros das instituições, levei, mais uma vez, esse trabalho comigo para a Obra Social

da Cidade do Rio de Janeiro, em um projeto de inclusão social em casas de convivência

e lazer para idosos. Os idosos, assim como crianças e jovens, haviam de precisar dessa

prática para ter uma vida melhor, com mais qualidade. Não sabia o quanto!

Melhorar a autoestima, minimizar os efeitos das perdas e promover a sua inte-

gração social, desenvolvendo o imaginário dos idosos, recuperando as suas memórias

afetivas, despertando seus talentos e habilidades, resgatando seus desejos reprimidos

e satisfazendo-os na medida do possível era a nossa meta. Para isso, começamos nas

Casas como se elas fossem a Casa da Leitura. Era uma volta ao passado. E os conta-

dores sempre comigo.

Por meio das oficinas de contação de histórias, dei início à concretização desses

objetivos. Nessas casas, os idosos recuperaram suas lembranças, suas histórias, seus

afetos, as histórias das suas famílias, suas ruas e cidades, as brincadeiras da infân-

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cia, das músicas e poesias preferidas. Nelas também cantaram, leram, recitaram,

recortaram, pintaram, contaram histórias, riram, choraram, fizeram pipas, bonecos,

escreveram cartas, montaram álbuns de memórias, murais de fotos.... E foram felizes

durante os cinco anos que conviveram com os contadores de histórias.

Hoje os idosos que tiveram essa oportunidade contam histórias em creches, esco-

las, em grupos sociais, e alguns até dão oficinas de leitura e histórias, contribuindo

com esse rendimento para o aumento da sua renda familiar ou pessoal.

Os contadores de histórias que me acompanharam na Obra Social fizeram des-

sas casas um espaço social de relevância no cenário cultural da cidade do Rio. É

sempre assim: por onde passam, deixam um rastro de benfeitorias. Vão passando e

carregando com eles pessoas que se tornam mais leitoras, mais esperançosas, mais

participantes e mais felizes.

Em qualquer instituição, seja ela educacional, social, cultural; seja em hospitais,

creches, escolas, empresas, teatros, bibliotecas; seja em oficinas, aulas, apresentações,

rodas de leitura... eles serão sempre os arautos da boa-nova.

Leituras Inspiradoras

u Os cem melhores contos brasileiros do século. Seleção Ítalo Moriconi. Objetiva,

2000.

u O livro dos medos. Organização Heloísa Prieto. Companhia das Letras,1998.

u Mil histórias sem fim: contos orientais. Malba Tahan. Record, 2001.

u O livro dos abraços. Eduardo Galeano. L&PM, 2007.

u Uma idéia toda azul. Marina Colasanti. Global, 1999.

u Lendas do céu e da terra. Malba Tahan. Conquista,1960.

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oNarrativas na empresa

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Quando comecei minhas pesquisas sobre a Gestão do Conhecimento Organizacio-

nal, confesso que – engenheiro de formação que sou, por isso mesmo mais ligado

às ciências exatas, às coisas objetivas do mundo, com um pensamento mais cartesiano

– estranhava a frequência com que esbarrava em referências às narrativas.

Era perturbador notar que quanto mais eu me aprofundava em áreas tão especializa-

das como Administração Estratégica, Aprendizado Organizacional, Gestão da Inovação,

Gestão da Mudança, Instituições, Teoria da Firma, Teoria Evolucionária das Mudanças

Econômicas, etc., mais evidente ficava o importante papel representado pela contação de

histórias (storytelling) na formação do capital social das empresas realmente de sucesso, ou

seja, naquelas que têm a característica da longevidade e não nas de sucesso efêmero.

Justamente quando poderia parecer que os rápidos desenvolvimentos tecnológi-

cos dos tempos da globalização – tanto da informação, como das comunicações – tor-

nariam aquela antiga arte uma coisa obsoleta, eu ia me apercebendo da importância

crescente das narrativas.

Dentro desta ótica, eram claros os indícios de que é no melhor entendimento dos

fatos de suas histórias que as empresas constroem aquilo que os especialistas apon-

tam como fundamental para sua sobrevivência nos dias de rápidas mudanças que

vivemos: sua capacitação para inovar.

Confesso que relutei em aceitar que as dificuldades vividas em fases iniciais pela

empresa, suas crises importantes do passado, seus eventos marcantes, seus executivos

anteriores, seus mitos e seus heróis moldassem e restringissem seu comportamento

[Fernando Goldman]

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atual e futuro. Era difícil estabelecer uma conexão entre os aspectos mais tecnológicos

das empresas e esta sua dependência de trajetória.

Hoje noto que há algo de novo sobre a arte de contar histórias em ambientes orga-

nizacionais. Não se trata mais apenas do seu uso proposital para alcançar resultados

práticos em questionáveis e antiquadas práticas de liderança.

Em minhas pesquisas venho descobrindo que empresas longevas (as que se ca-

racterizam como verdadeiras comunidades) têm como principal característica aquela

especial capacitação para se adaptar constantemente às mudanças em seus ambientes

de negócios, com mais rapidez do que seus concorrentes.

Mas a inovação não é apenas uma vontade declarada. Ela exige a prática regular e

constante de uma humildade em busca do que precisa ser aperfeiçoado na empresa,

de um ambiente com abertura suficiente para tal, caracterizando que os verdadeiros

proprietários do capital social não deveriam ser pequenos grupos – que podem facil-

mente ser tornar obsoletos – mas a empresa que, vista como uma comunidade, se

mostra muito mais apta a dar respostas.

Para atender aos atuais desafios de adaptação, contínuos e necessários, sempre

com maior rapidez, diversos autores de diferentes áreas de estudos vêm chamando

atenção para o fato de que as estruturas burocráticas e hierárquicas baseadas em

mecanismos de comando e controle, que se mostraram tão eficientes desde o início

do taylorismo, já não funcionam adequadamente e funcionarão cada vez menos. Há

assim a necessidade da troca da ênfase em simples e objetivas relações de causa e efeito

pelo foco em aspectos menos explícitos, menos objetivos, digamos mais tácitos.

Esse novo mundo organizacional, de valores, significados e experiências, com

atenção às interações humanas, precisa identificar o conhecimento, entendido como

a união de saberes e habilidades para uma capacidade de ação eficaz, como novo e

mais importante fator de produção.

Sendo o conhecimento contextual e só existindo nas pessoas que compõem uma

empresa, me chama atenção a importância da palavra “contexto” e a forma como ela

é negligenciada nas empresas que não conseguem se ver como comunidades.

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É o contexto que faz com que, embora construído pela análise da informação e

que possa algumas vezes ser transformado em informação para ser disseminado, o

conhecimento não seja apenas um tipo especial estático de informação, como muitos

creem. Isto porque diariamente importantes elementos de contexto são incorporados

ao conhecimento nas mentes e corpos das pessoas, nas rotinas das empresas e, princi-

palmente, no relacionamento entre as pessoas e entre elas e suas empresas.

As empresas e suas pessoas em um determinado momento são apenas um instantâ-

neo de um quadro dinâmico em que pessoas vão e vêm, influenciam e são influencia-

das por aquilo a que nos referimos simplificadamente como organização.

É fácil dizer que a empresa é uma organização. Mais fácil ainda é alardear que a

organização é uma comunidade, mas na prática criar um ambiente propício ao flores-

cimento do conhecimento exige muito mais do que simples slogans.

Uma pessoa para expressar aquilo que conhece ou pelo menos aquilo que tem

consciência que conhece não pode deixar de fazê-lo senão emitindo algum tipo de

informação (conteúdos), na forma de mensagens, sejam orais, escritas, sinalizadas,

gráficas, gestuais, dançadas, corporais ou qualquer outra forma que um ser humano

tenha para se comunicar.

É preciso conectar os conteúdos disponibilizados, representados por dados e

informações, aos contextos, para que outras pessoas possam criar novos conhecimen-

tos capazes de possibilitar à empresa se modificar de modo a se adaptar às mudanças

de seus ambientes de negócios.

Fui assim começando a entender que o elo, entre os conteúdos e os contextos, são

as narrativas, que sendo a forma como as pessoas constroem um mundo de significados,

se tornam um tipo de código, útil em ambientes dinâmicos, de racionalidade limitada

e de incerteza, como os enfrentados pelas empresas na atual era de globalização, pois

transformam a incerteza da mudança em algo compreensível e com significado.

Seguindo as ideias de Argyris e Schoen sobre toda empresa ter uma teoria “pro-

clamada” e uma “aplicada”, são as narrativas que nos informam sobre as regras infor-

mais, quando chegamos a uma empresa.

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No meu entender as narrativas organizacionais, além de proverem meios funda-

mentais para se compreender os processos do cotidiano organizacional, são elementos

fundamentais na construção retrospectiva da realidade em que a empresa se encontra

– o chamado sensemaking.

Para mim, as narrativas representam os modos de falar sobre a empresa e, assim,

refletem a disseminação e o compartilhamento de percepções. Dessa forma, as nar-

rativas tratam das políticas de significados, isto é, como são selecionados os significa-

dos, codificados, legitimados e institucionalizados na empresa. O aprendizado e a

criação de conhecimento, tendo características progressivas e implícitas no processo

organizacional, se beneficiam sobremaneira de um ambiente propício às narrativas.

Se é cada vez mais verdade que as empresas precisam adaptar-se rapidamente a

mercados em constante mudança e às novas tecnologias, porém sem negligenciar os

aspectos humanos, então as narrativas como aliadas das metáforas e analogias podem

exercer um papel muito importante nos aspectos mais tácitos do conhecimento.

Além disso, o futuro da empresa só pode ser construído considerando seu pas-

sado, pois os eventos de ontem delineiam o comportamento de hoje. Dessa forma, a

mudança só pode ser entendida numa perspectiva de histórias, pois para romper com

o passado é preciso antes de tudo, entendê-lo.

Assim, considerando a empresa como uma cultura, as narrativas - tendo como

principal objeto a construção de significados – são uma poderosa ferramenta para

viabilizar a compreensão dos processos de mudança e aprendizado, possibilitando

mudanças de percepção e a aquisição de novos significados.

Foi assim, aos poucos, que descobri que a velha arte da contação de histórias pode

fazer toda a diferença em ambientes tão atuais e complexos como as grandes empresas.

Leituras Inspiradoras

u O poder das narrativas nas organizações. Stephen Denning. Campus - Elsevier, 2006.

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u The concept of “Ba”: building foundation for knowledge creation. I. Nonaka e

N. Konno. California Management Review, v. 40, n. 3, Spring 1998.

u Criação de conhecimento na empresa: como as empresas japonesas geram a

dinâmica da inovação. I. Nonaka e H. Takeuchi. Campus, 1997.

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oFagulhas habitam multidões

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Logo que fiz nove anos, perdi meu pai. Voltei para o Maranhão e encontrei uma

paisagem já conhecida pelas conversas familiares e que, de vez em quando, ganha-

vam um tom nostálgico, próximo de um sentimento de exílio. Ah! Como o Rio de

Janeiro ficava longe de São Luís!

O re-encontro com minha cidade, me fez descobrir que ao construí-la, imaginari-

amente, nela havia reservado lugares de relevo para os primos e os tios, as alvoradas

com suas brisas, os sabores e os batuques das festas populares. Então, me surpreendi

com tantas ladeiras (difíceis de subir), com as travas de poderes estagnados, enfim,

com as noites e suas tormentas...

Sei que num desses dias em que os bondes pareciam saltar dos trilhos para trafegar

em meu coração, me assombrei com a intensidade de perguntas que nem sabia formu-

lar. Acreditei que não ia dar conta da vida. Pedi a Deus que me ajudasse, mandando

um anjo me buscar de forma veloz, se possível, fulminante.

De repente, ao entrar numa das alcovas do sobrado, onde vivíamos, no Canto da

Viração, deparei com uma imagem trêmula, estranha, assustadora, que se associou a um

conjunto de vozes que cantavam, com determinação, se encontrando em desencontros.

— Os céus me ouviram? Resolveram me atender? Estes eram os sinais não de um, mas de uma

legião de anjos? Como poderia eu recuar de minhas súplicas, diante de uma decisão celestial?

— Não, não queria ir pro céu. Era urgente, urgentíssimo declinar da viagem com os anjos.

Pedi, com o coração aos saltos, uma prorrogação.

Corri pra janela, arriscando um canto de olho e decifrando o mistério da figura

[Célia Linhares]

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vacilante: era uma calça comprida de meu irmão, pendurada pelo suspensório, numa

coluna de cama antiga!

Em compensação, presenciei nas ruas uma passeata potente, contra a posse de

um governo que o povo não aceitava pela usurpação e iniquidade do processamento

eleitoral. Nunca tinha visto uma multidão tão decidida e tão vibrante em sua marcha.

Por isso, a cada instante se encorpava mais.

Ali, naquele momento que coube um fluxo de uma existência, entendi a dor e a bele-

za de sermos porosos, interdependentes uns dos outros, unindo os humanos aos viventes,

às coisas, mas também ao cosmos, tecendo-nos com milhões de fios, que nos desafiam

com enigmas que não se fecham em nós, pedindo conjunções, compartilhamentos.

— Ah! Então são esses os movimentos sociais, em que nos perdemos e nos achamos, entrando

e saindo de nós e, assim, nos constituindo nesses entre nós?

Os anos rolaram e acompanhei as esperanças de minha geração, com a UNE, a

JUC que se articulava com a JOC, a JEC e tantos outros movimentos estudantis, mas

também com o MEB, os CPCs, a campanha pelo Petróleo é nosso...

A Petrobrás foi a nossa vitória,

Nossa primeira vitória,

De vitória em vitória...

Se escreve a história...

Mas, todo esse entusiasmo coletivo foi interrompido com uma prolongada noite

de chumbo que mostrou o quanto os estados de exceção, com suas tiranias e bar-

báries nos rondam e nos ameaçam permanentemente, comprometendo os projetos

democráticos, exigindo repensá-los a contrapelo. (Benjamin, 1993, Agamben, 2004).

E esses riscos se mostram e se agudizam quando os movimentos sociais se inten-

sificam, se renovam, se reinventam, atualizando suas potências ao afirmar tradições

inquietas e tenazes, com sonhos de dignidade existencial, política, que nunca morrem.

Por tudo isso, não só nos fortalecemos, mas também nos alertamos contra tantos

elitismos que também nos impregnam, compondo desigualdades que nos modelam

historicamente. Ressoa em nós Darcy Ribeiro, lembrando como permanece em nós

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essa convivência ambígua e paradoxal entre as cicatrizes de escravos e oprimidos, que

se polarizam com a arrogância de senhores.

De toda maneira, com a ditadura, os espaços dos movimentos sociais foram fecha-

dos, vigiados e punidos. Mas não interrompidos. Como rios nos desertos, os fluxos de

tantas águas, irromperam por outros caminhos, manifestando-se de diferentes formas

em oásis, pedindo novas formas de invenção e captação.

A ditadura se enrijecia, recriando-se com outros níveis de selvageria e ferocidade,

com sequestros e prisões, com torturas e assassinatos e inovando com a ocultação

dos corpos dos opositores dessa barbárie instalada. Foi nesse período trágico que Rui

Frazão Soares, estudante de engenharia foi preso e desapareceu no cárcere em 1974.

Se o medo era imenso, toda essa generosidade dos que discordavam abriam

caminhos para a liberdade que nunca deixou de fagulhar... Assim, os movimentos

sociais se deslocaram para espaços que antes pareciam destituídos de política. As

associações de moradores insurgiram em toda parte, nas comunidades de base, nas

práticas da Teologia da Libertação, com os mutuários de casa própria, das donas de

casa, dos aposentados, das mulheres, negros, indígenas e gays que se organizaram e

tornaram mais abertas, compartilhadas e visíveis suas lutas.

