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C. S. LEWIS AS CRÔNICAS DE NÁRNIA VOL. IV Príncipe Caspian Tradução Paulo Mendes Campos

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C. S. LEWIS

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

VOL. IV

Príncipe Caspian

TraduçãoPaulo Mendes Campos

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ÍNDICE

1. A ILHA 2. A CASA DO TESOURO

3. O ANÃO

4. O ANÃO CONTA A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE CASPIAN

5. AS AVENTURAS DE CASPIAN NAS MONTANHAS

6. O ESCONDERIJO DOS ANTIGOS NARNIANOS

7. A ANTIGA NÁRNIA EM PERIGO

8. A PARTIDA DA ILHA

9. O QUE LÚCIA VIU

10. O RETORNO DO LEÃO

11. O LEÃO RUGE

12. MAGIA NEGRA E REPENTINA VINGANÇA

13. O GRANDE REI ASSUME O COMANDO

14. CONFUSÃO GERAL

15. ASLAM ABRE UMA PORTA NO AR

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A ILHA

Era uma vez quatro crianças – Pedro, Susana,Edmundo e Lúcia – que se meteram numaaventura extraordinária, já contada num livro quese chama O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.Ao abrirem a porta de um guarda-roupaencantado, viram-se num mundo totalmentediferente do nosso, e nesse mundo, um paíschamado Nárnia, tornaram-se reis e rainhas.Durante a permanência deles em Nárnia acharamque tinham reinado anos e anos; mas, aoregressarem pela porta do guarda-roupa àInglaterra, parecia que a aventura não tinhalevado quase tempo algum. Pelo menos ninguémnotara a sua ausência, e eles nunca contaram nadaa ninguém, a não ser a um adulto muito sábio.

Tudo isso tinha acontecido havia um ano.

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Os quatro encontravam-se, no momento em quevamos iniciar esta história, sentados numa estaçãode trem, rodeados por pilhas de malas. Estavamde volta ao colégio. Tinham viajado juntos atéaquela estação, que era um entroncamento; dentrode alguns minutos devia chegar o trem dasmeninas e, daí a meia hora, o trem dos meninos.

A primeira parte da viagem fora como seainda fizesse parte das férias; mas, agora que seaproximavam as despedidas, todos sentiam que asférias tinham acabado e que começavam outra vezas preocupações do ano letivo. Reinava grandemelancolia, e ninguém sabia o que dizer. Lúcia iapara um internato, pela primeira vez.

Era uma estação rural e vazia: além deles,não havia mais ninguém na plataforma. Derepente, Lúcia deu um grito agudo e rápido, comose tivesse sido mordida por um marimbondo.

– O que foi, Lúcia? – perguntou Edmundo,mas logo parou soltando um ruído parecido comhã!

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– Mas que coisa... – começou Pedro, quelogo também interrompeu a frase, dizendo, emvez disso: – Pare, Susana! Para onde você está mepuxando?

– Nem toquei em você! – respondeuSusana. – Tem alguém me puxando. Oh, oh, oh,pare com isso!

Todos notaram que os rostos dos outrostinham ficado muito pálidos.

– Senti a mesma coisa – declarouEdmundo, quase sem fôlego. – Parecia quealguém estava me arrastando. Um puxão horrível!Epa! Lá vem de novo!

– Também estou sentindo – gritou Lúcia. –Que coisa desagradável!

– Cuidado! – exclamou Edmundo. – Vamosficar de mãos dadas. Tenho certeza que isso émagia.

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– Isso mesmo, de mãos dadas – disseSusana. – Será que isso não vai parar?

Mais um instante, e a bagagem, a estação,tudo havia desaparecido, sem deixar um sinal. Asquatro crianças, agarradas umas às outras,ofegantes, viram então que se encontravam numlugar cheio de árvores, tão cheio de árvores quemal havia espaço para se mexerem. Esfregaram osolhos e respiraram fundo. Lúcia indagou:

– Pedro, você acha possível que tenhamosvoltado para Nárnia?

– Pode ser um lugar qualquer. Com estasárvores tão cerradas, não se vê um palmo adiantedo nariz. Vamos ver se encontramos um lugaraberto, se é que existe isso por aqui.

Com certa dificuldade, e levando arranhõesdos espinhos, conseguiram desembaraçar-se dosarbustos. E foi outra surpresa. Tudo se tornoumais brilhante. Após andarem alguns passos,encontraram-se à beira da mata, olhando de cimapara uma praia arenosa. A distância de alguns___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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metros, um mar incrivelmente sereno avançavasobre a areia em vagas tão minúsculas que quasenão se ouvia nenhum som. Terra à vista nãohavia, nem nuvens no céu. O sol estava ondedevia estar às dez horas da manhã, e o mar era deum azul deslumbrante.

Pararam, cheirando a maresia.

– Como é bom! — disse Pedro.

Daí a cinco minutos, estavam todosdescalços, patinhando na água fria e transparente.

– Muito melhor do que estar dentro de umtrem abafado, de volta ao latim, ao francês e àálgebra! – disse Edmundo. E durante algumtempo só se ouviu o barulho da água.

– De qualquer modo – disse então Susana –, suponho que tenhamos de fazer alguns planos. Afome não deve demorar.

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– Temos os sanduíches que a mãe nos deupara a viagem – lembrou Edmundo. – Eu, pelomenos, estou com os meus.

– Eu, não – disse Lúcia. – Deixei os meusna maleta.

– Eu também – disse Susana.

– Os meus estão no bolso do casaco, ali napraia – declarou Pedro. – São assim dois almoçospara quatro. Não é lá grande coisa.

– Neste momento – disse Lúcia – , queromais beber água do que comer.

Todos estavam com sede, como é naturalacontecer quando se brinca na água salgada, sob osol ardente.

– É como se a gente tivesse sofrido umnaufrágio – observou Edmundo. – Nos livros,sempre se encontra na ilha uma fonte de águafresca e cristalina. É melhor a gente procurá-la.

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– Vai ser preciso voltar para aquela matafechada? – perguntou Susana.

– De jeito nenhum – disse Pedro. – Se háfontes aqui, elas têm de vir para o mar; assim, seformos andando pela praia, deveremos achá-las.

Foram caminhando, primeiro sobre a areiaúmida e mole, depois sobre a areia grossa que seagarra aos dedos dos pés. Edmundo e Lúciaqueriam seguir descalços e deixar os sapatos ali,mas Susana advertiu-os de que isso não seriabom:

– Podemos não os encontrar depois, etalvez precisemos deles se ainda estivermos aquiao anoitecer, quando começar a esfriar.

Então pararam e começaram a calçar asmeias e os sapatos.

Depois de novamente calçados, iniciaram acaminhada ao longo da praia, com o mar àesquerda e a mata à direita. Fora uma ou outragaivota, era um lugar de todo tranqüilo. A mata___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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era tão densa e emaranhada que quase não sepodia olhar para dentro dela, e nada lá dentrodava sinal de vida, nem um pássaro, nem sequerum inseto.

Conchas, algas e anêmonas, ou pequenoscaranguejos nas poças das rochas, tudo isso émuito bonito; mas, quando se está com sede, fica-se logo cansado de tudo. Os quatro sentiam os péspesados e quentes. Susana e Lúcia tinham ascapas de chuva para carregar. Edmundo, ummomento antes de ser apanhado pela magia,deixara o casaco num banco da estação; assim,revezava-se com Pedro a levar o pesadosobretudo do irmão.

Daí a pouco a terra começou a encurvar-separa a direita. Cerca de um quarto de hora maistarde, depois de atravessarem uma crista pontuda,o terreno descrevia uma curva bastante fechada.Estavam de costas para a parte do mar quehaviam encontrado ao saírem da mata. Olhandopara a frente, avistaram além da água outra regiãodensamente arborizada.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Será que é uma ilha? – perguntou Lúcia.

– Sei lá – disse Pedro. E continuaram emsilêncio. O terreno em que pisavam seaproximava cada vez mais do terreno oposto, eeles esperavam encontrar a qualquer momento umlugar em que os dois se juntassem. Mas erasempre uma decepção. Chegaram a algunsrochedos que tiveram de escalar e do topopuderam ver bastante longe.

– Ora bolas! Não adianta – disse Edmundo.– Não vamos chegar nunca à outra mata. Estamosnuma ilha!

Era verdade. Nesse ponto, o canal que osseparava da outra costa não tinha mais de trintaou quarenta metros. Mas era o seu ponto maisestreito.

– Olhem! – disse Lúcia de repente. – Que éaquilo? – e apontou para uma coisa sinuosa,comprida e prateada que se via na praia.

– Um riacho! Um riacho! – gritaram todos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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e, mesmo cansados, não perderam um segundopara descer os rochedos e correr para a águafresca. Como sabiam que bem mais acima, longeda praia, a água seria melhor para beber,dirigiram-se logo para o lugar em que o riachosaía da mata. O arvoredo ainda era denso, mas oriacho transformara-se num fundo curso d’água,deslizando entre altas margens musgosas, demodo que uma pessoa inclinada podia segui-lopor uma espécie de túnel vegetal. Ajoelhando-sejunto da primeira poça borbulhante, beberam atéficar saciados, mergulhando o rosto na água, edepois os braços até os cotovelos.

– Bem... – disse Edmundo. – E aquelessanduíches?

– Não seria melhor economizá-los? –atalhou Susana. – Pode ser que mais tardeprecisemos ainda mais deles.

– Seria ótimo – observou Lúcia – sepudéssemos prosseguir sem ligar para a fome,como quando a gente estava com sede.

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– É... mas e os sanduíches? – repetiuEdmundo. – Não vale a pena economizá-los, poispodem estragar. Aqui faz muito mais calor do quena Inglaterra, e eles estão em nossos bolsos já háalgumas horas.

Assim, dividiram os dois sanduíches porquatro. Ninguém matou a fome, mas era melhordo que nada. Depois, começaram a imaginar oque seria a refeição seguinte. Lúcia queria voltarao mar e apanhar camarões, mas desistiu quandoalguém observou que ninguém tinha uma rede.Edmundo sugeriu que apanhassem nos rochedosovos de gaivota, mas, pensando melhor, ninguémse lembrava de já ter visto um ovo de gaivota.Mesmo que encontrassem algum, não saberiamcozinhá-lo. Pedro não teve coragem de dizer queos ovos, mesmo crus, valeriam a pena. Susanaainda achava que não deviam ter comido ossanduíches tão cedo. Finalmente Edmundo disse:

– Só há uma coisa a fazer: temos deexplorar a mata. Ermitões e cavaleiros andantes, eoutra gente parecida, sempre conseguiram viver,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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de uma ou de outra forma, dentro de uma floresta.Encontravam raízes, sementes, sei lá o que mais...

– Que tipo de raízes? – indagou Susana.

– Acho que raízes de árvores – disse Lúcia.

– Vamos embora – disse Pedro. Edmundotem razão. Temos de tentar qualquer coisa.

Começaram a andar ao longo do riacho.Não foi nada fácil. Quando não eram obrigados ase abaixar sob os ramos, tinham de passar porcima deles. Andaram aos trambolhões entremoitas de flores, rasgando as roupas, molhandoos pés no riacho. E, em torno, apenas um grandesilêncio.

– Olhem! Olhem! – exclamou Lúcia. –Parece uma macieira.

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E era. Subiram arquejantes pela encosta,abrindo caminho pelo mato, e acabaramencontrando uma grande árvore carregada demaçãs douradas, rijas, sumarentas. Não podia sermelhor.

– E esta árvore não é a única – disseEdmundo, de boca cheia. – Olhe ali uma outra,outra lá...

– Há dezenas, não há dúvida – disseSusana, deitando fora a semente da primeira maçãe tirando outra da árvore. – Isto aqui deve ter sidoum pomar, muito tempo atrás, antes que o matocrescesse.

– Houve então um tempo em que esta ilhafoi habitada – disse Pedro.

– E o que é aquilo? – perguntou Lúcia,apontando para a frente.

– É um muro, um velho muro de pedra –disse Pedro.

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Abrindo caminho entre os ramoscarregados, alcançaram o muro. Era muito antigo,arruinado aqui e ali, cheio de musgos etrepadeiras, mais alto do que quase todas asárvores. Ao chegarem mais perto, encontraramum grande arco, que deveria ter tido antes umportão, mas agora estava quase totalmenteocupado pela mais frondosa de todas asmacieiras. Tiveram de quebrar alguns ramos parapoder passar. Quando atravessaram, começaram apiscar, pois a luz do dia se tornara de repentemuito mais intensa. Achavam-se num amploespaço aberto, cercado de muros. Sem árvores: sómato rasteiro, malmequeres, hera e paredescinzentas. Mas o lugar era claro e sereno,pairando ali uma certa melancolia. Os quatrodirigiram-se para o centro dele, satisfeitos porqueagora podiam esticar braços e pernas.

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A CASA DO TESOURO

– Isto aqui não era um jardim! – disseSusana momentos depois. – Aqui havia umcastelo, e este deve ter sido o pátio.

– É isso mesmo – concordou Pedro. –Aquilo ali, não há dúvida, é a ruína de uma torre.Aquilo lá deve ter sido um lanço de escada quelevava para o alto da muralha. Olhem aquelesdegraus naquela porta: deve ter sido a entrada dosalão nobre.

– Pela aparência, isso foi há séculos – disseEdmundo.

– É, há séculos – falou Pedro. – Gostaria de

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saber quem viveu neste palácio e há quantotempo!

– Tudo isso me causa uma sensaçãoestranha – observou Lúcia.

– Verdade, Lu? – perguntou Pedro, olhandofixamente para a irmã. – Porque comigo estáacontecendo a mesma coisa... A coisa maisestranha que nos aconteceu neste dia tão estranho.Pergunto a mim mesmo onde estaremos... o quepode significar tudo isso...

Enquanto falavam, atravessaram o pátio etranspuseram a porta do antigo salão, agora muitosemelhante ao pátio, pois o telhado desaparecera,e havia muito o salão não passava de um enormerelvado salpicado de malmequeres, embora maisestreito e curto do que o pátio e com as paredesmais altas. Do outro lado, cerca de metro e meiomais alto que tudo, destacava-se uma espécie deterraço.

– Vocês acham que isto seria realmente umsalão? – perguntou Susana. – Sendo assim, que___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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vem a ser aquele terraço?

– Boboca! – replicou Pedro (que, derepente, ficara bastante excitado). – Não estávendo? Aquilo era o estrado da mesa real, aoredor da qual se sentavam o rei e os grandessenhores. Parece até que você se esqueceu de quenós mesmos fomos reis e rainhas e tivemos umestrado igual no nosso salão nobre.

– No castelo de Cair Paravel – continuouSusana, numa voz cantante e sonhadora – , na fozdo grande rio de Nárnia. Como poderia meesquecer?

– Parece que estou vendo o nosso castelo! –disse Lúcia. – Este salão deve ter sido muitoparecido com o grande salão onde demos tantosbanquetes. Podíamos fazer de conta que estamosde novo em Cair Paravel.

– Infelizmente sem banquete... – comentouEdmundo. – Está anoitecendo. Vejam como assombras estão compridas. E já repararam comoestá frio?___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Se temos de passar a noite aqui, o melhoré fazer uma fogueira – propôs Pedro. – Eu tenhofósforos. Vamos procurar lenha seca.

A proposta era sensata. Durante meia horatrabalharam a valer. O pomar que tinhamatravessado não era grande coisa para umafogueira. Experimentaram o outro lado do castelo.Passando por uma porta lateral, encontraram-senum labirinto de corredores e velhas salas, quenão passavam agora de um emaranhado deespinheiros e rosas-bravas. Descobriram umabrecha na muralha e, penetrando num maciço deárvores mais antigas e frondosas, acharam muitosramos caídos, madeira meio apodrecida, lenhafina e folhas secas. Juntaram uma boa pilha delenha sobre o estrado. Junto à parede do lado defora, acabaram descobrindo o poço, todo cobertode ervas. Quando as afastaram, viram que a águacorria lá embaixo, fresca e cristalina. A volta dopoço, de um dos lados, havia vestígios de umpavimento de pedra. As meninas foram colhermais maçãs, e os meninos acenderam o fogo sobreo estrado, bem no cantinho entre as duas paredes,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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que lhes parecia o lugar mais quente e abrigado.Foi difícil fazer pegar o fogo, mas por fimconseguiram. Sentaram-se os quatro de costaspara a parede, voltados para a fogueira. Tentaramassar maçãs espetadas em pedaços de pau, masmaçãs assadas só são boas com açúcar. – Alémdisso, ficam tão quentes que não podem sertocadas com a mão, e quando esfriam já não valea pena comê-las. Tiveram, portanto, de sesatisfazer com maçãs cruas, o que levou Edmundoa afirmar que, afinal, a comida do colégio não eratão ruim assim.

– Não ia achar ruim se tivesse aqui agoraum bom pedaço de pão com manteiga –acrescentou ele.

Mas o espírito de aventura já acordaraneles, e nenhum dos quatro, na realidade, preferiaestar no colégio.

Depois de comer a última maçã, Susanalevantou-se e foi ao poço beber água. Voltou comalguma coisa na mão.

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– Olhem! Vejam o que encontrei. –Entregou a Pedro o que trazia e sentou-se.

Pelo jeito e pela voz, parecia que Susana iachorar. Edmundo e Lúcia, ansiosos por ver o quePedro tinha na mão, inclinaram-se para a frente...para um objeto pequeno e brilhante, que refletia aluz da fogueira.

– Confesso que não estou entendendo –disse Pedro, com a voz embargada, passando aosoutros o objeto.

Era uma pequena peça de xadrez, detamanho comum, mas extraordinariamentepesada, por ser de ouro maciço. Tratava-se de umcavalo cujos olhos eram dois rubis minúsculos, oumelhor... um deles, porque o outro se perdera.

– Nossa! – disse Lúcia. – É exatamenteigual a um daqueles cavalos de ouro com quecostumávamos jogar em Cair Paravel... quandoéramos reis e rainhas.

– Nada de tristeza! – disse Pedro a Susana.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Não posso evitar – falou Susana. – Estou-me lembrando daqueles bons tempos. Costumavajogar xadrez com faunos e gigantes simpáticos.Fiquei me lembrando das sereias que cantavam...do meu lindo cavalo... e... e...

– Bem – interrompeu Pedro, num tom devoz bastante diferente. – Vamos deixar defantasias e pensar a sério.

– Em quê? – perguntou Edmundo.

– Será que ninguém adivinhou ondeestamos?

– Fale logo – disse Lúcia. – Estou sentindoque há um mistério neste lugar.

– Vamos, Pedro, estamos ouvindo – disseEdmundo.

– Muito bem: estamos nas ruínas de CairParavel.

– Ora! – exclamou Edmundo. – Como é

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que você sabe? Estas ruínas têm séculos. Reparenaquelas árvores. Olhe para aquelas pedras. Hácentenas de anos que não vive ninguém aqui.

– Certo – concordou Pedro. – Aí é que estáo problema. Mas vamos deixar isso para depois.Consideremos as coisas uma por uma. Primeiro:este salão é exatamente igual ao de Cair Paravel,na forma e no tamanho. Imaginando um telhado eum chão colorido, em vez da relva, e tapeçariasnas paredes, temos o salão nobre dos banquetes.

Todos ficaram calados.

– Em segundo lugar – continuou Pedro – , opoço é exatamente no local do nosso. E também éigualzinho em forma e tamanho.

Ninguém o interrompeu.

– Em terceiro lugar: Susana acaba deencontrar uma das nossas peças de xadrez... ouuma peça igualzinha às nossas. Em quarto lugar:não se lembram de que, na véspera da chegadados embaixadores do rei dos calormanos,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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plantamos um pomar logo depois do portãonorte? O mais poderoso espírito das árvores, aprópria Pomona, veio abençoá-lo. E foramaqueles animaizinhos simpáticos, as toupeiras,que cavaram tudo. Será possível que tenham seesquecido da engraçada dona Alvipata, atoupeira-chefe, encostada na enxada, dizendo:"Acredite, Real Senhor, um dia ainda há de ficarcontente por ter plantado estas árvores frutíferas."E ela estava com a razão!...

– Eu me lembro e muito bem – disse Lúciabatendo palmas.

– Mas repare, Pedro – disse Edmundo – ,tudo isso que você está dizendo deve serbobagem. Para começar, o pomar que plantamosnão chegava até os portões! Não seríamos tãobobos para fazer uma coisa dessas.

– É claro que não: foi o próprio pomar queavançou até aqui – explicou Pedro.

– Além disso – continuou Edmundo – ,Cair Paravel nunca foi uma ilha.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Já pensei nisso também. Mas era... comoé mesmo que se diz... uma península. Quase umailha. Você não acha que pode ter virado uma ilha?É possível que alguém tenha aberto um canal.

– Espere aí... – disse Edmundo. – Fazsomente um ano que deixamos Nárnia. E quer meconvencer de que, em um ano, os castelos caíram,as florestas cresceram, as árvores que plantamosse alastraram... e sei lá mais o quê? Tudo isso éimpossível!

– Tenho uma idéia – disse Lúcia. – Se istoé realmente Cair Paravel, deve haver uma portajunto ao estrado. Devemos estar de costas paraela. Vocês se lembram... era a porta que dava paraa sala do tesouro.

– Parece que não há porta nenhuma – dissePedro, levantando-se.

A parede por detrás deles estava coberta dehera.

– É fácil verificar – declarou Edmundo,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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agarrando um pedaço de lenha. E começou agolpear a parede revestida de hera.

Tum-tum, batia a madeira contra a pedra,tum-tum... De repente, bum, um barulho muitodiferente, um som oco de pancada na madeira.

– Opa! Acertamos em cheio! – exclamouEdmundo.

– Seria melhor arrancar esta hera toda –propôs Pedro.

– Deixem isso pra lá! – protestou Susana. –Amanhã teremos muito tempo. Se temos depassar a noite aqui, não acho a menor graça umaporta atrás de mim e um buraco escuro, de ondepode sair sei lá o que, fora a umidade e ascorrentes de ar. E não demora a ficar escuro.

– Que idéia é essa, Susana?! – disse Lúcia,lançando um olhar de reprovação. Mas os doismeninos já estavam tão entusiasmados que nãoderam ouvidos ao conselho de Susana.Arrancavam a hera com as mãos e com o canivete___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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de Pedro, até que este se partiu. Pegaram então ocanivete de Edmundo e continuaram. Nãodemorou para que o lugar onde estavam sentadosficasse coberto de hera. Mas, finalmente, a portaapareceu.

– Fechada, como era de esperar –comunicou Pedro.

– Mas a madeira está podre – disseEdmundo. – É fácil arrancá-la aos pedaços, e agente até arranja mais lenha para a fogueira.Ajudem aqui!

Não foi tão fácil quanto supunham. Antesde terem terminado, o salão nobre estava envoltoem penumbra e as primeiras estrelas brilhavam.Susana não foi a única a sentir um ligeiro calafrioquando os meninos, de pé sobre um monte demadeira, esfregaram as mãos e olharam para oburaco frio e escuro que acabavam de abrir.

– Precisamos de uma lâmpada – dissePedro.

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– Para quê? – perguntou Susana. – Comodisse Edmundo...

– Disse, mas já não digo! É verdade quenão estou entendendo muito bem, mas logoveremos. Suponho, Pedro, que você vai descer.

– Não tem outro jeito! Vamos, Susana!Coragem! Não vamos bancar as crianças, agoraque voltamos para Nárnia. Aqui, você é rainha. Ebem sabe que ninguém pode dormir descansadocom um mistério destes por desvendar.

Tentaram fazer archotes de varascompridas, mas não deu certo. Se voltavam aponta acesa para cima, a chama se apagava; se avoltavam para baixo, ficavam com as mãoschamuscadas e os olhos ardendo. Por fim,decidiram usar a lanterna que Edmundo ganharacomo presente de aniversário, menos de umasemana atrás. Edmundo, com a luz, entrouprimeiro; depois Lúcia, Susana e Pedro, fechandoo cortejo.

– Estou no alto de uma escada – anunciou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Edmundo.

– Conte os degraus – sugeriu Pedro.

– Um, dois, três – foi contando Edmundo,descendo com cuidado, até chegar a dezesseis. –Pronto, cheguei ao fim!

– Estamos em Cair Paravel! – exclamouLúcia. – Eram exatamente dezesseis degraus. – Eninguém mais falou, até que todos se juntaram nofundo da escada. Foi então que Edmundocomeçou, lentamente, a descrever um círculo coma lanterna.

– O-o-o-oh! – disseram as crianças aomesmo tempo.

Pois todos se convenceram de que era naverdade a velha sala de Cair Paravel, onde tinhamreinado como reis e rainhas de Nárnia. Ao centrohavia uma espécie de corredor e, de cada um doslados, a pequena distância umas das outras,erguiam-se ricas armaduras, como cavaleirosguardando um tesouro. Entre as armaduras havia___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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prateleiras cheias de coisas preciosas: colares,pulseiras, anéis, vasos de ouro, grandes dentes demarfim, diademas e correntes de ouro, e muitaspedras preciosas amontoadas ao acaso, como sefossem batatas – diamantes, rubis, esmeraldas,topázios e ametistas. Debaixo das prateleirasenfileiravam-se grandes arcas de carvalho,reforçadas com barras de ferro, muito bemacolchoadas por dentro. Fazia um frio horrível, eo silêncio era tal que podiam ouvir a própriarespiração. Os tesouros estavam cobertos depoeira. A sala, abandonada havia tanto tempo,entristecia-os e assustava-os um pouco. Foi porisso que, nos primeiros instantes, ninguémconseguiu falar.

Depois, começaram a andar de um ladopara o outro, a pegar as coisas, examinando-asbem. Era como se encontrassem velhos amigos.Se você estivesse lá, teria escutado exclamaçõescomo estas:

– Olhem! Os anéis da nossa coroação!Lembram?...___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Aquela não é a armadura que você usouno grande torneio das Ilhas Solitárias?

– Lembram que o anão fez isto para mim?

– E quando eu bebi naquela taça enorme?

– Lembram... Vocês lembram?... E, derepente, Edmundo disse:

– Não podemos gastar as pilhas destamaneira. Sei lá quantas vezes vamos precisar dalanterna. O melhor é cada um pegar o que lheinteressa e irmos lá para fora.

– Temos de levar os presentes – dissePedro. Pois, há muito tempo, num Natal passadoem

Nárnia, Susana, Lúcia e Pedro tinhamrecebido alguns presentes que, para eles, valiammais do que todo o reino. Edmundo nada receberaporque não estava com eles. (A culpa tinha sidosó dele: se quiserem saber como foi, podem ler nolivro O leão, a feiticeira e o guarda-roupa.)___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Todos concordaram com Pedro eavançaram pelo corredor, em direção à porta maisafastada da sala do tesouro, onde encontraram ospresentes. O de Lúcia era o menor: só umfrasquinho. Mas o frasquinho não era de vidro,era de diamante, e estava ainda cheio do elixirmágico que podia curar quase todos os ferimentose doenças. Lúcia não disse nada e pareceu muitosolene ao retirar o frasco do lugar onde estava eguardá-lo consigo. O presente de Susana tinhasido um arco e flechas e uma trompa. O arcoainda estava lá, bem como a aljava de marfimcheia de setas emplumadas, mas...

– Susana, onde está a trompa? – perguntouLúcia.

– Puxa vida! – disse Susana, depois depensar um pouco. – Agora é que me lembro: euestava com ela no último dia, quando fomos caçaro Veado Branco. Devo ter perdido a trompa,quando voltávamos para... para o nosso mundo.

Edmundo assoviou. Perda irreparável, na

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verdade, porque a trompa era mágica: era tocar enunca faltava o auxílio necessário.

– Justamente o que mais poderia nos ajudaragora – disse Edmundo.

– Não faz mal – disse Susana – , aindatenho o arco.

– Será que a corda ainda está boa, Su? –perguntou Pedro.

Fosse pela magia na atmosfera da sala dotesouro ou por qualquer outra coisa, a verdade éque tudo estava funcionando bem. Havia duascoisas que Susana fazia realmente bem: manejar oarco e nadar. Agarrou o arco e deu um puxão nacorda, que começou a vibrar. Um som agudoencheu a sala. E aquele som despertou nascrianças, mais que tudo, a lembrança dos velhostempos, as batalhas, as caçadas, as festas...

Depois que Susana colocou a aljava aoombro, Pedro foi buscar o seu presente: o escudocom o grande leão vermelho e a espada real.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Bateu com os dois no chão para sacudir o pó.Colocou depois o escudo no braço e prendeu aespada na cintura. A princípio receou que estaestivesse enferrujada e não saísse da bainha.Engano. Com um movimento rápido, ergueu aespada bem alto, iluminando-a à luz da lanterna.

- É a minha espada Rindon: aquela com quematei o lobo!

Sua voz tinha uma nova vibração: todossentiram que se tratava outra vez de Pedro, oGrande Rei. E em seguida se lembraram de quetinham de poupar as pilhas.

Subiram a escada, atiçaram a fogueira edeitaram-se juntinhos para não desperdiçar ocalor. O chão era duro e incômodo, mas acabaramadormecendo.

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O ANÃO

Dormir ao ar livre tem um grandeinconveniente: a gente acorda cedo demais. Elogo que acorda não há remédio senão levantar-se, porque o chão é duro e incômodo. A situaçãoainda piora se para a primeira refeição só houvermaçãs, e se o jantar da véspera tiver consistidojustamente em maçãs. Depois de Lúcia ter dito –com toda a razão – que fazia uma magníficamanhã, ninguém encontrou mais nada agradávelpara dizer. Edmundo exprimiu o que todossentiam:

– Temos de deixar a ilha!

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Após beberem água do poço e lavarem orosto,

seguiram o riacho até a praia e começarama olhar o canal que os separava do continente.

– Vamos ter de atravessar a nado – falouEdmundo.

– É fácil para Su – disse Pedro. (Susanaganhara prêmios de natação no colégio.) – Para osoutros, não sei, não.

Por “outros” ele queria dizer Edmundo, quemal conseguia dar duas braçadas, e Lúcia, quemal se agüentava à tona.

– Seja como for – observou Susana – , émuito possível que haja correntes aqui. Papai vivedizendo que a gente não deve nadar em lugaresdesconhecidos.

– Escute, Pedro – disse Lúcia – , sei quepareço um prego nadando, no colégio; mas não selembra de que todos nós nadávamos muito bem___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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há muito tempo... se é que foi há muito tempo...quando éramos reis e rainhas em Nárnia?Também montávamos muito bem e fazíamos umaporção de coisas. Você não acha que...

– Ora – replicou Pedro – , naquele tempoéramos pessoas grandes. Reinamos durante anos eanos e aprendemos a fazer tudo. Mas agoraestamos com a nossa verdadeira idade.

– Oh! – exclamou Edmundo, num tom devoz que obrigou todos a prestarem atenção. – Jáentendi tudo!

– Entendeu o quê? – perguntou Pedro.

– Tudo! Ontem à noite estávamosintrigados porque saímos de Nárnia há apenas umano, mas Cair Paravel parece desabitado háséculos. Não se lembra? Embora tenhamospassado muito tempo em Nárnia, quandoretornamos pelo guarda-roupa parecia que nãohavia passado tempo algum. É ou não é?

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– Continue – disse Susana – , acho queestou começando a compreender.

– Isso quer dizer – prosseguiu Edmundo –que quando se está fora de Nárnia a gente perdetoda a noção de como o tempo passa aqui. Porque então havemos de achar impossível que emNárnia tenham passado centenas de anos,enquanto para nós passou apenas um?

– Puxa vida! – exclamou Pedro. – Achoque você tem razão. Vendo as coisas desse jeito,já se passaram mesmo séculos desde quereinamos em Cair Paravel! Agora, voltamos aNárnia como se fôssemos cruzados, ou anglo-saxões, ou antigos bretões, ou alguém de regressoà Inglaterra dos tempos modernos!

– Todos vão ficar emocionados ao nosver... – começou Lúcia, quando foi interrompidapor alguém:

– Silêncio! Olhem ali!

