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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
ANÁLISE CRÍTICA DO DESARMAMENTO CIVIL COMO
POLÍTICA CRIMINAL
LUCAS TORRES VALLORY
NÚMERO USP 8044911
Orientador: Professora Associada Janaína Conceição Paschoal
SÃO PAULO
2016
2
LUCAS TORRES VALLORY
NÚMERO USP 8044911
ANÁLISE CRÍTICA DO DESARMAMENTO CIVIL COMO
POLÍTICA CRIMINAL
Tese de Láurea apresentada ao Departamento
de Direito Penal, Medicina Forense e
Criminologia como requisito para a
conclusão do curso de graduação na
Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo sob a orientação da Professora
Associada Janaína Conceição Paschoal.
SÃO PAULO
2016
3
FOLHA DE APROVAÇÃO
Lucas Torres Vallory
ANÁLISE CRÍTICA DO DESARMAMENTO CIVIL COMO POLÍTICA CRIMINAL.
Tese de Láurea apresentada ao Departamento
de Direito Penal, Medicina Forense e
Criminologia como requisito para a
conclusão do curso de graduação na
Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo sob a orientação da Professora
Associada Janaína Conceição Paschoal.
Aprovada em: ____/____/____
Orientador: Professora Associada Janaína Conceição Paschoal
4
A professora Janaína Paschoal. pela
orientação, paciência, atenção e
principalmente pela oportunidade de poder
realizar este trabalho.
A minha família e namorada, por
todo carinho e apoio.
5
SUMÁRIO
1. Introdução .................................................................................................................. 6
2. Pessoas ordinárias matam?
2.1. Um breve ensaio da violência e criminalidade humana ............................... 7
2.2. Questionando premissas.............................................................................. 12
3. O desarmamento civil como forma de opressão ................................................... 20
3.1. Nazismo....................................................................................................... 22
3.2. União Soviética............................................................................................ 26
3.3. China............................................................................................................ 27
3.4. Cuba............................................................................................................. 28
4. Estudo de casos internacionais ............................................................................... 30
4.1. América do Norte ........................................................................................ 30
4.2. Europa ......................................................................................................... 45
4.3. Japão ........................................................................................................... 57
4.4. América Latina .......................................................................................... 60
5. O Panorama brasileiro
5.1. Histórico do desarmamento civil brasileiro e sua evolução legislativa....... 66
5.2. O Estatuto do Desarmamento
5.2.1. Implementação e a promessa do fim da criminalidade ................ 70
5.2.2. Análise do Estatuto e os seus principais problemas ..................... 72
5.3. O Estatuto de Desarmamento atingiu seus objetivos? ................................ 86
5.4. PL 3722/12 .................................................................................................. 95
6. Conclusão ................................................................................................................. 98
7. Bibliografia ............................................................................................................. 101
6
1. Introdução.
O objetivo deste trabalho é analisar a política do desarmamento civil adotada em
diversos países do mundo, bem como no Brasil, sob o pretexto de redução da
criminalidade e dos homicídios cometidos com armas de fogo.
O debate acerca desse tema sempre permeou as sociedades, desde a invenção da
pólvora e do surgimento das primeiras ditaduras até o desenvolvimento do
instrumento que viria a ser classificado como arma de fogo. Ao longo dos séculos,
viu-se a transformação das posturas adotadas sobre o tópico e de suas justificativas,
episódios que serão discutidos no segundo capítulo deste trabalho.
Ao mesmo tempo que se buscará demonstrar e analisar a riqueza histórica por
detrás do tema, esta dissertação irá estudar a discussão atual da matéria, a mesma
que comoveu os Estados Unidos com as lágrimas do presidente Barack Obama1, ou
que inflamou a Comissão Especial da Câmara dos Deputados brasileira ao aprovar o
PL 3722/2012.
Apesar da controvérsia atribuída à questão, observa-se que as discussões
enraizadas dessa matéria estão sempre impregnadas de opiniões infundadas e
argumentos emotivos. Isto posto, a presente monografia visa, ao analisar uma
extensa bibliografia, trazer estudos e pesquisas que corroborem com os pontos
levantados a fim de fugir do senso comum e de justificar de forma sólida as
conclusões.
Neste sentido, cabe esclarecer de antemão o fato da criminalidade ser
influenciada por diversos fatores, que tangenciam questões culturais, sociais e
estruturais de uma sociedade. Sendo assim, se por um lado a adoção do
desarmamento civil como política criminal não irá extinguir os crimes violentos, o
mesmo vale para a adoção de políticas armamentistas.
Desta forma, este trabalho propõe uma análise histórica e atual de diversos
países para que se permita traçar uma relação entre a criminalidade, a
disponibilidade e o acesso às armas de fogo, na tentativa de se concluir se o
desarmamento civil é eficaz como política criminal. 1 O presidente Barack Obama chora ao anunciar plano de restringir armas de fogo nos Estados Unidos.
Disponível em: http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2016/01/05/obama-chora-ao-
anunciar-plano-que-restringe-armas-de-fogo-nos-eua.html Acessado em: 05/2016
7
2. PESSOAS ORDINÁRIAS MATAM?
2.1. Um breve ensaio da violência e criminalidade humana
“Aqueles que abrem mão de uma liberdade
essencial por uma segurança temporária não
merecem nem liberdade e nem segurança”.
BENJAMIN FRANKLIN
De início, vale, de forma abreviada, conceituar o que seria, de fato, violência.
Vocábulo de origem francesa, que data aproximadamente do início do século XIII,
“violência” deriva do latim vis, que significa “força”, “poder” ou “vigor”, evidenciando
temperamento encolerizado e desmedido. Caracteriza assim, uma ação de força bruta
que visa submeter e constranger outrem2.
Pode-se notar, no caminhar da humanidade, as diferentes concepções que este
termo adquiriu. A sociedade espartana vivia e respirava a violência, era criada em torno
dela e, sempre que possível, a reproduzia, seja com os escravos ou com os povos que
travavam batalhas. De outro lado, observa-se sociedades ou grupos sociais que aboliram
qualquer tipo de ato violento, até mesmo os institucionais, como os seguidores de Dalai
Lama (budismo tibetano) ou de Mahatma Gandhi.
Ao se tratar da cultura ocidental, nota-se uma forte influência católica por detrás
do termo, impondo aos seus seguidores o fim da violência desmedida e desmotivada,
restando apenas escusável utilizar-se da força em situações de defesa. Importante
ressaltar, nesta última constatação, que poucas são as religiões adeptas ao pacifismo –
oposição total ao uso da violência ou mesmo da força em qualquer circunstância –
sendo que a maioria das crenças religiosas do mundo a admitem como forma de defesa.
Diante deste quadro, a civilização concedeu à violência um posto fundamental a
ser estruturado em qualquer sociedade, ditando os limites de sua legitimidade e
denunciando os seus excessos.
2 MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012, pg. 07.
8
No entanto, apesar dos 200 mil anos de sobrevivência da humanidade, o fracasso
em conter a violência transcorreu os milênios e, da mesma forma que se mostrou
presente no passado, continua persistente como nunca.
Cabe, após apresentar este panorama, indagar se a violência é algo inato ao ser
humano, ou se, de alguma maneira, ela pode ser abolida.
Para Robert Muchembled, a violência é um fenômeno parcialmente inato,
podendo ser influenciada por fatores externos como a cultura, a sociedade e a economia
e, desta maneira, ela se distingue da agressividade, que é a violência em potencial cujo
poder de destruição pode ser inibido por medidas adotadas pelas civilizações3.
Ao se analisar a percepção humanista e cristã, observa-se que a violência é
intrínseca aos humanos na medida em que também são animais e, portanto, possuem
comportamentos predatórios e de defesa, quando necessário. No entanto, de acordo com
estas mesmas visões, os seres humanos se distinguem em muito dos animais ordinários
na medida em que estes não possuem vontade consciente de destruir o semelhante.
A visão acima exposta não é compartilhada por diversos pesquisadores, como
Erich Fromn, que classifica a violência humana em duas formas: a normal e a
patológica. A primeira exprime o instinto de sobrevivência, que visa garantir a auto
conservação acima de qualquer coisa, e se expressa através do medo, inveja, ciúme ou
necessidade, mas também com uma certa e moderada dose de patologia que se reflete
no desejo de vingança ou na perda da esperança. A segunda exprime a violência
compensatória, o sadismo, a embriaguez da violência e a sede por sangue. Para Fromn,
o ser humano é o único animal capaz de matar, torturar ou lesionar o seu semelhante
sem nenhuma razão, por puro prazer.4
Para o neurologista, psiquiatra e etólogo Boris Cyrulnik, a espécie humana
apresenta uma violência específica na medida em que, diferente de qualquer outro
animal, ela pode criar mundos imaginários que justifiquem a prática de diversas
atrocidades, como os genocídios nos casos em que se identifica nestes imaginários
3 MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012, pg. 09. 4 FROMM, Erich. O coração do homem : seu gênio para o Bem ou para o Mal. Rio de Janeiro: Zahar, 4.
Ed, 1974. Capítulos I e II.
9
“raças inferiores” que devem ser destruídas 5 . Exemplos destes pensamentos são o
nazismo, a escravidão, entre outros.
Ainda neste sentido, e por meio de observações dos animais e seres humanos,
Konrad Lorenz entende ser o instinto agressivo, seja individual, do grupo ou territorial,
o fator fundamentador das sociedades humanas. Essa teoria justifica o modelo
Hobbesiano, no qual o “homem é o lobo do homem” e este deve abdicar de sua total
autonomia em face de um Estado Absoluto que seja capaz de protege-lo6.
Após apresentar essas diversas visões sobre violência, podemos adentrar no
conceito de criminalidade e de criminoso.
Percebe-se uma grande diferença entre violência e criminalidade, na medida em
que o primeiro é a subjugação do outro pela força, já o segundo se mostra como um
agrupamento de infrações produzidas e determinadas em um tempo e lugar,
caracterizando como “crime” aqueles tipificados pela sociedade.
Dessa maneira, nota-se que violência e criminalidade não necessariamente se
complementam, de forma que se pode constatar crimes sem qualquer uso de força física,
bem como praticar violência que não seja compatível a algum tipo criminal, por
exemplo aquelas praticadas nas artes marciais, no futebol americano, etc.
Luiz Afonso Santos classifica a criminalidade em dois tipos. Primeiramente
observa-se o que o autor chama de criminalidade individual, que se mostra em sujeitos
isolados, existentes em qualquer sociedade humana, seja a mais desenvolvida
economicamente ou as menos abastadas. A conduta criminal aparece neste prisma por
fatores psicológicos e inatos ao ser humano, movido por um gatilho emocional. Os
crimes desta seara são instigados, em sua maioria, por inveja, vingança, ócio, cobiça e
demais mecanismos que levam a inaptidão social parcial ou total. Esta criminalidade
sempre existirá e se mostra como um problema de segurança pública para todo e
qualquer Estado.7
A segunda classificação de criminalidade abordada pelo autor é denominada de
banditismo, observada quando uma sociedade apresenta uma conjuntura anormal que
5 MUCHEMBLED, Robert. História da violência: do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2012, pg. 10. 6LORENZ, Konrad. A agressão : uma história natural do mal. Lisboa : Relógio D´Água. 2001. 7SANTOS, Luiz Afonso. Armas de Fogo – Cidadania e Banditismo. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1999, pg. 13.
10
permita que uma parcela de sua população adote e veja a criminalidade como normal ou
natural. A criminalidade individual não exclui o banditismo e vice-versa, mas, segundo
Luíz Afonso, o Brasil vive nas últimas décadas um surto epidêmico do banditismo que
deixa a sociedade atormentada e os órgãos públicos atônitos.
Como agente dessa criminalidade temos o criminoso, aquele que pratica o delito.
Em sua obra “Criminologia”, Sérgio Salomão Shecaira afasta qualquer forma de
determinismo, seja o biológico (o criminoso já nasce assim e necessariamente vai
cometer algum crime), seja o social e econômico (visão do criminoso segundo a ordem
marxista que o enxerga como uma vítima inocente e descartável do sistema capitalista,
sendo o crime algo natural de sistemas de exploração como o capitalismo)8.
Refutando o determinismo o autor nos revela que o criminoso é um ser
misterioso e mutável, em suas palavras Shecaria afirma:
“(...) entende-se que o criminoso é um ser histórico, real, complexo e
enigmático. Embora seja, na maior parte das vezes, um ser
absolutamente normal, pode estar sujeito às influências dos meios
(não aos determinismos). Se for verdade que é condicionado, tem
vontade própria e uma assombrosa vontade de transcender, de
superar o legado que recebeu e construir o próprio futuro. Está
sujeito a um consciente coletivo, como todos estamos, mas também
tem a capacidade impar de conservar sua própria opinião e superar-
se, transformando e transformando-se. Por isso, as diferentes
perspectivas não se excluem; antes, e permitem um grande mosaico
sobre o qual se assenta o direito penal atual”.
Após este breve ensaio sobre violência, criminalidade e criminoso pode-se
retirar algumas conclusões importantes que serão fundamentais para o restante da tese.
Em um primeiro momento, percebe-se que o ser humano é naturalmente violento
como qualquer outro animal, violência esta que pode ser revelada em diversas formas de
agressão e se relaciona com o sentimento de autoconservação, não obstante um dos
excludentes de ilicitude no direito penal seja justamente o estado de necessidade.
Constata-se também a violência e a criminalidade motivadas pelas emoções
humanas, muito características da espécie. Neste grupo incluem-se os homicídios 8 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2004, pg. 49
11
motivados pelos ciúmes ou os roubos e furtos pela inveja. Não se pode negar, contudo,
o papel do capitalismo como fomentador dos crimes patrimoniais pela super-valoração
do bem material, vendendo a imagem do “ter para ser”.
De forma mais esporádica, tem-se a violência e a criminalidade patológica,
muitas vezes motivada pelo prazer, como nos casos de serial killers. Nesta linha,
enquadram-se também os genocidas que, por um imaginário de supremacia de raça,
acabam cometendo as mais diversas atrocidades.
No tocante ao criminoso, observa-se uma figura em constante metamorfose que
não exclui nenhuma perspectiva de comportamento, mas engloba todas como um
enigmático mosaico, mostrando-se o objeto de estudo de maior complexidade da
criminologia.
Nestes termos, a humanidade nunca conseguirá banir a criminalidade por
completo. É sobre essa perspectiva que muitos dos argumentos utilizados a favor do
desarmamento civil se encontram. Estes argumentos giram em torno do mantra “mais
armas mais crimes”, justificando que um maior acesso da população as armas de fogo
aumentariam em muito a criminalidade, em especial pelo fato de que o homem comum
teria acesso a uma arma e, por exemplo, num momento de raiva cometeria um
homicídio, como em uma briga de transito.
Portanto, para muitos, a violência inata ao homem, por si só, justificaria as
políticas desarmamentistas.
Em contrapartida, do conhecimento da incapacidade estatal em prover a
segurança a todo o tempo, bem como ante sua ineficiência na maioria dos casos e,
levando-se em conta a cólera humana, emerge a necessidade de se possuir mecanismos
de defesa independentes do Estado.
Essa discussão, como veremos adiante, não remonta séculos ou grandes períodos
históricos, mas é atual e relativamente nova. Este embate será o alvo de análise deste
trabalho.
12
2.2. Questionando premissas.
“Desarmar não criminosos na esperança de que
isso possa ajudar indiretamente a reduzir o acesso
às armas pelos criminosos é uma aposta perigosa
com consequências potencialmente letais”.
GARY KLECK, “Guns and Violence: An
interpretive Review of the Field”, 1995.
O capítulo anterior demonstrou a lógica do pensamento daqueles de defendem o
desarmamento, associando a violência humana ao maior acesso a armas de fogo, o que
levaria, supostamente, a um maior índice de homicídios.
Este raciocínio permite afirmações comuns de serem ouvidas, como: “Se ocorrer
uma briga no trânsito, o motorista irá sacar uma arma e matar o desafeto”, ou “Imagine
como seria se em uma briga de bar, as pessoas sairão atirando uma nas outras” e outros
mais diversos questionamentos que podem ser encontrados ao se discutir o tema com
pessoas de todos os estratos sociais, muito por influência das mídias que vivem da
repercussão de tragédias.
Contudo, veremos como este pensamento, na prática, cai por terra e, em
realidade, observa-se o contrário. O aumento da quantidade e da facilidade da aquisição
das armas de fogo ajuda a reduzir a criminalidade.
De início, vale realizar um estudo comparativo, buscando estabelecer uma
relação entre a quantidade de armas de fogo per capita com as taxa de homicídios nos
países com as maiores taxas de armas legais por habitantes, na tentativa de estabelecer
se o acesso às armas resulta em maiores taxas de homicídio.
13
A tabela acima exposta foi obtida do estudo técnico n°23/20159 solicitado pela
câmara dos deputados para melhor discussão sobre o PL 3722/2012, que visa revogar o
Estatuto do Desarmamento e estabelecer novas diretrizes. O assunto será devidamente
abordado no capítulo 4. Para a confecção da tabela, foram utilizados os dados
adquiridos pelo Small Arms Survey de 2007 (SAS-2007)10.
Como se pode observar, estão expostos na tabela os 19 países do mundo que
possuem o maior número de armas legais por 100 habitantes, bem como o número de
homicídios por armas de fogo a cada 100.000 habitantes. Percebe-se que todos possuem
um índice maior que 20 armas por 100 habitantes, aproximadamente, um em cada
quatro pessoas destes países possuem uma arma, os mesmos países apresentam índice
de homicídios por armas de fogo entre 0.00 (Islândia) e 2,97 (EUA), com a exceção do
Panamá que possui 21,7 armas por 100 habitantes e uma taxa de homicídio por armas
de fogo de 16,18/100.000 habitantes.
No entanto, o Brasil, pais democrático que dispõe do Estatuto do
Desarmamento, uma das leis mais restritivas de acesso a armas de fogo no mundo,
9FANTIN JÚNIOR, Fidelis Antônio. Estudo Técnico n° 23/2015 – Brasília: Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, 2015. Pg. 07. 10Small Arms Survey 2007: As armas e a cidade. Disponível em:
http://www.smallarmssurvey.org/publications/by-type/yearbook/small-arms-survey-2007.html Acessado
em: 04/2016
14
possui uma taxa de homicídio cometidos por este instrumento de aproximadamente
21,7/100.00011 e apenas 8 armas por 100 habitantes.12 Se a quantidade e o acesso a
armas de fogo realmente facilitassem o homicídio, deveriam ser observados dados
diferentes do exposto na tabela, bem como um índice de homicídio muito menor no
Brasil, o que não é o caso.
Pode ser contraposto o fato desses 19 países serem, em sua maioria,
desenvolvidos e, portanto, terem um nível social e econômico superior ao brasileiro, o
que ajudaria no combate aos homicídios. A afirmação não esta completamente errada:
de fato os altos índices sociais e econômicos ajudam na redução dos homicídios e da
criminalidade no geral. No entanto, pode-se buscar estabelecer comparação com países
em situação sócio-economia e cultural semelhantes ao Brasil ou até mesmo inferiores.
Ao se analisar os países latino-americanos percebe-se a mesma relação desigual
entre os indicadores, ou seja, quanto maior o acesso da população a armas de fogo
menor é o índice dos homicídios. O Uruguai, Peru e Paraguai possuem taxas de armas
de fogo respectivamente de 31,8/100, 18,8/100 e 17/100 habitantes e homicídios totais
por 100.000 habitantes de 7.9, 11,0 e 9,7, conforme a Organização Mundial da Saúde13.
Outro exemplo que vale nota é o caso mexicano, que enfrenta problemas
semelhantes ao brasileiro como o narcotráfico e o crime organizado. No entanto os
mexicanos possuem uma taxa de homicídios totais de 20/100.000 e uma média de 15
armas de fogo por 100 pessoas.14
Na contramão encontram-se o Brasil e a Venezuela, dois dos países detentores
de legislações restritivas ao acesso a armas de fogo apresentando números colossais de
homicídios, mesmo se comparado com os países vizinhos, de quadros sociais,
econômicos e culturais semelhantes. Os brasileiros enfrentam, segundo o Atlas de
Violência de 2016, analisando o ano de 2014, em números totais, aproximadamente,
29,1 homicídios por 100.000 habitantes e a Venezuela, 56/100.000.15
11Atlas da Violência 2016, Ipea e FBSP. Pg. 30. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf Acessado em: 04/2016 12 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/brazil Acessado em: 04/2016 13]Dados disponíveis em: http://apps.who.int/gho/data/node.main.VIOLENCEHOMICIDE?lang=en.
Acessado em: 04/2016 14 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/mexico Acessado em: 04/2016 15 Observatorio Venezolano de Violencia. “ 2014 Venezuela: El segundo país con mas homicidios en el
mundo”. Disponível em: http://observatoriodeviolencia.org.ve/wp-content/uploads/2015/02/OVV-
INFORME-DEL-2014.pdf Acessado em: 04/2016
15
Dessa forma, a premissa antes levantada sobre a facilidade do acesso e a
quantidade de armas fogo instigarem os homicídios, se mostra falha ao observarmos as
estatísticas levantadas, uma vez que os 19 países com mais de 20 armas por 100.000
habitantes apresentam baixas taxas de homicídios cometidos pelos mesmos meios.
As comparações e análises de dados de diversos países serão devidamente
estudadas nos próximos capítulos.
Um segundo fator que rejeita o senso comum é o fato do homem médio não ser
responsável, na maioria dos casos, pelos homicídios ou pela criminalidade no geral.
Aqui cito homem médio como aquele que nunca teve um histórico de violência, seja
voltado para o crime, para situações familiares ou resultantes de fatores psicológicos.
“The vast majority of persons involved in life-threatening
violence have a long criminal record with many prior contacts with
the justice system”16
Um estudo publicado no jornal de Harvard mostra que nos Estados Unidos,
aproximadamente 90% dos homicidas adultos possuem uma vasta ficha criminal, já, em
média, respondendo a penas superiores a 6 anos, incluindo uma média de 4 prisões por
outros delitos.17
Estes números são corroborados por diversas outras pesquisas. O New York
Times publicou um estudo afirmando que, dos 1.662 assassinatos cometidos na cidade
de Nova Iorque ente 2003-2005, mais de 90% dos criminosos já possuíam fichas
criminais. A polícia de Baltimore afirmou que em 92% dos homicídios cometidos em
2006, o suspeito já possuía alguma passagem pela polícia.18
Nesta linha, Murray Straus, em sua obra “Domestic Violence and Homicide
Antecedents”, afirma que, no dia a dia, a maioria dos homicídios que ocorrem em
situações familiares ou domésticas são precedidos de uma longa história de agressões. O
estudo “Partener Homicide In Context” analisou casos de homicídios entre casais e
concluiu que em 95,8% dos casos estava presente a violência doméstica cotidiana.
16 DON, B. Kates; MAUSER, Gary. Would Banning Firearms Reduce Murder and Suicide? A Review of
International and Some Domestic Evidence. Estados Unidos. Havard Journal of Law & Public Policy,
Volume 30: Number 02, pg. 666. 17 Ibidem., pg. 667. 18Ibidem., pg. 668.
16
Estes dados, para além de demonstrarem que os homicidas possuem em sua
grande maioria um vasto histórico de violência, também mostram a ineficiência estatal
em neutralizar e reinserir estes delinquentes na sociedade, permitindo que os mesmos
voltem a delinquir.
