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Fundamentos Epistemológicos da Medicina 2.3. Conhecimento e Filosofia Luiz Salvador de Miranda Sá Jr. Visão do Mundo A filosofia enquanto atividade cognitiva superior ao conhecimento vulgar (antes e depois do aparecimento do conhecimento científico), tem como objeto de estudo as regularidades universais e seu objetivo a dirige para o conhecimento da ordenação da natureza, da sociedade e do homem e seu pensamento como totalidades integradas em uma unidade: o mundo, o universo, tudo o que existe. Por isto, a atividade filosófica pode ser entendida como uma preocupação do espírito voltada para tudo o que existe no mundo natural e no mundo social, incluindo os seres humanos e sua subjetividade; o que não exclui seu entendimento como uma protociência, como visão do mundo (visão com o sentido de concepção, modo de entender o universo como uma totalidade ordenada e inteligível), incluindo em seu objeto a natureza, a sociedade, o homem, sua existência objetiva e sua subjetividade. É importante ter presente que a visão do mundo implica em uma concepção do universo, uma concepção da natureza, uma concepção da sociedade e uma concepção do homem. E que a filosofia, no sentido mais amplo desta expressão deve poder generalizar em cada um destes patamares. É possível identificar duas modalidades de relação entre o ser humano e sua 1

2.3. conhecimento e filosofia

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epistemologia médica e gnosiologia da medicina

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Fundamentos Epistemológicos da Medicina

2.3. Conhecimento e Filosofia

Luiz Salvador de Miranda Sá Jr.

Visão do Mundo

A filosofia enquanto atividade cognitiva superior ao conhecimento vulgar (antes e

depois do aparecimento do conhecimento científico), tem como objeto de estudo

as regularidades universais e seu objetivo a dirige para o conhecimento da

ordenação da natureza, da sociedade e do homem e seu pensamento como

totalidades integradas em uma unidade: o mundo, o universo, tudo o que existe.

Por isto, a atividade filosófica pode ser entendida como uma preocupação do

espírito voltada para tudo o que existe no mundo natural e no mundo social,

incluindo os seres humanos e sua subjetividade; o que não exclui seu

entendimento como uma protociência, como visão do mundo (visão com o

sentido de concepção, modo de entender o universo como uma totalidade

ordenada e inteligível), incluindo em seu objeto a natureza, a sociedade, o

homem, sua existência objetiva e sua subjetividade.

É importante ter presente que a visão do mundo implica em uma concepção do universo, uma concepção da natureza, uma concepção da sociedade e uma concepção do homem. E que a filosofia, no sentido mais amplo desta expressão deve poder generalizar em cada um destes patamares.

É possível identificar duas modalidades de relação entre o ser humano e sua

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visão do mundo: uma, contemplativa e passiva; e, outra ativa e operacional, uma

concepção de mundo que impõe ao seu sujeito uma determinada forma de

conduta. 1

Toda filosofia existe como visão do mundo de alguém. Com este sentido de

concepção de mundo capaz de influenciar seus comportamentos e,

principalmente, suas condutas, todos têm uma filosofia, ainda que não o saibam,

que não se dêm conta exatamente disso.

A filosofia não existe por si mesma, não é um produto da natureza; é sempre

produto da atividade mental de alguém; sempre existe primeiro na subjetividade

de alguém que a experimenta e formula. As concepções filosóficas de alguém

influem muito no quotidiano das pessoas e, mesmo, em suas ações

aparentemente mais sem importância. Influem, sobremaneira, em sua maneira

de pensar, de elaborar seu conhecimento e de agir em todas sua esferas de

atuação, mesmo na atividade científica.

Filosofia - Atividade Cognitiva e Concepção do Mundo

Como ficou implícito em sua definição, a filosofia é uma atividade cognitiva

especial que tem por objeto o conhecimento do universo, da natureza, da vida,

do pensamento, do homem e o seu conhecimento; enfim tudo que existe na

natureza, na sociedade ou no homem (e na humanidade), suas causas, seu

desenvolvimento e suas possibilidades. Tudo. Conhecimento do mundo e

conhecimento do conhecimento. Uma concepção do mundo que se desdobra

simultaneamente como uma visão do mundo natural (cosmologia), do mundo

social (sociologia), do homem (antropologia) e do conhecimento (gnosiologia).