A realidade mudava e nossos instrumentos de apropriação dos movimentos sociais

também precisavam ser refeitos (Evers, 1984). Os novos sujeitos coletivos instalavam outro

tempo-espaço e requeriam uma outra inteligibilidade (Sader, 1988). Os movimentos de

1968 mostraram que as relações políticas não estão distanciadas das tensões cotidianas.

Se Foucault (1984) tematizou a mobilidade do poder, que não se concentra nos

palácios, nem se fixa nos gabinetes e nem, muito menos, se reduz a impor e negar

condutas, potencializando ferramentas para intervirmos nos funcionamentos soci-

ais, Paulo Freire (1992) também, por outros contornos, trabalhou o alargamento da

política, discutindo uma processualística responsável pela manutenção dos mecanis-

mos que fortalecem opressores e oprimidos.

Ressaltou as relações entre políticas, culturas e existências sócio-humanas, sus-

tentando poderes arbitrários e opressores, que ao invés de se instalarem exclusiva-

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mente, numa entidade externa, se alojam com tensões e complacências, nos senti-

mentos e afetos do oprimido, subjugando-o.

De toda forma, para romper essa submissão, não pode ser dispensado nem o

desejo de liberdade, nem as condições concretas de libertação, que precisam ser cria-

das e mobilizadas. Por isso, Paulo Freire valorizou a educação para a liberdade, como

um exercício de autonomia, sempre inconcluso, em que os oprimidos se apropriam

da vida, do mundo, para refazê-lo.

Esses novos tipos de movimentos sociais, mesmo sob silenciamentos e suspeitas

acadêmicas, foram construindo outras formas de ações políticas, intensificando solida-

riedades em circuitos crescentes, capilarizando-se e encontrando-se com aqueles até então

banidos da fruição dos bens materiais e imateriais que a sociedade vinha produzindo.

O avanço do capitalismo com suas forças necrófilas, foi derrubando fronteiras

(como entre as Alemanhas) para reduzir a criação de mundos possíveis, proclamando a

urgência de sofisticar, globalizando um mundo único; mundo que as políticas neocon-

servadoras e neoliberais pretendem infligir a tudo e a todos, como o Império irrecusável.

Mas o preço da participação nesse império é não somente alto, muito alto, mas

impagável, pois atinge de muitos modos a vida, o planeta, os corpos, enfim, toda uma

múltipla realidade, enredando-os em relações agenciadoras em que nem faltam coer-

ções cruéis e explícitas, nem tão pouco manipulações sutis e sedutoras.

Assim, apesar das cadeias relacionais que se instalam e se apresentam como redes

inescapáveis, emerge desse cerceamento formas múltiplas de afirmações de vida que

vão instituindo fagulhas com que se constroem possibilidades de outros mundos mais

solidários, em que as multiplicidades se dispersam e confluem diferindo e singulari-

zando sujeitos coletivos e individuais, pelas interdependências entre objetos e sujei-

tos, rompendo com as formas de organização binária da vida (Lazaratto, 2006).

Portanto, escapando de concepções e práticas endurecidas pela imutabilidade das

utopias, Negri e Hardt (2001) vão ressignificar a concepção e a prática de multidão,

tomando-a como resistência, multiplicidade e potência, atualizando-a pela apropria-

ção dos circuitos cibernéticos.

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É bom observar o comportamento das multidões em suas iniciativas que tomam

celulares para mobilização social que se dispersa, atuando de modo livre, mas con-

fluindo na causa comum de defesa da vida, da liberdade. Por isso, valorizam a plu-

ralidade dos sujeitos e instrumentos reinventando, em sintonia com nosso tempo,

militâncias interativas.

Vale concluir lembrando a analogia que Negri (2001) faz entre as multidões e

Francisco de Assis: “(...) encontramo-nos na situação de Francisco, propondo contra

a miséria do poder a alegria do ser. Esta é a revolução que nenhum poder controlará”.

Para minha mãe Alice e minha irmã Anna Maria

que, em meio a labirintos, me fizeram encontrar movimentos sociais,

que se recriam e com os quais me reinvento sem parar.

Leituras Inspiradoras

u Estado de exceção. Giorgio Agamben. Boitempo, 2004.

u Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Walter Benjamin. Brasiliense, 1993.

u Identidade: a face oculta dos novos movimentos sociais. Tilman Evers. In: Revista

Novos Estudos CEBRAP, vol.2, nº 4, Abril de 1984.

u Microfísica do poder. Michel Foucault. Organização e Tradução de Roberto Machado.

Edições Graal, 1984.

u Educação como prática da liberdade. Paulo Freire. Paz e Terra, 1992.

u Império. Michael Hardt & Antonio Negri. Record, 2001.

u As revoluções do capitalismo. Maurizio Lazzarato. Civilização Brasileira, 2006.

u Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos

trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Eder Sader. Paz e Terra, 1988.

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oNos caminhos da Maré

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Meu nome é Marilene Nunes, nasci numa cidadezinha do Espírito Santo chama-

da Mimoso do Sul. A minha vinda para o Rio de Janeiro aconteceu quando

ainda era criança. Como toda criança que mora no interior, sempre ouvi muitas

histórias contadas por minha mãe, lembro que ficava horas sentada na porta de casa

ao anoitecer, ouvindo mamãe contar contos de assombração, de fazendeiros, histórias

de vida, etc.

O tempo foi passando, me mudei e ainda era pré-adolescente quando cheguei à

Maré, vinda de Del Castilho, removida da avenida Suburbana. Assim que cheguei,

achei tudo muito estranho, a casa era chamada de “Dúplex”, porque tinha dois

andares (embaixo ficava sala, cozinha, banheiro e em cima dois quartos), havia uma

caixa d’água instalada, mas não tinha água encanada. A minha casa ficava numa parte

já aterrada da Maré, na comunidade Nova Holanda, eu visitava várias colegas que

moravam nas palafitas, era divertido e ao mesmo tempo perigoso quando andava nas

pontes sobre as águas e no calor era gostoso, porque sempre molhava meus pés. Outra

diversão era carregar água com o “rola-rola” ou “lata na cabeça” para encher a caixa

d’água. (Era difícil conseguir água, porque tinha que sair pedindo nas casas distantes.)

A minha entrada nesse universo de contar histórias aconteceu através de uma ami-

ga que me informou que haveria uma Oficina de Contação de História no CEASM

(Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré), logo me interessei, pois sempre gostei

de ouvir e contar histórias para os meus filhos. Fiz a inscrição e fui entrevistada, mas

saí de lá com a certeza de que não seria selecionada, pois a faixa etária exigida era de

[Lene Nunes]

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16 a 21 anos. Até então, só conhecia a ONG através de comentários dos moradores.

A ONG CEASM foi fundado em 1997, por alguns moradores universitários que,

a partir de suas ações de militância dentro da comunidade, viram a necessidade de

proporcionar à comunidade o acesso à universidade através do “pré-vestibular comuni-

tário”, o primeiro projeto da instituição. O CEASM atua nas áreas de educação, comu-

nicação e cultura. Como moradora, acho muito importante participar desse resgate e

valorização da história local, passar para os jovens de hoje toda essa luta e resistência,

mostrar que seus pais e avós foram agentes importantes nesse processo de construção

do Bairro, é apresentar a Maré de uma forma diferente do que é mostrado na mídia.

Ao saber que fui selecionada, dei um grito de alegria. O primeiro encontro logo

foi marcado e, então, foi iniciada a oficina. Fui até o encontro feliz da vida, pensando

já no que ia contar caso pedissem, pensei comigo: Acho que vão nos ensinar a con-

tar histórias para crianças, literatura infantil, era uma vez a princesa... Porém, fiquei

surpresa com o andamento da oficina, foi muito além do que imaginava, trabalhei

com dinâmicas, música, som, expressão corporal, leituras e durante uma atividade

diária, onde os participantes contavam suas histórias de vida, foi confeccionado, em

pequenas costuras, um grande tapete colorido que até hoje é utilizado nas contações.

O que mais me atraiu foi saber que ia contar as histórias do bairro da Maré, pesquisar

e entrevistar antigos moradores e a partir disso formular um repertório de histórias,

causos e lendas da região da Maré.

A partir da oficina surgiu o grupo Maré de Histórias, com jovens e adultos do Bairro

da Maré. Demos início ao trabalho com a proposta de atuação nas áreas da cultura e

educação dentro da comunidade, oferecendo às escolas da região oficinas de histórias

com o intuito de divulgação e valorização da memória local. Juntamente com o gru-

po foi iniciado o primeiro trabalho, duas vezes por semana, na Escola Municipal IV

Centenário, Maré. O encontro com as turmas era realizado no pátio, embaixo de uma

árvore onde era estendido o imenso tapete colorido. Nos encontros, eram realizadas

atividades e brincadeiras lúdicas, como jogos de memória e quebra-cabeça com fotos da

Maré antiga, assim os alunos puderam conhecer um pouco mais o local onde moram e

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suas transformações ao longo do tempo. A partir do trabalho feito com o livro “Contos

e Lendas da Maré”, os alunos eram estimulados a ler, conhecer, criar e contar outras

histórias. O mais interessante é que a partir da imaginação de cada um, iam surgindo

através de desenhos e escritos novas maneiras de recontar os contos do livro. Percebi

que, a partir do livro, criou-se um diálogo entre os jovens e seus pais, uma vez que

estes pais vivenciaram e conheceram personagens vivos de alguns causos, surge uma

importância maior e um sentimento de pertencimento dessas histórias, fazendo com

que assim busquem ainda mais informações sobre esses fatos, cada local onde possivel-

mente aconteceram esses causos passaram a ser uma referência dentro da Comunidade.

Com a construção do Museu da Maré, em maio de 2006, minhas ações e as do

grupo foram ampliadas para também atender o público diversificado, recebendo gru-

pos agendados uma vez por semana com contação de histórias. Uns dos contos é o

Casamento na palafita, que eu conto na varanda do Tempo da Casa, segundo tempo

do museu (uma vez que a concepção o divide em doze partes chamadas Tempos). E

é dentro dessa réplica que as pessoas recordam, choram e resgatam, de dentro de si,

toda a memória aterrada, adormecida, de uma época vivida ali. Numa dessas visitas

que eu acompanhei, tive uma experiência com uma senhora que, ao entrar na réplica

de uma palafita, construída dentro do Museu, chorou pelas lembranças que vieram

à tona, ao ver expostos ali vários objetos e pertences que fizeram parte de sua vida.

Quando a levei até o velho fogão Cosmopolita1 e falei do “pente-quente”2, foi uma

emoção ainda maior, pois choramos juntas e lembrei-me da época em que minha mãe

alisava meus cabelos com esse objeto.

Outra experiência que vivi foi no Tempo do Medo. Em uma visita, a filha reco-

nheceu a mãe, os irmãos e o primo numa foto, sentados na ponte, exposta ali, e

contou para a mãe. Na semana seguinte, a mãe veio conhecer o Museu e ficou muito

emocionada com tudo que viu, percebi que ela tinha pressa em chegar onde estava a

tal foto, e, quando chegou perto, apontou um por um de seus familiares e disse: “O

tempo passou, pois nesse retrato aqui, os meus cabelos eram pretos e agora estou com

a cabeça branca. Ah, minha filha, meus meninos caíam muito dentro dessa maré. E

1. Marca de um fogão. 2. Objeto que se esquentava ao fogo para alisar o cabelo (seria a prancha de hoje).

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eu mesma presenciei muita gente caindo dessas pontes e alguns até morreram.”

Minha atuação como contadora de história me possibilitou um envolvimento

maior com um povo que lutou e resistiu à força do tempo, esse trabalho mexeu com

meu passado. Em minha opinião, a arte de contar histórias é viajar, interpretar, viver,

passear pelos caminhos por onde passam cada personagem, e contar as da Maré, é

uma questão de honra, de propriedade e pertencimento.

Como eu sempre digo: “Quem não tem passado não tem história.”

Leituras Inspiradoras

u Livro de contos e lendas da Maré. Vários autores. CEASM, Núcleo de produção

editorial Maré das Letras, INFRAERO.

u Guilherme Augusto Araújo Fernandes. Mem Fox. Brinque-Book.

u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Global.

u Maré, vida na favela. Ivaldo Bertazzo, Drauzio Varella, Paola Berenstein Jacques. Casa

da Palavra.

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oEntre hospitais geraise psiquiátricos:

histórias humanas e literárias como um rio de caudaloso fio,

tecendo redes de encontrosna diversidade de afluências

do viver saudável

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Uma Contadora e um livro de histórias. Uma enfermaria e várias crianças. Foi

assim que os contos chegaram ao Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife

(Brasil), para que pudessem construir laços de parceria com o tratamento quimiote-

rapêutico e cardiológico de crianças.

Vieram fazer parte do Programa A Arte na Medicina às vezes cura, de vez em quando

alivia, mas sempre consola, da Faculdade de Ciências Médicas da UPE (Universidade

de Pernambuco), que já contava com oficinas de artes plásticas, fotografia e vários

instrumentos musicais. Para estas aulas, as crianças precisavam ir até a Escolinha

de Artes e Iniciação Musical, no próprio hospital. Mas e aí? e quando estas crianças

estavam em processo de quimioterapia? E quando as suas defesas, de tão baixas não as

deixavam sair da enfermaria? Que fariam elas? Daí a ideia da Oficina de Contos, para

levar as histórias ao pé da cama, ao pé do ouvido, sobretudo às crianças que, cheias de

achaques e cateteres, mal podiam ficar de pé.

As histórias foram chegando comigo e logo se propagavam por todo aquele andar.

As crianças pediam e a médica prescrevia: amor todos os dias, remédios tal e tal hora

e ao menos uma história por semana. E assim, se cumpria a rotina terapêutica, sem-

pre quebrada pela chegada de gente nova ou pela alta de quem lá estava – às vezes

também se quebrava pela morte, mas isso é uma outra história. E rápido, como efeito

de medicação intravenosa, os contos passaram a fazer parte do tratamento e, uma vez

por semana, cada criança recebia a sua dose de fantasia.

Mas não era só de fantasia que a Oficina de Contos vivia. Porque as histórias

[Kika Freyre]

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literárias, depois de contadas, acabavam por convidar histórias humanas a fazerem

parte daquele cenário. Como numa trança. Como num encontro de águas de rios

diferentes, desaguando num mesmo mar. É isso! E assim, com o fechar do livro, era

passado o fio da palavra às crianças, onde se partilhava alegrias e desassossegos, medos

e surpresas, encontros, dúvidas, delicadezas. A vida e a morte caminhavam juntas,

lado a lado, e não em sentidos opostos como se costuma pensar. As crianças falavam

da saudade de casa, dos irmãos, da escola, dos animais de estimação, da comida

feita pela sua mãe e também falavam de outras crianças que, com o seu mesmo diag-

nóstico, encerravam ali suas histórias, quando elas pareciam estar apenas começando.

A palavra guardava para nós um prestígio de nobreza. E a estas histórias huma-

nas, começamos a dar-lhes fisionomia de contos, criando um mundo onde morassem

para sempre todas as possibilidades, já que, ali, elas eram tão tolhidas pelas rotineiras

normas do tratamento. E, neste mundo, entre o papel e a minha caneta, leite puro

poderia ter gosto de leite com café pra agradar menino, uma vaca podia morrer de

olhos abertos porque foi assim que menino viu sua avó morrer, as injeções podiam se

abraçar dentro da geladeira pra curar solidão de menina, mãe-pomba podia dar cuscuz

na boca do filhote pra agradar outro menino, e menina podia entrar até na fogueira

pra abraçar a mãe sem se queimar, de tanta saudade que ela tinha.