Vale ressaltar que, o PL 3722/2012 e a maioria dos países que permitem a posse
ou o porte der armas de fogo exigem, além do teste prático e psicológico para a
aquisição de armas de fogo, não estar respondendo a nenhum processo criminal na
Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e a apresentação de certidões de
antecedentes criminais.
A situação brasileira, por sua vez, é extremamente complicada, na medida em
que não há dados suficientes para retirar qualquer conclusão plausível. Segundo a
Associação Brasileira de Criminalística, a taxa de elucidação dos inquéritos de
homicídio no país varia de 5% a 8%19. Para fins comparativos, o índice de solução dos
homicídios nos Estados Unidos é de 65% e do Reino Unido de 90%. Essa baixa taxa de
elucidação de inquéritos reflete uma situação alarmante considerando que, somente em
2014, foram registrados 59.627 homicídios, 10% dos homicídios no mundo ocorrem no
Brasil. Em termos relativos, esse número equivale a uma taxa de 29,1 mortes por 100
mil habitantes, uma das maiores do mundo. Em 2013, o número de homicídio foi de
57.396, com uma taxa de 28,3 por 100 mil20.
Dessa forma, a dificuldade de se estabelecer dados de confiança sobre o tema é
gritante. Em se tratando da criminalidade geral, a CPI do sistema carcerário, organizada
pela Câmara dos Deputados em 2009 apresentou um estudo na qual o Sr. Maurício
Kuehne, Diretor do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) na época, declarou
que o Brasil apresentava uma taxa de reincidência entre 70% a 85%21.
Com base nessa realidade, é impossível aferir com precisão ou certeza qualquer
dado relacionado ao quadro específico de homicídios brasileiro. Na realidade, pode-se
19 Relatório ENASP, “A Impunidade como alvo: Diagnóstico da investigação de homicídios no Brasil”,
ENASP, 2007. Pg. 43. Disponível em:
http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf Acessado em: 04/2016 20Atlas da Violência 2016, Ipea e FBSP. Pg. 39. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/storage/download/atlas_da_violencia_2016_ipea_e_fbsp.pdf Acessado
em: 04/2016 21CPI sistema carcerário. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009. Pg. 281. Disponível
em: http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701 Acessado em: 04/2016
17
perceber que o Brasil possui uma das maiores taxas de homicídios do planeta e uma das
menores taxas de armas legalizadas na mão dos cidadãos.
Ao se estudar o GLOBAL HOMICIDE BOOK-201322, publicado pela ONU,
percebe-se que os países com os níveis de homicídios mais elevados, os possuem, em
sua maioria, devido ao crime organizado, roubos, guerra de gangues, etc. Esta
constatação pode ser comprovada ao se analisar esse relatório e observar o caso da
Jamaica e Costa Rica, que possuem a taxa de homicídios relacionados ao crime
organizado maior do que os relacionados aos interpessoais. Do outro lado, países com
índice de homicídios baixos, como a Suécia e a Finlândia, possuem essa taxa de
homicídios maior do que se comparado com os relacionados aos demais atos
criminosos.
22Global Study on Homicide 2013, UNDOC. Pg. 68. Disponível em:
https://www.unodc.org/documents/gsh/pdfs/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf Acessado
em: 05/2016
18
Com efeito, os países que apresentam altas taxas, proporcionalmente, de crimes
interpessoais colhem os frutos do seu combate à criminalidade e, como exposto no
primeiro capítulo, se trata da criminalidade individual, impossível de se erradicar devido
à natureza humana. Como exemplo tem-se a Suécia com uma taxa de homicídios por
100.000 habitantes de 0,723 e a Jamaica apresentando uma taxa de 40.5924.
O “Global Study of Homicide 2011”, afirmou que em lugares aonde as armas de
fogo aumentam o número de homicídios, estes são cometidos, geralmente, pelo crime
organizado:
“(…) Firearms undoubtedly drive homicide increases in certain regions
and where they do members of organized criminal groups are often those
who pull the trigger”25
Seguindo esta lógica, o Brasil26, que apresentou em 2014 uma taxa de 29,1
homicídios por 100.000 habitantes, não teria como grande fator destes crimes o
homicídios de caráter interpessoal, mas, sim, o crime organizado, latrocínio, guerra de
fações, crimes relacionados ao tráfico, etc. Esse apontamento converge para o fato do
porquê se chega a uma taxa de elucidação dos homicídios de apenas 8%, afinal os
crimes interpessoais ou passionais apresentam uma execução simples e muitas vezes
realizada de imediato. No entanto, os homicídios derivados do crime organizado são
planejados, contando com a queima de arquivo ou destruição de provas, bem como o
suborno de autoridades – são complexos e, dessa forma, raramente se encontra o
culpado.
O Estudo Técnico 23/2015 declara que “A partir do relatório da ONU é
plausível afirmar que a grande maioria dos homicídios é cometida por criminosos
habituais, normalmente relacionado a outros crimes ou questões sócio-políticas”.
John Lott, em sua obra “Mais Armas, Menos Crimes?”, expõe que a
probabilidade de crimes interpessoais com armas de fogo é baixa27.
23Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/sweden Acessado em: 05/2016 24Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/jamaica Acessado em: 05/2016 25Global Study on Homicide 2011, UNDOC. Pg. 12. Disponível em:
https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/statistics/crime/global-study-on-homicide-2011.html
Acessado em: 05/2016 26Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/brazil Acessado em: 05/2016 27 LOTT JR, John R.; MAIS ARMAS, MENOS CRIMES? Entendendo o Crime e as Leis de Controle de
Armas de Fogo. São Paulo, MAKRON Books. 1999. Acessado em: 05/2016
19
Com base nas constatações apresentadas, tem-se que os países mais armados no
mundo apresentam baixas taxas de homicídios e que, nos países com altas taxas de
homicídios, este tipo de criminalidade decorre em larga e majoritária escala da ação de
organizações criminosas, latrocínio e tráfico.
A elucidação de 8% dos homicídios no Brasil torna impossível estabelecer
qualquer constatação quanto a natureza destes crimes. No entanto, não existe nada que
leve a diferenciar o caso brasileiro do panorama internacional.
Ressalta-se ainda, após apresentado todos os dados acima levantados que
demonstraram um desenvolvimento investigatório pífio, a presença de uma polícia
ineficiente em sua taxa de resposta. Em um teste realizado na madrugada do dia
07/05/2011, algumas ligações foram realizadas para a Polícia Militar de São Paulo e
esta demorou em média 20 minutos para apenas atender a ligação28. Em outra ocasião,
segundo a Polícia Militar do Paraná o tempo de espera para a ligação ser atendida é de 3
minutos, no entanto segundo o relato de Yang Michael ele teve que ligar mais de 10
vezes antes de ser atendido. Como se não bastasse a demora no atendimento, os
policiais demoram, em média, de 15 a 30 minutos para chegar ao local29. Ou seja, em
uma sociedade desarmada que depende inteiramente do sistema policial para sua defesa,
o cidadão estará refém da situação em que lhe for imposta pelos agressores, por, no
mínimo, 30 minutos. Tempo mais que o suficiente para qualquer tipo de atentado contra
a sua vida ou seu patrimônio.
Logo, o discurso levantado por muitos que o fácil acesso ou a maior
disponibilidade de armas de fogo aumentaria a taxa de homicídios se prova equivocado
ante os dados aqui expostos. Além disso, percebe-se que a maioria dos crimes são
cometidos por delinquentes reincidentes, aqueles que nunca teriam o direito de comprar,
legalmente, armas de fogo. Por fim, mesmo sem condições de auferir qualquer
estatística sobre os homicídios brasileiros, mas comparando este panorama com o
cenário internacional, pode-se afirmar que a maioria dos homicídios cometidos no pais
são frutos de ações das organizações criminosas, tráfico, latrocínio e não de
desentendimentos momentâneos, sejam familiares, no trânsito ou mesmo em um bar.
28Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/05/16/em-teste-feito-pelo-uol-
servico-190-da-pm-de-sao-paulo-demora-20-minutos-para-atender.htm Acessado em: 05/2016 29 Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2011/05/demora-no-atendimento-do-190-
preocupa-quem-precisa-da-policia.html Acessado em: 05/2016
20
Por fim, para não fugir do óbvio, a Segurança Pública brasileira é insuficiente e
ineficiente.
3. O DESARMAMENTO CIVIL COMO FORMA DE OPRESSÃO
“Aqueles que não conhecem a história estão
fadados a repeti-la.”
EDMUND BURKE, filósofo e político.
“O verdadeiro poder político emana do cano de
uma arma. O Partido Comunista deve comandar
todas as armas. Dessa maneira, nenhuma arma
comandará o Partido.”
MAO TSE-TUNG, líder supremo do Partido
Comunista Chinês
Neste capítulo analisaremos como as políticas de desarmamento civil foram
utilizadas para facilitar a opressão de regimes ditatoriais e controlar a população, que,
mediante a este fato, foi incapaz de se defender.
Sabe-se que as ações de desarmamento não são recentes e foram muito utilizadas
ao longo da história, seja para tornar refém o povo nacional do próprio Estado ou para
incapacitar os territórios conquistados, como no caso das colônias no imperialismo ou
mesmo na Alemanha no pós Primeira Guerra Mundial.
Movidas pela percepção de que o monopólio da força pelo Estado é utilizado
para manutenção no poder de governantes que não foram legitimados pelo povo e só
governam mediante a força, medo e a violência, as revoluções modernas como a
Revolução Americana e a Revolução Francesa combateram fortemente tais políticas.
É neste sentido que em, 15 de dezembro de 1791, foram aprovadas na
Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos as nove primeiras emendas,
sendo que a segunda justamente visa proteger o direito do povo de manter e portar
armas.
21
“Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de
uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar
armas não poderá ser infringido”
Esse direito foi descrito por Sir William Blackstone como um direito auxiliar, de
apoio aos direitos naturais de autodefesa e resistência à opressão e ao dever cívico de
agir coletivamente na defesa do Estado.30
A supressão de um direito tão fundamental como o estabelecido pela segunda
emenda foi um reflexo das políticas adotas pelas maiores ditaduras do mundo,
responsáveis por genocídios e extermínios marcantes na história.
São exemplos destes genocídios e extermínios, precedidos de políticas
desarmamentistas, somente no século XX31:
1) Genocídio Armênio: Turquia -1915 1,5 milhões de mortos
2) Stalin: União Soviética – 1921/1953 20 milhões de mortos
3) Nazismo: Alemanha – 1938/1945 25 milhões de mortos
4) Mao Tse-Tung: China – 1949/1976 45 milhões de mortos
5) Idi Amin Dada: Uganda – 1971/1979 300 mil mortos
6) Pol Pot: Camboja – 1975/1979 2 milhões de mortos
7) Hutus x Tutsis: Ruanda – 1994 800 mil mortos
8) Milosevic: Kosovo – 1997/1999 13 mil mortos
9) Sudão (Darfur) – 2003 300 mil mortos
Para retratar os genocídios cometidos pelos governos o professor de ciências
politicas da Universidade do Havaí, Rudolph Joseph Rummel, criou o termo democídio,
o assassínio de qualquer pessoa ou grupo de pessoas pelo seu próprio governo,
incluindo genocídio, politicídio e assassínio em massa. Democídio não significa
necessariamente a eliminação de grupos culturais, mas, antes, de grupos de cidadãos
30Blackstone's Commentaries on the Laws of England. Book the First - Chapter the First : Of the Absolute
Rights of Individuals. The Avalon Project.Yale Law School. 31FANTIN JÚNIOR, Fidelis Antônio. Estudo Técnico n° 23/2015 – Brasília: Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, 2015. Pg. 21.
22
que o governo sinta a necessidade de serem erradicados por razões políticas ou
culturais.32
Segundo o panorama acima apresentado, se faz necessário o estudo de casos
históricos emblemáticos para que se possa compreender como o Estado utilizou da
política de desarmamento civil como forma opressão, tornando o povo ou parcelas dele
reféns de seus mandos.
3.1 Nazismo
O caso nazista é extremamente interessante por fugir do paradigma dos demais
exemplos a serem analisados.
Em 1918, após a rendição alemã e o fim da primeira guerra mundial, o país
germano passou por uma crise sem precedentes. A crise econômica foi fruto das pesadas
indenizações a que foi forçado a pagar, bem como de uma hiperinflação nunca antes
vivenciada pelo povo. A crise social foi gerada pela vergonha da derrota na guerra e
pelas imposições do Tratado de Versalhes, apesar da Alemanha não ter sido invadida ela
foi obrigada a conviver com soldados estrangeiros e uma restrita força militar.
Este foi o cenário perfeito para o nascimento de movimentos extremistas, onde
começavam a surgir militantes comunistas, anarquistas e nazistas. Esse caldeirão de
ideologias que visavam por fim a democracia liberal vigente até então, forçou o governo
a aprovar a primeira lei nacional para o controle de armas de fogo em 1919, ordenando
a entrega de todas as armas ao governo bem como proibindo o seu porte e a sua posse.
Em 1928, com a vitória de uma coalisão socialdemocrata e conservadora, a lei
vigente até então foi revista, permitindo a aquisição de armas de fogo mediante uma
permissão do governo e um registro nas lojas de armas, bem como possuir comprovada
reputação ilibada.
Com o agravamento dos confrontos entre os partidos comunista e nazista, que
começou a gerar um número crescente de mortos, o governo resolveu retroceder com a
liberdade adquiria em 1928 e, em 1931, endureceu a lei proibindo o porte de armas de
fogo, bem como das armas brancas. Semelhante ao caso brasileiro, a compra das armas
32Ibidem., Pg. 21.
23
de fogo para a posse ficou restrita a um critério subjetivo: a comprovação de real
necessidade.33
Diante da nomeação de Hitler a chanceler e, posteriormente, eleito presidente da
Alemanha, o partido nazista ascendeu ao poder. No início, ainda cercado por pessoas
contrárias ao seu governo, como os militantes comunistas e os sociais-democratas, a lei
restritiva de 1931 se mostrou perfeita para o panorama na qual se encontrava. Não
tardou para começar a perseguição aos opositores, taxados como subversivos. Iniciou-se
então a repressão estatal, invadindo e revistando as casas destes cidadãos, confiscando
as armas encontradas e prendendo os que não possuíam a permissão de porta-las.
Em 1938, com a política de partido único e após contar com o apoio de vasta
maioria da população alemã devido ao milagre econômico e social por ele
proporcionado, Hitler flexibiliza a restrição de armas de fogo com a “Lei Nazista sobre
Armas”. Por esta lei, para a compra de revolveres e pistolas necessitava-se de uma
permissão. 34
No entanto, essa nova política se aplicava somente aos alemães “puros”. Em
novembro de 1938, o infame ditador aprovou a “Regulação Contra a Posse de Armas
por Judeus”. Essa nova lei proibia a posse e a parte de armas por judeus, punindo os
infratores com o confisco das armas, prisão e até o envio aos campos de concentração.
Paralela a esta medida ocorreu a “Noite dos Cristais”, ataque deliberado e
massivo contra os judeus na Alemanha, bem como seus bens e sinagogas, deixando 90
mortos e mais de 30 mil presos enviados aos campos de trabalho forçado.
Segundo relata a manchete do New York Times de 09 de Novembro de 1938:
"O Presidente da Polícia de Berlim, Conde Wolf Heinrich von
Helldorf, anunciou que como resultado de uma atividade policial nas
últimas semanas toda a população judia de Berlim havia sido
'desarmada' com o confisco de 2,569 armas curtas, 1,702 armas de
fogo e 20,000 cartuchos de munição. Quaisquer judeus ainda achados
33 GIACONI, Luiz. Breve história do desarmamento, parte 5: controle de armas na Alemanha Nazista.
2014. Disponível em: http://www.defesa.org/breve-historia-do-desarmamento-parte-5-controle-de-armas-
na-alemanha-nazista/ Acessado em: 05/2016 34 O HALBROOK, Stephen P. Repressão nazista aos donos e armas. Disponível em:
http://www.mvb.org.br/campanhas/desarmamentonazista.php Acessado em: 05/2016
24
de posse de armas sem licenças válidas são ameaçados com a mais
severa punição."35
Tal ação só foi possível devido aos registros de armas em 1928, que possibilitou
identificar os judeus que as possuíam e facilitou o trabalho da SS, que confiscou as
armas e prenderam os judeus.
Observa-se que a primeira medida adotada para a total submissão do povo judeu
à vontade do governo alemão foi o seu registro e desarmamento, impossibilitando
qualquer chance de defesa contra os atos criminosos de seu Estado.
Estas medidas não foram implementadas apenas aos judeus. Quando começou a
sua campanha expansionista pela Europa, o exército alemão adotou as mesmas regras
para os povos dominados. Dessa forma, franceses, belgas, holandeses, tchecos,
noruegueses, dinamarqueses, gregos, iugoslavos e poloneses tiveram suas armas e seu
direito ao porte confiscados, sujeitos à pena de morte, ao contrário do alemão comum.
Tradução:
“Regulamentos sobre a Posse de Armas na Zona Ocupada
1. Todas as armas de fogo e munições, granadas de mão, produtos
explosivos e outros materiais de guerra devem ser rendidos.
A entrega deve acontecer dentro de 24 horas no quartel
administrativo militar alemão mais próximo ou guarnição, se outro
esquema especial não tiver sido planejado. Os prefeitos (chefes dos
35 The New York Times, Nov. 9, 1938, pg. 24. Disponível em:
http://graphics8.nytimes.com/packages/pdf/topics/germany_timeline/11-11-1938.pdf Acessado em:
05/2016
25
conselhos distritais) devem aceitar plena responsabilidade pela
implementação completa. Oficiais comandantes estão autorizados a
aprovar exceções.36”
Nessa mesma linha, uma reportagem do New York Times de julho de 1940
declarava:
"Ordens militares agora proíbem o francês de fazer coisas que o povo
alemão não é permitido de fazer desde que Hitler veio ao poder.
Possuir emissores de rádio ou escutar transmissões estrangeiras,
organizar reuniões públicas e distribuir panfletos, disseminar notícias
anti-alemães em qualquer forma, manter posse de armas de fogo
todas estas coisas estão proibidas para o povo dominado da
França."37
As medidas adotas pela Alemanha nazista surtiram efeito também na América
do Norte. Em 1941, quando o procurador geral americano Robert Jackson solicitou ao
Congresso uma lei para impor o registro nacional de todas as armas de fogo, ele foi
severamente criticado e sua proposta não prosseguiu.
O representante republicano Edwin Arthur Hall afirmou:
“Antes do advento de Hitler ou Stalin, que tomaram o poder do povo
alemão e russo, medidas foram empurradas sobre as legislaturas
desses países livres para privar povo da posse e uso de armas de fogo,
de modo que eles não puderam resistir às transgressões de tais
diabólicas e cáusticas organizações estatais de polícia como a
Gestapo, o OGPU, e a Cheka."38
Nesta linha, o congressista John W. Patman explicou: "O povo tem um direito de
manter armas; portanto, se nós devêssemos ter algum presidente que tentasse se
36Die Deutsche Wochenschau, No. 506, 15 May 1940, UfA, Ton-Woche 37 The New York Times, July 2, 1940, pg. 20. 3887 Congressional Record, 77th Cong., 1st Sess., 6778 (Aug. 5, 1941)
26
estabelecer como ditador ou rei, o povo poderia se organizar junto e, com as armas e
munições que possui, adequadamente poderia se proteger."39
Sabe-se o fim que o nazismo levou, mas a história de subjugação dos judeus,
ciganos, testemunhas de jeová e a comunidade LGBT’s não começou nos campos de
concentração e extermínio, mas com a restrição de seus direitos, mais especificamente,
com a supressão de qualquer possibilidade de defesa.
3.2 União Soviética
Em 1917, iniciou a Revolução Russa e com ela o regime autocrático czarista
teve o seu fim. Assumiu, então, o poder o Partido Bolchevique, comandado por
Vladimir Lênin.
Logo em 1918, a primeira lei de controle de armas foi imposta, obrigando todos
os proprietários a registrarem suas armas. Nesse mesmo ano, um atentado contra o líder
comunista fez com que o Conselho Popular do Comissariado, uma espécie de congresso
dos comunistas, ordenasse que todas as armas de fogo, bem como as espadas em poder
da população, fossem entregues ao governo sujeito a uma pena de seis messes de prisão
e trabalhos forçados.
A luta dos Bolcheviques não era apenas contra as classes sociais ou grupos
políticos, mas foi direcionada também a um grupo étinco-nacional específico, os
cossacos. Em 1919, foi enviado um telegrama secreto do centro de comando do partido
para os postos de combate afirmando:
“luta mais implacável contra a elite cossaca, por meio do extermínio
indiscriminado," "[s]em acordos, meio caminho inaceitável" e
ordenando a "executar terror em massa contra os cossacos ricos,
exterminando todos eles; executar sem piedade terror em massa
contra todo e qualquer cossaco que participe direta ou indiretamente
na luta contra o poder soviético" e a "promover um completo
desarmamento, fuzilando qualquer um que for encontrado armado
39 87 Congressional Record, 77th Cong., 1st Sess., 7102 (Aug. 13, 1941)
27
após o prazo para a entrega das armas."40 (Grifo meu).
Sabe-se que a política desarmamentista serve para manter o povo sob controle,
enfraquecer os opositores e facilitar o extermínio de parcelas indesejáveis da população.
Portanto, seguindo este propósito, a nova lei foi imposta à população, mas permitia que
os membros do partido comunista pudessem carregar suas próprias armas.
Com a vitória do partido comunista na guerra civil de 1922, a lei do banimento
de armas foi consolidada e largamente implementada. Em 1934, com uma série de
assassinatos públicos, a maioridade penal foi reduzida para 12 anos e até as facas foram
incluídas na lista de armas banidas.41
É inegável que as amplas restrições sobre armas facilitaram, e muito, as
campanhas de perseguição, coletivizações forçadas de fazendas e propriedades rurais,
expurgos de classes e grupos étnicos e extermínio de toda e qualquer dissidência,
inclusive dentro do Partido Comunista. Estima-se que mais de vinte milhões de pessoas
morreram entre 1922 e 1939, em decorrência da fome, tortura, trabalhos forçados nos
gulags e execuções sumárias.
3.3 China
A China não fugiu da tendência das ditaduras comunista e implementou uma
forte política desarmamentista para garantir o poder nacional na mão de um partido
único.
Em verdade, a primeira medida de restrição à aquisição de armas de fogo na
China foi tomada no final do Século XIX, pela dinastia Qing, proibindo armas longas
como rifles e canhões na tentativa de controlar os movimentos sociais que ansiavam
pelo fim do império, bem como as revoluções camponesas.
Com a queda do imperador Qing em 1911, instaurou-se a República da China e
o Kuomitang, partido político dominante influenciado por tendências nacionalistas.
No entanto, devido à larga territorialidade e o difícil acesso à diversas regiões,
muitas províncias chinesas ficaram sobre o controle de “senhores da guerra”, o que
40Izvestiya TsK KPSS, n. 6, 1989. p. 178. Disponível em http://www.alexanderyakovlev.org/fond/issues-
doc/1012637 Acessado em: 05/2016 41GIANCONI, Luiz. Breve história do desarmamento. Parte 2: Controle de armas no mundo comunista –
A União Soviética. 2014. Disponível em: http://www.defesa.org/breve-historia-do-desarmamento-parte-2-
controle-de-armas-no-mundo-comunista-a-uniao-sovietica/ Acessado em: 05/2016
28
levou o governo central a adotar diversas medidas para impedir e proibir a importação e
a posse de qualquer armamento sem o seu consentimento.