Estava acontecendo alguma coisa.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Na terra firme, um pouco à direita, haviauma floresta; todos tinham certeza de que a foz dorio ficava além dela. Agora, torneando aquelaponta, surgira um barco. Passou, deu meia-volta ecomeçou a avançar ao longo do canal na direçãodeles. Um homem remava e um outro estavasentado no leme com um embrulho na mão, umembrulho que se torcia e contorcia como seestivesse vivo.

Os homens pareciam soldados. Usavamcapacetes de aço e leves cotas de malha. Ambostinham barba e a expressão severa. As criançasfugiram da praia e se esconderam no mato, ondeficaram imóveis, à espreita.

– Aqui está bom! – disse o soldado doleme, quando o barco parou em frente deles.

– Não seria bom amarrar uma pedra nos pésdele, cabo? – sugeriu o outro, descansando osremos.

– Besteira! – grunhiu o primeiro. – Alémdisso, não trouxemos pedra. De qualquer jeito,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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com pedra ou sem pedra, ele vai se afogar, pois ascordas estão bem amarradas.

Levantou-se e ergueu o fardo. Pedropercebeu que era mesmo uma coisa viva: umanão, de pés e mãos amarrados, que tentava comtoda a força libertar-se. Ouviu-se qualquer coisasibilando. O soldado levantou os braços,deixando o anão cair no fundo do barco, e tomboudentro da água. Então, nadou desesperadamentepara a margem oposta: a seta de Susana acertara-lhe o elmo. Pedro voltou-se e viu Susana muitopálida, mas senhora de si, preparando umasegunda seta, que não chegou a atirar. Porque,assim que o outro soldado viu cair ocompanheiro, soltou um grito e atirou-se na água,e desajeitadamente chegou ao outro lado,desaparecendo entre os arbustos.

– Depressa! Antes que ele seja arrastadopela corrente! – gritou Pedro.

Susana e ele, tal qual estavam,mergulharam e, antes que a água lhes chegasse

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aos ombros, agarraram o barco. Em pouco tempo,tinham arrastado o anão para a margem, eEdmundo pôs-se ativamente a cortar as cordascom o canivete. Quando por fim o anão se viulivre, sentou-se, esfregou os braços e as pernas eexclamou:

– Digam o que disserem, vocês nãoparecem fantasmas!

Como quase todos os anões, era muitoatarracado e peitudo. De pé, devia ter cerca de ummetro de altura; usava uma barba imensa e suíçasde cabelos ruivos e rebeldes, que lhe encobriamquase todo o rosto, deixando apenas à vista umnariz que mais parecia um bico e os negrosolhinhos cintilantes.

– Seja como for – continuou ele – ,fantasmas ou não, vocês me salvaram a vida.Muito obrigado.

– E por que haveríamos de ser fantasmas? –perguntou Lúcia.

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– A vida toda me disseram que nestesbosques ao longo da costa havia mais fantasmasdo que árvores. É o que reza a lenda. Por isso,sempre que desejam eliminar alguém, é para cáque o trazem, como fizeram comigo. Queriamentregar-me aos fantasmas. Por mim, semprepensei que iriam me cortar o pescoço ou afogar-me. Nunca acreditei muito em fantasmas. Masaqueles valentões que vocês alvejaramacreditavam. Tinham mais medo do que eu.

– Ah! – exclamou Susana. – Foi por issoentão que fugiram!

– O quê?! – disse o anão.

– Fugiram – confirmou Edmundo – ,fugiram para a terra.

– Não atirei para matar – falou Susana.

Ela não queria que pensassem que pudesseerrar o alvo a uma distância tão pequena. O anãoresmungou:

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– Hum! Isso é mau. Pode trazer futurascomplicações. A não ser que eles fiquem de bicocalado para salvarem a pele.

– Por que queriam afogá-lo? – perguntouPedro.

-Porque sou um terrível criminoso, semdúvida alguma – disse o anão, alegremente. –Mas isso é uma história comprida. Neste instantesó estou pensando se vocês me convidariam paracomer alguma coisa. Não fazem idéia do apetiteque dá ser condenado à morte.

– Só temos maçãs – lamentou-se Lúcia.

– E melhor do que nada, mas peixe fresco éainda melhor – disse o anão. – No fim, parece quevocês é que serão meus convidados. Vi no barcocaniços de pesca. Aliás, o barco tem de ser levadopara o outro lado da ilha: não convém que aspessoas do continente apareçam por aqui e dêemcom ele.

– Eu já devia ter pensado nisso! – falou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Pedro. Acompanhadas pelo anão, as quatrocrianças entraram no barco. O anão assumiuimediatamente o comando das operações. Comoos remos eram grandes demais para ele, Pedroremou, e o anão foi conduzindo o barco para onorte, ao longo do canal, virando depois paraleste e contornando o extremo da ilha. Daí via-setodo o curso do rio, todas as baías e cabos dacosta. Pareceu-lhes que alguns lugares não lheseram estranhos, mas a floresta, que cresceramuito, dava a tudo um ar diferente. Quandochegaram ao mar alto, o anão começou a pescar.Apanharam uma grande quantidade de trutascoloridas, um peixe muito bonito, que selembravam de já terem comido em Cair Paravel.

Depois, levaram o barco para uma angra,onde o amarraram. O anão, que era muitoeficiente (existem anões maus, é verdade, masnão conheço nenhum que seja bobo), abriu ospeixes, limpou-os e disse:

– Só nos falta a lenha.

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– Temos alguma no castelo – falouEdmundo. O anão pôs-se a assoviar baixinho.

– Com trinta diabos! Quer dizer que existemesmo um castelo?

– Só as ruínas – informou Lúcia.

O anão olhou para todos os lados com umaexpressão esquisita.

– E quem é que... – mas não terminou afrase, dizendo: – Não interessa. Vamos primeiro àcomida. Só quero que me digam uma coisa: vocêsjuram mesmo que ainda estou vivo? Têm certezade que não morri afogado? Sabem mesmo se nãosomos todos fantasmas?

Depois de o terem tranqüilizado, oproblema era saber qual a melhor maneira delevar o peixe. Não tinham cesto nem corda para oprenderem. Acabaram utilizando o chapéu deEdmundo, pois só ele tinha chapéu. Claro queEdmundo teria ficado uma fera se não estivessecaindo de fome.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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O anão, a princípio, não se sentiu muitobem

no castelo. Olhava para todos os cantos,fungava e dizia:

– Hum! Tem um ar esquisito. E cheira afantasma.

Mas, quando chegou a vez de acender ofogo e de mostrar como se assam trutas frescas,animou-se. Comer peixe tirado da brasa com umcanivete, para cinco pessoas, não é mole; por isso,quando a refeição acabou, não é de admirar quehouvesse alguns dedos queimados. Mas, comoeram nove horas e estavam acordados desde ascinco, ninguém ligou muito para as queimaduras.Depois de arrematarem com um gole de água dopoço e uma maçã, o anão tirou do bolso umcachimbo do tamanho do seu braço, encheu-ocom cuidado e, soprando uma grande baforada defumo aromático, disse apenas:

– Muito bem!

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– Conte-nos primeiro a sua história –propôs Pedro. – Depois lhe contaremos a nossa.

– Como foram vocês que me salvaram avida, é justo que lhes faça a vontade. Mas nem seipor onde começar. Antes de tudo, tenho deconfessar que sou um mensageiro do rei Caspian.

– De quem? – perguntaram os quatro aomesmo tempo.

– De Caspian X, rei de Nárnia (longo seja oseu reinado!). Isto é, ele é que devia ser rei deNárnia, e esperamos que ainda venha a ser umdia. Por enquanto, é apenas o nosso rei, o rei dosantigos narnianos...

– Por favor – disse Lúcia – quem são osantigos narnianos?

– Somos nós, é claro – respondeu o anão. –Somos uma espécie de rebeldes.

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– Já estou começando a entender – falouPedro. – Então Caspian é o chefe dos antigosnarnianos?

– Sim, de certa forma – respondeu o anão,cocando a cabeça, meio atrapalhado. – Se bemque ele seja, na verdade, um dos novos narnianos,um telmarino, não sei se me compreendem.

– Não entendo patavina! – disse Edmundo.

– Isto é mais complicado que a história daInglaterra – declarou Lúcia.

– Que espeto! – exclamou o anão. – Eu éque não soube me explicar direito. Prestematenção. Acho que, no fim das contas, é melhorrecuar até o princípio da história para contar-lhescomo Caspian cresceu na corte do tio e comoagora passou para o nosso lado. Mas é uma longahistória.

– Melhor! – gritou Lúcia. – Adoramoshistórias! Foi assim que o anão se ajeitou paracontar a sua história. Não irei contá-la para você___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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com as palavras dele, nem com as perguntas dascrianças, porque seria uma confusão danada, esem fim. Mas o principal da história é oseguinte...

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O ANÃO CONTA AHISTÓRIA DO PRÍNCIPE

CASPIAN

O príncipe Caspian vivia num grandecastelo no centro de Nárnia, com seu tio Miraz,rei de Nárnia, e sua tia, que tinha cabelo ruivo ese chamava Prunaprismia. Seu pai e sua mãetinham morrido, e não havia ninguém queCaspian estimasse tanto quanto a sua velha ama.Embora fosse príncipe e tivesse belíssimosbrinquedos, o seu momento preferido era aqueleem que, depois de arrumados os brinquedos, aama começava a contar-lhe histórias.

Caspian não gostava dos tios, mas, uma ou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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duas vezes por semana, o tio mandava chamá-lo eos dois passeavam durante meia hora, no terraçodo castelo. Um dia, enquanto passeavam, o rei lhedisse:

– Já é tempo de você aprender a montar e amanejar a espada. Sabe que sua tia e eu não temosfilhos, de modo que, quando eu me for, vocêprovavelmente será rei. Não gostaria disso?

– Não sei, titio – respondeu Caspian,

– Não sabe como? O que você podia quererde melhor?

– Bem... é que eu gostaria...

– Gostaria de quê?!

– Gostaria... gostaria de ter vivido nosvelhos tempos – disse Caspian, que ainda nãopassava de um garotinho.

Até aí, o Rei Miraz tinha falado naqueletom de voz indiferente que certos adultos

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costumam usar e que mostra que não têm omínimo interesse no que lhe estão dizendo. Masnesse instante, de repente, fitou Caspian commuita atenção.

– O quê?! De que velhos tempos estáfalando?

– Titio não sabe? Dos tempos em que tudoera diferente. Em que os animais falavam, em queas fontes e as árvores eram habitadas por bonitascriaturas, chamadas náiades e dríades. E haviatambém anões, e os bosques estavam povoados depequeninos faunos, que tinham patas iguais àsdos bodes, e...

– Conversa! – interrompeu o tio. –Conversa para tapear criança. Você já está grandedemais para isso. Na sua idade, devia estarpensando em batalhas e aventuras, e não emcontos da carochinha.

– Mas naquele tempo também haviabatalhas e aventuras. Maravilhosas aventuras!Houve até uma Feiticeira Branca, que pretendia___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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ser rainha de Nárnia. Era tão má que, enquantoela reinou, foi sempre inverno. Vieram então, nãosei de onde, dois meninos e duas meninas, quemataram a feiticeira e foram coroados reis erainhas. Eram Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia.Reinaram durante muito tempo, e todos forammuito felizes... e tudo isso foi por causa deAslam...

– Quem é esse Aslam? – indagou Miraz.

Se Caspian fosse um pouco maisexperiente, teria percebido, pelo tom de voz dotio, que o melhor era calar-se. Mas continuou:

– Não sabe? Aslam é o Grande Leão, quevem de além-mar.

– Quem andou botando essas bobagens nasua cabeça? – a voz do rei era ameaçadora.Caspian teve medo e não respondeu.

– Nobre príncipe – insistiu Miraz, largandoa mão de Caspian – , exijo que me responda. Olhenos meus olhos e diga-me quem tem lhe contado___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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essas refinadas mentiras.

– Foi... foi a ama – gaguejou Caspian,desandando a chorar.

– Acabe imediatamente com isso! –ordenou o tio, agarrando-o pelos ombros esacudindo-o com força. – Já falei! E não mevenha de novo com essas tolices. Esses reis erainhas nunca existiram. Onde é que você já viudois reis ao mesmo tempo? Aslam é purainvencionice. Não há leão nenhum, fiquesabendo! E os animais nunca falaram!Compreendeu?

– Compreendi – soluçou Caspian.

– E, agora, ponto final nesta conversa.

O rei chamou um lacaio e ordenoufriamente:

– Leve Sua Alteza aos seus aposentos ediga à ama que compareça aqui imediatamente!

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Só no dia seguinte Caspian percebeu o quetinha feito, ao descobrir que a ama fora despedidasem poder sequer dizer-lhe adeus. Foi informado,então, que iria ter um preceptor.

Sentiu muita falta da ama e derramoumuitas lágrimas de saudade. Muito infeliz, voltoua pensar nas velhas histórias de Nárnia, aindamais do que antes. Todas as noites sonhava comanões e dríades, e tentava desesperadamente fazercom que os gatos e cães do castelo falassem comele. Mas só conseguia que os gatos rosnassem eque os cães sacudissem a cauda.

Caspian tinha certeza de que ia detestar opreceptor; mas quando este apareceu, passadauma semana, viu que era uma dessas pessoas aquem é impossível querer mal. Nunca tinha vistoum homem tão baixo e tão gordo. Usava umabarba pontuda e prateada, que lhe descia até acintura; o rosto, moreno e enrugado, era muitofeio, mas ao mesmo tempo muito bondoso einteligente. Sua voz era grave, mas ele tinha olhostão alegres que só quem o conhecesse bem podia___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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dizer quando ele estava brincando ou falando asério. Seu nome era doutor Cornelius.

De todas as aulas que tinha com o doutorCornelius, aquela de que Caspian mais gostavaera

História. Tirando as histórias que a ama lhecontara, nada sabia até então da história deNárnia. Foi assim com grande espanto queaprendeu que só recentemente a família real seinstalara no país.

– Foi um antepassado de Vossa Alteza,Caspian I, que conquistou Nárnia e fez dela o seureino – disse o doutor Cornelius. – Foi ele quemtrouxe a sua gente para cá. Porque vocês não sãonarnianos de origem, mas telmarinos. Vieramtodos de Teimar, para lá das MontanhasOcidentais. Por isso, Caspian I é chamado deCaspian, o Conquistador.

– Mas, doutor Cornelius, quem vivia emNárnia antes que viéssemos de Teimar?

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– Antes da conquista dos telmarinos nãohavia homens em Nárnia... ou melhor, haviapoucos.

– O que, então, o meu antepassado venceu?

– O que não, Alteza, quem – corrigiu opreceptor. – Acho que está na hora de deixarmosa História e passarmos à gramática.

– Ainda não, por favor. Só queria saber sehouve alguma batalha, e por que é que chamamCaspian de Conquistador, se não havia ninguémcom quem lutar?

– Eu falei que havia poucos “homens” emNárnia – disse o doutor Cornelius, olhando de ummodo muito estranho para o jovem príncipe.

Durante um momento, Caspian nãopercebeu nada, mas de repente teve umsobressalto.

– Quer dizer que havia outras coisas? –perguntou, ansiosamente. – Quer dizer que era___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mesmo como nas histórias? Havia...?

– Psiu! Nem mais uma palavra! –interrompeu-o doutor Cornelius. – Já esqueceuque a ama foi despedida por falar da antigaNárnia? O rei não gosta dessa conversa. Se meapanha revelando-lhe segredos, dá-lhe uma surrade chicote e corta a minha cabeça.

– Mas por quê?! – indagou Caspian.

– Vamos à gramática – disse o doutorCornelius, voltando a falar alto. – Queira VossaAlteza abrir na página 4 do seu Jardimgramatical ou Árvore morfológicaaprazivelmente ao alcance de talentos jovens.

A partir desse momento, só falaram deverbos e substantivos até a hora do almoço; masacho que Caspian não aprendeu muito. Estavamuito nervoso. Tinha certeza de que o doutorCornelius não lhe teria dito tanta coisa, caso nãotivesse a intenção de dizer-lhe outras, mais cedoou mais tarde.

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Não se enganou. Dias depois, o preceptordisse-lhe:

– Esta noite vou dar-lhe uma lição deastronomia. Tarde da noite, dois nobres planetas,Tarva e Alambil, vão cruzar-se a menos de umgrau um do outro. Há mais de dois séculos quenão se observa essa conjunção, e Vossa Altezanão viverá para vê-la novamente. É melhor que vádeitar-se um pouco mais cedo; quando seaproximar o momento, irei acordá-lo.

Isso não tinha nada a ver com a antigaNárnia, que era o que interessava a Caspian, mas,de qualquer forma, levantar-se no meio da noite ésempre uma aventura, e ele ficou contente.

Quando sentiu que o sacudiam de leve,achou que tinha dormido apenas alguns minutos.Sentou-se na cama e viu que o luar invadia oquarto. Doutor Cornelius, envolto num mantocom capuz e segurando uma lamparina, estava aopé da cama. Caspian lembrou-se logo do quetinham combinado. Levantou-se e vestiu-se.

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Embora fosse verão, a noite estava mais fria doque esperava. Mais satisfeito ficou quando opreceptor o envolveu numa capa igual à sua e lheentregou um par de chinelos quentes e macios.

Assim vestidos, dificilmente seriamreconhecidos nos corredores escuros. Sem fazerbarulho, aluno e mestre saíram do quarto.

Passaram por muitos corredores, subiramvárias escadas, até que, entrando por umaportinha que dava para um torreão, chegaram aoar livre. Lá embaixo, cheios de sombra oureflexos, estendiam-se os jardins do castelo,enquanto no alto brilhavam a lua e as estrelas.Chegaram enfim à porta que dava para a grandetorre central. Caspian estava cada vez maisexcitado, pois nunca lhe fora permitido subiraquela escada. Era íngreme e comprida, mas,quando chegou ao terraço da torre, recobrou oalento. Valera a pena. À direita, muito ao longe,divisavam-se as Montanhas Ocidentais. Àesquerda, rebrilhava o Grande Rio. Tudo estavatão calmo, que se ouvia o rugir da água no Dique___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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dos Castores, a um quilômetro de distância. Nãotiveram dificuldade em localizar as duas estrelas.Estavam muito baixas na linha do horizonte, aosul, pertinho uma da outra, e brilhavam comoduas luzinhas.

– Vão bater? – perguntou Caspian, receoso.

– Não, meu príncipe – disse o doutor,baixinho. – Os grandes senhores do céu superiorconhecem muito bem os passos de sua dança.Olhe bem para elas. Seu encontro é auspicioso eindica que um grande bem vai acontecer ao tristereino de Nárnia. Tarva, o Senhor da Vitória,saúda Alambil, a senhora da Paz. Estão chegandoao ponto máximo de aproximação.

– Que pena aquela árvore estar na frente! –disse Caspian. – Veríamos muito melhor da torreocidental, embora não seja tão alta.

Por uns momentos, o doutor Cornelius, deolhos fixos em Tarva e Alambil, ficou emsilêncio. Respirou fundo e voltou-se paraCaspian:___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Acaba de ver o que nenhum homem hojevivo jamais viu ou verá. Tem razão: teríamosvisto ainda melhor da outra torre. Mas tive ummotivo para trazê-lo aqui.

O aluno levantou os olhos, mas o mestretinha o rosto quase todo encoberto pelo capuz. Odoutor continuou:

– A vantagem desta torre é que temos seissalas vazias abaixo de nós e uma longa escada;além do mais, a porta ao fundo está fechada àchave. Ninguém poderá ouvir-nos.

– Vai então dizer-me o que não quis dizeroutro dia? – perguntou Caspian.

– Vou, mas não se esqueça de uma coisa:só aqui, no alto da Grande Torre, poderemos falardesse assunto. Promete?

– Prometo – disse Caspian. – Mas, porfavor, continue.

– Preste atenção: tudo o que lhe disseram___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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sobre a antiga Nárnia é verdade. Nárnia não é aterra dos homens. É a terra de Aslam, das árvoresdespertas, das náiades visíveis, dos faunos, dossátiros, dos anões e dos gigantes, dos centauros edos animais falantes. Foi contra eles que lutouCaspian I. Foram vocês, os telmarinos, quecalaram os animais, as árvores e as fontes; quemataram e expulsaram os anões e os faunos; sãovocês que pretendem agora desfazer até alembrança do que existiu. O rei não consentesequer que se fale deles.

– Desejaria que não tivéssemos feito nadadisso! – disse Caspian. – Mas estou muito felizpor saber que tudo é verdade, ainda que tudotenha acabado.

– Muitos de sua raça desejam a mesmacoisa, em segredo.

– Mas, doutor, por que me diz a sua raça?Você não é também um telmarino?

– Pareço um telmarino?

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– De qualquer modo, você é um homem.

– Acha que sou? – insistiu o doutor, numavoz mais grave, ao mesmo tempo que deixava cairo capuz, descobrindo o rosto iluminado pelo luar.

Caspian compreendeu de súbito a verdade,espantado de não ter descoberto isso mais cedo. Odoutor Cornelius era tão baixinho, tão gordo, etinha uma barba tão comprida! Dois pensamentoslhe acudiram. Um de medo: “Não é um homem, éum anão e trouxe-me até aqui para me matar.” Ooutro foi de grande contentamento: “Afinal, aindahá anões, e vi um deles com os meus própriosolhos.”

– Adivinhou – disse o doutor. – Ou quase.Não sou um anão puro, pois parte do meu sangueé humano. Muitos anões escaparam, depois dasgrandes batalhas, e continuaram a viver, cortandoa barba, usando sapatos de tacão alto, fazendo-sepassar por homens. A raça misturou-se com a dostelmarinos. Sou um desses meio-anões; se algumdos meus parentes, algum anão verdadeiro, ainda

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vivesse em qualquer parte do mundo, iriadesprezar-me como traidor. No entanto, ao longode todos estes anos, nunca esquecemos a nossagente, nem qualquer das outras felizes criaturasde Nárnia, nem os tempos de liberdade há muitoperdidos.

– Sinto muito, doutor – disse Caspian – ,sabe que não foi minha culpa...

– Não estou dizendo essas coisas paracensurá-lo, estimado príncipe. Há de perguntarpor que as digo. Pois muito bem! Por doismotivos. Primeiro: porque o meu velho coraçãoestá cansado de guardar esses segredos. Segundo:para que um dia, quando o meu príncipe for rei,possa ajudar-nos, pois sei que, embora telmarino,tem amor às coisas do passado.

– E é verdade – assentiu Caspian. – Mascomo poderei ajudá-los?

– Você pode ser bom para aqueles que,como eu, ainda restam da raça dos anões. Podereunir à sua volta sábios e magos e procurar os___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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meios de reanimar as árvores. Pode vasculhartodos os esconderijos e lugares inóspitos, ondetalvez ainda vivam faunos e animais falantes.

– Acha que ainda existem alguns? –perguntou Caspian ansiosamente.

– Não sei... não sei – disse o doutor, comum suspiro fundo. – Às vezes chego a recear quenão haja mais nenhum. Passei a vida procurandoos vestígios deles. Já me aconteceu julgar ouvirum batuque de anões nas montanhas. Por vezes,nos bosques, pareceu-me vislumbrar faunos esátiros dançando. Mas, sempre que chegava aolocal onde julgava tê-los visto, não encontravanada. Muitas vezes perdi a esperança, mas sempreacontece algo que nos faz ter esperança de novo.Não sei... Mas você pode, pelo menos, procurarser um rei como o Grande Rei Pedro dos temposantigos, em vez de seguir o exemplo de seu tio.

– Quer dizer que é verdade o que dizem dosreis e rainhas e da Feiticeira Branca?

– Claro que é. O seu reinado foi a Idade de___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Ouro de Nárnia, e o país nunca o esqueceu.

– Eles viveram neste castelo, doutor?

– Não, meu caro príncipe. Este castelo érecente. Foi o seu bisavô que mandou construí-lo.Quando os dois filhos de Adão e as duas filhas deEva foram coroados, pelo próprio Aslam, reis erainhas de Nárnia, viveram no castelo de CairParavel. Nenhum ser vivo jamais contemplou esselugar abençoado, e é possível que as própriasruínas tenham desaparecido. Parece que ficavamuito longe daqui, na foz do Grande Rio, à beira-mar.

– Ufa! – exclamou Caspian, com umarrepio. – Nos Bosques Negros? Onde... ondevivem os fantasmas?

– O príncipe fala de acordo com o que lheensinaram. Mas tudo isso é mentira. Não háfantasmas lá; isso é invenção dos telmarinos. Osmonarcas de sua raça têm pavor do mar, porquenão podem esquecer que, em todas as histórias,Aslam veio de além-mar. Não se aproximam dele,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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nem querem que ninguém se aproxime. Por issodeixam crescer as florestas que os separam dacosta. E porque brigaram com as árvores têmmedo dos bosques. E, porque têm medo dosbosques, acham que estes são povoados defantasmas. E são os próprios reis que, odiando omar, acreditam em parte nessas histórias e levamos outros a acreditar. Sentem-se mais segurossabendo que ninguém em Nárnia ousa aproximar-se da costa e olhar o mar... olhar para o país deAslam, para o nascente...

Houve um silêncio profundo. Então, doutorCornelius disse:

– Vamos. Já ficamos aqui muito tempo. Éhora de voltar a dormir.

– Já?! – protestou Caspian. – Podia ficarhoras e horas falando dessas coisas.

– Podem começar a procurar-nos... –explicou o doutor.

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AS AVENTURAS DECASPIAN NAS MONTANHAS

Caspian e o preceptor conversaram muitasvezes a sós no alto da Grande Torre, e o primeirofoi aprendendo muitas coisas acerca da antigaNárnia. Ocupava quase todas as suas horas livres(que não eram muitas) sonhando com os velhostempos, desejando que eles voltassem. Suaeducação agora começara a sério. Aprendeuesgrima e natação, a montar, a atirar, a tocarflauta, a caçar veados e esquartejá-los paraaproveitar-lhes a carne, além de estudarcosmografia, direito, física, alquimia eastronomia. Das artes mágicas aprendeu apenas ateoria porque, segundo o doutor Cornelius, a

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prática não era estudo próprio para um príncipe.

– Eu mesmo – disse-lhe certa vez o doutor– sei muito pouco de magia; as experiências quefaço não têm a menor importância.

De navegação (uma nobre e heróica arte,dizia o doutor) não aprendeu nada, porque o reiMiraz não gostava do mar e odiava os navios.

Caspian também aprendeu muito por simesmo, a partir do que via e ouvia. Quandopequenino, não sabia explicar por que nãogostava da tia, a rainha Prunaprismia. Agoracompreendia: é que também ela não gostava dele.Ele também começou a ver que Nárnia era umpaís triste, com impostos excessivamente pesados,leis muito severas e um rei cruel.

Passado algum tempo, a rainha adoeceu, ehouve grande movimento no castelo. Os médicosiam e vinham, e os cortesãos falavam em vozbaixa. Foi no começo do verão. Uma noite, nomeio de toda essa agitação, Caspian, que sedeitara havia poucas horas, foi de repente___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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acordado pelo doutor Cornelius.

– Astronomia, doutor? – perguntou ele.

– Psiu! Confie em mim e faça exatamente oque lhe disser: agasalhe-se bem, pois tem umalonga viagem à sua frente.

Caspian ficou muito surpreso, masaprendera a ter confiança em seu preceptor eobedeceu sem demora. Quando acabou de sevestir, o doutor lhe disse:

– Trouxe-lhe um saco. Vamos colocar neletoda a comida que pudermos encontrar sobre amesa.

– Mas os camareiros estão na sala!

– Dormem a sono solto e não acordarão tãocedo. Sou um mago sem grandes poderes, mas osque tenho ainda chegam para provocar um sonoencantado.

De fato, os camareiros ressonavam alto,

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estendidos nas cadeiras. Sem perda de tempo, odoutor Cornelius cortou o que sobrara do frango,pegou algumas fatias de carne de veado, pão,maçã e uma garrafinha de vinho bom, colocandotudo dentro do saco, que entregou a Caspian.

– Trouxe a sua espada? – perguntou odoutor.

– Trouxe – respondeu Caspian.

– Vista este manto e cubra também com eleo saco e a espada. Isso! Agora vamos à GrandeTorre, pois precisamos conversar.

Quando chegaram ao alto da torre (era umanoite enevoada), o doutor Cornelius lhe disse:

– Nobre príncipe, tem de abandonarimediatamente o castelo e tentar a sorte por estevasto mundo. Sua vida aqui corre perigo.

– Por quê? – indagou Caspian.

– Porque você é o verdadeiro rei de Nárnia:

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Caspian X, filho e herdeiro de Caspian IX. Vidalonga para o rei! – E, de repente, para grandeespanto de Caspian, o preceptor ajoelhou-se ebeijou-lhe a mão.

– O que é isso? Não estou entendendonada...

– O que me espanta – disse o doutor – évocê nunca ter perguntado por que, sendo filho dorei Caspian, não era você mesmo o rei. Todos,menos você, sabem que Miraz é um usurpador.Quando começou a governar, não teve a coragemde apresentar-se como rei: intitulou-se apenaspríncipe regente. Mas então sua mãe faleceu, elaque fora tão boa rainha, a única telmarina que metratou bem. Um após outro, todos os nobres quetinham conhecido o seu pai foram morrendo edesaparecendo. Belisar e Uvilas foram atingidospor setas durante uma caçada: mero acidente,como se divulgou. A grande família dosPassáridas foi para o Norte lutar com os gigantese por lá desapareceu. Arlian e Erimon foramcondenados por alta traição, sem sequer serem___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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julgados. Os dois irmãos do Dique dos Castoresforam trancafiados como loucos. E, para terminar,Miraz convenceu sete nobres de que, entre todosos telmarinos, eram os únicos que não temiam omar, e deviam partir para o Oceano Oriental, embusca de novas terras. Nunca mais voltaram, éclaro. Quando já não havia quem pudessedefender o meu príncipe, os bajuladores pediram-lhe que se deixasse coroar rei: e ele concordou,naturalmente.

– E ele quer me matar também? –perguntou Caspian.

– Sem dúvida alguma.

– Mas por quê?... Por que não me matou hámais tempo? Que mal eu fiz?

– Míraz mudou de opinião a seu respeito,em virtude do que aconteceu há apenas duashoras. A rainha acaba de dar à luz um filho.

– O que uma coisa tem a ver com a outra?

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– Não entendeu?! Então, que proveito tiroudas minhas lições de história e de política? Ouça:enquanto o rei não tinha filhos, estava disposto adeixar que você fosse rei quando ele morresse.Mesmo sem ter por você grande amizade, preferiaque o trono fosse seu, e não de um estranho. Masagora, que tem um filho, quer fazer dele oherdeiro. Você passou a ser um empecilho, e elefará tudo para afastá-lo do caminho.

– Ele é tão ruim assim? Será mesmo capazde me matar?

– Matou também o seu pai – disse doutorCornelius.

Caspian sentiu-se mal e calou-se.

– Um dia poderei contar-lhe essa história –continuou o doutor – , mas não agora. Não temostempo a perder. Você tem de fugir imediatamente.

– Vem comigo? – perguntou Caspian.

– Não. Seria muito arriscado. É mais fácil___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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seguir dois do que um, caro príncipe. Nobre reiCaspian, chegou a hora da coragem. Você tem departir só e imediatamente. Veja se consegueatravessar a fronteira do Sul para chegar à cortede Naim, rei da Arquelândia. Ele poderá ajudá-lo.

– Nunca mais nos veremos? – perguntouCaspian, com a voz trêmula.

– Espero que sim, nobre rei – respondeu odoutor. – Pois não é você o único amigo com queposso contar? Tenho as minhas artes mágicas...Mas, por ora, o importante é ganhar tempo. Aquiestão dois presentes. Esta bolsinha de ouro... bempouco, é certo, quando todos os tesouros docastelo pertencem a você, de direito. E aqui estáoutra coisa mais valiosa.

