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~ SECAO I I Princípios Básicos Introducão 6 Bertram G. Katzung, MD, PhD A farmacologia pode ser definida como o estudo das substâncias que interagem com sistemas vivos através de processos químicos, particularmente através de sua ligação a moléculas reguladoras e ativação ou inibição dos processos orgânicos normais. Essas subs- tâncias podem ser compostos químicos administrados com a fina- lidade de obter um efeito terapêutico benéfico sobre algum proces- so no paciente, ou pelos seus efeitos tóxicos sobre processos regula- dores em parasitas que infectam o paciente. Essas aplicações tera- pêuticas deliberadas podem ser consideradas como o papel funda- mental da farmacologia médica, que é freqüentemente definida como a ciência das substâncias utilizadas na profilaxia, diagnóstico e tratamento das doenças. A toxicologia é o ramo da farmacologia que trata dos efeitos indesejáveis das substâncias químicas sobre os sistemas vivos, incluindo desde células individuais até ecossistemas complexos. História da Farmacologia Não há dúvida de que o homem pré-histórico já conhecia os efei- tos benéficos ou tóxicos de muitos materiais de origem vegetal e animal. Os primeiros registros escritos da China e do Egito citam muitos tipos de remédios, incluindo alguns que ainda hoje são re- conhecidos como fármacos úteis. Todavia, a maioria dessas subs- tâncias era inútil ou, na verdade, prejudicial. Nos 2.500 anos, apro- ximadamente, que precederam a era moderna, houve tentativas esporádicas de introduzir métodos racionais na medicina, porém nenhum deles foi bem-sucedido, devido ao predomínio de sistemas de crença que procuravam explicar toda a biologia e as doenças sem recorrer à experimentação e observação. Essas escolas promulgaram noções bizarras, como a idéia de que as doenças eram causadas por excesso de bile ou de sangue no organismo, de que as feridas podi- am ser cicatrizadas com a aplicação de ungüento à arma que causa- ra o ferimento, e assim por diante. Por volta do final do século 17, a observação e a experimenta- ção começaram a substituir a teorização em medicina, seguindo o exemplo das ciências físicas. Quando o valor desses métodos no estudo das doenças tornou-se claro, os médicos na Grã-Bretanha e em outras regiões da Europa passaram a aplicá-l os aos efeitos de medicamentos tradicionais utilizados em sua própria prática clíni- ca. Assim, a matéria médica - isto é, a ciência da preparação e do uso clínico de medicamentos - começou a desenvolver-se como precursora da farmacologia. Todavia, qualquer conhecimento re- lativo aos mecanismos de ação das drogas era impedido pela ausên- cia de métodos de purificação de agentes ativos provenientes de substâncias brutas disponíveis e- talvez ainda mais - pela falta de métodos para testar as hipóteses formuladas sobre a natureza das ações das drogas. No final do século 18 e princípio do século 19, François Ma- gendie e, mais tarde, seu aluno Claude Bernard começaram a de- senvolver os métodos de fisiologia e farmacologia experimentais em animais. Os avanços na química e o desenvolvimento posterior da fisiologia nos séculos 18, 19 e princípio do século 20 proporciona- ram a base necessária para compreender os mecanismos de atuação das drogas no nível dos tecidos e órgãos. Paradoxalmente, os avan- ços reais na farmacologia básica durante esse período foram acom- panhados de uma explosão de propaganda não-científica por parte de fabricantes e vendedores de "remédios patenteados" inúteis. Somente quando os conceitos de terapêutica racional, particular- mente aqueles dos estudos clínicos controlados, foram reintrodu- zidos na medicina - há cerca de 50 anos - é que se tornou pos- sível avaliar de modo acurado as alegações terapêuricas. Há cerca de 50 anos, testemunhou-se também uma notável ex- pansão nos esforços de pesquisa em todas as áreas da biologia. Com a introdução de novos conceitos e novas técnicas, surgiram infor- mações sobre a ação das drogas e o substrato biológico dessa ação, o receptor. Durante a segunda metade do século 20, foram intro- duzidos muitos grupos de drogas fundamentalmente novos, bem como novos membros de grupos antigos. As últimas 3 décadas tes- temunharam um crescimento ainda maior nas informações e co- nhecimentos sobre a base molecular da ação das drogas. Hoje em dia, já foram identificados os mecanismos moleculares de ação de muitas drogas, e numerosos receptores foram isolados, caracteri- zados na sua estrutura e clonados. Com efeito, o uso dos métodos de identificação de receptores (descritos no Capo 2) levou à des- coberta de muitos receptores órfãos - isto é, receptores cujo li- gante ainda não foi descoberto e cuja função só pode ser deduzi- da. Os estudos do ambiente molecular local dos receptores mos- traram que os receptores e efetores não funcionam isoladamente - isto é, são acentuadamente influenciados por proteínas regu- ladoras associadas. A descodificação dos genomas de muitas espé- cies - desde bactérias até o homem -levou ao reconhecimen- to de relações até então ignoradas entre as famílias de receptores.