E em reverência a estas histórias, criadas ali na Oncologia, cortejadas pela dificul-

dade, editamos um primeiro livro cheio de histórias e, logo, o segundo. E a palavra

continuava a ser levada pela correnteza da Oficina de Contos, que foi então desaguar

também na Enfermaria da Cardiologia Pediátrica. O processo continuou seguindo o

mesmo fio, reverenciando histórias humanas a ofertar-lhes histórias literárias. E edita-

mos o terceiro e o quarto livros. Depois uma coletânea deles todos com livro e CD.

As histórias humanas passaram a inspirar a criação de histórias literárias e, quan-

do eu chegava, as crianças já anunciavam ter histórias inteirinhas morando em suas

cabeças para me contar. Compomos um movimento bonito, uma sintonia mesmo,

como as ondas e a areia, de ir e vir, de esperar pelo que se sabe chegar e chegar com

maciez, com maciez de se estar tocando em sonhos infantis, uma imensa coleção de

tesouros, rara, sensível, desigual.

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E se os contos nos encantam tanto, nos inspiram tanto e neles nos reconhecemos

tanto, é porque eles trazem expressas em metáforas as nossas necessidades primordiais

de aprender com a vida, de viver as suas aventuras, e o fio da história vem como um

rio, nos carregando na sua correnteza para dentro dela, e estar em uma enfermaria

de hospital, definitivamente, não nos impede de nada. Porque através da partilha da

palavra neste cenário montado entre Contador, criança, história e hospital, o Con-

tador que também escuta a história da criança busca dosificar (e também dulcificar)

a carga pesada de suas histórias humanas, a aproximação com a morte, com o medo,

com a solidão, com a dúvida, com a dor. É diferente de fingir que elas não existem,

atenção! Mas é tentar buscar um equilíbrio, subjetivo, claro, sem receitas, entre toda

a mazela emocional que a aflige e a promessa de felicidade perpétua que encerra as

histórias literárias. E assim, as histórias acabam por às vezes ajudar a curar, n’outras a

aliviar e n’outras ainda a consolar crianças e pais em situação de longo internamento.

Os pais se aproximam mais dos filhos, e o diálogo flui mais transparente, brando, fei-

to água de nascente. E cada vez mais os pais escolhem participar e partilhar histórias

ouvidas, vividas e inventadas.

Porque cada vez mais as pessoas buscam voltar ao tempo deste contato perdido,

de partilhar o olhar, o gesto terno, a graça, a verdade das palavras. E o Contador de

Histórias ganha força neste cenário, porque, para além da história que amortece o

correr dos batimentos cardíacos, amacia a velocidade da pressão arterial, ele, o Con-

tador, oferece no hospital este ambiente de possibilidades. Traz um viver feliz para

sempre provável e a cada encontro, perpetua esta probabilidade. E acreditar nesta

possibilidade de cura pode inverter muitos papéis de doenças. Porque esta crença

acaricia a autoestima, passa um bálsamo na imunidade, elevando os números das

defesas orgânicas. Fisiologicamente as histórias mexem conosco também. Elas entram

pelos nossos poros, pelos nossos olhos, pelas janelas da nossa alma e se alojam ali,

lá dentro, no sótão do nosso coração e a gente sabe que o sangue que passa, carrega

tudo, inclusive os sonhos de cura que as histórias plantam lá naquele cantinho tão

‘desavistado’ dentro de nós.

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Mais uma vez, uma Contadora e um livro de histórias. Uma Casa para tratamento

psiquiátrico de adultos no Recife/Brasil (NAPPE) e outra em Braga/Portugal (Casa

de Saúde do Bom Jesus).

Também aqui os contos chegavam como fios, tentando alinhavar o emaranhado de

desintegrações que faziam sofrer a alma das pessoas que ali buscavam cura, alívio, consolo.

As pessoas com esquizofrenia vivem um processo de desintegração de sua persona-

lidade e os contos ajudam a montar este mosaico desconectado a partir do reconheci-

mento de traços próprios nas características dos personagens. Por alguns momentos,

uma história que pertence a toda a humanidade passa a pertencer a uma só pessoa,

como se falasse dela, como se houvesse sido escrita pra ela, tamanha a empatia com seus

feitos e personagens.

Os contos são oferecidos como acalantos, como uma possibilidade de embalar

sonhos reais, que estavam perdidos ou desacreditados. Eles carregam o cheiro da espe-

rança um dia vivida, sobretudo da esperança de se viver um final feliz em seu próprio

conto real, em sua história de vida.

A estrutura literária dos contos possibilita a reestruturação do pensamento esquizo-

frênico: quando escuta um conto, a pessoa segue o seu fio, seu trajeto e assim começa

a ordenar seus pensamentos quebrados, desconectados a partir de uma mesma ordem

e então é possível se compreender muitas de suas atitudes, dos seus delírios, das suas

ausências, das suas desintegrações com a ‘vida comum’.

Ademais dos contos, também é rico se trabalhar com as imagens que estes con-

tos suscitam nas pessoas. Com estas imagens, propomos a conexão entre a história

literária e a história de vida, história humana. Uma conexão com o que há de saudá-

vel nesta pessoa que sofre e buscar fazer com que esta salubridade se manifeste frente

à doença. É um duelo difícil, mas possível. Ao escutar, escrever, ler e contar esta

história ao longo do seu tratamento, a pessoa que está doente começa a tomar posse

da sua própria história, vai juntando as linhas para tecer-se como o croché de um novo

sujeito que agora se reconhece e conhece o seu entorno e pode ir voltando a tomar as

suas próprias decisões e voltar a funcionar de forma ativa em sua vida; podendo falar

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de si e conhecendo os seus limites, pode fazer com que as novas histórias os ampliem

cada vez mais.

Este é o objetivo de se trazer as histórias, do popular para o individual, do plural

para o singular, e cuidar de feridas emocionais tão particulares e tão comuns. E nesta

teia de diversidades, tínhamos a pluralidade humana, a constantemente enriquecer

o nosso enredo:

Esta menina aqui é Contadora de Histórias. Contou-nos uma história tão linda e tão interes-

sante na passada quinta-feira, que eu pedi a cópia para reler todas as vezes que a coragem me

faltar para resolver a minha vida. Eu nunca vi um lugar com Contadora de Histórias, mas

aqui é assim. E foi a melhor coisa que me aconteceu aí dentro. Eu quero esquecer que adoeci

e tive que me internar estes dez dias por causa do meu marido, quero esquecer! Mas quero

lembrar sempre desta história porque ela me ajudou a resolver como a tecelã resolveu. E depois

eu percebi o que eu quero e percebi que não quero esta vida para mim, de trabalhar por quem

só me quer para serviçal. Eu nunca vou esquecer esta história. Parece que a menina adivinhou

e a trouxe mesmo para mim. Obrigada! Joca, 53 anos

Para este trabalho com histórias, o diagnóstico pouco importa. O rótulo mais

importante é o nome de cada uma destas pessoas – que também escolhem alcunhas

para quando as suas frases aparecerem citadas. E sempre começamos a trabalhar em

busca de se conhecer a história deste nome que se carrega por toda biografia, que,

para tanta gente, traz uma força desigual. E, a partir daí, partilhamos enredos onde as

pessoas traduzem capítulos das suas vidas... e das suas tantas mortes.

São importantes as histórias para uma pessoa ouvir e vir a pensar sobre o que está a fazer

da sua vida. Vico, 38 anos

E cavando os alicerces dos seus trajetos, encontramos pessoas que foram se cons-

truindo enchidas de nada, carentes, carentes de tudo, inclusive de ouvidos para suas

próprias histórias. E diante deste manancial, fazemos juntas um trabalho arqueológi-

co mesmo. Trabalhamos com memória, com acervo, com patrimônio imaterial. Tra-

balhamos com a leitura e a constante proposta de releitura dos fatos vividos em busca

de um sentido para esta vida.

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Há histórias que trazem mistérios. Eu gosto do mistério das histórias. As nossas vidas tam-

bém trazem mistérios. As histórias são as nossas vidas contadas aos poucos, de mistério em

mistério. Carlota, 39 anos

Trabalhamos com o que está guardado. Trabalhamos com o mistério e com os

tantos vazios que às vezes passamos a vida inteira em busca de conseguir preencher.

Trabalhamos com o que ficou retido daquele ‘eu’ que, com receio do mundo, encon-

trou no adoecer a única possibilidade de conseguir sobreviver. Trabalhamos com a

verdade. Não a verdade que se cria para se apresentar ao mundo, a verdade social, mas

a verdade íntima, profunda, desigual. Aquela que existia antes do mundo imprimir

a nossa imagem em nós. Daí a importância da posse da nossa história. Da história

legitimamente nossa, genuína. Construída com as linhas que contornam nosso sem-

blante, que tatuam a nossa alma e nos acompanham por toda a caminhada; para que

saibamos reconhecer quando aquele enredo ou aqueles personagens não fazem parte

dos nossos capítulos e, assim, possamos construir e demarcar nossos parágrafos com

os nossos próprios pontos finais.

E peneirando os tesouros brotados entre histórias humanas e literárias, editamos

dois livros com contos criados na partilha de olhares, palavras e silêncios.

‘ A lenda das sementes e outras histórias bonitas (FREYRE, Kika [Org.], Ed. Livro

Rápido, Olinda, 2006)

‘ À margem de um sol poente… histórias de vários caminhos (FREYRE, Kika [Org.], Ed.

Novo Estilo, Recife, 2007)

E assim, seguimos buscando e partilhando o que há de saudável, nobre e rico,

o que ainda está guardado no sótão do coração da alma, onde a doença pode até

tentar chegar, mas não alcança. Onde as metáforas da vida e os desassossegos diários

propõem novas esperanças a cada nascer do sol.

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Ser mulher com doença mental é o nosso desassossego dia-após-dia. É preciso ter força de

vontade para que sejamos grandes pessoas na sociedade e no meio em que estamos a viver.

As histórias ajudam-nos a buscar esta força dentro de nós, onde ela existe de verdade. As

histórias ajudam-nos a não perdermos a fé em nós. LaraLinda, 49 anos

E isto é tudo.

Leituras Inspiradoras

u A Psicanálise dos contos de fadas. Bruno Bettelheim. Paz e Terra, 1980.

u O que conta o conto? Jette Bonaventure. Paulus, 1992.

u No terreno das histórias… sementes de uma medicina humanizada – histórias

para acordar os homens e celebrar a vida. Kika Freyre & Paulo F. B. C .Mello.

EDUPE, 2009.

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oContos na prisão: um espaço

chamado liberdade

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Contadores de Histórias sempre me fascinaram. Que magia era aquela, capaz de

transportar, encantar, transformar, emocionar, divertir, unir, confortar? Qual seria

a motivação dessa gente portadora de histórias tão poderosas? De onde vinha tamanha

generosidade, para entregá-las nas horas mais necessárias? E o talento para transformar

em arte o singelo ato de narrar? Com as histórias aprendi a fazer perguntas e a bus-

car respostas diretamente na fonte. Aprendi também que contamos as nossas próprias

experiências. Não nos apaixonamos por um conto de fadas em vão. A partir dessa

reflexão, percebi de onde vinha a minha própria vontade de contar: da necessidade de

me expressar no mundo, de repartir minhas experiências de uma maneira lúdica e inte-

ressante, de ajudar o outro através da palavra do conto, do mesmo modo como sempre

me senti confortada ao ouvir histórias. O discurso direto, as exortações e explanações

meramente racionais, não possuem a força e o poder de tocar os corações, como uma

história bem contada possui. O tempo do “era uma vez” é mágico; é um tempo verbal

que só existe no faz de conta, terreno onde temos a possibilidade de resolver nossas

angústias por meio das aventuras e desventuras dos heróis. Descobri que não estava sozi-

nha, que mais alguém viveu os mesmos medos e inseguranças que eu. E isso fez pressão

no meu peito: eu precisava compartilhar isso com os outros.

Comecei contando para a família e os amigos. Na medida em que fui me pro-

fissionalizando, passei a me apresentar em associações, espaços culturais, escolas e

empresas. Até que em 1998 propus ao Tribunal de Justiça, onde sou funcionária

concursada, o Projeto Conto Sete em Ponto, constituído por espetáculos mensais de

Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

José Saramago

[Rosana Mont’Alverne]

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narração de histórias, sempre na última quinta-feira do mês, no melhor estilo Mush-

kil Gusha (se você ainda não conhece a história de Mushkil Gusha, não perca tempo,

existem versões na internet). Durante os dez anos em que o projeto foi realizado nos

auditórios daquela instituição, fizemos dois concursos, que revelaram novos talentos

da arte narrativa e que resultaram em dois livros: Uma história para contar (2004) e

Histórias que ouvi, histórias que vivi: o lado inusitado e pitoresco da Justiça Mineira (2005).

O Conto Sete em Ponto hoje é realizado também em Ouro Preto e, em Belo Hori-

zonte, os espetáculos acontecem mensalmente no Palácio das Artes.

Os contos tradicionais e a literatura escrita, por possuírem ensinamentos que

ultrapassaram séculos e regiões do mundo inteiro, têm o poder de nos apontar

direções, de produzir insights e de nos despertar de um longo sono. Alguns têm verda-

deiro poder de cura e parecem chegar na hora certa para nos auxiliar em momentos

de escolhas difíceis, mudanças de fases de vida e início de novos projetos. Além do

mais, uma roda de histórias é sempre uma diversão e um momento de religação com

o que temos de mais humano: nossa capacidade de nos percebermos como seres em

movimento; partes de um elo ancestral que nos une e nos lembra de nossa verdadeira

identidade. Em um mundo cheio de padrões e modelos a seguir e a consumir (roupas,

comida, música, modo de vida etc.), as histórias nos ajudam a nos lembrar quem

somos, de onde viemos e para onde vamos. Nesse trajeto, sem dúvida, estaremos mais

seguros se acompanhados de uma boa história.

Em setembro de 2004, recebi uma carta inusitada. O Juiz da Vara de Execuções

Penais de Itaúna, Dr. Paulo Antônio de Carvalho, que conhecia o meu trabalho com

a arte de contar histórias, convidou-me a ministrar oficinas semanais de contos para

os presos da APAC de Itaúna — MG (Associação de Proteção e Assistência aos Conde-

nados). Arrematou o convite com um verso de Cecília Meireles: “Não faças de ti um

sonho a realizar. Vai”. Confesso que dúvidas e medos me cercaram. Estaria pronta

para a tarefa? Senti que chegava a hora de experimentar o poder da palavra do conta-

dor de histórias no espaço da coerção, da punição, da privação da liberdade: a prisão.

Lembrei-me da situação carcerária no Brasil, que, diga-se de passagem, é ampla-

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mente conhecida de todos os brasileiros minimamente informados. O sistema penal

brasileiro vem sofrendo modificações legislativas, muitas vezes por pressão da socie-

dade, que vê no recrudescimento das penas e do aparato penitenciário a solução

para a questão da segurança pública e da defesa social. Porém, cresce o número de

encarcerados e cresce também a criminalidade. Não é mais possível e nem útil nos

negarmos a reconhecer que os criminosos são parte do mesmo tecido social do qual

também fazemos parte.

Nesse tecido, eles tanto influenciam quanto são influenciados. Trabalhar pela

recuperação real dessas pessoas, a fim de que possam se reintegrar de forma harmo-

niosa na comunidade, oferecer-lhes a oportunidade da socialização em lugar de excluí-

las parece ser a melhor alternativa, senão a única, na busca de uma solução definitiva

do problema. Essa não é uma tarefa só do aparato estatal, mas de toda a sociedade.