Passou às mãos de Caspian um objeto queele mal distinguiu, mas que, pelo tato, percebeuque era uma trompa.

– É o mais sagrado tesouro de Nárnia –disse doutor Cornelius. – Quando era jovem,passei por muita coisa e proferi muitas palavras___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mágicas, na esperança de encontrar a trompa quepertenceu à rainha Susana. Ficou aqui quando eladesapareceu de Nárnia, ao findar a Idade de Ouro.Quem quer que a toque, receberá um estranho, ummisterioso auxílio – que ninguém sabe dizer.Pode ser que tenha o poder de trazer do passado arainha Lúcia e o rei Edmundo, a rainha Susana e oGrande Rei Pedro, para restaurar a ordem naturaldas coisas. Pode ser que tenha o poder de invocaro próprio Aslam. Fique com ela... mas só a utilizequando estiver em grande dificuldade. Depressa!A portinha que dá para o jardim está aberta. É láque nos separamos.

– Posso levar Destro, meu cavalo?

– Já está selado, à sua espera, no alto dopomar.

Enquanto desciam a longa escada emcaracol, o doutor Cornelius, muito baixinho, foidando instruções e conselhos. Caspian sentiu quelhe faltava a coragem, mas procurou não esquecernada. Uma rajada de ar fresco no jardim, um

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caloroso aperto de mão do doutor, o relincharalegre de Destro – e assim Caspian X deixou opalácio de seus pais.

Ao olhar para trás, viu os fogos de artifíciocom que se festejava o nascimento do novopríncipe.

Cavalgou à toda para o Sul, atravessando afloresta por veredas e atalhos enquanto ainda seencontrava em terreno conhecido. Preferiu depoisa estrada principal. A viagem inesperada excitaratanto o cavalo quanto o dono. Caspian, que sedespedira do doutor com lágrimas nos olhos,sentia-se agora cheio de coragem e, até certoponto, feliz, ao pensar que era o rei correndorumo à aventura, espada à cinta, levando consigoa trompa mágica da rainha Susana. Quando,porém, o dia começou a clarear, acompanhado dechuviscos, e ele olhou em torno e viu apenasbosques desconhecidos, regiões áridas emontanhas azuis, o mundo pareceu-lhe imenso emisterioso, e ele sentiu-se pequenino e assustado.

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Assim que o dia clareou de todo, deixou aestrada e encontrou uma clareira relvada, ondepodia descansar. Tirou a sela de Destro para queeste pastasse à vontade, comeu um pouco defrango, bebeu um pouco de vinho e adormeceu. Atarde já ia alta quando acordou. Comeu mais umpouco e recomeçou a viagem. Ao anoitecer, achuva caía em bátegas. Os trovões enchiam o ar, eDestro começou a ficar nervoso. Entraram por umimenso pinhal, e Caspian lembrou-se das muitashistórias que ouvira sobre as árvores, inimigas dohomem. Afinal (pensou) ele era um telmarino,pertencia à raça que derruba árvores e estava emguerra aberta com todas as coisas selvagens.Ainda que fosse diferente dos outros telmarinos,as árvores não podiam saber de nada.

E não sabiam mesmo. O vento viroutempestade, e as árvores rugiam e estalavam nocaminho. Houve então um grande estrondo, e umaárvore caiu atravessando a estrada assim que elespassaram.

– Calma, Destro, calma! – repetia Caspian,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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acariciando a cabeça do cavalo. Mas ele mesmoestava trêmulo, sabendo que escapara à morte porum triz. Os relâmpagos faiscavam, e o ribombardos trovões parecia despedaçar o céu. Destrocorria em disparada; Caspian, ainda que bomcavaleiro, não tinha força para dominá-lo. A custoconseguia manter-se na sela, certo de que suavida estava presa por um fio naquela loucacavalgada. Eis que, de súbito, quase sem tertempo para sentir a dor, alguma coisa lhe bateu nafronte e ele perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, Caspian estava deitadoperto de uma fogueira, sentindo uma horrível dorde cabeça. Ouviu falar baixinho:

– Temos de resolver o que vamos fazer comele, antes que acorde.

– Matá-lo! – disse outra voz. – Nãopodemos deixá-lo vivo: iria trair-nos.

– Deveríamos ter feito isso na hora, ouentão deixado ele sozinho – atalhou uma terceiravoz.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Não podemos matá-lo agora; não depoisde termos tratado seus ferimentos. Seria o mesmoque assassinar um hóspede.

– Senhores – disse Caspian, numa voz queera quase um murmúrio – , decidam o quequiserem a meu respeito, mas peço-lhes quetratem bem do meu cavalo.

– Seu cavalo fugiu muito antes de oencontrarmos – disse uma voz roufenha, queparecia vir da terra.

– Não se deixem iludir com palavrinhasdoces – falou a segunda voz. – Por mim, insistoem...

– Calma aí! – exclamou a terceira voz. – Éclaro que não vamos matá-lo. Você devia tervergonha, Nikabrik. O que acha você, Caça-trufas? Que vamos fazer com ele?

– Vou dar-lhe de beber – disse a primeiravoz, provavelmente a de Caça-trufas. Umasombra escura aproximou-se. Caspian sentiu que___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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um braço lhe amparava cuidadosamente as costas– se é que era mesmo um braço. O rosto que seinclinou era também um tanto esquisito: pareceu-lhe que estava coberto de pêlos e que tinha umenorme nariz, com umas engraçadas manchasbrancas dos lados. “Deve ser máscara”, pensouCaspian, “ou então estou delirando.”

Uma taça de um líquido quente e adocicadotocou seus lábios, e ele bebeu. Nesse instante, umdos outros atiçou o fogo, fazendo levantar umalabareda. Caspian quase gritou de susto, ao ver orosto que o fitava. Não era um homem, mas umtexugo! No entanto, o rosto deste era maior, maisamistoso e mais inteligente do que o dos texugosaos quais estava habituado. Fora ele que falara,sem dúvida. Viu também que estava deitado numagruta, sobre uma cama de urzes. Ao pé do fogoencontravam-se dois homenzinhos barbudos,muito mais gordos, baixos e peludos que o doutorCornelius. Caspian percebeu logo que eram anõesverdadeiros, dos antigos, em cujas veias nãocorria uma só gota de sangue humano. Haviaencontrado enfim os antigos narnianos. Sua___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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cabeça começou a rodar de novo.

Nos dias seguintes, aprendeu a conhecê-lospelo nome. O texugo chamava-se Caça-trufas. Erao mais velho e o mais bondoso dos três. O anãoque desejara matá-lo era um anão negro (isto é,tinha o cabelo e a barba negros, ásperos e duroscomo crina de cavalo): seu nome era Nikabrik. Ooutro era um anão vermelho, com cabelo da cordos pêlos de uma raposa: chamava-se Trumpkin.Na primeira tarde em que Caspian teve forçaspara sentar-se e falar, Nikabrik disse o seguinte:

– Agora temos de resolver o que fazer como humano. Vocês acham que lhe fizeram umgrande favor, impedindo que eu o eliminasse.Agora, acho que a solução é conservá-loprisioneiro pelo resto da vida. Porque não estounada disposto a deixá-lo solto por aí... para queum belo dia encontre os outros de sua raça e nosdenuncie.

– Com mil diabos, Nikabrik! – protestouTrumpkin. – É preciso ser tão descortês? No fim

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das contas, o pobre coitado não teve culpa debater com a cabeça numa árvore aqui na frente danossa caverna. E, por mim, acho que ele não temcara de traidor.

– Mas – disse Caspian – vocês ainda nãosabem se eu quero voltar para junto dos meus.Para ser franco, não quero. Preferia ficar por aquimesmo... se me deixassem. Tenho procurado porvocês a vida toda!...

– Esta é boa! – rosnou Nikabrik. – Você éou não é um telmarino e um humano? Como nãoquer voltar?

– Mesmo que quisesse, não podia –respondeu Caspian. – Quando caí do cavalo,estava fugindo para salvar a minha vida. O reiquer me matar. Se tivessem me matado, teriamfeito a vontade dele.

– O quê?! – exclamou Caça-trufas.

– Que conversa é essa? – perguntouTrumpkin. – Com a sua idade, que fez você para___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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cair no desagrado de Miraz?

– Miraz é meu tio – começou a dizerCaspian, e nesse instante Nikabrik levantou deum salto e agarrou o punhal.

– Não disse?! – gritou ele. – Não só ételmarino, mas parente e herdeiro do nosso maiorinimigo. Vocês estão malucos?! Querem mesmodeixar viver esta criatura?! – Teria apunhaladoCaspian ali mesmo, se Trumpkin e o texugo nãose tivessem metido no meio, impedindo-lhe oavanço.

– De uma vez por todas, Nikabrik – disseTrumpkin – ou você se controla ou Caça-trufas eeu nos sentamos em cima de sua cabeça...

Nikabrik, mal-humorado, prometeu ter maiscalma, e os outros dois pediram a Caspian quecontasse a sua história. Quando acabou, houveum momento de silêncio.

– É o caso mais estranho que conheço! –disse Trumpkin.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Não acho graça nenhuma! – rosnouNikabrik. – Não sabia que os humanos sedivertem falando de nós. Quanto menos souberemde nós, melhor. Foi então a velha ama? Eramelhor que ela tivesse ficado de bico calado. E,ainda por cima, esse preceptor, um anãorenegado. Odeio eles! São piores que oshumanos! Ouçam o que eu digo: tudo isso só vainos trazer aborrecimentos!

– Não diga besteira, Nikabrik! – disseCaça-trufas. – Vocês, anões, são tão esquecidos einconstantes quanto os humanos. Eu, não, sou umbicho; mais que isso, sou um texugo, e os texugossabem o que querem. Não andam por aí sempre amudar de idéia. E eu digo que um grande bemestá por vir. Temos conosco o verdadeiro rei deNárnia: um verdadeiro rei, que volta à verdadeiraNárnia. E nós, os bichos, estamos lembrados(mesmo que os anões tenham esquecido) queNárnia só foi feliz quando teve no trono um filhode Adão.

– Espere aí, Caça-trufas – falou Trumpkin –___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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, não vá dizer que pretende entregar nosso paísaos humanos?

– Quem disse isso? – replicou o texugo. –Nárnia não é terra dos homens (quem vai meensinar isso?), mas é uma terra que deve sergovernada por um Homem. Nós, os texugos,temos razões de sobra para acreditar nisso. Pois oGrande Rei Pedro também não era um Homem?

– Você acredita nessa história? – perguntouTrumpkin.

– Já disse! Nós não mudamos de opiniãotodos os dias. Não esquecemos facilmente.Acredito no rei Pedro e nos outros que reinaramem Cair Pa-ravel, com a mesma certeza queacredito no próprio Aslam.

– Com a mesma certeza? Mas quem é queainda acredita em Aslam? – indagou Trumpkin.

– Eu acredito – disse Caspian. – E, mesmoque não acreditasse antes, acreditaria agora. Entreos humanos, os que se riem de Aslam também___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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zombariam se eu lhes dissesse que existem anõese animais falantes. Já cheguei a perguntar a mimmesmo se Aslam de fato existiria, mas a verdadeé que também muitas vezes duvidei da existênciade gente como vocês. E vocês não estão aí?

– Tem razão, rei Caspian – disse Caça-trufas. – Enquanto for fiel à antiga Nárnia vocêserá o meu rei, haja o que houver. Vida longa aorei!

– Você me faz perder a cabeça, texugo! –resmungou Nikabrik. – O Grande Rei Pedro e osoutros talvez tenham sido Homens, mas eram comcerteza de uma raça diferente. Este não, este é umdos malditos telmarinos. Aposto que já andoucaçando para se divertir! Diga que não, diga! –acrescentou, voltando-se bruscamente paraCaspian.

– Sim, é verdade – concordou Caspian. –Mas nunca na minha vida cacei animais falantes.

– Dá tudo na mesma! – resmungouNikabrik.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Ah, isso não! – falou Caça-trufas. – Evocê bem sabe disso! Sabe muito bem que osanimais que hoje se encontram em Nárnia não sãocomo os de antigamente. São até menores do queantes! Entre eles e nós há uma diferença muitomaior do que entre vocês e os meio-anões.

Houve ainda muita discussão, masacabaram todos concordando que Caspian ficaria.Prometeram até que, logo que estivesse bom,seria apresentado ao que Trumpkin chamava “osOutros”. Pois, ao que parece, naquelas regiõesselvagens viviam ainda, escondidas, inúmerascriaturas sobreviventes da antiga Nárnia.

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O ESCONDERIJO DOSANTIGOS NARNIANOS

Começara o tempo mais feliz da vida deCaspian. Numa bela manhã de verão, em que arelva estava coberta de orvalho, ele partiu com otexugo e os dois anões, através da floresta, rumoao alto de um monte, descendo depois a encostainundada de sol, de onde se avistavam os camposverdejantes de Arquelândia.

– Vamos visitar primeiro os três UrsosBarrigudos – disse Trumpkin.

Avançando por uma clareira, chegaram aum velho carvalho oco e revestido de musgo, emcujo tronco Caça-trufas deu três pancadinhas com

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a pata, sem que obtivesse resposta. Bateu de novoe lá de dentro uma voz rouca protestou: – Váembora. Ainda não está na hora de acordar.

Mas, quando o texugo bateu pela terceiravez, ouviu-se um ruído como de tremor de terra,abriu-se uma porta e apareceram três enormesursos castanhos, muito barrigudos mesmo, apiscar os olhinhos. Depois que terminaram delhes contar tudo o que passava (o que demoroumuito tempo, pois estavam caindo de sono), elesconcordaram com Caça-trufas: um filho de Adãodevia ser o rei de Nárnia – e todos beijaramCaspian, com uns beijos molhados e barulhentos.E o rei foi logo convidado para comer mel.Caspian não gostava muito de mel, sem pão,àquela hora da manhã, mas por delicadeza achouque deveria aceitar. Só depois de muito tempodeixou de sentir as mãos meladas. Continuaramdepois a andar e chegaram perto de umas faiasmuito altas. Aí, Caça-trufas gritou:

– Farfalhante!

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Quase imediatamente, saltando de ramo emramo, apareceu acima da cabeça dos visitantes ummagnífico esquilo vermelho. Era muito maior queos esquilos mudos que Caspian encontrava àsvezes no jardim do castelo; na verdade, era quasedo tamanho de um cachorro. Bastava olhar paraele para se ver que falava. O problema erajustamente fazê-lo calar, pois, como todos osesquilos, era um grande falastrão. Deu as boas-vindas a Caspian e ofereceu-lhe uma noz. Caspianagradeceu e aceitou. Mas, quando Farfalhante seafastou para ir buscá-la, Caça-trufas disse-lhebaixinho:

– Não fique olhando. É falta de educaçãoentre os esquilos seguir alguém que vai àdespensa... ou olhar como se quisesse saber ondeele guarda as coisas.

Farfalhante voltou com a noz, que Caspiancomeu. O esquilo perguntou se poderia ser útil,levando algum recado a outros amigos.

– Posso ir a quase todo lugar sem botar o pé

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no chão.

Caça-trufas e os anões acharam que erauma excelente idéia e pediram a Farfalhante quelevasse recados a muita gente de nomesesquisitos, convidando a todos para uma reuniãono Gramado da Dança, à meia-noite, dali a trêsdias.

– É bom avisar também os três UrsosBarrigudos – acrescentou Trumpkin. –Esquecemos de lhes dizer.

A visita seguinte foi aos sete irmãos doBosque Trêmulo. Era um lugar solene, entrerochedos e altas árvores. Avançaram comcuidado. Trumpkin chegou junto a uma pedraachatada, do tamanho da tampa de uma talha deágua, e bateu nela com o pé. Depois de demoradosilêncio, alguém arredou a pedra. Apareceu entãoum buraco redondo e escuro, do qual saíambaforadas de fumaça e calor, e de onde emergiu acabeça de um anão, muito parecido comTrumpkin. Conversaram durante muito tempo.

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Embora o anão parecesse mais desconfiado doque o esquilo ou os ursos, acabou convidandotodos para entrar. Caspian desceu por uma escadaescura, que levava a uma caverna iluminada.Estavam numa forja, e o clarão vinha da fornalha.A um canto passava um riacho subterrâneo. Doisanões trabalhavam no fole, um terceiro, com umpar de tenazes, segurava na bigorna um pedaço demetal em brasa, que um quarto anão batia. Outrosdois, limpando as pequenas mãos calosas numpano engordurado, foram ao encontro dosvisitantes. Não foi fácil convencê-los de queCaspian era amigo, mas, uma vez convencidos,gritaram: “Viva o rei!”

Seus presentes eram preciosos: cotas demalha, elmos e espadas para Caspian, Trumpkin eNikabrik. Também quiseram dar o mesmo aotexugo, mas este disse que era bicho, e bicho quenão soubesse defender-se com as patas e osdentes não tinha o direito de viver. Caspianjamais vira armas tão perfeitas, e foi com grandealegria que aceitou a espada feita pelos anões, emtroca da sua que, comparada com aquela, parecia___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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frágil e tosca. Os sete irmãos (todos eles anõesvermelhos) prometeram não faltar ao encontro noGramado da Dança.

Um pouco adiante, numa ravina seca erochosa, ficava a caverna dos cinco anões negros.Olharam desconfiados para Caspian, até que omais velho disse:

– Se ele é contra Miraz, será o nosso rei.Outro propôs:

– Gostaria de ir ao despenhadeiro, ondeainda vivem dois ogres e uma feiticeira?

– Não! – disse Caspian.

– Também acho que não – concordou Caça-trufas. – Não queremos essa gente conosco.

Nikabrik era de opinião contrária, masTrumpkin e o texugo conseguiram fazê-lo calar.

Caspian sentiu um calafrio ao saber quetambém as criaturas más das histórias antigas

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tinham deixado descendência em Nárnia.

– Perderíamos a amizade de Aslam, se nosaliássemos a essa ralé horrorosa – disse Caça-trufas, quando saíram da caverna dos anõesnegros.

– Aslam? – indagou Trumpkin, falandoalegremente e em tom de ligeiro desprezo. –Muito mais do que isso: vocês perderiam a minhaamizade!

– Você acredita em Aslam? – perguntouCaspian a Nikabrik.

– Acredito em qualquer um, ou emqualquer coisa que possa reduzir a pó os bárbarostelmarinos ou expulsá-los de Nárnia. Seja lá quemfor, Aslam ou a Feiticeira Branca. Estáentendendo?

– Cale-se! – ordenou Caça-trufas. – Vocênão sabe o que está dizendo. Ela foi muito pior doque Miraz e toda a sua raça.

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– Para os anões, não – insistiu Nikabrik.

A visita seguinte foi mais agradável. Asmontanhas deram passo a um vale arborizado,atravessado por um rio caudaloso. As margens dorio estavam atapetadas de papoulas e rosas; no arpairava o zumbido das abelhas. Caça-trufasgritou:

– Ciclone!

Passado um instante, ouviu-se o ressoar decascos, cada vez mais alto e mais próximo, atéque o vale inteiro tremeu. Por fim, pisando eesmagando flores, apareceu o grande centauroCiclone e seus três filhos, as mais imponentescriaturas que Caspian vira em toda a vida. Osflancos do centauro eram de um castanho escuro ebrilhante; a barba, que lhe cobria o peito, eravermelho-dourada. Profeta e vidente, o centauronão precisou perguntar ao que vinham.

– Viva o rei! – gritou. – Os meus filhos e euestamos prontos para a guerra. Quando se trava abatalha?___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Até aquele momento, nem Caspian nem osoutros tinham pensado em guerra. Nutriam a vagaidéia de uma ou outra incursão nas terras dealgum humano, ou talvez de um ataque a umgrupo de caçadores, caso estes se aventurassem apenetrar nas regiões selvagens do Sul. No mais,porém, pensavam apenas em viver isolados nosbosques e cavernas, tentando reconstruir qualquercoisa parecida com a antiga Nárnia.

– Você fala de uma guerra de verdade paraexpulsar Miraz? – perguntou Caspian.

– E o que mais poderia ser? – indagou ocentauro. – Que outro motivo teria Vossa Altezapara andar de cota de malha e espada à cinta?

– Será possível, Ciclone? – perguntou otexugo.

– É o momento oportuno – respondeu ele. –Eu observo os céus, texugo, porque compete amim vigiar, como a você compete não esquecer.Tarva e Alambil encontraram-se nos salões dofirma-mento, e na terra voltou a surgir um filho de___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Adão para governar e dar nome às criaturas. Ahora do combate soou. O nosso encontro noGramado da Dança deve ser um conselho deguerra.

Falou de tal maneira que nem por ummomento alguém duvidou. Caspian e os outrosachavam agora perfeitamente possível ganharuma batalha. Estavam certos de que, fosse comofosse, deveriam ir em frente.

Como já passasse do meio-dia,descansaram junto dos centauros e comeram oque estes tinham a oferecer: bolos de aveia,maçãs, salada, vinho e queijo.

Era perto o lugar que pretendiam visitar,mas tiveram de dar uma grande volta, evitandouma região habitada pelos homens. A tarde já iaadiantada quando se acharam em terreno plano.Num buraco em uma valeta verdejante, Caça-trufas chamou alguém, e de lá saiu a última coisaque Caspian poderia esperar: um rato falante.

Claro que era maior que um rato comum –___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mais de trinta centímetros, quando ficava em pésobre as patas traseiras – , e suas orelhas eramquase tão compridas quanto as de um coelho, sóque mais largas. Chamava-se Ripchip e tinha umar marcial e alegre. Da cinta pendia-lhe umminúsculo florete, e retorcia os longos pêlos dofocinho como se fossem bigodes.

– Somos doze, Real Senhor – disse, comrápida e graciosa vênia – , e todos os recursos domeu povo estão incondicionalmente à suadisposição.

Caspian teve de fazer um enorme esforçopara não rir, pois não pôde evitar o pensamentode que Ripchip e todo o seu exército podiamfacilmente ser carregados às costas, dentro de umcesto de roupa.

Tomaria um tempo enorme enumerar todosos animais que Caspian conheceu nesse dia:Escava-terra, a toupeira, os três Trincadores(texugos como Caça-trufas), Camilo, a lebre,além de Barbaças, o ouriço. Descansaram

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finalmente junto de um poço à beira de umacampina relvada, à volta da qual cresciamchoupos altos cuja sombra, ao poente, sealongava sobre o campo. As margaridascomeçavam a fechar as pétalas, e os pássarosbuscavam os ninhos. Depois de cearem o quetinham trazido, Trumpkin acendeu o cachimbo(Nikabrik não fumava).

O texugo disse:

– Se pudéssemos despertar o espírito destasárvores e deste poço, poderíamos hoje nos dar porsatisfeitos.

– E por que não? – perguntou Caspian.

– Não temos poder sobre eles. Desde queos humanos invadiram o país, derrubando asárvores e secando as fontes, as dríades e asnáiades mergulharam num sono profundo. Quemsabe se algum dia voltarão a acordar? Essa é anossa grande perda. Os telmarinos têm horror aosbosques, e bastaria que as árvores avançassempara eles em fúria, para que os nossos inimigos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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ficassem loucos de medo e fugissem de Nárnia atoda a velocidade.

– Que imaginação têm os animais! – troçouTrumpkin, que não acreditava nessas coisas. — Epor que só as árvores e as fontes? Não seria aindamais engraçado se as próprias pedras começassema atirar-se contra o velho Miraz?

O texugo limitou-se a resmungar, e fez-seum silêncio tão longo que Caspian estava prestesa adormecer, quando lhe pareceu ouvir umamúsica suave, vinda do meio dos bosques. Achouque estava sonhando e voltou-se para o outrolado. Mas, ao encostar o ouvido à terra, sentiu ououviu o rufar longínquo de um tambor. Ergueu-se.O rufar do tambor tornou-se mais fraco, mas amúsica voltou, mais nítida agora. Pareciamflautas. Viu que Caça-trufas se sentara, olhando afloresta. O luar estava claro, e Caspian percebeuque dormira mais do que imaginara. A músicaestava cada vez mais nítida, uma melodia alegre eromântica, acompanhada pelo ruído de muitos pésligeiros. Passando do bosque para a campina___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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inundada de luar, surgiram por fim vultosbailando, aqueles com que Caspian sonhara a vidatoda. Pouco mais altos que os anões, eram muitomais esguios e graciosos. Nas cabeçasencaracoladas tinham pequenos chifres, e seutronco nu brilhava à luz do luar; as pernas e ospés eram de bode.

– Faunos! – exclamou Caspian, pondo-sede pé num salto. Imediatamente todos orodearam. Não tardou para que a situação fosseexplicada aos faunos e estes logo aceitassemCaspian. E, antes mesmo que pudesse dar-seconta, Caspian se viu dançando. O mesmoaconteceu a Trumpkin, que acompanhava osoutros com movimentos pesados e desajeitados.Caça-trufas ia correndo e pulando de qualquerjeito. Só Nikabrik continuou no mesmo lugar,olhando em silêncio. Os faunos rodopiavam àvolta de Caspian ao som alegre das flautas debambu. Tinham uma expressão estranha, a umtempo alegre e triste. Eram dezenas e

dezenas de faunos: entre eles estavam___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Mentius, Obentinus, Dumnus, Voluns, Voltinus,Girbius, Nimienus, Nausus e Oscuns. Farfalhantenão se esquecera de nenhum.

Quando Caspian acordou na manhãseguinte, teve a impressão de que tudo nãopassara de um sonho. Mas a relva estava todacoberta pelos pequeninos sinais dos cascos...

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A ANTIGA NÁRNIA EMPERIGO

A campina onde se encontraram com osfaunos era o próprio Gramado da Dança. Caspiane seus amigos ficaram lá até a noite do grandeConselho. Dormir ao ar livre, beber apenas água,alimentar-se quase exclusivamente de nozes efrutos do mato foi uma experiênciacompletamente nova para quem, como Caspian,estava habituado a deitar em lençóis de linho noquarto atapetado de um palácio, a ter as refeiçõesservidas numa antecâmara, em baixelas de prata eouro, com muitos criados prestimosos. NuncaCaspian fora tão feliz. Nunca o sono o deixara tãodescansado, nem a comida lhe parecera tão

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saborosa: assim, começou a ficar maduro deespírito, e seu rosto adquiriu uma expressão regia.

Quando a grande noite chegou, e os seusestranhos súditos começaram a entrar nogramado, Caspian teve um estremecimento dealegria, ao verificar que formavam uma multidão.Era quase lua cheia e estavam presentes todosaqueles com os quais falara antes: os UrsosBarrigudos, os anões vermelhos, os anões negros,as toupeiras, os texugos, as lebres, os ouriços, emais, muitos que ainda não conhecia: os cincosátiros de pêlo vermelho, todo o contingente dosratos falantes, armados até os dentes e marchandoao som de uma trompa esganiçada, algumascorujas e o velho corvo da Brenha do Corvo. Porfim, deixando Caspian de boca aberta, veio comos centauros um jovem mas autêntico gigante:Verruma, da Colina do Morto. Trazia às costasum cesto cheio de anões muito enjoados, quetinham aceitado a carona e lamentavam agora nãoter feito a viagem a pé.

Os ursos eram de opinião que se fizesse a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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festa primeiro e se deixasse o Conselho para maistarde... talvez até para o dia seguinte. Ripchip e osratos achavam que tanto a festa quanto oConselho podiam esperar, e propunham que seatacasse o castelo de Miraz naquela mesma noite.Farfalhante e outros esquilos afirmavam que sepodia comer e falar ao mesmo tempo. Queriamera começar logo. As toupeiras estavam dispostas,antes de tudo, a cavar trincheiras em torno dogramado. Os faunos achavam que se deviacomeçar por um bailado cerimonial. O velhocorvo pediu que lhe permitissem dirigir algumaspalavras a toda a assistência. Porém, Caspian, osanões e os centauros puseram de lado todas essasidéias e resolveram reunir imediatamente umverdadeiro Conselho de Guerra.

Quando finalmente os bichos concordaramem sentar-se, em silêncio, num grande círculo, edepois de se ter conseguido (com a maiordificuldade) que Farfalhante deixasse de correr deum lado para outro e de gritar: – Silêncio!Silêncio! O rei vai falar! – Caspian, um pouconervoso, levantou-se.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Narnianos! – começou, mas não chegou adizer mais nada, porque, nesse mesmo instante,Camilo, a lebre, gritou:

– Alto! Tem um Homem escondido por aí!

Eram todos criaturas do mato, habituadas aserem perseguidas; portanto, ficaram logoimóveis como estátuas. Os animais limitaram-se avoltar a cabeça na direção que Camilo indicara.

– Cheira a Homem, mas ao mesmo temponão parece bem Homem – disse Caça-trufas, numsussurro.

– Está chegando mais perto – disse Camilo.

– Dois texugos e três anões, avancemdevagarinho – ordenou Caspian.

– Vamos acabar com ele! – declarou umanão negro, ameaçador, preparando uma flecha.

– Se vier só, não disparem; tragam oHomem vivo – disse Caspian.

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– Por quê? – perguntou um dos anões.

– Faça o que lhe ordenaram – disse ocentauro. Todos guardaram silêncio, enquanto ostrês anões e os dois texugos se esgueiravam nadireção das árvores, a noroeste do gramado.Ouviu-se de repente a voz aguda de um anão:

– Alto! Quem vem lá? – e logo em seguidaum salto rápido. Instantes depois, uma voz bemconhecida de Caspian dizia:

– Pronto! Estou desarmado. Se quiserem,podem algemar-me, nobres texugos. Quero falarcom o rei.

– Doutor Cornelius! – exclamou Caspian,louco de alegria, precipitando-se ao encontro dovelho preceptor. Todos se aproximaram.

– Hum! – exclamou Nikabrik. – Um anãorenegado! Quase não tem sangue de anão. Que talse eu lhe enfiasse a espada?

– Quieto, Nikabrik – disse Trumpkin. – O___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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pobre não tem culpa de sua ascendência.

– Este é o meu maior amigo, a quem devo avida. Se existe alguém aqui que não goste dacompanhia dele, pode abandonar imediatamenteminhas fileiras. Caro doutor, não calcula comoestou feliz de vê-lo outra vez. Como conseguiuchegar aqui?

– Um truquezinho muito simples –respondeu o doutor, ainda ofegante da corrida. –Mas agora não há tempo para explicações. Temosde fugir daqui. Alguém traiu o meu Real Senhor eMiraz está a caminho. Amanhã, antes do meio-dia, estarão todos cercados.

– Traídos?! – exclamou Caspian. – Mas porquem?

– Por quem havia de ser? Algum anãorenegado, é claro – disse Nikabrik.

– Foi Destro, o seu cavalo – disse o doutorCornelius. – O pobre animal, não sabendo o quefazer depois da queda, simplesmente voltou para___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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a cavalariça do castelo. Fugi, para não serinterrogado na câmara de tortura de Miraz. Pormeio de minha bola de cristal, sabia muito bemonde podia encontrá-lo. Mas durante o dia todo –isso foi há três dias – os homens de Mirazpercorreram os bosques. Ontem soube que oexército está a caminho. Parece que alguns dosseus... dos seus anões de puro-sangue... não têm omenor sentido de orientação. Deixaram pegadaspor toda a parte. Grave descuido. Seja como for,alguma coisa avisou Miraz de que a antiga Nárnianão está extinta, como ele julgava, e por isso eleentrou em ação.

– Oba! – ouviu-se uma vozinha muitoestridente, junto dos pés do doutor. – Podem vir!Só peço que o rei me coloque, a mim e aos meus,na linha de frente.

– Que negócio é esse? – perguntou odoutor. – Há gafanhotos... ou mosquitosincorporados ao exército? – Depois, inclinando-see olhando atentamente através dos óculos,desatou a rir, exclamando: – Pela juba do Leão! É___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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um rato. Senhor Rato, tenho grande prazer emconhecê-lo. É uma honra encontrar um bicho tãovalente.