O campo da filosofia inclui e ultrapassa o campo de todas as ciências porque, de

certa maneira, todas estão contidas nela, ao menos, como seu objeto. A

dimensão globalizante da filosofia abarca a totalidade das ciências sem

pretender substituir qualquer uma delas no estudo específico de seu objeto

1 Politzer, G., Princípios Fundamentais de Filosofia, Ed. Fulgor, S.Paulo, 1962, p. 14.

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particular. Pois, a filosofia é um instrumento de conhecimento da natureza e do

mundo considerado como totalidade e, por esta razão, a filosofia é denominada

por alguns como a ciência das totalidades, mas não deve ser confundida com as

ciências fáticas específicas ou com a soma delas, embora talvez possa ser

concebida como sua síntese.

A filosofia de uma pessoa é uma premissa e, ao mesmo tempo, um dos

resultados da sua concepção do mundo e dos valores de sua cultura, do

conhecimento existente e das condições vigentes no momento histórico em que

foi elaborada, além das circunstâncias psicossociais da existência de quem a

elabora, processa e emprega em sua conduta. A concepção que alguém tenha

do universo como uma totalidade (incluindo o homem, a sociedade e a ciência)

constitui premissa essencial de seu pensamento e determina, ao menos, a

eleição de seus objetos de cogitação, a direção de seus raciocínios e a

tendência geral de suas conclusões.

Porquanto seja uma atividade cognitiva tida como essencial, um instrumento

cultural e um construto social importante, a filosofia tem seu desenvolvimento

dependente de algumas premissas fundamentais, sem o conhecimento das

quais, ela não pode ser entendida.

Tais premissa capazes de explicar os rumos da filosofia parecem ser as

seguintes:

= a) a qualidade e as possibilidades da metodologia que utilizar (porque,

exatamente como acontece em qualquer modalidade de conhecimento, a

qualidade dos resultados de uma pesquisa depende da metodologia empregada

em sua obtenção);

= b) como qualquer metodologia, a metodologia filosófica deve ser tão mais

aperfeiçoada, eficiente e adequada, quanto mais amplos e precisos forem os

conhecimentos já existentes acerca do objeto que estude e sobre os recursos

para estudá-lo (porque toda metodologia implica em um corpo de conhecimento

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sobre o objeto em que será empregada e em recursos para implementá-la em

uma tecnologia de investigação);

= c) exatamente por isto, quanto mais desenvolvido for o sistema teórico e a

tecnologia presentes na metodologia que um determinado tipo de filosofia

empregue, mais aprimorados serão os resultados que se obterá com ela; e,

finalmente;

= d) a filosofia, como atividade cognitiva particular, guarda uma relação direta

com o significado que a cultura lhe empreste e com as demandas sociais

dirigidas para ela.

Por todas estas razões, ao menos nos textos técnicos e científicos

contemporâneos, a palavra filosofia deve ser sempre empregada com seu

significado preciso. Como uma concepção geral e global da natureza, da

sociedade, do homem e da sua subjetividade, especialmente seu pensamento

como elaboração cognitiva (o conhecimento); um tipo de atividade cognitiva que

se consubstancie em uma concepção do universo como uma totalidade teórica

sistêmica que abranja sub-sistemas em seu nterior.

Ao menos as pessoas mais instruídas (como os professores universitários, por exemplo) não devem empregar a palavra filosofia como doutrina, como teoria, como diretriz porque isto corrompe o emprego correto do termo e transtorna o entendimento da realidade. É um procedimento alienante.