Mas é preciso esclarecer que a APAC de Itaúna é um estabelecimento prisional

diferente, uma associação civil juridicamente constituída, sem fins lucrativos e tem

apoio dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado de Minas Gerais. Sua filosofia de

trabalho é a de que um bandido recuperado é um bandido a menos nas ruas. Lá não

há policiais nem agentes carcerários. Voluntários atuam em diversas áreas e os presos

tomam conta dos presos. A APAC de Itaúna é referência mundial em recuperação de

presos e foi o solo fértil para o desenvolvimento do trabalho com os contos.

Nem é preciso dizer que aceitei o convite. Quantas portas se abrem quando nos

permitimos entrar na aventura e nos lançamos com paixão em nosso ofício!

Os participantes – todos condenados cumprindo pena em regime fechado –

começaram a escutar histórias, contar, recontar, ler e criar, além de ter aulas sobre

postura corporal, técnica vocal, expressão oral, gestual e visual e outros segredos que

formam o bom contador de histórias. Nas improvisações, a criatividade e a memória

são estimuladas; surgem belíssimas histórias, transcritas e incorporadas ao repertório

do grupo. Antigos contos de fadas são recontados e discutidos, gerando reflexão e

aprendizagem. Os contos surgem como opção de resignificação de vidas, de encanta-

mento da própria história, que passa a ter valor. Esse é o principal objetivo do projeto:

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enriquecer o imaginário dos presos, trazendo-lhes novas representações, situações

semelhantes às suas, mas tratadas de outra maneira. Trata-se de oferecer-lhes a chance

de se recriarem em uma nova história onde a queda seja um acidente de percurso e

não um destino irrefutável. Um acidente com o qual se aprende o que tiver para ser

aprendido e se avança no caminho.

Como resultado desse trabalho, foi formado um Grupo – os Encantadores de

Histórias – que desde 2004 vem representando a APAC de Itaúna em outras cidades,

sensibilizando as comunidades para a necessidade de outro olhar e novas atitudes

quanto à recuperação de presos. O Grupo já se apresentou também em diversas uni-

versidades, Encontros Internacionais de Contadores de Histórias no Rio e em São

Paulo, presídios, Centros de Internação de Menores Infratores, Encontros de Magis-

trados, escolas, creches e teatros. Também já foi publicado o primeiro livro de autoria

coletiva do Grupo: O segredo da caixa (2006). A escolha do nome do Grupo, sugerida

pelos próprios presos, foi uma grata revelação: Encantadores de Histórias. A beleza do

nome reflete um poderoso desejo se não apenas contar, mas encantar, o que, segundo

os dicionários, significa: “exercer encantamento em; tornar-se encantado”. Não espe-

rava o nível de envolvimento do grupo com a proposta nem o quanto aprenderia

com eles. Durante as primeiras oficinas, lembrava-me recorrentemente das palavras

de Guimarães Rosa: “mestre é aquele que de repente aprende”.

Falar de arte-educação e contos de fadas dentro de uma cadeia como possibilidade

de recuperação pode parecer, à primeira vista, mais uma utopia. Será que contadores

de histórias e esses teóricos da arte-educação já entraram em uma penitenciária pelo

menos uma vez na vida? Será que eles acham que contando histórias ou ouvindo as

histórias dos presos, estes vão sair de lá bonzinhos e nunca mais voltarão ao crime?

Certo é que por detrás de uma sociedade cada vez mais armada, onde as empresas de

segurança proliferam e auferem lucros exorbitantes, onde crescem os condomínios

fechados, onde impera a truculência policial, a violência urbana, os morros ocupados

por traficantes e onde os altos índices de morte violenta causam indignação a poucos,

há um sentimento: o MEDO.

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Como disse o então Presidente da APAC de Itaúna, atual Presidente da FBAC

(Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados), Valdeci Antônio Ferreira:

A sociedade vive hoje o drama do medo. É como se ninguém mais pudesse se sentir seguro.

Medo do terrorismo. Medo do tráfico de drogas. Medo da violência e da poluição. Medo

do desemprego e da solidão. Medo da guerra e do abandono. Medo da doença e da velhice.

Medo das balas perdidas e das balas não encontradas. Medo de que chova muito e leve as

casas. Medo de que não chova e aumente a fome. Medo da fraude e da corrupção. Medo da

verdade que dói e da mentira que mata.

Os presidiários também vivem nesse constante estado de medo. Temem as fugas,

as rebeliões, a doença, a morte na calada da noite, além de temerem o que está além

do seu controle, no mundo exterior: a reação da família, a infidelidade do cônjuge, o

rigor do julgamento e a (não) assistência do advogado. O medo funciona como uma

doença, afetando o nosso bem-estar e disseminando insegurança. A cura, ou seja, a

restauração da tranquilidade, é uma necessidade de todos nós. Valdeci Antônio Fer-

reira também percebeu esses sentimentos e concluiu:

Nesse momento, me vem à memória as minhas avós já falecidas, minha mãe e meu pai em

volta do fogão à lenha, comendo biscoito frito e tomando café. Recordo-me, com saudades,

das histórias contadas e recontadas para afastar o nosso medo de criança. (...) Tem gente

que conta histórias para afastar o medo; e essas histórias contadas e recontadas possuem o

dom de encantar a vida.

Contra o medo – nosso e dos presos – acredito na contribuição da força da pala-

vra do conto ou da palavra encantada ou, ainda, na força na “boa palavra”, que carre-

ga consigo a sabedoria e a possibilidade de dar nova interpretação a fatos do passado

que não podem ser mudados. A palavra do contador de histórias, trabalhada artisti-

camente, ganha o atrativo estético, que cativa e encanta o ouvinte, conduzindo-o até

a sabedoria e aos ensinamentos guardados no conto. A arte permite que o ouvinte se

integre ao que é sublime, enriquecendo a experiência.

Na atualidade, o retorno da prática da narração de histórias obedece a uma neces-

sidade que extrapola a intenção profissional do artista, mas favorece a função social da

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prática e o bem-estar individual. A integração de um indivíduo mais equilibrado com o

mundo ao seu redor é um dos efeitos que se destaca a partir do diálogo com os contos.

Um presidiário é duplamente condenado. Primeiro pela Justiça e, nesse caso,

cumpre pena pelos seus próprios delitos praticados. Não é o caso de, aqui, entrar

nesse mérito. Quanto à segunda condenação, sim. A segunda condenação de um

presidiário é pela linguagem. Esta o aprisiona num estado de pouca mobilidade, pois,

muitas vezes, é pobre em imagens e vazia de sentidos; e, ainda que não o seja, a

repetição incessante de um mesmo “trecho” da própria história – esse que o levou à

condição de presidiário – tende a fixá-lo num estranho curriculum repetido como uma

litania que, aos poucos, o caracteriza como lenda viva, que fascina e atrai a curiosi-

dade mórbida em seu entorno.

Muitos podem sugerir que a superpopulação carcerária, as condições deficientes

de trabalho dos presos ou o ócio completo, a falta de higiene, a promiscuidade sexual,

a assistência psicológica deficiente ou inexistente e problemas como corrupção e vio-

lência são fatores que precisam ser enfrentados prioritariamente. E estão certos. É

preciso uma conjugação de forças, trabalho e método a fim de que se obtenha o ambi-

ente propício para o plantio de sementes como, por exemplo, iniciativas no campo da

arte-educação. No caso, as sementes das histórias. Mas é bom lembrar que, no Brasil

ou em qualquer lugar do mundo, nem sempre podemos contar com as condições

ideais para começar um empreendimento. Às vezes, é preciso simplesmente começar.

Muito cedo aprendi que nada nessa vida vem de graça, tudo é fruto de esforço e muito

trabalho, como dizia minha mãe. Também meu avô, com sua sabedoria de matuto,

ensinava a evitar os atalhos nos longos caminhos a percorrer na construção dos son-

hos: se atalho fosse bom, não existiriam os arredores, dizia, entre uma baforada e outra do

cigarrinho de palha. Aprendi, mais tarde, que Gaston Bachelard lhes daria razão ao

afirmar, na sua obra O direito de sonhar, que nada é dado, tudo é construído. Se é assim,

tudo é possível, até transformar presidiários em cativantes contadores de histórias.

Por que não?

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Leituras Inspiradoras

u As prisões da miséria. Loïc Wacquant. Jorge Zahar Editor, 2001.

u Mulheres que correm com os lobos. Clarissa P. Estés. Rocco, 1992.

u Le droit de rêver. Gastón Bachelard. PUF, 1970.

u Correspondências do cárcere: um estudo sobre a linguagem de prisioneiros.

Rosana de Mont’Alverne Neto. Dissertação de Mestrado em Educação. UFMG, 2009,

disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/FAEC-

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oHistórias em sinais

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A primeira aproximação que tive com pessoas surdas e a língua de sinais foi

através de Cursos de Libras e, posteriormente, como professora de português em

uma escola de surdos. Aproximação que trouxe e traz rupturas, possibilidades, deslo-

camentos. Estranhamento diante da língua e da cultura surda. Fala suspensa, sinais

que emergem, sinais que capturam o olhar e a atenção. Sinais que contam histórias.

“Atenção aos sinais!” foram os enunciados propositivos nos cursos de Libras e nos

diálogos com os surdos! Olhares atentos, histórias em sinais trouxeram-me experiên-

cias com a língua de sinais, uma língua que flui através de mãos que vão combi-

nando movimentos, configurações de mão, pontos de articulação, expressões faciais

e corporais, posicionando o sujeito discursivamente. Visual-gestual, modalidade de

uma língua de sinais, que alavanca uma diferença na forma como tradicionalmente

concebemos as línguas. Línguas de sinais que nos posicionam e nos jogam para outra

experiência: aquela em que o logofonocentrismo é deslocado.

Olhares atentos, mãos ágeis e a ressignificação dos enunciados – difícil, longo,

constante, mas atraente aprendizado. A língua sendo tecida naquele espaço de enun-

ciação em frente ao corpo, com sinais articulados em diferentes camadas linguísti-

cas. Discursivamente nos posicionamos, as armas sonoras silenciam, possibilitando

o cultivo de uma outra experiência, em uma comunidade que interpela nosso olhar,

nossos sinais.

Não é simplesmente um deslocamento da experiência linguística falada para

outra, que é visual. Trata-se, antes de tudo, de considerar que há sinais que nos per-

[Lodenir Karnopp]

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mitem olhar e outros que nos ensinam a olhar. Olhar a cultura, o sujeito, a língua. A

experiência, e aqui com referência à experiência de uma língua visual, é aquilo que

“nos passa, que nos acontece, o que nos toca”. A experiência que estamos referindo

considera “aquilo que nos acontece, nos sucede”1.

Fui paulatinamente me aproximando das histórias que são contadas em Libras

através das mãos que contam histórias. No entanto, esse contato ocorreu após alguns

anos de convívio com a comunidade surda. Como professora de português, meu

olhar esteve muito centrado em ensinar português. Ao me aproximar da comunidade

de surdos, conviver com amigos surdos e ler textos relacionados às experiências de

vida de pessoas surdas, tanto em narrativas sinalizadas quanto em textos acadêmicos,

encontrei outras possibilidades de diálogo, de trocas, de aprendizados. Aprendi, por

exemplo, com Miranda (2001), pesquisador surdo, que a escrita na língua portuguesa

continua sendo a camisa de força que limita e conforma o saber à capacidade de

decifração gráfica. Muitos dos programas de educação fracassam, também porque

parte-se do princípio de que a língua portuguesa deve ser igual para todos. E esses

todos são pessoas tratadas como monolíngues, assexuadas, sem história ou idade, sem

raça, sem emprego, sem desejos. O apagamento da diferença linguística e cultural

tem historicamente posicionado o surdo como ‘deficiente linguístico’, prevalecendo o

acento em uma tradição que rejeita a existência de uma pluralidade de manifestações

linguísticas.

Presenciamos cenas em que não se reconhece a situação bilíngue do surdo e se

rejeita de forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente. Diante de

tais cenas, uma das maiores contribuições que contadores de histórias, pesquisadores

e educadores de surdos podem prestar hoje é varrer a ilusão da “deficiência linguísti-

ca” e trazer para o cenário outras histórias, outras imagens, outras narrativas, outras

traduções, outras línguas, outros olhares.

Apesar de mudanças significativas na legislação e de iniciativas de algumas insti-

tuições, o fato é que, há muito tempo, temos por parte dos surdos uma luta histórica

tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é devida, não somente

1. (Larrosa 2002, p. 24)

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nos espaços escolares, mas também na mídia e nos diferentes artefatos culturais.

Sabe-se que há a predominância de uma única forma linguística, silenciando as mani-

festações linguísticas tecidas em outras línguas, como é o caso, inclusive, da Libras.

Desse modo, é “emudecida a trova, são silenciadas as histórias antes contadas nas

quermesses, põe-se para adormecer a memória popular, imobilizam-se as mãos e as

narrativas que os sinais tecem.” (Souza 2000, p. 87)

O desafio é, então, explorar as condições de possibilidade de um olhar sobre a

surdez que não se limite à deficiência, limitação, incapacidade. Que não se limite a

uma “aceitação” ou tolerância da língua de sinais.

Aproximei-me de narrativas, de poemas em Libras através de histórias contadas

por surdos em diferentes momentos: nas associações de surdos, nos encontros anuais

da Feira do Livro em Porto Alegre, em escolas de surdos. Épicos, poemas, anedotas

e contos foram capturando meu olhar, minha atenção, tornando-se um dos temas

de pesquisa que venho realizando. O encontro com a literatura surda, com histórias

contadas em sinais e com traduções de diferentes histórias traduzidas para a Libras

foram trazendo a articulação de olhares entre/culturas. Esse movimento poético/

político evidenciou que “Os surdos começam a se narrar de uma forma diferente, a

serem representados por outros discursos, a desenvolverem novas identidades surdas,

fundamentadas na diferença (...)” (Skliar 1999, p. 12).

Nas últimas três décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comu-

nidades surdas, em diferentes espaços, especialmente, o reconhecimento da cultura

surda e a oficialização da Língua de Sinais Brasileira. Produções culturais de surdos

possibilitaram a elaboração de outras representações sobre os surdos.

Atualmente desenvolvemos um projeto de pesquisa intitulado Literatura Surda.

Buscamos histórias que são contadas por surdos contadores de histórias em diferen-

tes regiões no Brasil, em Libras, seja presencialmente (em Associações de Surdos,

Escolas de Surdos...) ou virtualmente (internet, youtube). Quando analisamos a Li-

teratura Surda, a primeira observação que podemos fazer é que ela tem uma tradição

próxima a culturas que transmitem suas histórias oral e presencialmente. Manifesta-se

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nas histórias contadas em sinais; no entanto, o registro de histórias contadas no pas-

sado permanece na memória de algumas pessoas surdas ou foram esquecidas. Desse

modo, quando analisamos as histórias contadas em sinais, percebemos formas visuais

do registro dessas histórias, por exemplo, através da filmagem de histórias (fitas VHS,

CD, DVD), de textos impressos que apresentam imagens, fotos e/ou traduções para

o português. O registro da literatura surda começou a ser possível principalmente a

partir do reconhecimento da Libras e do acesso à tecnologia, que possibilitaram for-

mas visuais de registro dos sinais.

As histórias contadas por surdos em línguas de sinais marcam a cultura surda, são

caracterizadas pela experiência visual, corporificadas em prosa e verso de um modo

singular, em que o enredo, a trama, a linguagem utilizada e os sinais evidenciam

o caminho da autorepresentação dos surdos na luta pelo estabelecimento do que

reconhecem como suas identidades, legitimando sua língua, suas formas de narrar as

histórias, suas formas de existência, suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os

produtos culturais que consomem e que produzem.

