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A Minha Avó & Eu
A avó de Alice já não está boa da cabeça: sai
pela varanda, fala com as flores no jardim
público e esquece-se de pagar o que compra…
A Alice adora esta avó, rainha das asneiras,
mas com um grande coração. Porém, um dia,
os pais não aguentaram mais e decidiram que
a avó tinha de ir para um lar.
É para seu bem, mas Alice não se conforma…
1
Chama-se Felícia Zanni, mas o seu verdadeiro nome é Avó. Tem setenta e dois
anos e vive com o filho, no número 56 da Rua do Galo Florido. Uma rua cinzenta com
candeeiros curvos por cima dos carros estacionados ao longo dos passeios. Mas a Avó,
hoje, não está em casa. Anda a passear nas alamedas do parque municipal, a abraçar
o tronco das árvores centenárias, a esconder-se atrás delas, antes de atravessar o
relvado, o que é proibido.
De saco amarelo na mão, debruça-se sobre um lindo tufo de narcisos. A Avó adora
os narcisos de nariz de trombeta. Um nariz parecido ao do guarda do parque, que,
muito discretamente, anda sempre a vigiá-la. O guarda usa bigode e leva o seu
trabalho muito a sério. De mãos atrás das costas, caminha em passo lento e aplicado,
pelo outro lado do relvado, diante do tufo de narcisos. Vira furtivamente a cabeça.
Apenas o tempo necessário para observar a Avó. Por agora não passa disto.
A Avó continua debruçada sobre as flores, de vez em quando, inclina ligeiramente
a cabeça para ter o guarda debaixo de olho. E é tudo.
O guarda franze o sobrolho e, com o polegar, alisa o bigode. Está junto de uma
sebe de loureiro mais alta do que ele. Se continuar em frente, a Avó vai escapar à sua
vigilância, pelo menos durante um minuto. Se voltar para trás, é capaz de se sentir
vigiada. O guarda, que não admite indecisões, decide-se pela primeira opção e
desaparece atrás da sebe. Que bela oportunidade: a Avó atira-se imediatamente aos
narcisos. Colhe três, amarelos de nariz branco, e esconde-os no fundo do saco.
Depois, desata a andar com passos miudinhos e apressados. O guarda entra de novo
em ação. Quase deita os bofes pela boca. Correu, mas não o suficiente. Vê a Avó ao
fundo da alameda a desaparecer atrás de uma árvore centenária. Vai até ao tufo dos
narcisos: faltam três, amarelos com um nariz que lhe é familiar. Ainda procura a Avó,
mas avista-a já a sair, ao fundo da alameda. Demasiado tarde.
— Da próxima vez, vou apanhar-te! — jura, com um ranger de dentes.
♦♦♦
2
Ela é Alice Zanni. Mas o seu verdadeiro nome é Alice. Tem nove anos e mora no
rés do chão do número 56 da Rua do Galo Florido, o que é muito prático. Por exemplo,
o caixote do gato está na varanda por causa do cheiro. Com um telhado, parece
mesmo uma casinha. É muito prático: basta subir para cima do caixote, escalar o
muro e está-se logo no jardim público. Alice adora subir para o parapeito das escadas.
Aliás, é o que está a fazer neste momento. Depois corre e, como sempre aos sábados,
encontra-se com Ahmed debaixo das acácias do parque. Ahmed é o seu único e
grande amigo.
— Ei, Ahmed!
— Olá, Alice!
— Ahmed, não és capaz de adivinhar a última da Avó!
Ahmed arregala os olhos castanhos, quase dourados.
— Não adivinhas? — insiste Alice.
Ahmed sacode os ombros e deita a língua de fora ao primeiro gato que atravessa o
parque. Alice, vitoriosa, resolve então contar:
— Quando estávamos à mesa, a Avó disse para a minha mãe: Não se incomode.
Fique sentada que eu vou buscar o queijo.
— E então?
— Espera, ainda não acabei. Quando a Avó estava na cozinha, o meu pai com um
ar muito satisfeito, disse: Afinal, o meu sermão de ontem resultou.
— E então???
— Então, ainda estou à espera do queijo! A Avó escapou-se outra vez pela
varanda!
— Fixe! — exclama Ahmed. — E sabes para onde foi?
— Penso que sei.
— E não disseste nada ao teu pai?
— Nem que me arrancasse a língua!
♦♦♦
3
António Zanni. É tratado por Sr. Zanni. Tem quarenta e dois anos e, para ele, o
trabalho é das coisas mais importantes. É o responsável pela qualidade na fábrica da
Folhada. Controla a linha de fabrico das pizzas e outras comidas. Um trabalho
exigente que requer muita atenção e um sentido de organização apurado. O Sr. Zanni
é muito respeitado pelos operários. Por causa do nome, alguns até pensam que veio
expressamente de Itália para supervisionar o fabrico das pizzas, mas é boato. Outra
coisa importante para o Sr. Zanni é a sua filha, única e preciosa. Tem grandes projetos
para o futuro de Alice, mas fora da área das pizzas. Quando o seu pai morreu, há
pouco mais de um ano, o Sr. Zanni propôs à mãe que deixasse a Itália e a casa da
família em Orvieto e viesse viver com eles. O Sr. Zanni tem um grande coração.
— Ela ainda está sob o choque da morte do pai — prevenira-nos ele. — Anda muito
triste.
— Não te preocupes, nós vamos restituir-lhe a alegria de viver — assegurara-lhe a
mulher, nessa ocasião muito entusiasmada.
— Lembra-te que a cabeça dela já não funciona lá muito bem — fez questão de
lembrar o Sr. Zanni. — Era o meu pai quem se ocupava dela. Tinha por ela uma
grande paixão.
— Acabará por recuperar a razão — respondera a Srª Zanni num impulso de
otimismo.
— E também não fala francês — acrescentara o Sr. Zanni.
— Eu ensino-lhe — interveio Alice.
Perante o entusiasmo da mulher e da filha, o Sr. Zanni não hesitou por mais tempo
e apanhou o primeiro comboio para ir buscar a mãe. Hoje lamenta não ter refletido
um pouco mais. Sobretudo desde que a mãe passou a sair de casa sozinha.
— Depois que Alice lhe ensinou a falar francês, a minha mãe já não é a mesma —
constata o Sr. Zanni. — Dantes, não falava com ninguém, não saía do apartamento;
por isso não havia problemas.
O Sr. Zanni está furioso. Tudo começou com a história das flores. Primeiro no
jardim, depois no parque municipal. Mas anteontem, a Avó foi até ao centro comercial
e entrou numa loja de roupas muito chique e muito cara.
— Eu própria, nunca lá vou — frisa a Srª Zanni.
O Sr. Zanni confirma, com alívio. Mas a mãe dele, sim, foi lá. Até experimentou um
vestido de noite, preto com pérolas douradas! E, quando a empregada lhe perguntou
se queria levá-lo, a Avó agradeceu e disse que sim, claro. E, enquanto a empregada
se dirigia para a caixa registadora, a Avó saiu da loja sem pagar.
— E o alarme disparou, e o segurança apanhou a minha mãe, que se recusava a
devolver o vestido, justificando que a empregada lhe havia proposto que o levasse. O
gerente teve de chamar a polícia, e a polícia telefonou-me para o trabalho. Vi-me
obrigado a pedir autorização ao meu chefe para me ausentar e ir buscá-la e pagar
aquele maldito vestido e…
— Vais acabar por te enervar — previne a Srª Zanni.
— E hoje saiu outra vez! — remata o Sr. Zanni, antes de retomar o fôlego.
♦♦♦
4
A Avó deixa o parque municipal. Sobe a Rua do Boi Mau e atravessa
tranquilamente a Praça Jarry. Passa pelo salão de cabeleireiro dos pais de Ahmed,
segue ao longo da esplanada do Café do Mercado antes de chegar ao nº 56 da Rua do
Galo Florido. Entra na estreita passagem que dá para o jardim. Diante da varanda, de
saco ao pescoço, ergue ligeiramente o vestido. Apoiada na casinha do gato, ergue-se
para cima do corrimão, passa uma perna, depois a outra, e pronto, ei-la na varanda! A
Avó adora entrar e sair de casa saltando as grades, apoiada na casinha do gato.
— Onde estavas? — ralha o Sr. Zanni, à porta da varanda. — Não sabes usar a
porta como todas as pessoas? Preferes que os vizinhos pensem que não quero deixar-
-te entrar?
A Avó encolhe os ombros. Observa o sobrolho franzido do filho. Franze sempre o
sobrolho quando lhe fala. Tornou-se habitual. A mulher, pelo contrário, inclina o
sobrolho no sentido oposto, o que lhe dá um ar pesaroso.
— Avó, ainda vai acabar por se magoar — diz ela por trás do marido.
De joelhos na varanda diante dos seus três vasos de flores, a Avó não faz caso.