A filosofia de alguém encarna sempre sua visão do mundo, uma concepção que

este tenha sobre tudo o que existe no universo. Mas, mais do que isto, uma

concepção do mundo, da qual decorra uma determinada forma de conduta

naque que a sustenta. Muito mais que uma filosofia contemplativa, uma filosofia

ativa e transformadora das pessoas e de suas sociedades. Essa idéia de

filosofia ativa que se objetiva e se expressa na conduta com a qual está em

permanente interrelação, se diferencia das noções de uma filosofia subjetivista,

contemplativa ou especulativa, restrira à subjetividade de quem cogitava dela; tal

como era concebida nos séculos passados pela maioria e como é o sentido que

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tem até hoje para os filósofos místicos e religiosos (porque estes, têm interesse

de conservar o sentido da filosofia igual ao que tinha no passado mais remoto).

Não se deve chamar filosofia aqualquer atividade especulativa ou divagadora do

senso comum nem pode ser confundida com este. Dele se diferenciou

qualitativamente há muitos séculos, na antiga Grécia, quando apareceram as

primeiras explicações naturais dos acontecimentos, bem antes do aparecimento

da ciência como uma qualidade especial de atividade cognitiva, tais como as

conhecemos hoje (pois, as ciências nasceram do interior da filosofia na época

do Renascimento). Contudo, como atividade cognitiva superior a Filosofia

costuma ser encarada de duas maneiras: como um tipo de conhecimento

especial (o conhecimento filosófico) ou como uma ciência formal (ao lado da

matemática e da lógica), que contituiriam eu núcleo mais essencial. Entretanto, é

preciso ter clara que esta diferença de opinião sobre a interação ciência x

filosofia tem carácter muito mais ideológico do que racional (além de carecer de

qualquer utilidade prática ou necessidade teórica).

Jacob BAZARIAN 2 ilustra o conhecimento superior ou conhecimento filosófico

com a imagem de uma árvore. O tronco é representado pela filosofia natural da

qual brotam os galhos que representam as ciências específicas – naturais,

humanas e sociais - que foram nascendo dela. E esta imagem é bastante

pertinente. Podendo-se especular que, uma vez transformadas em ciências

todos os seus ramos possíveis, a Filosofia do futuro será mais que uma ciencia,

será uma espécie de síntese delas.

Essa concepção de filosofia como atividade cognitiva análoga ou idêntica a uma

ciência é ensinada por BUNGE e FERRARI, para os quais a filosofia é uma

ciência formal que lida com conteúdos ideativos, como a matemática. E é

também uma visão global do mundo.

De onde pode-se inferir que todas as pessoas têm uma filosofia, originada em

sua existência e em sua concepção do mundo. O que lhes dá diretriz mais ou 2 Bazarian, J., O problema da Verdade, 3a. edição, Ed. Alfa-Ômega, S.Paulo, 1985, p. 33-34.

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menos imperiosa a seus pensamentos e orienta sua conduta.

Além disto, também se pode pretender que todos os comportamentos humanos

sofram a influência mais ou menos poderosa e mais ou menos consciente da

filosofia de seu autor, ainda que não o mesmo não tenha qualquer noção da

existência em si mesmo daquela filosofia subjacente à sua conduta manifesta,

quanto mais seja capaz de perceber a extensão de sua influência em seu

comportamento. As ciências, em geral, e as ciências médicas, em particular,

recebem constantemente esta influência e, por isto, saber como identificá-la é

uma dado muito importante para estudar o conhecimento. A própria natureza do

objeto da psicologia e da psicopatologia lhes induzem altíssimo grau de

ideologização e influência psicológica.

Também se deve acrescentar que existem duas grandes concepções sobre o

mundo, uma mágico-sobrenatural (ou idealista) e outra, científico-natural (ou

materialista). Estas duas concepções, por si mesmas muito diferentes,

determinam maneiras muito diversas de entender e explicar tudo o que existe.

Principalmente os conceitos filosóficos, mas repercute muito em todo

procedimento cognitivo, inclusive na atividade científica.