Para a análise das produções culturais em comunidades de surdos, deslocamo-nos

entre a diferença linguística e cultural, entre fronteiras definidas e limites porosos, entre

pessoas que compartilham a experiência visual e o uso de uma língua de sinais. Como

pesquisadores, preocupa-nos o fato de que o que aparentemente são “histórias que nos

fazem rir” possam, no entanto, servir para nutrir caricaturas e estereótipos. Entramos

em cena à procura de histórias e, às vezes, involuntariamente, caminhamos em direção

ao campo das construções do “outro”, nutrindo uma política de representação que fre-

quentemente contribui para uma caricatura das mulheres e dos homens surdos.

Uma vez que coletamos histórias de nossos contadores, a próxima etapa a demons-

trar dificuldade envolve a interpretação, a tradução e a intraduzibilidade. Quando

analisamos e traduzimos histórias/narrativas produzidas em língua de sinais, nós –

pesquisadores — estamos inclinados a sermos atraídos pelo exótico, pelo bizarro, pelo

violento. À medida que fazemos uma reflexão sobre as narrativas em sinais, nos sen-

timos na obrigação de explorar meticulosamente a rotina, o cotidiano, a experiência

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de ser surdo e usuário de uma língua minoritária, sinalizada.

Reconhecemos que traduzir histórias pode apresentar diferentes possibilidades de

análise. A convergência é improvável e, talvez, indesejável. Enfim, suscetíveis à con-

tradição, à heterogeneidade e à multiplicidade, produzimos uma colcha de histórias

e uma tela de sinais que conversam entre si em tom de disputa, dissonância, apoio,

diálogo, contenda e/ou contradição.

Leituras Inspiradoras

u O nome dos outros. Narrando a alteridade na cultura e na educação. Silvia Duschatzky

e Carlos Skliar. In: Habitantes de Babel. Políticas e poéticas da diferença. Jorge

Larrosa e Carlos Skliar. Autêntica, 2001, p. 119–138.

u Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Jorge Larrosa. Revista Brasileira

de Educação. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, n. 19,

2002, p. 20-28.

u Atualidade da educação bilíngüe para surdos. Carlos Skliar (org.). Mediação, 1999.

(vol. 1 e 2)

u Que palavra que te falta? Lingüística, educação e surdez. Regina Maria de Souza.

Martins Fontes, 1998.

u Contando histórias sobre surdos(as) e surdez. Rosa Silveira. In: Estudos Culturais em

Educação. Marisa V. Costa. UFRGS, 2000.

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oPalavras táteis

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Entrei na sala e encontrei uma plateia barulhenta, sentada de forma muito

desorganizada. Uma plateia que não se dispunha frontalmente ao palco, como é

de hábito em apresentações. O espaço físico era preenchido por aqueles corpos numa

composição incomum aos meus olhos necessitados de harmonia formal. Desejei criar

frases em relevo no chão e em cada letra, dispor uma cadeira, alinhando palavras e

corpos. Palavras táteis que organizassem, conduzissem e distribuíssem aquelas pessoas

no espaço. Mas isso foi só um lampejo, habituada que estou a me valer das palavras

para dar conta do inusitado.

Tenho por costume sorrir para cumprimentar e para chamar a atenção. É uma

espécie de cartão de visitas que captura o olhar do outro e me coloca na zona privile-

giada do foco. Sorrio com o corpo todo e sei o que meu sorriso provoca. Contudo,

não adiantaria nada este recurso. A menos que eu esculpisse pelas paredes meu rosto

e convocasse todos ao toque. Imaginei diversas bocas escancaradas em alegria tátil,

cumprindo sua função costumeira de simpatia. Isso era mais um raio de imaginação,

buscando adaptar meios para resolver a realidade nova que se me apresentava.

Inspirei fundo e escolhi a dedo as palavras que trariam para mim a atenção de

todos. Pressenti que escolher a forma de dizer seria mais contundente do que as

palavras em si. E como nos exercícios de leitura, imaginei uma mesma frase sendo

dita com ternura, com veemência, com desleixo, com piedade, em tom de súplica.

Ensaiei baixinho, só na minha cabeça. Quantas entradas diferentes eu poderia ter

nesta mesma sala, quantas impressões diferentes poderia causar apenas pela maneira

[AnaLu Palma]

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diversa de me dirigir ao público. Escolhi as palavras sopradas do coração.

Súbito silêncio. E eu, tão afeita a silêncios meditativos, gostaria de assim per-

manecer. Procurar uma comunicação outra, cinestésica, sensorial, perceptiva, quando

ondas calorosas e coloridas se comunicariam umas com as outras. E um turbilhão de

auras tomaria a sala, deslizando livres e expressivas, comunicando os estados emocio-

nais mais escondidos na alma. Todos os sentimentos se revelariam. Um mar de luzes

interagindo, se harmonizando, se fundindo... Até que uma voz perguntou:

Vai começar?

Imaginei o barulhento: Começa! Começa! Começa!

Abri o livro. Recebi o vento da folha (de) no rosto. Minhas mãos deslizaram pela

página. Eu queria tocar as palavras, mas palavra de vidente é chata, amassada, com-

primida. Minhas letras não são de arquiteto, afeitas ao carinho da pele. Desejei a tex-

tura do A, me aproximar do G, tocar o Q. As palavras não estão ao alcance de minhas

mãos: tenho dedos que não leem. Elas se dão aos meus olhos, vejo-as. Queria tatuar

em minha pele um poema de Pessoa em relevo.

As palavras inanimadas do livro tomaram a forma dos estados de alma propostos

pelo autor. Busquei um contato com a plateia através dos sons que emitia. As pala-

vras saíam de minha garganta e meus lábios como pedaços de ideias tridimensionais.

Assim, iam sendo transportadas e arquivadas na lembrança dos ouvintes. Eram peda-

ços imateriais a repercutir no espírito daqueles que me emprestavam os ouvidos.

Minha voz queria ir ao encontro do outro, aniquilar nossas solidões, fazer unas

as dores, angústias, paixões, alegrias. Minha voz articulada em palavras criava pontes

unificadoras e humanas.

Contar histórias para pessoas cegas abriu minha imaginação, porque precisei lidar

com uma realidade completamente diferente da minha. Fez com que eu saísse de

minha condição de quem enxerga para compreender o que era ser e estar no mundo

sem poder ver o pôr do sol ou sem enxergar o rosto do homem amado.

No contato com esta realidade pude compreender a escassez de livros disponíveis

para os cegos e eu, tão afeita à literatura, decidi trabalhar, criando um acervo de livros

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gravados. Contudo, eu sozinha seria incapaz de dar conta do mercado editorial...

passei a buscar aliados que ampliassem a quantidade de livros acessíveis: muitas vozes

contando muitas histórias, com o propósito único de distribuir livros.

A importância de contar histórias para as pessoas com deficiência visual é a mes-

ma para aquelas que não o são, enriquece a vida, abastece a alma, dá profundidade à

mente. Quando um novo livro se abre para que as palavras impressas se tornem som

é o reencontro com o princípio: o verbo.

Entretanto, esta estrada jamais foi de mão única. Quantas vezes sentei-me quieta

enquanto alguma amiga não vidente abria seu volumoso livro feito de palavras em relevo,

de palavras que não sei ler. Minha escuta perpassava várias dimensões humanas, até atin-

gir a escuta interna de meu coração feliz, ritmado com as palavras tocadas e proferidas.

Lindo foi ver crianças de uma escola diante de uma contadora de histórias cega1.

As crianças alvoroçadas, incrédulas, perguntando como era possível com o deslizar

do dedo construir frases. Elas queriam tocar também, não apenas as palavras, mas

a contadora de história, para certificarem-se de que era real. Alguma coisa muito

especial ficou gravada para sempre na memória daquelas crianças. Era a chance de

compreender a diferença naquilo em que é mais potente: a diversidade humana, tão

rica, tão bela, tão facilmente integrável.

Se hoje minha voz é capaz de modulações variadas, devo aos ouvidos que precisei

conquistar. Se hoje minha sensibilidade é aguçada, devo à utilização dos sentidos. Se

hoje componho história é para aproximar os que enxergam dos que não enxergam ou

que enxergam de uma forma diferente.

Assim, formou-se o acervo de quatrocentos livros. Hoje, oito países que falam esta

Língua com a qual me comunico com vocês poderão ouvir todos estes encantamentos.

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,

Voando pela noite silenciosa,

A fada das crianças vem, luzindo.

Papoulas a coroam, e, cobrindo

Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

1. Aconteceu na Biblioteca Infantil da UNIRIO em novembro de 2008.

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À criança que dorme chega leve,

E, pondo-lhe na fonte a mão de neve,

Os seus cabelos de ouro acaricia –

E sonhos lindos, como ninguém teve,

A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam

Em coisas vivas, e um cortejo formam:

Cavalos e soldados e bonecas,

Ursos e pretos, que vêm, que vão e tornam,

E palhaços que tocam em rebecas...

E há figuras pequenas em engraçadas

Que brincam e dão saltos e passadas...

Mas vem o dia, e, leve e graciosa,

Pé ante pé, volta a melhor das fadas

Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.2

(PESSOA, 1997: 562)

Leitura Inspiradora

u A Voz do Ator Vidente: O Caminho Sonoro para o Ator com Deficiência Visual. Ana

Lúcia Palma Gonçalves. In: Temas em inclusão: saberes e práticas. Aliny Lamoglia

(Org.). Synergia, 2009.

2. PESSOA, Fernando. Obra Poética – Volume Único. In Poesias Coligidas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1997.

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E eles foram felizes para sempre. — disse a mãe fechando o livro.

Demorou muito para eles chegarem lá? — perguntou o menino de quatro anos.

Lá onde, meu filho?

Eles não foram felizes para sempre? Onde é que fica esse sempre?

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Não é uma pergunta absurda. Não é uma pergunta banal. SEMPRE pode não ser

um lugar para onde se vá, digamos, a pé ou a cavalo. Mas com certeza é um lugar

onde se vive. Onde moram os contos milenares, sementeiros ancestrais da palavra

que se renova, a todo instante e em qualquer espaço, na voz de cada contador ou

contadora de estórias.

Guimarães Rosa disse uma vez numa célebre entrevista:

“Para quem vive no Infinito, como eu...”

Penso aqui com meus botões, que o SEMPRE é um lugar dentro da gente, como

outros que habitamos, dependendo da circunstância.

Há o lugar do “imediatamente” para onde queremos ir quando aquele chocolate

nos acena da prateleira. O lugar do “nunca mais” onde muitas vezes nos grudamos

feito chicletes de sofrimento e saudade.E tantos outros lugares que compõem o que-

bra cabeças daquilo que acreditamos que somos nós.

A imagem que me aparece do SEMPRE é a de um lugar vazio, que pode ser tudo

e ter tudo. Não de qualquer jeito, desarrumado, uma bagunça, mas numa ordem

absolutamente mutável segundo a gramática da Fantasia.

É o lugar em que, quando criança, a gente brincava de cabaninha. A gente se

metia embaixo de lençóis e colchonetes muito bem arrumados pra gente caber lá

dentro com nossos travesseiros e o que mais desse vontade. Para viver o SEMPRE.

O SEMPRE que nunca foi antes e nunca será outra vez, existindo só e apenas

naquele instante, fora do tempo horizontal da História, da contingência.

[Regina Machado]

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Um lugar para experimentar mil combinações do que é possível, para aprender o

que pode vir a ser.

Precisamente o que as estórias milenares nos convidam a fazer, num passeio pela

paisagem mítica preservada humanidade afora. Que ecoa na nossa paisagem interior,

aberta para nossa passagem quando estamos encantados.

Sinto um pouco de pena das pessoas que confundem alhos com bugalhos. Então,

nesse caso, por exemplo:“Os contos de fadas foram ridicularizados pela arte moderna

e pelos freudianos como instrumento de alienação” (frase tirada do artigo: Disney,

vida e fantasia de luzes e sombras, de Daniel Piza para o Jornal O Estado de São Paulo

em 17 de maio de 2009).

O encantamento não é alienado e também não é infantil. E os contos de fadas

são um ramo apenas recente de uma árvore que existe desde que o mundo é mundo,

enraizada no desejo de saber.

E nem todos os freudianos concordariam com a afirmação acima, mas isso é uma

outra conversa.

O encantamento é um estado de conhecimento. A qualidade que acende sua

vivacidade é o movimento perene e flexível da imaginação criadora. Uma qualidade

forjada no SEMPRE que se manifesta nas mais variadas situações: nas formas da

Natureza, nas brincadeiras das crianças (quando elas PODEM brincar), nas obras

de artistas, de cientistas, nos mitos e nos ritos das culturas tradicionais, em todas as

transgressões que transformam a História dos grupos humanos.

Outro menino de quatro anos estava brincando com sua avó. De repente a corrente elétrica

foi interrompida.

No escuro, disse a avó: “Nossa, a luz caiu!”

Logo em seguida tudo voltou ao normal. A avó outra vez: “Que bom, a luz voltou !”

O menino, em silêncio por um certo tempo, abriu um ar de descoberta: “Sabe, vó, eu estava

pensando. A luz caiu e depois ela voltou. Deve ser porque tem uma cama elástica dentro da

parede!” (Caso contado pela avó, Eliana)

O SEMPRE é também um lugar de risco, da aventura de formular hipóteses, de

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alargamento do espaço do conhecido, como um salto livre para o que ainda não sei,

para o que tenho vontade de saber, ou até para o que sei, mas não sabia que sabia.

Digamos que não é exatamente na escola, na igreja, na família ou no ambiente

de trabalho que as pessoas do mundo de hoje são convidadas a esse tipo essencial de

busca de conhecimento.

Mas é precisamente no SEMPRE da arte da Fantasia, onde os contos tradicionais

milenares existem como expressão privilegiada e vigorosa, que esse convite é feito

a qualquer um, criança ou adulto, sem cerimônia ou hierarquia, planejamentos ou

dinâmicas de equipes de RH.

É a própria estrutura narrativa, desenhada como uma rede de relações simbólicas,

que pega cada um pela mão e a gente se vê num instante lá dentro da estória brin-

cando de cabaninha, enredando nossa própria história nas ações dos personagens.

Na nossa vida, todos os dias de manhã acordamos para o desconhecido, mas nós

não nos lembramos disso.

Nas culturas tradicionais os mitos, artefatos, cantos, danças e outras narrativas

são documentos dessa lembrança, são símbolos.

Os contos tradicionais são uma substância que armazena, perpetua e difunde

conhecimento na forma de arte da Fantasia.

Os contos dispõem uma situação que instiga nossa curiosidade, por meio de uma

questão proposta logo no início da narrativa. E se a estória é boa, a gente se vê que-

rendo saber “o que será que vai acontecer...depois” . E pouco a pouco, como uma

espécie de contrário da alienação, que nos fixa no limite e na impossibilidade (“eu

sou assim, sabe, o que é que vou fazer...”), podemos experimentar a liberdade do

SEMPRE possível, num exercício de autonomia em que nos arriscamos a ficar horas

dentro do ventre de uma baleia, a voar nas costas de uma águia, a conversar com um

cavalo que é um príncipe encantado por um bruxo.

Visitar esse espaço do SEMPRE dentro de nós, penso que é uma necessidade.

Os contos tradicionais sacodem um lugar de confortável aparente certeza em que

nos escoramos no dia a dia e desafiam em nós algum tipo de representação imaginária

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de limite. Enquanto acompanhamos o trajeto de um príncipe, de uma árvore, de uma

mulher serpente, de um peixe sonhador, vivendo junto o desnovelar da narrativa,

podemos experimentar possibilidades desconhecidas:

E se fosse possível que eu fosse capaz de viver um amor desse tamanho, como o

desse príncipe por essa jovem camponesa?

Que eu vivesse uma generosidade tão grande?

Que eu pudesse aguentar um medo, ou uma traição tão forte assim?

E, de fato, quem sabe encontramos dentro de nós um espaço mais amplo, maior

do que “imaginamos” que ele é.