– Pode contar com a minha amizade, sábiodoutor – guinchou Ripchip. – Qualquer anão... ougigante... que se atreva a falar-lhe sem respeitoterá de enfrentar esta espada.

– Ainda há tempo para essas palhaçadas? –perguntou Nikabrik. – Quais são, afinal, os seusplanos? Lutar ou fugir?

– Lutar, se for necessário – declarouTrumpkin. – Mas acho que não estamospreparados para uma guerra, e aqui temos poucadefesa.

– Não me agrada fugir – disse Caspian.

– Atenção! Ouçam o que ele diz – gritaramos ursos. – Haja o que houver, nada de fugir. Enunca antes da ceia. Nem logo a seguir, é claro.

– Os que fogem primeiro nem sempre são___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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os que haverão de fugir no final – disse ocentauro. – E por que havemos de deixar que oinimigo escolha posições, em vez de asescolhermos nós? Proponho que se procure umapraça forte.

– O plano é sensato, muito sensato – disseCaça-trufas.

– Mas para onde iremos? – perguntarammuitas vozes.

– Real Senhor – começou o doutorCornelius – e todas vocês, criaturas, ouçam-me.Julgo que seria aconselhável fugir para oeste e,descendo o rio, penetrar na floresta. Ostelmarinos odeiam aquela região. Sempre tiverammedo do mar e do que possa vir de além-mar. Porisso plantaram as florestas. Se a lenda éverdadeira, o velho castelo de Cair Paravel ficajunto à foz do rio. Toda aquela zona nos épropícia; ao inimigo é fatídica. Vamos para oMonte de Aslam.

– Monte de Aslam? Que é isso?___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Fica além do Grande Bosque: é umenorme baluarte que os narnianos construíram hámuito tempo, num lugar de grande poder mágico,onde estava – e talvez esteja ainda – uma pedra degrande magia. O Monte foi todo escavado pordentro em galerias e cavernas, e a Mesa de Pedraestá na caverna central. Lá temos lugar paraguardar provisões e, além disso, todos os queprecisam de um teto, ou os que estão habituados aviver debaixo da terra, podem ficar acomodadosnas cavernas. Em caso de necessidade, todos nós(com exceção do nosso digno gigante) poderemosrefugiar-nos no Monte, onde estaremos ao abrigode todos os perigos, menos da fome.

– É uma vantagem enorme ter conosco umhomem instruído – disse Caça-trufas. MasTrumpkin resmungou em voz baixa:

– Ora bolas! Seria muito melhor se osnossos chefes deixassem de lado essas históriasda carochinha e se preocupassem mais com armase víveres.

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Mas a proposta de Cornelius foi aceita, emeia hora mais tarde estavam a caminho. Antesdo romper do dia chegaram ao Monte de Aslam.

O lugar era, na verdade, de assustar: ummorro redondo e verde no cimo de outro morro,havia muito encoberto de árvores, com apenas umpequeno e baixo portal como entrada. Lá dentro,os túneis formavam um verdadeiro labirinto, e asparedes e o teto eram revestidos de pedras lisas,nas quais Caspian, olhando com atenção, viucaracteres estranhos e desenhos sinuosos e muitasimagens em que se repetia várias vezes a formade um Leão. Tudo aquilo parecia pertencer a umaNárnia ainda mais antiga do que a Nárnia de queouvira falar.

Foi depois de instalados, dentro e fora doMonte, que as coisas começaram a correr mal. Osespiões do rei Miraz deram com o rasto deles, enão tardou que o rei e o seu exército aparecessemno extremo do bosque. Como acontece tantasvezes, verificou-se que o inimigo era muito maisforte do que se supunha. Caspian sentiu-se___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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desfalecer ao ver chegar um batalhão atrás dooutro. Se bem que os soldados tivessem medo deentrar na floresta, tinham ainda muito mais medode Miraz; com este comandando-os, entravamfundo na batalha, chegando por vezes àsproximidades do Monte. Claro que Caspian e osseus capitães fizeram também repetidas incursõesno campo aberto. Quase não se passava um diasem luta, e muitas vezes guerreavam de noitetambém. Mas, quase sempre, era o exército deCaspian que levava a pior.

Chegou por fim uma noite em que as coisasnão podiam ter sido piores. A chuva, que caírapesada durante todo o dia, só parou à tardinha,para dar lugar a um frio mortal. Para o amanhecer,Caspian planejara o grande ataque, no qual todospunham as suas esperanças. Caspian, com agrande maioria dos anões, deveria atacar demadrugada a ala direita do exército real. Quandoestivessem no mais aceso da batalha, o giganteVerruma, acompanhado pelos centauros e pelosanimais mais fortes, deveriam atacar em outroponto, a fim de cortar a ala direita de Miraz do___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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resto do exército. Mas o plano falhou. A verdadeé que ninguém avisara Caspian (porque ninguémem Nárnia se lembrara disso) de que os gigantesnão costumam brilhar pela inteligência. Ora, opobre Verruma, se bem que corajoso comopoucos, era neste aspecto um autêntico gigante.Atacara, pois, onde não devia, em momentopouco oportuno, causando graves perdas aosbatalhões de Caspian e ao seu próprio, e quasesem causar danos às forças inimigas. O maior dosursos ficara ferido, um centauro mais ainda, e eradifícil encontrar no grupo de Caspian quem nãotivesse derramado sangue. Nessa noite, foi umamultidão deprimida que se juntou debaixo dasárvores gotejantes para comer uma ceia frugal. Omais triste de todos era o gigante. Sabia que aculpa era toda dele. Sentado em silêncio,derramou enormes lágrimas, que se juntaram naponta de seu nariz para caírem depois, em cascata,sobre o grupo dos ratos, que nesse momentocomeçava a se aquecer e a pegar no sono.Levantaram-se de um pulo, sacudindo a água quelhes entrara pelas orelhas, torcendo os minúsculoscobertores com que se cobriam, perguntando ao___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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gigante, em voz esganiçada mas imperiosa, seachava que eles ainda não estavamsuficientemente encharcados, mesmo sem aquelachoradeira toda. Outros acordaram tambémirritados, lembrando aos ratos que tinham sidoincorporados ao exército como sentinelas e nãocomo banda de música. O infeliz Verrumaafastou-se na ponta dos pés, à procura de umlugar onde pudesse chorar à vontade. Mas, porcúmulo do azar, pisou logo numa cauda e o donodesta (a raposa, como depois se verificou) tacou-lhe uma dentada. Nada havia a fazer. Estavamtodos muito mal dispostos naquela noite.

Na caverna mágica no centro do Monte, orei Caspian reunia um Conselho de Guerra, comCornelius, o texugo, Nikabrik e Trumpkin.Velhas colunas maciças sustentavam o telhado;ao centro, a Mesa de Pedra, fendida de lado alado, coberta com o que deviam ter sidocaracteres de alguma escrita antiga. Anos e anosde chuva, vento e neve tinham apagado quase porcompleto os relevos da pedra, antes mesmo que oMonte fosse erguido sobre ela. O Conselho não se___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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reunira à volta da Mesa, nem estava fazendo usodesta – o seu caráter sagrado tornava-a imprópriapara fins vulgares. Os membros do Conselhotinham se sentado em troncos, junto de uma toscamesa de madeira sobre a qual ardia umalamparina de barro, iluminando-lhes o rosto eprojetando nas paredes sombras imensas.

– Se o rei tenciona algum dia fazer uso datrompa, acho que chegou a hora – disse Caça-trufas.

– Sem dúvida, estamos numa situaçãodesesperadora – concordou Caspian. – Mas quempoderá dizer-nos se as coisas não vão piorar? E sechegarmos a uma situação ainda maisdesesperadora depois de termos tocado a trompa?

– Raciocinando desse jeito, a trompa sóserá tocada quando for tarde demais – objetouNikabrik.

– É verdade – disse o doutor.

– Que acha, Trumpkin? – perguntou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Caspian.

– Ora, quanto a mim, o rei sabe bem o quepenso da Trompa... e desta pedra rachada... e doGrande Rei Pedro... e do seu Aslam. Tudo isso écascata – declarou o anão, que seguira a conversacom a mais completa indiferença. – Tanto faz quese toque a trompa agora, como em qualquer outrahora. Só peço que não se fale disso com ossoldados. Não vale a pena alimentar esperançasem auxílios mágicos, que (na minha opinião)sempre fracassam.

– Então, em nome de Aslam, farei soar atrompa da rainha Susana – disse Caspian.

– Temos de pensar ainda numa coisa –disse o doutor. – Não sabemos sob que forma noschegará o auxílio. Pode ser que o próprio Aslamvenha de além-mar, mas me parece mais provávelque, saídos do passado, venham até nós o GrandeRei Pedro e os seus bravos companheiros. Numcaso ou no outro, nada nos garante que o auxíliose manifeste aqui...

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– Perfeito! – interrompeu Trumpkin.

– É possível – prosseguiu o sábio – queeles ou ele voltem a alguns dos velhos lugares deNárnia. Este, onde nos encontramos agora, é omais antigo e mais sagrado de todos, pelo que meparece provável que a resposta ao nosso apelo seconcretize aqui. Mas não devemos esquecer doisoutros. Um é o Ermo do Lampião perto danascente do rio, a leste do Dique dos Castores.Segundo reza a lenda, foi aí que as crianças reaisentraram em Nárnia. O outro é junto à foz dessemesmo rio, no local onde outrora se ergueu CairParavel. Se o próprio Aslam vier ao nossoencontro, será esse o local mais adequado pararecebê-lo, pois em todas as lendas ele é filho dogrande Imperador-de-Além-Mar. Quando vier,sem dúvida surgirá do mar. Seria bom queenviássemos mensageiros a esses dois lugares,para recebê-lo... ou recebê-los. – Já esperava porisso! – resmungou Trumpkin. – O resultado detoda essa tolice será perder dois soldados, em vezde obter auxílio.

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– Os esquilos são ideais para cruzar oterritório inimigo – disse o texugo.

– Todos os nossos esquilos (e não sãotantos assim!) são assustadiços – disse Nikabrik.– Farfalhante é o único no qual se pode confiar.

– Pois que se mande Farfalhante – decidiuCaspian. – E quem será o outro? Sei que vocêestaria pronto para partir, Caça-trufas, mas émuito lento. E o doutor também.

– Eu é que não entro nessa! – declarouNikabrik. – Com todos esses humanos e animaispor aqui, tenho de ficar para ver se os anões sãobem tratados.

– Cale a boca! – gritou Trumpkin, colérico.– É assim que se fala ao rei? Se quer que eu seja omensageiro, Real Senhor, estou pronto parapartir.

– Mas, Trumpkin, pensei que você nãoacreditava na trompa... – disse Caspian.

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– E não acredito mesmo! Mas o que umacoisa tem a ver com a outra? Sei quando se tratade dar um conselho ou de receber uma ordem.

– Nunca me esquecerei de sua nobreatitude, Trumpkin. Chamem Farfalhante aquiimediatamente. Quando devo tocar a trompa?

– Aconselho que espere o nascer do sol –disse o doutor Cornelius. – A madrugada costumaser favorável às operações de magia branca.

Passados alguns instantes chegavaFarfalhante, a quem explicaram o que tinha afazer. Como à maior parte dos esquilos, não lhefaltava nem coragem, nem entusiasmo, nemenergia, nem espírito de aventura (para não falarem vaidade); mal fora informado de sua tarefa,ficou louco para partir. Resolveu-se que iria parao Ermo do Lampião, enquanto Trumpkin faria opercurso mais curto até a foz do rio. Partiram comos votos de boa sorte do rei, do texugo e dodoutor.

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A PARTIDA DA ILHA

Trumpkin continuou... Você já percebeuque era ele quem, sentado na relva do salão emruínas de Cair Paravel, estava contando a históriapara as quatro crianças:

– E assim meti no bolso um naco de pão e,só com o meu punhal, parti de madrugada nadireção dos bosques. Já caminhava havia horas,quando ouvi um som diferente de tudo quantoouvira até ali. E nunca mais me esqueci! Um somvibrante, forte como o estrondo do trovão, masmuito mais prolongado; melodioso e doce como amúsica sobre a água, mas com intensidadebastante para estremecer os bosques. Ao ouvi-lo,disse para mim mesmo: “Macacos me mordam, se___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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isto não é a trompa!” E fiquei imaginando por queCaspian não a teria tocado mais cedo...

– A que horas foi isso? – perguntouEdmundo.

– Entre nove e dez.

– Exatamente a essa hora estávamos nós naestação – disseram as crianças, entreolhando-secom os olhos brilhantes de excitação.

– Por favor, continue – pediu Lúcia aoanão.

– Bem, como ia dizendo, fiquei pensandomas fui em frente, o mais depressa que podia.Andei a noite toda e, hoje de manhãzinha, quandocomeçava a clarear, comportando-me como umgigante imbecil, resolvi encurtar caminho. Paraevitar uma curva enorme do rio, meti-me a campodescoberto. Foi aí que me pegaram. Não caíprisioneiro do exército, mas de um idiota metido abesta, que toma conta de um pequeno casteloperto da costa, último reduto de Miraz. Não___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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preciso dizer que não arrancaram de mim umaúnica palavra, mas eu era um anão, e isso bastava.Mas, com trinta diabos, foi uma sorte o oficial serum bestalhão cheio de prosa. Outro qualquer teriaacabado comigo ali mesmo. Ele, porém, só secontentaria com uma execução grandiosa:entregar-me aos fantasmas, com toda a pompa.Mas esta jovem (fez com a cabeça um sinalindicando Susana) recorreu à arte do arqueiro –que bela pontaria, parabéns! – e aqui estamostodos, sãos e salvos. No meio disso tudo, só perdia armadura. Tendo chegado ao fim, o anãosacudiu o cachimbo e tornou a enchê-locuidadosamente.

– Fabuloso! – exclamou Pedro. – Então foia trompa... a sua trompa, Su.. que ontem demanhã nos arrancou do banco da estação! Édifícil acreditar nisso, mas a verdade é que tudose encaixa...

– Não sei por que é difícil de acreditar, sevocê acredita em magia – disse Lúcia. – Não hátantos casos em que por magia as pessoas são___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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chamadas a sair de um lugar... até a passar de ummundo para outro? Nas Mil e uma noites, quandoo mago conjura o gênio, ele tem de aparecer. Foimais ou menos o que aconteceu conosco.

– Exato – concordou Pedro. – Mas o quefaz isso parecer tão estranho é que, nas histórias,é sempre alguém do nosso mundo que faz ochamado... E ninguém realmente pára pra pensarde onde vem o gênio.

– E agora podemos compreender como ogênio se sente – disse Edmundo, com umagargalhada. – Caramba! Não é muito agradávelsaber que podemos estar à mercê de um assovio.Ainda é pior do que ser escravo do telefone, comopapai se queixa tanto.

– Mas não estamos aqui de má vontade,desde que seja esta a vontade de Aslam – disseLúcia.

– E agora? Que vamos fazer? – perguntou oanão. – Acho que o melhor seria dizer ao reiCaspian que afinal o auxílio não veio...___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Não veio, o quê! Essa é boa! Veio simsenhor, e aqui estamos nós!

– Bem... que estão aí, estão... Mas achoque... – gaguejou o anão, cujo cachimbo pareciaestar entupido (pelo menos ele fingia estar muitoocupado limpando-o). – Mas... bem... quer dizer...

– Mas ainda não percebeu quem somosnós? – gritou Lúcia. – Que anão mais bobo!

– Devem ser as quatro crianças da lenda –disse Trumpkin. – Tenho muito prazer emconhecê-los, é claro. Não há dúvida de que esteencontro é muito interessante... Mas, sem quererofender... – e voltou a ficar hesitante.

– Vá em frente e diga o que tem a dizer –falou Edmundo, impaciente.

– Bem, não fiquem ofendidos... Mas, comojá disse, o rei, Caça-trufas e o doutor Corneliusesperavam por auxílio. Não sei se estão meentendendo... Para falar mais claro: elesimaginavam vocês como grandes guerreiros. Não___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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sendo assim... bem, nós adoramos crianças, mas aesta altura... em plena guerra... acho que vocêsestão entendendo...

– Ah, você pensa que não agüentamos umagata pelo rabo, não é? – disse Edmundo, corandomuito.

– Por favor, não fique zangado! –interrompeu o anão. – Asseguro-lhes, carosamiguinhos...

– E ainda trata a gente por amiguinhos?! Édemais! – protestou Edmundo, levantando-se deum pulo. – Não acredita então que fomos nós queganhamos a batalha do Beruna? Bem, de mimpode dizer o que quiser, mas a verdade...

– Não vale a pena discutir – disse Pedro.Vamos à sala do tesouro arranjar uma armaduranova para ele e armas para nós. Depoisconversamos.

– Isso não adianta... – começou Edmundo.Lúcia disse-lhe baixinho:___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Melhor fazer o que Pedro está dizendo.Ele é o Grande Rei e tem decerto uma idéia.

Edmundo concordou e, à luz da lanterna,todos (inclusive Trumpkin) desceram as escadas epenetraram na escuridão gelada, ao encontro dasriquezas empilhadas na sala do tesouro.

Os olhos do anão brilharam ao verprateleiras e prateleiras cheias de tesouros(embora tivesse de andar na ponta dos pés paraver alguma coisa) e disse para si mesmo: “NuncaNikabrik ouviu falar de tanta riqueza, nunca!”

Não foi difícil encontrar uma cota de malhapara o anão, elmo e escudo, arco e aljava, tudo dotamanho dele. O elmo era de cobre, incrustado derubis; o punho da espada era de ouro. Trumpkinjamais vira coisas tão ricas, nem tampoucosonhara usá-las um dia. As crianças tambémvestiram cotas de malha e puseram elmos.Escolheram depois uma espada e um escudo paraEdmundo e um arco para Lúcia... Pedro e Susananão precisavam, porque tinham os presentes.

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Quando subiram as escadas, ouvindo o tilintar dasarmaduras e sentindo-se mais narnianos do quemeninos de colégio, os rapazes ficaram para trás,combinando qualquer coisa. Lúcia ouviuEdmundo dizer:

– Não, deixe comigo!

– Está bem, Ed – concordou Pedro. Quandochegaram lá fora, Edmundo voltou-sedelicadamente para o anão:

– Tenho uma proposta a fazer. Não é tododia que meninos da minha idade encontram umgrande guerreiro como você. Quer fazer umpouco de esgrima? Acho que não há nada demal...

– Mas, garoto, estas espadas estão afiadas...

– Sei disso! Mas não tenho a intenção deme aproximar, e você saberá como me desarmarsem me ferir.

– É uma brincadeira perigosa – objetou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Trumpkin – mas, já que insiste, vamos lá!

Num abrir e fechar de olhos,desembainharam as espadas, enquanto os outrostrês pulavam do estrado, para ver o queaconteceria. E valia a pena. Porque não era umdaqueles ridículos combates à espada, que a gentevê no cinema. Nem mesmo uma daquelas lutas deflorete, que costumam ser um pouco melhores.Não, era um verdadeiro combate à espada. Oprincipal num encontro desses é atacar as pernas eos pés do inimigo, visto serem as únicas partes docorpo sem armadura. E, quando o outro faz omesmo, o jeito é pular, para que os golpes passempor baixo. Para o anão isso foi uma vantagem,pois Edmundo, sendo muito mais alto, tinha deabaixar-se a todo momento. E não acho queEdmundo teria tido alguma chance de ganhar,caso tivesse enfrentado Trumpkin vinte e quatrohoras antes. Mas, desde que tinham chegado àilha, a atmosfera de Nárnia estava atuando sobreele; o entusiasmo dos antigos combates invadiu-onos braços e nos dedos, e voltou a sentir a antigadestreza. Era outra vez o rei Edmundo! Os golpes___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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seguiam-se, obrigando os combatentes a semoverem em círculo, e Susana, que nuncaconseguira habituar-se a esse gênero de coisas,gritava:

– Cuidado! Cui-da-do!

A certa altura, num movimento tão rápidoque ninguém conseguiu ver bem o lance (a nãoser Pedro, que já sabia o que ia acontecer),Edmundo, dando um jeito especial à espada,desarmou o anão, deixando Trumpkin a esfregar amão vazia, como a gente faz depois de ser picadopor uma abelha.

– Espero que não tenha se machucado,amigo! – disse Edmundo, ainda um poucoofegante, ao guardar a espada na bainha.

– Agora estou entendendo. – disseTrumpkin, secamente. – Você sabe um truque queeu não sei.

– É pura verdade – apressou-se a concordarPedro. – O melhor espadachim do mundo não___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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resiste a um golpe desconhecido. Por isso, achojusto que se dê a Trumpkin uma oportunidade, emqualquer outra coisa. E se fosse tiro ao alvo, alicom a minha irmã? Não pode haver truque!

– Estou vendo que vocês gostam de sedivertir. Como se eu não conhecesse a pontariadela depois do que aconteceu hoje de manhã!Mas, vá lá! Quero ver.

Falou como quem está mal-humorado, masseus olhos brilhavam, porque, entre os seus, eraatirador famoso.

Foram os cinco para o pátio.

– Qual é o alvo? – perguntou Pedro.

– Pode ser aquela maçã naquele ramo emcima do muro – propôs Susana.

– Perfeitamente! – concordou o anão. – Eaquela amarelinha no meio do arco, não é?

– Não, aquela não! – replicou Susana. A

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outra, a vermelha, lá em cima, sobre as ameias.

O entusiasmo do anão sumiu.

– Parece mais uma cereja! – resmungouconsigo mesmo, sem coragem para falar alto.

Jogaram cara ou coroa, para grandeadmiração do anão, que nunca tinha visto aquilo.Susana perdeu. O lugar escolhido para atirar foi oalto das escadas que conduziam do salão para opátio. Pelo jeito de o anão tomar posição epreparar o arco, via-se logo que ele sabia o queestava fazendo.

Ziiim! – a corda vibrou. Foi um golpeesplêndido. A maçã estremeceu, quando a flecharoçou por ela e uma folha saiu voando. Susana foipara o alto das escadas e segurou o arco. Nãoestava tão à vontade como Edmundo nacompetição anterior. Não que sentisse medo deerrar, mas era tão boa que lhe custava derrotaralguém que já tinha sido derrotado. Enquantoerguia o arco à altura do rosto, o anão não tirou osolhos dela. Um instante depois, com um___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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barulhinho seco, perfeitamente audível, a maçãtrespassada pela flecha tombava na relva.

– Sensacional, Su! – gritaram as crianças.

– Não é que a minha pontaria seja melhordo que a sua – disse Susana para o anão. – É quehavia uma brisa soprando quando você atirou.

– Não havia brisa coisa nenhuma! – disseTrumpkin. – Não precisa se desculpar. Sei muitobem quando sou derrotado com lealdade. Logoque eu ficar bom do braço, nem vou me lembrarmais do ferimento...

– O quê! Está ferido? – perguntou Lúcia. –Mostre-me.

– Não é espetáculo para menininhas –começou Trumpkin, mas calou-se logo. – Já estoudizendo bobagens outra vez. Afinal, quem megarante que você não é uma excelente enfermeira,assim como seu irmão é um grande espadachim esua irmã uma fabulosa arqueira?

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Sentou-se num degrau, tirou a cota demalha, arregaçou a manga da camisa, mostrandoum braço peludo e musculoso como o de ummarinheiro em miniatura. Lúcia começou a tirar aligadura que desajeitadamente envolvia o ombrodo anão. O ferimento tinha um mau aspecto, e obraço estava muito inchado.

– Pobre Trumpkin! – exclamou ela. – Istoestá muito ruim.

Com cuidado, deixou cair sobre a feridauma gota do precioso elixir do frasco.

– Ei, o que é isso?! – perguntou Trumpkin,que, por mais que voltasse a cabeça e revirasse osolhos e sacudisse a barba, não conseguia ver oombro. Sentia-se agora perfeitamente bem,conseguindo fazer com os braços e com os dedosmovimentos difíceis, como se sentisse cócegasnum lugar inatingível. Por fim gritou:

– Com trinta mil demônios! Parece novinhoem folha! – E desandou a rir, dizendo: – Nuncaum anão fez um papel tão imbecil quanto eu hoje.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Apresento minhas humildes homenagens aVossas Majestades. Agradeço-lhes terem salvo aminha vida, tratado do meu braço, o almoço, eagradeço também a lição que me deram.

Não havia nada a agradecer, disseram ascrianças.

– Se agora está disposto a acreditar emnós... – disse Pedro.

– Claro que estou! – falou o anão.

– Então sabemos o que temos de fazer –continuou Pedro. – Devemos ir logo ao encontrodo rei.

– Quanto mais depressa, melhor! –concordou o anão. – A minha burrice já nos fezperder uma hora.

– Se formos pelo caminho por onde vocêveio, serão uns dois dias de viagem – disse Pedro.– Para nós, é claro, pois não conseguimos andardia e noite como os anões. – E voltando-se para___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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os outros acrescentou: – O que Trumpkin chamade Monte de Aslam é, sem dúvida, a Mesa dePedra. A gente andava uma manhã toda, talvezum pouco menos, para ir dali às margens doBeruna... Lembram-se?

– Ponte do Beruna – interrompeu o anão.

– No nosso tempo não havia ponte. E doBeruna até aqui era mais de um dia. Andando apasso normal, a gente costumava chegar nosegundo dia, mais ou menos na hora do lanche.Com um pouco de esforço, talvez possamos fazero caminho em um dia e meio.

– Não se esqueçam: agora é tudo floresta –disse Trumpkin – , e temos de evitar o inimigo.

– Mas será que precisamos seguir ocaminho por onde veio o nosso caro amiguinho?– perguntou Edmundo.

– Pare com isso, Majestade, se me querbem – implorou o anão.

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– Pois não – concordou Edmundo. – Possoentão chamá-lo de N.C.A.?

– Está bem, menino... quero dizer,Majestade – disse Trumpkin, com umagargalhada. – E, a partir daí, muitas vezes otrataram por N.C.A., até quase se esquecerem doque significava.

– Mas, como ia dizendo – continuouEdmundo – , acho que podemos ir por outrocaminho. Por que não vamos de barco em direçãoà baía do Espelho d’Água e seguimos depois lápor cima? Sairíamos por trás da colina da Mesade Pedra e, ao menos enquanto estivéssemos nomar, estaríamos seguros. Se partirmosimediatamente, poderemos chegar ao Espelhod’Água antes do anoitecer, descansar ali umpouco e estar com Caspian amanhã de manhã.

– Não há nada como conhecer a costa –disse Trumpkin. – Nunca tinha ouvido falar doEspelho d’Água.

– E quanto à comida? – perguntou Susana.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Teremos de nos contentar com maçãs –disse Lúcia. – Mas vamos embora! Há quase doisdias que estamos aqui e ainda não fizemos nada.

– Mas fiquem sabendo desde já que meuchapéu não servirá mais de cesto para peixe.Arranjem-se como quiserem! – declarouEdmundo.

Com uma capa de chuva fizeram umaespécie de saco, que encheram de maçãs. Depois,foram beber água no poço, porque só no Espelhod’Água voltariam a encontrar água doce. Eseguiram para o barco. As crianças tiveram penade deixar Cair Paravel, porque, mesmo em ruínas,sentiam-se bem lá.

– É melhor que N.C.A. fique no leme –sugeriu Pedro. – Ed e eu tomaremos conta dosremos. Um momento... Será melhor tirarmos asarmaduras, senão daqui a pouco estaremossuando. As meninas vão na proa, para daremindicações ao N.C.A., pois ele não conhece acosta. Melhor pegar o mar alto até termos passado

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a ilha.

Daí a pouco, a costa arborizada everdejante foi ficando para trás. As pequenasbaías e cabos pareciam cada vez menores, e obarco vagava acompanhando a suave ondulação.O mar começou a alargar, e, se a distância a águaparecia agora mais azul, perto era verde eborbulhante. Tudo cheirava a sal, e só se ouvia ochapinhar dos remos e o deslizar da água, quebatia – clope-clope – contra os lados do barco. Osol começou a ficar quente.

Lúcia e Susana, na proa, se deliciavambrincando, tentando em vão enfiar as mãos dentrod’água. Embaixo via-se a areia branca, colorida àsvezes de algas vermelhas.

– Tudo como antigamente! Você lembraquando fomos a Terebíntia... e a Galma... e àsIlhas Solitárias... e às Sete Ilhas...?

– Se me lembro! E me lembro também donosso barco, o Esplendor Hialino, com a cabeçade cisne na proa e as longas asas entalhadas que___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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chegavam quase ao meio do barco...

– Lembra das velas de seda? E dos grandeslampiões da popa?

– E das festas no convés? E dos músicos?

– E daquela vez em que os músicos foramtocar flauta no alto dos mastros e a música pareciavir do céu?

Passado algum tempo, Susana tomou olugar de Edmundo no remo, e este foi sentar-seperto de Lúcia. Tinham passado a ilha eaproximavam-se agora da costa arborizada edeserta. Se não se lembrassem do tempo em queera aberta ao mar e

sempre cheia de amigos, é possível que ativessem achado muito bonita.

– Puxa! Isso acaba com um homem! – dissePedro.

– Posso remar um pouquinho? – perguntou

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Lúcia.

– Os remos são grandes demais para você –foi só o que Pedro disse, não porque estivesseaborrecido, mas porque não podia gastar energiafalando.

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9O QUE LÚCIA VIU

Susana e os dois meninos estavam exaustosquando dobraram o último cabo, iniciando a etapafinal rumo ao Espelho d’Água. Os reflexos naágua e as longas horas ao sol tinham provocadoem Lúcia uma tremenda dor de cabeça. AtéTrumpkin estava ansioso pelo fim da viagem. Obanco em que ia sentado junto ao leme fora feitopara homens, e não para anões, de modo que nãochegava com os pés ao chão. E todo mundo sabecomo é incômodo ficar dez minutos sentado comos pés no ar. Quanto mais cansados, maisdesanimados ficavam. Até esse momento, sótinham pensado em como alcançar Caspian.Agora já imaginavam o que haveriam de fazerquando o encontrassem e como é que anões ecriaturas dos bosques poderiam derrotar um

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exército de humanos.

Enquanto contornavam lentamente as baíasdo Espelho d’Água, o crepúsculo ia descendo –crepúsculo que se adensava à medida que asmargens se aproximavam e as copas das árvoresse tocavam. O murmúrio do mar morria àdistância, e reinava uma calma tão perfeita que seouvia o deslizar dos fios de água que, vindos dafloresta, se lançavam no Espelho d’Água.

Finalmente pularam para terra, tãocansados que nem pensaram em acender umafogueira. Uma ceia de maçãs (embora nãoquisessem mais ver maçãs na sua frente) parecia-lhes melhor do que caçar ou pescar. Comeram emsilêncio e deitaram-se sobre o musgo e as folhassecas, entre quatro grandes árvores.

Não tardou que adormecessem todos,menos Lúcia. Como não estava tão cansadaquanto os outros, não conseguiu arranjar umaposição cômoda. Além disso, tinha-se esquecidode que todos os anões roncam. Sabia que para

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adormecer não há nada como deixar de seesforçar para isso; assim, abriu os olhos. Por entreos ramos avistava apenas uma mancha de água eo céu em cima. Então, numa vibração dememória, voltou a ver, depois de tantos anos, asestrelas cintilantes de Nárnia. Conhecera-asantigamente, melhor do que as estrelas do nossomundo, porque, como rainha de Nárnia,costumava deitar-se muito mais tarde do quecomo criança na Inglaterra. E lá estavam elasagora. Distinguia pelo menos três constelações deverão: o Navio, o Martelo e o Leopardo.

– Querido Leopardo! – murmurou, feliz.

Mas, em vez de adormecer, estava cada vezmais desperta... desperta daquela forma estranha esonhadora, como se está às vezes em plena noite.E o Espelho d’Água brilhava cada vez mais.Embora não visse a lua, sabia que se refletia nele.Lúcia começou a sentir que, com ela, toda afloresta despertava. Quase sem saber o que fazia,levantou-se rapidamente e afastou-se um pouco.