Há muitos séculos, existem basicamente, duas grandes visões do mundo: a

idealista e a materialista. Acontece que em Filosofia estas designações não

correspondem ao sentido que têm na linguagem comum. Como conceitos

filosóficos, materialismo significa precedência da matéria sobre as idéias (que o

mundo existe independente das idéias e que estas são uma dependência da

atividade material). Os idealistas sustentam o oposto: que as idéias (ou um

espírito) precedem a matéria e a criam.

Estes dois termos, idealismo e materialismo, têm na linguagem do senso comum

sentidos muito deformados pelos interesses políticos e ideológicos (já tendo sido

visto que o materialismo e o idealismo filosóficos não devem ser confundidos

com o materialismo e o idealismo morais). A despeito disto, esta identificação

(sem qualquer fundamento, diga-se de passagem) tem sido propagada como

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instrumento de luta ideológica.

Materialismo filosófico e idealismo filosófico são duas concepções basicamente

antagônicas e constituem o primeiro divisor de águas na Filosofia. Desde que

srgiram as Filosofias se dividem em duas: as Filosofia Idealistas e as Filosofias

Idealistas. Só isto ou tudo isto é a primeira grande lição que pode aprender

quem se inicia nos estudos filosóficos.

O idealismo e a primeira Filosofia idealista nasceu com as explicações

sobrenaturais sobre o mundo, tendo prosseguido nas formulações de Platão;

somente muito depois do nascimento do idealismo, o materialismo surgiu como

uma explicação natural (physis) do universo. Os idealistas pressupõem que as

ideias prcedem as coisas materiais na existência do mundo ou existem

independentes dela. Os materialistas, ao contrário, pretendem que a matéria

precedeu e precede os itos, as lendas, as idéias, as palavras na existência.

Poristo, os materialistas recusam toda explicação mágica, supersticiosa ou

sobrenatural para tudo o que existe. Para eles, o mundo é natural porque

composto por coisas naturais e tudo o mais que existe procede dessas coisas.

Durante muitos séculos, toda cultura foi mobilizada para identificar o idealismo

como bom e o materialismo como mau (e, até, o mal). Isto não pode deixar de

ser considerado por quem pretende avançar neste estudo.

Fundamentos da Visão de Mundo

A Filosofia, enquanto concepção do mundo de alguém e enquanto sistema de

opiniões ou informações individuais e coletivas e construída na dependência dos

marcos teóricos desta visão, está sujeita a sofrer a influência simultânea de duas

ordens de fatores: os sociais e os individuais.

Marco teórico é um sistema de referências teóricas que fundamentam uma

opinião, uma hipótese ou uma investigação científica. Todo processo

investigatório está sujeito à influência dos elementos teóricos que o

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fundamentam.

Mesmo que a visão de mundo de uma pessoa se manifeste nela como um

indivíduo, toda concepção de mundo é elaborada a partir da confluência de duas

ordens de fatores: os sociais e os individuais.

Em primeiro lugar, podem ser levantadas as influências que se manifestam no

plano social: toda concepção do mundo se apoia na evolução histórica do

conhecimento filosófico de seu agente, no desenvolvimento científico vigente na

cultura onde se desenvolve, além de sofrer muita influência dos interesses

ideológicos e sociais hegemônicos em cada momento do desenvolvimento da

sociedade e em cada formação social específica. Por isto, as doutrinas

filosóficas da de cada época e de cada sistema social importante que coexiste

nas mesmas épocas, diferem umas das outras. Porque as concepções do

mundo dependem, mais ou menos decisivamente, das relações sociais vigentes,

cujas configurações históricas, políticas, jurídicas e culturais determinam o

chamado espírito de cada época e o cortejo de ideologias que nela frutificam.

O segundo pilar de apoio da filosofia, aquele que reúne as influências de ordem

individual, parece se assentar mais no plano pessoal que nos limites dos

indivíduos. Toda concepção do mundo se estrutura em uma pessoa concreta,

vivendo uma determinada realidade objetiva e subjetiva, sujeito de uma certa

dinâmica psicológica e submetida à influência de um certo sistema de relações

sociais (com suas facetas ideológicas, sócio-econômicas, sócio-políticas, sócio-

históricas e sócio-culturais que são os canais pelos quais a sociedade influi

sobre os indivíduos).