Pelo cômico, pelo trágico, pelo intrigante, pela experiência amorosa, pela aventura

e risco, pelos obstáculos e ajudantes misteriosos, os contos surpreendem nossa per-

cepção, dentro do SEMPRE, onde tudo é possível.

E a gente que conta estórias sabe que não é só com as crianças que esse encanta-

mento pode acontecer.

Já cansei de ver adultos na plateia torcendo para o jovem herói acertar a flecha no

ovo atirado para o alto pelo velho mestre, com gestos aflitos e OHS! de admiração,

respiração suspensa e risos de alívio. Para aqueles que se esqueceram da maravilha

desse tipo de experiência, o “faz de conta” é cuidadosamente esquartejado com as

armas da razão, que ilusoriamente o rotula de “infantil”, “pueril”, “fuga da realidade”

e outros que tais.

Bem, se não fossem essas as mesmas pessoas que expressam, ou escondem, sonhos

de se tornar um dia, quem sabe, o presidente da firma, a modelo famosa, o ator da

Globo, o premiado não sei o quê, o próximo fenômeno do futebol.....

Mais importante que tudo, penso que a Arte da Fantasia é a Arte do encontro

entre pessoas.

Eu não poderia dizer que esse encontro é impossível quando alguém está sozinho

diante do computador apertando um ratinho mecânico, até, pode ser, escrevendo e

lendo histórias. Meios são meios “para alguma coisa” e podem servir para encontros.

Encontros no SEMPRE? Acho que não..

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Gente, não dá pra brincar de roda no computador.

Parece que o SEMPRE, para acontecer, precisa na maioria das vezes do calor

dos corpos sentados uns ao lado dos outros, da voz plena e do olhar brilhante dos

contadores de estórias mirando nossos olhos. Das risadas, suspiros, mãos na boca e

variadas caretas que os computadores até podem registrar, mas.......

a respiração que anima todos esses gestos, eles não podem transmitir. A mesma

respiração que leva pessoas juntas guiadas pela cadência das palavras encantadas,

para além do horizonte visível.

Para SEMPRE possamos escolher boas estórias, bem contadas, quando possível, por...

(ainda existem muitos)

seres humanos, com terra sob nossos pés e céu acima de nossas cabeças.

Dedico essas palavras à querida Mery Soucourouglou,

nossa mama que se foi de vez viver no sempre

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oO ofício de viver contando histórias

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Nasci num tempo e lugar onde contar histórias era tão comum quanto apanhar

manga madura em árvore ou caída na terra. Assim como frutos maduros jogavam

no ar seus cheiros, atraindo crianças e pássaros, as histórias contadas pelos mais velhos

nos atraíam para viagens no maravilhoso da imaginação.

Minha mãe e meu pai eram contadores de histórias de estilos bem diferentes.

Benzinho, minha mãe, era eclética e sedutora em suas narrativas, que podiam

começar em alguma versão ibérica de um conto de fadas e desembocar no Axixá,

litoral maranhense. Eram histórias e estórias misturadas aos personagens da família

e às toadas de bumba-meu-boi. Esta deliciosa transgressão das estórias tradicionais

em apropriação particular, íntima, povoou minha infância e meu interesse vida afora

pelas coisas que se mestiçam.

Benzinho era cantora e adorava cantar, imprimia às suas narrativas, quase sempre,

comentários musicais, a tal ponto que música e história se invadiam e vadiavam livre-

mente sem nenhum compromisso com os limites normais dos significados. Não é à

toa que eu e um dos meus irmãos, Ronaldo, nos tornamos músicos.

Já seu Raimundo, nosso pai, fazia mais a linha cartesiana, com começo, meio e fim.

Seus contares falavam quase sempre de bichos, rios e pássaros, índios do Pindaré,

de Barra-do-Corda. Seu Mundoca, como ele era conhecido no interior do Maranhão,

por onde vivia viajando, era um ambientalista romântico, andarilho, apaixonado por

sua terra. Trabalhou no antigo SPI, Serviço de Proteção ao Índio, precursor da Funai,

como seu pai, irmãos, primos e sobrinhos.

[Cristiano Mota Mendes]

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Certa vez, contava ele, estava viajando no rio Mearim com um grupo de caça-

dores, quando avistaram um bando de macacos-prego numa árvore grande, perto da

margem do rio. Um dos homens fez menção de apontar a arma para o bando. Ime-

diatamente, uma das fêmeas mostrou para o grupo de caçadores o filhotinho que car-

regava às costas, como se dissesse: “não me matem, que tenho meu filhinho pra criar”.

Esta história me marcou profundamente e creio que ela se mantém viva den-

tro de mim até hoje na compaixão e ternura que sinto pelos animais silvestres ou

domésticos. Uma pequena história, na narrativa de um bom contador, é capaz de

acompanhar e orientar um sentimento, contribuir decisivamente para uma formação

ética e humanista.

O ofício de contar histórias é um brinquedo mágico, misterioso e infinito. O

contador de histórias desenha um caminho que vai dar no coração de quem o escuta.

Se a tua Cigarra, contador, prenuncia a chuva ou se embriaga de néctar e jasmim,

não importa. Se o coração do ouvinte, criança, adulto ou velho, não se hipnotiza

por tua história é porque carece do sopro que acende a chama antiga feita de alma e

paixão. Eros e Psique.

Nenhuma narrativa, mito, causo, lenda, estória, resiste se não se atualiza dentro

de quem escuta ou lê.

Escutei mais de uma vez, de uma moça que trabalhava na casa dos meus pais, uma

história de sereia que nunca esqueci. A Sereia, contava Teresa, se banhava nas águas

de um poço, no quintal de sua casa, em Caxias no Maranhão.

Não era mãe d’água de um grande rio ou do alto-mar. Ela apenas se banhava no

poço e cantava na lua cheia com seus negros cabelos e nudez.

Cada casa do interior do mundo tem um poço com mãe d’água.

E cada sereia tem o sonho de um menino a visitar.

Muitos anos depois leria histórias de um poeta cego que falava de sereias e de

homens que tinham de ser amarrados aos mastros dos navios para não serem arrasta-

dos por elas ao fundo do mar. Alguns dizem que o tal do poeta não existiu. Talvez seja

a mistura de muitos poetas que caminhavam pelo mundo contando histórias.

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Independente das histórias e seus narradores, o mar sempre existiu e por volta dos

16 anos de idade me vi dono de um barco que se chamava Tucum. Seu cavername,

espécie de esqueleto dos saveiros, foi trazido a reboque de Belém do Pará para São

Luís do Maranhão pelo meu professor e sócio, Clemens Hilbert, um músico alemão

aventureiro, que navegou por aqueles mares nos anos 1970 e 1980.

A reconstrução do Tucum, num tosco estaleiro da Gamboa, bairro de São Luís,

foi um acontecimento que não poderia esquecer. Dois mestres artesãos, irmãos,

foram recolocando a madeira do barco, meses a fio, num processo complicadíssimo

de construção e reconstrução, até que ressurgiu grandioso e belo como um enorme

animal ressuscitado.

Clemens parecia um menino de tão feliz. Era bonito navegar na lua cheia do delta

do Parnaíba com um coração ávido por descobrir o mundo.

Mais de trinta anos depois, uma outra história de barco me esperava.

Foi no Etnodoc – Edital de apoio a documentários etnográficos sobre patrimônio

cultural imaterial. Participei da gestão do projeto. Um dos filmes selecionados, O bar-

co do mestre, do antropólogo e cineasta Gavin Andrews, documenta o ofício de fazer

barcos na Região Norte e sua eminente extinção. Espero que isso nunca se confirme.

Comecei a ler a obra de Guimarães Rosa mais ou menos na época que Tucum

renascia das cinzas, ou melhor, das águas. Rosa disse certa vez ao crítico de litera-

tura Günther Lorenz, que são as “estórias” que nos escrevem. No “Entremeio com o

vaqueiro Mariano”, que considerava o maior vaqueiro do mundo porque conhecia a

alma dos bois, escreveu que narrar é resistir.

Encerro este artigo lembrando de amigos e colegas que estarão nessa hora contan-

do histórias, no ofício mágico de viver contando histórias. Penso nesse tecido fino

que vem de nossas almas. Penso nas histórias que nos fabricam o Ser e que nos fazem

rir, chorar, encantar, refletir, educar e sonhar.

A Benzinho e Raimundo

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Leituras Inspiradoras

u Entremeio: com o vaqueiro Mariano. Guimarães Rosa. In: Estas estórias.

José Olympio.

u Nas águas do tempo. Mia Couto. In: Estórias abensonhadas. Nova Fronteira.

u O vendedor de passados. José Eduardo Agualusa. Gryphus.

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oO paciente como contadorde sua própria história:

o olhar de um médico homeopata

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Para toda história contada tem que existir um ouvinte, seja criança ou adulto,

aluno ou não, espectador ou não, no meu caso, um médico, ofício que exerço

há pouco mais de trinta anos. Logo, ouço, por todo este tempo, histórias as mais

diversas, engraçadas por vezes, comuns de outras, dolorosas em grande parte. Seja

do ponto vista apenas físico, seja da alma, e, o mais comum, de ambos. Afinal, como

homeopata não dá para ouvir o que a alma tem para contar sem ouvir também o que

o corpo está falando, não apenas através do gestual, das atitudes, mas também, em

boa parte das vezes, principalmente, dos sintomas físicos. Desde sempre fui consi-

derado, por amigos e familiares, um bom ouvinte e admito que estão certos. Em todas

as histórias ouvidas, a pouca interferência é necessária para que possamos ocupar o

lugar do outro naquela história. É preciso que aquele que ouve, entenda a história

pela perspectiva de quem conta. Muitas vezes histórias contadas por pessoas com

outros hábitos, com outras culturas, outras maneiras de entender a vida, são muito

diferentes das daquele que ouve. Mas uma coisa é comum a todos e não depende de

nenhuma destas categorias: a emoção. Esta, sim, é universal. Não há ser humano, de

qualquer parte do mundo, que viva sob seja qual for o regime político ou religioso,

sob qualquer cultura, que não tenha emoções.

Assim, fui treinando, durante a vida, esta arte de escutar, colocando-me sempre

no lugar de quem conta. Sem julgar, sem avaliar, sem criticar, sem intervir, apenas

ouvindo e buscando entender não apenas aquela história que me contam, mas o

sujeito que a vive e a relata. Aprendi, com isso, que ouvir talvez seja a forma mais amo-

[Conrado Mariano]

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rosa de acolhimento, desde que não tomemos como nosso o direito de julgar, deter-

minar normas de vida, enfim, prescrever um estilo de vida para o outro. Temos que

saber que quem conta sua história quer, antes de tudo, ser ouvido e compreendido.

Só, mais nada. Só assim, penso eu, poderemos entender o que o outro está falando,

na visão do outro, claro. Não adianta, neste caso, avaliarmos ou emitirmos qualquer

julgamento, principalmente de valores. Importa sim, entender o outro. Não se trata

de uma história arquetípica, ou que leve a uma reflexão ética, ou que nos traga uma

mensagem que nos obrigue a pensar. Não é destas histórias que eu falo, pois estas

devem ser contadas por profissionais experientes no ofício de contar histórias, por

atores, atrizes, bailarinos e músicos, afinal as histórias não precisam ser contadas ape-

nas oralmente. Falo não destas histórias, mas de outra: das histórias que são contadas

por aqueles que vivenciam experiências durante sua existência e com elas constroem

suas vidas.

Pelo tipo de trabalho que executo, ouvir histórias faz parte do cotidiano e se apren-

de na faculdade – até hoje me lembro da aula sobre anamnese, estava no terceiro ano

da faculdade — a “obter uma história” sempre a partir da anamnese que nada mais é

do que uma investigação oral sobre os sintomas que o paciente nos relata. Assim, com

determinados sintomas relatados, algumas perguntas feitas, bem objetivas, para algu-

mas caracterizações, temos uma história clinica que, com alguns exames solicitados,

vão permitir um diagnóstico e tratamento adequados. Não é da história clínica que eu

falo, afinal esta é uma história guiada pelo médico, mas da história daquela pessoa que

está ali com aqueles sintomas os quais, em si, falam da doença, mas não do doente.

Para que eu possa ouvir e entender aquela pessoa sentada à minha frente, o relato

tem que ser outro, acompanhado de sintomas clínicos muitas vezes, mas estes isola-

damente são insuficientes para que eu possa lidar com o indivíduo que sente a dor.

Diversas foram e são as histórias que ouvi. Dos mais diversos tipos de pessoas.

Coisas que ouvi, as quais numa situação normal gerariam, inclusive, reações fortes,

mas o papel de médico homeopata nos coloca de tal forma isento, visto que o mais

importante no momento da consulta é a possibilidade de se entender o que o paci-

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ente nos relata e a maneira pela qual, peculiarmente, ela a vivencia. Busca-se identifi-

car, nestes casos, a emoção que acompanha uma atitude. A intencionalidade emotiva

da ação faz transparecer uma particularidade que mostra a identificação daquele ser:

a sua essência. Certa vez ouvi dizer que ninguém é de todo mau nem de todo bom.

Claro, não podemos pensar no ser humano de forma maniqueísta, afinal o bom e o

mau existem em todos nós. Só somos bons porque conhecemos valores que são maus.

Isso aparece no paciente e o homeopata consegue perceber isso pelos conceitos que

aprende de homem, doença e cura.

Uma paciente, um dia, me contou: “... me despedi do meu marido e saí, esqueci

um documento e precisei voltar para casa e o ouvi ao telefone, pelo papo, desconfiei

e não deu outra: ele tinha uma amante. Me descontrolei, estou neste estado que você

vê. A forma como ele falou de mim para a outra me destruiu. Segui a mulher, cheguei

a bater na casa dela, mas graças a Deus não havia ninguém em casa. Não sei o que

eu faria. Entretanto, tenho que confessar: eu já o traí, com um amigo dele. Mas não

suporto a ideia de ter sido traída por ele. Sei que estou sendo injusta, eu também já

fiz isso, mas não consigo fazer diferente”. Este é apenas um trecho do que ouvi da

história de uma mulher asmática. A asma, em si, me diria o quê? O que eu poderia

fazer por uma pessoa com asma, além dos medicamentos específicos para o quadro?

A asma, neste caso, é uma história, mas incompleta.

Uma outra história mais ilustrativa disso se refere a uma paciente que me disse:

“... tenho medo de mudanças, acabo deixando as coisas ficarem como estão, mesmo

que não me agradem, mesmo que eu não esteja feliz, tenho medo de mudanças pois

sempre acho que será para pior, não consigo me imaginar promovendo uma mudança

na minha vida, mesmo pensando que seria para melhor e acabar sendo para pior,

então fico nessa situação tão ruim tanto no trabalho quanto em casa”. Neste caso, o

que a paciente apresentava era um quadro de mialgia, que se concentrava nas pernas.

Pelas dores, era impedida de executar alguns movimentos, ou pelo menos os difi-

cultava. Há um nexo entre o quadro emocional com o clínico, pois, para quem não

consegue fazer movimentos de mudanças em sua vida, mesmo quando está infeliz,

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pode-se entender que os músculos não responderão de forma adequada aos movi-

mentos solicitados.

O corpo fala! Este último relato mostra como se pode ouvir o que ele nos diz e o

relato de quem conta sua história apenas confirma e modaliza aquilo que está sendo

dito pelos sintomas. Contar uma história, para nós, não se restringe a algo pontual,

a apenas um período de uma vida, mas ao que aquela determinada pessoa teve de

experiências ao logo de todo o período de vida até aquele momento. As emoções se

repetem ao logo de nossas vidas, são elas que refletem nossa essência, são elas que

nos identificam e são elas que permitem que tenhamos consciência de quem somos e

como somos, do que gostamos, do que não gostamos, do que nos entristece, do que

nos alegra. Do que nos dá raiva ou não. Enfim, são as nossas emoções que permitem

que possamos nos conhecer. Elas permitem, assim, que possamos ser os atores princi-

pais de nossas vidas, que possamos ser, então, contadores de nossas próprias histórias.