Corta as três rosas murchas, plantadas na terra encharcada e substitui-as pelos três
narcisos que traz escondidos no fundo do saco.
— Não acredito! — exclama o Sr. Zanni. — Voltaste a roubar flores.
— O guarda vai acabar por apanhá-la! — acrescenta a Srª. Zanni.
A Avó contempla as suas novas flores. Gosta tanto de flores! Fala-lhes baixinho,
segreda-lhes palavras de fazer derreter o coração. Tem a certeza de que um dia não
murcharão mais. O filho não pensa o mesmo. O Sr. Zanni mais a mulher voltam para
casa e sentam-se.
— Isto não pode continuar — disse ele.
— Vai acabar por nos dar fortes aborrecimentos.
— Temos de a vigiar permanentemente.
— Ainda se vai perder.
A Avó não lhes dá ouvidos. Prefere regar as suas novas flores amarelas de nariz
branco e pensar que estas não irão morrer como as anteriores.
5
Alice, ao regressar, encontrou a Avó na varanda. Falaram ambas com as flores.
Falaram-lhes das pradarias, das montanhas, das abelhas. Alice pegou no caderno de
Ciências e mostrou-lhes fotografias e desenhos. Depois pregaram um sermão às
flores, por ficarem cabisbaixas e revelarem uma evidente má vontade. Novo fracasso
se perfilava no horizonte.
— Irra!— disse Alice.
Este «irra» significava que nunca conseguiria mudar o mundo. Era a triste
realidade, não bastava amar as flores para as impedir de morrer. Felizmente que a
Avó lhe lembrou que o importante era tentar e nunca se devia desanimar.
Mas nesse momento chegaram os pais de Alice.
— Era bem melhor que estivesses a fazer os deveres, em lugar de passares o
tempo na varanda — resmungou o pai.
— Se não melhoras os resultados, vais acabar por perder o ano — acrescentou a
mãe.
Alice suspirou. As flores puseram-se a dançar. Vai para o quarto, que há mais de
um ano partilha com a Avó. Sentou-se à secretária. A Avó deitou-se, fechou os olhos e
adormeceu. Dorme a qualquer hora, mas de noite nem sempre. Muitas noites levanta-
se e acorda o gato, ou então fica a falar com os dedos.
Neste momento, Alice está concentrada num doloroso exercício de matemática. A
história de um círculo cujo perímetro tem de calcular. Mas, como sempre, o seu
espírito acaba por deambular. O círculo transforma-se num rosto redondo e
sorridente. Alice desenha-lhe dois olhos, um nariz e uma fina boca maliciosa, sem
sequer se dar conta.
— Ups! — diz ela ao ver os estragos.
Este lindo desenho não vai acalmar o pai. Antes de encontrar uma solução para o
novo problema, Alice quer ter a certeza de que, por agora, não corre perigo. Levanta-
-se e entreabre a porta do quarto… Está tudo bem: os pais conversam na sala. Alice
fica aliviada. Por uns momentos põe-se à escuta. «De que estarão eles a falar?» Sai do
quarto e avança pelo corredor. Para à entrada da sala, de costas apoiadas contra a
tapeçaria amarelo-claro. Em matéria de espionagem, Alice não tem rival. Ouve:
— Falei com o doutor Cerejeira — disse o Sr. Zanni. — Foi categórico: a minha mãe
já não está bem da cabeça, e não vai melhorar. É preciso agir para o seu e nosso bem.
Alice detesta o doutor Cerejeira. Quando fala com a Avó quase grita, como se ela
fosse surda. Ao pai da Alice fala em voz baixa.
— A mãe altera-nos completamente a vida — prossegue o Sr. Zanni. — E
sobretudo a de Alice. As notas baixaram. Prefere ficar a ver a Avó a plantar flores em
lugar de fazer os deveres.
— Vai acabar por se desinteressar da escola — conclui a Srª Zanni.
Quando for grande, Alice vai ser enfermeira e cuidar da Avó. Também irá tratar as
crianças de África. Viu uma reportagem na televisão. Não chorou, embora tivesse
ficado muito triste. Bom sinal, porque uma enfermeira deve ser sensível, mas não em
excesso. Mas acontece que, sempre que fala do seu projecto, os pais dizem:
— Começa por teres boas notas na escola. Quanto ao resto, mais tarde se verá.
Alice pensa que é uma armadilha. Quando souber contar pelos dedos, os pais vão
querer seguramente que seja contabilista. Ou, se não der erros de ortografia, há de
ser escritora, e as crianças africanas terão de se amanhar sozinhas.
— E, além disso, a minha mãe acorda-nos de noite — continua o Sr. Zanni a
lamentar-se. — Por causa dela, cheguei duas vezes atrasado ao trabalho esta
semana!
— Alice também tem dificuldade de se levantar pela manhã — acentua a mãe.
— Isto não pode continuar assim — retoma o Sr. Zanni. — Estou decidido: a minha
mãe vai para um lar. O doutor Cerejeira indicou-me um muito bom. Pelo menos tem
enfermeiras para a tratarem e vigiarem.
— Se hoje não for possível, então amanhã — aprova a Srª Zanni.
O coração de Alice dispara. Aquelas palavras martelam-lhe a cabeça. Vão levar a
Avó. Hoje ou amanhã. Certamente amanhã, que é domingo. É ao domingo que as
pessoas vão aos lares. Os ouvidos de Alice estão a zunir e não quer ouvir mais. Já não
gosta de brincar aos espiões. A tremer, volta para o quarto em bicos de pés. Quando
for grande, há de matar o doutor Cerejeira.
Esta noite, a Avó não acordou. Alice teve de a sacudir.
— Vamos, levanta-te!
— As flores morreram? — pergunta ela preocupada, abrindo um olho.
— Agora não penses nas flores. Levanta-te!
— Devagar, linda borboleta — interrompe a Avó. — Primeiro tenho de dar os bons
dias aos meus amigos… Bom dia, Tónio… Bom dia, Beto… Bom dia, Rosário…
Ao ouvirem o nome, cada dedo inclina a primeira falange para cumprimentar a
Avó. Alice espera calmamente. São quase sete e meia.
— Agora já estou pronta — informa a Avó.
— Temos de ir embora — retoma Alice.
— Embora, para onde? — pergunta a Avó.
— Bem… De viagem. Sempre gostaste de viajar, não?
— Para África? Para tratar das crianças? — regozija-se a Avó.
— É isso mesmo. Precisam de nós. Temos de nos despachar.
A Avó salta da cama, tira a camisa de dormir e veste o seu lindo vestido de noite.
— Lá porque se vai tratar de crianças pobres, não vamos todas esfarrapadas —
comenta.
— Chiiiuuu! Fala mais baixo! Vais acordar os meus pais.
— Ah! Então eles não vêm connosco? Bem! Não admira. O teu pai nunca gostou de
aventuras — diz ela suspirando.
— Despacha-te — insiste Alice. — Daqui a pouco é dia.
Alice e a Avó saem do quarto e atravessam o corredor e a sala. A Avó quer acordar
o gato, mas Alice detém-na a tempo, mesmo no momento em que ia puxar-lhe a
cauda. Abrem a porta que range. No jardim, os candeeiros desenham um trilho de luz.
O ar fresco pica as narinas. Avó e Alice saltam, à vez, o parapeito da varanda. De
candeeiro em candeeiro, afastam-se lentamente de casa.
6
Arnaud Fortin madruga, mesmo ao domingo. Embora nada o obrigue a abandonar
o calor da cama assim tão cedo. Como tem o sono muito leve, acorda aos primeiros
ruídos da manhã. E, sem esperança de voltar a adormecer, prefere sair do minúsculo
estúdio, instalar-se nos degraus da saída para o jardim público e, lentamente, fumar
um cigarro.
— Não devia fumar — diz-lhe a Avó. — Faz mal à saúde.
Arnaud Fortin levanta a cabeça.
— A minha Avó tem razão — aprova Alice.
— Oh… — responde Arnaud. — Para o que ando cá a fazer!
— Não deve dizer isso — ralha a Avó. — Que idade tem?
— Ããã… Trinta e dois anos… Porque é que me faz essa pergunta? — diz ele
admirado. — E vocês? O que fazem a uma hora destas?
— Nós vamos para África — explica a Avó. — Mas isso são assuntos nossos.
Arnaud sorri. Custa-lhe um pouco, porque já não sorri há muito tempo.
— E você, onde vai? — pergunta Alice.
— A lado nenhum. Ando à procura de trabalho e não tenho dinheiro nem sequer
para ir até ao outro lado da cidade.
— Nós também não, não temos dinheiro — diz a Avó. — Mas isso não nos impede
de ir para África. A propósito, sabe dizer-nos que estrada devemos seguir?
— Estão a brincar, não?
— Uma brincadeira de mau gosto — corrige a Avó. — Não há uma única placa a
indicar a direção de África!
Arnaud está desorientado. Que barafunda na sua cabeça. Mas pelo menos há três
minutos que não pensa nos seus problemas de trabalho e dinheiro.