Neste plano individual, a visão do mundo de uma pessoa depende de outras

circunstâncias referentes às características pessoais; exatamente por isto, pode

se apresentar muito diversamente em pessoas diferentes, em diferentes

circunstâncias, podendo diferir muito em um mesmo lugar, uma mesma época e

uma mesma pessoa (ao sabor de suas circunstâncias e de suas decisões).

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A Filosofia de alguém, sendo sua concepção da vida e do mundo, resulta da

interação das condições objetivas e subjetivas, individuais e sociais; da posição

que o indivíduo ocupa no complexo de relações sócio-econômicas, políticas,

históricas e culturais dos seus sistemas sociais, incluídos aí, suas possibilidades

e seus interesses psicológicos (de afirmação, de importância, de auto-

realização) ou ideológicos (como os religiosos ou os de classe), além das

condições de desenvolvimento e funcionamento de seu organismo. E por isto, a

Filosofia de alguém sempre se manifesta, de alguma maneira, em todos os

aspectos de sua vida, notadamente em sua produção intelectual, através de

seus padrões de pensamento e suas atitudes cognitivas, inclusive nas

concepções médicas e na prática concreta da Medicina, especificamente na

relação médico-paciente e no relacionamento do médico com a sociedade.

Filosofia, Filosofias

A noção de Filosofia, a despeito de sua uniformidade, pode varias muito em

suas significações. Pois, as aqui chamadas tendências filosóficas são, na

verdade, filosofias. Senão, veja-se a seguir. Adiante há de se ver como são

numerosas as possibilidades de se configurarem tantas filosofias quantas são as

combinações que podem ser obtidas com os diversos critérios que logo a seguir

se enumeram e se definem. A multiplicidade dessas filosofias induz o

surgimento de numerosas qualidades de de estruturas teóricas científicas e

ideológicas influenciadas por elas.

Filosofia e Personalidade

Como sucede a praticamente todas as situações ntropológicas, os processos

individuais e sociais estão imbricados na pessoa concreta formando um

amálgama dialético tão inseparável, que é impossível saber se a personalidade

vem a ser uma instância individual socialmente condicionada ou se, ao contrário,

existe como uma instância social, conformada individualmente. De fato, os

elementos individuais e sociais são indistinguíveis em cada personalidade

individual, assim como as personalidades e seus papéis específicos são

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indetermináveis na realidade social em que existem e que vivenciam (como,

para exemplificar, a dificuldades de determinar o significado da influência da

personalidade nos acontecimento históricos e nos demais processos sociais.

O termo personalidade provem da palavra latina persona que designava a máscara

que o ator do teatro grego empregava para representar a disposição anímica de

seu personagem cujoo papel representasse. A persona punha em evidência ou

caricaturava os traços mais significativos do personagem e permitia sua pronta

identificação pelos assistentel.

A noção de personalidade integra em um só significado a síntese da noção de

indivíduo e sua relação dinâmica com a sociedade na qual está inserido em um

processo em permanente desenvolvimento e adaptação (identificando-se,

portanto, com a noção de pessoa com a qual se confunde). Personificava o

personagem. Como se verá adiante, o conceito de pessoa é mais abrangente do

que o de indivíduo exatamente por causa desta relação com o social,

especialmente com o socio-cultural, pois é aí que se configura e se definem

suas qualidades especificamente humanos da personalidade.

O ser humano, quando avaliado neste contexto particular, apresenta um

movimento permanente de desenvolvimento tanto no plano ontológico (do

indivíduo), quanto filológico (da espécie).

O conceito de ser humano é bastante amplo e abrange duas noções específicas

que, freqüentemente, são confundidas como se fossem idênticas, apesar de

corresponderem a coisas bastantes diferentes:

= o indivíduo e

= a pessoa.