Capítulo 01 farmacologia

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Page 1: Capítulo 01 farmacologia

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SECAO II

Princípios Básicos

Introducão6

Bertram G. Katzung, MD, PhD

A farmacologia pode ser definida como o estudo das substâncias

que interagem com sistemas vivos através de processos químicos,particularmente através de sua ligação a moléculas reguladoras eativação ou inibição dos processos orgânicos normais. Essas subs­tâncias podem ser compostos químicos administrados com a fina­lidade de obter um efeito terapêutico benéfico sobre algum proces­so no paciente, ou pelos seus efeitos tóxicos sobre processos regula­dores em parasitas que infectam o paciente. Essas aplicações tera­pêuticas deliberadas podem ser consideradas como o papel funda­mental da farmacologia médica, que é freqüentemente definida

como a ciência das substâncias utilizadas na profilaxia, diagnósticoe tratamento das doenças. A toxicologia é o ramo da farmacologiaque trata dos efeitos indesejáveis das substâncias químicas sobre ossistemas vivos, incluindo desde células individuais até ecossistemas

complexos.

História da Farmacologia

Não há dúvida de que o homem pré-histórico já conhecia os efei­

tos benéficos ou tóxicos de muitos materiais de origem vegetal eanimal. Os primeiros registros escritos da China e do Egito citammuitos tipos de remédios, incluindo alguns que ainda hoje são re­conhecidos como fármacos úteis. Todavia, a maioria dessas subs­

tâncias era inútil ou, na verdade, prejudicial. Nos 2.500 anos, apro­ximadamente, que precederam a era moderna, houve tentativasesporádicas de introduzir métodos racionais na medicina, porémnenhum deles foi bem-sucedido, devido ao predomínio de sistemasde crença que procuravam explicar toda a biologia e as doenças semrecorrer à experimentação e observação. Essas escolas promulgaramnoções bizarras, como a idéia de que as doenças eram causadas porexcesso de bile ou de sangue no organismo, de que as feridas podi­am ser cicatrizadas com a aplicação de ungüento à arma que causa­ra o ferimento, e assim por diante.

Por volta do final do século 17, a observação e a experimenta­ção começaram a substituir a teorização em medicina, seguindo oexemplo das ciências físicas. Quando o valor desses métodos noestudo das doenças tornou-se claro, os médicos na Grã-Bretanha e

em outras regiões da Europa passaram a aplicá-l os aos efeitos demedicamentos tradicionais utilizados em sua própria prática clíni­ca. Assim, a matéria médica - isto é, a ciência da preparação e douso clínico de medicamentos - começou a desenvolver-se como

precursora da farmacologia. Todavia, qualquer conhecimento re­

lativo aos mecanismos de ação das drogas era impedido pela ausên­cia de métodos de purificação de agentes ativos provenientes desubstâncias brutas disponíveis e - talvez ainda mais - pela faltade métodos para testar as hipóteses formuladas sobre a natureza das