— A meu ver, devem ir em direção ao sul — diz, depois de uma curta reflexão.
— Você tem ares de conhecer — faz notar a Avó.— Venha connosco para África.
Arnaud sorri uma vez mais e recusa delicadamente o convite.
— Uma viagenzinha não lhe fazia nada mal — insiste a Avó. — Com esse ar tão
triste não vai arranjar trabalho. O que você precisa é de se divertir.
— Vou pensar nisso — promete Arnaud.
— A sério? — diz a Avó.
— Juro.
— Era melhor se cuspisse — sugere Alice.
— Boa ideia — aprova a Avó. — Vamos lá!
Arnaud, Alice e a Avó cospem ao mesmo tempo para os degraus. No mesmo
instante, apagam-se os candeeiros. Por cima do jardim, o céu torna-se claro e um
alvor suave desce lentamente. Alice e a Avó contemplam em silêncio o dia que surge.
Longamente. Depois deixam Arnaud, que fica a vê-las afastarem-se. Hesita em
acender um segundo cigarro. Mas acaba por fazê-lo.
7
O Sr. Meronnet mora no número 24 da Rua do Galo Florido. Todas as manhãs sai
com o Fiel, o seu fiel afegão, caçador de lebres. E, todas as manhãs, o Fiel fareja as
bordas do passeio, as rodas dos carros e o fundo dos caixotes do lixo. O Fiel para, o
Sr. Meronnet puxa a trela, o cão resiste e o dono enerva-se.
— Animal estúpido! Vens ou não? O que é que estás para aí a fazer outra vez?
— Bom dia, Fiel! — diz a Avó ao passar perto do cão.
A Avó e Alice acabam de sair da passagem que dá para o jardim e descem a Rua
do Galo Florido. De mão dada. Andam sempre assim. O Fiel lá descola o nariz do
caixote do lixo do número 22 e agita alegremente a cauda.
— Bom dia, Sr. Meronnet — diz Alice.
— Olá! Bom dia, Alice — responde o Sr. Meronnet, ao reconhecer a filha do Sr.
Zanni. — Estás muito matinal, para um domingo!
— Andamos a passear.
— Fazem muito bem.
Durante este tempo, a Avó acocorou-se junto do Fiel. Fala ao ouvido do cão, que a
escuta com muita atenção.
— A tua Avó está melhor? — pergunta discretamente o Sr. Meronnet. — O teu pai
disse-me…
— Ela está bem — garante Alice.
Intrigado, o Sr. Meronnet para de puxar a trela. Fica a observar o cão, que inclina a
cabeça e arrebita as orelhas.
— Curioso. Dir-se-ia que compreende o que a tua Avó lhe diz!
— O senhor nunca fala com o seu cão? — pergunta Alice admirada.
— Sim, às vezes — diz muito baixinho o Sr. Meronnet.
De repente, a janela do número 24 abre-se.
— Então? — grita a Srª Meronnet. — Vais passar toda a manhã a passear o cão?
— Não… Já vou — defende-se o Sr. Meronnet, puxando cada vez mais a trela do
Fiel. — Só estava aqui a conversar…
— Não te basta a conversa do café! Agora também ficas a falar na rua! — acusa a
Srª Meronnet. — Não volto a repetir. Só espero mais um bocado e, se não vieres, tomo
o pequeno-almoço sozinha!
— Só vou ali buscar o pão e…
— Estou farta das tuas desculpas! Até parece que já não suportas estar em casa!
— A culpa é do cão…
A janela do número 24 fechou-se num trepidar de vidros.
— Estúpido! Por tua causa, vou passar um domingo abominável! — barafusta o Sr.
Meronnet, dando um forte esticão à trela.
Fiel não desiste. Trava com as quatro patas. O Sr. Meronnet ganha alguns
centímetros em cada esticão, mas o cão espera que o dono se canse primeiro.
— Vamos todos caminhar um bocado! — propõe a Avó.
Começa a andar. Dá uma assobiadela e Fiel segue-a imediatamente.
— É formidável! — rejubila o Sr. Meronnet. — Eu… eu não sei como agradecer.
— Não tem nada que agradecer — garante a Avó. — Nós vamos na mesma
direção.
— É normal os vizinhos ajudarem-se — acrescenta Alice.
— Diga-me uma coisa — retoma a Avó. — A sua mulher costuma ficar de mau-
-humor logo pela manhã?
— Anda muito nervosa. É por causa do trabalho. O patrão passa o dia a implicar
com ela. Não é fácil… todos os dias!
— Ão! Ão! — confirma Fiel.
Alice, a Avó, o Sr. Meronnet e o cão descem a Rua do Galo Florido até à Praça
Jarry. Domingo é dia de mercado. Os comerciantes, matinais, acabaram de montar as
suas tendas. Um cheiro a salsichas paira no ar. O talhante aperta o avental. Os frutos
e os legumes esperam pelos clientes.
— A florista está a fazer os primeiros ramos — anuncia a Avó. — São lindos!
O Sr. Meronnet não presta grande atenção.
— Bem, vou-me lá buscar o pão — murmura ele.
— Devia dar mais atenção às flores, Sr. Meronnet. As flores são muito importantes
— insiste a Avó.
— Ah? Talvez. Mas tenho de ir depressa à padaria, caso contrário a minha mulher
vai ter uma crise de nervos.
São exatamente oito horas e quarenta e um minutos quando Fiel arranca em força.
A trela estica e o dono, surpreendido, não tem outro remédio senão correr atrás do
cão.
— Estúpido! Para! Anda cá!
O Sr. Meronnet vocifera, grita, jura. Não vale de nada. Fiel atravessa a Praça
arrastando o dono, direito à tenda da florista.
8
O salão de cabeleireiro Abdelaziz está aberto aos domingos de manhã. No passeio,
um secador com uma toalha em cima. Ahmed está sentado ao lado do secador. Olha
para as gotas que escorrem do canto da toalha. Às vezes põe a mão por baixo, outras
vezes retira-a no último momento e a gota explode em cima do passeio.
— Olá, Ahmed!
— Olá Alice!... Oh! Bom dia, Avó.
Ahmed recolhe uma gota na cabeça do polegar. Com um piparote envia-a à cara
da Alice.
— Toma! É para te lavares!
— Lavadela de gato deixa pulgas — diz Alice enquanto limpa o nariz.
Senta-se à direita de Ahmed. A Avó à esquerda.
— O que fazes na rua a esta hora? — pergunta Ahmed.
— Estamos de saída para África, para tratar das crianças — responde Alice com
toda a naturalidade.
A Avó entretém-se a brincar com as gotas de água nas costas de Ahmed. Junta-as
na palma da mão: começam por encher as rugas, depois formam um pequeno lago no
centro de uma terra árida.
— Olha que têm de atravessar o Sahara — previne Ahmed. — O meu pai nasceu
em Zafraane, onde a areia cobre as casas. Nem ele atravessou o deserto!
A Avó ergue a mão por cima da cabeça de Ahmed e deixa escorrer a água sobre os
seus cabelos negros.
— No deserto, por vezes chove. O que é preciso é atravessá-lo no momento certo.
— Que engraçado — diz Ahmed. — Bem se vê que não percebem nada disto.
— Precisávamos de um guia — insinua Alice.
— Sem dúvida! — admite Ahmed.
De repente, uma voz aguda faz tremer o vidro da montra do salão de cabeleireiro:
— E CHAMA A ISTO UMA MISE?
No interior do salão, Maria Ximenes arranca o espelho das mãos do Sr. Abdelaziz.
— Fiz exatamente o que me pediu — defende-se o pai de Ahmed.
Apesar dos seus sessenta anos e uma carreira de cantora bem preenchida, Maria
Ximenes conserva ainda uma voz temível.
— E, COMO SE NÃO BASTASSE, AINDA FAZ TROÇA DE MIM! — diz aos berros.
O Sr. e a Srª Abdelaziz saem do salão a tapar os ouvidos com as mãos. E Maria
Ximenes berra o mais que pode:
— POR VOSSA CAUSA, TODA A GENTE VAI DIZER QUE ESTOU HORRÍVEL!
Refugiado no passeio, o Sr. Abdelaziz solta um grande suspiro.
— Nunca está satisfeita — lamenta-se ele.
— É sempre isto — confirma a esposa.
— Mas este penteado até lhe fica bem — ajuíza a Avó, lançando uma olhadela para
dentro do salão.
— UMA OVELHA! É O QUE EU PAREÇO! — continua a Srª Ximenes.
— Já temos para um quarto de hora — previne Ahmed. — Vamos dar uma volta?
— Fazem bem, vão distrair-se — aconselha o Sr. Abdelaziz. — Nós vamos tentar
acalmar esta fúria.
A Avó, Alice e Ahmed afastam-se em direção ao mercado, enquanto o casal de
cabeleireiros tenta controlar a situação.