Na verdade, os conceitos de indivíduo e pessoa podem parecer idênticos porque

na linguagem comum têm iguais significados e são usados mais ou menos

indistintamente, o que não acontece (ou não deve acontecer) na terminologia

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científica. Mesmo na linguagem culta, além da terminologia científica, indivíduo e

pessoa são conceitos diferentes que representam coisas diversas e bem

definidas e seu emprego não se vê fazer de maneira indiscriminada.

Indivíduo é uma referência apenas quantitativa e se refere ao elemento singular

de uma coletividade; um componente individual de uma pluralidade, mesmo que

se trate de um conjunto inanimado. Enquanto a pessoa é o componente mais

elementar da humanidade um dado qualitativo.

Pode se denominar pessoa ao indivíduo humano (o que se faz muito), ente ativo

e digno. O emprego da expressão indivíduo humano pode ter o mesmo

significado, mas, em geral permite designar apenas suas propriedades biológico-

individuais, excluindo qualquer característica psicológica ou sócio-cultural

(atributos que são indispensáveis ao conceito de pessoa).

Já a expressão pessoa humana é redundante e deve ser evitada por quem não tenha o conceito de pessoa divina como sustentável; pois, denuncia desconhecimento do significado destes termo; porque, por mais tolerante que seja sua apreciação, não há possibilidade de existir pessoa que não seja humana ou ser humano que não seja pessoa, a não ser como metáfora (mesmo necessária, como pessoa jurídica). Quando se faz referência metafórica acomo em pessoa jurídica, por exemplo, este é o caso em que o termo pessoa deve ser adjetivado.

Os conceitos de pessoa e indivíduo devem ser bem diferenciados,

principalmente na linguagem científica. Na linguagem científica, denomina-se

indivíduo a um ser diferenciado dos demais por ter vida separada ou

características diferenciais que o assinalem como um ser singular; uma unidade

funcional específica. Qualquer ser, de qualquer espécie pode ser encarado

como um indivíduo.

No indivíduo coexistem e se confundem os atributos de singularidade e

individualidade. A singularidade é seu atributo mais essencial, significa aquilo

que faz o indivíduo único, diferente dos demais. A individualidade de um ser se

consubstancia em certas características que o diferenciam dos outros da mesma

espécie, fazendo-o, de certa forma, único em sua singularidade. Pode-se usar o

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termo com sentido amplo para objetos indivisíveis (um planeta no sistema solar,

uma galáxia no universo, uma estrela na galáxia, uma laranja na laranjeira, uma

formiga no formigueiro). Já pessoa, é um conceito muito mais complexo e sua

definição é essencial para caracterizar o objeto da Medicina e da Psicologia.

Pessoa é uma noção que transcende o conceito de indívíduo e designa a

entidade individual humana completa, inclusive sua personalidade (o que inclui

todos seus atributos biológicos anatômicos e fisiológicos, psicológicos e sociais).

A concepção de pessoa ultrapassa em todos os planos o conceito de indivíduo.

A noção de pessoa, inclui uma referência à sua condição de ser social, um

indivíduo socializado, uma personalidade detentora de qualidade que, como se

viu anteriormente, a identificam, personalizam e dignificam. A dignidade da

pessoa tem sido um atributo sempre reconhecido nos homens de todos os

tempos civilizados e é um dado essencial não só da civilização, mas do

humanismo como atitude intelectual básica.

Não há, nem pode haver civilização sem que ali exista respeito pela dignidade

humana como principal atributo da pessoa. Muito mais que sua inteligência, que

suas possibilidades verbais, que suas habilidades psicomotoras, que sua

aptidão para amar ou desempenhar papéis da vida social. No presente momento

histórico, um excelente indicador civilizatório é o respeito aos direitos humanos. 3

A noção de pessoa inclui tudo isto e transcende a todos estes atributos,

exatamente pelo carácter ético de sua dignidade, o que o faz credor dos direitos

humanos, independentement de sua for, sua qualidade, sua conduta ou outros

atributos que tenha.