ações das drogas.No final do século 18 e princípio do século 19, François Ma­

gendie e, mais tarde, seu aluno Claude Bernard começaram a de­senvolver os métodos de fisiologia e farmacologia experimentais emanimais. Os avanços na química e o desenvolvimento posterior dafisiologia nos séculos 18, 19 e princípio do século 20 proporciona­ram a base necessária para compreender os mecanismos de atuação

das drogas no nível dos tecidos e órgãos. Paradoxalmente, os avan­ços reais na farmacologia básica durante esse período foram acom­panhados de uma explosão de propaganda não-científica por partede fabricantes e vendedores de "remédios patenteados" inúteis.Somente quando os conceitos de terapêutica racional, particular­mente aqueles dos estudos clínicos controlados, foram reintrodu­zidos na medicina - há cerca de 50 anos - é que se tornou pos­sível avaliar de modo acurado as alegações terapêuricas.

Há cerca de 50 anos, testemunhou-se também uma notável ex­

pansão nos esforços de pesquisa em todas as áreas da biologia. Coma introdução de novos conceitos e novas técnicas, surgiram infor­mações sobre a ação das drogas e o substrato biológico dessa ação,o receptor. Durante a segunda metade do século 20, foram intro­

duzidos muitos grupos de drogas fundamentalmente novos, bemcomo novos membros de grupos antigos. As últimas 3 décadas tes­temunharam um crescimento ainda maior nas informações e co­

nhecimentos sobre a base molecular da ação das drogas. Hoje emdia, já foram identificados os mecanismos moleculares de ação demuitas drogas, e numerosos receptores foram isolados, caracteri­zados na sua estrutura e clonados. Com efeito, o uso dos métodos

de identificação de receptores (descritos no Capo 2) levou à des­coberta de muitos receptores órfãos - isto é, receptores cujo li­gante ainda não foi descoberto e cuja função só pode ser deduzi­da. Os estudos do ambiente molecular local dos receptores mos­traram que os receptores e efetores não funcionam isoladamente- isto é, são acentuadamente influenciados por proteínas regu­ladoras associadas. A descodificação dos genomas de muitas espé­cies - desde bactérias até o homem -levou ao reconhecimen­

to de relações até então ignoradas entre as famílias de receptores.

SERGIO E PATRICIA
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Page 2: Capítulo 01 farmacologia

2 / FARMACOLOGIA

A farmacogenômica - a relação da constituição genética do in­divíduo com a sua resposta a drogas específicas - está prestes a

tornar-se uma área aplicada de terapia (ver Boxe: Farmacologiae Genética). Grande parte desse progresso está resumida nestelivro.

A extensão dos princípios científicos na terapia cotidiana conti­nua se expandindo, embora o público consumidor ainda seja, infe­lizmente, exposto a uma enorme quantidade de informações não­científicas, imprecisas e incompletas a respeito dos efeitos farmaco­lógicos das substâncias químicas. Essa situação levou a modismos

no uso de inúmeros remédios caros, ineficazes e, por vezes, preju­diciais, bem como ao desenvolvimento de uma enorme indústria

de "terapias alternativas". Por outro lado, a falta de compreensãodos princípios científicos básicos de biologia e estatística e ausênciade um pensamento crítico a respeito das questões de saúde públicalevaram à rejeição da ciência médica por um segmento da popula­ção e a uma tendência comum a pressupor que todos os efeitosadversos das drogas resultam de negligência médica. Existem doisprincípios gerais que devem ser sempre lembrados pelos estudan­tes: em primeiro lugar, o princípio de que todas as substâncias po­dem, em determinadas circunstâncias, ser tóxicas; e, em segundolugar, o princípio de que todas as terapias promovidas como trata­

mentos que melhoram a saúde devem preencher os mesmos padrõesde comprovação de eficácia e segurança, isto é, não deve haver ne­nhuma separação artificial entre a medicina científica e a medicina"alternativa" ou "complementar".