Leituras Inspiradoras

u Éthique à Nicomaque. Aristóteles. Trad. et presentation par Richard Bodéüs. Flam-

marion, 2004.

u De l`âme. Aristóteles. Traduit par E. Barbotin. Belles Lettres, 2002.

u La connaissance de la vie. George Canguilhem. Librarie Philosophique J. Vrin, 1975.

u Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. George Canguilhem. Edições 70, 1977.

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:prosa final

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oAs águas da memória e os guardadores da

corrente de histórias

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1. Memória de Mnemosyne

Musa ensina-me o canto / Venerável e antigoSophia de Mello Breyner Andresen

Palavras cantadas. Na mitologia grega, Mnemosyne, irmã de Cronos (Tempo) e

Okeanós (Rio-Oceano), é a deusa da recordação vivificadora. São as Musas, filhas de

Mnemosyne e Zeus, que concedem ao aedo (poeta-cantor) o dom de cantar a Verdade

(Aletheia, desvelamento), oposta ao Esquecimento (Lethe). Inflamado pelas Musas, o

aedo transmite o conhecimento do que foi, é e será. Engendrando a memória cole-

tiva através das gerações, as palavras cantadas (Musas) são, portanto, inseparáveis da

memória (Mnemosyne).

Por parte de Zeus pai, as Musas adquirem qualidades que lhes permitem acor-

dar nos homens certas propriedades da memória. Não a memória absoluta, como

a do personagem de Jorge Luís Borges, do conto “Funes, o memorioso”: incapaz de

selecionar, pensar e esquecer, Funes acumula incessantemente memórias, “como um

despejadouro de lixo”. Não o esquecimento total, como, até certo ponto, o do pro-

tagonista de Amnésia (Memento, do latim “Lembra-te”, no significativo título original),

filme de Cristopher Nolan: Leonard não consegue guardar acontecimentos recentes

e por isso fotografa pessoas que considera importantes e tatua em sua pele dados

(faz-se corpo-livro com vários “memento”), na tentativa de posteriormente conseguir

[Maria de Lourdes Soares]

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estabelecer nexos e reconstituir sua história. Tanto a memória prodigiosa de Funes

quanto a memória volátil de Leonard são distúrbios decorrentes de forte trauma-

tismo. Ambas as formas de totalidade são igualmente funestas para a identidade do

indivíduo e da sociedade.

O pesadelo da iminente amnésia coletiva pode ser gerado por imposição de gover-

nos totalitários, como em Fahrenheit 451, de François Truffaut (adaptação cinematográ-

fica do romance homônimo, de Ray Bradbury), em que o pensamento crítico é proi-

bido e os materiais escritos incinerados (o título refere-se à temperatura em que o

papel entra em combustão). Guy Montag, um dos bombeiros encarregados de queimar

livros, furta alguns para ler, e fica seduzido. Refugia-se, com outros dissidentes, na

terra dos homens-livro, cada um deles identificado com o nome do livro que conserva

“tatuado” na memória.

A memória-dom conferida por Mnemosyne através das Musas conjuga harmo-

niosamente memória e não-memória: é seletiva, reflexiva, capaz de discernir o que se

deve presentificar pela rememoração ou entregar ao esquecimento (lesmosyne), “para

oblívio de males e pausa de aflições” (Hesíodo). A boa memória, portanto, implica

seleção, esquecimento e pausa. Poesia e sabedoria bebem em Lethes e Mnemosyne,

fontes de lembrar e esquecer. Nessa dialética, pulsa a vida.

O Canto, a memória, o tempo. Ao invocarem a manifestação dessas forças

numinosas, Camões (século XVI) e Sophia (século XX) reafirmam que as Musas são

o princípio do Canto, inaugurando e alentando o sopro poético. Camões invoca

Calíope, Musa da epopeia, para cantar “aqueles que por obras valerosas / se vão da

lei da Morte libertando”. Sophia reinventa e celebra na sua moderna lírica a memória

fulgurante da Grécia antiga.

Se na sociedade moderna a memória não mais conserva o sentido originário,

que permitia o conhecimento em êxtase e vidência, o poeta recita-a, recorda-a (re-

cordar, trazer de novo ao coração) e, assim, preserva-a e lega-a ao futuro. Lançado

num mundo dessacralizado, o poeta-cantor de nosso tempo – “tempo de indigência”

(Hölderlin), “tempo dividido” (Sophia), de “homens partidos” (Drummond) – abre

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passagens para o poético, luta contra a opressão e o adverso olvido, faz-se porta-voz

dos “silenciosos lábios”: “eu vengo hablar por vuestra boca muerta” (Neruda). Mesmo

vivendo em tempos não-heroicos, insiste em salvaguardar seu “sentimento do mun-

do” e repassar a outras mãos, para a plenitude do que há-de vir, o fio da memória que

atravessa a corrente de tempos: “Guardei-me para a epopeia / que jamais escreverei

(...) recolhei meu pobre acervo, / alongai meu sentimento” (Drummond).

2. Guardiões da memória, cerzidores da túnica inconsútil

Não se pode perder, no deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades,

passamos do côncavo de uma para outra mão. Ecléa Bosi

Gente da palavra. Antigos aedos e rapsodos gregos (rápthein áoidén, aqueles que

sabem costurar cantos), assim como os griots da África de nossos dias, são garantes

da permanência da memória em sociedades fundadas sobre a tradição oral, em que

contar histórias não é um evento à parte, mas algo constitutivo do próprio cotidiano.

Com razão Alex Haley dirá: “quando um griot morre é como se toda uma biblioteca

tivesse sido arrasada pelo fogo”.

Guardiã das tradições orais, a cantadora-contadora Clarissa Pinkola Estés (autora

de O dom das histórias e Mulheres que correm com os lobos) nasceu da confluência de duas

linhagens: a das contadoras húngaras (mesenmondók) e a das latinas (cuentistas). Segun-

do o legado de que Clarissa descende, “acredita-se que as histórias são escritas como

uma leve tatuagem na pele de quem as viveu”. Essa espécie de “escrita levíssima” faz

lembrar as tatuagens dos griots, pergaminhos de palavras andantes, de aldeia em aldeia.

As arquetípicas narradoras velhas e sábias são transportadas para os textos impres-

sos da cultura letrada (nas maternas figuras de criadas, amas ou avós, como a Mamãe

Gansa), que ficcionam a voz carinhosa da contadora e a memória de uma origem

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ligada ao contexto da oralidade. Na verdade, relato oral e escrito se entrelaçam e retro-

alimentam: “a linguagem conduz da boca para a página e vice-versa, e a ‘oratura’, ou

a literatura oral, no Ocidente não existiu de modo isolado desde os tempos homéri-

cos” (Marina Warner). Às duas categorias de narradores postuladas e associadas por

Walter Benjamin – a do camponês sedentário, que recolhe o saber do passado, e a do

marinheiro comerciante, que traz o saber das terras distantes –, Marina Warner acres-

centa a da fiandeira, “mulher madura com sua roca”, que se tornou “ícone genérico

da narrativa nas capas de coleções de fadas a partir de Charles Perrault”.

A esta linhagem pertencem também D. Benta e Tia Nastácia (Monteiro Lobato),

inseparáveis repositórios do saber erudito e popular, respectivamente. Outra figura

que remete às maternais contadoras de histórias e também às antigas deusas da fecun-

didade é a mulher de saia imensa, toda cheia de bolsos, que canta e conta histórias,

“espiando papeizinhos, como que lê a sorte de soslaio”: “dos bolsos vai tirando

papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada,

de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por

arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das pro-

fundidades desta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que

vai vivendo, que dizendo vai” (Eduardo Galeano).

Contadores conhecem bem o seu ofício e, não raro, também escrevem lindamente.

O contador – afirma Galeano – é alguém prenhe, “grávido de gente. Gente que sai

por seus poros. Assim mostram, em figuras de barro, os índios do Novo México: o

narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado de pessoinhas”. Cada

contador – lembra Clarissa – sabe que “contar ou ouvir histórias deriva da energia

de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço,

sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e reple-

tos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo viva. Se existe uma única fonte das

histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos”.

Narrar, tecer, curar. Walter Benjamin, no artigo “Narrar e curar”, a propósito

da extraordinária força de cura das mãos e da voz de uma mulher que contava histó-

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rias junto ao leito do filho enfermo, conjectura: “toda doença não seria curável, con-

tanto que se deixasse levar suficientemente longe – até a embocadura – pela corrente

da narrativa?” E conclui: “O acaricial desenha um leito para essa corrente”.

Por sua vez, como educador e terapeuta de crianças gravemente perturbadas, cuja

tarefa principal foi restaurar um significado na vida delas, Bruno Betelheim desta-

cou, do conjunto da literatura infantil, os contos de fadas, por proporcionarem “as

experiências na vida infantil mais adequadas para promover sua capacidade de encon-

trar sentido na vida”, ajudando a criança a lidar com a “perplexidade existencial”.

Segundo o psicanalista, “o prazer que experimentamos quando nos permitimos ser

susceptíveis a um conto de fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significa-

do psicológico de um conto (embora isto contribua para tal), mas das suas qualidades

literárias – o próprio conto como uma obra de arte”, “uma forma artística única”.

Nesse sentido, parafraseando Walter Benjamin, a arte pode ser terapêutica (ou revolu-

cionária, pedagógica etc.) mas, enquanto arte, sem jamais abrir mão do valor estético.

Clarissa Estés, contadora/cantadora e terapeuta junguiana, considera que as histórias

“são bálsamos medicinais”, medicamentos que “fortificam o indivíduo e a comuni-

dade”, amenizam “velhas cicatrizes” e dão “alívio a antigas feridas”, conferindo “movi-

mento à nossa vida interior”: “o ofício de contar histórias” e “o ofício de ocupar as

mãos” possibilitam a “criação de algo, e esse algo é a alma. Sempre que alimentamos

a alma, garantimos a expansão”.

A tecelã das narrativas. Xerazade, a célebre contadora de histórias que abre e

fecha as Mil e uma noites, ao contar histórias para o sultão Xariar, cura-lhe a ferida inte-

rior, alimenta-lhe o espírito. Ao tecer, noite após noite, sua sedutora rede de histórias

encadeadas, Xerazade literal e simbolicamente vence a morte. Narra para não morrer.

Narra para que as histórias não morram. Salva, assim, a sua história e as mil e uma que

transporta e entretece, por encaixe, no fluxo da narrativa, sempre aberto a mais uma

– bela e vertiginosa metáfora do infinito. A teia-tecido entrelaça passado e presente,

memória e imaginação, e envolve a todos – a contadora, a irmã Dinazarda, as outras

jovens do reino, o sultão, o povo –, criando um imaginário comum em expansão. Na

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voz e nos gestos da contadora dotada de prodigiosa – mas seletiva memória (na medi-

da em que escolhe as histórias do seu imenso acervo, recorre a estratégias e organiza

a estrutura segundo sofisticadas técnicas) – vibram e ecoam muitas outras vozes. Ao

evocá-las, de viva voz, a tecelã das narrativas a elas acrescenta a própria voz. Vozes que

repercutem nos nossos dias, graças às versões e traduções da obra (Antoine Galland,

E. Lane, R. Burton, J. Mardrus, Ferreira Gullar, Mamede Jarouche...) e às ficções que

revisitam essa bela tapeçaria, como Vozes do deserto de Nélida Piñon.

A astuciosa contadora – também excelente poeta e leitora, conforme a tradução de

Galland – oferece a Xariar a arte de contar histórias, o prazer do ficcional. E o sultão

deixa-se seduzir, acolhe esse dom, exercitando, noite a noite, a arte de ouvir. Como

Xerazade, o contador é também, em príncipio, um grande ouvinte/leitor. Dotado

de escuta atenta, precisa encontrar ouvidos disponíveis para acolher o legado de sua

memória. Este é precisamente o humano desejo do androide Roy, líder dos Nexus

6, em Blade Runner de Ridley Scott. Com seu breve tempo de vida prestes a expirar,

o último dos replicantes narra sua experiência a Deckard, seu caçador (também ele

caça), a quem acabara de salvar da morte. Salva, assim, a sua narrativa e, através dela, a

possibilidade de permanecer vivo na memória de Deckard e de seus futuros ouvintes:

“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas perto de

Orion. Vi a luz do sol cintilar no escuro, na Comporta Tannhausen. Todos estes

momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva”.

Narrar, cerzir: um dos cognomes de Riobaldo, personagem-narrador de Grande

Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é justamente Cerzidor, ao entretecer, por arte de

seu criador, diversos fios/vertentes que convergem para a caudalosa narrativa/rio

de uma memória que transcende a vivência particular e regional – a travessia do

“homem humano”. As grandes contadoras são hábeis fiandeiras, cerzindo, através do

fio das histórias, o corpo e a alma, em cuja cisão reside a grande ferida do humano.

“Seremos incólumes se não separarmos o corpo e a alma”, afirma Maria Gabriela

Llansol, escritora portuguesa que cerze imagens em seus textos, insistindo em refazer

a túnica inconsútil, em buscar o fulgor que nos foi roubado.

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A sageza do contador não consiste apenas em transmitir a sua experiência, nadan-

do contra a corrente de “uma geral configuração traumática da modernidade” que

quase emudeceu os narradores, mas também na capacidade de ser um elo na milenar

corrente de experiência humana formada pelas histórias. Em cada contador vive uma

Xerazade, “que imagina uma nova história em cada história que está contando” (Ben-

jamin). Ou um Homero. No filme As asas do desejo de Wim Wenders “há um velho

que se chama Homero e anda no mundo a contar histórias. Ele é o garante de uma

experiência imemorial que se transmite. Num universo dominado pela celeridade da

informação, é preciso recuperar o sentido da sageza e da experiência que apenas as

histórias são capazes de dar. Histórias para adormecer, histórias para comer a sopa

até o fim, histórias para seduzir. Alguma coisa decisiva sobrevive em nós através desse

regresso do prazer do ficcional” (Eduardo Prado Coelho). Para que o círculo mágico

da palavra se faça, refaça e propague. De mão em mão, de voz em voz, por dom e

graça da arte de contar, ouvir e recontar. Na dialética entre tradição e inovação, per-

manência e mudança, sem a qual o templo das Musas (Museu) não será casa móvel,

água viva, lugar de criação e disseminação, onde o conhecimento adquirido, ao ser

rememorado, possibilite estabelecer nexos com o conhecimento novo. No canto alon-

gado (Drummond). Na “continuação inventada” (Guimarães Rosa).

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De quem são essas vozes

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Affonso Romano de Sant’Anna, poeta, ensaísta e cronis-

ta com mais de cinquenta obras publicadas. Ministrou cursos na Universidade

de Köln (Alemanha), Universidade do Texas (EUA), Universidade de Aarhus

(Dinamarca), Universidade Nova (Portugal) e Universidade de Aix-en-Provence

(França). Dirigiu o departamento de Letras da PUC-Rio. Presidiu a Biblioteca

Nacional (1991-1996) possibilitando a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas,

do Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler), exportando a literatura

brasileira e modernizando a instituição. Foi cronista do Jornal do Brasil e d’O

Globo. Atualmente, escreve para O Estado de Minas e Correio Brasiliense.

Almir Mota, contador de histórias e autor de 16 livros de literatura infan-

til, incluindo temas ligados ao folclore e às paisagens históricas do Ceará. É ide-

alizador e coordenador geral da Feira do Livro Infantil de Fortaleza. Ganhador

do II Concurso Literatura para todos do MEC (2008). Idealizador do Bolsa de

Letrinhas selecionada pela Bolsa Funarte de Circulação Literária 2010.