Em 1927, com a China cada vez mais fragmentada, eclodiu a guerra civil entre
comunistas e nacionalistas.
No entanto, em 1936, após nove anos de duros confrontos, com a deflagração da
política expansionista japonesa, os chineses viram-se obrigados a estabelecerem uma
trégua na guerra civil para que a ameaça nipônica pudesse ser contida.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, a guerra civil recomeça e as
batalhas entre os nacionalistas e os comunistas se tornam cada vez mais violentas e
frequentes, já com a União Soviética fornecendo armamentos e suprimentos ao exército
de Mao Tse-Tung. Após três anos de seu recomeço, a guerra civil teve fim com a vitória
comunista.
Após adotar uma política de armar massivamente os camponeses e operários
chineses para lutarem na guerra civil, Mao Tse-Tung adotou e ampliou as antigas leis de
restrição à posse e ao porte de armas de fogo, e iniciou campanhas para poder desarmá-
los.
Em 1951 e 1957, novas leis foram aprovadas, incluindo armas brancas na lista
de restrição, e aumentando a pena para os infratores. Estas leis serviram para tornar o
povo refém, enquanto em 1958, o partido comunista chinês implementava o “Grande
Salto para Frente”, umas das maiores catástrofes econômicas da história, organizada e
implementada por um Estado. O plano econômico megalomaníaco residia na
socialização total das propriedades rurais, seguida de uma rápida e forçada
industrialização. Estima-se que mais de 45 milhões de pessoas morreram, fuzilados,
exauridos por trabalhos forçados e pela fome criada em meio a este caos econômico.42
3.4 Cuba
Em 1959 o Movimento 26 de julho, liderado pelo revolucionário Fidel Castro
destitui o então ditador e governador da ilha de Cuba, Fulgêncio Batista.
42 GIANCONI, Luiz. Breve história do desarmamento. Parte 4: Controle de armas no mundo comunista
– China. 2014. Disponível em: http://www.defesa.org/breve-historia-do-desarmamento-parte-4-controle-
de-armas-no-mundo-comunista-china/ Acessado em: 05/2016
29
Com o plano de nacionalização industrial e socialização das propriedades rurais,
bem como para evitar qualquer reação e levante da popular contra suas medidas, Fidel
deu início à sua política desarmamentista apenas 02 dias depois de assumir o poder.43
Iniciou-se então uma busca por armas de fogo, facilitada pelos registros que existiam no
governo de Fulgêncio. Os cidadãos tiveram suas armas apreendidas e os antigos
guerrilheiros que então retornavam às suas províncias tiveram que entregar todo e
qualquer armamento que possuíssem.
Gloria Álvarez, cientista política, descendente de cubanos, afirmou em uma
entrevista no programa Roda Viva, no dia 05 de novembro de 201544 que o sucesso da
Revolução Cubana, se comparado com as diversas tentativas de se instaurar o regime
comunista em países latino americanos, se deu por três grandes fatores. Primeiro, pelo
fator geográfico de ser uma ilha, o que permite um isolamento das demais regiões.
Segundo pela forma que se comportou os Estados Unidos, optando por não intervir
militarmente em Cuba e, por fim, pelas políticas desarmamentistas implementadas por
Fidel Castro.
Nos meses seguintes, as perseguições e os fuzilamentos se multiplicaram, a
censura a imprensa foi instituída e Cuba nunca mais teve uma eleição livre.
“Para mandar homens para o pelotão de fuzilamento, não é
necessário nenhuma prova judicial… Estes procedimentos são um
detalhe arcaico burguês. Esta é uma revolução!”
“Um revolucionário deve se tornar uma fria máquina de matar
motivado pelo puro ódio. Nós temos que criar a pedagogia do
paredão!”
“Se qualquer pessoa tem qualquer coisa boa para dizer sobre o
governo anterior, para mim é bom o suficiente matá-la.”
43 GIANCONI, Luiz. Breve história do desarmamento. Parte 3: Controle de armas no mundo comunista
– O leste europeu e Cuba. 2014. Disponível em: http://www.defesa.org/breve-historia-do-desarmamento-
parte-3-controle-de-armas-no-mundo-comunista-o-leste-europeu-e-cuba/ Acessado em: 05/2016 44 Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8EswUD6JSzk Acessado em: 05/2016
30
“O que nós afirmamos é que devemos proceder ao longo do
caminho da libertação, mesmo que isso custe milhões de vítimas
atômicas”
As frases acima, retiradas do livro “O verdadeiro Che Guevara e os idiotas úteis
que o idolatra”45 , foram traduções ipsis litteris do diário de Che Guevara, escrito
enquanto combatia na revolução cubana entre 1956 e 1959.
Estima-se que o governo comunista cubano tenha matado aproximadamente 40
mil pessoas e mais de 100 mil morreram tentando escapar de seu regime em direção a
Flórida.
4. ESTUDO E COMPARAÇÕES DE CASOS INTERNACIONAIS
Apesar das peculiaridades existentes em cada país, principalmente culturais,
deve-se analisar os casos internacionais para se obter um panorama melhor sobre as
políticas desarmamentistas e a sua interferência na criminalidade.
A divisão do capítulo foi realizada por continentes para permitir uma análise
mais ampla, no entanto dar-se-á mais foco aos países mais emblemáticos como, os
Estados Unidos, Japão e Inglaterra, na tentativa de se explorar estes casos que são
referências paradigmáticas no assunto.
4.1. América do Norte
“Eu prefiro uma liberdade belicosa a uma escravidão
pacifica”
THOMAS JEFFEROSN
A América do Norte, apesar de ser composta por apenas 3 países, é o continente
que possui a maior taxa de armas de fogo por habitantes e o maior número absoluto de
armas nas mãos de civis.
45 FONTOVA, Humberto. O verdadeiro Che Guevara e os idiotas úteis que o idolatram. É Realizações.
2009
31
De início, vale analisar o país com maiores semelhanças com o Brasil, bem
como o menor IDH do continente norte-americano, o México.
A república mexicana possui uma taxa de posse de armas de fogo de 13.5 por
100 habitantes e uma taxa de homicídios utilizando armas de fogo de 6.34/100.00046.
A luta contra o narcotráfico é constante no pais e os ataques de cartéis às
comunidades e cidades são frequentes, reflexo da ineficiência governamental em conter
e combater o crime organizado. No entanto, um exemplo de resistência bem-sucedida se
espalhou pelo país e se mostrou como um modelo a ser seguido pelas comunidades
constantemente saqueadas pelos narcotraficantes.
O município de Pareo, localizado perto de Tancítaro, cansado de se ver atacado
pelos Cavaleiros Templários, um cartel formado pelo grupo La Familia, bem como de
esperar uma efetiva resposta dos governos federal e estadual, resolveu armar os seus
cidadãos com rifles, granadas e pistolas, criando a polícia comunitária de Pareo. Nos
meses que seguiram à implementação desta política, fortes embates aconteceram entre
os policias comunitários e o crime organizado, o que resultou no fim dos violentos
ataques à comunidade. A notoriedade da medida fez com o que o governo federal
mexicano enviasse um destacamento do exército para desarmar os policias
comunitários, tentativa que foi fortemente reprimida pelas mulheres locais, que os
expulsaram sob gritos e vaias.
Segundo José Manoel Meireles:
“Nós estamos fazendo o que as instituições governamentais não
fizeram durante mais de 12 anos, se estas estivessem fazendo o seu
dever, nós não teríamos razão de existir... esta atuação é
temporária”. “Esperamos que o governo federal, o Exército e o
próprio Estado de Michoacán de Ocampo comecem a trabalhar para
fazer o que obriga a Constituição, ou seja, fornecer segurança a toda
a nação. Isso é o que nós estamos fazendo, somente nos armamos
para restabelecer o Estado de Direito”47.
46 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/mexico Acessado em: 06/2016 47 MASTROGIOVANNI, Frederico. “Terra sem lei, município mexicano pega em armas para expulsar
‘Cavaleiros Templários’” Pareo, Michoacán (México). Operamundi. Disponível em:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/33176/terra+sem+lei+municipio+mexicano+pega+e
m+armas+para+expulsar+cavaleiros+templarios.shtml Acessado em: 06/2016
32
O direito à posse de armas de fogo é garantido pela constituição, o artigo 10 da
Carta mexicana que prevê que todo cidadão possui direito de possuir armas em seu
domicílio, para sua segurança e legítima defesa, com exceção das proibidas por lei
federal e das reservadas exclusivamente para uso das forças do Exército, Marinha, Força
Aérea e Guarda Nacional. Somente uma lei federal poderá determinar os casos,
condições, requisitos e lugares em que se poderá autorizar os habitantes a portar armas.
O direito ao porte velado também é permitido após cumprir uma série de requisitos
estabelecidos por lei federal.
“Artículo 10. Los habitantes de los Estados Unidos Mexicanos
tienen derecho a poseer armas en su domicilio, para su seguridad y
legítima defensa, con excepción de las prohibidas por la Ley Federal
y de las reservadas para el uso exclusivo del Ejército, Armada,
Fuerza Aérea y Guardia Nacional. La ley federal determinará los
casos, condiciones, requisitos y lugares en que se podrá autorizar a
los habitantes la portación de armas.”48 (Grifo nosso)
O termo porte velado, é uma tradução do inglês concealed carry, que traduz a
situação do porte de armas em público desde que ela não esteja a mostra, ou seja,
quando ela está escondida dentro de uma bolsa ou por debaixo da camisa.
Recentemente, após novas tentativas do presidente americano Barrack Obama de
restringir o porte e a posse de armas, o estado do Texas aprovou o chamado Open
Carry, permitindo que as armas possam ser exibidas, como uma forma de desafiar o
chefe do executivo e reafirmar a política deste estado quanto ao assunto.
Mais ao norte, o Canadá também não foge do panorama geral da América do
Norte e possui uma das mais altas taxas de posse de armas de fogo do mundo, chegando
a 30.8 por 100 habitantes. Os homicídios cometidos pelo mesmo instrumento chega
48 Disponível em: http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/htm/1.htm Acessado em: 06/2016
33
surpreendentemente na casa do 0.38/100.000. Logo, é um dos países mais armados do
mundo com uma das menores taxas de homicídios por armas de fogo.
Apesar deste quadro, a política de aquisição das armas de fogo é bem restrita,
demandando uma série de licenças, bem como uma entrevista com um parente ou
cônjuge. O porte velado é permitido, mas restrito a uma permissão que raramente é
concedida
No entanto, o Canada possui uma grande tradição no tocante a caça, tanto
esportiva como para sobrevivência. Em decorrência dessa cultura é possível averiguar
que aproximadamente 1 em cada 5 casas no Canada possui arma de fogo.49
Por fim, neste tópico, iremos analisar o caso americano.
Mais do que uma questão de segurança pública, o direito ao porte de armas nos
Estados Unidos possuiu uma base principiológica muito forte. Ao fim da guerra de
independência, os americanos perceberam que o monopólio e o controle das armas de
fogo era a porta de entrada para o despotismo e, após lutar oito anos contra um governo
tirano e autoritário, não queriam ver a liberdade e a democracia, adquiridas com a perda
de muitas vidas, subjugadas por mais um governo tirano, seja ele advindo de uma
ameaça externa ou interna.
Dessa forma, em 15 de dezembro de 1791 foi aprovado a Carta dos Direitos dos
Estados Unidos e, com ela, a segunda emenda, garantindo o direito ao povo americano
de possuir e usar armas.
“Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de
uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas
não poderá ser infringido”.
No entanto, com o advento da modernindade e do conhecido discurso que a
maior quantidade de armas, bem como sua fácil aquisição, facilitaria e instigaria o
cometimento de crimes, sobretudo os homicídios, fizeram com que a segunda emenda
fosse muito debatida e, consequentemente, muitos estados americanos começaram a
49 Disponível em : http://www.gunpolicy.org/firearms/region/canada Acessado em: 11/2016
34
proibir o porte e a posse de armas para os seus cidadãos, afirmando que a Segunda
Emenda resguardava o referido direito apenas para as milícias e não para os civis.
No entanto, a Suprema Corte americana proferiu uma decisão histórica e
paradigmática no caso Distrito de Columbia versus Heller, em 2008, pacificando o
entendimento que a Segunda Emenda protege o direito individual de possuir e portar
armas de fogo e, ao mesmo tempo, declarou inconstitucional a lei do Distrito de
Columbia que impedia a posse de armas aos seus residentes.
Desta forma, a Carta americana libera o direito de posse e porte de armas, mas,
seguindo um ideal libertário, o poder estatal de legislar em seu território, neste país, é
muito forte. Logo, estabeleceu-se que cabe ao governo estadual regular a posse e o porte
de armas de fogo, não permitindo a sua proibição absoluta.
Neste quadro, presencia-se atualmente nos Estados Unidos um cenário de
estados com altas restrições ao porte, e outros entes com um nível de restrição muito
baixo.
Segundo o NRA (National Rifle Association), dos 50 estados americanos,
somente Califórnia, Nova Iorque, Nova Jersey, Havaí, Illinois e o Distrito de Columbia,
Maryland, Massachusetts, Delaware e Rhode Island possuem leis consideradas
restritivas quanto à posse e ao porte de armas de fogo50.
Ao buscar uma análise mais geral dos números do país, serão utilizados como
base os dados do UCR, Uniform Crime Reporting Statistics, disponibilizados
anualmente pelo FBI. Ao contrário de muitos estudos tendenciosos, os dados
apresentados somente analisam crimes, não incluindo suicídios. Logo, busca-se uma
análise, de fato, criminológica.
Segundo, os relatórios anuais exibidos pelo FBI, em 2013 os Estados Unidos
bateram um recorde, apresentando o menor índice de crimes violentos e crimes contra a
propriedade em 20 anos51.
50 Dados disponíveis em: https://www.nraila.org/gun-laws/ acessado em: 11/2016 51 Dados disponíveis em: https://www.fbi.gov/news/stories/2014/november/crime-statistics-for-2013-
released/crime-statistics-for-2013-released
35
Em compensação, os números das vendas de armas de fogo batem recordes
todos os anos. Atualmente, existem mais armas de fogo do que pessoas, chegando a
uma média de 101.05 armas por 100 pessoas. De 2007 até 2015, o número de norte-
americanos com licença para portar armas de fogo cresceu 178%.
“By … 2009, the estimated total number of firearms available to
civilians in the United States had increased to approximately 310
million: 114 million handguns, 110 million rifles, and 86 million
shotguns. Per capita, the civilian gun stock has roughly doubled since
1968, from one gun per every two persons to one gun per person…”52
52 Krouse, William J. 2012 ‘How Many Guns Are in the United States? - Number.’ Gun Control
Legislation, Pg. 8-9. Washington, DC: United States Congressional Research Service. 14 November.
36
Seguindo essa tendência de redução dos crimes violentos, em 2014 chegou-se a
uma taxa de 3,14 homicídios cometidos por armas de fogo para cada 100,000
habitantes, a menor taxa em 16 anos53.
. Adultos com porte de arma vs. Taxa de homicídios – nos Estados Unidos.
Fonte: Crime Prevention Research Center (Concealed Carry Permit Holders Across the United States) e
http://spotniks.com/apos-crescimento-de-178-de-porte-de-armas-criminalidade-despenca-nos-estados-
unidos/
Na análise por estados, se compararmos aqueles que permitem o cidadão portar
uma arma sem qualquer tipo de permissão ou registro, o que seria uma política
totalmente permissiva, com os estados que estabelecem um caráter subjetivo, de
necessidade, e se utilizam deste instrumento para negar a emissão de permissão, tem-
se54:
. estados com políticas totalmente permissivas.
53 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/united-states Acessado em: 06/2016 54 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/compare/308/number_of_gun_homicides
Acessado em: 06/2016
37
. estados com políticas restritivas
Nota-se que alguns estados possuem uma taxa estabelecida em 0, isso se
verifica, pois, aqueles entes federados que possuem um número total homicídio por
armas de fogo menor que 10 por ano e, portanto, foram classificados como irrelevantes
e instáveis.
Ao observar este panorama, percebe-se que, no geral, aqueles estados que
adotam medidas permissivas quanto ao porte de armas de fogo apresentam taxas de
homicídios bem menores do que os estados com leis restritivas.
38
Não apenas quanto aos homicídios, o nível do controle de armas de fogo
influencia também nos crimes patrimoniais. Apenas pelo fato dos Estados Unidos terem
o maior número de armas de fogo no mundo, os assaltantes passam mais tempo à
procura de casas vazias para roubarem do que em outros países. Dessa forma, em geral,
países com altas taxas de propriedade de armas de fogo experimentam uma quantidade
expressivamente menor de assaltos residenciais quando os moradores estão em casa55.
Os Professores James Wright e Peter Rossi, da Universidade de Massachusetts,
ao conduzirem uma pesquisa para o Departamento de Justiça americano, descobriram
que 74% dos condenados por crimes violentos concordam que o maior medo de invadir
uma residência no período noturno é de levar um tiro de seus habitantes - não da polícia,
mas, sim, da resposta armada dos próprios moradores. A mesma pesquisa mostrou que
81% dos detentos concordam que um “bandido esperto” vai tentar, ao máximo,
descobrir se a vítima esta armada ou não antes de praticar o ato criminoso 56.
Um outro estudo, com foco maior em invasão de domicílio, chegou à mesma
conclusão apresentada por Wright e Rossi. Em uma entrevista realizada para compor
este estudo, o detento alegou:
“Ei, você não atiraria em alguém que você não conhecesse e que
tentasse invadir a sua casa? Você ouve o barulho e eles estão
arrombando a janela, tentando entrar na sua casa, eles vão querer te
matar de qualquer jeito. Sabe, quando é a policia, eles dizem, ‘saia
com as mãos para o alto e não faça nada idiota!” Tudo bem, você fica
vivo, mas vai pra cadeia. Mas fica vivo. Você invade a casa de
alguém, e eles esperam você entrar e depois atirar.. Vê o que eu estou
dizendo? Você não pode explicar nada para ninguém; fica lá deitado,
morto”.57
Uma pesquisa realizada pela Pew Research Center, U.S Politics & Policy, nos
Estados Unidos, constatou que a principal razão que os americanos sustentam para 55 JUNIOR, John Lott. Preconceito contra as armas. Campinas: Vide Editorial, 2015. Pg. 20 56WRIGHT, James; ROSSI, Peter. “Gun control Research-Wright and Rossi Department of Justice
Study: Deterrent effect of armed citizens upon criminal behavior”. Disponível em:
http://www.leg.state.co.us/clics/clics2012a/commsumm.nsf/b4a3962433b52fa787256e5f00670a71/10498
c3a3264be7887257998006fe0d7/$FILE/HseJud0202AttachN.pdf Acessado em: 06/2016 57 Richard T. Wright e Scott H. Decker, Burglars on the Job: Streetlife and Residential Break-ins,
(Boston: Northeastern University Press, 1994). Pg. 112-113.
39
possuir uma arma de fogo é a segurança, fato que não se observava 17 anos atrás,
quando a maior porcentagem se referia à prática de caça. Percebe-se então uma inversão
dos motivos que atualmente levam os norte americanos a comprarem uma arma.
“A national survey finds that nearly half of gun owners (48%)
volunteer that the main reason they own a gun is for protection; just
32% say they have a gun primarily for hunting and even fewer cite
other reasons, such as target shooting. In 1999, 49% said they owned
a gun mostly for hunting, while just 26% cited protection as the
biggest factor.”58
A mesma pesquisa constatou que aproximadamente 60% dos americanos
acreditam que aprovar leis mais restritivas para controle de armas irá dificultar a
proteção de suas casas e famílias.
Em verdade, o aumento da porcentagem de pessoas alegando a necessidade das
armas de fogo para proteção, bem como a preocupação com a aprovação de leis
restritivas, é justificada. Conforme um estudo publicado na Havard Journal of Law &
Public Policy, recentes análises revelam que as armas são mais utilizadas pelas vítimas
para escapar ou evitar uma situação de agressão do que para o cometimento de crimes.
58 Why Own a Gun? Protection Is Now Top Reason, Perspectives of Gun Owners, Non-Owners.
PewResearchCenter, U.S. Politics & Policy, pg. 01.
40
Nesta linha, o Instituto Nacional de Justiça dos Estados Unidos já concluiu que a grande
parcela dos criminosos já desistiu de prosseguir com algum crime pelo medo da vítima
estar armada. A mesma pesquisa demonstrou que os presos que mostraram maior receio
em confrontar suas vítimas foram aqueles provenientes de estados com leis permissivas
e, reciprocamente, os índices de roubos e crimes contra o patrimônio é maior nos
estados que possuem as leis mais restritivas.
“Recent analysis reveals ‘a great deal of self‐ defensive use of
firearms” in the United States, “in fact, more defensive gun uses [by
victims] than crimes committed with firearms.’ It is little wonder that
the National Institute of Justice surveys among prison inmates find
that large percentages report that their fear that a victim might be
armed deterred them from confrontation crimes. “[T]he felons most
frightened ‘about confronting an armed victim’ were those from states
with the greatest relative number of privately owned firearms.”
Conversely, robbery is highest in states that most restrict gun
ownership.”59
John Lott Jr, em sua obra “Preconceito Contra Armas de Fogo”, também
corrobora com o afirmado acima, alegando:
“ O estudo empírico mais abrangente feito sobre as leis de porte
oculto descobriu que elas reduzem as taxas de assassinatos em cerca
de 1,5% a cada ano adicional em que a lei permanece em vigência,
com declínios similares em outros crimes violentos. E, contrário à
concepção popular errônea, pessoas com licença para porte oculto
nãos e envolvem em praticamente nenhum tipo de crime, muito menos
o de assassinato.” 60
Curiosamente, a maior preocupação daqueles que não possuem qualquer arma de
fogo não recai no argumento clichê de mais armas, mais crimes. Apenas 16% se
preocuparam com as armas caírem em mão de outros, o maior receio da população e de
59 DON, B. Kates; MAUSER, Gary. Would Banning Firearms Reduce Murder and Suicide? A Review of
International and Some Domestic Evidence. Estados Unidos. Havard Journal of Law & Public Policy,
Volume 30: Number 02, pg. 671. 60JUNIOR, John Lott. Preconceito contra as armas. Campinas: Vide Editorial, 2015. Pg. 128.
41
uma possível facilidade em acidentes, principalmente envolvendo crianças.61
Por fim, na busca de uma análise completa sobre o tema e a atual situação
americana, não se pode deixar de analisar os tiroteios em massa (mass shootinhg), fato
muito reproduzido pela mídia e utilizado como uma política de medo para forçar a
população e o Congresso a tomarem medidas contra o direito de possuir armas de fogo
Quanto a esse tópico, de início, vale estabelecer as premissas dos dados que
serão levantados na tentativa de atingir a máxima transparência.
Uma pesquisa realizada pela universidade de Stanford nos Estados Unidos,
definiu o tiroteio em massa como uma ocasião em que se têm três ou mais vítimas
baleadas (fatalmente ou não). Ademais o fato não pode ter qualquer relação com crime
organizado, drogas ou gangues. Importante esta distinção, pois muitos dos dados
apresentados pela mídia incluem tiroteios frutos de confrontos entre os citados e a
61Why Own a Gun? Protection Is Now Top Reason, Perspectives of Gun Owners, Non-Owners.
PewResearchCenter, U.S. Politics & Policy, pg. 03.
42
polícia, ou entre os mesmos, elevando as taxas de mass shootings exponencialmente, na
tentativa de aterrorizar a população.62
O referido estudo apurou 153 incidentes desde 2002, o que gera,
aproximadamente, uma média de 10,9 atentados por ano.