A Natureza das Drogas

Em sua acepção mais geral, uma droga pode ser definida comoqualquer substância capaz de produzir alteração em determinada

função biológica através de suas ações químicas. Na grande mai­oria dos casos, a molécula da droga interage com uma molécula

específica no sistema biológico, que desempenha um papel regu­lador. Essa molécula é denominada receptor. A natureza dos re-

ceptores é discutida de modo mais pormenorizado no Capo 2.

Numa proporção muito pequena de casos, certas drogas, conhe­cidas como antagonistas químicos, podem interagir diretaménte

com outras drogas, enquanto algumas drogas (por exemplo, agen­tes osmóticos) interagem quase exclusivamente com moléculas deágua. As drogas que podem ser sintetizadas no organismo (porexemplo, hormônios) ou podem consistir em substâncias quími­cas não sintetizadas no corpo, isto é, xenobióticos (do grego xe­

nos, estranho). Os venenos são drogas. As toxinas são habitual­

mente definidas como venenos de origem biológica, isto é, sinte­tizadas por vegetais ou animais, em contraste com os venenos inor­gânicos, como o chumbo e o arsênico.

Para interagir quimicamente, com seu receptor, a molécula de

uma droga deve ter tamanho, carga elétrica, forma e composiçãoanatômica apropriados. Além disso, a droga é freqüentemente ad­ministrada num local distante de seu pretenso local de ação, como,por exemplo, um comprimido tomado por via oral para aliviar umador de cabeça. Por conseguinte, uma droga, para ser útil, deve apre­sentar as propriedades necessárias para ser transportada do local desua administração até o local de sua ação. Por fim, uma droga, para

ser eficaz, deve ser inativada ou excretada pelo corpo em taxa razo­ável, de modo que sua ação tenha duração apropriada.

A. NATUREZA FíSICA DAS DROGAS

As drogas podem ser sólidas em temperatura ambiente (por exem­plo, aspirina, atropina), líquidas (por exemplo, nicotina, etanol) ou

gasosas (por exemplo, óxido nitroso). Esses fatores é que determi­nam freqüentemente a melhor via de administração de um fárma­co. Algumas drogas líquidas evaporam-se facilmente e podem serinaladas nessa forma, como, por exemplo, halotano e nitrito deamila. As vias mais comuns de administração estão relacionadas no

Quadro 3.3. As diversas classes de compostos orgânicos - carboi­

dratos, proteínas, lipídios e seus componentes - estão todas repre­sentadas na farmacologia. Muitas drogas consistem em ácidos ou

FARMACOLOGIA E GENÉTICA~---------------------_._-----------------------------------------------------------------------------------------------------~--

No decorrer dos últimos 5 anos, os genomas dos seres humanos,camundongos e muitos outros organismos foram descodificadoscom considerável detalhe. Esseavanço abriu as portas para umanotável variedade de novas abordagens em pesquisa e tratamen­to. Sabe-se, há séculos, que certas doenças são herdadas e, hojeem dia, já está bem estabelecido que os indivíduos portadoresdessasdoenças apresentam uma anormalidade hereditária no seuDNA. No caso de algumas doenças hereditárias, é atualmente pos­síveldefinir com rigorosa precisão quais os pares de basesanormaisdo DNA, e em qual cromossomo aparecem. Em um pequeno nú­mero de modelos animais dessas doenças, foi possível corrigir aanormalidade com "terapia gênica", isto é, a introdução de umgene "sadio" apropriado nas células somáticas. Já houve tentati­vas de terapia gênica com células somáticas humanas, porém as di­ficuldades técnicas encontradas são muito grandes.