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– Que lindo!

O ar estava fresco, e no ar pairavam aromasdeliciosos. Ali pertinho, um rouxinol começou acantar, parou, recomeçou. Um pouco adianteestava mais claro. Lúcia avançou para a luz echegou a um lugar onde havia poucas árvores,mas muitas manchas de luar. O luar e as sombraspenetravam-se de tal modo que se tornava difícildizer onde estava uma coisa ou a outra. Nessemesmo instante, o rouxinol, satisfeito com oambiente, rompeu em pleno canto.

Lúcia foi-se habituando à luz e via agoraquase distintamente as árvores mais próximas.Invadiu-a enorme saudade dos tempos em que asárvores de Nárnia falavam. Sabia exatamentecomo é que cada uma daquelas árvores falaria, seela tivesse o poder de despertá-las, e que formahumana assumiria. Olhou para uma bétulaprateada: teria uma voz doce e cascateante e seriauma mocinha esbelta, com longos cabelosesvoaçando à volta do rosto, e que gostava dedançar. Olhou depois para o carvalho: velhote,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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alegre, de cabelo grisalho e barba frisada, rosto emãos cheios de verrugas donde brotavam pêlos.Depois olhou para a faia, debaixo da qual parará,e pensou que seria ela a mais bela de todas – umadeusa graciosa, suave e imponente, a senhora dosbosques.

– Oh, árvores! – exclamou Lúcia (emborasua intenção não fosse falar). – Vamos acordar,árvores! Não se lembram mais? Será possível quenão se lembram mais de mim? Dríades ehamadríades, acordem para falar comigo!

Não soprava a mais leve aragem, mas asárvores estremeceram, e o sussurrar das folhas eracomo um murmúrio de palavras. O rouxinolcalou-se.

Lúcia sentiu que de um momento paraoutro seria capaz de compreender a linguagemdas árvores. Mas esse momento não veio, e omurmúrio foi-se desvanecendo. O rouxinolrecomeçou o canto. Embora inundado de luar, obosque perdera o encanto. Lúcia teve a sensação

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(tão freqüente, quando se tem um nome ou umadata na ponta da língua e que não se conseguelembrar) de ter perdido alguma coisa por um triz:como se, por uma fração de segundo, tivessedirigido o seu apelo às árvores cedo ou tardedemais, ou como se tivesse proferido todas aspalavras certas, menos uma, ou tivesseacrescentado uma palavra errada.

De repente, começou a sentir-se cansada.Voltou ao lugar onde tinham acampado, aninhou-se entre Susana e Pedro e, dentro em pouco,dormia a sono solto.

Na manhã seguinte o despertar foi triste edesconfortável. O sol ainda não nascera e, na luzcinzenta da madrugada, os bosques surgiam,úmidos e sujos.

– Viva a maçã! – gritou Trumpkin com umtrejeito gaiato. – Tenho de concordar que os reis eas rainhas de antigamente não estragam oscortesãos com agradinhos!

Levantaram-se, sacudiram-se e olharam em___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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torno. O bosque era espesso. Para onde quer queolhassem, não conseguiam ver mais do que unsmetros adiante do nariz.

– Suponho que Vossas Majestadesconheçam bem o caminho – disse o anão.

– Eu não! – exclamou Susana. – Nunca viesses bosques na minha vida. Sempre achei quedeveríamos ter ido pelo rio.

– Devia ter falado isso na hora – dissePedro, com perdoável impaciência.

– Ora, não ligue para o que ele estádizendo! – interrompeu Edmundo. – Susana nãotem o menor sentido de orientação. Está com abússola aí, Pedro? Ora, vejam. Estamos certinhos.É só continuar para noroeste... atravessar aqueleriozinho... como é mesmo?... O Veloz, não é isso?

– É, o Veloz – concordou Pedro. – Aqueleafluente do Grande Rio.

– Isso. Atravessa-se o rio, sobe-se a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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encosta, e lá pelas oito ou nove horas estamos naMesa de Pedra, isto é, no Monte de Aslam.Espero que o rei Caspian nos ofereça um bomalmoço!

– Se Deus quiser! – disse Susana. – Averdade é que não me lembro nada disso aqui.

– Mulher é assim – disse Edmundo,voltando-se para Pedro e para o anão – , nuncaconsegue guardar um mapa na cabeça.

– É porque já temos a cabeça cheia deoutras coisas – replicou Lúcia.

A princípio tudo correu muito bem.Julgaram a certa altura ter encontrado um velhoatalho. Se você entende alguma coisa de floresta,sabe que a todo momento a gente julga terdescoberto um atalho imaginário. Passados cincominutos, o tal atalho desaparece, mas logo aseguir vem outro (que a gente espera que não sejaoutro, mas uma continuação do primeiro), volta adesaparecer, e, só quando já estamos de tododesnorteados, compreendemos que afinal não___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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eram atalhos coisa nenhuma. Os rapazes e o anão,porém, muito acostumados à floresta, só pormomentos se deixavam iludir.

Caminhavam havia cerca de meia hora (etrês deles ainda tinham o corpo dolorido deremar), quando Trumpkin, de repente, dissebaixinho:

– Parem! – todos pararam. – Estamos sendoseguidos – continuou, sempre em voz baixa. – Oumelhor, há alguém que nos acompanha ali do ladoesquerdo.

Ficaram imóveis, esforçando-se para ouvirou ver qualquer coisa.

– É melhor prepararmos as flechas – disseSusana ao anão. Trumpkin fez com a cabeça umsinal de assentimento e, quando os dois estavamprontos, a caravana voltou a marchar.

Muito atentos, avançaram uns metros poruma parte da floresta em que as árvores cresciamafastadas. Assim chegaram a um lugar coberto de___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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arbustos espessos. Ao passarem por um maciço,alguma coisa rosnou, precipitando-se depoiscomo um raio por entre os ramos partidos. Lúciarecebeu um esbarrão e foi derrubada. Nomomento em que caía, ouviu vibrar uma seta.Quando se recuperou do susto, viu um enormeurso cinzento, de terrível aspecto, trespassado nodorso pela seta de Trumpkin.

– Desta vez, Su, o N.C.A. saiu vencedor! –disse Pedro, com um sorriso amarelo. Porque atéele ficara um tanto abalado com a aventura.

– Atirei tarde demais – justificou-se Susanamuito embaraçada. – Tive medo que fosse umdaqueles ursos... sabe?... um daqueles que falam.

A verdade é que ela tinha horror a matar,fosse o que fosse.

– Pois aí é que está o problema! –concordou Trumpkin. Os animais, na sua maioria,ficaram mudos e tornaram-se inimigos. Nunca sesabe de que gênero são; se a gente espera, podeser tarde demais.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Coitado do urso! – murmurou Susana. –Acha que ele era dos maus?

– Claro que sim! – disse o anão. – Vi bem ofocinho dele e ouvi seu rosnado. O que ele queriaera uma garotinha para o café da manhã. E, apropósito, não quis desanimar Vossas Majestades,quando disseram há pouco que esperavam queCaspian lhes desse um bom almoço. Mas agoradevo dizer que, no acampamento, a carne nãocostuma ser muito farta. E carne de urso não énada má! Seria uma vergonha deixar aí a carcaçasem levar um pedaço; isso pode levar no máximomeia hora. Espero que os dois rapazes, querodizer, reis... saibam como tirar pele de urso...

– Melhor a gente ficar longe – disse Susanapara Lúcia. – Já estou imaginando que horrívelespetáculo vai ser isso.

Lúcia concordou, toda arrepiada, e quandose sentaram disse:

– Sabe, Su, acaba de me ocorrer uma idéiaterrível.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– O que foi?

– Não seria medonho se um dia, no nossomundo, os homens se transformassem por dentroem animais ferozes, como os daqui, econtinuassem por fora parecendo homens, e agente assim nunca soubesse distinguir uns dosoutros?

– Já temos preocupações que cheguem aquiem Nárnia – disse Susana, sempre muito prática.– Para que inventar ainda outros problemas?

Quando foram encontrar com os outros,estes já tinham cortado toda a carne que podiamcarregar. Não é lá nada agradável encher osbolsos de carne crua, mas eles se arranjaram comopuderam, embrulhando os nacos em folhasverdes. Sabiam já todos por experiência própriaque, depois de uma boa caminhada e caindo defome, seriam capazes de olhar com olhos gordospara aqueles embrulhos moles e repugnantes.

Continuaram a andar até o sol nascer. Ospássaros começaram a cantar e as moscas (mais___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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do que seria de desejar) a zumbir entre asavencas. Pararam junto do primeiro regato queencontraram para lavar três pares de mãos, queprecisavam mesmo ser lavadas. À medida que ocansaço desaparecia, voltava a boa disposição.Quando o sol começou a esquentar, tiraram oselmos da cabeça.

– Acho que estamos no caminho certo, nãoé?

– perguntou Edmundo, quase uma horadepois.

– Desde que não nos desviemos muito paraa esquerda, acho que não haverá erro – declarouPedro. – E, se formos demais para a direita, omáximo que pode acontecer é encontrarmos oGrande Rio mais abaixo.

Voltaram a avançar, num silêncio quebradopelos passos e pelo tilintar das cotas de malha.

– Afinal onde se meteu esse maldito Veloz?– perguntou Edmundo, depois de grande silêncio.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Já esperava que tivesse aparecido –confessou Pedro. – Mas agora não há remédio: éir em frente.

– Ambos sabiam que o anão estava aflito,embora nada dissesse.

Daí a pouco, começaram a achar que ascotas de malha eram pesadas e aumentavam ocalor. Pedro exclamou de repente:

– Que é isso aqui?!

Quase sem perceberem, tinham chegado aum pequeno precipício que se elevava sobre umdesfiladeiro, no fundo do qual corria um rio. Dooutro lado os rochedos eram imensos. TirandoEdmundo (e talvez Trumpkin), nenhum deles eragrande alpinista.

– Desculpem! – disse Pedro. – Foi porminha culpa que viemos por aqui. Perdemos ocaminho. Não faço idéia do lugar onde estamos.

O anão começou a assoviar baixinho entre___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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os dentes. Susana disse, impaciente:

– O melhor é voltar e ir pelo outro lado.Sabia que a gente acabaria se perdendo nestemato!

– Susana! – exclamou Lúcia em tom decensura.

– Não vá implicar com Pedro. É feio e,além disso, é injusto. Ele fez o que podia.

– E você não implique com a Su! –interrompeu Edmundo. – Ela tem toda a razão.

– Com seiscentos milhões de macacos! –exclamou Trumpkin. – Se a gente se perdeuvindo, quem vai garantir que a gente não se percaindo? Se temos de voltar à ilha e começar peloprincípio... supondo que sejamos capazes, voulogo dizendo que o melhor é desistir já. De umjeito ou de outro, antes de chegarmos lá, Miraz játerá liquidado Caspian.

– Acha então que devemos continuar? –___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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perguntou Lúcia.

– Não estou convencido de que o GrandeRei se tenha enganado – disse Trumpkin. –Afinal, por que aquele rio não pode ser o Veloz?

– Porque o Veloz não corre numdesfiladeiro! Só por isso! – declarou Pedro,fazendo um esforço para não se mostrar irritado.

– Vossa Majestade diz “corre”, mas nãoseria mais certo dizer “corria”? Conheceu estepaís há centenas... talvez milhares de anos. Podemuito bem ter mudado. Um desabamento de terrapode ter arrastado parte daquela encosta,deixando a rocha a descoberto e dando origemaos precipícios do outro lado do desfiladeiro. Edepois, durante anos e anos, o Veloz foiescavando o leito, até que deste lado se formaramestes pequenos precipícios. Também pode terhavido um tremor de terra ou qualquer coisaparecida.

– Não tinha pensado nisso – disse Pedro.

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– De qualquer modo, mesmo que este nãoseja o Veloz, a verdade é que corre para o Norte ecertamente vai desaguar no Grande Rio. Achoque, ao vir, passei por lá. Se formos para a direita,seguindo a corrente, chegaremos ao Grande Rio.Talvez não precisamente no ponto quepretendíamos, mas não será pior do que setivéssemos vindo por onde eu dizia.

– Bem bolado, Trumpkin – disse Pedro. –Vamos embora! Por aqui, por este lado dodesfiladeiro.

– Olhem, olhem! – gritou Lúcia.

– O quê? Onde? – disseram todos.

– O Leão! – disse Lúcia. – Aslam! Vocêsnão viram? – Estava transfigurada, com os olhosem fogo.

– Você acha mesmo que...? – começou adizer Pedro.

– Onde você pensa que o viu? – indagou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Susana.

– Por favor, não falem como pessoasgrandes! – disse Lúcia batendo o pé. – Não pensoque vi! Vi mesmo!

– Mas onde, Lu? – perguntou Pedro.

– Lá em cima, entre aquelas roseiras domato. Não, deste lado do precipício. Lá em cima,não embaixo. Do lado contrário ao que vocêsquerem ir. Aslam queria que fôssemos por ondeele estava... lá em cima.

– Como é que sabe o que ele queria? –perguntou Edmundo.

– Bem... ele... pela cara dele!

Perplexos, os outros entreolharam-se emsilêncio.

– Pode ser muito bem, Real Senhora, quetenha visto um leão – disse Trumpkin. – Dizemque há leões nestas florestas. Mas quanto a ser um

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leão amigo, daqueles que falam, sei lá: pode sercomo o urso...

– Que besteira! – exclamou Lúcia. – Achaque não sou capaz de reconhecer Aslam se o vir?

– Se é um conhecido de outros tempos,deve estar bastante velho! – replicou Trumpkin. –E, ainda que seja o mesmo, quem é que nosgarante que não se tenha tornado feroz comotantos outros?

Lúcia ficou vermelha de raiva. Se Pedronão a segurasse pelo braço, teria caído em cimado anão.

– O N.C.A. não entende. E como haveria deentender? Você tem de partir de um princípio,Trumpkin: nós realmente conhecemos Aslam...um pouco, é claro. E não deve mais falar deledesse jeito. Em primeiro lugar, não é coisa quelhe dê boa sorte. Além disso, é asneira grossa. Oproblema é saber se Aslam estava de fato lá emcima.

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– Mas eu tenho certeza! – gritou Lúcia,com os olhos cheios de lágrimas.

– Ora, Lúcia, você tem certeza, mas nósnão temos! – disse Pedro.

– O melhor é pôr em votação – propôsEdmundo.

– Apoiado! – concordou Pedro. – O N.C.A.é o mais velho. Seu voto: vamos por cima ou porbaixo?

– Por baixo. Não entendo nada de Aslam.Mas sei que, se voltarmos à esquerda e formos lápor cima, poderemos andar um dia inteiro semconseguir passar para o outro lado. Mas, secortarmos pela direita e seguirmos por baixo, empoucas horas estaremos no Grande Rio. Alémdisso, se há mesmo leões, acho que é maisinteressante fugir do que ir ao encontro deles.

– Qual a sua opinião, Susana?

– Não fique zangada, Lu, mas acho que___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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realmente é melhor ir por baixo... Estou muitocansada, e o que me interessa é sair quanto antesdesta mata horrível. E, para dizer a verdade, sóvocê, ninguém mais, viu alguma coisa!

– Você, Edmundo?

– Bem, há uma coisa a considerar – disseEdmundo, falando depressa, muito corado. –Quando descobrimos Nárnia, há um ano... ou hámil, sei lá... foi justamente Lúcia quem descobriuprimeiro, e nós não quisemos acreditar nela. Eufui o pior, sei disso. Ora, ela tinha razão. Nãoseria justo que desta vez acreditássemos? Pormim, proponho que se vá por cima.

– Oh, Ed! – exclamou Lúcia, agarrando-lheas mãos.

– É sua vez, Pedro – disse Susana – eespero que...

– Cale a boca... deixe-me pensar! Prefironão votar.

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– Você é o Grande Rei – censurouTrumpkin.

– Vamos por baixo – disse Pedro, depois delongo silêncio. – Pode ser que Lúcia tenha razão,mas não tenho certeza. Mas temos de decidir umacoisa ou outra.

Assim puseram-se a caminho, seguindo acorrente do rio pela margem direita. Lúcia ia atrásde todos, chorando amargamente.

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O RETORNO DO LEÃO

Seguir à beira do precipício não era tãofácil como parecia. Mal tinham andado algunsmetros, encontraram pela frente abetos novos.Depois de terem gasto uns bons dez minutos aquerer avançar de rastos, compreenderam que,naquele passo, levariam uma hora para cobrirpouco mais de meio quilômetro. Voltaram atrás eresolveram contornar o pinhal. Foram sair muitopara a direita, num lugar de onde não avistavamos penhascos nem ouviam o rio, e receavam tê-loperdido de todo. Ninguém sabia que horas eram,mas o calor estava no auge.

Quando conseguiram por fim chegar à beirado desfiladeiro (cerca de quilômetro e meio

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abaixo do ponto de partida), viram que osrochedos ali eram muito menores e maisrecortados. Não tardou que encontrassem umcaminho, que os levou ao fundo do desfiladeiro,continuando depois pela margem do rio. Antespararam para descansar e beber água. Já ninguémfalava na possibilidade de almoçar ou mesmojantar com Caspian.

Fora acertada talvez a decisão de seguiremo Veloz, em vez de irem lá por cima. Assimtinham a certeza do rumo; desde que se tinhamperdido no pinhal, o que mais receavam eraafastarem-se do caminho e se perderem nafloresta. Era uma velha floresta, sem caminhos,onde não se podia pensar em seguir em linha reta.A todo o momento, maciços de arbustos, árvorescaídas, charcos pantanosos e uma densavegetação rasteira cortavam o avanço. Mas odesfiladeiro também não era convidativo paraviajantes, isto é, nada agradável para genteapressada. Para um passeio ou um piqueniqueseria maravilhoso. Nada faltava ali das coisas quedão encanto a um momento desses: cascatas___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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prateadas, profundos lagos nacarados, penedosmusgosos, avencas de todos os tipos, insetoscoloridos; de vez em quando, um falcão voandoalto e até (pelo menos foi o que pensaram Pedro eTrumpkin) uma águia. E claro que agora queriamencontrar o mais depressa possível o Grande Rio,o Beruna e o caminho para o Monte de Aslam.

À medida que avançavam, o Veloz se faziamais caudaloso. A viagem perdeu o ar de passeioe começou a parecer cada vez mais uma escalada,bem perigosa aqui e ali, pois tinham de passarsobre rochas escorregadias, que ameaçavamprecipitá-los em abismos tenebrosos, do fundodos quais se elevava o rugido furioso do rio.

Você não calcula com que ansiedadeobservavam os rochedos à esquerda, à procura deum caminho por onde pudessem subir; mas osrochedos permaneciam fechados, sem piedade.

Era de enlouquecer, tanto mais porquesabiam que, se saíssem do desfiladeiro, teriam àesquerda uma encosta suave, e pouco precisariam

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andar para se juntar a Caspian.

O anão e os meninos achavam que era horade parar para acender uma fogueira e assar umpouco de carne. Susana se opunha. Só pensavaem “ir em frente e acabar logo com tudo aquilo,saindo daquelas malditas matas!” Lúcia estava tãocansada e deprimida que nem chegava a teropinião. Aliás, como ali não havia lenha seca,pouco valia a opinião de cada um. Esfomeados,os jovens chegaram a perguntar se a carne cruaseria mesmo tão repugnante como se diz. O anãogarantiu-lhes que sim.

– Finalmente! – exclamou Susana.

– Oba! – exclamou Pedro.

O rio acabava de fazer uma curva, e sedesenrolava diante deles um vasto panorama.Rasgava-se a seus pés o campo descoberto, quealcançava a própria linha do horizonte, e a separá-los dele a larga fita prateada do Grande Rio.Reconheceram o sítio largo e baixo a que outrorachamavam de Passo do Beruna e por sobre o qual___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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se elevava agora uma grande ponte com muitosarcos. Do outro lado da ponte via-se uma pequenacidade.

– Ora, viva! – exclamou Edmundo. – Foiali que travamos a batalha do Beruna.

Essa idéia, mais do que outra qualquer,animou o grupo. Pois ninguém pode deixar desentir-se mais forte em face do lugar onde,séculos antes, teve uma vitória retumbante, paranão se falar de um reino. Passado um pouco,Pedro e Edmundo estavam de tal modoentusiasmados a discutir a batalha que seesqueceram dos pés doloridos e do pesoincômodo das cotas de malha. O entusiasmocontagiara o anão.

O caminho parecia-lhes agora mais suave, eavançavam todos com o passo mais rápido. Aindaque à esquerda continuassem a ver somentepenhascos, à direita o terreno ia ficando cada vezmenos acidentado. Não tardou que o desfiladeirose transformasse num vale. Depois desapareceram

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as quedas-d’água e voltaram a penetrar emfloresta fechada.

Aí... de repente... zzzt! E logo em seguidaum ruído que parecia coisa de pica-pau. Ascrianças, espantadas, se perguntavam onde é que(havia anos e anos) tinham ouvido um somparecido, e por que este lhes desagradava tanto,quando Trumpkim gritou:

– Todo mundo no chão!

No mesmo instante o anão obrigou Lúcia(era quem estava mais perto) a deitar-se sobre asavencas. Pedro, que estivera olhando para todosos lados, para ver se descobria um esquilo, viu doque se tratava: uma longa seta, passando-lhe porcima da cabeça, fora cravar-se no tronco de umaárvore. No momento em que obrigava Susana adeitar-se e se atirava ele próprio ao chão, outraseta raspou-lhe o ombro e cravou-se na terra.

– Depressa! Vamos fugir de rastos! –repetia Trumpkin, ofegante.

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Voltaram-se e, ocultando-se nas avencas,rastejaram colina acima, perseguidos porverdadeira nuvem de moscardos, que zumbiamsinistramente. As setas cruzavam-se em torno.Com uma vibração metálica, uma foi bater noelmo de Susana, fazendo ricochete. Rastejarammais depressa, encharcados de suor. Levantaram-se e, quase dobrados em dois, começaram acorrer.

Era de matar... ter de subir outra vez aencosta toda, pelo mesmo caminho que tinhampercorrido. Quando sentiram que mesmo parasalvar a vida não conseguiriam dar nem mais umpasso, deixaram-se cair ofegantes no musgoúmido, perto de uma cascata, detrás de umpenedo. Ficaram admirados com a distância quetinham conseguido subir.

Nenhum som denunciava que estivessemsendo perseguidos.

– Parece que estamos salvos! – disseTrumpkin, respirando fundo. – Devem ser

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sentinelas. Agora já sabemos que Miraz tem aquium posto avançado. Com trinta mil diabos! Acoisa está feia!

– Eu merecia ser esfolado vivo por tertrazido vocês por este caminho – disse Pedro.

– De modo algum, Real Senhor –contrariou o

anão. – Até porque foi o seu Real Irmãoquem primeiro sugeriu que viéssemos peloEspelho d’Água.

– O N.C.A. tem razão – concordouEdmundo, que se esquecera completamente dissoquando as coisas começaram a correr mal.

– Além disso – continuou Trumpkin – , setivéssemos ido por onde eu dizia, o mais certo eracairmos direitinho neste novo posto. Ou pelomenos teríamos encontrado a mesma dificuldadeem evitá-lo. Pensando bem, este caminho pareceo mais seguro.

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– Pode ser até uma bênção disfarçada –falou Susana.

– Muito bem disfarçada! – exclamouEdmundo.

– O jeito agora é voltar e subir odesfiladeiro – disse Lúcia.

– Muito bem, Lúcia! – falou Pedro. – Nãohá maneira mais delicada de dizer: “Eu nãofalei?”. Vamos.

– E quando chegarmos à floresta, digam láo que disserem, acendo uma fogueira e faço ojantar – declarou Trumpkin. – Mas temos é decair fora daqui. Quanto antes!

Nem vale a pena contar o que lhes custousubir o desfiladeiro. Mas, por estranho quepareça, todos se sentiam mais animados. Apalavra “jantar” tinha produzido neles um efeitomágico.

Era ainda dia quando chegaram ao pinhal___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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que tantas complicações lhes trouxera eacamparam numa cavidade que ficava por cima.Juntar lenha para a fogueira foi uma tarefaenjoada; mas depois foi esplêndido, quando aslabaredas começaram a subir e todos tiraram dabolsa os embrulhos úmidos e engordurados dacarne de urso, que teriam parecido repugnantes aquem tivesse passado o dia em casa. O anão eramuito bom de culinária. Tinham ainda algumasmaçãs: cada uma foi envolvida numa fatia deurso, como se fosse uma torta de maçã – só que,em vez de massa, era uma camada grossa de carne– espetada num pau, para ser assada. O sumo damaçã penetrou na carne, como acontece com acarne de porco com molho de maçã. Quando ourso se alimenta principalmente de outrosanimais, não é lá muito saboroso, mas quandocome muita fruta e mel é pra lá de bom; por felizcoincidência, aquele urso era exatamente desses.Foi uma refeição de lamber os beiços. E no fimnem sequer havia louças para lavar... Deitaram-se,estenderam as pernas e ficaram conversando,observando o fumo que se elevava do cachimbode Trumpkin. Estavam todos cheios de esperança___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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de encontrar Caspian no dia seguinte; e tinhamtambém a esperança de derrotar Miraz dentro depoucos dias. Claro que toda essa boa disposiçãonão era muito lógica, mas a verdade é que sesentiam felizes.

Não demorou que adormecessem.

Lúcia acordou de um sono profundo, com asensação de que uma voz (a que mais queria nomundo) a estava chamando. Pensou que talvezfosse a voz do pai, mas não tinha certeza disso.Pensou depois que fosse a de Pedro, mas logo viuque também não podia ser. Não tinha vontade dese levantar, não porque ainda estivesse cansada(pelo contrário, sentia-se extraordinariamenterepousada e as dores do corpo tinhamdesaparecido por completo), mas porque se sentiabem e extremamente feliz. Olhava a lua deNárnia, que é maior do que a nossa, e o grandecéu estrelado, pois tinham acampado num lugardescoberto.

– Lúcia! – ouviu chamar, outra vez, uma

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voz que não era nem do pai nem de Pedro.

Sentou-se, tremendo de excitação, mas semmedo. O luar brilhava tanto que a paisagemflorestal em redor tinha a claridade do dia,embora de aspecto mais fantástico. Por detrásdela ficava o pinhal; à direita, um pouco longe, odesfiladeiro terminava em penedos escarpados;em frente estendia-se um relvado que terminavaao alcance de uma flechada, dando lugar a umaclareira, onde cresciam algumas árvores.

– Parece que estão mexendo! – falou para simesma. – Estão andando!

Com o coração batendodescompassadamente, levantou-se e avançou paralá. Pairava na clareira um certo murmúrio, como oque faz a ventania na copa das árvores, ainda quenão corresse nem a mais leve aragem. Mastambém não era o sussurro costumeiro dafolhagem. Lúcia sentiu que naquele murmúriohavia uma certa melodia, que todavia nãoconseguia captar, assim como na véspera não fora

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capaz de entender as palavras, quando as árvorespareciam falar-lhe. Mas já não podia haver dúvidade que as árvores estavam andando., passandoumas pelas outras e cruzando-se como seexecutassem uma complicada dança campestre.

Já estava quase entre as árvores. A primeirapara a qual olhou pareceu-lhe ser não uma árvore,mas um homem enorme, de barba desgrenhada egrandes tufos cabeludos. Isso para ela já não eranovidade, e não se assustou. Mas, quando voltoua olhar, a árvore, se bem que continuasse amexer-se, era apenas uma árvore. O que nãopercebia bem era se tinha raízes ou pés, poisquando as árvores se deslocam não andam nasuperfície da terra: deslizam por dentro dela,como fazemos nós na água. O mesmo aconteceucom todas as outras árvores. Num momentopareciam encantadores gigantes, forma queassumem quando qualquer poder mágico amigoas chama plenamente à vida. Logo em seguida,voltavam a ser simplesmente árvores. Oengraçado é que, como árvores, eram árvoresestranhamente humanas, e, como pessoas, eram___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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estranhamente folhosas e ramalhudas... e o tempotodo aquele ruído alegre, nascente, rumorejante.

– Estão quase despertando! – disse,sentindo-se ela própria mais acordada do quenunca.

Meteu-se pelo meio, muito confiante,dançando e saltando para um lado e para o outro,temerosa apenas de que algum daquelesgigantescos dançarinos esbarrasse nela. Mas issosó a preocupava um pouco, pois seu desejo era iralém das árvores, ao encontro de alguma outracoisa, porque fora de lá que chamara a vozquerida.

Não demorou a atingir o outro lado,perguntando a si mesma se tivera de afastar osramos com as mãos ou se fora levada pelosgigantescos dançarinos. Finalmente saiu damobilidade confusa dos maravilhosos contrastesde sombra e luz.

Em redor de um macio relvado, árvoresnegras bailavam. E então... que alegria! No meio___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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delas, o Grande Leão, branco de luar, projetavauma enorme sombra escura.

Se não fosse o movimento da cauda,poderia ser tomado por uma estátua. Lúcia nemsequer pensou nessa hipótese. Nem um instanteduvidou... Correu para ele. Não podia perder umsó momento. Envolveu-lhe o pescoço com osbraços, beijando-o, enterrando a cabeça no sedosopêlo de sua juba.

– Aslam! Querido Aslam! – soluçou. – Atéque enfim!

O grande animal deitou-se de lado, demodo que Lúcia caiu, ficando meio sentada emeio deitada entre as suas patas dianteiras. Eleinclinou-se e com a língua tocou o nariz damenina, que se sentiu envolvida pelo seu bafoquente. Ela levantou os olhos e fixou-os nogrande rosto sério.

– Foi bom ter vindo – disse ele.

– Aslam, como você está grande!___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– É porque você está mais crescida, meubem.

– E você, não?

– Eu, não. Mas, à medida que você forcrescendo, eu parecerei maior a seus olhos.

Lúcia sentia-se tão feliz que nem queriafalar. Aslam quebrou o silêncio.

– Lúcia, não podemos nos demorar muitoaqui. Vocês têm uma tarefa a cumprir e hoje jáperderam muito tempo.

– Que vergonha, não acha? Tinha certezade que era você. Mas eles não quiseramacreditar... São todos uns...

Lá muito de dentro, das próprias entranhasde Aslam, veio qualquer coisa que, vagamente,sugeria um rosnar de impaciência.

– Desculpe! – disse Lúcia, ao entendertudo. – Não queria pôr a culpa nos outros. Mas a

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verdade é que a culpa não foi minha.

O Leão fitou-a bem nos olhos.

– Oh, Aslam, acha que eu errei? Como éque eu... podia deixar os outros e vir sozinhaencontrar-me com você? Não olhe para mimdesse jeito... bem... de fato... talvez eu pudesse.Sei que com você não estaria sozinha. Mas iaadiantar alguma coisa?

Aslam não respondeu.

– Mesmo assim teria sido melhor? –perguntou Lúcia, com a voz sumida. – Mascomo? Aslam, por favor, diga-me.

– Dizer o que teria acontecido? Não, aninguém jamais se diz isso.

– Oh, que pena! – exclamou Lúcia.

– Mas todos podem descobrir o que vaiacontecer – continuou Aslam. – Se voltar agora eacordar os outros para contar-lhes outra vez o que

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viu, e disser que eles se levantem imediatamente eme sigam... que acontecerá? Só há um modo desaber...

– É o que quer que eu faça?

– É, minha criança – respondeu Aslam.

– E os outros também vão ver... você.

– A princípio, não. Talvez mais tarde.

– Mas aí eles não vão acreditar!

– Não faz mal.

– Ora essa, ora essa! E eu que estava tãofeliz por tê-lo encontrado de novo. Pensei queficaria a seu lado. Pensei que você viria rugindo eque os inimigos fugiriam de medo... como daoutra vez. Afinal, vai ser horrível.

– Será difícil para você, querida, mas ascoisas nunca acontecem duas vezes da mesmamaneira. Todos nós já passamos momentos

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difíceis em Nárnia.