— NÃO SE APROXIMEM MAIS DE MIM! — diz, enfurecida, a Srª Ximenes. — VOCÊS
QUEREM ARRANCAR-ME OS ÚLTIMOS CABELOS E FAZER DE MIM UMA CANTORA
CARECA? ASSASSI-I-I-I-I-NOS!
♦♦♦
9
O sol ergue-se sobre os edifícios como um grito de trombeta. Os raios oblíquos
rasgam o céu e inundam a Praça Jarry.
Instalados na esplanada do Café do Mercado, os clientes estão consolados, exceto
Pierre Gapaillard. Tem sessenta e quatro anos e há muito que não aprecia o sol. Está
só numa mesa. Gosta de estar sozinho. Não gosta de ouvir os outros clientes, só
dizem tolices.
— Tenho fome! — exclama a Avó ao passar na esplanada do café.
— Também eu — confessa Alice. Mete a mão ao bolso e volta a contar as suas
economias.
— Acho que dá para um pequeno-almoço. Até te posso convidar, Ahmed.
— Boa notícia — diz a Avó a sorrir. — Seria um absurdo ir para África de estômago
vazio.
— Oh, que pena! Todas as mesas estão ocupadas — repara Ahmed.
Pelo canto do olho, Pierre Gapaillard vigia a Avó e as duas crianças. Classifica-as
de imediato na categoria de chatos. Não gosta de velhos nem de crianças; os
primeiros estão sempre a repetir o mesmo, os segundos são muito barulhentos.
— Um café com natas e um croissant para o senhor Gapaillard — anuncia o
empregado fazendo passar o tabuleiro por cima da cabeça.
O Sr. Gapaillard não gosta deste empregado. Não gosta que gritem o seu nome na
esplanada dos cafés. Encara-o com ar feroz, depois baixa os olhos para o café com
natas e diz:
— Este café não tem natas, é só café!
O empregado solta um suspiro.
— Eu topei muito bem o seu jogo — continua o Sr. Gapaillard. — Como o leite é
mais barato do que o café, pôs mais leite. Mas a mim ninguém me engana. Pelo preço
de um café com natas, tenho direito a ser servido corretamente!
— Está bem, eu trago-lhe outro — acaba por ceder o empregado.
— Então despache-se — diz de seguida o Sr. Gapaillard. — Caso contrário, quando
trouxer o café, já o croissant não está estaladiço!
— Ó senhor, não se preocupe, trago também outro croissant — replica com ironia o
empregado fazendo uma vénia.
A Avó solta um cacarejo divertido e dirige-se para o Sr. Gapaillard com as crianças
atrás.
— Como este simpático senhor está sozinho, podíamos sentar-nos à sua mesa.
O Sr. Gapaillard até estremece.
— Mas… Deixe estar as cadeiras. Esta mesa é minha! Eu… Eu…
A Avó já está sentada. Alice e Ahmed seguem o exemplo.
— É preciso coragem para partilhar o pequeno-almoço com este rabugento — diz
em voz baixa o empregado. — Aos domingos de manhã vem sempre aqui moer-me o
juízo.
— Seu atrevido! — diz Pierre Gappaillard melindrado.
— Este senhor tem razão — acrescenta a Avó. — Você devia ser mais amável com
os clientes!
— Bem dito! — rejubila o Sr. Gapaillard.
O empregado faz umas caretas de desespero.
— Para lhe perdoarmos a sua indelicadeza, vai servir-nos três chocolates —
continua a Avó.
— Não acredite nele — intervém o Sr. Gapaillard. — Olhe que faz o chocolate com
água para poupar no leite, que depois deita no café com natas para poupar no café.
— Você é que é um grande sovina! — protesta o empregado.
— Não sou sovina! Não quero é desperdiçar o meu dinheiro — retifica o Sr.
Gapaillard — Quando tiver trabalhado como eu a vida inteira, nessa altura já pode dar
a sua opinião!
— Sempre a mesma cantiga! Que velho rabugento! — diz o empregado antes de ir
embora.
— E ainda por cima insulta-me! Insulta-me e tenho de pagar este café intragável!
— Posso prová-lo? — pergunta delicadamente a Avó — Gosto de formular o meu
próprio juízo.
— Faça favor — anui o Sr. Gapaillard.
A Avó leva o café aos lábios e bebe um gole.
— Bah! — E faz uma careta. — O senhor tem razão!
— Ah! — exulta Pierre Gapaillard.
— Deixe-me experimentar o seu croissant.
— Força!
— Ui! — saboreia amplamente a Avó. — Não é lá muito estaladiço…
— Aha! — diz, triunfante, o Sr. Gapaillard.
— Se me der licença, vou experimentar molhá-lo no café. Pode ser que seja
melhor.
— Faça! Faça!
— Mmm... Afinal, não é assim tão mau.
— Então… mudou de opinião? — pergunta ele preocupado.
— Espere. Vou experimentar outra vez — sossega-o a Avó. — Já que isso lhe
agrada.
— Obrigado.
— Primeiro o café… Mmm! Depois o croissant… Mmmm! Depois o croissant no
café… Mmmmm! Não, sinceramente, tudo isto é delicioso.
Pierre Gapaillard fica com um ar desiludido, enquanto a Avó aproveita para repetir
a experiência pela última vez.
— Três chocolates, um café com natas e um croissant — anuncia o empregado.
Fica especado diante da mesa e sorri vitorioso.
— Afinal, Sr. Gapaillard, o meu café não era assim tão mau! E o croissant também
não!
— Bem… mas… quer dizer… — gagueja Pierre Gapaillard.
— Pouse depressa o chocolate — diz a Avó com impaciência. — Estamos a morrer
de fome.
O empregado põe com satisfação as chávenas na mesa.
— Há aqui um mal-entendido — protesta o Sr. Gapaillard.
— Na realidade — avança o empregado — vocês encomendaram um segundo
pequeno-almoço e entretanto devoraram o primeiro. Agora, vão ter de pagar os dois.
— Eu… eu explico — gagueja Pierre Gapaillard.
— Quanto devo pelos chocolates? — pergunta Alice.
— Cinco euros e quarenta. E o senhor Gapaillard deve seis euros e trinta — diz o
empregado.
— Euros? — pergunta sufocado o Sr. Gapaillard.
— Não! Em moedas de ouro! — graceja o empregado.
10
Às dez horas, o senhor e a senhora Zanni acordam. Abrem os olhos ao mesmo
tempo e levantam a cabeça da almofada. Têm os olhos inchados de tanto dormir.
— Dez horas! — grita a Srª Zanni, a espreitar pelo canto do olho para o rádio-
-despertador. — A Avó não nos acordou!
— E a Alice? — pergunta, preocupada, a Srª Zanni.
— Deve estar a dormir… — responde sem convicção o marido.
A mulher, de um pulo salta da cama e enfia desajeitadamente o roupão. O Sr.
Zanni quase tropeça na bainha do pijama. Precipitam-se ambos para o corredor e
entram no quarto de Alice.
— Alice? ALICE? — grita a Srª Zanni.
Bem dissera ela que tudo aquilo ia acabar mal. O Sr. Zanni sobe o pijama e revista
todo o apartamento e, por fim, vai à varanda.
— Alice! — chama ele. — ALICE!
O jardim está deserto. Alice nunca sai sem avisar. Se calhar, a Avó foi colher flores
ou esvaziar alguma loja, e Alice, preocupada, anda à sua procura. Mas esta hipótese
não sossega a Srª Zanni, de rosto lívido. Diz que vai telefonar à polícia, e é já. Não vai
ficar à espera que isto acabe em catástrofe.
— É preciso calma — aconselha o marido num tom firme.
Mas o Sr. Zanni pisa de novo a bainha do pijama. A esposa volta para casa e
agarra no telefone.
11
— Vocês beberam o meu café e comeram o meu croissant! — protesta o Sr.
Gapaillard.
— Como o senhor não o queria… — retorquiu a Avó com um amável sorriso.
— Então a senhora é que devia pagar!
— O senhor é que mo ofereceu. E foi um gesto muito simpático da sua parte.
— Nunca foi minha intenção oferecer-lho!
— Eu sei. Mas felizmente para si, eu desculpo-o por isso.
— Desculpar-me?...
— Ainda por cima, comer, é comer. Mas repetir é repugnante!
— Isto é uma história de malucos — desespera-se o Sr. Gapaillard.
♦♦♦
Maria Ximenes abandona o salão de cabeleireiro.
Como das outras vezes, jura que nunca mais lá põe os pés. Nunca mais. Acha que
ficou horrorosa, que toda a gente olha para ela a fazer troça. As pessoas são tão más!
Desata a correr, num esforço para não chorar.
Ao passar diante da esplanada do Café do Mercado, acha que precisa de uma
bebida para se recompor. É um pouco cedo, mas não faz mal. Acaba de ficar uma
mesa livre. Atira-se para uma cadeira, esmagada pelo peso das suas desgraças.