Os estudos de um receptor ou de um ligante endógeno recém­descoberto são freqüentemente complicados pelo conhecimentoincompleto do papel exato desempenhado por esse receptor ouligante. Uma das novas técnicas genéticas de maior potencial é acapacidade de criar animais (geralmente camundongos), cujo genepara o receptor ou seu ligante endógeno foi "nocauteado", istoé, sofreu mutação, de modo que o produto gênico está ausente

ou não-funcional. Em geral, os camundongos "nocaute" homo­zigotos apresentam supressão completa dessa função, enquantoos animais heterozigotos apresentam, em geral, supressão parci­a!. A observação do comportamento, da bioquímica e da fisiolo­gia dos camundongos nocaute freqüentemente estabelece demaneira muito clara o papel desempenhado pelo produto gênicoausente. Quando os produtos de determinado gene são essenci­ais a ponto de os heterozigotos não conseguirem sobreviver aonascimento, é algumas vezes possível criar versões" knockdown",com supressão apenas limitada da função. Por outro lado, foi efe­tuada a reprodução de camundongos" knockin", que hiperexpres­sam certos receptores de interesse.

Alguns pacientes respondem a determinadas drogas com maiorsensibilidade do que o habitual. (Essasvariações são discutidas noCapo 4.) Atualmente, ficou bem claro que essa sensibilidade au­mentada deve-se, com freqüência, a uma modificação genéticamuito pequena, que resulta em diminuição da atividade de deter­minada enzima responsável pela eliminação dessa droga. A far­macogenômica (ou farmacogenética) é o estudo das variaçõesgenéticas que causam diferenças individuais na resposta a drogas.Os futuros médicos poderão submeter cada paciente a triagem, àprocura dessas diferenças, antes de prescrever um fármaco.

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INTRODUÇÃO / 3

'Dados de Ruffolo RR et ai: The pharmacology 01 carvedilol. Eur J Pharmacol1990;38:582.

Quadro 1.1 Constantes de dissociação (Kd) dosenantiômeros e do racemato de carvedilol. A Kd é aconcentração para uma saturação de 50% dos receptores,sendo inversamente proporcional à afinidade da drogapelos receptores1

ciso para a estrutura específica de uma droga. Assim, se desejarmosdesenvolver uma droga de ação curta e altamente seletiva para de­

terminado receptor, devemos evitar moléculas altamente reativas queformem ligações covalentes e escolher moléculas que formem liga­ções mais fracas.

Algumas substâncias que são quase totalmente inertes no senti­do químico exercem, entretanto, efeitos farmacológicos significati­vos. Por exemplo, o xenônio, um "gás inerte", possui efeitos anes­tésicos em pressões elevadas.

Inverso daAfinidade pelos

Forma do Receptores aCarvedilol (Kd• nmol/L)............................................................

Enantiômero R( +) 14

Inverso daAfinidade pelos

Receptores 13(Kd• nmol/L)...................................................

45

0,4

0,9

16

11

Enantiômero S( -)

Enantiômeros R,S( +/-)

o tamanho molecular das drogas varia desde um tamanho muitopequeno (íons de lítio, com PM de 7) até muito grande (por exem­plo, alteplase [t-PAlo uma proteína com PM de 59.050). Todavia,as drogas têm, em sua grande maioria, pesos moleculares situadosentre 100 e 1.000. O limite inferior dessa estreita faixa é provavel­mente estabelecido pelos requisitos de especificidade de ação. Parater um bom "encaixe" a apenas um tipo de receptor, a molécula dadroga deve ter uma forma, carga etc. singulares o suficiente paraimpedir sua ligação a outros receptores. Para essa ligação seletiva,parece que a molécula deve possuir, na maioria dos casos, um ta­manho de pelo menos 100 unidades de PM. O limite superior dopeso molecular é determinado primariamente pela necessidade demovimentação das drogas no interior do corpo (por exemplo, dolocal de sua administração até o local de sua ação). As drogas comPM muito acima de 1.000 não se difundem facilmente pelos com­

partimentos do corpo (ver Permeação, adiante). Por conseguinte,as drogas muito grandes (em geral, as proteínas) devem ser admi­nistradas diretamente no compartimento onde exercem seus efei­tos. No caso da alteplase, uma enzima que dissolve coágulos, a dro­ga é administrada diretamente no compartimento vascular por in­fusão intravenosa.

B. TAMANHO DAS DROGAS

bases fracos. Esse fato tem implicações importantes no modo de

processamento das drogas pelo organismo, visto que a existência dediferenças de pH nos vários compartimentos do corpo pode alteraro grau de ionização dessas drogas (ver adiante).