Com base nesta análise, a Heritage Foundation’s Center for Data Analysis
estudou os casos e providenciou algumas estatísticas interessantes.63
Em 54 dos 153 incidentes (35%), o atirador praticou o ato sem nenhuma relação
de parentesco ou inimizade com as vítimas. Simplesmente pegou a arma e cometeu o
fato.
Destes 54 casos, 37 deles (69%) o atirador escolheu lugares onde as armas eram
proibidas (gun free zones), contra 17 vezes (31%) onde os tiroteios ocorreram em locais
em que as armas eram legalmente permitidas. Destes 17 tiroteios que ocorreram em
locais onde os cidadãos podem carregar armas de fogo legalmente, em 5 vezes (29%) o
atentado cessou ou foi retardado pela ação de pessoas armadas.
62 Stanford Mass Shootings in America, courtesy of the Stanford Geospatial Center and Stanford
Libraries. Disponível em: https://library.stanford.edu/projects/mass-shootings-america. Acessado em:
06/2016 63TYRRELL, Patrick. “Mass Shooters Prefer Gun-Free Zones”. Disponível em:
http://dailysignal.com/2016/02/10/mass-shooters-prefer-gun-free-zones/ Acessado em: 06/2016
43
Dessa forma, desde 2002, foram 54 casos, média de 3.8 por ano, nos quais o
atirador começou o tiroteio com a intenção de assassinar o máximo de pessoas possível
de forma aleatória. Nas regiões com a política permissiva do porte de armas as chances
de parar ou retardar o ato foram de 29%, enquanto nas zonas restritas a probabilidade
foi de 5%.
Recentemente, aconteceu o maior “mass shooting” da história americana quando
Omar Mateen entrou em uma boate LGBT em Orlando e matou 50 pessoas. Antes de
cometer o ato, o homicida ligou para polícia e jurou lealdade ao Estado Islâmico que,
horas após o atentado, assumiu a autoria do ataque.64
O surpreendente foi observar a reação da mídia tratando esse episódio como um
tiroteio em massa, quando, em verdade, foi um atentado terrorista expressamente
declarado. Certamente o ocorrido irá entrar para as estatísticas de “mass shootings” a
serem exibidas e terrorizadas pelos adeptos do controle de armas. No entanto, após o
ataque, a compra de armas de fogo por membros da comunidade LGBT bateu recordes e 64 Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/12/internacional/1465757788_103808.html
Acessado em: 07/2016
44
continua crescendo65. Esta constatação pode ser espantosa para a muitos, contudo, após
o maior ataque terrorista da história, o 11 de setembro, a venda de armas de fogo no
Estados Unidos aumentou exponencialmente, com pelo menos 130.000 pedidos de
concessão para permissão do porte velado a mais do que no mesmo período de 6 messes
do ano anterior.66 Este comportamento, de comprar armas de fogo para o uso defensivo
pessoal após grandes atentados, decorre do fato de que estes ataques demonstram para a
população a ineficiência estatal em assegurar a proteção do cidadão.
“George Horne, the owner of The Gun Room, Denver’s oldest
firearms dealer spoke about booming sales. “Business has been
booming at my store. For this time of year I’d say it’s three to four
times what we normally have.” While gun sales see a spike after
shootings in America, LGBT buyers aren't the kind of audience
normally flocking to gun stores. One of America's biggest gay guns
rights organizations, the Pink Pistols, saw its members double within
a day of the shooting”67
Interessante notar que, antes do atentado de Orlando ocorreu o ataque em San
Bernardino, na Califórnia. Nessa ocasião Syed Farrok e Tashfeen Malik entraram em
um centro para pessoas com deficiência e atiraram com rifles automáticos, matando 14
pessoas e ferindo 21. Como em Orlando, o Estado Islâmico assumiu a autoria do
atentado. Curioso apontar que o Estado da Califórnia possui uma das políticas mais
restritivas quanto ao acesso a armas de fogo dos Estados Unidos, seguindo uma diretriz
de proibir o porte velado de armas curtas e o porte e a posse de rifles. No entanto, tal
posicionamento não impediu que o casal perpetrasse o ataque. Em verdade, poucos dos
153 acidentes poderiam ser prevenidos.
65 ANAND, Kunal. “America's Gays & Lesbians Are Buying Guns In Record Numbers, And Gun Owners
Are Teaching Them How To Shoot!”. Disponível em:http://www.indiatimes.com/news/world/america-s-
gays-lesbians-are-buying-guns-in-record-numbers-and-gun-owners-are-teaching-them-how-to-shoot-
256933.html Acessado em: 07/2016
66 JUNIOR, John Lott. Preconceito contra as armas. Campinas: Vide Editorial, 2015. Pg. 11. 67 ANAND, Kunal. “America's Gays & Lesbians Are Buying Guns In Record Numbers, And Gun Owners
Are Teaching Them How To Shoot!”. Disponível em:http://www.indiatimes.com/news/world/america-s-
gays-lesbians-are-buying-guns-in-record-numbers-and-gun-owners-are-teaching-them-how-to-shoot-
256933.html Acessado em: 07/2016
45
A forma de conduzir a política externa americana, bem como todo o encargo
histórico das ações dos Estados Unidos no Oriente Médio, os tornam alvos de ataques
terroristas que, conforme visto nestes últimos exemplos, tendem a se tornarem mais
frequentes.
Em relação específica ao terrorismo, o Secretário Geral da Interpol, Ronald
Noble, afirma que cidadãos armados são importantes contra ataques terrorista por
evitarem os chamados “soft targets” ou “sitting ducks”, termos que significam vítimas
indefesas e inofensivas68. Esta política é adotada por Israel que permite o open carry
aos seus cidadãos e incentiva a compra de armas de fogo como forma de contenção aos
atentados terroristas.
Cumpre, por fim, ressaltar um dado que também é pouco exibido quando se trata
do tema em pauta. Busca-se sempre analisar esse assunto com alguma comparação entre
número de armas e homicídio ou suicídios ou tiroteios em massa, mas raramente se
observa uma análise quantitativa do uso defensivo das armas de fogo - até porque, em
grande parte dos casos, não existe documentação ou não se faz um Boletim de
Ocorrência nos casos em que se afugenta um criminoso, seja mostrando a arma ou
disparando-a para o alto, bem como nas ocasiões de confronto na qual o delinquente
consegue fugir.
Em uma pesquisa conduzida por Jhon Lott Jr. em 1997, restou constatado que,
no ano anterior, as armas de fogo foram utilizadas de maneira defensiva
aproximadamente 2.1 milhões de vezes e, em 98% dos casos, a defesa foi realizada só
com o ato de brandir a arma. Esse mesmo estudo foi novamente realizado em 2002 e
chegou-se a um número aproximado de 2.3 milhões de ocorrências69.
4.2. Europa
“As armas […] são não apenas para a
defesa contra estrangeiros, mas para vigiar e
reencaminhar, para atender o clamor publico, e de
68FANTIN JÚNIOR, Fidelis Antônio. Estudo Técnico n° 23/2015 – Brasília: Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, 2015. Pg. 22.
69 JUNIOR, John Lott. Preconceito contra as armas. Campinas: Vide Editorial, 2015. Pg. 32.
46
outra maneira para manter a paz dentro do reino, e
para a execução da justiça, assistindo o xerife
quando ele tiver a ocasião para usar o posse
comitatus, e de outra maneira […]. E sendo o uso de
armas mais geral, também o é para imediata
defesa.”
“Proceedings in the case of Ship-Money between the
King and John Hampden” (1637)
Atualmente, o continente europeu possui 50 países e apresenta aproximadamente
25% da população mundial. Infelizmente, este trabalho não será capaz de abordar e
analisar individualmente todos os países e, por isso, irá se restringir a países com mais
destaque mundial como Inglaterra, França e Suíça.
O caso inglês é muito interessante e paradigmático, e foi muito bem analisado
por Joyce Lee Malcom, em seu livro “Violência e Armas - A Experiência Inglesa”, que
analisou os documentos governamentais sobre crimes e armas que remontam à época
medieval, possibilitando uma análise histórica e profunda do tema.
A Inglaterra, ainda nos tempos medievais, já depositava extrema confiança na
capacidade de seu povo em proteger suas comunidades e a si próprios. Em verdade, em
algumas épocas toda criança era obrigada a aprender empunhar uma espada e,
especialmente, utilizar o famoso arco longo inglês. Essa liberdade de autodefesa se
transformou em um direito em 1689, com a Carta de Direitos Inglesa, garantindo
legalmente ao seu povo o direito de possuir armas para a sua defesa.
As armas de fogo, mosquetes, espingardas e armas curtas se tornaram
comumente difundidas na Inglaterra no século XVI. Com o desenvolvimento da
tecnologia e o barateamento dos custos, décadas após décadas as armas de fogo
chegaram a residência dos ingleses, principalmente devido ao fascínio histórico deste
povo com a caça.
47
Registros históricos, demonstram que na Inglaterra medieval, época em que não
existiam armas de fogo, a taxa de homicídios era extremamente alta, aproximadamente
de 18 a 23 por 100.000 habitantes.70
Com a eclosão e fim da Revolução Gloriosa, os novo rei e rainha, William de
Orange e Maria Stuart, juraram manter a nova Carta de Direitos. Dentro dessa carta,
constava o direito das pessoas de possuírem uma arma de fogo para a defesa pessoal. A
combinação de uma época ‘menos civilizada’ com uma larga difusão e livre acesso a
armas de fogo poderia ser o panorama perfeito para um alto índice de homicídios e de
crimes violentos, e, de fato, esta foi a aposta de muitos.
No entanto, a Idade Moderna, com suas armas de fogo, se mostrou de uma
segurança sem precedentes. Lawrence Stone estima que as taxas de homicídio da
Inglaterra do século XIII eram de aproximadamente o dobro daquelas dos séculos XVI e
XVII71.
Logo, viveu-se uma época na qual as armas de fogo foram introduzidas na vida
diária e se tornaram comuns entre os cidadãos ordinários e as milícias. Foi também o
século na qual se proclamou o direito natural dos homens ingleses de possuir armas para
a sua defesa e, por fim, foi observado um declínio acentuado nos crimes violentos e
homicídios.
O Século XVIII não fugiu do panorama anteriormente apresentado.
William Blackstone, ao escrever seus “Commentaries on the Laws of England”,
em 1765, define três grandes e principais direitos, que seriam: a segurança pessoal, a
liberdade individual e a propriedade privada. Para que estes direitos não se tornem letra
morta, a constituição providenciou outros direitos auxiliares do indivíduo na tentativa
de protegê-los e garanti-los. Segundo Blackstone:
“O quinto e último direito auxiliar do indivíduo, que eu devo
mencionar neste momento, é o de possuir armas para sua defesa,
adequadas a sua condição e grau, e na forma permitida pela lei [...] e
é, de fato, uma permissão pública sob restrições convenientes, ao
direito natural de resistência e autopreservação, quando as sanções 70SHARPE, James A. Crime in Early modern England 1550-1750. Londres: Themes in British Social
History, 1998. Pg. 22. 71Ibidem., Pg. 22.
48
da sociedade e as leis se tornam insuficientes para coibir a violência
da opressão”72
A última parte da era moderna, vivenciou um declínio nos índices de homicídios
ainda maior: entre 1660 e 1800 houve uma queda de dois terços na taxa de
homicídios73.
No século XIX, a revolução industrial inglesa chega ao seu ápice e com ela o
reflexo dessa intensificação produtiva em todas as áreas. No âmbito econômico, tem-se
a imposição incontestável da Inglaterra como potência mundial, derrotando Napoleão e
dominando todo o mercado europeu, bem como a continuação de sua política
expansionista e neocolonialista. No entanto, os reflexos da industrialização na esfera
social se mostraram negativos e resultaram em diversos movimentos sociais de
trabalhadores com as mais distintas reinvindicações como o fim do Estado pelos
Anarquistas ou o fim das máquinas pelos Cartistas
A desordem que se instaurava foi combatida pelo governo com o endurecimento
das leis já existentes e a limitação de algumas liberdades, através das Lei do Tumulto e
a Lei das Reuniões e Assembleias Sediciosas.
Ao contrário do que se pode pensar, o direito ao porte e à posse de armas nessa
época não foi limitado, pelo contrário, foi encorajado, principalmente com a formação
de milícias armadas para garantir a ordem local e se prepararem para o combate em caso
de alguma invasão francesa.
Ao mesmo tempo em que buscou ampliar o leque de ações abarcadas pela
legislação penal, o governo inglês promoveu uma reforma legislativa que proporcionou
uma maior humanização das penas, reduzindo drasticamente a lista de crimes capitais
anteriormente previstos na Lei Negra.
Ao fim do século XIX, a taxa de homicídios para Inglaterra e País de Gales
atinge a cifra de 1,5 por 100.000 habitantes, chegando a um recorde de 1,0/100.000.
Entre 1857 e 1890, raramente ocorriam mais de 400 homicídios relatados por ano e na
década de 1890 a média se manteve abaixo de 350. Nos anos de 1835-1837, apenas 9%
72Blackstone's Commentaries on the Laws of England. Book the First - Chapter the First : Of the Absolute
Rights of Individuals, 1:136. 73 BEATTIE. John M. The Pattern of Crime in England 1660-1800. Oxford Journals. Pg. 61.
49
de todos os crimes ingleses consistiam em crimes violentos e, entre 1835-1845, essa
porcentagem caiu para 8%. No intervalo entre 1878 e 1886, somente em duas ocasiões
por ano se presenciava o uso de armas de fogo no cometimento de algum assalto, este
número subiu para 3,6 casos até 189174.
Este quadro é espantoso ao se constatar que o século XIX foi socialmente
conturbado, com a eclosão de diversos movimentos sociais, bem como com a restrição a
alguns dos direitos fundamentais e com a promoção de diversas alterações legislativas.
Mesmo com todos os eventos desse século, só houve uma grande modificação no direito
de possuir armas de fogo através da Lei de Licenciamento de 1870, que exigia o registro
das armas e dos compradores ao adquirirem uma.
Dessa forma, no século XIX, observamos a coexistência de fatores interessantes,
como a desordem social e a livre disponibilização das armas de fogo e, mesmo assim,
atingiu-se recordes negativos de criminalidade.
O historiador Thomas Macaulay Whig defende o direito de possuir armas,
afirmando ser “a segurança sem a qual todas as outras são insuficiente”.75
James Paterson por sua vez, afirmou em 1870:
“Em todos os países onde a liberdade pessoal é valorizada,
por mais que cada indivíduo possa confiar na compensação legal, o
direito de cada um de portar armas [...] para sua própria proteção
em casos extremos, é um direito de natureza indelegável e
irrepreensível, e quanto mais se procurar reprimi-lo mais ele virá à
tona” 76
O século XX foi marcante para os ingleses pois, de forma progressiva, suprimiu
o direito desse povo de possuir armas de fogo, garantido desde 1689 com a Carta de
Direitos.
74 MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas, a Experiência Inglesa. 2° Edição. Vide Editorial. 2014.
Pg. 121. 75 WHIG. Thomas Macaulay. Critical and Historical Essays, Contributed to the Endinburgh Review, 5
vols. (Leipzing, 1850), 1:154, pg. 162. 76 PATERSON, James. Commentarios on the Liberty of the Subject and the Laws of England Relating to
the Security of the Person, 2 vols., Londres, 1887, pg. 44.
50
Em 1903, entrou em vigor a Lei das Armas Curtas, que delimitou quais armas
curtas poderiam ser comercializadas, bem como instituiu algumas novas taxas para a
sua compra.
No entanto, o verdadeiro golpe à liberdade individual de autodefesa ocorreu a
menos de um ano após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o Parlamento
aprovou um estatuto abrangente sobre armas de fogo, eliminando o direito do indivíduo
de possuí-las. Este estatuto foi incluído no Regulamento 40B da Lei da Defesa do Reino
e vigeria até o dia 31 de agosto de 1920.
Como o regulamento possuía uma data de validade, foi aprovada pelo
parlamento britânico a Lei das Armas de Fogo de 1920. A referida legislação
transformava o direito de se armar em um privilégio, ao delegar ao chefe de polícia a
emissão de um certificado que autorizava a compra de armas. Dessa forma, o Chefe de
Polícia poderia escolher, por qualquer razão que bem entendesse, a quem concederia ou
não o certificado, analisando se o requerente era “temperado”, obediente à lei e possuía
uma “boa razão” para comprar uma arma. Além de tornar subjetivo o processo de
aquisição das armas de fogo, a lei restringiu a quantidade de munição e armas que se
poderia possuir, bem como adotou taxas a serem pagas a cada três anos para a
renovação do certificado. Ou seja, o cidadão inglês, após pagar todas as taxas, ser
aprovado nos critérios do Chefe de Polícia e conseguir o certificado, no momento da
renovação, o Chefe de Polícia local pode, por qualquer motivo, não conceder o novo
certificado. Assim, este cidadão não poderá mais possuir a arma de fogo que antes tinha
comprado e caso ele não queira se desvencilhar dela, afinal é um objeto custoso, estaria
na ilegalidade.
Esta decisão arbitrária, apesar de em última instância ser totalmente de cunho
pessoal, teria que supostamente seguir uma diretriz do Home Office britânico. Em 1920,
sustentava-se que uma boa razão para conceder a certidão era em casos de pessoas que
viviam solitárias, onde a proteção contra ladrões e assaltantes se fazia necessária, bem
como em casos de ameaças de morte. Já em 1937, o secretário do interior decidiu:
“Como regra geral as requisições para a posse de armas de
fogo para proteção pessoal ou do lar devem ser desencorajadas com
base no fato de que as armas de fogo não podem ser consideradas
51
como um meio adequada de proteção e podem ser uma fonte de
perigo”77.
O discurso para justificar a implementação desta medida é espantosamente atual.
Os parlamentares utilizaram a máscara do aumento da criminalidade, alegando como
uma das principais razões para este aumento o livre acesso a armas de fogo.
No entanto, se observarmos os dados da época, podemos constatar que entre
1911 e 1913 o número médio de crimes armados de todos os tipos, em Londres, era de
45 por ano. De 1915 a 1917 esse número caiu para 15. Entre 1908 e 1912 constatou-se
47 casos de tiroteios entre policiais e criminosos, uma média de 9 por ano. 78
Em verdade, a inclusão da Lei de Armas como medida de combate à
criminalidade não passa de uma mera desculpa. Após a Primeira Guerra Mundial o
parlamento inglês viveu verdadeiros anos de vigilância e histeria com um medo
constante de uma possível revolução comunista aos moldes da Revolução Bolchevique
que ocorreu na Rússia em 1917.
Em 1920 o partido comunista da Grã-Bretanha foi fundado e o número de
sindicalizados subiu para 8 milhões79. Havia uma agitação industrial renovada, já que os
salários ainda eram baixos e os sindicatos constantemente convocavam greves gerais e,
por fim, a Irlanda entrava em uma guerra civil.
De acordo com o secretário de Gabinete, as reuniões do Gabinete tiveram, nessa
época, um tom histérico. Após uma dessas reuniões; ele registrou: “Com a cabeça quase
girando. Eu senti que estava em Bedlam. A revolução vermelha, o sangue e a guerra em
casa e no exterior”80.
Este quadro preocupou tanto o parlamento que no final de 1920 foi aprovada a
Lei de Poderes Emergenciais, garantindo ao Rei o poder de declarar um estado de
emergência e dar ao governo poderes necessários para preservação da paz.
Atualmente, muitos dos que militam pelo desarmamento utilizam a experiência
inglesa como o exemplo a ser seguido, afinal ela possui uma das leis mais restritivas
77 Memorandum for the Guidance of of the Police, Home Office, Firearms Act, 1937. 78 MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas, a Experiência Inglesa. 2° Edição. Vide Editorial. 2014.
Pg. 140.. 79 Ibid., Pg. 145. 80 JONES, Thomas, Whitehall Diary, ed. Keith Middlemas, 3 vol. Oxford. 1969, 1:97.
52
quanto ao acesso às armas de fogo e uma taxa de homicídios totais e por armas de fogo
baixas.
No entanto, muitos se esquecem que a taxa de homicídio na Inglaterra sempre
foi baixa, mesmo anteriormente a 1920, quando todos podiam andar armados, aliás
extremamente baixas neste momento, como já visto anteriormente.
Outro fator que pouco se fala mas tem uma forte correlação com o tema em
questão, são os crimes violentos. Atualmente, a Inglaterra bate recordes de crimes
violentos, principalmente os cometidos com armas de fogo.
Em uma comparação com os Estados Unidos, um estudo baseado nos números
de 1995 descobriu que para as três categorias de crimes – assaltos, roubos e furtos – os
ingleses correm mais risco que os americanos. Enquanto nos Estados Unidos houve 8,8
assaltos por 100.000 habitantes naquele ano, na Inglaterra e País de Gales ocorreram 20
assaltos por 100.000. Os furtos na Inglaterra e País de Gales são em média 1,4 vezes
mais altos e os roubos são praticamente o dobro.81
Entre 1957 e 1967 na Inglaterra o uso de armas em crimes violentos, seja
homicídios ou contra a propriedade cresceu 100 vezes 82 , à medida que
aproximadamente 90% dos assassinatos na Inglaterra foram cometidos por meios
diversos à utilização de armas de fogo, os roubos com este instrumento se tornaram
mais comuns83. Ao analisar o período anterior à aprovação da Lei de Armas de 1920,
houve em média 4 roubos armados por ano em Londres. Já em 1991 ocorreram 1.600
casos, ou seja, 400 vezes a mais. No período de 1989 a 1996, o crime armado aumentou
500 por cento, ao mesmo tempo em que os certificados de armas de fogo caíram 20 por
cento84. Segundo J. Q. Wilson:
“ As grandes restrições colocadas pela Lei Inglesa sobre a
posse privada de armas de fogo não impediram, aparentemente, o
aumento nos roubos [...] Apesar das restrições legais, a mudança
81MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas, a Experiência Inglesa. 2° Edição. Vide Editorial. 2014. Pg.
165 82 Shooting Sports Trust, Firearms in Crime: An analysis of official criminal statistcs for England and
Wales for 1979. London, 1979. p. 5. 83BRIGGS, John et al. Crime And Punishment in England: An Introducy History. New York, 1996. P.
246. 84MUNDAY, Richard, STEVENSON, John Guns and Violence: the debate before Lord Cullen.
Brightlinsea, Essex: 1996. p. 133/136.
53
firme do roubo desarmado para o armado continuou acontecendo
rapidamente – onde há um desejo, há um caminho”85.
Cabe também observar que, em 1998, os crimes armados na Inglaterra
aumentaram 10%. Segundo os números do Home Office para o período entre abril de
1999 e março de 2000 o crime violento cresceu 16%, os roubos 26% e os assaltos em
28%. Em Londres, os roubos cresceram por volta de 40%.86Entre 1996 e 2000 os crimes
violentos mais que dobraram, chegando a um nível surpreendente na qual a taxa geral
de criminalidade inglesa era 60% superior à dos Estados Unidos87.