Conhecimento e Filosofia

O conhecimento se divide e, comum (ou vulbar), científico e filosófico, já se viu

Adiante, há de se ver que o conhecimento filosófico e o científico são formas

particulares do conhecimento humano superior que são diferenciadas, menos 3 Ver o trabalho sobre os Fundamentos Sócio-Políticos da Medicina e da Psiquiatria, deste autor.

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Page 13: 2.3. conhecimento e filosofia

em função de sua estrutura cognitiva (porque, esta, é análoga até ao

conhecimento comum), do que por causa de sua técnica de obtenção de

informações e do grau de abrangência de suas possibilidades de generalização,

potencial preditivo e capacidade explicativa que detenham. E, caso se valorize

preferentemente seus elementos de unificação ou de diferenciação, podem ser

considerados tipos de conhecimento idênticos, análogos ou diferentes.

Distorções do Conceito de Filosofia

O conceito de filosofia acumula muitos sentidos, como já se viu anteriormente.

Alguns destes sentidos são decorrentes de diferentes maneiras de diferentes

pessoas que têm interesses diferentes, verem o mundo e, com ele, a filosofia (as

divergências ideológicas e doutrinárias); mas, além disto, a noção de filosofia

também se modifica com o avanço do saber, afinal este conceito também vem

evoluindo no tempo, à medida em que se amplia e se aprofunda o conhecimento

humano (as divergências de ponto-de-vista).

Contudo, atualmente, além destes e das opiniões decorrentes das divergências

doutrinárias mencionadas acerca dos sentidos que a terminologia

filosófica(inclusive as que envolvem os sentidos que a terminologia filosófica),

existem diversos significados que são atribuídos pelo senso comum à filosofia

que devem ser objeto de cogitação. Principalmente, porque alguns deles são

claramente deformados, francamente pejorativos e, em geral, usados por

desconhecimento de seu conteúdo ou empregados deliberadamente como

instrumentos ideológicos a serviço da descaracterização e da desqualificação da

filosofia como atividade cognitiva inteligente e dos conhecimentos filosóficos

como patrimônio valioso da humanidade.

O conceito de filosofia fica distorcido e aviltado, por exemplo, quando se

emprega o termo para expressar algum aspecto teórico ou doutrinário mais

restrito da realidade, como uma diretriz política; é muito comum que se ouça

“filosofia de administração”, “filosofia de ação” ou “filosofia de governo” e outras

tolices semelhantes. Com sentido, pouco diferente, mas na tendência de

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Page 14: 2.3. conhecimento e filosofia

aviltamento da filosofia, a palavra tem sido empregada para traduzir a atitude de

distanciamento, de alienação frente à realidade; como, por exemplo, quando se

diz: “fulano vive a vida com filosofia”, “sicrano é um filósofo”.

Outra distorção importante do conceito de filosofia é o que a situa como

contemplação. O entendimento ativo e dinâmico de filosofia situa-a como

conhecimento que fundamenta a atividade do sujeito. O fundamento da ação

humana, inclusive a atividade científica.

Mais um dos significados distorcidos da palavra filosofia, acomo sucede na

filosofia metafísica idealista, é exatamente a busca das causas últimas (quase

sempre sobrenaturais) que está vinculado a uma concepção sobrenatural ou

ideal do mundo, que é essencialmente contraditória com a noção científico-

natural do universo. A persistência dessa ideologia é o mais importante

descaminho de entendimento da Filosofia ainda atualmente.

Outro significado pervertido da palavra filosofia, é o que a tem por teoria

hermética, conhecimento inútil, sem a menor finalidade prática; ou elaborações

mentais extremamente difíceis, tão difíceis que as pessoas comuns não têm

possibilidade de entender, sendo um exercício ocioso ocupar-se deles; a

ideologia da filosofia como conhecimento inacessível às pessoas comuns.