C. REATIVIDADE DAS DROGAS E LIGAÇÕES

DROGA-RECEPTOR

As drogas interagem com receptores através de forças ou ligaçõesquímicas. Estas são de três tipos principais: covalentes, eletrostáticase hidrofóbicas. As ligações covalentes são muito fones e, em mui­tos casos, não são reversíveis em condições biológicas. Por conse­guinte, a ligação covalente estabelecida entre a forma ativada dafenoxibenzamina e o receptor a da noradrenalina (que resulta embloqueio de receptor) não se rompe facilmente. O efeito bloquea­dor da fenoxibenzamina dura muito tempo após o desaparecimen­

to do fármaco da corrente sangüínea, sendo revertido apenas coma síntese de novos receptores a, um processo que leva cerca de 48horas. Outros exemplos de drogas altamente reativas que formam

ligações covalentes incluem os fármacos alquilantes do DNA, quesão utilizados na quimioterapia do câncer para desorganizar a divi­são celular no tecido neoplásico.

A ligação eletrostática é muito mais comum do que a ligaçãocovalente nas interações droga-receptor. As ligações eletrostáticas

variam desde ligações relativamente fones entre moléculas iônicascom cargas permanentes até ligações de hidrogênio mais fracas einterações muito fracas entre dipolos, como as forças de van derWaals e fenômenos semelhantes. As ligações eletrostáticas são maisfracas do que as covalentes.

Em geral, as ligações hidrofóbicas são muito fracas e provavel­mente são importantes nas interações de drogas altamente liposso­lúveis com os lipídios das membranas celulares e, talvez, na intera­

ção de drogas com as paredes internas das "bolsas" dos receptores.A natureza específica de determinada ligação droga-receptor tem

menos importância prática do que o fato de que as drogas que seligam a seus receptores por ligações fracas são, em geral, mais sele­tivas do que as que se ligam através de ligações muito fortes. Isso sedeve ao fato de que as ligações fracas exigem um encaixe muitopreciso da droga a seu receptor para que ocorra interação. Apenasalguns tipos de receptores tendem a proporcionar esse encaixe pre-

D. FORMA DAS DROGAS

A forma da molécula de uma droga deve permitir sua ligação a seusítio receptor. Idealmente, a forma da droga deve ser complemen­tar com a do sítio receptor, da mesma maneira que uma chave seencaixa numa fechadura. Além disso, o fenômeno de quiralidade

(estereoisomerismo) é tão comum em biologia, que mais da meta­de de todas as drogas úteis são moléculas quirais, isto é, existem naforma de pares de enantiômeros. As drogas com dois centros assi­métricos possuem quatro diastereômeros, como, por exemplo, a

efedrina, um fármaco simpaticomimético. Na grande maioria doscasos, um desses enantiômeros é muito mais potente do que a suaimagem especular, refletindo um melhor ajuste à molécula do re­ceptor. Por exemplo, o enantiômero (5)( +) na metacolina, umadroga parassimpaticomimética, é mais de 250 vezes mais potentedo que o enantiômero (R)( -). 5e imaginarmos o sítio receptor comouma luva à qual a molécula da droga deve ajustar-se para produzirseu efeito, fica claro porque uma droga" orientada para a esquerda"será mais eficaz na sua ligação a um receptor esquerdo do que o seuenantiômero "orientado para a direita".

O enantiômero mais ativo em determinado tipo de sítio recep­

tor pode não ser mais ativo em outro tipo, como, por exemplo, umtipo de receptor pode ser responsável por algum efeito indesejado.Por exemplo, o carvedilol, um fármaco que interage com os recep­

tores adrenérgicos, possui um único centro quiral e, portanto, doisenantiômeros (Quadro 1.1). Um desses enantiômeros, o isômero

(5)( -), é um potente bloqueador dos receptores [3. O enantiôme­ro (R) (+) é 100 vezes mais fraco no receptor [3. Todavia, os isôme­ros são aproximadamente equipotentes como bloqueadores dosreceptores a. A cetamina é um anestésico intravenoso. O enantiô­mero (+) é um anestésico mais potente e menos tóxico do que oenantiômero (-). Infelizmente, o fármaco ainda é utilizado comomistura racêmica.