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Ana Luísa Lacombe, atriz desde 1980 e contadora de histórias desde

2002, pesquisa a linguagem da narração de histórias associando-a ao teatro. Ga-

nhou vários prêmios com estes trabalhos. É curadora do projeto “Sipurim – Hora

da História” e do Café literário do Centro da Cultura Judaica e uma das funda-

doras do Centro de Referência do Teatro para Infância que promove encontros e

eventos para refletir sobre esta arte.

AnaLu Palma, mestre em Teatro pela UNI-RIO — Universidade do Rio

de Janeiro. Pesquisa meios acessíveis e adaptações na literatura e no teatro para

que pessoas com deficiência visual estejam capacitadas a produzir e consumir

estas artes. Coordena o Projeto Livro Falado através da Oficina de Capacitação de

Ledores, da criação de audiotecas e da Coleção Voz da Academia.

Augusto Pessôa, ator, cenógrafo, figurinista, arte educador, escritor,

dramaturgo e contador de histórias. Bacharelado em Artes Cênicas (Habilitação

em Interpretação e Habilitação em Cenografia) pela UNI-RIO — Universidade do

Rio de Janeiro.

Bia Bedran, mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Flu-

minense, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, graduada em

Musicoterapia e Educação Artística, cantora, compositora, contadora de histórias

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e escritora. Apresentou os programas “Canta-Conto” e o “Lá vem História”, na

TVBrasil/RJ e na TVCultura/São Paulo. Escreveu dez livros, gravou oito CDs e

lançou dois DVDs gravados ao vivo. Nos últimos anos, viaja pelo Brasil partici-

pando de eventos culturais e congressos, levando seus espetáculos para diversos

palcos em teatros, escolas e praças públicas.

Carlos Aldemir Farias, antropólogo e professor; mestre em

Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; doutorando em

Ciências Sociais pela PUC-SP; pesquisador permanente do Grupo de Estudos da

Complexidade – Grecom/UFRN.

Carlos Eduardo Klimick Pereira, doutor em Letras

(PUC-Rio), mestre em Design (PUC-Rio). Possui 17 anos de experiência com a

criação de RPGs, sendo um dos pioneiros no Brasil na sua aplicação para fins

educacionais. Atualmente trabalha em diversos projetos educacionais e é consul-

tor lúdico-pedagógico da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.

Célia Linhares, graduada pela Universidade Federal do Maranhão,

onde iniciou a docência universitária. Obteve o mestrado em Filosofia e Socio-

logia da Educação em Michigan State University/USA, doutora em Filosofia

da Educação pela Universidade Nacional de Buenos Aires e pós-doutorado em

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Política Educacional na Universidade Complutense de Madri e na Universidade

de Londres. Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense.

Cléo Busatto, escritora e narradora oral de histórias. Mestre em Teoria

Literária pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora transdisci-

plinar/Cetrans. Em 2002 publicou seu primeiro livro infantil, Dorminhoco e não

parou mais. Seguiram-se Contos e encantos dos 4 cantos do mundo (2003); Coleção

Criança Segura, 3 volumes (2004); Pedro e o Cruzeiro do Sul (2006); Paiquerê, o paraíso

dos Kaingang (2009); O florista e a gata (2010); Histórias de quem conta histórias

(2010). Suas obras fazem parte de programas de leitura e catálogos internacionais

como o Bologna Children’s Book Fair.

Conrado Mariano formou-se em medicina em 1978, iniciou os estudos

em Homeopatia em 1985, tem graduação e mestrado em Filosofia. Atualmente dou-

torando em História da Ciência na PUC-SP, dedica-se a estudar as Ciências da Vida.

Cristiano Mota Mendes, músico e compositor. Trabalha com

teatro e leituras dramatizadas. Coordenador do Programa de Apoio à Produção

de Documentários Etnográficos da Associação dos Amigos do Museu Edson Car-

neiro, do Rio de Janeiro.

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Daniele Ramalho, atriz, contadora de histórias, pesquisadora e produ-

tora cultural. Formada em artes cênicas com bacharelado em interpretação pela

UNI-RIO — Universidade do Rio de Janeiro. Pesquisa literatura, cultura popular

e indígena brasileiras, desenvolvendo programações e projetos sobre os temas,

além de conteúdo para programas de televisão. Narrou mitos para o Canal Futura.

Escreveu artigo sobre mitologia indígena e corporalidade para a revista do Instituto

de Performance da Universidade de Nova Iorque. Narrou mitos na programação

do Ano do Brasil na França. Atualmente escreve roteiros com temas indígenas para

programas veiculados nas TV Brasil e TV Cultura. É curadora do África Diversa:

Encontro de Cultura Afro-Brasileira.

Edmilson Santini, ator, autor, cordelista, desenvolve, no Teatro Em

Cordel, um repertório de histórias, em que se abordam diversos temas. Paralelo

a isso, toca o projeto Oficinas de Criação e Recriação de Histórias em Cordel.

Edvânia Braz Teixeira Rodrigues, licenciada e especia-

lista em Educação Física, pela Escola Superior de Educação Física de Goiás (ESE-

FEGO), mestre em Educação Escolar Brasileira pela Universidade Federal de Goiás

(UFG). Professora assistente do CEPAE/UFG, Integrante/Coordenadora do Grupo

Gwaya — Contadores de Histórias da UFG. Atualmente é Superintendente de Desen-

volvimento e Avaliação da Secretaria de Estado da Educação de Goiás, também coor-

dena o Projeto de Incentivo à Leitura da Rede Estadual de Educação em Goiás.

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Eliane Bettocchi Godinho, doutora em Design pela PUC-

Rio, atua como consultora da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio e docente

de pós-graduação lato sensu no Depto. de Artes e Design da PUC-Rio. Coordena

projeto de formação de professores de Ensino Médio com apoio da Faperj. Realiza

pesquisas teóricas e aplicadas em Design e Formação do Leitor. Professora da gradu-

ação em Design da UniFOA — Centro Universitário de Volta Redonda. Atua como

profissional de Design Gráfico e Ilustração, com ênfase em jogos narrativos, comu-

nicação e semiótica.

Fernando Goldman, doutorando em Políticas Públicas, Estratégias

e Desenvolvimento no IE/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Engenheiro

Eletricista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Engenharia

de Produção, pela Universidade Federal Fluminense. Possui ainda Especialização

em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas. Desde 2007 é Presidente da

Sociedade Brasileira de Gestão do Conhecimento — RJ. É engenheiro de FURNAS

Centrais Elétricas SA.

Gilka Girardello, professora da Universidade Federal de Santa

Catarina, coordenadora da Oficina Permanente de Narração de Histórias da

UFSC e contadora de histórias da Biblioteca Barca dos Livros, em Florianópolis.

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Grupo Morandubetá de Contadores de Histórias tem a seguinte for-

mação desde 1991:

Benita Prieto, engenheira eletrônica, atriz, especialista em Literatura

Infantil e Juvenil pela Universidade Federal Fluminense e em Leitura: Teoria e

Práticas pela UniverCidade. Contadora de histórias com mais de 2000 apresenta-

ções pelo Brasil e exterior. Escritora. Produtora cultural e idealizadora de eventos

de Literatura e Leitura, podendo destacar o Simpósio Internacional de Contado-

res de Histórias. É presidente da Prieto Produções Artísticas e do Instituto Conta

Brasil. Coordenadora da Red Internacional de Cuentacuentos.

Celso Sisto, escritor, ilustrador, contador de histórias, crítico de Lit-

eratura, especialista em Literatura Infantil e Juvenil pela Universidade Federal

do Rio de Janeiro, mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de

Santa Catarina e doutorando em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Tem mais

de cinquenta livros publicados para crianças e jovens e é responsável pela for-

mação de inúmeros grupos de contadores de histórias espalhados pelo país. Já

recebeu vários prêmios, dentre eles o prêmio de autor revelação (1994) e ilustra-

dor revelação (1999) da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

Idealizador, coordenador e diretor artístico dos Seminários de Contadores de

Histórias da Feira do Livro de Porto Alegre e da Jornada Nacional de Literatura

de Passo Fundo.

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Eliana Yunes, criadora do Programa Nacional de Incentivo à Leitura

(Proler) da Fundação Biblioteca Nacional. É uma das pesquisadoras mais renoma-

das sobre temas de Leitura na América Latina, onde seu discurso teve uma imensa

recepção, principalmente no México e Colômbia. Doutorou-se em Letras e Lin-

guística pela Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio, e pela Universidade de

Málaga, Espanha. Também é ensaísta, crítica e pesquisadora de temas relacionados

com a Formação de Leitores, Infância e Cultura. É assessora da UNESCO para

Políticas de Leitura, Coordenadora adjunta da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-

Rio, Consultora do CERLALC e do PNLL. Tem artigos e livros publicados tanto no

Brasil como em outras partes do mundo, com ênfase no tema Leitura, bem como

em Teoria Literária, Literatura Comparada e trabalhos interdisciplinares.

Lúcia Fidalgo, escritora, contadora de histórias, bibliotecária, profes-

sora universitária e mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

Iniciou seu trabalho com a literatura infantil em 1989, na Fundação Nacional do

Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). À convite de Eliana Yunes, passou a integrar a pri-

meira equipe do Programa Nacional de Leitura (Proler), desenvolvendo oficinas

de contadores de histórias em todo o país. Como autora, conquistou o prêmio

de Autora Revelação pela FNLIJ, com o livro Menino bom. Publicou mais de vinte

livros de literatura infantil e juvenil, além de artigos para revistas especializadas.

José Mauro Brant, ator que participou em mais de setenta produções

teatrais, dentre elas O Púcaro Búlgaro — Romance em cena de Aderbal Freire Filho.

Desde 1993 pesquisa a linguagem dos contadores de histórias. Criou e produziu

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diversos espetáculos sobre temas literários como: Contos, Cantos e Acalantos (que

lhe valeu os prêmios TIM de Música e Rival Petrobras pelo CD homônimo) e

Federico García Lorca – pequeno poema infinito que lhe valeu uma indicação para o

prêmio Shell 2007 e teve o seu roteiro, parceria de Brant com o diretor Antonio

Gilberto, publicado pela Imprensa Oficial, de São Paulo.

Júlio Diniz, doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, com Pós-Dou-

torado em Literatura Comparada pela Universidad de Salamanca, Espanha. É

diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio e professor associado na Área de

Estudos de Literatura. Realiza consultorias e coordena projetos para instituições

públicas e privadas, ONGs e empresas (Ministério da Cultura, Ministério da Edu-

cação, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e de Cultura, Rede Globo,

Petrobras, Ampla e Leia Brasil). Publicou inúmeros artigos, ensaios e livros no

Brasil e no exterior. Foi membro do Conselho Estadual de Cultura do Rio de

Janeiro (2004-2006) e é pesquisador do CNPq.

Kika Freyre, contadora de histórias, psicóloga, arteterapeuta. Mestre em

Sociologia da Saúde pela Universidade do Minho, Braga (Portugal) e doutoranda

em Antropologia de Iberoamérica, na Universidade de Salamanca (Espanha). Pes-

quisadora da Faculdade de Ciências Médicas da UPE – Universidade de Pernam-

buco, no programa ‘A Arte na Medicina às vezes cura, de vez em quando alivia,

mas sempre consola’.

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Lene Nunes, estudou teatro no Tablado, fez curso de contadores de histórias

com Gregório Filho, Miza Carvalho e Lorena Best. Tem grande atuação no Bairro

da Maré do Rio de Janeiro como contadora de histórias no Museu da Maré, insti-

tuição pioneira no Brasil na preservação de memória das comunidades e na biblio-

teca municipal Jorge Amado da lona cultural Herbert Vianna. Coordena projeto de

incentivo a leitura para crianças de seis a treze anos na biblioteca Elias José.

Lodenir Karnopp, professora adjunta da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, no Departamento de Estudos Especializados e no Programa de

Pós-Graduação em Educação (FACED/ UFRGS). Possui graduação em Letras, mes-

trado e doutorado em Linguística e Letras (PUC - RS). Desenvolve pesquisas no

campo dos Estudos Culturais em Educação e na área de Linguística, com ênfase

em Línguas de Sinais e educação de surdos. É bolsista do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Produtividade em Pesquisa 2, CNPq).

Marcio Allemand, jornalista, roteirista, diretor de institucionais

e documentários. Compartilha histórias, poesias e palavras no seu blog http://

euseicozinhar.blogspot.com.

Maria de Lourdes Soares, mestre e doutora em Letras (PUC-

RJ). Professora de Literatura Portuguesa e Literatura Infantil e Juvenil (Univer-

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sidade Federal do Rio de Janeiro). Especialista em teoria e práticas da leitura.

Colaborou no Proler. Autora de Descobertas e Encontros , B.I. das Fadas e Bruxas, B.I.

do Saci , B. I. da Iara, do Boto e de Iemanjá, B. I. do Pão no Brasil e Livro dos Acalantos.

Maria Helena Ribeiro, professora alfabetizadora durante 12 anos;

gerente de projetos e programas educacionais e culturais; produtora cultural; consul-

tora para implantação de programas e projetos. Pedagoga; especialista em educação

da Prefeitura do Rio de Janeiro (aposentada); com especialização em Didática da

Comunicação e em Técnicas de Projetos; promotora de leitura desde 1989.

Nanci Gonçalves da Nóbrega, pós-graduada em Literatu-

ra Infantil, Arteterapia e doutora em Ciência da Informação. É professora adjunta

da Universidade Federal Fluminense, atuando na Graduação e Pós-Graduação

do Departamento de Ciência da Informação e na Pós-Graduação do Instituto de

Letras. Professora Visitante de inúmeras instituições, onde conversa sobre biblio-

tecas para crianças, narrativas e leitura – suas grandes paixões.

Paulo Siqueira, diretor artístico da Ópera Prima, dirigiu vários docu-

mentários, entre os quais Histórias de 2006. Dirigiu também várias peças public-

itárias. Autor de Cajuínas, um romance, é atualmente coordenador da Óficina,

oficina de cinema.

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Regina Machado, graduada em Ciências Sociais pela USP, mestre em

Educational Theatre na New York University, professora Livre Docente da Eca

USP, escritora, pesquisadora de narrativas de tradição oral, artista educadora e

contadora de histórias. Criadora e coordenadora do Encontro Internacional de

Contadores de Histórias BOCA DO CÉU.

Rogério Andrade Barbosa, professor, escritor e contador

de histórias. Publicou mais de setenta livros para crianças e jovens. Prêmio da

Academia Brasileira de Letras em Literatura Infanto-Juvenil em 2005.

Rosana Mont’Alverne, mineira de Três Corações. Bacharela

em Direito e mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. É

fundadora do Instituto Cultural Aletria, em Belo Horizonte, MG, que é escola

de formação e aperfeiçoamento de contadores de histórias, editora de literatura

infantil e juvenil, produtora cultural e portal na internet www.aletria.com.br.

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e se desejar baixe gratuitamente a versão digitalizada do livro.

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Esta obra — idealizada e organizada por Benita Prieto e composta por Marcos Corrêa — foi impressa, durante a primavera de 2011, nas oficinas gráficas da Edigráfica, sobre papel Pólen Bold 120g

para o miolo e Duo Design 250g para capa. As tipografias utilizadas foram Goudy Old Style T,

Goudy catalog SC, Dalliance roman, Dalliance Flourishes & Hoefler Text Fleurons.

A presente edição teve a tiragem limitada inicial de 1500 exemplares dos quais os primeiros foram numerados de 001 a 500 e presenteados aos participantes do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias nas comemorações de sua 10ª edição.

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