Essa ideologia que pretendia e pretende fazer crer a filosofia (e, talvez, fosse

melhor dizer as filosofias) como conhecimento inútil ou tão difícil que resulta

inacessível senão para os próprios filódofos, visa cultivar a alienação, a

ignorância e a subserviência intelectual, na medidaem que afasta as pessoas do

estudo da filosofia.

Mas, é preciso reconhecer que parte das concepções deformadas sobre a filosofia se originaram na atividade de muitos filósofos que abusam do direito de produzir tolices, do hermetismo e muitas outras distorções da produção filosófica.

Quem quer que se dedique a estudar a filosofia sem preconceitos verá que ela

não é um estudo mais difícil que qualquer outro, sendo plenamente acessível às

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possibilidades da maioria das pessoas medianamente interessadas, dotadas e

instruídas. Ainda que, como acontece em todo estudo sistemático de algum

assunto, deva ser precedido da leitura de temas que lhe sejam fundamentais. O

estudo da filosofia ensina a pensar inteligentemente, exercita o raciocínio e a

capacidade lógica, permite estruturar e fundamentar melhor as opiniões;

reformá-las, abandoná-las ou trocá-las por outras. Sendo assim, e de fato é,

talvez seja importante pensar porque tanta gente tem tanto horror à Filosofia e o

proclama sem qualquer constrangimento.

Sendo assim, como de fato é, talvez seja importante pensar porque tanta gente tem tanto horror à Filosofia e o proclama sem qualquer constrangimento.

Sem qualquer exagero, pode-se afirmar que a filosofia é dos mais eficazes

instrumentos para a liberdade interior humana, além de ser o melhor antídoto e a

melhor terapêutica contra todos os tipos de alienação, sobretudo a alienação

das ideologias, porque toda ideologia é alienante em princípio. Provavelmente,

por causa de tudo isto que significa, a filosofia e seu estudo são sempre uma

ameaça aos interesses daqueles que se servem da alienação e que cultivam a

mentira sistemática como objetivo ou necessidade e tiram proveito da ignorância

e da alienação alheias.

A filosofia é importante instrumento para uma pessoa aprender a pensar por si.

E o conhecimento da, assim chamada, Filosofia da Ciência pode ser essencial

para que os médicos aprendam a avaliar a correção e a confiança que possam

merecer os resultados das investigações promovidas ou patrocinadas pelas

empresas que podem lucrar com elas. Ninguém pode conhecer ou reconhecer

conhecimento científico ou atividade de investigação científica sem que esteja

apoiado em conhecimentos mínimos de filosofia.

Não é possível conhecer e empregar adequadamente metodologia e ignorar

ontologia e gnosiologia. Não é possível boa técnica sem apoio na ética. Como

acontece muito nesta indesejada promiscuidade entre a indústria farmacêutica e

de equipamentos médicos e as entidades associativas dos médicos e, mesmo,

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Page 16: 2.3. conhecimento e filosofia

os docentes de muitos serviços universitários. Pois, não parece concebível que

professores de Medicina comprometam suas imagens vinculando-os com

agências econômicas cujo desempenho é freqüentemente bastante anti-social.

Deixando de lado os preconceitos que impregnam o entendimento da filosofia e

as divergências doutrinárias ou ideológicas acerca de suas questões mais

gerais, buscando considerar apenas os elementos de sua significação como

conhecimento superior ao conhecimento vulgar, existem duas maneiras

diferentes de conceber a filosofia como tipo superior de conhecimento. Em

primeiro lugar, a filosofia pode ser entendida como uma forma cogitação

inteligente ou de conhecimento qualitativamente diverso do conhecimento

comum e do conhecimento científico; e, em segundo lugar, a filosofia pode ser

reconhecida como um tipo particular de conhecimento científico (a filosofia

entendida como uma das ciências, ainda que não uma ciência factual, como se

há de apresentar adiante, quando se tratar da caracterização e classificação das

ciências). Ao menos para os efeitos deste trabalho, não faz diferença qualquer

que seja a opção que se adote.

1