Obviamente que, aos longos dos anos, a Lei de Armas de 1920 foi sofrendo
alterações com o incremento de novos artigos e emendas, resultando na Lei de Armas
de fogo de 1988, que erradicou de forma completa o direito constitucional dos ingleses
de possuir armas para a sua defesa
Um fato curioso e que muito se propaga no Brasil, é a afirmação de que a arma
do criminoso vem do cidadão que a adquiriu de forma legalizada e a teve roubada. Em
uma comparação com a Inglaterra, ambos países com leis restritivas a aquisição de
armas de fogo, entre 1992 e 1994 dos 152 homicídios cometidos por estas armas, em
apenas 22, ou seja, 14% dos casos foram constatados a utilização de armas legalizadas
e, destes casos, apenas em 5 se considera que a arma tenha sido roubada. Este padrão
também foi observado na Escócia: entre 1990 e 1995 apenas em 0,4% dos crimes de
homicídios cometidos por armas de fogo tinham sido utilizados armas legalizadas88. A
política do desarmamento certamente surtiu efeitos na população, restringindo o seu
direito a defesa. No entanto, como observado, os criminosos não tiveram a necessidade
de comprar legalmente ou registrar a sua arma de fogo.
Ultimamente, apesar da criminalidade violenta aumentar e ser considerada uma
das mais altas da Europa, o índice de homicídio na Inglaterra é baixo e muitos atribuem
este fato à Lei de Armas, que desarmou o cidadão inglês, negligenciando o fato de que a
85 WILSON, James Quinn, Crime and Punishment in England the public interest, number 43. 1976. p. 7-
8; 86 POVEY, David, COTTON, Judith, SISON, Susannah. Recorded crime statistics, England and Wales,
April 1999 to March 2000. Home Office, 18 de julho de 2000. 87 CLARK, James.Guns Laws Takes over in Gangland Drug Wars. Sunday Times, 2001. 88 MUNDAY, Richard, STEVENSON, John Guns and Violence: the debate before Lord Cullen.
Brightlinsea, Essex: 1996. p. 323
54
taxa de homicídios inglesa sempre foi baixa e a proibição da aquisição de armas de fogo
foi um fator determinante para o aumento da criminalidade não homicida.
Por fim, cabe ressaltar uma enquete realizada em 2014 pelo jornal inglês The
Telegraph sobre qual lei inglesa precisava ser rediscutida. Em primeiro lugar, com 25
mil votos, aproximadamente 90% do publico votante, ganhou a proibição da posse e
porte de armas para defesa. Um dos leitores comentou: “Afinal de contas, por que é
permitido somente aos criminosos possuir armas e atirar em pessoas desarmadas,
cidadãos e em policiais? ”.89
De outro lado deste prisma de controle de armas encontra-se a Suíça.
Para que se possa entender como esse pais se posiciona em relação a essa
questão, se faz necessário uma pequena introdução histórica.
Os cantões suíços iniciaram a sua guerra de independência contra o império da
Áustria em 1291, conflito este que durou até 1388 quando Berna se rebelou e entrou na
confederação dos oito. No entanto, formalmente a Suíça só veio a adquirir a sua
independência em 1648, quando os reinos europeus a reconheceram como um país.
Por se tratar de uma região pequena e, consequentemente, com uma população
pouco numerosa se comparada às demais nações europeias, os governantes da Suíça
sempre obrigaram que seus cidadãos portassem armas e respondessem ao chamado da
nação quando necessário.
A política de neutralidade, tanto nas confecções de alianças como em optar por
não possui um forte exército regular, foi adotada em 1515. A adoção desta política
permitiu a Suíça escapar das grandes guerras que ocorreram na Europa como as guerras
napoleônicas, a primeira e a segunda guerra mundial e outras mais.
No entanto, como regra geral, o país seguia uma doutrina de prevenção da guerra
através da determinação em se defender. Ou seja, mesmo sem contar com um
contingente ativo de exército o povo suíço, a qualquer momento, poderia ser convocado
a se armar e lutar pelo pais. É a chamada neutralidade armada.
Para atingir esta política, o governo suíço, desde os primórdios de sua existência,
estabeleceu o serviço militar obrigatório a todo homem: Por volta dos 20 anos, o jovem
se encontra por 118 dias consecutivos em um treinamento militar chamado
89 MALCOLM, Joyce Lee. Violência e Armas, a Experiência Inglesa. 2° Edição. Vide Editorial. 2014.
Pg. 7.
55
“Rekrutenschule”. Dos 21 aos 32 anos, o cidadão forma a linha de frente do exército, o
“Auszug” e dispende 3 semanas por ano para dar continuidade ao treinamento. Dos 33
aos 42 ele se torna membro da Guarda Nacional e o treinamento é realizado em anos
intercalados, por de 2 semanas . Dos 43 aos 50, ele serve como reservista e passa um
total de 13 dias em curso militar.
Durante a carreira de soldado, o cidadão também passa por dias de inspeção
obrigatória de equipamentos e pratica de tiro ao alvo. Assim, em uma carreira militar
obrigatória de 30 anos, o suíço gasta apenas 1 ano no serviço militar direto. Após a
baixa do exército regular os homens ficam na reserva até a idade de 50 anos (55 para
oficiais).
Pela Constituição Federal de 1847, aos membros do serviço militar são dados
equipamentos, armas e roupas. Depois do 1º período de treinamento os recrutas devem
guardar as armas, a munição e os equipamentos "am ihrem Woh nort" (em suas casas)
até o termino do serviço.90
Hoje em dia, aos alistados são distribuídos fuzis automáticos Stgw.90 e, aos
oficiais, pistolas. A cada reservista são entregues 24 cartuchos de munição em
embrulhos selados para o uso em emergências (Ao contrario do que dizem os anti-
armas, esta munição de emergência é a única pela qual o reservista tem de prestar
contas).
Depois da dispensa militar, ao ex-reservista é dado um fuzil de repetição sem
registro ou outras obrigações. A partir de 1994, o governo passou a dar fuzis
automáticos aos ex-reservistas também. Os oficiais também recebem suas pistolas ao
final do serviço.
Incrivelmente, como se pode notar, a todos os homens na Suíça são entregues
pistolas e rifles automáticos que, por dever legal, devem ser levados e guardados em
suas casas para, caso necessário, receberem a convocação e lutarem contra algum
invasor.
Dessa forma, aproximadamente metade da população do pais possui algum
armamento, tornando a Suíça o terceiro pais com maior número de armas per capita do
mundo. Em aproximadamente 80% das casas Suíças pode-se encontrar uma arma. Em
90 BARBOSA, Bene; QUINTELA, Flávio. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide
Editorial, 2015. Pg. 61.
56
compensação, o número de mortes por armas de fogo é de 0,23 por 100,000 habitantes,
uma das menores taxas do mundo. 91
Vale também ressaltar o caso francês.
O Estado da França, palco de grandes revoltas e revoluções liberais, vive hoje
sob a égide de uma severa política desarmamentista que permite ao cidadão possuir
apenas armas para caça e para coleção, devido ao seu valor histórico e cultural, tendo
em vista que o pais participou da maioria das guerras que aconteceram no território
europeu.
No entanto, em matéria de autodefesa, apenas um número aproximado de 3.7%
das casas na França possui algum tipo de pistola ou revólver, armas típicas e adequadas
para este propósito. Aliado a este fato, o porte de armas de fogo é proibido.92
Este cenário, transforma a França em um alvo fácil e certeiro para atentados
terroristas, na medida em que a população se mostra incapaz de reagir ante a uma
situação de perigo.
Em janeiro de 2015, os irmãos Saïd e Chérif Kouachi, armados com fuzis AK
47, espingardas e lança-granadas, armas de uso militar e proibidas no território francês,
cometeram um atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo. Começaram o ataque
pela rua, andando e atirando com a tranquilidade de saberem que os cidadãos ali
presentes não poderiam revidar e, a polícia, demoraria para chegar e oferecer
resistência. Como resultado, 12 pessoas foram mortas e 11 ficaram feridas.
Como se não bastasse, observando a ineficiência governamental, neste mesmo
dia um terceiro francês mulçumano matou a tiros um policial na periferia de paris e, no
dia seguinte, invadiu um supermercado fazendo de seus clientes reféns. Antes da
intervenção policial, ele conseguiu matar quatro pessoas.
Novamente, em 13 de novembro de 2015, a França foi palco de mais um
devastador ataque terrorista. Armados com fuzis AK 47, granadas e coletes explosivos,
sete terroristas realizaram ataques em diversas regiões de Paris, com fuzilamentos em
massa e explosões. Mais de 350 pessoas ficaram feridas e pelo menos 137 morreram,
incluindo os 7 terroristas, sendo que 89 delas faleceram no teatro Bataclan, local onde
os terroristas aproveitaram a aglomeração de pessoas e descarregaram os seus fuzis
91 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/switzerland Acessado em: 06/2016 92 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/france Acessado em: 06/2016
57
automáticos, sabendo, novamente, que nenhuma pessoa naquele local poderia impedi-
los.
Em 2016 os ataques não cessaram: no início de julho um extremista islâmico
matou um policial e sua companheira. No dia 14 deste mesmo mês, dia da Bastilha,
Mohamed Lahouaiej em posse de uma pistola e um caminhão, perpetrou um ataque em
Nice, dirigindo seu caminhão sob uma multidão que se encontrava na rua, matando 84
pessoas e ferindo outras 14. Foi morto a tiros apenas com a chegada da polícia, após
percorrer mais de 2 km em seu caminho de matança.
Ainda em julho de 2016, no dia 26, dois extremistas entraram em uma igreja
católica na região da Normandia e degolaram o padre Jacques Hamel de 84 anos.
Todos estes atentados foram reivindicados pelo Estado Islâmico.
Somente entre Janeiro de 2015 e Julho de 2016 a França foi alvo de 12 ataques
terroristas. As intervenções militares francesas na Síria são o motivo, a forte presença
de mulçumanos no pais a oportunidade, a população desarmada é a facilidade e a
certeza de um atentado possível e fácil. O governo francês ainda tem muito que
aprender com o Estado de Israel, que desde seu nascimento lida com o terrorismo e sabe
da importância dos cidadãos armados no combate aos atentados.
4.3. Japão
“A vida de alguém é limitada; porém a honra e o
respeito duram para sempre.”
MIYAMOTO MUSASHI
“Para um autêntico samurai não existem as
tonalidade cinzas no que se refere a honra e justiça,
só existe o certo e o errado.”
Código Samurai
O caso japonês merece uma análise particular por ser muito utilizado como
exemplo de perfeição em política desarmamentista, mesmo sem o devido conhecimento
histórico e cultural deste país.
58
Dessa forma, para que se entenda o caso do Japão, devemos conhecer a sua
evolução histórica e o código de honra chamado Bushido.
O Japão, assim como ocorreu com a Europa na Idade Média, era dividido em
feudos, sendo que em cada território existia um senhor feudal, chamado de “daimyo”.
Havia uma aristocracia bélica, que era formada pelos guerreiros samurais e a classe
camponesa, sendo que esta última só poderia exercer a atividade rural, sendo servos dos
senhores feudais.
A história nos mostra que a China inventou a pólvora, bem como os primeiros
canhões e a proximidade entre as ilhas japonesas e o país chinês fez com que as
primeiras armas de fogo fossem introduzidas no Japão por volta de 1270 d.C.. No
entanto, devido ao peso e a dificuldade do manejo destas armas, os japoneses
continuaram optando pelas suas katanas (espadas samurais) e os arcos.
Com o início do contato entre os portugueses e as ilhas japonesas em 1543, foi-
se introduzido no país os arcabuzes, que eram armas de fogo mais simples, baratas e
práticas, que podiam ser produzidas em muitas das oficinas no Japão. No entanto, o
poder militar japonês ainda privilegiava as flechas disparadas de seus arcos, por causa
do seu grande alcance e do maior poder de penetração. O verdadeiro impacto dessas
armas ocorreu para os camponeses que, sem precisarem de treinamento militar rígido e
complexo, agora poderiam contar com algum tipo de armamento.
Em 1603, após diversos conflitos feudais o Japão se viu unificado pelo xogum
Tokugawa Leyasu, iniciando-se assim o seu Xogunato, que foi procedido de um longo
período de paz de aproximadamente 250 anos.
Neste período de longa paz, Tokugawa proibiu o cristianismo, perseguindo os
seus adeptos, e fechou os portos japoneses, adotando uma política totalmente
isolacionista por temer pela cultura e as tradições de seu povo.
E, seguindo esta política também, foram proibidas as armas de fogo. A decisão
se embasou em fatores tanto sociais como culturais. No escopo social, as armas de fogo
deram aos camponeses do Japão a força necessária para contestar determinadas medidas
que lhes eram impostas e, quando não satisfeitos, começaram a iniciar revoluções,
destronando os senhores feudais, como por exemplo a rebelião de Shimabara. Neste
contexto, o desarmamento japonês existiu como forma de controle social, na tentativa
de impedir que os camponeses pudessem se armar, na medida em que o comércio com o
59
exterior havia cessado e as armas dos samurais eram muito caras e restritas a estes
guerreiros.
No campo cultural tem-se o Bushido.
O Bushido é um código de conduta e de modo de vida adotada pelos samurais,
que foi desenvolvido entre os séculos IX a XII, sendo largamente aplicado na sociedade
japonesa após esta data e ainda com grandes reflexos na atualidade.
O preceito fundamental do Bushido é a busca por uma morte digna. Dessa
forma, a vida sempre foi vista como algo passageiro, mas a honra, a honestidade e o
trabalho são vistos como permanentes, atrelados não só ao indivíduo como também a
toda sua família.
Dessa forma, o guerreiro deveria ser leal e honrado, bem como dominar e
praticar a arte da espada e da pena (escrita). Um samurai jamais poderia se render ou
fugir de uma luta, mesmo em clara inferioridade numérica, devendo estar sempre
preparado para a morte na tentativa de preservar a honra de seus antepassados e senhor
feudal. Caso tenha sido capturado ou cometido alguma atitude infame, o samurai
poderia praticar o Seppuku na tentativa de reaver sua honra e morrer gloriosamente. Este
era um ritual suicida japonês, que consistia em apunhalar-se no ventre para morrer de
forma lenta e dolorosa como forma de demonstrar autocontrole, coragem e
determinação, qualidades características dos samurais.
Com a Ascenção do xogunato de Tokugawa, os aspectos do Bushido foram
formalizados no Direito Feudal Japonês e a veneração da honra foi expandida para toda
a sociedade, deixando de ser um dever único dos samurais.
Este código de conduta estabelece a honra de se lutar e morrer pela espada,
transformando aqueles que utilizassem armas de fogo em pessoas desonrosas, não
merecedoras de uma morte gloriosa.
No entanto, a política isolacionista do Japão falhou quando o Comodoro
americano, Matthew Perry, ordenou que seus navios bombardeassem Tóquio como uma
demonstração de poderio militar, exigindo a abertura dos portos japoneses às
embarcações americanas.
Com a abertura dos portos e diversos acordos comerciais assinados com
inúmeras potências europeias, o Japão começou a se modernizar e a Revolução Meiji
60
pôs fim ao xogunato, restaurando o poder absoluto do imperador que começou a formar
um exército nacional com armas americanas, pondo fim a era dos samurais.
Dessa forma, o Japão iniciou sua política de desarmamento civil em 1600,
impedindo que seus cidadãos pudessem possuir ou portar armas de fogo para sua defesa
por motivos culturais e históricos. Esta política se manteve ao longo dos séculos e, nos
dias atuais, até mesmo o porte de qualquer lâmina maior que 6 centímetros, incluindo
facas, espadas e outros tipos é considerado crime, que pode resultar em até dois anos de
prisão. 93
Portanto, citar o Japão como exemplo de política criminal desarmamentista de
sucesso é, no mínimo, ignorância, ao observamos que a sociedade japonesa sempre foi
permeada de baixíssimos índices de homicídios, fato muito atrelado a alta moralidade,
na qual o japonês, mesmo nos dias atuais, busca conduzir suas vidas sob preceitos do
Bushido.
Esta alegação pode ser comprovada ao analisarmos que o alto índice de suicídios
do Japão, que mesmo com um restrito acesso a armas de fogo, o pratica por motivos de
desonra individual ou familiar por diversos meios.
Outro exemplo da forte influência do Bushido na sociedade japonesa está
presente nas ações de seu exército na Segunda Guerra Mundial. Os ataques kamikazes
cometidos pelos pilotos japoneses que se jogavam com seus aviões contra os navios
americanos em busca de uma morte honrada e dos pelotões da infantaria que, ao invés
de se renderem, iniciavam cargas com espadas em mãos na direção de posições
fortemente defendidas por soldados americanos armados são exemplos marcantes da
influência do Bushido.
Logo, o desarmamento japonês não foi imposto como uma forma de reduzir a
criminalidade, até porque a criminalidade violenta japonesa sempre foi baixa,
apresentando hoje uma média de 0.4 homicídios por 100.000 pessoas.94
93 GIACONI, Luiz. Breve história do desarmamento, parte1: O Japão pré-imperial. 2014. Disponível
em: http://www.defesa.org/breve-historia-do-desarmamento-parte-1-o-japao-pre-imperial/ Acessado em:
06/2016 94Dados disponível em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/japan Acessado em: 06/2016
61
4.4. A América Latina
“Compatriotas. As armas vos darão a
independência, as leis vos darão a liberdade”
SIMÓN BOLIVAR
Por fim, se faz necessário uma análise de alguns países da América Latina para
finalizar este quadro de estudo dos casos internacionais, muitos dos quais sofrem das
mesmas mazelas econômicas e sociais ou em situações piores do que se pode observar
no Brasil.
O primeiro país que investigaremos possui um índice de Desenvolvimento
Humano baixo, na ordem de 0,679, considerado um nível médio pelo PNUD. Só para
fins comparativos, o IDH do Brasil é de 0,755, e é considerado elevado95.
Este mesmo país, no ano de 2015, obteve um PIB de 28,077 milhões de dólares,
alcançando a posição de número 98 no ranking mundial, em comparação, o Brasil
produziu neste ano um PIB de 1,772,589, encontrando-se na 9° posição.
A legislação e o controle de armas de fogo neste país são permissivos,
lembrando muito o Brasil antes do Estatuto do Desarmamento. Os seus cidadãos podem
possuir e portar armas de fogo, desde que não tenham condenações criminais e
obtenham um certificado de treinamento, bem como atestado psicológico. Não existe
qualquer discricionariedade envolvida e o trâmite da licença demora em torno de 15
dias.
A taxa de armas na mão da população por 100 habitantes é de aproximadamente
15.4. Em contrapartida, é o quarto na lista de menores taxas de homicídios na América
do Sul, atrás apenas do Chile, Argentina e Uruguai.96
Este pais, surpreendentemente, é o Paraguai.
95Relatório do Desenvolvimento Humano 2015 – O trabalho como Motor do Desenvolvimento Humano.
PNUD, Pg. 53. Disponível em: http://www.pnud.org.br/HDR/arquivos/RDHglobais/hdr2015_ptBR.pdf
Acessado em: 06/2016 96“ONU: Países da América Latina lideram índice de homicídios no mundo”. BBC. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140410_homicidio_onu_mm Acessado em: 06/2016
62
E, como se não bastasse, os índices de homicídios são maiores nas regiões
fronteiriças com o Brasil, conforme demostra a imagem, disponibilizada pelo
departamento de estatística da polícia nacional guarani.
Dessa forma, apesar de enfrentar dificuldade econômicas e sociais mais severas
do que o Brasil, o Paraguai possui uma política mais liberal quanto a posse e ao porte de
armas, apresentando uma das menores taxas de homicídios da América.
O segundo país que analisaremos é o Uruguai.
Estima-se que, atualmente, a taxa de armas por 100 pessoas no Uruguai seja de
32,6, a maior de toda a América Latina. Dessa forma, aproximadamente 1 em cada 4
pessoas possui arma de fogo97.
Em compensação, este país possui uma taxa de homicídios totais de
aproximadamente 7.64 por 100.000 habitantes, sendo que deste total, 4,78 são
cometidos por armas de fogo. Esta estatística posiciona o Uruguai em terceiro lugar
como país com um dos menores índices de homicídio no continente.
O porte é considerado muito restrito, em grande parte, reservado a membros do
poder público como policiais, juízes, promotores, etc. No entanto, a posse é considerada
permissiva, sendo necessário demonstrar uma certidão de antecedentes criminais. Muito 97 Dados disponíveis em: http://www.gunpolicy.org/firearms/region/uruguay Acessado em: 06/2016
63
desta política decorre da legislação do Uruguai, que atribuiu um sentido especial a
legítima defesa do lar. Neste contexto, observado a inviolabilidade do domicílio, atirar
em um ladrão dentro da propriedade, mesmo que este não esteja armado, qualifica-se
muitas vezes como legítima defesa.98
No entanto, existem tentativas de se restringir esta política permissiva da posse
de armas pela Associação para o Desarmamento Civil. Um projeto de lei está em
trâmite perante ao legislativo para endurecer algumas penas, como a pena de posse
ilegal de armas, que pode chegar a uma a um máximo de 12 anos, e alterar alguns dos
critérios estabelecidos na lei anterior.
Curiosamente, os privilégios dos membros do legislativo não serão alterados, e
os deputados e senadores uruguaios possuem e continuarão possuindo o direito de
portar armas sem nenhum tipo de restrição. Em 2008, um estudo revelou que um em
cada três legisladores possui uma arma no país.99
Cabe também discorrer sobre o caso argentino.
Na Argentina, a lei que regulamenta questões relacionadas às armas de fogo é a
n° 20.429 de 21 de maio de 1973. Esta lei estabelece que todos os argentinos maiores de
21 anos, ao apresentarem uma ficha de antecedentes criminais limpa, detalharem o local
onde ficará a arma, passarem nos testes psicológicos e práticos, e provarem que está
empregado, podem possuir uma arma de fogo.
O porte de armas de fogo também é liberado para a população civil, mas além
dos critérios acima citados, deve o requerente justificar o porquê precisa portar a arma,
um requisito discricionário. Em 2003, segundo o Diretor do RENAR, órgão competente
para o registro das armas e concessão do porte e posse, autorizou 8.896 pedidos de porte
de armas e fogo. Em compensação, em 2014, somente 436 concessões foram emitidas.
Dessa forma, assim como no Brasil, este critério subjetivo é utilizado pelo governo
como forma de se negar em larga escala a emissão do porte.100
98MARTÍNEZ, Magdalena. “Armados, mas pacíficos”. Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/10/internacional/1394468853_167261.html Acessado em: 06/2016 99MARTÍNEZ, Magdalena. “Armados, mas pacíficos”. Disponível em:
http://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/10/internacional/1394468853_167261.html Acessado em: 06/2016 100 Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/ultimas/20-274695-2015-06-11.html Acessado em:
06/2016
64
Em resumo, a Argentina possui uma lei permissiva quanto ao acesso às armas de
fogo, possibilitando a todos os seus cidadãos possuírem e portarem armas, desde que
atingidos os requisitos estabelecidos em lei.
Em 2007, foi implementado o Programa Nacional de Entrega Voluntária de
Armas de Fogo, que indenizava o cidadão que entregasse a sua arma de fogo, similar as
campanhas de desarmamentos realizadas no Brasil. Entre 2007 e 2015, mais de 300.000
armas foram entregues.
De acordo o a Organização Mundial da Saúde, órgão da ONU, a Argentina
apresentou uma taxa de homicídios em 2012 na ordem de 6.0/100.000 habitantes, sendo
o segundo país menos violento da América Latina.101
Dessa forma, apesar de forte interferência governamental para se evitar a
concessão do porte, percebe-se que os cidadãos podem adquirir armas de fogo e as
campanhas do desarmamento acontecem de forma voluntária, em paralelo à uma lei
relativamente permissiva. O caso argentino não foge ao panorama apresentado por
Uruguai e Paraguai, possibilitando um acesso às armas de fogo pelos seus cidadãos e
apresentando índices de homicídios baixos se analisados em conjunto com o restante
dos países da América Latina.