Lúcia escondeu o rosto na juba. Mas deviahaver nela algum poder mágico, pois ela se sentiuinvadida pela força do Leão. Sentando-se derepente, disse:

– Desculpe, Aslam. Estou pronta.

– Agora você é uma leoa – disse ele. –Nárnia inteira será renovada. Venha, não temostempo a perder.

Levantou-se e sem ruído dirigiu-semajestosamente para o círculo das árvoresdançarinas. Lúcia pousava na juba sua mãotrêmula. As árvores afastavam-se para deixá-lospassar, assumindo nesse instante a plena formahumana. Num relance, Lúcia viu deuses e deusasda floresta, altos e graciosos, curvando-se peranteo Leão. Daí a pouco, eram outra vez árvores, mascurvando-se ainda, com movimentos tãograciosos dos ramos e troncos, que a própriareverência era uma espécie de dança.

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– Espero por você aqui – disse Aslam,depois de terem ultrapassado as árvores. – Váacordar os outros: eles devem segui-la. Se nãoquiserem vir, você pelo menos terá deacompanhar-me.

É desagradável ter de acordar quatropessoas mais velhas, ainda por cima cansadas,para dizer-lhes uma coisa em que provavelmentenão irão acreditar, e para convencê-las a fazeraquilo que não querem. Lúcia disse para simesma: “É melhor nem pensar! Tenho é de ir emfrente e aceitar o desafio!”

Sacudiu Pedro, chamando baixinho:

– Pedro! Depressa, Aslam está aqui.Mandou que a gente vá atrás dele imediatamente.

– É claro, Lu! Como quiser – concordouPedro, para o espanto dela. A resposta foraanimadora, mas logo Pedro virou-se para o outrolado e continuou a dormir.

Voltou-se para Susana, que acordou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mesmo, mas apenas para dizer, com o araborrecido de um adulto:

– Vá dormir, Lúcia. Você deve estarsonhando.

Resolveu tentar com Edmundo. Não foifácil acordá-lo, mas, quando de fato acordou,sentou-se logo:

– Hein?! – disse, numa voz cheia de sono. –Que é que você está dizendo?

Ela repetiu tudo do princípio, e esta era aparte pior da missão, porque, cada vez que falava,a coisa lhe parecia menos convincente.

– Aslam! – exclamou Edmundo, dando umpulo.

– Puxa vida! Onde está ele?

Lúcia voltou-se para onde o Leão aesperava, com os olhos meigos fixos nela.Apontou: – Ali.

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– Onde?

– Ali. Não está vendo? Perto daquelaárvore. Edmundo olhou atentamente e disse:

– Está ali coisa nenhuma! Foi o luar quepôs você meio pateta! Isso acontece! Tambémachei que vi alguma coisa, mas foi uma daquelascoisas óticas... como é mesmo?...

– Mas eu estou vendo Aslam! – insistiuLúcia.

– E ele está olhando para nós!

– Então, diga-me uma coisa: por que nãovejo Aslam?!

– Ele disse... que talvez... você não pudessevê-lo.

– Ora essa! Por quê?

– Não sei. Foi ele que disse.

– Mas que chateação! Seria melhor que___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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você deixasse de ter visões. Enfim, de qualquermodo, vamos acordar os outros.

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O LEÃO RUGE

Quando finalmente todos estavamacordados, Lúcia contou a história pela quartavez. Nada podia ser mais desanimador do que osilêncio que se seguiu.

– Não consigo ver nada – declarou Pedro,depois de ter olhado tão fixamente que os olhoslhe doíam. – Está vendo alguma coisa, Su?

– Claro que não! – disse Susana, mal-humorada. – Pois se não há nada para ver! Elaanda é sonhando. É melhor você dormir, Lúcia.

– Só queria que vocês viessem comigo –disse Lúcia, com voz trêmula. – Porque... porque,

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se não quiserem, terei de ir sozinha.

– Não diga tolice – resmungou Susana. –Você sabe muito bem que não pode ir sozinha.

– Se ela tiver mesmo de ir, eu vou com ela– disse Edmundo. – Da outra vez quem tinharazão era ela.

– Sei disso – replicou Pedro – , e pode atéser que ela estivesse certa também hoje de manhã.A verdade é que aquela idéia do desfiladeiro foium passo em falso. Mas... a esta hora da noite... Epor que Aslam iria ficar invisível para nós?Nunca esteve!... Não é coisa dele! Que diz você,N.C.A.?

– Não digo nada – respondeu o anão. – Setodos forem, também vou. Se se dividirem, ficocom o Grande Rei. Só assim poderei cumprir omeu dever para com ele e para com o rei Caspian.Mas, se querem o parecer de um anão ignorante,acho que não há grandes possibilidades deencontrarmos o caminho à noite, uma vez quenem de dia demos com ele. E não gosto nada___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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desses leões milagrosos, que sabem falar mas nãofalam, que são bons mas não mostram isso, e que,ainda por cima, são enormes e aparecem derepente, e não há quem consiga vê-los. Para mim,isso tudo é lorota – na minha modesta opinião.

– Está batendo com a pata no chão paraandarmos depressa – disse Lúcia. – Tenho de irlogo... pelo menos eu vou!

– Você não tem o direito de impor a suavontade. Afinal, somos três contra um – declarouSusana – e você é a caçula.

– Vamos embora! – disse Edmundo,impaciente. – É claro que temos de ir; enquantonão formos, não ficaremos sossegados.

Estava firmemente decidido a apoiar Lúcia,mas a idéia de perder a noite lhe era incômoda;vingava-se então fazendo tudo com má vontade.

– Então, a caminho! – disse Pedro, com umar cansado, passando o braço pela correia doescudo e colocando o elmo. Em outra___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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circunstância, não deixaria de dizer a Lúcia umapalavra amável, mesmo porque era sua irmãfavorita, e sabia também que ela não tinha culpado que estava acontecendo. Mas, ao mesmotempo, não podia deixar de sentir-se um tantoaborrecido com ela. Susana foi a pior.

– E imaginem se agora eu começasse afazer a mesma coisa que Lúcia! Podia ameaçar deficar aqui, mesmo que todos fossem embora.Acho até que vou fazer isso.

– Obedeça ao Grande Rei, Real Senhora, evamos partir – disse Trumpkin. – Já que não medeixam dormir, tanto faz caminhar como ficaraqui conversando.

Puseram-se a caminho. Lúcia ia à frente,mordendo os lábios, dominando-se para não dizera Susana tudo o que pensava dela. Mas, logo queencontrou o olhar de Aslam, foi-se a irritação. Eleavançava uns trinta metros à frente deles. Osoutros tinham de guiar-se apenas pelas indicaçõesde Lúcia, porque não ouviam nem viam Aslam.

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Suas grandes patas aveludadas pousavam na relvasem o menor barulho.

Aslam levou-os direitinho às árvoresdançantes (se dançavam naquele momento é queninguém sabe, pois Lúcia não tirava os olhos doLeão, e os outros não tiravam os olhos dela) eseguiu em direção ao desfiladeiro.

– Com mil bombas! – resmungouTrumpkin. – Espero que essa brincadeira toda nãová acabar numa escalada ao luar, com pernas ebraços quebrados.

Durante muito tempo, Aslam manteve-seno cimo do desfiladeiro, mas, quando apareceuum tufo de árvores à direita, virou para lá edesapareceu entre elas. Lúcia teve um sobressalto,pois lhe pareceu que ele sumira no abismo. Nãoteve muito tempo para pensar. Apressou o passo edesapareceu também no arvoredo. Podia veragora uma vereda íngreme que se contorcia entrepenhascos, conduzindo ao desfiladeiro. Aslamavançava por lá. Lúcia bateu palmas de alegria e

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começou a descer atrás dele. Ouviu os outrosgritarem:

– Lúcia! Pare! Espere, pelo amor de Deus!Você está na beirada do abismo! Volte!

Daí a pouco era Edmundo que dizia:

– Oh, ela tem razão! Está tudo bem. Há umcaminho.

Quando Edmundo conseguiu alcançá-la,perguntou, excitado:

– Olhe, ali, uma sombra mexendo!...

– É a sombra dele – respondeu Lúcia.

– Acho que você tem razão, Lu. Como éque não vi Aslam antes? Mas onde ele está?

– Ao pé da sombra, evidente! Não estávendo?

– Bem... por um instante acho que viqualquer coisa. Está uma luz tão esquisita.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Para a frente, rei Edmundo – veio lá detrás e lá de cima a voz de Trumpkin.

E ainda mais atrás e mais acima Pedrodizia:

– Vamos, Susana, dê a mão. Deixe deenjoamento. Qualquer criança seria capaz dedescer por aqui.

Passados alguns minutos, estavam no fundodo desfiladeiro, com a água rugindo-lhes aoouvido. Avançando cautelosamente, como sefosse um gato, Aslam atravessou o rio, saltandode pedra em pedra. No meio da corrente parou,baixou-se para beber e, ao levantar a cabeça,sacudiu a juba orvalhada, virando-se para eles.Dessa vez Edmundo pôde vê-lo.

– Oh, Aslam! – gritou, precipitando-se aseu encontro. Mas o Leão deu meia-volta ecomeçou a subir a encosta do outro lado doVeloz.

– Pedro, Pedro! – gritou Edmundo. – Você___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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o viu?

– Vi, vi qualquer coisa. Mas está tudo tãoconfuso com este luar. Vamos em frente, e trêsvivas para Lúcia. Já nem me sinto tão cansado.

Sem hesitar, Aslam foi subindo à esquerda.Tudo naquela caminhada era estranho, como seacontecesse em sonho: o rio bramindo, a relvaúmida, os penhascos cintilantes... Maisextraordinário que tudo, a marcha silenciosa dogrande animal. Agora, todos o viam, menosSusana e o anão.

Outro atalho, tão íngreme como o primeiro,ziguezagueava por novos precipícios, muito maisaltos do que os anteriores. Longa e difícil foi asubida. Felizmente a lua brilhava bem sobre agarganta, de modo que nenhum dos lados estavana sombra.

Lúcia estava quase desfalecendo quando acauda e as patas traseiras de Aslamdesapareceram no alto. Com um esforço final,arrastou-se atrás dele e encontrou-se, ofegante e___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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trêmula, no cimo da colina que tinham tentadoalcançar desde a partida do Espelho d’Água. Umavasta encosta alongava-se suavemente por cercade um quilômetro, coberta de espinheiros e relvae, de quando em quando, salpicada de grandesrochedos, brancos ao luar, desaparecendo depoisnuma confusão de árvores. Era a colina da Mesade Pedra, que Lúcia conhecia bem. Com umtilintar de cotas de malha, os outros subiram atrásdela, continuando depois atrás de Aslam.

– Lúcia! – chamou Susana, baixinho.

– Que é?

– Agora estou vendo Aslam. Desculpe-me.

– Não tem importância.

– Mas sou muito pior do que você pensa.Acreditei que era ele... acreditei ontem mesmo...quando ele não queria que fôssemos pelo pinhal.E acreditei também hoje, quando você nosacordou. Isto é... no fundo acreditei... Ou podiater acreditado, se quisesse... Mas estava com tanta___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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pressa de sair da floresta... e... não sei como vouexplicar. O que vou dizer a ele agora?

– Talvez não precise dizer mais nada.

Não tardou que se encontrassem junto dasárvores e vissem através delas o Monte de Aslam,construído sobre a Mesa de Pedra, já temposdepois do tempo deles.

– A guarda não está no posto – resmungouTrumpkin. – Já deviam ter barrado a nossamarcha...

– Psiu! – fizeram os outros quatro, porqueAslam parará e, tendo-se voltado, olhava para elescom um aspecto tão majestoso que todos ficaramcontentes, tão contentes quanto é possível apessoas que sentem medo, e tão cheios de medoquanto é possível a pessoas que se sentemcontentes. Os rapazes avançaram. Lúcia afastou-se para lhes dar passagem. Susana e o anãorecuaram.

– Aslam! – exclamou Pedro, pondo um___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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joelho em terra e levantando a pesada pata doLeão até tocar com ela no rosto. – Estou tãocontente... e tão triste! Desde que partimos que ostenho trazido por caminho errado, e ontem foipior do que nunca.

– Meu filho! – disse Aslam.

Depois voltou-se para Edmundo e deu-lheas boas-vindas:

– Muito bem! – foram as suas palavras. –Depois de um silêncio terrível, disse com vozgrave: – Susana! – Susana não respondeu epareceu aos outros que estava chorando. – Vocêdeixou que o medo a dominasse. Venha, deixeque sopre sobre você. Esqueça seus receios. Estámelhor agora?

– Um pouco, Aslam – disse Susana.

– Pois bem! – continuou Aslam, em voz tãoforte que quase parecia um rugido, fustigando osflancos com a cauda. – Onde está aqueleanãozinho, esse famoso espadachim e arqueiro,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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que não acredita em leões? Aproxime-se, filho daTerra, venha aqui\ – A última palavra já nãoparecia um rugido, era quase um rugido deverdade.

– Com mil demônios! – murmurouTrumpkin, com a voz sumida.

As crianças, que conheciam Aslam osuficiente para perceber que ele gostava muito doanão, não ficaram impressionadas. Mas comTrumpkin, que nunca tinha visto um leão, e muitomenos aquele, o caso foi diferente. Fez a únicacoisa sensata que poderia fazer naquele momento.Em vez de fugir, cambaleou na direção de Aslam,que se lançou sobre ele.

Você já viu alguma vez uma gata com ofilhote entre os dentes? Pois foi muito parecido. Oanão,

encolhido num feixe miserável, pendiaentre os dentes de Aslam, que o sacudia. Apequenina armadura tilintou como se fosse umguizo e em seguida... zztl... o anão foi atirado para___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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o ar. Se estivesse na cama não estaria maisseguro, mas ele não se sentia assim. Ao cair, asenormes patas aveludadas envolveram-no comose fossem braços de mãe e depuseram-no no chão(com a cabeça para cima e os pés para baixo).

– Filho da Terra, seremos amigos? –perguntou Aslam.

– S... S... Sim! – respondeu o anão, aindaofegante.

– Bem, não tarda que a Lua fiqueencoberta. Vejam como a aurora está rompendo.Não temos tempo a perder. Depressa, para oMonte! – disse Aslam.

O anão ainda não conseguia dizer umapalavra, e ninguém se atreveu a perguntar seAslam iria com eles. Desembainharam as espadas,saudaram o Leão e, voltando-se com um tinir dearmaduras, desapareceram na luz indecisa damanhã. Lúcia reparou que a expressão de cansaçolhes desaparecera do rosto, e tanto o Grande Reicomo o rei Edmundo pareciam agora mais___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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homens do que meninos.

As meninas, junto de Aslam, ficaramolhando até eles se perderem de vista. O diaestava clareando. No oriente, perto da linha dohorizonte, Ara-vir, a estrela da manhã de Nárnia,brilhava como um pequeno sol. Aslam, queparecia muito maior, levantou a cabeça, sacudiu ajuba e rugiu.

O som, a princípio grave e vibrante como ode um órgão que se começa a tocar em nota baixa,foi-se elevando e tornando mais forte, até fazervibrar a terra e o ar. Partindo da colina, espalhou-se pelo país todo. No acampamento de Miraz, oshomens acordaram, entreolharam-se assustados eprecipitaram-se para as armas. Lá embaixo, noGrande Rio, onde o frio era intenso naquela hora,as cabeças e os ombros das ninfas e a grandecabeça barbuda e coroada de junco do deus do rioemergiram da água. Mais longe, em todos oscampos e nos bosques, as orelhas atentas doscoelhos saíram das tocas, as aves sonolentasretiraram as cabeças de debaixo das asas, as___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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corujas piaram, as raposas ganiram, os porcos-espinhos grunhiram, as árvores estremeceram.Nas cidades e aldeias, as mães, com olhosrasgados de espanto, apertaram os filhinhos aopeito, os cães latiram, os homens levantaram-se àspressas em busca de uma luz. Muito ao longe, nafronteira norte, os gigantes da montanhaespreitaram pelos portões sombrios de seuscastelos.

O que Lúcia e Susana viram foi uma coisaindefinida e escura que avançava para elas dosquatro pontos cardeais. Pareceu-lhes a princípioum nevoeiro negro e rastejante, depois ondasenormes de um mar negro crescendo, até que porfim compreenderam que era a floresta em marcha.Todas as árvores do mundo pareciam precipitar-se para Aslam. Mal se aproximavam, no entanto,já não eram árvores. Quando se juntaram ao redordele, fazendo mesuras e reverências e acenandocom seus braços longos e finos, o que Lúcia viufoi uma multidão de formas humanas. Pálidasbétulas-meninas balançavam a cabeça; salgueiros-mulheres afastavam os cabelos do rosto___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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ensimesmado para olharem Aslam; faiasmajestosas adoravam-no imóveis; e haviacarvalhos felpudos, olmos esguios emelancólicos, azevinhos desgrenhados (elespróprios escuros, mas suas mulheres lindas,enfeitadas com frutinhas), e as alegres sorveiras.Todos se inclinavam e se erguiam de novo aosgritos de “Aslam, Aslam”, nas suas vozesvariadas: roucas, rangentes ou ondulantes.

A multidão era tão densa e o bailado tãorápido (porque de novo as árvores começaram abailar), que Lúcia ficou tonta. E nunca chegou aperceber de onde vieram os bailarinos, que embreve cabriolavam por entre as árvores. Um delesera um jovem, vestido com uma pele de corça etrazendo uma coroa de parreira nos cabelosencara-colados. Se não fosse a expressãoselvagem que o animava, o rosto teria sido quasebelo demais para um rapaz. Na presença dele,sentia-se, como disse Edmundo dias mais tarde,ao vê-lo:

– Aí está um sujeito capaz de fazer___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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qualquer coisa!...

Parecia ser conhecido por muitos nomes,dentre os quais Bromios, Bassareus e Áries.Acompanhava-o um grupo de moças, tãoestouvadas quanto ele. E, coisa estranha, por fimapareceu até alguém montado num burro. Todosse puseram a rir e gritar:

– Euan, euan, ê-oooi!

– Isto é uma brincadeira, Aslam? –perguntou o jovem.

E bem podia ser. Mas cada um parecia teruma idéia diferente sobre do que estavambrincando. Era muito semelhante a cabra-cega, sóque se comportavam como se todos tivessem osolhos vendados. Lembrava o jogo do chicote-queimado, mas nunca ninguém encontrava ochicote. E ficou impossível definir a brincadeiraquando o homem velho e imensamente gordo,montado no burro, de repente começou a gritar:“Bebidas! Hora das bebidas!,” e pulou do burro.Os outros voltaram a colocá-lo em cima do___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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animal, enquanto este, julgando-se num circo,fazia exibições sobre as patas traseiras. Ramos devideira iam aparecendo em profusão cada vezmaior. Eram videiras mesmo, que se enroscavampelas pernas do povo da floresta. Lúcia levou amão à cabeça para puxar os cabelos para trás everificou que puxava um ramo de videira. O burrotambém estava envolto em vides e tinha a caudatoda emaranhada. De suas orelhas pendia algumacoisa escura. Lúcia olhou atentamente e viu queera um cacho de uvas. E, logo em seguida, quasenada restava do burro: só havia cachos, da cabeçaaos pés.

– Bebidas! Bebidas! – gritava o velho.

Todos se puseram a comer, e tenho certezade que você nunca provou uvas tão boas: firmes erijas por fora, mas que explodiam numa frescadoçura quando postas na boca. Eram daquelasuvas que Susana e Lúcia nunca se cansavam decomer e que raramente tinham comido antes.Havia uvas aos montes, mais do que se poderiadesejar, e absolutamente nada de boas-maneiras.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Ecoavam gritos e gargalhadas, até que de repentesentiram que a brincadeira (fosse ela qual fosse) ea festa tinham chegado ao fim. Sentaram-secansados, voltados para Aslam, à espera de ouviro que ele ia dizer. Nesse momento, o sol começoua despontar. Lembrando-se de algo, Lúcia dissepara Susana:

– Já sei quem eles são!

– Eles, quem?

– O rapaz de expressão selvagem é Baco; ovelho é Sileno. Não se lembra de que o Sr.Tumnus nos falou deles... há muitos anos?

– É mesmo, é verdade, mas, Lu...

– Mas o quê?

– Se Aslam não estivesse aqui, não me teriasentido lá muito segura com Baco e suasestouvadas companheiras.

– Nem eu!

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MAGIA NEGRA EREPENTINA VINGANÇA

Enquanto isso, Trumpkin e os dois meninoschegaram ao escuro arco de pedra que levava aointerior do Monte, e os dois texugos que estavamde sentinela (Edmundo só conseguiu distinguir asduas manchas brancas da cara) saltaram sobreeles, de dentes arreganhados, grunhindo:

– Quem vem lá?

– Trumpkin! – respondeu o anão. – Tragocomigo o Grande Rei de Nárnia, vindo dopassado.

Os texugos tocaram com os focinhos nas___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mãos dos meninos.

– Até que enfim! Até que enfim!

– Quer dar-nos uma tocha, amigo? – pediuTrumpkin.

Os texugos acenderam uma tocha,entregando-a ao anão.

– É melhor o N.C.A. ir na frente – dissePedro – , já que não sabemos o caminho.

Trumpkin empunhou a tocha e avançoupelo túnel escuro. Era um lugar frio, cheio deteias de aranha; de vez em quando, um morcegoesvoaçava em redor da luz. Os meninos, quetinham vivido quase sempre ao ar livre desde quedeixaram a estação, tiveram a sensação de entrarnuma masmorra ou de cair numa armadilha.

– Pedro, repare naquelas coisas gravadas naparede – disse Edmundo baixinho. – Parecemmuito velhas e, apesar disso, somos muito maisvelhos do que elas. Ainda não existiam quando___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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aqui estivemos.

O anão continuou a andar, virou à direita,depois à esquerda, desceu alguns degraus e voltoua virar para a esquerda. Por fim avistaram luz àfrente, por baixo de uma porta. Tinham chegado àentrada do subterrâneo central e, pela primeiravez, ouviram vozes. Vozes exaltadas, aliás.Alguém falava tão alto que a chegada do anão edos meninos passou despercebida.

– Hum!... Isto não está me agradando! –segredou Trumpkin para Pedro. – Vamos escutarum pouco.

Ficaram imóveis do lado de fora da porta.

– Você sabe muito bem por que motivo nãotoquei a trompa naquela madrugada — disse umavoz. (“É o rei”, segredou Trumpkin.) – Já seesqueceu que, mal Trumpkin partiu, Miraz caiuem cima de nós e durante mais de três horaslutamos com todas as nossas forças para salvar apele? Toquei a trompa logo que pude.

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– Claro que não me esqueci – respondeuuma voz irritada. – Como ia me esquecer, seforam os meus anões que suportaram o ataque ese vários deles morreram no campo de batalha?

– É Nikabrik – informou Trumpkin.

– Você devia ter vergonha, anão – censurouuma voz grossa. (“Este é o Caça-trufas!” explicouTrumpkin.) – Todos lutaram tanto quanto osanões, e ninguém mais do que o rei.

– Não faz a menor diferença! – respondeuNikabrik. – O fato é que ou se tocou a trompatarde demais, ou ela não possui poder mágicocoisa nenhuma. Não veio nem auxílio, nem meioauxílio. Você, seu feiticeiro, seu sabe-tudo, aindaacha que devemos ter esperança em Aslam, no reiPedro... nessa cambada toda?

– Bem... devo confessar que... não negoque... estou bastante desapontado – foi o que seouviu.

– É o doutor Cornelius – informou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Trumpkin.

– Para falar às claras – declarou Nikabrik– , sua sacola está vazia, seus ovos estãoestragados e suas promessas não se cumpriram...Seu peixe papou a isca e se foi! Agora o jeito évocê ficar de fora e deixar os outros trabalharem.É por isso que...

– O auxílio ainda vem! – disse Caça-trufas.– Continuo a confiar em Aslam. Por que vocêsnão são persistentes como nós, os animais? Oauxílio há de vir! Pode ser até que já esteja ànossa porta.

– Pois é – rosnou Nikabrik – , sedependesse de vocês, texugos, ficaríamosesperando que o céu viesse abaixo e a terra seabrisse. Já se foi o tempo de esperar! A comida épouca, a cada embate sofremos mais baixas doque podemos suportar, e os nossos soldadoscomeçam a nos deixar.

– E por quê? – perguntou Caça-trufas. – Sevocê não sabe, eu digo. Porque se espalharam___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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rumores de que invocamos em nosso auxílio osreis dos velhos tempos e eles não responderam.Lembrem-se de que as últimas palavras deTrumpkin antes de partir (quem sabe se aoencontro da morte?) foram estas: “Não deixem oexército saber por que estão tocando a trompa, setiverem de tocá-la!” Pois na mesma tarde nãohavia um soldado que não soubesse de tudo!

– Com que direito está insinuando que fuieu que espalhei a informação? Por que não vaienfiar seu focinho numa colméia de abelhasbravas?! — vociferou Nikabrik. – Retireimediatamente o que acabou de dizer... ou...

– Acabem com isso! – pediu o rei Caspian.– Gostaria de saber o que Nikabrik sugere quefaçamos. Mas, antes de mais nada, quero saberquem são aqueles dois forasteiros, que estão aliparados, ouvindo o que se passa, sem dizer umapalavra.

– São amigos meus – declarou Nikabrik. –Por que razão você próprio está aqui, a não ser

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pelo fato de ser amigo de Trumpkin e do texugo?E por que está aqui aquele velho bobo, vestido depreto, senão por ser seu amigo? Por que só eu nãopoderia convidar os meus amigos?

– Você está falando com o rei, a quemjurou fidelidade! – disse Caça-trufas com vozsevera.

– Mesuras da corte! – debochou Nikabrik.– Aqui neste buraco, cada um pode dizer o quepensa. Todo mundo sabe que este rapaz telmarinonunca será rei de coisa alguma e de ninguém, anão ser que o ajudemos a sair da embrulhada emque se meteu.

– Talvez os seus novos amigos prefiramfalar por eles mesmos – sugeriu o doutorCornelius. – Vocês aí, digam quem são e o quepretendem.

– Digno doutor e mestre — ouviu-se umavozinha fina e lamurienta – , sou apenas umavelha, que, com sua licença, está muito grata aeste digno anão. Sua Alteza, abençoado seja tão___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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formoso jovem, nada tem a recear de umavelhinha quase entrevada pelo reumatismo e quenem mesmo tem lenha para acender o fogo.Conheço algumas artes mágicas... nada que secompare com as suas, digno mestre... pequenosfeitiços e sortilégios, que poderia usar contra osseus inimigos, se todos estiverem de acordo.Porque detesto a todos eles. Mais do queninguém.

– Hum! Tudo isso é muito interessante...Muito curioso! – disse o doutor Cornelius. –Creio que já sei quem é a senhora. E agora,Nikabrik, talvez o seu outro amigo também queirafalar.

Um calafrio percorreu Caspian, quandouma voz cinzenta e pesada respondeu:

– Sou a fome e a sede. Aquilo que eumordo, guardo-o comigo até morrer, e, mesmodepois da morte, têm de cortar do meu inimigoaquilo que eu mordi e enterrá-lo comigo. Possodormir cem noites sobre o gelo, sem gelar. Sou

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capaz de beber um rio de sangue sem estourar.Mostrem-me os seus inimigos.

– É na presença desses dois amigos quevocê propõe expor o seu plano? – perguntouCaspian.

– É – respondeu Nikabrik. – E é com aajuda deles que penso executá-lo.

Durante alguns minutos, Trumpkin e osmeninos ouviram Caspian falar em voz baixa comos seus dois amigos, sem perceberem o quediziam. Por fim Caspian disse em voz alta:

– Pois bem, Nikabrik, ouviremos o seuplano. A pausa que se seguiu foi tão prolongadaque os

rapazes chegaram a duvidar que Nikabrikiria mesmo falar. Por fim começou num tommuito baixo, como se ele mesmo não estivessegostando do que dizia.

– Para ir direto ao assunto – murmurou – ,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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nenhum de nós sabe a verdade sobre a antigaNárnia. Trumpkin nunca acreditou em nenhumadessas histórias. Quanto a mim, acho que, antesde acreditar, deveríamos colocá-las à prova. Jáexperimentamos a trompa e ela falhou. Se algumdia existiu um Grande Rei Pedro e uma rainhaSusana, um rei Edmundo e uma rainha Lúcia,então eles não nos ouviram ou não têm o poder deaparecer... ou são nossos inimigos.

– Ou estão a caminho – acrescentou Caça-trufas.

– Você pode insistir nisso até que Mirazfaça de nós ração para seus cães. Mas, como iadizendo, experimentamos um dos pontos dasvelhas lendas e não adiantou nada. Pois bem! Aslendas falam de outros poderes, além desses reis erainhas do passado. Não seria bom invocá-los?

– Se está falando de Aslam, tanto fazinvocá-lo ou invocar os reis – disse Caça-trufas. –Pois os reis são súditos dele. Se não manda osseus súditos (e eu não tenho dúvidas de que o

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fará), acha provável que ele próprio venha?

– Claro que não. Neste ponto estamos deacordo – replicou Nikabrik. – Os reis e Aslam sãoaliados. Portanto, ou Aslam morreu ou está contranós. Ou então... algum poder maior do que elenão deixa que ele venha. E ainda que ele viesse...quem nos garante que ficará do nosso lado? Ajulgar pelo que tenho ouvido, nem sempre foimuito bom para os anões. Nem mesmo para todosos animais. Perguntem aos lobos. Seja como for,só esteve uma vez em Nárnia, pelo que me consta,e não se demorou muito aqui. O melhor, portanto,é a gente não contar com Aslam. Não era dele queeu falava.

Ninguém replicou, e por um momento osilêncio foi tão completo que Edmundo pôdeouvir distintamente a respiração ruidosa dotexugo.

– Então, do que está falando? – perguntouCaspian.

– Falo de um poder muito maior do que o___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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de Aslam e que, se a lenda diz a verdade,dominou Nárnia durante anos e anos.

– A Feiticeira Branca?! – exclamaram trêsvozes ao mesmo tempo. Pelo barulho que seouviu, Pedro teve a certeza de que três pessoastinham-se levantado de um salto.

– Sim! – disse Nikabrik, falando distinta epausadamente. – Falo da Feiticeira Branca!Precisamos de uma força, de uma força que seponha ao nosso lado. E não diz a lenda que afeiticeira derrotou Aslam e o algemou e o matousobre aquela mesa que está lá perto daquela luz?

– A lenda diz também que ele ressuscitou –acrescentou o texugo com voz cortante.

– Sim, há quem diga isso... – respondeuNikabrik. – Mas não se esqueça de que pouco seconta do que ele fez depois. Desapareceu logo dahistória. Se de fato ressuscitou, como se explicaisso? Não acha muito mais natural que tenhacontinuado morto e que a lenda não fale mais delepela simples razão de que não há nada mais a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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falar?

– Foi ele quem coroou os reis e as rainhas –disse Caspian.

– Um rei que alcança uma grande vitóriapode muito bem coroar-se a si próprio, semprecisar da ajuda de um leão de circo – retrucouNikabrik.

Nessa altura ouviu-se um rosnar irritado,muito provavelmente de Caça-trufas.

– Seja como for – continuou Nikabrik – ,que aconteceu a esses reis e ao seu reinado?Desapareceram também! Com a Feiticeira Brancaa coisa é diferente! Dizem que reinou cem anos...cem anos de inverno sem parar. A isso é que euchamo poder. Isso tem sentido prático.

– Ora essa! — exclamou o rei. – Poissabemos todos que ela foi o pior inimigo deNárnia! Não foi uma tirana dez vezes pior do queMiraz?

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– Talvez. Talvez ela tenha sido inimiga doshumanos, se é que havia alguns nesse tempo.Talvez tenha sido má para alguns animais. Pareceque foi ela que exterminou os castores: pelomenos não há vestígios deles. Mas foi sempre lealcom os anões, e eu, que sou anão, tenho dedefender o meu povo. Afirmo uma coisa: nós, osanões, não temos medo da Feiticeira Branca.