— É a Srª Ximenes — diz baixinho Ahmed. — Sentou-se mesmo atrás de nós.
— Se está zangada com os teus pais, é melhor que não te veja — murmura Alice.
— Parece tão triste — observa a Avó ao virar-se para trás.
Maria Ximenes cruza o seu olhar com o da Avó e, de repente, esboça o gesto de
ajeitar o cabelo.
— Esse penteado fica-lhe muito bem — atira-lhe a Avó.
— Diz isso por estar com o filho do Sr. Abdelaziz — afirma.
— De modo algum — defende-se a Avó. — Só estou a repetir o que me disse este
cavalheiro. E concordo inteiramente com ele.
— Eu?... Quem?... O quê? — E Pierre Gapaillard fica muito corado.
— É verdade?! — pergunta Ximenes esticando o pescoço sobre a mesa.
— Pois…
A Avó, com uma precisão de arqueiro, calca o pé do Sr. Gapaillard.
— SIIIIM!!! É exatamente o que estava a dizer — deixa escapar, com ar de quem
está a sofrer.
— Não está habituado a dizer galanteios em público — explica Alice.
— Sendo assim, ainda é mais comovedor — diz a Srª Ximenes.
Pierre Gapaillard sorri. É difícil, sobretudo com aquela dor no pé.
— Bem, vamos deixá-los — informa a Avó. — Vamos para África. As crianças
doentes esperam por nós.
— O quê? — exclamam em coro a Srª Ximenes e o Sr. Gapaillard.
— E o nosso amigo Ahmed vai ajudar-nos a atravessar o deserto — continua a Avó.
— Imaginem o dia que nos espera!
Alice e Ahmed sorriem levantando os ombros. Sorvem o último gole de chocolate e
levantam-se.
— A caminho! — diz impaciente a Avó. — Se queremos regressar antes de
anoitecer, não nos podemos atrasar!
A Srª Ximenes interroga com o olhar o Sr. Gapaillard.
— Eu também vou embora — diz, terminando rapidamente o café com natas.
12
Quando o Sr. Meronnet se viu diante da florista, já não sabia o que dizer. Não podia
pedir uma baguete ou um pão escuro. Toda a gente iria reparar. Todos o conhecem lá
no bairro. Estava tão corado que as faces se confundiam com um ramo de flores.
Mas, quando o cão levantou a pata sobre os baldes de flores, desfez-se em
desculpas. Depois, talvez para que o desculpassem, sentiu-se na obrigação de levar
um ramo de flores.
— É para a sua esposa? — perguntou a florista.
— Bem… sim — respondeu o Sr. Meronnet.
— Que flores é que ela prefere?
— Olhe que não sei…
— E a cor?
— Talvez… o azul… Não, vermelho… verde… ou amarelo…
— Confie em mim — sossegou-o a florista. — Vou arranjar-lhe um belo ramo.
E não mentiu. O ramo é magnífico. Parece um fogo de artifício silencioso. O Sr.
Meronnet leva-o todo orgulhoso na mão direita. De tão pesado que é, tem de o
encostar contra o peito. Com a mão esquerda segura Fiel, que estica a trela com
pressa de voltar para casa…
♦♦♦
— Flores! — exclama a Avó.
A frase soa como prenúncio de complicações.
Alice gostaria de poder segurar a Avó, mas esta já vai disparada. Tinham deixado a
Praça Jarry e descido a Rua do Boi Mau, quando, a avó parou com determinação em
frente da entrada do parque. “Flores!”
A Avó saltita pelas alas do parque como uma menina, como aquelas crianças que
se divertem nos caixotes de areia. Avista um canteiro de tulipas amarelas como sóis e
dirige-se para lá imediatamente. Alice e Ahmed vão atrás dela.
— Sai daí! — suplica Alice, do lado de fora do canteiro.
A Avó levantou soergueu o vestido e avança delicadamente por entre os caules
trepidantes.
— Daqui a pouco aparece o guarda.
— VEM AÍ O GUARDA! — clama uma voz de barítono.
De mãos na cintura e pernas afastadas, exibe um ar de júbilo mal disfarçado sob
um sobrolho franzido. A Avó ergue a cabeça. Ouve as vozes das tulipas que acaba de
cortar: Socorro! Ajudem-nos! A Avó desconfiou sempre das tulipas.
— Demasiado belas para serem sérias — resmunga ela.
Engole uma, amarela. A boca enche-se de sol, e as outras calam-se.
— E ainda por cima, come-as! Está boa para ir para um asilo! — exclama o guarda.
♦♦♦
Arnaud Fortin entra no parque.
Fica uns instantes a olhar para as crianças. Demora-se algum tempo. Mas o tempo
é seu, tem direito a fazer dele o que bem entender. E além disso é domingo.
— Largue-a!
Arnaud Fortin reconhece a voz de Alice. Desde esta manhã que ressoa nos seus
ouvidos, acompanhada da da Avó. De repente, o tempo passa rápido e Arnaud desata
a correr. Num canteiro de tulipas, o guarda puxa a Avó por um braço. Ela debate-se.
Ouve as tulipas a gritar à sua volta. Decididamente, não gosta nada destas flores
medrosas. Quer devorá-las todas. Mas o guarda não é da mesma opinião, segura-a,
dobra-lhe o braço atrás das costas.
— Você está maluco! — protesta Arnaud, ao chegar junto do canteiro.
— Ela é que está maluca! — clama o guarda. — Tem de ser internada!
— Solte-a! — repete Alice, à beira das lágrimas.
— Nunca! Vai esmagar todas as flores.
— Não são as flores que vou esmagar — diz a Avó.
E, com o tacão do sapato, deu uma tal calcadela nos pés do guarda que quase lhe
esmagou o dedo grande.
— AAAIIII!
Ahmed passa-lhe uma rasteira e o guarda cai no meio das tulipas.
— Bem feito — atira-lhe a Avó.
Enraivecidas, as tulipas lançam-se ao guarda e tentam devorá-lo. Não se pode
mexer. Ou talvez seja Arnaud Fortin que o impede de se levantar.
— Fujam! Fujam depressa! — grita Arnaud.
Alice aperta a mão da Avó. Corre. Ahmed também.
— Vou avisar a polícia! — ameaça o guarda enquanto se debate. — Vereis o que
vos vai acontecer!
Mas Arnaud não tem pressa, é domingo, tem tempo para se rebolar sobre as
tulipas juntamente com o guarda. O tempo necessário para lhe fazer perceber que
não deve proceder assim com senhoras de idade. E que as tulipas voltarão a crescer
no próximo ano.
13
Antes de ir embora, Pierre Gapaillard despediu-se da Srª Ximenes. É que ele é
muito educado. Mas não foi só isso. Nesse momento, o empregado trouxe um
conhaque para Maria Ximenes e o tónico produziu efeito. Ela propôs um brinde ao Sr.
Gapaillard, que não hesitou. Talvez por ser indelicado recusar um convite. Mas não foi
só isso. Voltou a sentar-se e, juntos, saborearam um amigável copo de conhaque.
— Permite-me que também lhe ofereça um? — pergunta Pierre Gapaillard ao
pousar o copo vazio em cima da mesa
— Com muito gosto — sussurra a cantora.
E com um gesto preciso, ajeita o cabelo. Começa a habituar-se ao novo penteado.
— Que lindo dia! — comenta o Sr. Gapaillard.
— É verdade! — aprova Maria Ximenes. — Este sol é tão agradável.
♦♦♦
Para os Zanni, este dia é uma catástrofe. Os pais de Alice estão mortos de
preocupação. Por onde andará a sua adorada filha? Que lhe terá acontecido? E a
polícia, que não dá notícias! O Sr. Zanni está sentado a dez centímetros do telefone
com os olhos fixos nele sem pestanejar.
— Vai acabar por tocar — vaticina a mulher.
Ao longo do cais dos Prados Verdes, há bastantes pessoas a correr. Aos domingos
de manhã, é o local preferido dos amantes de jogging, que chamam a atenção pela
respiração sonora e pala maneira de andar. É também ali, junto aos barcos amarrados
ao cais, que Alice, a Avó e Ahmed encontraram refúgio. Sentaram-se num banco.
Descansam da corrida forçada para escaparem ao guarda enraivecido. A Avó vê
passar os joggers. Questiona-se se também eles estão a fugir de algum guarda. Ou
das tulipas enraivecidas.
— Correm por prazer — explica Alice.
— Se não fosses tu a dizer, eu não acreditava — diz a Avó.
E segue com os olhos um jogger particularmente rápido. Traz uma capa vermelha
e preta que chama muito a atenção. De repente, muda de direção. Dois saltos para o
lado, deixa o cais e salta para o canal! Continua a corrida em cima da água! Cada
passo forma um círculo que se estende até ao infinito… Depois vai para o cais da
frente e retoma o seu lugar entre os outros joggers.