Em comparação a estes três países que permitem o direito à posse de armas de
fogo sem qualquer necessidade de justificação ou critérios subjetivos, encontram-se o
Brasil e a Venezuela.
Como já retratado no início deste estudo, estes países possuem uma das menores
taxas de armas lícitas por habitantes no continente e, em contraposição, as maiores taxas
de homicídios.
O caso Venezuelano é ainda mais alarmante.
A Venezuela sempre foi palco de uma frágil democracia com constantes golpes
militares. Cenário político ideal para a fomentação da criminalidade e de milícias
partidárias, bem como de uma corrupção sistêmica.
Em 2013, após 14 anos do conturbado governo de Hugo Chávez, assumiu o
poder seu Vice, Nicolas Maduro. Uma das suas primeiras medidas ao assumir a 101 World health statistics 2016: monitoring health for the SDGs, sustainable development goals.
Disponível em: http://www.who.int/gho/publications/world_health_statistics/2016/en/ Acessado em:
06/2016
65
presidência foi promulgar uma lei para o controle de armas mais punitiva e restritiva do
que a brasileira, que possibilita uma prisão de 20 anos por porte ilegal de arma de fogo.
O objetivo era frear o avanço dos crimes violentos que já atingiam patamares
elevados e, para isso, promoveu uma grande campanha de desarmamento em todo o
território venezuelano ao longo de 2014.
O que se esperava alcançar com essas medidas era uma redução na
criminalidade, o que não ocorreu. Segundo a organização “Seguridad, justiça y paz”,
Caracas tinha 115,98 homicídios por 100 mil habitantes em 2014 e no ano de 2015 esse
número subiu para 119,87, se tornando a cidade mais violenta do mundo102. Como se
não bastasse, segundo o Observatório Venezuelano de Violência, a Venezuela alcançou
em 2015 a taxa de 90 mortes por 100.000 habitantes, ultrapassando Honduras e
assumindo o posto de país mais violento da América Latina103.
102Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal. “Por cuarto año consecutivo, San
Pedro Sula es la ciudad más violenta del mundo”. Disponível em:
http://www.seguridadjusticiaypaz.org.mx/sala-de-prensa/1165-por-cuarto-ano-consecutivo-san-pedro-
sula-es-la-ciudad-mas-violenta-del-mundo Acessado em: 06/2016 103Observatorio Venezolano de Violencia. “ 2015 Tasa de Homicidio Llegó a 90 por cada 100 mil
habitantes”. Disponível em: http://observatoriodeviolencia.org.ve/2015-tasa-de-homicidios-llego-a-90-
por-cada-100-mil-habitantes/ Acessado em: 06/2016
66
No entanto, apesar do espantoso índice de criminalidade, o pior não se encontra
nesses números ou na ilegalidade, mas sim no próprio governo Venezuelano.
No poder há mais de 17 anos, o partido MRV (Movimiento V República) sofre
acusações severas de controle e abusos sobre os meios de comunicação, perseguição
política e manipulação das eleições.
Em 2014, diversas manifestações eclodiram em todo território nacional,
contrárias as políticas de Maduro e a sua persistência no poder. A organização
internacional Human Rights Watch (HRW) encontrou um padrão de abusos e violações
aos direitos humanos e publicou o relatório “Punidos por protestar: as violações de
direitos nas ruas, centros de detenção e sistema judicial da Venezuela”.
Foram documentadas 10 ocorrências de tortura, incluindo choques elétricos e
queimaduras, dezenas de casos de espancamento de vítimas imobilizadas, tiros à
queima-roupa de balas de borracha e de balas tradicionais, até mesmo na cabeça de
indivíduos; privação de socorro médico aos feridos levados a unidades de detenção;
tratamento degradante e vexatório (como manter os detidos nus, expostos ao frio ou ao
calor); prisões arbitrárias por 48 horas; violação do direito do advogado; julgamentos de
madrugada, com acesso aos autos pela defesa apenas minutos antes; provas “plantadas”;
repressão de cunho estritamente político, entre outras violações de direitos humanos.104
Atualmente, além dos problemas políticos e sociais, a Venezuela enfrenta uma
grave crise econômica, com o FMI prevendo uma inflação no ano de 2016 que
ultrapasse os 700%. Devido à falta de alimentos, a Colômbia teve que abrir as suas
fronteiras por alguns dias para permitir que os cidadãos venezuelanos pudessem
comprar comida.
Com a falta de alimentos e remédios, a Venezuela se mostra cada vez mais
instável e na tentativa de possuir um maior controle, Maduro decretou Estado de
Exceção e mobilizou o exército105.
A população, largamente prejudicada pelos seus líderes, com fome e sujeita à
enfermidades, se encontra desarmada e refém de um governo que se mantém pela força
e manipulação.
104 Human Right Watch. “Venezuela: Manifestantes desarmados são espancados e baleados”. Disponível
em: https://www.hrw.org/pt/news/2014/05/05/253593 Acessado em: 07/2016 105 GOLÇALVES, Marina. “Estado de exceção aumenta poderes e Maduro, mas incomoda militares”.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/mundo/estado-de-excecao-aumenta-poderes-de-maduro-mas-
incomoda-militares-19318362 Acessado em: 07/2016
67
5. O PANORAMA BRASILEIRO
5.1. Histórico do desarmamento civil brasileiro e a sua evolução legislativa.
“ Tudo pode ser tirado de um homem, exceto uma
coisa: a última das liberdades humanas – a de
escolher uma determinada atitude em um
determinado conjunto de circunstancias; de escolher
seu próprio caminho”.
VIKTOR E. FRANKL
Em 1500, o Brasil foi descoberto pelos portugueses e teve início ao período
colonial. Durante este período, de 1550 a 1815, era proibido fabricar artesanalmente ou
de forma industrial armas no país, e qualquer um que fosse pego praticando tal conduta
seria condenado a morte. O interesse em desarmar os colonos não foi respaldado em
discursos que atribuem as armas a razão de um alto índice de criminalidade, mas apenas
para o controle social, evitando qualquer forma de milícia que poderia por em cheque o
controle da metrópole.
Após a independência, Dom Pedro I, com medo de uma invasão portuguesa para
retomada da colônia perdida, ordena a formação de milícias armadas para que, em caso
de necessidade, se pudesse combater as forças invasoras e manter a independência
brasileira. A proibição de fabricação de armas foi então revogada e todos, excetos os
negros, por serem um grupo de indivíduos a quem o Estado queria dominar, poderiam
comprar armas de fogo.
Com a impossibilidade de Dom Pedro II de reinar, iniciou-se o período
regencial. Durante esta fase, em 1835, o regente Diogo Antônio Feijó, começou o
processo de dissolução das milícias e da formação da guarda nacional. Este ato visava
transferir ao Estado o monopólio total da força.
Do outro lado do continente, no hemisfério norte, os americanos possibilitavam
que se formassem diversas milícias ao longo do país, incluindo este ato em sua Carta
Magna, resguardando assim, o direito dos cidadãos de formarem grupos paramilitares
68
para lutarem contra inimigos externos ou internos de sua nação. Segundo Thomas
Jefferson, um dos mais influentes founding fathers (fundadores da nação americana, os
homens que idealizaram a carta de independência e as primeiras emendas de sua
constituição): “Nenhum homem deve ser impedido de usar arma”.
No entanto, no Brasil, com fim das milícias, a Guarda Nacional assumiu o poder
de braço armado do governo. Desta forma, os fazendeiros mais influentes e ricos de
cada região foram nomeados coronéis e a eles foi transferido o poder de formar um
regimento que seguiria aos seus comandos. A Guarda Nacional teve grande importância
no combate as diversas revoltas que eclodiram nesta época.
O período regencial acabou e a República Velha manteve o coronelismo.
Com a Revolução de 1930, que foi idealizada e liderada por Getúlio Vargas, a
República Velha cedeu espaço para os 15 anos da ditadura varguista.
Foi exatamente nesse período em que se obtiveram informações sobre a primeira
política de desarmamento promovida pelo Estado brasileiro.
Na tentativa de acabar com qualquer ameaça ao seu governo, Getúlio teria que
pôr fim no coronelismo e no cangaço que assolava o Nordeste. No tocante ao primeiro,
Vargas buscou desarmá-los e, para isso, afirmava que as armas dos cangaceiros e
bandidos eram provenientes dos coronéis. Dessa forma, instituiu uma política de
desarmamento com o “sempre atual” discurso que as armas dos criminosos vêm dos
cidadãos legalistas.106
Alguns coronéis que acreditaram na justificativa cederam suas armas e, com o
enfraquecimento das milícias, os cangaceiros aumentaram seus ataques.
Em um trecho do livro “As Táticas de Guerra dos Cangaceiro”s, de Maria
Christina Mata Machado, Lampião expressa sua gratidão ao major Juarez Távora que
promoveu o desarmamento do Nordeste.
“Em Umbuzeiro ele se encontrou com o Sr. José Batista, e
notando nele a semelhança com o então major Juarez Távora, cercou-
o de gentilezas. (...) Lampião estava muito grato a uma atitude
tomada pelo major Távora que determinara o desarmamento geral
106 BARBOSA, Bene; QUINTELA, Flávio. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide
Editorial, 2015. Pg. 32.
69
dos sertanejos, vendo ai talvez uma solução para o fim do cangaço.
Lampião agradeceu “a bondosa colaboração” que lhe foi prestada,
porque poderia agir mais à vontade no sertão.”107
Vale ressaltar também o ocorrido com a cidade de Mossoró.
Em 12 de junho de 1927, Lampião e o seu bando atacaram a cidade de Santo
Antônio, vizinha de Mossoró. Ao saber do ocorrido, o coronel Rodolfo Fernandes,
prefeito de cidade de Mossoró, ciente de que não teria ajuda nem da polícia, nem do
exército, solicitou voluntários e os armou. No dia seguinte, quando Lampião chegou a
cidade, foi recebido sob fogo de carabinas e revólveres e recuou devido à pesadas
baixas, para nunca mais voltar. Especialistas diziam que o episódio de Mossoró foi o
início da decadência do famoso cangaceiro.
Dessa forma, a enquanto o governo promovia uma política desarmamentista com
a desculpa de acabar com o cangaço, a cidade de Mossoró de fato solucionava o
problema, mas com uma política armamentista.
Outro episódio digno de nota foi a revolução paulista de 1932. Em tal episódio,
São Paulo exigiu duas coisas: novas eleições e a saída de Vargas do poder. Quando a
situação se tornou insustentável, eclodiu uma revolução que culminou em uma guerra
entre a União e São Paulo. Como resultado, em 1934, Vargas baixou o Decreto 24.602,
criando as restrições de calibres e armamentos tanto para a polícia quanto para os civis.
Este decreto vigora até os dias atuais, mas de forma atualizada, e é o motivo das polícias
estaduais não poderem importar armas e também é o motivo de que, para que se obtenha
armamentos de grossos calibres como fuzis e 9mm, seja necessária uma solicitação ao
Exército brasileiro.108
Do fim da era Vargas à década de 90, muito pouco se alterou sobre o assunto. A
posse e o porte eram permitidos, sendo necessário para tanto, um atestado de
antecedentes e o registro da arma em uma delegacia da polícia civil. A posse ou porte
ilegal eram apenas contravenções penais e, mesmo com toda esta liberalidade, o Brasil
não era o número um do mundo em homicídios, como é hodiernamente.
107MACHADO, Maria Christina Matta. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo, Editora
Brasiliense, 1978. 108 BARBOSA, Bene; QUINTELA, Flávio. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide
Editorial, 2015. Pg. 37.
70
Na década de 80, com o início do crime organizado e das facções criminosas, as
organizações policias estaduais sentiram a necessidade de um cadastro nacional que
permitisse um rastreamento no âmbito nacional das armas apreendidas. Na época, os
registros e lançamentos eram feitos de forma manual, o que impedia qualquer forma de
integração de informações entra as regiões.
Com intuito de resolver este problema e de modernizar a legislação criminal, foi
promulgado em 1997 a Lei 9.437 que instituiu o Sistema Nacional de Armas – Sinarm.
O Sinarm introduziu diversas mudanças na legislação brasileira, estabelecendo
condições para o registro e o porte de arma de fogo, deslocando o porte e a posse ilegal
de meras contravenções penais para crimes. Além disso, incluiu novas condutas
criminosas e passou para a Polícia Federal, sob a vigia do Ministério da Justiça, a
responsabilidade de cadastrar as armas de fogo.
No entanto, em 6 anos de vigência da Lei 9.437/97, a criminalidade continuava a
crescer e a violência, que antes era mais estranha a sociedade, começou a se tornar algo
mais usual e cotidiano. Desta forma, parcelas da sociedade, em vez de reunirem forças
para cobrarem maiores investimentos e fiscalização em setores sociais como educação,
moradia e esporte, continuaram a culpar o fácil acesso e a disponibilização das armas de
fogo para os cidadãos como um dos principais fatores deste crescimento da
criminalidade violenta.
5.2. O Estatuto do Desarmamento
5.2.1. A sua implementação e a promessa do fim da criminalidade.
“É realidade inconteste que o desarmamentismo
sustenta-se na mentira, cresce nas meias verdade,
floresce no simplismo e alimenta-se dos incautos.
Não há como coexistir como a verdade, mesmo que
seja apenas e tão somente com uma só gota dela
(...)”
“Mentiram para mim sobre o desarmamento” -
Flávio Quintela e Bene Barbosa
71
Como já visto anteriormente, a Lei 9.437/97, apesar de apresentar modificações
necessárias à matérias como a criminalização e um sistema integrado, não surtiu efeitos
práticos na luta contra a criminalidade. De fato, as mudanças por ela perpetradas
geraram consequências apenas para aqueles que tinham ou queriam adquirir uma arma
de forma legal.
Com isso, mais uma vez, as armas de fogo nas mãos dos civis foram utilizadas
como uma desculpa para mais um endurecimento legislativo. Segundo Ângelo Fernando
Facciolli:
“ A sociedade esperava mais (do Sinarm) ...- ou melhor, aspirava
apenas à redução da violência armada, o que acabou não
acontecendo! A frustação social foi o principal fator que contribuiu
para ruírem as estruturas do 1º Sinarm”
“ Embora útil o sistema – de acordo com o parecer da Secretaria
Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (Senasp\MJ)
– padeceu de limitações. A falta de visão, por parte do próprio
governo sobre a especificidade e natureza do trabalho realizado no
âmbito do Departamento de Polícia Federal e do próprio Comando
do Exército, estimulou o desenvolvimento, entre alguns segmentos da
sociedade, de uma espécie de sentimento que não há neste pais um
sistema confiável de controle em relação a armas de fogo e seus
subprodutos”109
Logo, tem-se neste momento uma parcela da sociedade insatisfeita com a lei
vigente na época. Acreditava-se que ela era falha por ainda permitir um fácil acesso as
armas de fogo, o que, para alguns, era um dos principais fatores da criminalidade.
Além deste “fracasso legislativo”, ocorreu uma forte pressão interna de ONGs,
como a Viva Rio e Sou da Paz e também da mídia na promoção da ilusão de que a
109 FACCIOLLI, Ângelo Fernando. Lei das Armas de Fogo. 5° Edição. Curitiba: Juruá, 2010. Pg. 16.
72
proibição da venda, do porte e da posse de armas de fogo iria acabar com a violência
armada, principalmente nos grandes centros urbanos.
Aliada a este panorama interno, existia uma pressão mundial que visava
combater o tráfico internacional de armas de fogo e endurecer as leis de controle e
acesso destes instrumentos. Nesta linha, em 1995, o Brasil participou do IX Congresso
da ONU sobre a Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado na cidade
do Cairo, Egito, no qual foi defendido o desarmamento civil como forma de política
criminal. Esta posição foi tratada na Resolução n° 09/1995 da ONU e na Orientação
91/477 da Comunidade Europeia, solicitando que todos os países adotassem políticas de
desarmamento nacional.
Neste mesmo ano, o Ministério da Justiça repassou ao Congresso Nacional a
Mensagem 785, de 19 de julho de 1995, em que ressaltou incontestável interesse na
“punição de fatos que comprometem bens e valores individuais e sociais, sem prejuízo
da garantia constitucional de todos os recursos essenciais à plenitude da defesa”.
Neste panorama, a Lei 10.826/03, chamada de Estatuto do Desarmamento, foi
aprovada no Congresso com apoio da mídia e da parcela da sociedade sob o intuito de
corrigir a falha lei do Sinarm, que não reduziu a criminalidade. Dessa forma, segundo
os que apoiaram a nova lei, esta seria responsável por introduzir ao Brasil uma era
moderna de segurança já que seria responsável por acabar com dois grandes males.
O primeiro mal seria o fato de que as armas dos criminosos são, em sua grande
maioria, provenientes dos cidadãos que, ao serem assaltados ou furtados, perdem a sua
posse. Logo, o estatuto do desarmamento, ao proibir o porte e dificultar a posse,
reduziria a quantidade de armas nas mãos dos delinquentes.
O segundo mal seria o fato do desarmamento da população reduzir os crimes
passionais, pois, sem as armas de fogo, discussões em bares ou no trânsito dificilmente
resultariam em morte.
Seguindo estas premissas e com a responsabilidade de reduzir a criminalidade
armada, foi aprovado o Estatuto do Desarmamento, que entrou em vigor no ano de
2004.
73
5.2.2. Análise do Estatuto e os seus principais problemas.
“Certamente, a retórica da liberdade, justiça e
imparcialidade tem sido ultimamente virada contra
as pretensões de grandiosidade; mas esses valores
têm sido comprometidos mais frequentemente
perante os dispositivos da lei mais oportunos,
discricionários e prejudiciais conforme colocados
em prática por policiais, juízes e políticos. Os
historiadores poderiam lembrar lucrativamente a si
mesmos que a história do crime é um assunto cruel,
não porque seja sobre o crime, mas porque é sobre
poder.”
V. A. C. Gatrell, “Crime, Authority and the
Policemen-state”
Apesar da intenção de se proibir tanto a venda como a posse e o porte de armas
de fogo pela população civil não ter logrado sucesso, o Estatuto do Desarmamento foi
aprovado e se mostrou como uma das leis mais restritivas do mundo quanto à aquisição
de armas de fogo pelos cidadãos de uma nação.
Em verdade, no projeto inicial, bem como na lei aprovada inicialmente, existia o
artigo 35 com a seguinte redação:
"art. 35 - É proibida a comercialização de arma de
fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades
previstas no art. 6º desta Lei".
Devido a uma grande pressão da sociedade brasileira e dos comerciantes de
armas e munições, o Governo resolveu realizar um referendo, promulgado pelo Senado
Federal com a seguinte questão: “O comércio de armas de fogo e de munição deve ser
proibido no Brasil? ”. O NÃO ganhou com 64% dos votos (59.109.265) e, graças à
74
vitória neste referendo, ainda é permitida a posse de armas de fogo no país110. Em
realidade, mais que o comercio de armas de fogo estava em jogo o direito do brasileiro
de adquirir armas, tanto que as propagandas eleitorais obrigatórias tratavam o assunto
como uma aprovação ou não do Estatuto do Desarmamento.
Adentrando mais especificamente no Estatuto, iremos analisar a presente
legislação de acordo com os seus capítulos.
O primeiro capítulo, disciplina o Sinarm e estabelece a sua competência de
identificar, licenciar, cadastrar a compra, o porte e a posse de armas de fogo e
derivados, como armas de caça, de tiro esportivo, colecionáveis, munições, etc.
O Sistema Nacional de Armas é instituído pelo Ministério da Justiça e de
utilização única da Polícia Federal e do Exército a depender do tipo de armamento.
De fato, a criação de um método que possibilita a integração e unificação do
sistema de controle de armas, bem como o cadastro e licenciamento em uma plataforma
única acessível a todas as Secretarias de Segurança Públicas estaduais, foi um grande
avanço que se iniciou com a Lei 9437/97 e prosseguiu com o Estatuto do
Desarmamento, que excluiu 50 sistemas descentralizados e desconexos que muito
prejudicavam a investigação criminal.111
No entanto, a grande crítica que se tece sobre o Sinarm se resume na
centralização dos exercícios unicamente sob a ação da Policia Federal. Atualmente, toda
a documentação necessária para se obter a licença ou sua renovação, bem como o
registro da arma deve ser obtida em uma das 121 delegacias federais do país. Entretanto,
o Brasil possui mais de 5.570 municípios, sendo que em territórios como o Estado do
Amazonas, o maior Estado da Federação, tem-se apenas duas delegacias e, nestes casos,
o indivíduo deve percorrer mais de mil quilômetros para poder obter seu registro112.
Ora, se analisarmos aqueles que dependem de armas para a sobrevivência, que é
o caso dos indígenas, dos caçadores de subsistência, dos ribeirinhos e até dos
fazendeiros que necessitam proteger seus rebanhos e plantações de animais selvagens,
estes estão todos na criminalidade. Digo isto pois eles não poderão, por questões de
110 Informação disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/plebiscitos-e-referendos/referendo-2005 .
Acessado em: 07/2016 111 FACCIOLLI, Ângelo Fernando. Lei das Armas de Fogo. 5° Edição. Curitiba: Juruá, 2010. Pg.
39. 112 Dados disponíveis em: http://www.pf.gov.br/institucional/unidades Acessado em: 07/2016
75
tempo e dinheiro, juntar todos os documentos necessários, bem como viajar mil
quilômetros para dar início a um pedido de posse ou licenciamento.
Esta aberração já produziu diversas vítimas, como o caso de três índios que
foram caçar com espingardas antigas e acabaram presos pela polícia do Mato Grosso,
sendo levados a unidade prisional de Água Boa, a 700 Km de Cuiabá. Em ato de
protesto, a tribo da etnia xavante, no dia 22 de fevereiro de 2016, bloqueou a BR-158,
que passa por suas terras, cobrando pedágio. Segundo o coordenador da Funai,
Alexandre Croner de Abreu:
“No sábado (21) eles saíram para caçar com algumas armas que eles
têm, são armas antigas. Eles caçam dentro da terra indígena, perto de
uma área de fazenda. Eles foram com o carro deles e entraram para
caçar nessa mata. O fazendeiro [dono da propriedade] viu o carro e
chamou a polícia. Quando ele viu que se tratava de índios acabou
voltando atrás, disse que não tinha problema em caçarem”
“Desses sete que foram detidos, três foram autuados por caça e porte
ilegal de arma e levados para o presídio. Em reunião na aldeia eles [os
indígenas] resolveram fechar a BR-158. Nós da Funai não recebemos o
auto da prisão”,113
Este foi apenas um exemplo de como o Estatuto do Desarmamento criminaliza
milhares de cidadãos por adotar uma política monopolista, que permite que a Polícia
Federal seja a única capaz de se envolver com questões relativas a obtenção, registro e
licenciamento de armas de fogo. Além de criminalizar a obtenção de armas de fogo, esta
disposição alimenta o tráfico ilegal, já que é necessário um registro válido e posse da
“guia de trânsito”, um documento que autoriza o cidadão a transportar a munição da loja
para sua residência, e que é adquirido somente nas delegacias federais.
Agora, se nem mesmo para o cadastro da arma se percorre centenas de
quilômetros para chegar a uma delegacia federal, muito menos faria um cidadão na
busca de autorização para a compra de munição que se utiliza para a caça ou proteção. 113 SOARES, Denise. Indígenas cobram pedágio de R$ 300 após prisão de 3 índios durante caça.
Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2016/02/indigenas-cobram-pedagio-de-r-300-
apos-prisao-de-3-indios-durante-caca.html Acessado em: 07/2016
76
Como consequência, tem-se um vasto mercado ilegal, que existe para alimentar casos
como este, fomentando ainda mais o contrabando de armas e munições.
O segundo capítulo da lei tangencia a questão do registro das armas de fogo,
estabelecendo em seu artigo 4º os requisitos necessários para se adquirir uma arma de
fogo de uso permitido. A diferença entre uso permitido e uso restrito se refere ao tipo de
armamento, bem como ao calibre. A armas de uso permitido podem ser adquiridas pelo
cidadão comum que cumpriu os requisitos deste artigo e todos os trâmites legais devem
ser tratados com a polícia federal. Já as armas de uso restrito devem ser tratadas com o
Exército Brasileiro, e esta categoria inclui as armas de grosso calibre como os fuzis,
bem como alguns calibres mais perfurantes como o 9mm.
Adentrando aos requisitos temos a seguinte redação:
Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado
deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes
requisitos,
I - Comprovação de idoneidade, com a apresentação de
certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça
Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a
inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas
por meios eletrônicos;
II – Apresentação de documento comprobatório de ocupação
lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão
psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma
disposta no regulamento desta Lei.
... (grifo meu)
Percebe-se neste artigo o segundo motivo do Estatuto do Desarmamento ser uma
das leis mais restritivas do mundo quanto ao acesso à armas de fogo pelos cidadãos.
Além de apenas 121 delegacias no Brasil, que possui 8.515.767,049 km² de área, serem
77
competentes para emitir uma licença e registrar armas de fogo, para se adquirir uma, o
primeiro requisito imposto pela lei é a efetiva necessidade.
Ora, o que seria a demonstração de uma efetiva necessidade? Se um cidadão
morar em uma área violenta, isto seria uma efetiva necessidade para os olhos do
Ministério da Justiça? Caso o cidadão esteja sofrendo ameaças, ou, caso apenas queira
uma arma para a proteção de sua casa, independente de morar em um bairro violento ou
sofrer ameaças, poderia lhe ser concedida a posse?
Configura-se então um critério subjetivo, uma saída para que se negue qualquer
pedido de posse, por “não se enxergar a efetiva necessidade” afirmando que o governo
já disponibiliza segurança pública. Não custa lembramos da Mensagem 785, na qual o
Ministério da Justiça ressaltou incontestável interesse na “punição de fato que
comprometem bens e valores individuais e sociais, sem prejuízo da garantia
constitucional de todos os recursos essenciais à plenitude da defesa”. Primeiro que a
segurança fornecida pelo governo em todas as suas esferas, é, no mínimo, ineficiente e
certamente insuficiente. Segundo que a segurança fornecida pelo Estado é uma
obrigação, e isto não exclui do cidadão a possibilidade de se defender.
Logo, não existe um direito de se possuir uma arma de fogo, pois mesmo se o
cidadão comprove não possuir qualquer antecedente criminal, ter domicílio e trabalho
fixos e ser apto, após um curso técnico, a manusear e atirar, ainda assim a ele pode ser
negado o “direito” de adquirir uma arma por caprichos do delegado.
Não se está diante de um direito, mas sim de um privilégio, concedido aqueles
que a administração pública queira.
“O direito à aquisição (melhor ainda: o direito ao acesso à
propriedade – de uma arma de fogo) é, essencialmente, um tema que
gravita na órbita constitucional. A legitimação à propriedade somente
pode ser limitada pela funcionalidade social do bem, sendo a
segurança consagrada como um direito social fundamental na Lex
máxima. A presente assertiva é importante pois, ao longo do texto
normativo, percebe-se o intento em criar embaraços ao cidadão de
bem em adquirir uma arma de fogo. Arriscamo-nos a ir mãos longe e
constatar uma verdade em desestimular não a aquisição mas a
78
própria intenção na propriedade – mina-se a expectativa pelo direito,
por via oblíqua.”114
Como se não bastasse, o artigo 5° do mesmo capítulo, em seu parágrafo
segundo, estabelece:
Art. 5o O certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em
todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de
fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou
dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele
o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.
§ 1o O certificado de registro de arma de fogo será expedido pela
Polícia Federal e será precedido de autorização do Sinarm.
§ 2o Os requisitos de que tratam os incisos I, II e III do art. 4o deverão
ser comprovados periodicamente, em período não inferior a 3 (três) anos,
na conformidade do estabelecido no regulamento desta Lei, para a
renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo. (Grifo meu).
Logo, de acordo com o texto legal, a cada três anos o cidadão que possui uma
arma de fogo deve refazer um teste prático e psicológico, pagar e adquirir as certidões
negativas de antecedentes criminais da Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral,
além de anexar comprovantes de ocupação lícita – como se o desempregado fosse mais
propício ao crime e, mesmo assim, fosse recorrer aos meios legais, pagando todas as
taxas e enfrentando os trâmites burocráticos para conseguir uma arma de fogo. Além de
anexar todos estes comprovantes, deve o cidadão pagar novamente todas as taxas
necessárias para a renovação do registro. Estamos diante de um processo
excessivamente burocrático e custoso.
Ou seja, o cidadão faz o registro da arma de fogo ao adquiri-la e deve renovar o
registro a cada três anos, mas o mesmo é feito quando se registra um carro? O ato de
aquisição ocorreu uma única vez e a licença para aquisição da arma é dada naquele
114 FACCIOLLI, Ângelo Fernando. Lei das Armas de Fogo. 5° Edição. Curitiba: Juruá, 2010. Pg. 80.
79
momento, não faz sentido falar em renovação de licença para aquisição ou manutenção
de uma arma. Nesta linha, Hely Lopes Meirelles define licença como:
“Licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o
Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as
exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a
realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p.
ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em
terreno próprio. A licença resulta de um direito subjetivo do
interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la
quando o requerente satisfaz todos os requisitos legais para sua
obtenção, e, uma vez expedida, traz presunção de definitividade”115
(Grifo meu)
Como ensina magistralmente o jurista, a licença é um ato vinculado e
definitivo que, se verificado todas as exigências requisitadas por lei, deve ser
concedida para o desempenho da atividade de forma permanente. Não bastasse o
legislador imbuir um requisito subjetivo para que seja autorizada a compra de uma
arma, deve-se também renovar o registro desta mesma arma por cada três anos. Ou
seja, a licença para a posse de arma de fogo vai de encontro com os princípios do
direito administrativo, que em vez adquirir um caráter definitivo, obriga o cidadão a
realizar uma renovação periódica sem justa causa.
Segundo Adilson Abreu Dallari, professor titular de direito administrativo da
PUC/SP:
“Trata-se do mais abominável terrorismo oficial, destinado a fazer
com que os cidadãos, por medo, se submetam à violação de seus
direitos constitucionalmente assegurados. A mencionada lei,
conhecida como lei do desarmamento, contém um formidável
repositório de inconstitucionalidades, (...)”
115Hely Lopes Meirelles Direito Administrativo Brasileiro. 29a. Edição. São Paulo: Malheiros, 2004.
p. 185/186.
80
“O que não tem qualquer sentido é desconstituir a licença, pelo
decurso de tempo. Cabe perguntar: quem foi a uma loja e
comprou legalmente uma determinada arma, passados os três
anos, o que deve fazer? “Descomprar” a arma? O Direito não
briga com o bom senso. Quando a lei agride o bom senso, é porque
lhe foi dada uma interpretação equivocada ou tem alguma
inconsistência ou incompatibilidade com a ordem jurídica. No
caso em exame, há uma pluralidade de inconstitucionalidades.”116
Novamente, o Estatuto do Desarmamento incluiu inúmeros brasileiros na
criminalidade ao exigir uma renovação de licença a cada 3 anos. Ora, aqueles que
compraram uma arma e não possuem mais condições de gastar a cada três anos centenas
de reais para renovar o registro devem jogar a arma fora? E aqueles que se encontram
longe de delegacias federais? Situação ainda pior é a daqueles que resolvem entregar as
armas para o governo em troca de uma remuneração irrisória e, ainda assim, não a
recebem.117
“ O que se buscou na prática é: 1) criar um tributo- via transversa e
ilegal; 2) desestimular a propriedade pela renovação do registro da
arma de fogo.”118
O terceiro capítulo do Estatuto versa sobre questões relacionadas ao porte,
proibindo-o para todos os cidadãos, sendo admissível apenas para segurança privada,
em período de trabalho e a alguns órgãos e categorias do governo como a polícia, juízes,
promotores, analistas e auditores da receita, exército etc. Cabe neste tópico levantar uma
indagação.
Segundo um artigo publicado na revista da Secretaria de Segurança Pública do
Estado de Goiás, os efetivos policiais se deparam com diversas dificuldades para o seu
preparo, entre elas:
116DALLARI, Adilson Abreu. Renovação de registro de armas de fogo. Disponível em:
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI40623,51045-Renovacao+do+registro+de+armas+de+fogo
Acessado em: 08/2016 117G1, Globo. Donos entregam armas, mas ficam sem indenização do governo federal. Disponível em:
http://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/2016/07/donos-entregam-armas-mas-ficam-sem-
indenizacao-do-governo-federal.html?utm_source=facebook&utm_medium=share-bar-
desktop&utm_campaign=share-bar Acessado em: 08/2016 118 FACCIOLLI, Ângelo Fernando. Lei das Armas de Fogo. 5° Edição. Curitiba: Juruá, 2010. Pg. 108.
81
“a)Efetivo insuficiente e sobrecarregado em diversas frentes de serviço,
dificultando o remanejamento de parcela para a instrução;
b)Falta de investimento e de logística que gera dificuldades na aquisição
de armamentos e munição para serem disponibilizados ao treinamento
policial;
c)Falta de uma metodologia de instrução de tiro policial eficiente e
eficaz;
d)Falta de instrutores devidamente qualificados, e falta de incentivo
para assumir o papel de multiplicador;
e)Cultura profissional, um tanto tradicionalista, que resiste a
atualização da instrução, que pode ser modificado através da interação
entre os órgãos de segurança publica com a promoção de investimento
nessa área;
f)Falta de uma estrutura física adequada para a prática ideal da
instrução de tiro policial;
g)Falta de uma análise mais aprofundada em relação à responsabilidade
de se investir no homem para garantir sua própria sobrevivência.” 119
Em média, um policial brasileiro dispara ao longo do seu treinamento até a sua
formação 70 vezes e, muitas vezes, só volta a disparar em casos de reciclagem.120
Como forma de comparação, o curso mais básico de tiro do clube Águia de Haia
em SP, oferece como conteúdo:121
Regras Básicas de Segurança
Conservação e Limpeza da Arma
Orientação referente a equipamentos
Balística
Teoria do Tiro de Precisão
Base do Esporte:
Prática do Tiro (250 disparos):
119CAMPOS, Alexandre Flecha. A importância da preparação do policial quanto ao uso da força letal.
Pg. 32/33. Disponível em: http://revista.ssp.go.gov.br/index.php/rebesp/article/viewFile/79/33 Acessado
em: 08/2016 120 Disponível em: http://abordagempolicial.com/2011/09/como-estao-as-escolas-de-formacao-policial/
Acessado em: 08/2016 121 Disponível em: http://www.aguiadehaia.com.br/cursos Acessado em: 08/2016
82
Nota-se que o curso mais básico de tiro oferecido por um clube ultrapassa a
média de tiros que um policial dispara em sua formação cinco vezes. Certamente, um
cidadão armado que cursar um módulo avançado ou específico para a aquisição do porte
de armas de fogo estará mais preparado do que um policial para lidar com a violência.
Além do despreparo, há muitos relatos sobre o armamento que o policial
utiliza, proveniente da fábrica brasileira Taurus. Dentre as reclamações, temos armas
que disparam sozinhas sem que se aperte o gatilho e muitas pistolas que emperram com
as cápsulas nas câmaras. Talvez a melhor proteção para população seja um cidadão
treinado, capacitado e armado.
“A Polícia Civil do RJ fez um teste para avaliar a eficiência das pistolas.
Foram separados lotes de dois dos modelos mais usados por policiais
civis e militares no estado. A perícia aconteceu nos dias 31 de março e 1º
de abril e agora saiu o resultado: das 55 pistolas testadas - todas
compradas há no máximo dois anos pela Polícia Civil - 36 apresentaram
problemas.”122
O quarto capítulo do Estatuto do Desarmamento nos remete aos delitos e as
penas. Dessa forma, cabe a estas penalidades reforçar medidas absurdas adotadas pela
lei como o caso do registro trienal. Logo, aquele que não conseguir renovar o registro,
seja por qualquer motivo, incidirá em posse irregular de arma de fogo de uso permitido,
e, assim como os índios do caso anteriormente levantado, poderão ir para a prisão com
uma pena mínima de um ano e máxima de três.
Já os sertanejos e fazendeiros que não conseguiriam viajar centenas de
quilômetros para adquirirem uma guia de tráfego e comprar munição de forma legal,
irão recorrer ao tráfico ilegal, podendo comprar até na fronteira a depender da
localidade. Dessa forma, podem ser enquadrados no comércio ou tráfico internacional
de arma de fogo, com uma mínima de quatro e máxima de oito anos.
A simples inviabilidade do ordenamento em fornecer mecanismos mais
simples, viáveis e práticos, força o cidadão a viver na ilicitude com embasamento
em uma das leis mais esdrúxulas do sistema normativo brasileiro.
O quinto capítulo trata de disposições gerais e o sexto das disposições finais.
122 NEVILLE, Pedro. Falhas em armas causam acidentes e geram muitas reclamações. Disponível em:
http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/05/falhas-em-armas-usadas-pela-policia-causa-acidentes-e-gera-
reclamacoes.html Acessado em: 08/2016
83
Cumpre falar também neste tópico sobre o tiro esportivo.
Infelizmente, as armas e munições utilizadas para o tiro esportivo, em sua
maioria são consideradas armas de uso restrito e, assim sendo, são submetidas ao
decreto R-105. Dessa forma, o Estatuto do Desarmamento considera que os
instrumentos utilizados no tiro esportivo – sejam eles armas de pressão que atiram
chumbo ou mesmo com munição real, mas que necessitam de um carregamento manual
de uma munição por tiro - são como armas restritas de uso militar. Segundo Júlio
Almeida:
“Atrapalha muito, porque ele (estatuto do desarmamento) não
faz distinção. Ele foi feito para tentar evitar um problema de
criminalidade, mas não há distinção para o esporte ali. Então acaba
atrapalhando demais. Você acaba sendo tratado como se fosse um
cara querendo comprar uma arma normal. Vamos ficar só nas
armas olímpicas, que não são usadas no dia a dia. Uma pistola livre,
que é uma arma que se carrega um a um, e é gigante a arma. Você
não vai andar com uma arma dessas na rua, mesmo que você queira.
E a lei não permite também que você ande com ela carregada. Essa é
a diferença do atleta desportivo. Quando você tira um porte para
andar com ela carregada, o atleta desportivo, mesmo a documentação
em dia, não pode andar com a arma carregada. Se for pego com arma
carregada está infringindo a lei. Então essa arma vai separada da
munição sempre. Ninguém vai querer fazer um assalto com uma arma
de competição. Não tem como. A 22 até poderia. Mas, se você tem
dinheiro para comprar uma arma com 5 tiros, você vai comprar uma
9 milímetros com 15 tiros. Ou uma 38, que vai ter uma efetividade
muito maior para fazer um assalto do que uma arma de
competição”.123
Segundo o paulista Felipe Wu, medalha de prata nas olimpíadas do Rio em
2016:
123ALLIATTI, Alexandre; MARINHO, Raphael; BREVES, Rodrigo; QUINTELLA, Thiago. Por
mudança na lei, atletas do tiro criticam estatuto do desarmamento. Disponível em:
http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2016/04/por-mudanca-na-lei-atletas-do-tiro-criticam-
estatuto-do-desarmamento.html Acessado em: 08/2016
84
“A medalha vai melhorar a minha vida. Mas infelizmente a
burocracia para quem quer praticar o esporte no Brasil vai
continuar”124
Ele explica que para se obter uma arma para a prática esportiva no Brasil leva-se
em média um ano. Este é o tempo do trâmite de toda a documentação de importação e
legalização do equipamento. “O que prejudica é que no Brasil a arma de prática
esportiva é tratada igual à arma de defesa”. A importação é necessária, na medida em
que os produtos nacionais são escassos e de má qualidade, sendo necessário o
Certificado de Importação Internacional (CII) e o Certificado de Registro (CR). Estes
tramites influenciam diretamente no preço: A pistola de que Felipe Wu utiliza custa na
Europa aproximadamente R$ 9 mil. Com os impostos no Brasil, este valor dobra. A
caixa de 50 munições custa em torno de R$ 100. “Essa quantidade eu uso em apenas
meia hora de treino”, ilustra Wu. “É muito caro e muito burocrático praticar tiro
esportivo no Brasil”, enfatiza.
Rosane Budag, atiradora esportiva e atleta olímpica afirma:
“A dificuldade maior é de importar equipamento. É muito caro, e
a munição também é importada. A gente não usa nada nacional. É
bem complicado. A gente aproveita as Copas (do Mundo de Tiro
Esportivo) para renovar o equipamento. São pecinhas. A arma já é
importada. Vem para o Brasil, a gente faz a legalização, fica tudo
certo. Mas as peças são caras. Para importar num processo normal,
leva muito tempo. A gente aproveita nas Copas e compra as peças.
Para fazer a importação normal da arma, leva muito tempo, dois
anos, dois anos e meio.125” (Grifo meu)
124 VICENTE, Marcos Xavier. Nem medalha resolveria burocracia para popularizar o tiro no Brasil,
lamenta Wu. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/esportes/olimpiadas/2016/nem-medalha-
resolveria-burocracia-para-popularizar-o-tiro-no-brasil-lamenta-wu-
7rpl145goqyjbmy8zx8w3sbj7?comp=whatsapp Acessado em: 08/2016 125ALLIATTI, Alexandre; MARINHO, Raphael; BREVES, Rodrigo; QUINTELLA, Thiago. Por
mudança na lei, atletas do tiro criticam estatuto do desarmamento. Disponível em:
http://globoesporte.globo.com/olimpiadas/noticia/2016/04/por-mudanca-na-lei-atletas-do-tiro-criticam-
estatuto-do-desarmamento.html Acessado em: 08/2016
85
Diante deste panorama, claramente existe uma tentativa de se desestimular a
prática de um esporte olímpico, esporte este responsável por trazer a primeira medalha
de ouro do país em uma Olimpíada com o atirador Guilherme Paranaese. Vê-se que o
Estatuto do Desarmamento impõe fortes barreiras financeira e burocráticas ao esporte.
Logo, vigora hoje no Brasil uma lei elitista, pois demanda dos interessados pelo
esporte muitos recursos para que se possa pagar todas as taxas necessárias de três em
três anos mais o preço da arma em uma loja cadastrada e a sua munição, que no Brasil,
pela falta de competitividade, é muito cara. Em determinados casos, a viagem para se
protocolar todos os documentos e adquirir a guia de trânsito nas poucas delegacias
federais presentes no território brasileiro pode também ser muito custoso.
O Estatuto é elitista também por criminalizar aqueles que não conseguem
realizar todos estes processos, em sua grande maioria por não possuírem meios que
custeiem todos estes gastos. Dessa forma, o peão ou o ribeirinho que possui uma
espingarda em sua casa e a utiliza como forma de sustento ou trabalho, hoje é um
criminoso por consequência de uma lei mal formulada.
Por fim, além de todo o exposto, o Estatuto do Desarmamento se mostra
inconstitucional.
A intervenção estatal no rol de direitos individuas do cidadão não deve atingir a
faculdade de se possuir ou não uma arma de fogo. Ora, sabe-se que as interferências
nestes direitos são raras e só podem ocorrer em face de direitos sociais aplicadas
justificadamente, como a limitação do direito à propriedade em face da função social, o
que não cabe no caso do desarmamento.
As políticas de desarmamento são ineficazes para se conter a criminalidade
violenta, como já visto nos capítulos anteriores deste trabalho e como será visto
especificamente para o caso Brasileiro no próximo capítulo.
Assim, o Estatuto do Desarmamento, além de dificultar que o brasileiro tenha o
direito de possuir armas de fogo, infringe uma série de direitos consagrados pela
Constituição Federal, como:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
86
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial; (Grifo meu)
5.3. O Estatuto de Desarmamento atingiu seus objetivos?
“A necessidade é a alegação de toda violação
humana. É o argumento dos tiranos; é o credo dos
escravos”
WILLIAM PITT
Sabe-se que a Lei 10.826/03 foi imposta a população com o objetivo de reduzir o
crime armado, com base em alegações de que o os homicídios cometidos de forma
passional pelos cidadãos comuns com posse de arma de fogo eram grandes. Além disso,
alegou-se também naquele momento que grande parte das armas em mãos dos
criminosos eram provenientes dos cidadãos que as possuíam de forma legal.
De início, e como é de conhecimento geral, o número de homicídios totais ou
crimes violentos armados não diminuíram, já o número de armas de fogo e de lojas e
clubes de armas diminuíram drasticamente. O estatuto de fato conseguiu desarmar o
cidadão legalista, mas não conseguiu reduzir os índices da violência armada.
87
Conforme os dados levantados pelo Centro de Pesquisa em Direito e Segurança
(CEPEDES), utilizando-se o banco de dados do Ministério da Saúde o DATASUS,
pode-se analisar os 10 anos seguintes a implementação do Estatuto do Desarmamento.
Como se pode observar, em 2004, o número total de homicídios foi de 48.374 e
em 2014, chegou-se a 59.681, apresentando um crescimento de 23,37%. Agora, se
analisarmos os homicídios cometidos com armas de fogo, afinal, este era o objetivo
principal de combate do Estatuto, tem-se um aumento de 25,06%, saindo-se de 2004
com 34.187 mortes para 42.755 em 2014.
Dessa forma, é inegável que houve um aumento dos homicídios nestes últimos
10 anos, tanto em números absolutos, quanto especificamente por armas de fogo. Vale
ressaltar que, desde 2011, o Brasil bate recordes de homicídios e hoje é considerado um
dos países mais violentos do mundo.
Se compararmos os dados anteriores ao Estatuto do Desarmamento com os
atuais, segundo Fabrício Rabelo, especialista em segurança pública:
“O mesmo crescimento se constata através de outros critérios
comparativos. Entre 1993 e 2003 – intervalo de 11 anos
imediatamente anterior ao estatuto -, foram registrados no Brasil
458.624 homicídios, sendo 292.735 como resultado do uso de armas
de fogo, ou seja, um percentual de 63,83%. Já de 2004 a 2014 (11
anos seguintes à lei), foram 571.631 homicídios, com 405.704 pelo
uso desse meio, isto é, 70,97% do total. A participação das armas de
88
fogo na prática homicida, portanto, aumentou 11,19% depois do
estatuto.” 126
“Outra também não é a conclusão se usados os critérios
analíticos pelas médias. Com os 458.624 homicídios entre 1993 e
2003, a média anual desses crimes foi de 41.693, sendo 26.612 com
uso de armas de fogo (292.735 ÷ 11). De 2004 a 2014, as mesmas
médias saltaram para 51.966 (total) e 36.882 (com arma),
respectivamente. Comparando-se as duas variações, denota-se que a
média anual de homicídios pós estatuto cresceu 24,64% e a dos
cometidos com arma de fogo aumentou 38,59%, incremento
consideravelmente maior – 13,95 pontos percentuais acima,
equivalendo a 56,62% amais. ” 127
Conforme demonstrado, os índices médios de homicídios dos dez anos
posteriores à instituição do Estatuto são superiores aos dos dez anos imediatamente
anteriores. Destaca-se que os números anteriores ao Estatuto incluem o período 1997-
2003, em que já se vivia o momento brasileiro da política desarmamentista.