– Mas vocês são nossos aliados! –observou Caça-trufas.

– E temos lucrado imensamente com isso,sem dúvida! – ironizou Nikabrik. – Quem é quevocês mandam para as incursões perigosas? Osanões! Quando falta mantimento, cortam a raçãode quem?! Dos anões! Quem...?

– Mentira! Tudo isso é mentira! – gritou otexugo.

– E é por isso que, se não são capazes deajudar o meu povo, procurarei alguém que oajude!

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Nesse momento Nikabrik já gritava.

– Trata-se, portanto, de traição, Nikabrik? –perguntou o rei.

– Meta a espada na bainha, Caspian – disseNikabrik. – É esse o seu jogo, assassinar-me empleno Conselho? Não se atreva. Acha que tenhomedo de você? São três do seu lado e três do meu:estamos iguais.

– Pois então, vamos! – rosnou Caça-trufas.Mas imediatamente uma voz o interrompeu.

– Parem com isso! – gritou o doutorCornelius. – Estão indo depressa demais! Afeiticeira está morta. Todas as lendas sãounânimes nesse ponto. O que, pois, Nikabrik querdizer com invocá-la?

A voz cinzenta e pesada, que até agorafalara apenas uma vez, voltou a ouvir-se:

– Ah, sim. Está morta?...

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E logo a voz estridente e lamurientacontinuou:

– Oh! O meu querido principezinho nãodeve preocupar-se com o fato de que a DamaBranca (é assim que costumamos chamá-la) estejamorta. Eminentíssimo doutor, está apenasquerendo brincar com uma pobre velha como eu,ao dizer isso. Amável doutor, sapientíssimodoutor, onde é que já se viu uma feiticeiramorrer? É sempre possível invocar uma feiticeira!

– Invoque – ordenou a voz cinzenta. –Estamos todos prontos. Trace o círculo e prepareo fogo azul.

A voz de Caspian elevou-se sobre o rosnarcada vez mais forte do texugo e a exclamaçãoirritada de Cornelius.

– Com que então é esse o seu plano,Nikabrik? Você quer recorrer à magia negra einvocar um espírito maldito? Já vejo agora quemsão os seus amigos: uma megera e umlobisomem!___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Seguiu-se grande confusão. Os animaisrosnavam e ouvia-se o tinir do metal. Trumpkin eos meninos entraram correndo, e Pedro, derelance, viu uma criatura cinzenta, horrivelmentedescarnada, meio homem e meio lobo, atirar-se aum jovem, que devia ter a idade dele. Ao mesmotempo, Edmundo viu um anão e um texugoagarrados um ao outro, como se fossem dois gatosenfurecidos. Trumpkin encontrou-se frente afrente com a megera, cujo nariz e queixo seprojetavam como se fossem um quebra-nozes, eseus cabelos cinzentos e imundos caíam-lhe sobreo rosto. Agarrara o pescoço do doutor. Com umsó golpe de espada, Trumpkin fez-lhe saltar acabeça. A luz apagou-se e durante algum temposó se ouviu o ruído de espadas, dentes, garras,punhos e pés.

– Você está bem, Ed?

– Acho que sim – respondeu ele, ofegante.– Peguei o bruto desse Nikabrik, mas ele continuavivo.

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– Com trinta diabos! – exclamou uma vozzangada. – Você está é em cima de mim! Pareceum leão!

– Desculpe, N.C.A. – disse Edmundo. –Está melhor agora?

– Não! – rugiu Trumpkin. – Você está comos pés na minha cabeça. Quer tirá-los?

– Onde está o rei Caspian? – perguntouPedro.

– Estou aqui – respondeu uma voz sumida.— Se é que ainda sou eu!

Alguém riscou um fósforo. Foi Edmundo.A pequena chama iluminou-lhe o rosto pálido esujo. Às apalpadelas ele conseguiu encontrar umavela (o azeite da lamparina tinha acabado) ecolocá-la acesa em cima da mesa. Várias pessoasse levantaram com esforço, e seis rostos sefitaram na luz indecisa.

– Parece que acabamos com os nossos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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inimigos – disse Pedro. A megera está ali, morta –e rapidamente desviou os olhos dela. – Nikabrikestá morto também. Acho que isto aqui é umlobisomem. Há tempos que não via um bichodesses! Tem corpo de homem e cabeça de lobo, oque significa que o matamos no momento em quepassava de homem para lobo. Você, acho, é o reiCaspian...

– Sim, mas não faço a menor idéia de quemseja você.

– E o Grande Rei Pedro! – declarouTrumpkin.

– Bem-vindo, Real Senhor! – disseCaspian.

– Bem-vindo igualmente, Majestade. Nãovim para tomar o seu lugar, mas para que ele lheseja restituído.

– Majestade – ouviu-se uma voz à altura doombro de Pedro. Este voltou-se e deu de cara como texugo. Pedro inclinou-se, envolvendo-o com___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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os braços, e beijou-lhe a cabeça peluda: não porsentimentalismo, mas por ser o Grande Rei.

– Valente texugo! Em nenhum momentoduvidou de nós!

– Isso é de família, Real Senhor! – disseCaça-trufas. – Sou bicho, e os bichos não mudamassim de uma hora para outra. Além do mais, soutexugo, e os texugos são fiéis.

– Tenho pena de Nikabrik – falou Caspian– , ainda que me tenha odiado desde o momentoem que nos conhecemos. De tanto sofrer e odiarficou azedo por dentro. Se tivéssemos conseguidouma vitória fácil, é possível que em tempo de pazacabasse um bom anão. A única coisa que meconsola é não saber quem de nós o matou.

– Você está perdendo sangue! – dissePedro.

– Foi uma dentada – respondeu Caspian. –Daquela., daquela espécie de lobo.

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Levou tempo a desinfetar e a limpar aferida. Depois Trumpkin disse:

– Pois muito bem! Antes de qualquer coisa,vamos almoçar.

– Aqui, não! – disse Pedro.

– Oh, não! – concordou Caspian com umcalafrio. – Temos de mandar retirar os corposimediatamente.

– Que esses canalhas sejam atirados a umpoço! – disse Pedro. – Quanto ao anão, proponhoque seja entregue ao seu povo, para que oenterrem à maneira deles.

Almoçaram em outro dos escurossubterrâneos do Monte. Não foi um almoço ideal:Caspian e Cornelius teriam preferido pastéisfolheados de faisão; Pedro e Edmundo gostariamde ovos mexidos e café bem quentinho. E, afinal,o que coube a cada um deles foi um pedaço dacarne de urso fria (que os meninos traziam nobolso), um pedaço de queijo duro, uma cebola e___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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uma caneca de água. Mas, julgando pela maneiracom que se atiraram à comida, qualquer um denós teria imaginado que saboreavam um petiscodelicioso.

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O GRANDE REI ASSUME OCOMANDO

Quando todos acabaram de comer, Pedrodisse:

– Aslam e as meninas (refiro-me às rainhasSusana e Lúcia) estão perto. Não sabemos quandoAslam intervirá; será quando ele achar melhor.Entretanto, sem dúvida, o seu desejo é quefaçamos antes o que pudermos. Dizia você,Caspian, que não podemos enfrentar Miraz embatalha campal...

– Receio que não, Grande Rei – disseCaspian, que sentia grande simpatia por Pedro,mas se encontrava um pouco atrapalhado. Era___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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muito mais estranho para ele encontrar-se com osgrandes reis das velhas lendas do que era paraestes o encontrar.

– Pois bem – disse Pedro – , sendo assim,desafiarei Miraz para se bater comigo em duelo.

Ninguém tinha pensado nessa hipótese.

– Mas não poderia ser eu? – perguntouCaspian. – Sempre desejei vingar a morte de meupai.

– Você está ferido – respondeu Pedro. – E,seja como for, é bem possível que não levasse asério um desafio seu. Sabemos que você é umguerreiro, mas para ele é um garoto.

– Mas aceitará um desafio, mesmo seu? –perguntou o texugo, que não tirava os olhos dePedro.

– Miraz sabe perfeitamente que o exércitodele é mais forte do que o nosso.

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– Provavelmente não, mas não custa nadatentar. E, ainda que recuse, levaremos grandeparte do dia enviando emissários de parte a parte.Nesse meio-tempo, pode ser que Aslam façaalguma coisa e, pelo menos, também terei tempode passar em revista o exército e fortalecer nossaposição. Vou escrever imediatamente o desafio.Tem aí papel e tinta, doutor?

– Um estudioso tem sempre à mão papel etinta, Real Senhor.

– Então, eu dito – disse Pedro. E enquantoo doutor desenrolava o pergaminho, abria otinteiro de chifre e afiava a pena Pedro recostou-se e, de olhos semicerrados, tentou relembrar ostermos em que, havia muito tempo, na Idade deOuro de Nárnia, costumava redigir taismensagens.

– Bem! – exclamou, enfim. – Está pronto,doutor? O doutor Cornelius molhou a pena eesperou.

Pedro ditou o seguinte:___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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“Pedro, por graça de Aslam, por eleição,por direito e por conquista, Grande Rei,poderoso sobre todos os reis de Nárnia,Imperador das Ilhas Solitárias e Senhor deCair Paravel, Cavaleiro da Mui NobreOrdem do Leão, a Miraz, Filho de CaspianVIII, outrora Príncipe Regente de Nárnia eque arroga o título de Rei de Nárnia,saudações.”

– Pronto?

– ... vírgula, saudações – repetiu o doutor.Pronto, meu senhor.

– Então, parágrafo – disse Pedro.

Para evitar derramamento de sangue, bemcomo os demais inconvenientes, que énatural decorrerem das guerras que setravam em nosso reino de Nárnia, apraz-nos arriscar a nossa real pessoa em proldo mui fiel e bem-amado Caspian,propondo-lhe provar em combate real comVossa Excelência que o já mencionado

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Caspian é, por dom nosso e segundo a leidos telmarinos, legítimo Rei de Nárnia eque Vossa Excelência é réu de duplatraição quer por ter subtraído o domíniode Nárnia ao dito Caspian, quer por terlevado a cabo o abominável – não seesqueça do acento, doutor – , sanguinárioe desumano assassínio de seu mui amávelsenhor e irmão, o Rei Caspian IX. Peloque, de bom grado, provocamos edesafiamos Vossa Excelência para o ditocombate, enviando estas cartas pelo nossomui estimado e real irmão Edmundo,outrora Rei de Nárnia, sob a nossajurisdição, Duque do Ermo do Lampião eConde do Marco Ocidental, Cavaleiro daNobre Ordem da Mesa, a quem foramconferidos plenos poderes paradeterminar, de acordo com VossaExcelência, as condições do combate.Lavrado na morada nossa do Monte deAslam, no décimo segundo dia do mês dosPrados Floridos, no primeiro ano doreinado de Caspian X de Nárnia.

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– Creio que assim está bom – disse Pedro,respirando fundo. – Agora temos de escolher duaspessoas para acompanhar o rei Edmundo. Ogigante pode ser uma delas.

– Bem... quer dizer... ele não é lá muitoesperto – objetou Caspian.

– Sei disso – falou Pedro. – Mas qualquergigante impressiona, desde que não abra a boca. Esempre o animará um pouquinho. Mas quem háde ser o outro?

– Se querem algum capaz de fuzilar só comos olhos, mandem Ripchip – propôs Trumpkin.

– É mesmo, ele não é de brincadeira – dissePedro com uma gargalhada. – É pena ser tãopequenininho.

– Então mandem Ciclone – sugeriu Caça-trufas.

– Nunca ninguém riu de um centauro.

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Uma hora mais tarde, dois grandes senhoresdo exército de Miraz, lorde Glozelle e lordeSopespian, que passeavam ao longo das tropasalinhadas palitando os dentes depois do almoço,levantaram os olhos e viram que da floresta saíamo centauro e o gigante Verruma, a quem já tinhamvisto em combate, e, no meio deles, um vulto quenão conseguiam identificar. Nem mesmo oscolegas de Edmundo o teriam reconhecido, se ovissem. Porque Aslam soprara sobre ele, e umagrandeza qualquer o envolvia.

– Que será isto? Um ataque?

– Trazem ramos verdes. Queremparlamentar – disse o outro. – Devem estardispostos a render-se.

– Aquele que vem entre o centauro e ogigante não tem ar de quem vai se render –objetou Glozelle. – Quem será ele? Não é o jovemCaspian.

– Não, não é. Mas é um guerreiro temível,seja lá quem for. Aqui pra nós, tem um ar bem___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mais majestoso do que Miraz. E que magníficacota de malha! Nunca nas nossas forjas se fezuma coisa parecida!

– Aposto o meu cavalo como vem paradesafiar – disse Glozelle.

– Bem, temos o inimigo na mão. Miraz nãoseria maluco de arriscar nossa superioridade paraaventurar-se em duelo.

– Podemos dar um jeito de levá-lo a isso –sugeriu Glozelle, em voz baixa.

– Cuidado! – disse Sopespian. – Mais paracá, uma sentinela pode ouvir-nos. Aqui não háperigo. Entendi bem o que você disse?

– Se o rei aceitasse o desafio, um ou outromorreria...

– Certo – concordou Sopespian.

– Se ele vencesse, a luta estaria ganha.

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– Claro. E do contrário?

– Do contrário, as probabilidades de quevençamos a guerra seriam as mesmas, com o reiou sem ele. Toda a gente sabe que Miraz não éum grande guerreiro. Nós alcançaríamos a vitória,com a vantagem de ficarmos sem rei.

– Está sugerindo que nós dois poderíamostomar conta do reino?

Glozelle franziu a testa, dizendo:

– Não devemos esquecer que fomos nósque o colocamos no trono. E afinal, durante todosestes anos de reinado, o que lucramos? Algumavez ele mostrou gratidão por isto?

– Basta por ora – disse Sopespian. – Olhe,estão nos chamando à tenda do rei.

Quando lá chegaram viram que Edmundo eos seus dois companheiros, sentados do lado defora da tenda, eram recebidos com doces e vinho.Entregue o desafio, tinham-se retirado, esperando___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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que o rei tomasse uma decisão. Ao verem os trêsassim de perto, os dois lordes telmarinos acharamque tinham um ar temível.

Lá dentro, Miraz, desarmado, acabava dealmoçar. Estava muito vermelho e pareciairritado.

– Vejam isto! – rosnou, atirando-lhes opergaminho por cima da mesa. – Vejam só ainfantilidade e a prosápia do meu sobrinho!

– Se me permite, Majestade – começouGlozelle.

– Se o jovem guerreiro que está lá fora é orei Edmundo de que se fala aqui, isso não meparece nem um pouco uma brincadeira decrianças. Parece um cavaleiro perigoso.

– Ora, o rei Edmundo! – escarneceu Miraz.– Então acredita nessas lendas de Pedro eEdmundo e essa cambada toda?

– Acredito no que os meus olhos vêem,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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senhor

– respondeu Glozelle.

– Passemos adiante. No que respeita aodesafio, parece-me que não pode haver duasopiniões entre nós.

– Certamente, Real Senhor – concordouGlozelle.

– O que acha que se deve fazer? –perguntou o rei.

– Recusar, sem dúvida – disse Glozelle. –Nunca fui um covarde, mas tenho de confessarque me faltaria coragem para enfrentar aquelejovem em combate corpo a corpo. Se, como émuito provável, o irmão, o Grande Rei, é aindamais perigoso do que ele... suplico que o meusenhor não queria nada com ele.

– Aos diabos! – exclamou Miraz. – Não foiessa a opinião que pedi. Não perguntei se deviaou não ter medo de enfrentar Pedro (se é que essa___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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criatura existe!). Acha que tenho medo dele?Queria apenas saber a sua opinião sobre o aspectopolítico da questão. Estando a vantagem toda donosso lado, devemos arriscar a vitória numcombate individual?

– A minha resposta é que, por todos osmotivos, o desafio deve ser recusado – declarouGlozelle. – Há no rosto daquele estranhocavaleiro uma ameaça de morte.

– Estamos voltando para a mesma coisa! –disse Miraz, zangado. – Acham que sou covardecomo vocês?

– Vossa Majestade pode pensar o quequiser – replicou Glozelle, mal-humorado.

– Você está falando como uma velhamaluca – disse o rei. – Que acha, Sopespian?

– Não se arrisque, Real Senhor – foi aresposta. – O aspecto político da questão vemmesmo a calhar, oferecendo-lhe excelente motivopara uma recusa, sem deixar que se ponham em___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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dúvida a sua honra e a sua coragem.

– Chega! – exclamou Miraz, levantando-sede repente.

A conversa seguia exatamente o rumo queos dois lordes desejavam, e por isso nadadisseram.

– Compreendo! – prosseguiu Miraz, depoisde fitá-los com os olhos esbugalhados. – Vocêssão uns coelhos medrosos e têm a ousadia deachar que sou também um covarde! Vocês sãosoldados? São telmarinos? São homens? Se eurecusar (como aconselham as razões de chefia epolítica militar) iriam pensar e levar os outros apensar que o fiz por medo. É ou não é?

– Nenhum soldado sensato se atreveria achamar de covarde um homem da sua idade,apenas por não querer bater-se com um grandeguerreiro na flor da juventude – disse Glozelle.

– Ah, quer dizer que não só sou covarde,mas sou também um velho com um pé na cova?!___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Pois então, senhores, fiquem sabendo de umacoisa: seus conselhos de maricás (que sempre seafastaram do ponto essencial, que é a política)conseguiram justamente o contrário do que vocêsqueriam. A minha intenção era recusar. Masagora aceitarei o desafio! Não vou cobrir-me devergonha só porque a traição ou algumas artesmágicas (sei lá o quê!) gelaram o seu sangue!

– Majestade, suplico... – começou Glozelle.Mas Miraz já se precipitara para fora da tenda eos dois lordes ouviram-no gritando para Edmundoque aceitava o desafio.

Entreolharam-se e sorriram.

– Tinha a certeza de que, bem manejado,acabaria por aceitar – disse Glozelle. – Mas nãoesquecerei que me chamou de covarde. Há depagar por isso!

No Monte de Aslam, houve grandeagitação quando a notícia chegou e foitransmitida às várias criaturas. Edmundo e umdos capitães de Miraz já tinham escolhido o local___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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para o combate, que foi cercado com cordas eestacas. Em dois dos cantos e no meio de um doslados deviam ficar três teimarmos, como árbitrosda peleja. Três outros seriam escolhidos peloGrande Rei. Pedro estava justamente explicandopara Caspian que ele não podia ser um dosárbitros, visto que estava em jogo o seu direito aotrono, quando uma voz grossa e sonolenta disse:

– Por favor, Majestade! – Pedro voltou-se eviu o mais velho dos Ursos Barrigudos. – Porfavor, Majestade – repetiu. – Eu... eu sou umurso!

– Sem dúvida nenhuma, e um bom urso –disse Pedro.

– Bem, é um velho direito nosso que umdos árbitros da peleja seja um urso.

– Não deve permitir – segredou Trumpkin aPedro. – É um bom urso, mas iria envergonhar anós todos. Está sempre dormindo ou chupando osdedos. Será uma vergonha em frente do inimigo.

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– Não posso opor-me – disse Pedro. – Eletem razão. Ê um privilégio dos ursos. Nãocompreendo como é que, numa época em quetantas coisas foram esquecidas, esse privilégio foimantido.

– Por favor – insistiu o urso.

– Você será um dos árbitros – declarouPedro. – Mas prometa-me uma coisa: não vaichupar os dedos.

– Prometo, é claro – disse o urso, meioenvergonhado.

– Mas se já começou a chupar desde agora!– gritou Trumpkin.

O urso tirou a mão da boca e fez de contaque não tinha ouvido.

– Real Senhor! – ouviu-se uma vozinhaesganiçada, vinda do chão.

– Ah... Ripchip! – disse Pedro, depois de

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ter olhado para todos os lados, para cima, parabaixo e em torno, como sempre acontecia quandoo rato se dirigia a alguém.

– Real Senhor! A minha vida estáinteiramente a seu dispor, mas tenho de defendera minha honra. O único trompeteiro do seuexército é um dos meus. Julguei por isso que nosenviariam para acompanhar os emissários quelevaram a Miraz o seu desafio. O meu povo estámagoado, senhor. Se fosse o seu desejo designar-me árbitro, talvez isso satisfizesse o meu povo.

Nesse momento o gigante Verruma desatoua rir, com aquelas gargalhadas pouco inteligentesa que são propensos mesmo os gigantes maissimpáticos. O riso lembrava o ribombar dotrovão. Quando Ripchip descobriu de onde vinhao barulho, o gigante conteve-se imediatamente eficou sério e vermelho como um rabanete.

– Acho que será impossível – disse Pedro,falando com grande seriedade. – Há humanos quetêm medo dos ratos...

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– Já notei isso, meu senhor.

– Assim sendo, não seria leal para comMiraz colocá-lo na presença de qualquer coisaque possa fazer-lhe perder o ânimo.

– Vossa Majestade é a própria encarnaçãoda honra – declarou o rato, fazendo uma das suasmais rasgadas reverências. – Nesse ponto, não hámotivo para discórdia... Mas, ainda há pouco,parece que ouvi alguém rindo... Se há alguémaqui que pretenda rir-se às minhas custas, estou àsua disposição... quando quiser... com a minhaespada!

Essa observação foi seguida por um terrívelsilêncio, que Pedro quebrou, dizendo:

– O gigante Verruma, o urso e o centauroserão os nossos árbitros. O combate terá lugar àsduas horas da tarde, e o almoço será ao meio-diaem ponto.

– Bom – disse Edmundo, quando os outrosse afastavam – , acho que está tudo em ordem.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Creio que você será capaz de vencê-lo, não é?

– Veremos! – disse Pedro.

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CONFUSÃO GERAL

Um pouco antes das duas horas, Trumpkine o texugo estavam já sentados com todas asoutras criaturas na orla do bosque, olhando para alinha dos homens de Miraz, à distância de duasflechadas. Entre uns e outros, um relvadoquadrado fora marcado para a luta. Nos doiscantos mais afastados postavam-se Glozelle eSopespian, de espada desembainhada: nos doismais próximos estavam o gigante Verruma e oUrso Barrigudo, que, apesar de todas asrecomendações, tinha os dedos na boca e, paradizer a verdade, estava fazendo uma figura muitoridícula. Em contrapartida, Ciclone, o centauro, àdireita, absolutamente imóvel, a não ser quandoescarvava a relva com um dos cascos, tinha um ar___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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bem mais imponente do que o barão telmarinoque, à esquerda, estava voltado para ele. Pedroacabara de apertar a mão de Edmundo e do doutore dirigia-se para o combate. Reinava uma grandetensão, como a que precede o sinal de partidanuma corrida importante, com a diferença de serbem maior.

– Quem me dera que Aslam tivesseaparecido antes que as coisas chegassem a esteponto! – disse Trumpkin.

– Quem dera! – concordou Caça-trufas. –Mas... olhe!

– Com trinta diabos! – exclamou o anão. –Quem é esta gente? Criaturas enormes... bonitas...parecem deuses e gigantes e deusas. Centenas...milhares! Quem serão?

– São hamadríades, dríades e silvanos –respondeu Caça-Trufas. – Aslam os despertou.

– Hum! – murmurou o anão. — Não hádúvida de que nos serão muito úteis, caso o___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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inimigo tente atraiçoar-nos. Mas não há ajuda quevalha ao Grande Rei, se Miraz se mostrar maishábil do que ele no manejo da espada.

O texugo não respondeu, porque nessemomento Pedro e Miraz, de cotas de malha,elmos e escudos, entravam a pé na arena, vindosde lados opostos. Cruzaram-se numa saudação epareceram trocar algumas palavras, que ninguémconseguiu entender. Logo depois, as espadasflamejavam ao sol. Apenas por um instante seouviu o tinir do metal, logo abafado pelospartidários de ambos os lados, que gritavam comose estivessem numa partida de futebol.

– Muito bem, Pedro! – gritou Edmundo,quando Miraz foi obrigado a recuar quase doispassos. – Agora! Vamos!

Pedro atacou e, por uma fração de segundo,chegou a parecer que o combate estava ganho.Mas

Miraz recompôs-se e começou a tirarpartido de sua altura e de seu peso.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Miraz! Miraz! Viva o rei! – gritavam ostelmarinos. Caspian e Edmundo ficaram brancosfeito papel.

– Pedro está sofrendo golpes terríveis –disse Edmundo.

– E agora? O que aconteceu? – perguntouCaspian.

– Afastaram-se; acho que estão cansados.Mas estão recomeçando e agora com maistécnica. Cada um está experimentando a defesado outro.

– Este Miraz parece ser bom com a espada– murmurou o doutor. Mal tinha pronunciadoessas palavras, um barulho ensurdecedor derelinchos e palmas e bater de cascos elevou-seentre os antigos narnianos.

– O que está havendo? – perguntou odoutor. – Meus olhos cansados já não ajudam.

– O Grande Rei atingiu Miraz debaixo do___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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braço – exclamou Caspian, ainda aplaudindo. – Aponta da espada entrou pela cava da cota demalha. É o primeiro sangue derramado.

– É... mas as coisas não vão bem –comentou Edmundo. – Pedro não está segurandoo escudo como devia... Deve estar ferido no braçoesquerdo.

Era verdade. Todos notaram que o escudolhe pendia do braço, e os gritos dos telmarinosredobravam.

– Você, que está mais habituado acombater, acha que temos esperança? – perguntouCaspian.

– Muito pouca – respondeu Edmundo. –Com sorte, talvez Pedro ainda consiga vencer.

– Oh! Por que fomos permitir estecombate? – lamentou-se Caspian.

De repente os gritos esmoreceram.Edmundo ficou perplexo por um instante e disse:___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Estou entendendo. Resolveram descansarum pouco. Vamos, doutor. Talvez possamosajudar o Grande Rei.

Correram para a arena e Pedro saiu aoencontro deles, encharcado de suor, muitovermelho, respirando com esforço.

– Está com o braço ferido? – perguntouEdmundo.

– Não é bem um ferimento. Tive deagüentar o peso dele sobre o escudo... como sefosse uma carroça de tijolos... e a borda do escudofincou-me no pulso. Se atarem o meu pulso bemapertado, acho que posso agüentar-me.

Enquanto fazia isso, Edmundo perguntou,ansioso:

– Que tal é ele, Pedro?

– Difícil, muito difícil mesmo. Talvez hajauma esperança, se conseguir agüentá-lo até que afalta de fôlego e o próprio peso o cansem... o peso___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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e este sol de rachar. Para falar com franqueza, écom o que posso contar. Se acontecer algumacoisa, Ed, dê lembranças minhas a todos, lá emcasa... Miraz está voltando. Adeus, meu velho.Adeus, doutor. Ed, não se esqueça de dizer aTrumpkin que me lembrei dele. Tem sido umamigão.

Edmundo não encontrou palavras pararesponder. Com uma horrível sensação de mal-estar, voltou com o doutor para junto dos seus.

O segundo encontro correu bem. Pedroparecia manejar o escudo com mais facilidade enão parava um instante. Quase que brincava deesconder com Miraz; mudava constantemente deposição, mantendo-se fora do alcance do inimigoe obrigando-o a mexer-se.

– Covarde! – gritaram os telmarinos. – Porque não luta de frente? Está com medo, hein?Aqui não é lugar de dançar, palhaço!

– Tomara que ele não se importe com o quedizem! – exclamou Caspian.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Ele?! Você não conhece o Pedro,Caspian. Opa!

Miraz acabara de vibrar um golpe no elmode Pedro. Este escorregou e caiu sobre um joelho.A gritaria dos telmarinos elevou-se como orugido do mar.

– Vamos, Miraz! Mate ele logo!

Mas o usurpador não precisava que oincitassem. Já dominava Pedro. Edmundo mordeuos lábios até tirar sangue quando a espada baixousobre o irmão. Teve a impressão de que a cabeçadeste ia saltar. Mas (Deus seja louvado!) a lâminaatingiu apenas o ombro direito. A cota de malha,fabricada pelos anões, era resistente e não cedeu.

– Formidável! – exclamou Edmundo. –Está de pé outra vez. Coragem, Pedro!

– Não consegui ver o que aconteceu – disseo doutor. – Como é que ele se levantou?

– Agarrou-se ao braço de Miraz quando___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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caiu – explicou Trumpkin, pulando de alegria. –Puxa! Como ele é valente! Usa o braço doinimigo como se fosse uma escada. Viva oGrande Rei! Viva a antiga Nárnia!

– Atenção! – disse Caça-trufas. – Mirazestá furioso. A coisa vai indo muito bem.

Miraz e Pedro atiravam-se um ao outrocomo tigres irados. Os golpes se cruzavam tãorápidos que parecia impossível que algum delesviesse a escapar. A medida que a excitaçãocrescia, os gritos diminuíam. Os espectadoresseguravam a respiração. A luta era terrível emagnífica.

De súbito, levantou-se um clamor entre osantigos narnianos. Miraz estava no chão... nãoderrubado por Pedro, mas simplesmente caído,com a cara na terra, depois de ter tropeçado numtufo de relva. Pedro recuou, esperando que selevantasse.

– Ora bolas! Ora bolas! – repetiu Edmundopara consigo mesmo. – Que idéia é essa de ser tão___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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delicado? Bem, vá lá! Trata-se de um cavaleiro eainda por cima de um Grande Rei! Certamenteque Aslam aprova a sua atitude. Mas não tardaque aquele bruto se levante e então...

Aquele bruto, no entanto, não chegou alevantar-se. Lorde Glozelle e lorde Sopespiantinham lá os seus planos. Logo que viram o reicaído, saltaram para a arena, gritando:

– Traição! Traição! O traidor de Nárniaapunhalou o rei pelas costas quando ele estavaindefeso. Às armas! Às armas, Teimar!

Pedro mal teve tempo de compreender oque se passava. Dois homens enormes avançavampara ele, de espada em punho. Um outro saltoupara a arena vindo da esquerda. Aí Pedro gritou:

– Às armas, Nárnia! Traição!

Se os três tivessem logo se atirado sobrePedro, teriam acabado com ele. Glozelle, porém,deteve-se ainda para apunhalar o próprio rei,caído por terra.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Tome! E em paga do insulto desta manhã– disse baixinho, ao cravar-lhe a espada.

Pedro voltou-se para enfrentar Sopespian,vibrou-lhe um golpe nas pernas e, invertendoimediatamente o movimento, fez-lhe saltar acabeça. Nesse momento, Edmundo já estava juntodele, gritando:

– Nárnia! Pelo Leão!

O exército telmarino avançava em pesopara eles. Mas o gigante começou a avançartambém, baixando-se para um e para outro lado efazendo vibrar sua clava. Os centauros iniciaramo ataque. Pam, pam, ouvia-se lá atrás. Por sobreas cabeças... zim, zim... zuniam as flechas dosanões. À esquerda lutava Trumpkin. Era a plenabatalha.

– Vá-se embora, Ripchip, seu palerma! –gritou Pedro. – Isto não é lugar para ratos. Vocêvai acabar sendo morto.

Mas os ridículos animaizinhos continuaram___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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a saltar de um lado para outro, espada na mão,entre os pés dos combatentes. Nesse dia, muitostelmarinos

julgaram ter assentado o pé de repentenuma dúzia de espetos, tentaram equilibrar-senuma perna só, amaldiçoando a dor, e muitasvezes acabaram por cair. Se caíam, os ratosacabavam com eles; se não caíam, alguémaparecia para resolver o caso.

Ainda os narnianos não tinhampropriamente organizado o ataque, quandoverificaram que o inimigo cedia. Guerreirosterríveis ficaram de repente brancos feito cal e, deolhos esbugalhados, fixavam não os antigosnarnianos, mas alguma coisa que estava pordetrás deles. Deixaram cair as armas e gritaram:

– O bosque! O bosque! É o fim do mundo!

Não demorou que seus gritos e o tinir dasarmas fossem abafados pelo rugir oceânico dasárvores despertas, que se infiltravam pelas fileirasde Pedro e continuavam em perseguição aos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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telmarinos.