— Estás bem, Avó? — pergunta Alice.
— Ããã… sim… muito bem, e tu?
— Pareceu-me que estavas noutro mundo — insiste Alice.
— Não. Estou com a minha netinha querida — graceja a Avó. — E isso dá-me uma
felicidade incrível.
— Daqui a pouco é meio-dia — lembra Ahmed — e começo a ter fome.
— Eu também tenho fome — diz a Avó.
— Já não tenho dinheiro — previne Alice, a revolver os bolsos.
No outro lado do canal, o jogger parou. Balança o corpo da direita para a esquerda
e toca nos pés sem dobrar os joelhos. Depois saltita no mesmo lugar. Cada vez mais
alto. Sempre mais alto. Tão alto que alcança os primeiros ramos das tílias plantadas
ao longo do cais. Deita uma olhadela à Avó. Ela vê-o levantar voo a sério, sobre as
árvores, misturar-se com um bando de pombos e desaparecer no céu da cidade.
— Podíamos ir comer a casa do meu tio. Tem um restaurante aqui perto. Quando
nos vir, certamente que nos vai convidar.
— Ótimo! Que achas, Avó?... Avó?...
— Falaste comigo?
— Vamos comer?
— Porquê? Têm fome?
— Mas… Acabaste de dizer que querias comer!
— Ah! Pois! — retifica a Avó. — Vamos, então!
14
Jacqueline Meronnet olha para o ramo pousado na mesa da sala. Acha-o magnífico.
O Sr. Meronnet ainda está a tomar banho. Canta os primeiros compassos de Bodas de
Fígaro. Só sabe o início, mas é quanto basta. O relógio da Praça Jarry dá as doze
horas. A Srª Meronnet aproxima o rosto das flores. Fecha os olhos. Aquele
perfume lembra-lhe o dia do casamento, um dia maravilhoso.
De nariz a fungar e orelhas em riste, Fiel larga o cesto quando o Sr. Meronnet sai
do quarto de banho. O seu dono enrolara uma toalha grande azul à volta da cintura e
atravessa a sala para se ir vestir no quarto. Continua a assobiar a mesma área. A Srª
Meronnet vira a cabeça para o marido. Está a tentar encolher a barriga e sorri, um
pouco incomodado. Jaqueline Meronnet aproxima-se dele e beija-o com ternura. Fiel
pousa o focinho no chão e lança dois alegres latidos.
♦♦♦
Pierre Gapaillard é pontual.
Ao meio-dia em ponto, chama o empregado do Café do Mercado.
— Pode fazer o favor de nos trazer o menu?
O empregado pensa que se trata de uma brincadeira. Ou então o Sr. Gapaillard
não aguenta conhaque.
— Para comer? — pergunta ele estupidamente.
— Até parece que lê o meu pensamento — responde Pierre Gapaillard com uma
paciência que nele não é usual.
Maria Ximenes está feliz por almoçar com um cavalheiro educado e de espírito tão
delicado. Nunca mais pensou no penteado.
Pensa em Pierre Gapaillard, que lhe conta a vida e lhe faz perguntas sobre a sua.
Têm tanta coisa a aprender um com o outro. Mais de sessenta anos para recuperar.
— Toma um aperitivozinho antes de comer? — propõe Pierre Gapaillard.
— Com muito gosto — responde Maria Ximenes.
Alice, Ahmed e a Avó preparam-se também para comer. Sami Belacel está feliz por
receber o sobrinho e os amigos no seu restaurante.
Instalou-os no pátio, nas traseiras da cozinha. Uma esteira de junco cobre o chão.
Alice, Ahmed e a Avó sentam-se de pernas cruzadas em redor de uma mesa baixa.
— Aqui está-se bem. Ninguém os incomoda e até podem apanhar sol — diz Samir
Belacel.
Acaricia a cabeça de Ahmed e repete-lhe como está feliz por aquela visita. A Srª
Belacel junta-se a eles. Coloca uma monumental travessa de cuscuz fumegantes no
centro da mesa e entrega um garfo a cada um.
— Comam! — diz ela.— Antes que arrefeça.
É uma grande travessa de barro verde e amarela. Ahmed é o primeiro a espetar o
garfo. Alice e a Avó seguem-lhe o exemplo, sem hesitação. O Sr. e a Srª Belacel estão
satisfeitos, pois os seus hóspedes comem com apetite. Acariciam a cabeça das
crianças e vão para a sala do restaurante servir os outros clientes.
— Depois disto temos de tratar das crianças doentes — lembra a Avó, entre duas
garfadas.
Alice e Ahmed não respondem. A Avó já atravessou o Mediterrâneo. Está em
África. Em Tunes ou em Zafrane, às portas do Sahara, lá, onde areia e homens
disputam o espaço. Alice limita-se a sorrir.
♦♦♦
O tenente Najir mostra um sorriso jovial.
— Senhor Fortin, o senhor agrediu o guarda do parque!
— Ele é que estava a agredir uma senhora idosa! — protesta Arnaud. — Se eu não
interviesse, poderia ser acusado de não socorrer uma pessoa em perigo!
— Nesse caso, preciso do testemunho dessa velha senhora — responde o tenente
com manha. — É capaz de nos ajudar a encontrá-la… e às duas crianças que a
acompanham?
— Não estou a ver como.
— Sabe para onde foram?
— Para África.
— Desculpe?
— Queriam ir tratar as crianças doentes. Pensavam ir em direção ao Sul.
— Duvido da utilidade das suas informações.
— Mas estou a falar a sério!
— Não tem mais informações? — insiste o tenente.
— Sobre África?
— Muito engraçado, Sr. Fortin… Bem, pode ir para casa.
— Ai sim?
— Sim! — confirma o tenente Najir. — Há muito que deixei de apontar as queixas
apresentadas pelo guarda do parque. Se assim não fosse, metade da cidade já estaria
na cadeia.
— Obrigado.
— Não tem de quê.
Arnaud Fortin levanta-se e prepara-se para abandonar o gabinete do tenente:
— Vai procurar a senhora de idade e as duas crianças?
— É minha obrigação — afirma o tenente.
— Seja delicado com elas.
— Não se preocupe, Sr. Fortin. Também isso faz parte do meu ofício.
15
O cuscuz de Samir Belacel é excelente. Mas os cornos de gazela são mesmo uma
delícia! Acompanhadas de um chá de menta, que deixa um gosto adocicado na língua,
são divinais. A Avó, Alice e Ahmed saíram do restaurante de barriga cheia. Caminham
sem pressa pela Avenida Lamartine, inebriados por todos aqueles sabores. As ruas
desertas já se assemelham ao deserto. Não se vê ninguém diante das lojas de
reposteiros corridos. A travessia deve começar aqui.
— Tens a certeza de que vamos na direção certa? — pergunta a Avó.
— A… Sim? — faz Ahmed, interrogando Alice com o olhar.
— Ahmed é um guia formidável. Não te preocupes, Avó.
A Avó não volta a preocupar-se. A cidade está morta, os passeios cobertos de areia
e até os sapatos se enterram. Caminhar é cansativo. E faz tanto calor. Mas tudo isto é
normal no deserto. A última aldeia há muito que ficou para trás. As dunas sucedem-se
e a Avenida Lamartine é uma longa pista sem fim.
— Para onde é que estamos a ir? — pergunta Ahmed ao ouvido de Alice.
— Não sei. Mas não podemos voltar para casa antes de anoitecer, caso contrário a
Avó vai já para o lar.
— A sério?
— Vês-me com ares de quem está a brincar?
— Está bem. Levo-vos a passear até ser noite. Vamos subir a Avenida Folha de
Trevo e passar diante da piscina. E depois…
Um furgão da polícia acaba de ultrapassar a Avó e as crianças. Para alguns metros
à frente.
— Depressa! Temos de correr! — reage Ahmed.
— Que sorte! — exclama com júbilo a Avó — Esta camioneta vai na mesma direção
que nós! O motorista vai dar-nos boleia, de certeza.
Alice tenta segurar a Avó. Diz-lhe que não, que é uma armadilha. São bandidos do
deserto, ladrões, estranguladores…
Dois polícias saem do furgão.
— És Alice Zanni? — pergunta o primeiro.
♦♦♦
No Café do Mercado, Pierre Gapaillard e Maria Ximenes acabam de comer.
Beberam duas garrafas de vinho. As gargalhadas da Srª. Ximenes ecoam pela
Praça.
O Sr. Gapaillard paga a conta e dá uma gorjeta ao empregado, o que o deixa de
boca aberta.
— E se o convidasse para uma sessão de cinema? — sugere a Srª. Ximenes. — Há
uma sessão às duas e meia.
— Óptima ideia! — aprova Pierre Gapaillard. — Já não vou ao cinema há… uma
eternidade!