Por fim, como as enzimas são habitualmente estereosseletivas,

um enantiômero de uma droga é freqüentem ente mais suscetíveldo que outro às enzimas envolvidas no metabolismo de drogas. Em

Page 4: Capítulo 01 farmacologia

4 / FARMACOLOGIA

conseqüência, a duração de ação de um enantiômero pode ser muitodiferente da do outro.

Infelizmente, os estudos de eficácia clínica e eliminação de dro­gas em seres humanos foram efetuados, em sua maioria, com mis­

turas racêmicas de drogas, e não com os enantiômeros separados.Na atualidade, apenas cerca de 45% das drogas quirais utilizadasclinicamente são comercializadas na forma do isômero ativo - o

restante só está disponível como misturas racêmicas. Em conseqüên­

cia, muitos pacientes fazem uso de doses de drogas, das quais 50%ou mais são inativos ou ativamente tóxicos. Todavia, existe um

interesse crescente - tanto em nível científico quanto em nível

regulador - em aumentar a disponibilidade de drogas quirais naforma de seus enantiômeros ativos.

E. PLANEJAMENTO RACIONAL DE DROGAS

o planejamento racional de drogas implica a capacidade de ante­

ver a estrutura molecular apropriada de uma droga com base nasinformações sobre o seu receptor biológico. Até pouco tempo, ne­nhum receptor era conhecido de modo suficientemente detalha­

do para permitir esse planejamento de drogas. Na verdade, as dro­gas eram desenvolvidas através de testes randômicos de substân­

cias químicas ou modificação de drogas com algum efeito já co­nhecido (ver Capo 5). Todavia, no decorrer das últimas 3 déca­

das, foram isolados e caracterizados numerosos receptores. Algu­mas drogas de uso atual foram desenvolvidas através de planeja­mento molecular, com base no conhecimento da estrutura tridi­

mensional do sítio receptor. Hoje em dia, dispõe-se de programasde computador capazes de melhorar reiteradamente as estruturasde drogas para que possam se ajustar a receptores conhecidos. Oplanejamento racional de drogas deverá tornar-se cada vez maisviável, à medida que for obtido mais conhecimento acerca da es­trutura dos receptores.

F. NOMENCLATURA DOS RECEPTORES

O notável sucesso dos mais novos e eficientes métodos de identifi­

car e caracterizar os receptores (ver Capo 2, Boxe: Como São Des­cobertos Novos Receptores?) levou ao desenvolvimento de uma

variedade de diversos sistemas para designá-los. Isso, por sua vez;levou ao aparecimento de numerosas sugestões sobre métodos mais

racionais de designação. O leitor interessado no assunto poderá obtermais detalhes na International U nion ofPharmacology (IUPHAR)Committee on Receptor Nomenclature and Drug Classification (inclu­ído em várias publicações do Pharmacological Reviews) e nas publi­cações anuais dos Receptor and Ion Channel Nomenclature Supple­

ments em edições especiais pela revista Trends in PharmacologicalSciences (TIPS). Os capítulos neste livro utilizam principalmenteessas fontes para a designação dos receptores.

Interações entre Droga e Corpo

As interações entre uma droga e o corpo são convenientemente

divididas em duas classes. As ações da droga sobre o organismosão conhecidas como processos farmacodinâmicos, cujos princí­pios são apresentados de forma mais detalhada no Capo 2. Essaspropriedades determinam o grupo em que a droga é classificadae, com freqüência, desempenham o principal papel na decisão dequal dos grupos constitui a forma apropriada de terapia para de­

terminado sintoma ou doença. As ações do corpo sobre a drogasão denominadas processos farmacocinéticos, que são descritosnos Caps. 3 e 4. Os processos farmacocinéticos controlam a ab­

sorção, distribuição e eliminação de drogas e são de grande im­portância prática na escolha e administração de uma droga espe-

cífica a determinado paciente, como, por exemplo, um pacientecom comprometimento da função renal. Os parágrafos que seseguem fornecem uma breve introdução à farmacodinâmica e far­macocinética.