Você já viu algum dia uma grande florestaatacada por um vento furioso? Imagine o rugir dovento. Imagine também que a floresta não estáimóvel, mas se precipita para você, e que já não éfeita de árvores, mas de gente. Homens enormes,mas semelhantes a árvores, porque os braços queagitam parecem ramos, e, sacudindo a cabeça,deixam cair à volta uma chuva de folhas.

Foi a sensação que tiveram os telmarinos.A verdade é que o espetáculo era um tantoalarmante, mesmo para os narnianos. Dentro deinstantes, todos os homens de Miraz fugiam emdireção ao Grande Rio, na esperança deatravessarem a ponte para a cidade de Beruna e aíse defenderem, ao abrigo de barricadas e portõesfechados.

Chegaram de fato ao rio, mas nãoencontraram a ponte, que tinha desaparecido navéspera. Tomados de pânico, todos se renderam.

Mas o que acontecera à ponte?___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Naquela manhã, bem cedinho, as meninas,ao despertar, ouviram Aslam dizer:

– Hoje é dia de festa!

Esfregaram os olhos e olharam em redor.As árvores ainda podiam ser vistas ao longe,avançando para o Monte de Aslam, em manchaescura e maciça. Baco, as mênades (suas loucas eestouvadas companheiras) e Sileno tinham ficado.Lúcia, já refeita, levantou-se. Todos estavamacordados e riam ao som das flautas e timbales.De todos os lados apareciam animais, mas nãofalantes.

– Que aconteceu, Aslam? – perguntouLúcia, com os olhos a bailar e os pés desejosos defazer o mesmo.

– Vamos, minhas filhas – disse ele. – Hojevão andar outra vez nas minhas costas.

– Que bom! – gritou Lúcia.

E as duas meninas subiram para o dorso___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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quente e fulvo, como tinham feito sabe-se lá háquantos anos. Todo o grupo se pôs emmovimento. Aslam à frente, seguido de Baco edas mênades – que corriam e saltavam e davamcambalhotas – , depois os animais cabriolando efinalmente Sileno, montado no seu burro.

Cortaram à direita, lançaram-se por umaencosta a pique e foram sair no Passo do Beruna.Da água emergiu uma cabeça coroada de juncos,maior

que a de um homem e com a barba a pingar.Olhou para Aslam e disse, numa voz grave:

– Salve, senhor! Liberte-me dos meusgrilhões.

– Quem é? – perguntou Susana nummurmúrio.

– Psiu! – disse Lúcia. – Deve ser o deus dorio.

– Baco, liberte-o das cadeias! – ordenou___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Aslam. “Deve estar falando da ponte” – pensouLúcia. E era, de fato. Baco e sua gente avançaramchapinhando pela água pouco profunda; uminstante depois, aconteciam as coisas maisestranhas. Troncos grossos e fortes enrolavam-sepelos pilares da ponte e, alastrando-se como ofogo, envolviam as pedras, separando-as,fazendo-as estalar. As grades da pontetransformaram-se por um momento em bonitassebes de espinheiro branco. De repente, toda aconstrução desabou com estrondo e foi engolidapelas águas. Entre nuvens de salpicos e gritos deriso, parte do alegre grupo atravessou o rio a vau,enquanto outros o atravessaram a nado ou abailar, saltando para a outra margem. Entraramtodos na cidade.

– Viva! É outra vez o Passo do Beruna! –gritaram as meninas.

Ao vê-los, toda a gente da cidade desatou acorrer.

A primeira casa que encontraram foi uma

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escola, uma escola de meninas, onde uma porçãode alunas de Nárnia, com o cabelo muito esticadoe golas muito apertadas e feias, e usando meiasmuito grossas, assistia a uma aula de História.

A História que se aprendia em Nárniadurante o reinado de Miraz era mais insípida doque a história mais verdadeira que se possaimaginar e muito menos verdadeira do que o maisapaixonante conto de aventuras.

– Goendolina, se continuar olhando parafora e não prestar atenção, dou-lhe um castigo! –disse a professora.

– Por favor... – disse Goendolina.

– Ouviu ou não ouviu o que eu disse?

– Mas, professora – insistiu Goendolina –lá fora tem um leão!

– Em vez de um, vou lhe dar dois castigos,para você não dizer bobagens. E agora...

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Um rugido cortou-lhe a palavra. E a heracomeçou a crescer e a enroscar-se pelas janelas dasala de aula. As paredes ficaram atapetadas de umverde cintilante e o teto cobriu-se de folhas. Derepente, a professora percebeu que estava nafloresta, numa clareira relvada. Quis agarrar-se àcarteira para apoiar-se e viu que esta setransformava numa roseira. Gente selvagem,como ela nunca imaginara que pudesse existir,comprimia-se ao redor. Ao ver o Leão, começou agritar e a fugir, e com ela toda a classe, formadana maior parte por meninas rechonchudas e depernas roliças. Goendolina hesitou:

– Quer ficar conosco, querida? – perguntouAslam.

– Posso? Mesmo? Muito obrigada.

E imediatamente deu a mão a duasmênades, que a fizeram rodopiar numa dançafrenética e a ajudaram a despir parte da roupadesnecessária e incômoda que trazia.

Por todos os lados por onde passavam, a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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cena se repetia. A maioria das pessoas fugia eumas poucas juntavam-se a eles. Quando saíramda cidade formavam um grupo muito maior emais animado.

Correram pelos campos planos da margemesquerda do rio. De todas as quintas saíamanimais que vinham ter com eles. Burros velhos etristes, que nunca tinham conhecido uma hora dealegria, rejuvenesciam de um momento paraoutro; cães que estavam presos quebravam ascorrentes; os cavalos escoiceavam até deixar ascarroças em frangalhos e acompanhavam o bandoa galope – clope, clope, clope – , relinchando esacudindo a lama dos cascos.

Junto de um poço, num pátio, um homemespancava um rapaz. O chicote transformou-senuma flor. O homem tentou soltá-la, mas estavaagarrada à sua mão. Seu braço transformou-senum ramo, o corpo num tronco, os pés criaramraízes. O rapaz, que há pouco chorava, desatou arir e foi com eles.

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Numa cidadezinha, a meio caminho doDique dos Castores, encontraram outra escola,onde uma mocinha com ar cansado ensinavaAritmética a uns meninos muito parecidos comporquinhos. A mocinha olhou pela janela e viu ogrupo brincalhão. Tremeu de alegria. Aslamparou debaixo da janela e olhou para ela.

– Oh, não! Queria muito, mas não posso.Tenho de trabalhar. As crianças morreriam desusto se vissem você.

– Morrer de susto? – disse um menino que,mais do que qualquer outro, parecia um leitão. –Com quem está falando? Temos de dizer aodiretor que ela fica conversando com as pessoas àjanela quando a obrigação dela é dar aula.

– Só quero ver quem é! – disse outromenino, e todos se levantaram.

Mas no momento em que as carinhasbobocas assomaram à janela Baco soltou o seueuan-euan-eoooi, e os meninos começaram agritar assustados e atropelaram-se para sair pela___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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porta ou saltar pela janela. Diz-se que essesmeninos nunca mais foram vistos, mas que nessaregião apareceu uma raça muito apurada deporquinhos que até então nunca havia existido.

– Venha, minha cara – disse Aslam àsenhorita. E ela foi.

No Dique dos Castores voltaram aatravessar o rio e chegaram a uma casinha ondeuma menina chorava.

– Por que chora, meu bem? – perguntouAslam. A criança, que nunca vira um leão, nemmesmo desenhado, não se assustou.

– Minha tia está muito doente e vai morrer.

Aslam quis entrar pela porta, mas erapequena demais para ele. Enfiou a cabeça, fezforça com os ombros (nessa altura, Lúcia eSusana escorregaram e caíram) e, levantando todaa casa, colocou–a abaixo.

Na cama, agora ao ar livre, via–se deitada___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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uma velhinha franzina, que parecia ter sangue deanão. Estava às portas da morte, mas, quandoabriu os olhos e viu a juba brilhante do Leão, nãogritou nem desfaleceu. Exclamou apenas:

– Oh, Aslam! Sabia que era verdade.Esperei a vida toda por este momento. Veio parame levar?

– Sim, minha querida – disse Aslam. – Masainda não para a viagem final.

E, enquanto falava, como o rubor que seinsinua nas nuvens ao nascer do sol, a cor voltou–lhe ao rosto pálido, os olhos readquiriram brilhoe, sentando–se, ela disse:

– Estou muito melhor. Acho que seriacapaz de comer alguma coisa.

– Aqui, titia – disse Baco, enchendo umabilha no poço.

Mas a bilha, em vez de água, continha omais perfumado dos vinhos, vermelho como___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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geléia de groselha, suave como o azeite, fortecomo um bom bife, reconfortante como o chá,geladinho como o orvalho.

– Oh! – exclamou a velha. – O poçomudou, sem dúvida. Está muito melhor assim! –E saltou da cama.

– Suba às minhas costas – disse Aslam, e,para as duas meninas: – Vocês terão de ir a pé.

– Adoramos correr. – E partiramimediatamente.

Foi assim que, entre saltos, danças, cantos eruídos de animais, o bando chegou finalmente aolugar onde o exército de Miraz se alinhava, deespadas no chão e mãos para o ar, e onde oshomens de Pedro, com uma expressão severa masalegre, e ainda de armas nas mãos, cercavam,ofegantes, os vencidos. Então, a velha desceu dascostas de Aslam e correu para Caspian... e caíramnos braços um do outro. Porque era, nem maisnem menos, a velha ama do príncipe.

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ASLAM ABRE UMAPORTA NO AR

Ao ver Aslam, os soldados telmarinosficaram lívidos, seus joelhos começaram a bater, emuitos caíram de cara no chão. Nunca tinhamacreditado em leões, e a descrença aumentavaainda mais seu terror. Os próprios anõesvermelhos, que sabiam que vinha como amigo,ficaram boquiabertos e mudos. Alguns dos anõesnegros, que tinham tomado o partido de Nikabrik,correram a esconder–se. Os animais falantes,porém, reuniram–se todos à volta do Leão.Alegres, rosnavam, guinchavam, relinchavam, oraacariciando o Leão, roçando–se nele, farejando–odelicadamente, ora andando de um lado para

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outro, por entre suas pernas. Se alguma vez vocêjá viu um gatinho fazendo festas a um cachorrogrande, no qual confia, poderá imaginar o que foiaquilo. Então Pedro, acompanhado de Caspian,abriu caminho por entre a bicharada.

– Permita que me apresente, Senhor! –disse Caspian, ajoelhando e beijando a pata doLeão.

– Bem–vindo seja, príncipe – disse Aslam.Sente–se bastante forte para reinar em Nárnia?

– Bem, não sei – respondeu Caspian. – Nãopasso de um garoto.

– Muito bem! – replicou Aslam. – Sedissesse que tinha a certeza, seria prova de quenão estava apto a reinar. Por isso, abaixo de mime do Grande Rei, será rei de Nárnia, Senhor deCair Paravel e Imperador das Ilhas Solitárias.Você e os seus descendentes, enquanto durar asua raça. A sua coroação... Mas o que vem a serisso?

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Nesse momento, um estranho cortejoaproximava–se: onze ratos, seis dos quaistransportavam alguma coisa numa liteira feita deramos. Nunca ninguém viu ratos mais tristes doque aqueles. Cobertos de lama (alguns também desangue), as orelhas e os bigodes caídos,arrastavam a cauda pela relva. O que abria ocortejo tocava numa flauta uma melodia triste. Oque jazia na maça parecia um monte de pêloúmido: era tudo o que restava de Ripchip.Respirava ainda, mas estava já mais morto do quevivo, muito ferido, com uma pata esmagada; eonde antigamente era a cauda havia agora só umcoto de rabo muito curtinho.

– É a sua vez, Lúcia! – disse Aslam.

Num abrir e fechar de olhos, Lúcia pegouseu frasco de diamante. Ainda que bastasse umagota em cada ferimento, Ripchip tinha tantos quese fez um longo e pesado silêncio, até que elafinalmente acabou e o Senhor Rato saltou damaça. Levou imediatamente a mão ao punho daespada, enquanto com a outra torcia os bigodes.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Fez uma reverência.

– Salve, Aslam! – disse, na sua vozinhaaguda. –Tenho a honra de... – Mas parou derepente.

A verdade é que continuava sem cauda, ouporque Lúcia se esquecera desse pormenor ouporque o bálsamo, capaz de curar as feridas, nãotinha o dom de fazer crescer as coisas outra vez.Foi quando fazia a reverência que Ripchip tomouconsciência de sua perda. Talvez porque a falta decauda lhe alterasse o equilíbrio. Olhou por cimado ombro direito. Não vendo a cauda, esticou opescoço até conseguir voltar os ombros e depoistodo o tronco. Mas nessa altura também as pernasse voltaram e nada viu. Estendeu de novo opescoço sem resultado. Só depois de ter dado trêsvoltas completas se apercebeu da amarga verdade.

– Estou perplexo! — declarou, dirigindo–sea Aslam. – Estou absolutamente fora de mim.Peço a sua indulgência pelo fato de apresentar–me de maneira tão imprópria.

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– Pelo contrário, até lhe fica muito bem,pequenino – disse Aslam.

– Mesmo assim, se se pudesse fazer algumacoisa... talvez Vossa Majestade... – acrescentou,curvando–se para Lúcia.

– Mas para que você quer uma cauda? –perguntou Aslam.

– Senhor – replicou o rato –, é verdade que,sem ela, posso comer e dormir e dar a vida pelomeu rei. Mas a cauda sempre foi a honra e aglória de um rato.

– Parece que às vezes você se preocupademais com a sua honra – disse Aslam.

– Rei poderoso sobre todos os GrandesReis –respondeu Ripchip –, permita recordar–lheque a nós, os ratos, foi dado um tamanho muitopequeno, de modo que, a não ser queconservemos a nossa dignidade, alguns dos quemedem as pessoas aos palmos seriam bemcapazes de se permitir brincadeiras de mau gosto___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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às nossas custas. Por isso é que não perco aoportunidade de afirmar que todo aquele que nãoquiser sentir esta espada bem perto do coraçãodeve evitar, na minha presença, toda referência aratoeiras e queijo frito. Não admito, Senhor... nemao mais alto idiota de Nárnia.

Nesse momento, olhou furioso paraVerruma; mas o gigante, sempre atrasado, aindanão tinha conseguido descobrir o que se discutialá embaixo, de modo que não entendeu ocomentário.

– Por que todos os seus seguidores estão deespada na mão? – perguntou Aslam.

– Com licença de Vossa Majestade – disseo segundo rato, que se chamava Pipcik. –Estamos todos prontos a cortar a cauda se o nossochefe ficar sem a dele. Não queremos ostentaruma honra que é negada ao Grande Rato.

– Ah! – rugiu Aslam. Vocês venceram! Sãomuito corajosos. Não pela sua dignidade,Ripchip, mas pelo amor que o liga ao seu povo e,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mais ainda, pela bondade que o seu povo mostroupara comigo, há muitos anos, quando roeu ascordas que me prendiam à Mesa de Pedra (se bemque tenham esquecido, foi nessa ocasião quecomeçaram a falar), você terá de novo a suacauda.

Mal Aslam acabara de pronunciar estaspalavras e já a cauda estava em seu lugar. Então,seguindo as instruções de Aslam, Pedro conferiua Caspian a dignidade de Cavaleiro da Ordem doLeão, e Caspian, uma vez armado cavaleiro,conferiu a honra a Caça–trufas, Trumpkin eRipchip, declarando o doutor Cornelius seuSupremo Magistrado e confirmando ao UrsoBarrigudo o direito hereditário de Arbitro. Tudoisto no meio de grandes aplausos.

Os soldados telmarinos foram entãoconduzidos, firmemente, mas sem insultos nempancada, para a outra margem do Beruna, eficaram prisioneiros na cidade, recebendo aí carnee bebida. Fizeram grande berreiro quandoatravessaram o rio a vau, porque detestavam a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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água corrente, tanto quanto detestavam e temiamos bosques e animais. Por fim, também essabalbúrdia acabou e começou a parte maisagradável daquele longo dia.

Lúcia, sentada junto de Aslam e sentindo–se divinamente feliz, perguntava a si própria oque é que as árvores estariam fazendo. Aprincípio achou que estivessem simplesmentedançando, pois moviam–se lentamente em doiscírculos, um que girava da esquerda para a direita,outro que ia da direita para o meio dos círculos.Parecia às vezes que cortavam longas mechas decabelos. Outras, porém, davam a idéia de quearrancavam pedaços dos dedos... mas, se assimera, deviam ter dedos para dar e vender e(parecia) não sentiam nem um pouquinho de dor.Fosse o que fosse que atirassem, ao tocar o chãose transformava em lenha seca. Três ou quatroanões vieram e atearam fogo à lenha, quecomeçou a estalar e a fazer labaredas, até quecrepitou como uma grande fogueira em noite deSão ,’ João. Fizeram um círculo em redor.

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Então Baco, Sileno e as mênades deraminício a uma dança muito mais animada do que adas árvores. Não era apenas uma dança dedivertimento e beleza, mas também uma dançamágica de abundância, porque, onde quer que assuas mãos ou os seus pés tocassem, surgia umverdadeiro banquete: nacos de carne assada, queenchiam o bosque com o seu delicioso aroma;bolos de aveia e trigo; mel e doces de muitascores; creme de leite espesso, pêssegos, ameixas,romãs, pêras, uvas, morangos... verdadeirascataratas de frutas. Depois foi a vez dos vinhosem taças de madeira e vasos entrelaçados comhera. Vinhos escuros e espessos como licor deamoras, outros de um vermelho–vivo como geléiarubra e derretida, e ainda outros amarelos everdes, e outros amarelo–esverdeados e verde–amarelados.

Para as árvores a comida era diferente.Quando Lúcia viu que Escava–terra e suastoupeiras revolviam a terra em lugares que Bacolhes indicava, compreendeu que as árvores iriamcomer terra e sentiu um arrepio. Mas, quando viu___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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as terras que lhes eram oferecidas, mudou deopinião. Começaram a comer um esplêndidotorrão castanho, que quase não se distinguia dochocolate, tão parecido que Edmundo provou umpouquinho, mas não achou nada bom. Depois deterem acalmado a fome com o torrão, as árvoresvoltaram–se para uma terra quase cor–de–rosa, daqual diziam ser leve e doce. Na hora do queijo,comeram uma porção de solo calcário, seguindo–se depois petiscos delicados, preparados com asareias mais finas e polvilhados com areiaprateada. Beberam muito pouco vinho, masmesmo assim as quaresmeiras ficaram muitofalantes; quase sempre matavam a sede comlongos goles de mistura de chuva e orvalho,aromatizada com flores campestres e perfumadacom a suave fragrância das nuvens maistransparentes. Assim Aslam ofereceu aosnarnianos um banquete, que durou até muitodepois do pôr–do–sol e do despertar das primeirasestrelas. E a grande fogueira, agora mais rubra emenos crepitante, brilhava como um farol nomeio dos bosques escuros. Ao vê–la, lá longe, ostelmarinos, aterrados, perguntaram–se o que seria___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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aquilo. O melhor da festa foi que ela não acabou,nem as pessoas foram embora. Simplesmente, àmedida que a conversa se espaçava e perdia aanimação, um e outro, sentindo a cabeça pesada,adormecia entre os amigos, de pés voltados para afogueira. Até que finalmente caiu o silêncio e seouviu de novo o parolar da água que saltitava depedra em pedra no Passo do Beruna. Durante todaa noite, Aslam e a Lua contemplaram–se comimensa alegria.

No dia seguinte, despacharam–semensageiros (principalmente esquilos e pássaros)por todo o país, com uma comunicação aostelmarinos dispersos, sem esquecer os queestavam presos em Beruna. Foi–lhes anunciadoque Caspian era agora o rei e que, a partir daquelemomento, Nárnia pertencia não só aos humanoscomo aos animais falantes, aos anões, às dríades,aos faunos e a todas as outras criaturas. Quemquisesse aceitar as novas condições poderia ficar;para aqueles que não estivessem satisfeitos,Aslam arranjaria outro país. Os interessados emmudar–se, deveriam apresentar–se a Aslam e aos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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reis dali a cinco dias, ao meio–dia em ponto, noPasso do Beruna.

Você pode imaginar a indecisão que istocausou entre os telmarinos. Muitos deles,principalmente os mais novos, como acontecera aCaspian, tinham ouvido histórias dos velhostempos e ficaram encantados com a idéia de essestempos voltarem. Já tinham até começado a fazeramigos entre as outras criaturas e resolveram ficarem Nárnia. Mas grande parte dos mais velhos,sobretudo os que tinham ocupado cargosimportantes durante o reinado de Miraz, estavamirritados e não queriam viver num país onde nãopudessem mandar.

– Era só o que faltava! Ficar vivendo aquicom um bando de animais de circo! E ainda porcima com fantasmas! – acrescentavam outros,tremendo de medo. – É, porque essas dríades sãofantasmas, não passam disso! Seria uma loucura!

E também estavam desconfiados.

– Não confio neles – diziam. – De mais a___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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mais, com aquele Leão medonho! Tenham certezade que ele vai usar as suas garras, vocês vão ver!

Por outro lado, desconfiavam igualmenteda tal proposta de um novo país.

– Vai é levar a gente para um covil edevorar um por um!

E, quanto mais discutiam entre si, maisirritados e desconfiados ficavam. No dia marcado,porém, mais da metade apareceu.

Num dos extremos da clareira, Aslammandara espetar duas estacas, mais altas do queum homem e afastadas cerca de um metro. Outraestaca mais leve foi posta horizontalmente emcima das duas primeiras, reunindo–as de modoque parecessem uma porta, que vinha não se sabede onde e dava não se sabe para onde. Em frenteda porta postou–se Aslam, com Pedro à direita eCaspian à esquerda. Em torno, reuniram–seSusana, Lúcia, Trumpkin, Caça–trufas, doutorCornelius, Ciclone, Ripchip e os outros. Ascrianças e os anões tinham aproveitado bem o___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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guarda–roupa do antigo castelo de Miraz, que eraagora de Caspian. Com sedas, brocados e linhosalvos, armaduras de prata e espadas incrustadasde pedras preciosas, elmos dourados e chapéus deplumas, ofereciam um espetáculo tãodeslumbrante que feria a vista. Até os animaistraziam ao pescoço colares preciosos. Masninguém reparava neles ou nas crianças. O ouroda juba de Aslam excedia a tudo. Os outrosantigos narnianos estavam de pé, de ambos oslados da clareira; no outro extremo, os telmarinos.O sol brilhava intensamente, as bandeirasondulavam ao vento.

– Homens de Teimar – começou Aslam. –Vocês, que procuram nova pátria, ouçam–me.Mandá–los–ei para a sua terra, que eu conheço evocês não!

– Não nos lembramos mais de Teimar. Nãosabemos onde fica nem como é – murmuraram ostelmarinos.

– Vocês vieram de Teimar para Nárnia –

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disse Aslam. – Mas chegaram a Teimarprovenientes de outro lugar. Não pertencem a estemundo. Chegaram aqui há algumas gerações,vindos do mesmo mundo a que pertence o GrandeRei Pedro.

Ao ouvirem isto, alguns dos telmarinoscomeçaram a resmungar.

– Não falei? Vai liquidar a gente. Vaimandar a gente para o outro lado do mundo.

Outros começaram, empertigados, a darpancadinhas nas costas uns dos outros, dizendo:

– Agora entendemos tudo. Não era tãodifícil adivinhar que não pertencíamos ao mundodesta gente esquisita e detestável. Corre emnossas veias sangue real.

Até Caspian, Cornelius e as crianças sevoltaram para Aslam, com ar de espanto.

– Silêncio! – disse Aslam, num tom de vozbaixo que mais se aproximava do seu rugido___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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normal. A terra pareceu estremecer um pouco, etodos os seres vivos ficaram imóveis comoestátuas.

– Você, Caspian – disse Aslam –, bempodia ter adivinhado que não poderia ser overdadeiro rei de Nárnia se não fosse, como osantigos reis, filho de Adão, vindo do mundo dosfilhos de Adão. É o que você é. Há muitos anosaconteceu que, nesse outro mundo, em um lugarchamado Mar do Sul, um barco de piratas foiarrastado para uma ilha por uma tempestade. Ospiratas fizeram o que costumam fazer: mataram osindígenas, tomaram as mulheres por esposas,dormiram à sombra das palmeiras, acordaram,discutiram, matando–se de vez em quando unsaos outros. Numa dessas refregas, seis deles,obrigados a fugir, foram com as mulheres para ocentro da ilha; subiram depois a montanha e seesconderam numa caverna. Acontece que acaverna era um lugar mágico, uma das fendasabertas entre aquele mundo e este. E foi assimque caíram ou rolaram pela tal passagem e seencontraram de repente neste mundo, na terra de___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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Teimar, que era então desabitada. Por que eradesabitada é uma longa história, que não contareiagora. Os seus descendentes viveram em Teimar eformaram um povo arrogante e temido; passadasmuitas gerações, houve em Teimar uma grandefome e por isso invadiram Nárnia, onde reinavaentão uma certa desordem (outra longa história), econquistaram–na e submeteram–na. Estácompreendendo, rei Caspian?

– Compreendo, Senhor. Estava pensandoque gostaria de ter tido uma ascendência maishonrosa.

– Descende de Adão e Eva – tornou Aslam.– É honra suficientemente grande para que omendigo mais miserável possa andar de cabeçaerguida, e também vergonha suficientementegrande para fazer vergar os ombros do maiorimperador da Terra. Dê–se assim por satisfeito.

Caspian baixou a cabeça.

– E agora, homens e mulheres de Teimar,querem vocês voltar para essa ilha no mundo dos___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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homens, de onde vieram os seus pais? A raça depiratas que ali desembarcou já se extinguiu, e ailha está desabitada. Há fontes de água fresca,solo fértil, madeira para construções, e as lagoassão muito ricas em peixes. Os outros homensdesse outro mundo ainda não descobriram a ilha.A passagem está aberta para o regresso de vocês.Logo que estiverem do outro lado, ela se fecharápara sempre.

Durante alguns segundos, fez–se silêncio.Depois, um dos soldados telmarinos, um sujeitoforte e simpático, avançou e disse:

– Pois bem! Aceito a proposta.

– Aprovo a sua escolha – disse Aslam. – E,porque foi o primeiro a decidir–se, um podermágico se exercerá sobre você. Será feliz nesseoutro mundo. Em frente!

O homem, agora um pouco pálido,avançou. Aslam e os outros afastaram–se,deixando–lhe livre acesso à porta feita de estacas.

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– Atravesse–a, meu filho – disse Aslam,inclinando–se e tocando o nariz do homem com oseu próprio nariz.

No momento em que sentiu o bafo do Leão,os seus olhos adquiriram uma expressão nova (umpouco de surpresa, mas não de tristeza), como seele quisesse lembrar–se de alguma coisa.Endireitou–se e entrou pela porta.

Todos os olhares estavam cravados nele.Todos viam as três estacas de madeira e, atravésdelas, do outro lado, as árvores, a relva e o céu deNárnia. Viram o homem entre os dois postes;depois, de repente, desapareceu.

Do outro extremo da clareira ouviu–se opranto dos telmarinos:

– Ai! Que terá acontecido? Quer matar atodos nós? Não iremos para lá.

Então um dos telmarinos mais inteligentesdisse:

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– Não vemos nenhum outro mundo alémdaqueles postes. Se quer que acreditemos no quediz, por que um dos seus não atravessa a porta?Os seus amigos mantêm–se bem afastados dela.

Logo Ripchip avançou e fez umareverência.

– Se meu exemplo pode servir de algumacoisa, Aslam, a uma ordem sua passarei com onzeratos por debaixo daquele arco... sem a menorhesitação!

– Não, meu filho – disse Aslam, pousandode leve a pata sobre a cabeça de Ripchip. –Fariam coisas terríveis com vocês naquelemundo: seriam exibidos nas feiras. São outros quetêm de passar.

– Vamos! – disse Pedro de repente,voltando–se para Edmundo e Lúcia. – Chegou anossa hora.

– Que quer dizer com isso? – perguntouEdmundo.___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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– Por aqui – disse Susana, que parecia estara par de tudo. – Temos de voltar à floresta, paramudar...

– Mudar o quê? – perguntou Lúcia.

– A roupa, naturalmente! – declarouSusana. – Bonita figura iríamos fazer na estaçãoda estrada de ferro com estas roupas.

– Mas as nossas estão no castelo deCaspian –objetou Edmundo.

– Não! – disse Pedro, continuando no rumoda floresta mais cerrada. – Estão aqui. Vieramesta manhã. Está tudo em ordem.

– Era disso que Aslam falava com você eSusana esta manhã? – perguntou Lúcia.

– Era disso e de outras coisas – disse Pedro,com um ar muito solene. – Não posso contar–lhestudo. Há coisas que ele queria dizer a Su e a mim,porque não voltaremos a Nárnia.

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– Nunca mais?! – exclamaram Edmundo eLúcia, consternados.

– Vocês hão de voltar – explicou Pedro. –Pelo menos, pelo que ele disse, fiquei convencidode que ele deseja a volta de vocês um dia. Su e eué que não. Aslam diz que já estamos muitograndes.

– Mas, Pedro, que azar! – exclamou Lúcia.

– Acho que já estou conformado – replicouPedro. – É tudo muito diferente do que eupensava. Compreenderá quando chegar a sua vez.Agora vamos arrumar as coisas.

Foi uma sensação esquisita e não muitoagradável despir os trajes reais e voltar a aparecercom os uniformes de colégio, já um tanto usados.Um ou dois dos telmarinos esboçaram unsrisinhos de troça. Mas as outras criaturaslevantaram–se e aclamaram o Grande Rei Pedro,a rainha Susana, da trompa mágica, o reiEdmundo e a rainha Lúcia. As criançasdespediram–se afetuosamente dos velhos amigos,___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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e Lúcia até chegou a chorar.

Os animais beijaram as crianças, os UrsosBarrigudos deram–lhes tapinhas amáveis,Trumpkin apertou–lhes a mão e, para terminar,não faltou um abraço bem apertado de Caça–trufas, que lhes fez cócegas com o bigode. É claroque Caspian voltou a oferecer a trompa a Susana,e é claro que esta lhe disse que a guardasse.Depois, magnífica e terrível, seguiu–se adespedida de Aslam. Pedro tomou então o seulugar, com Susana atrás, pousando–lhe as mãosnos ombros, e as mãos de Edmundo nos ombrosdela, e as do primeiro telmarino nos de Lúcia. Eassim, numa longa fila, avançaram para a porta.Seguiu–se um momento indescritível, durante oqual as crianças viram três coisas ao mesmotempo. Viram a boca de uma caverna,descobrindo o verde e o azul brilhantes de umailha do Pacífico – a ilha em que os telmarinosiriam encontrar–se no momento em quetranspusessem a porta. Viram uma clareira emNárnia e os rostos dos anões e dos animais e osolhos profundos de Aslam e as manchinhas___________________________________C.S.Lewis – Crônicas de Nárnia – Vol. IV

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brancas do focinho do texugo. A terceira visão,porém, foi aquela que rapidamente dominou asoutras duas: uma plataforma cinzenta e arenosa deuma estação de estrada de ferro provinciana, umbanco com malas ao lado, eles sentados no banco,como se nunca tivessem saído de lá... Oespetáculo por um instante lhes pareceu umpouco monótono, depois de tudo o que tinhamvivido, mas, inexplicavelmente, tinha também oseu encanto, com o cheiro característico e familiardas estações ferroviárias, e o céu da terra natal eas perspectivas do primeiro período de aulas.

– Bem – disse Pedro – foi uma esplêndidaaventura!

– Ora bolas! – exclamou Edmundo. –Deixei minha lanterna nova em Nárnia...

Fim do Vol. III

Próximo volume: A Viagem do Peregrino da Alvorada

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