Pierre Gapaillard e Maria Ximenes deixam o Café do Mercado de braço dado. É
verdade que beberam demais e o sol está muito forte. Mas é tão agradável quando
alguém nos dá o braço…
O Sr. e a Srª. Meronnet passeiam nas alas do parque. Também eles andam de
braço dado e, pela primeira vez, Fiel não puxa pela trela. Ao passar pelo canteiro das
tulipas esmagadas, o Sr. Meronnet não resiste à tentação: colhe as que têm o pé
partido. Vão juntar-se ao ramo pousado em cima da mesa da sala.
O guarda, sentado num banco, nem acredita no que vê. Que dia! As pessoas estão
todas malucas! Levanta-se rapidamente para interpelar o Sr. Meronnet e a mulher,
que lhe viram as costas. Mas Fiel fulmina-o com o olhar e mostra-lhe os dentes. O
guarda volta a sentar-se. Uma zaragata por dia já basta: acabou agora mesmo de
limpar a farda. Só faltava que o cão lha rasgasse!
♦♦♦
16
A Avó permanece sentada no gabinete do tenente Najir que lhe sorri gentilmente.
Não perdeu o seu ar jovial.
— Então, passou bem o dia? — pergunta ele.
— Excelente — confessa a Avó.
— Pelo menos desta vez não a apanho numa loja de pronto-a-vestir.
— Estava no deserto.
— Acho que iam para África.
— Como é que soube?
— A minha profissão é saber tudo.
— Fantástico! — exclama a Avó. — Então sabe onde está a minha neta e o seu
amiguinho?
— Levámo-los a casa dos pais.
— E eu? Porque é que estou aqui?
— A senhora está na esquadra.
— Vai prender-me?
— Não, Avó. Vamos levá-la para outra casa.
— Mas eu não quero mais casa nenhuma. Quero voltar para a minha casa. Quero
ver a Alice. E as minhas flores, que não devem ter murchado.
— Por agora é impossível. lamento muito.
— E amanhã?
— Amanhã também não.
A Avó cala-se. Agora conversa com os dedos. Sobretudo com os dedos pequeninos,
os seus prediletos. A esses, ela conta-lhes todos os seus segredos.
O doutor Cerejeira entrou no gabinete do tenente. Entrega um papel assinado pelo
Sr. Zanni.
— Até breve, Avó — diz o tenente Najir.
— Até amanhã — responde a Avó.
O tenente Najir, ao vê-la sair do gabinete acompanhada do doutor Cerejeira,
perdeu um pouco do seu ar jovial.
Segunda parte
17
— Bom dia, Srª Zanni — diz a enfermeira ao entrar no quarto. — Dormiu bem?
A Avó não responde. Não fala com esta mulher, cúmplice certamente do doutor
Cerejeira. Que traiçoeiro! Seria bem melhor se fosse para África tratar crianças, em
vez de andar a aborrecer as senhoras de idade.
— Tem de se levantar e ir almoçar com as outras pessoas — continua a
enfermeira.
A Avó obedece. Enfia o roupão e sai do quarto. Segue pelo corredor até à sala de
jantar. Recorda os pequenos-almoços com Alice, tostas barradas com Nutella ou
compota, as pontas dos croissants arrancadas com os dentes, as bolinhas de miolo de
pão molhadas no leite quente.
A Avó senta-se junto das outras pensionistas. Aqui, toda a gente é simpática.
Todos dizem Bom dia e Obrigada. Mas a casa da Avó não é aqui. Esta manhã as
bolinhas de miolo de pão são substituídas por lágrimas. Misturam-se com o leite
quente. A Avó chora em silêncio. Sente a falta de Alice. Não está assim tão tola.
Mesmo que, às vezes, veja o mundo de forma diferente.
“Não, eu não estou maluca” pensa com serenidade. Não responde a quem se
preocupa com ela. Bebe o leite e limpa as lágrimas. Depois irá lavar-se e ficar todo o
dia à espera. Espera por Alice. Um dia, acabará por vir.
18
— É muito cedo para voltares a ver a Avó — conclui o Sr. Zanni. — Vai de novo
meter-te ideias na cabeça…
— Ela deixa-me feliz! É só o que ela faz! — protesta Alice.
— Então e nós? — pergunta o pai chocado. — Não fazemos tudo para seres feliz?
Não te falta nada, pois não?
— Não, Papá. Não me falta nada — suspira Alice.
— A tua mãe e eu trabalhamos muito e…
— Eu sei, Papá — diz Alice desesperada.
— A vida não é fácil, mas não nos lamentamos. Não vou agora permitir que a tua
Avó estrague todos os nossos esforços. Era só o que faltava! Ela que nunca fez nada
por mim quando era garoto!
— Não exageres! — intervém a Srª Zanni. — Os teus pais sempre gostaram de ti.
— Interessavam-se mais pelos outros do que por mim. Sempre a ajudar os amigos
e os vizinhos. Bem, é verdade que toda a gente no bairro nos estimava. Mas o meu
pai e a minha mãe nunca ganharam o suficiente para vivermos com desafogo.
— Não morreste à fome — sublinha Alice.
— Nem ao frio — acrescenta a mãe.
— Sem dúvida. Mas preferia ter estudado a andar a brincar com os miúdos do
bairro.
— Se te tivesses esforçado mais na escola… — começa a Alice.
— Esse comentário assenta-te como uma luva! — replica o Sr. Zanni.
Alice baixa os olhos.
— Vou passar a trabalhar. Prometo. Mas deixem-me ir ver a Avó.
O Sr. Zanni finge não ter ouvido.
— Por favor, Papá. A Avó faz anos no domingo! Tens de me deixar ir! — suplica
Alice.
O Sr. Zanni fica aborrecido. Quase indeciso. “Vai acabar por ceder”, sonha a Srª
Zanni.
— Eu…
— …Peço-te, por favor, Papá.
— Escusas de tentar! — afirma o Sr. Zanni. — Aniversário ou não, está fora de
questão. O doutor Cerejeira foi claro a teu respeito: nada de visitas, por agora.
O pai cruza os braços e levanta o queixo: a decisão é irreversível. Alice gostaria de
viajar até à Amazónia. No coração da floresta equatorial talvez tivesse a sorte de se
tornar amiga de um caçador de cabeças, a quem daria sem hesitar o endereço do
doutor Cerejeira.
♦♦♦
19
O Sr. Abdelaziz até está fora de si. Este domingo fica na história. Pela primeira vez,
a Srª Ximenes não gritou ao ver o seu novo penteado. Depois de um número
incalculável de fracassos, anos de buscas infrutíferas, avalanches de gritos de furar os
tímpanos, o Sr. Abdelaziz finalmente conseguiu satisfazer a sua única cliente
descontente. Claro que a presença de Pierre Gapaillard contribuiu muito para este
êxito.
— Está encantadora! — exclama ele no seu mais afável sorriso.
As faces da Srª Ximenes coram ligeiramente. O Sr. Abdelaziz enche ligeiramente o
peito.
— Agora é a sua vez, Sr. Gapaillard — intervém a mulher do cabeleireiro.
— Eu?... Mas…
— Mas sim!
A Srª Ximenes sai imediatamente da cadeira, cedendo-lhe o lugar.
— É oferta do salão — insiste a Srª Abdelaziz.
Se é de graça… Pierre Gapaillard já não protesta e instala-se docilmente na
cadeira. A Srª Abdelaziz e Maria Ximenes riem discretamente, um riso de meninas
abafado com a palma da mão. Quanto ao Sr. Abdelaziz, limita-se a coçar a cara com o
bico da tesoura. Não pode ter o menor descuido: quando os cabelos são raros, o
menor erro é fatal.
— Faça de conta que corta — segreda-lhe ao ouvido o Sr. Gapaillard. — Elas não
dão conta.
Aliviado, o Sr. Abdelaziz responde por uma discreta piscadela de olhos através do
espelho.
20
Alice trepa para cima da casinha do gato, sobe para o parapeito da varanda e salta
para o jardim público. Está deserto como todos os domingos de manhã. Alice
atravessa-o a correr e encontra Ahmed debaixo das acácias.
— Ainda não tens notícias da Avó? — pergunta-lhe o amigo.
— Nada — confessa Alice. — Já lá vão três semanas.
— Porque é que não lhe telefonas?
— Os meus pais proibiram-me. Ordens do doutor Cerejeira!
Alice chega-se para junto de Ahmed:
— Encontrei a direção do lar na agenda da minha mãe: Rua do Boi Mau, nº 52.
— É mesmo aqui ao lado! — exclama Ahmed.
— Chiiuu!
— Podíamos tentar tirar de lá a Avó à socapa.
— Ou pelo menos visitá-la — sugere Alice mais moderada. — Hoje faz anos.
— Ótimo! Vamos lá?
— Claro.
21
Fiel atravessa a Praça Jarry abanando alegremente a cauda. Entra na padaria e
espera calmamente pela sua vez. Ao chegar à caixa, ergue-se sobre as patas traseiras
e pousa o porta-moedas que segurava na boca.