No entanto, existem aqueles que acreditam no Estatuto do Desarmamento e
defendem que a sua implementação salvou milhares vidas.
Como bem afirma Rodrigo Garcia Vilardi:
“ A mesma discrepância pode ser verificada ao se comprar a
tendência de variação da mesma taxa, no período compreendido,
entre 2003 e 2006, primeiros anos de vigência da Lei n° 10.826/03. A
despeito da média nacional apresentar tendência de queda de 8,8%,
em 14 estados, foi observado o aumento da taxa de mortalidade por
PAF (projétil e arma de fogo, e, em 13, constatou-se a tendência de
126 REBELO, Fabrício. Contínuo crescimento de homicídios com arma de fogo desnuda ineficácia
desarmamentista. Disponível em: http://rebelo.jusbrasil.com.br/artigos/367766516/continuo-crescimento-
de-homicidios-com-arma-de-fogo-desnuda-ineficacia-desarmamentista Acessado em: 08/2016
127 REBELO, Fabrício. Contínuo crescimento de homicídios com arma de fogo desnuda ineficácia
desarmamentista. Disponível em: http://rebelo.jusbrasil.com.br/artigos/367766516/continuo-crescimento-
de-homicidios-com-arma-de-fogo-desnuda-ineficacia-desarmamentista Acessado em: 08/2016
89
queda. Nos dois polos, pode-se verificar o Estados de São Paulo com
queda de 40,5%, no período citado, e o Estado do Amazonas com
aumento e 80,9%. 128”
Ou seja, após o Estatuto do Desarmamento, que é uma lei federal e tem
aplicação nacional, mais da metade dos estados tiverem um aumento na média dos
homicídios, chegando o Estado do Amazonas a ter um aumento de 80%.
Em sua obra, Rodrigo Vilardi constata aquilo que já foi mencionado na
introdução deste trabalho: existem diversas variáveis que influenciam na criminalidade,
razão pela qual não se pode atribuir somente às políticas desarmamentistas ou
armamentistas a queda ou o aumento nos índices de homicídios.
Conforme o gráfico abaixou, percebe-se que após o ano de 2003 o Brasil viveu
uma queda em suas taxas de homicídios até o ano de 2012, na qual atingiu um recorde
histórico de 29 mortes por 100.000 habitantes.
128 VILARDI, Rodrigo Garcia. Direito penal e prevenção criminal: as experiências de São Paulo e Nova
Iorque. Tese de Doutorado. 2014. Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito.
90
Como, após 2003, os índices de homicídios diminuíram em número absoluto, se
na maioria dos estados brasileiros ocorreu um aumento destas taxas? Esta queda
nacional entre 2003 e 2011 muito se deve a uma vasta diminuição no número de
homicídios de 3 estados, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.
A taxa de homicídio de São Paulo sofre uma queda desde 1999, quando atingiu o
pico de 44 homicídios por 100 mil habitantes. O Rio de Janeiro atingiu seu pico em
1995 com 61,8/100.000. 129 O gráfico abaixo foi disponibilizado pela Secretaria de
Segurança Pública de São Paulo.
130
Logo, mesmo antes da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento os
índices de homicídios das maiores cidades do Brasil se encontravam em queda, e, por
serem as maiores e mais populosas cidades, a porcentagem nacional também caiu.
Digno de nota é o investimento em segurança pública realizado por estes estados
nos últimos anos.
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança pública, o gasto per
capita, em São Paulo, passou de R$ 47,00, em 1995, para R$ 69,50, em 2000, e para R$
156,40, em 2005; enquanto isso, no Rio de Janeiro, as médias foram de R$ 49,50,
121,70 e 240,10, respectivamente. Houve um significativo aumento de gastos nesses
129FANTIN JÚNIOR, Fidelis Antônio. Estudo Técnico n° 23/2015 – Brasília: Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, 2015. Pg. 14.
130Disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/acoes/leAcoes.aspx?id=33925 Acessado em: 08/2016
91
estados, mesmo considerando a inflação do período.131
Não apenas nestes estados, mas o investimento em segurança pública aumenta a
cada ano, chegando em 2014 à casa dos 69 bilhões de reais.
Agora, tendo como base o Mapa da Violência132, observa-se que o número de
homicídios por arma de fogo da ordem de 17.000 em 1993 e de 21.300 em 1996; já em
1998 (após a Lei 9.437/97), subiu para 24.800; e em 2012 (cerca de 9 anos após o
Estatuto do Desarmamento), teria sido de 40.100. Não parece que as leis de
desarmamento tenham reduzido homicídios, especialmente os homicídios cometidos por
criminosos habituais com arma de fogo.
Conforme já afirmado, a criminalidade é mais complexa do que a simples
apresentação e comparação de dados entre homicídios e armas de fogo, mas tudo indica
que a tentativa de se desarmar e diminuir os homicídios cometidos por PAF (projetil de
arma de fogo) não gerou resultados em âmbito nacional.
Outro índice interessante a ser analisado é de que segundo a edição de 2010
dos Indicadores de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, elaborado pelo IBGE, o
Nordeste se apresenta como a região brasileira com menor número de armas legais e é
a que apresenta a maior taxa de homicídios, na ordem de 29,6 por 100 mil habitantes.
Do outro lado, a Região Sul conta com a maior quantidade de armas legais no país e
131FANTIN JÚNIOR, Fidelis Antônio. Estudo Técnico n° 23/2015 – Brasília: Consultoria de Orçamento e
Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, 2015. Pg. 16
132 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015 – Morte matadas por armas de fogo.
Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf Acessado em:
08/2016
92
apresenta a menor taxa de homicídios, 21,4 por 100 mil habitantes. Não, os
criminosos não sentem a necessidade de registrarem as suas armas.133
Após analisar os dados relativos aos homicídios e descobrirmos que ele não foi
contido, principalmente o homicídio armado, cabe agora apenas reprisar sobre a
questão dos homicídios passionais.
Primeiramente, como já afirmado no primeiro capítulo, o índice de autoria
conhecida dos crimes de homicídios no Brasil é de aproximadamente 8%. Dessa
forma, nenhuma conclusão pode ser aferida com um índice tão baixo. No entanto, ao
viver sob uma criminalidade endêmica, sabe-se, conforme demonstrado pelo relatório
da ONU, que nestes casos a maioria dos crimes, entre eles os homicídios, são
relacionados ao crime organizado, guerra de gangues e tráfico de drogas e armas.
Como exemplo, o Ministério Público do Rio de Janeiro afirmou que subsistem
no Estado 60 mil homicídios ocorridos na última década ainda sem elucidação.
Destes, em 24 mil não se identificou sequer a vítima.134
Cumpre agora esclarecer se realmente a maioria do armamento nas mãos dos
criminosos são provenientes dos cidadãos que os tiveram roubados ou furtados.
De início, em estudos realizados no tempo pré-estatuto, com apoio do governo
e das organizações desarmamentistas como o Viva Rio, restou esclarecido que apenas
25,5% das armas apreendidas com criminosos entre 1951 e 2003 eram armas
legalmente registras que foram roubadas.135 Ou seja, para diminuir em apenas um
quarto das armas em posse dos criminosos seria necessário acabar com 100% das
armas nas mãos dos cidadãos, um custo muitíssimo caro para um retorno tão baixo.
Vale lembrar que estes estudos remontam a um período anterior ao Estatuto do
Desarmamento. Após 2003 a quantidade de autorizações concedidas pela Polícia
133 BARBOSA, Bene; QUINTELA, Flávio. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide
Editorial, 2015. Pg. 120. 134REBELO, Fabrício, Falta de esclarecimento dos crimes impede traçar perfil criminal brasileiro.
Artigo publicado em 09/2011. Disponível em https://jus.com.br/artigos/20081/falta-de-esclarecimento-
dos-crimes-impede-tracar-perfil-criminal-brasileiro Acessado em: 08/2016 135BARBOSA, Bene; QUINTELA, Flávio. Mentiram para mim sobre o desarmamento. Campinas: Vide
Editorial, 2015.pg. 68.
93
Federal despencou da faixa de 20.000 para um média de 4.000 armas por ano.136 No
entanto, a apreensão de armas de fogo pela polícia continua crescendo, bem como os
crimes cometidos com elas.
É ilógico ainda acreditar que, após 13 anos de vigência de uma das leis mais
restritas do mundo, responsável por fechar 90% das lojas especializada em armas e
munições no Brasil, as armas dos criminosos venham do cidadão. Em 2002, o governo
federal tinha em seu cadastro 2,4 mil estabelecimentos que comercializam armas e
acessórios; hoje tem-se um pouco mais de 200 em atividade.137
A própria ONU, que incentivou as políticas desarmamentistas, relatou no
estudo global sobre homicídios em 2011, que a maioria das armas dos cidadãos não é
desviada e é possuída para propósitos legítimos.
“In addition, from a global perspective, the significant order of
magnitude difference between global estimates of civilian firearm
ownership (hundreds of millions, according to estimates by Small
Arms Survey, 2007) and annual firearm homicides (hundreds of
thousands) indicates that the majority of civilian firearms are not
misused and are owned for legitimate purposes.”138 (Grifo nosso)
Recentemente, devido a um grande relato de extravios e roubos de armas das
forças de segurança do Rio de Janeiro, a Assembleia Legislativa daquele estado
resolveu instaurar um CPI para apurar o assunto, a chamada CPI Das Armas.
Apurou-se que entre 2005 e 2015, 1.749 armas foram extraviadas ou roubadas
da Polícia Militar e Civil do RJ, e mais de 17 mil de firmas de segurança privadas. Ou
seja, aproximadamente 19 mil armas foram repassadas para a criminalidade por
órgãos que deveriam garantir a nossa segurança para a criminalidade. 139
136Ibidem., Pg. 71. 137 Ibidem., Pg. 72. 138Global Study on Homicide 2011, UNDOC. Pg. 44. Disponível em:
https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/statistics/crime/global-study-on-homicide-2011.html
Acessado em: 08/2016 139 CABRAL, Isabela. Beltrame diz que falta de recursos impede controle informatizado de armas.
Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/38144 Acessado em: 08/2016
94
Mais alarmante ainda é o fato que, das 8.956 armas de fogo apreendidas apenas
no ano de 2015, em plena vigência do Estatuto do Desarmamento, cerca de 86% não
tiveram origem identificada. Isso significa que, apenas 14% das armas apreendidas
possuíam registro no Sinarm. Ainda, dentro destes 14%, 2% pertenciam a órgãos de
segurança pública e os dentro dos outros 12% estão armas pertencentes a pessoas
físicas e jurídicas.140
Cabe ainda ressaltar que apenas 69 Inquéritos Policias Militares foram
instaurados para apurar os extravios cometidos pela Policia Militar. Destes, 52 estão
em tramitação, e 16 foram arquivados, sendo que apenas um foi denunciado à
Justiça.141
José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro,
declarou que entre Janeiro e Junho de 2015, foram apreendidos 202 fuzis de assalto,
mais de um por dia. O Secretário afirma que um novo tipo de fuzil Kalashnikov,
modelo mais moderno das famosas AK-47, está circulando nas favelas, cuja origem
seria da Venezuela que o utiliza em suas forças armadas. Beltrame afirma que as armas
ilegais chegam pelas fronteiras do Brasil, principalmente com o Paraguai, por falta de
maior fiscalização do governo federal.
Em uma entrevista concedida à Época, o secretário afirma não ter dúvidas que o
problema se encontra nas fronteiras, de onde vem a maioria das armas utilizadas pelo
crime organizados e pelo tráfico.
“Normalmente vêm do Paraguai. Agora, nós temos Kalashnikok
que são novos. Não é mais o cabo de madeira, mas o de polímero. É
uma versão nova. Não é daquela leva que entrou aqui após a guerra
de Moçambique e Angola. Eu sei que a Venezuela fez uma grande
compra de fuzis. Não sei se 20 mil ou 30 mil unidades. Informação da
Inteligência me diz que esses fuzis são distribuídos de maneira
aleatória para os amigos do governo venezuelano. Não sabemos se
entram no Brasil pela Amazônia ou se chegam pelo Paraguai
140 CABRAL, Isabela. Beltrame diz que falta de recursos impede controle informatizado de armas.
Disponível em: http://www.alerj.rj.gov.br/Visualizar/Noticia/38144 Acessado em: 08/2016 141 G1, Globo. Relator diz que CPI das armas no RJ tem encontrado “coisas absurdas”. Disponível em:
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/04/relator-diz-que-cpi-das-armas-no-rj-tem-encontrado-
coisas-absurdas.html Acessado em: 08/2016
95
também. Nós estamos pegando aqui fuzis novos, Ak-47. E essa arma
tem uma peculiaridade que ninguém leva em conta: ela precisa de
uma munição própria, 762 por 39. Então, trazem o fuzil e sua
munição.”142
Logo, pode-se afirmar que o Estatuto do Desarmamento foi um fracasso. Não
cumpriu com a sua promessa de diminuir a criminalidade armada e hoje o Brasil lidera
o ranking de países com maior número de homicídios no mundo. O mesmo fracasso
pode ser observado no que tange ao número de armas na mão da criminalidade, na
medida em que apenas os cidadãos legalistas se viram desarmados e prejudicados pela
lei, enquanto o número de armas apreendidas pela polícia em posse da criminalidade
cresce ano após ano, sem contar com o aumento das apreensões de armas de guerra
como fuzis e granadas que, certamente, não tem proveniência nacional. Por fim, além
de não cumprir com nenhum de seus objetivos, a Lei 10.826/03 estimula o comércio
ilegal e insere milhares de brasileiros na criminalidade.
4.4. PL 3722/12.
“Dizem que o Governo, depois de proibir ao
cidadão comum usar armas, vai proibir ao Exército
possuir armas de uso exclusivo dos traficantes.”
Millôr Fernandes
Em face de um tema polêmico como o desarmamento, não seria de se espantar
que diversos projetos de leis e ADI`s poderiam surgir como forma de se modificar o
Estatuto do Desarmamento.
No entanto, das muitas tentativas ao longo destes 13 anos, quase todas foram,
por ora, infrutíferas, sendo o PL 3.722/12 do deputado Rogerio Peninha Mendonça do
PMDB/SC o único que apresenta condições reais de votação.
142 CORRÊA, Hudson. Beltrame: “estamos apreendendo fuzis ak-47 novos”. Disponível em:
http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/11/beltrame-estamos-apreendendo-fuzis-ak-47-novos.html
Acessado em: 08/2016
96
No dia 27 de outubro de 2015, o relatório sobre o projeto de lei foi aprovado
pela comissão especial da Câmara dos Deputados e espera ser pautado para ir a votação
do plenário. Cumpre notar que, desde a sua proposição, este é o PL com o maior apoio
popular.
Em Sede de justificação, o autor do projeto critica o Estatuto do Desarmamento,
alegando que o Referendo de 2005 esclareceu a opinião pública acerca do tema. O
parlamentar ainda aduziu que o estatuto não reduziu a criminalidade e não impediu o
acesso de armas de fogo para os criminosos. Logo, ele não atingiu a sua finalidade e só
cuidou de desarmar o que ele chama de “cidadão de bem”.
O PL 3.722/121 revogaria completamente o LEI 10.826/03, substituindo o
chamado Estatuto do Desarmamento pelo o que foi chamado de Estatuto da Legítima
Defesa.
Este é um projeto de lei extenso, com 78 artigos, quase o dobro da lei que está
em vigor atualmente e abrange praticamente todo o contexto das armas, desde as usadas
pelo exército, até as dos cidadãos, as dos colecionadores e as dos esportistas. Corrige
também algumas falhas do Estatuto do Desarmamento aqui já expostas. Além disso, o
PL prevê agravos para as penas dos crimes cometidos utilizando armas, e protege o
cidadão que comprovadamente fez uso de uma arma de fogo para sua legítima defesa.
De início, depreende-se do projeto que o registro e cadastro de armas não
necessita ser unicamente nas delegacias de polícia federal, podendo ocorrer também nas
delegacias de polícia civil cadastradas no Sinarm.
Outra mudança impactante do projeto foi a mudança dos requisitos para a
aquisição de arma de fogo, retirando o caráter discricionário que vigora atualmente que
permite que se negue a posse sem motivos aparentes. Pelo PL, a idade mínima para a
aquisição também foi reduzida dos 25 para aos 21 anos.
Em caso de aprovação, também será concedido a possibilidade do cidadão portar
a arma de acordo com diversos requisitos, entre eles, a comprovada aptidão técnica e
psicológica, além da licença de posse por cinco anos, sem o cometimento de qualquer
infração no decorrer deste tempo.
O projeto também reduziu as taxas de registro e renovação, bem como as da
licença tanto para a posse, quanto para o porte.
97
O quadro abaixo demonstrará algumas das mudanças introduzidas pelo PL
3.722/12143, comparando com o Estatuto do Desarmamento.
Lei 10.826/03 PL 3.722/12
Posse de arma condicionada a aprovação
da Polícia Federal.
Posse de arma é um direito assegurado
a qualquer cidadão apto e sem
antecedentes criminais. Fim da
discricionariedade.
Porte permitido apenas a políticos, forças
armadas e outras classes.
Porte permitido a qualquer cidadão que
comprove aptidão técnica e
psicológica.
Registro de arma não permite o seu
transporte (guia de transporte deve ser
emitida com antecedência).
Registro de arma permitirá o seu
transporte, desmontada, sem permitir
seu emprego imediato.
Solicitação de autorização de compra ou
transferência de arma deve ser expedida
em até 30 dias.
Autorização tem que ser expedida em
até 72 horas úteis.
Registro de arma tem validade de 3 anos. Registro de arma não expira.
Licença para porte tem validade de 1 ano
Licença para porte tem validade
mínima de 5 anos
Porte é proibido para colecionadores,
atiradores e caçadores (CAC), eles devem
transportar as armas de seu acervo
desmontadas e sem munição, impedindo
seu pronto uso.
Os CACs poderão portar uma das
armas de seu acervo, pronta para uso,
quando estiverem transportando suas
armas de/para o clube de tiro.
Apenas maiores de 25 anos podem
adquirir armas.
Maiores de 21 anos podem adquirir
armas.
Taxa de registro ou renovação de registro
de arma de fogo é de R$ 60,00
Taxa de registro é de R$ 50 quando a
arma é nova e R$ 20 quando é usada.
143 Tabela adquirida em: http://www.defesa.org/pl-37222012/ Acessado em: 08/2016
98
Taxa de expedição ou renovação de
licença de porte de arma de fogo é de R$
1.000,00
Taxa de expedição ou renovação de
licença de porte de arma de fogo é de
R$ 100,00
Cidadão pode ter até 2 armas curtas, 2
armas longas de cano raiado e 2 armas
longas de cano liso.
Cidadão poderá possuir até 3 armas
curtas, 3 armas longas de alma raiada e
3 armas longas de alma lisa.
Publicidade de armas de fogo pode ser
feita apenas em publicações
especializadas.
Não há restrições de nenhum tipo de
publicidade.
Logo, o presente projeto de lei procura pôr fim a uma legislação elitista,
discricionária e criminalizadora e ainda permitirá um maior acesso dos cidadãos às
armas de fogo, seja para legítima defesa, ou para o esporte, ou o trabalho.
Conclusão.
“ Falsa ideia de utilidade é a que sacrifica mil
vantagens reais por um inconveniente imaginário ou
de pequena importância; a que tiraria dos homens o
fogo porque incendeia e a agua porque afoga; que
só destruindo repara os males. As leis que proíbem
o porte de armas são leis dessa natureza.”
CESARE BECCARIA.
O presente trabalho buscou derrubar a premissa “mais armas, mais crimes” com
dados, comparações e análises de casos internacionais e da situação brasileira.
Sabe-se que ainda não foi encontrada nenhuma evidência que a política de
desarmamento civil tenha reduzido a criminalidade violenta em qualquer país. Ao
contrário, o desarmamento foi aplicado apenas aos cidadãos que legalmente tinham ou
queriam adquirir uma arma de fogo, além de facilitar as ações criminosas, pois, deste
99
momento em diante, os criminosos sabiam que a chance de suas vítimas reagirem eram
baixas.
É neste sentido que estudos realizados pela National Academy of Sciences e pelo
Center of Desease Control, nos Estados Unidos, após analisarem diversas publicações,
livros e pesquisas que estudavam as políticas desarmamentistas, como o banimento de
munições, os duros requisitos de registro, os longos períodos de espera, a política de
tolerância zero, etc. - não conseguiram identificar nenhum resultado que prove que
essas políticas reduzem a violência armada.
“In 2004, the National Academy of Sciences reviewed 253 journal
articles, 99 books and 43 government publications evaluating 80 gun-
control measures. Researchers could not identify a single regulation
that reduced violent crime, suicide or accidents. A year earlier, the
Centers for Disease Control reported on ammunition bans,
restrictions on acquisition, waiting periods, registration, licensing,
child access prevention and zero tolerance laws. CDC’s conclusion:
There was no conclusive evidence that the laws reduced gun
violence.”144 (Grifo meu)
Ainda nesta linha, a ONU, organização que na década de 90 incentivou ações de
desarmamento civil em diversos países, afirmou em seu “Global Study On Homicide
2011” que não existem provas de que políticas desarmamentistas conseguem diminuir
as taxas de homicídios.
“Identifying the effect of legislation on access to firearms requires
some caution: stricter legislation may not in fact reduce firearm access in
the absence of enforcement.” 145 (Grifo meu)
“These data do not prove a causal relationship between firearm
availability and gun assaults (in theory, higher gun ownership could also
be a consequence of higher assault rates, i.e. a defensive strategy of
144 LEVY, Robert, A. Gun Control Measures Don´t Stop Violence. Disponível em:
http://www.cato.org/publications/commentary/gun-control-measures-dont-stop-violence Acessado em:
08/2016 145 Global Study on Homicide 2011, UNDOC. Pg. 12. Disponível em:
https://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/statistics/crime/global-study-on-homicide-2011.html
Acessado em: 08/2016
100
citizens to deter potential aggressors). At the very least, however, the
relationship between gun availability and violent crime, including
homicides, does appear to be something of a vicious circle.”146 (Grifo
meu)
Logo, a supressão do direito natural de legítima defesa, que não é justificada, só
pode ser caracterizada como inconstitucional ou, conforme já demonstrado no segundo
capítulo deste trabalho, como característica única de governos opressores e tiranos
responsáveis por grandes males ao longo da história.
Infelizmente, criou-se uma forte cultura de repulsa e aversão ao instrumento
arma de fogo, e o emprego indevido do termo como sinônimo de violência só contribuiu
para agravar um cenário de falência do Estado diante da criminalidade.
E, ante a este quadro, esquece-se que as armas de fogo são equipamentos
importantes na prática desportiva, na qualificação profissional de categorias, no
aprimoramento disciplinar e consolidação de valores (serviço militar), na preservação
cultural de uma sociedade, na defesa de uma violência perpetrada injustamente, dentre
outros demais aspectos.
Cabe então, a esta obra, lembrá-los. Como preleciona o filósofo e teólogo
Thomas de Aquino:
“Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade,
também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de refutá-los
quando tem essa faculdade.”
146 Ibid., Pg. 45.
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