— O mesmo do costume, Fiel? — pergunta a padeira.
— Rrrrããoo! — faz o cão com impaciência.
A padeira enche um saco de croissants, mete o porta-moedas dentro, e entrega
tudo a Fiel.
— Tens medo que os teus donos morram de fome? — diz ela a gracejar.
— Não te preocupes — dispara um cliente. — Não devem aborrecer-se enquanto
esperam por ti!
Fiel não dá ouvidos aos risos que enchem a loja. Pega no saco com os dentes e,
orgulhoso, abandona a padaria. Atravessa a Praça Jarry, passa diante do salão de
cabeleireiro; um pouco mais à frente, cheira um balde do lixo e rega-o copiosamente
antes de se dirigir para a Rua do Galo Florido.
Sentado na esplanada do Café do Mercado, Arnaud Fortin vê o cão afastar-se. Está
atento aos ruídos, às vozes, aos cantos deste domingo de manhã. O empregado pousa
uma chávena de café com natas à sua frente. Arnaud leva um cigarro à boca, reflexo
condicionado pelo cheiro do café. Mas antes de riscar o fósforo, hesita…
As vozes de uma idosa e de uma menina ocupam sempre um cantinho da sua
cabeça; nunca mais desapareceram. Resolve esperar um pouco antes de acender por
fim o cigarro. Aproveita para gravar esta praça na sua memória.
Arnaud Fortin está feliz, amanhã parte para África, como motorista de uma
associação humanitária. Ao volante de um camião. Tem pressa de encontrar os
meninos de África.
22
Nas tardes de domingo, a Rua do Boi Mau não é muito frequentada. A partir do
número 52, começa o parque do lar da terceira idade. O gradeamento não é muito
alto. Mas mesmo assim… Felizmente Ahmed viu que havia um poste de eletricidade
mesmo encostado às grades. Um daqueles postes semelhantes a uma escada. Basta
trepar e saltar para o outro lado. É fácil. É o que pensa Ahmed.
— É como para a tua varanda, só que um pouco mais alto.
Empoleirada a meio do poste, de saco às costas, Alice hesita.
— Espera, vou mostrar-te como deves fazer — diz Ahmed.
Em menos de nada, põe-se ao lado de Alice, no outro lado do poste.
— Realmente, estais a habituar-vos a infringir a lei! — diz uma voz.
Alice e Ahmed olham para baixo: o tenente Najir está mesmo ali.
♦♦♦
— Estou indeciso entre duas soluções: ou mandar-vos para a esquadra… ou levar-
-vos comigo a visitar a Avó. Imagino que prepararam alguma coisa para o seu
aniversário!
Alice e Ahmed recuperam o sorriso. Descem do poleiro, juntam-se ao tenente Najir
e dirigem-se com ele para a entrada do lar. O polícia faz-se anunciar pelo
intercomunicador. O portão abre-se ao som do motor elétrico e os três percorrem a
pequena ala de gravilha, que conduz a uma dupla porta vidrada, que é a entrada do
edifício.
Primeiro, entra o tenente. Alice e Ahmed seguem-no.
— Bom dia, Sr. Tenente — saúda uma enfermeira na receção. — Hoje vem
acompanhado?
— Ele é Ahmed. E ela, a neta da Avó — explica o tenente Najir. — Chama-se Alice.
— A Avó vai ficar muito feliz por voltar a vê-la.
A enfermeira parece satisfeita. Escreve qualquer coisa num caderno que fecha em
seguida. Alice puxa pela manga do tenente.
— O senhor vem aqui muitas vezes? — pergunta-lhe ela ao ouvido.
— Às vezes à tarde, depois do trabalho. E ao domingo.
— Vou levá-los ao quarto — propõe a enfermeira. — Vai ser uma bela surpresa.
Alice pega na mão de Ahmed e aperta-a com força. O pequeno grupo segue a
enfermeira. Os passos ressoam como um desfile alegre nos corredores do lar da
terceira idade.
23
— PARABÉNS!
Alice surge no traço da porta, depois Ahmed e o tenente Najir.
— ALICE! — exclama a Avó.
Alice lança-se nos braços abertos. A Avó está linda como um domingo de sol. As
mãos acariciam os cabelos de Alice. Alice não contém as lágrimas, lágrimas de alegria
que molham o vestido da Avó.
— Trou… trouxe-te flores — diz Alice a fungar enquanto abre a mochila.
— Que bom — diz a Avó. — Espero que estas não murchem.
— Vais ver que desta vez vai correr bem!
E depõe um ramo de perpétuas nas mãos da Avó que, ao cheirá-las, nota que não
têm perfume.
— Deitas-lhe tu perfume — diz Alice. — Foi de propósito.
— Que boa ideia! — felicita-a a Avó.
— Olha, o Ahmed também veio — continua Alice — e o tenente.
A Avó olha para eles de relance.
— Quem é esta gente? — pergunta baixinho.
— Não estás a reconhecê-los?
— Não… mas devia?
O tenente sorri para Alice e pousa a mão no ombro de Ahmed. Parece querer dizer
que está tudo bem. Depois entrega um embrulho à Avó, não maior do que um livro
mas mais delgado, embrulhado num lindo papel florido.
— Feliz aniversário — diz o polícia.
Alice ajuda a Avó a abrir o embrulho e retira um pequeno espelho dourado. Para a
Avó poder pôr-se bonita todas as manhãs. A Avó pega nele e ergue-o. Alice e ela
olham-se no espelho.
— Sete anos de tristeza se não vir esta imagem todas as manhãs — murmura a
Avó.
Alice agarra-se a ela. O tenente Najir vira a cabeça. Gosta tanto deste bairro! Mas
nem sempre é domingo, e tem saudades do tempo em que a Avó vinha, de vez em
quando, semear por ali um pouco de alegria…
♦♦♦
Arnaud Fortin atravessa uma última vez sem o olhar desconfiado do guarda. Já tem
saudades das flores, das árvores, das crianças, e até daquele abominável guarda.
Então, aproveita, pela última vez.
♦♦♦
Pierre Gapaillard sente o coração a acelerar. Bate no peito a um ritmo endiabrado.
Na sua idade, é preocupante… mas dadas as circunstâncias, é compreensível.
Sentado na esplanada do Café do Mercado, vestido no seu melhor fato, acaba de pedir
a mão de Maria Ximenes…
♦♦♦
Fiel é um cão paciente e serviçal mas não suporta que se esqueçam dele. Pousa o
focinho na beira da cama, geme, deixa descair as orelhas e faz olhos tristes… De
repente, agita a cauda e ladra com alegria: o Sr. e a Srª Méronnet resolvem
finalmente sair da cama.
♦♦♦
— São horas de soprar as velas, senhora Zanni.
A enfermeira volta com um bolo simples mas apetitoso. As velas, uma com um
sete e outra com um três, apagam-se ao sopro conjunto de Alice e da Avó, que
fecham os olhos o tempo de formularem um desejo. A enfermeira parte o bolo. Serve
chocolate quente onde a Avó, Alice e Ahmed molham a sua fatia de bolo, e prepara
um café para o tenente Najir, que lhe propõe, em troca, tomarem um, no Café do
Mercado, num domingo de tarde. Todos juntos cantam os Parabéns a Você.
♦♦♦
24
Ahmed está sentado no parapeito da varanda. Alice retira dos vasos os restos
secos dos narcisos.
— O teu pai continua com a mesma ideia? — pergunta Ahmed.
— Diz que a Avó não pode estar em nossa casa, que teríamos de a vigiar
permanentemente. Esquece-se de tudo, exceto de mim.
— E então?
— Diz que é demasiado perigoso tanto para ela como para nós.
— Portanto, queres dizer que o teu pai não mudou de ideias.
— O tenente Najir falou com ele. Eu posso ir visitar a Avó todas as quartas-feiras.
E também ao domingo.
— Isso chega?
— Não, mas é melhor do que nada.
— Lá isso é verdade.
— E tu, queres vir comigo?
— Está bem… Mas… o que estás a fazer?
Alice tira delicadamente três rosas de dentro do casaco e planta uma em cada
vaso.
— Apanhaste-as no parque?! — pergunta Ahmed desconfiado.
— O guarda não viu.
Alice rega a terra com o pequeno regador pousado na varanda.
— Achas mesmo que vão pegar? — duvida Ahmed.
— Não sei. O importante é tentar, não é?
Ahmed e Alice trocam entre si um sorriso cúmplice. No relvado do jardim público,
andam pessoas a passear os cães. Dentro de minutos, vão ser as dezanove e trinta e
todos vão jantar. É o final de um domingo. Ahmed baixa do parapeito, saltando para a
casinha do gato. O gato foge e Ahmed vai para junto de Alice.
As suas mãos tocam-se. Juntos olham para as três rosas que já dançam. Ou será o
vento? Isso não importa.
Marc CantinMamie & Moi
Paris, Milan Poche Junior, 2003(Tradução e adaptação)