Princípios de Farmacodinâmica

Conforme assinalado anteriormente, as drogas devem, em sua mai­

oria, ligar-se a um receptor para produzir algum efeito. Todavia,em nível molecular, a ligação da droga representa apenas a primei­ra de uma seqüência freqüentem ente complexa de etapas.

A. TIPOS DE INTERAÇÕES DROGA-RECEPTOR

As drogas agonistas ligam-se de algum modo ao receptor e o ati­

vam, produzindo direta ou indiretamente o efeito. Alguns recepto­res incorporam na mesma molécula o mecanismo efetor, de modoque a ligação da droga produz diretamente o efeito, como, por exem­plo, a abertura de um canal iônico ou a ativação de uma atividade

enzimática. Outros receptores estão ligados a uma molécula efeto­ra separada através de uma ou mais moléculas de acoplamento in­

tervenientes. Os diversos tipos de sistemas de acoplamento droga­receptor-efetor são discutidos no Capo 2. As drogas antagonistas

farmacológicas, através de sua ligação a um receptor, impedem a li­gação de outras moléculas. Por exemplo, os bloqueadores dos re­ceptores da acetilcolina, como a atropina, são antagonistas, visto queimpedem o acesso da acetilcolina e drogas agonistas semelhantes ao

receptor de acetilcolina e estabilizam o receptor no seu estado ina­tivo. Esses fármacos reduzem os efeitos da acetilcolina e de drogassemelhantes do organismo.

B. "AGONISTAS" QUE INIBEM SUAS MOLÉCULAS DE

LIGAÇÃO E AGONISTAS PARCIAIS

Algumas drogas imitam drogas agonistas ao inibir as moléculas res­

ponsáveis pelo término da ação de um agonista endógeno. Por exem­plo, os inibidores da acetilcolinesterase, ao retardar a destruição daacetilcolina endógena, produzem efeitos colinomiméticos, que se

assemelham estreitamente às ações de moléculas agonistas dos re­ceptores colinérgicos, apesar de os inibidores da colinesterase não

se ligarem - ou apenas fazê-lo de modo incidental- aos recepto­res colinérgicos (ver Capo 7, Drogas Ativadoras dos Receptores

Colinérgicos e Inibidores da Colinesterase). Outras drogas ligam­se a receptores e os ativam, porém não produzem uma resposta tãopronunciada quanto aquela observada com os denominados ago­nistas integrais. Assim, o pindolol, um "agonista parcial" dos recep­

tores l3-adrenérgicos, pode atuar como agonista (na ausência deagonista integral) ou como antagonista (na presença de agonistaintegral, como o isoproterenol). (Ver Capo 2.)

C. DURAÇÃO DE AçÃO DAS DROGAS

O término da ação de uma droga no nível do receptor resulta deum de vários processos. Em alguns casos, o efeito dura apenas en­quanto a droga estiver ocupando o receptor, de modo que a suadissociação do receptor determina automaticamente o término doefeito. Todavia, em muitos casos, a ação pode persistir após a dis­sociação da droga, visto que, por exemplo, ainda existem algumasmoléculas acopladoras na forma ativada. No caso de drogas que seligam ao receptor de forma covalente, o efeito pode persistir até adestruição do complexo droga-receptor e síntese de novos recepto­res, conforme descrito anteriormente para a fenoxibenzamina. Porfim, muitos sistemas de receptor-efetor incorporam mecanismos dedessensibilização para impedir uma ativação excessiva quando as

Page 5: Capítulo 01 farmacologia

moléculas do agonista permanecem por um longo período de tem­po. Ver o Capo 2 para maiores detalhes.

D. RECEPTORES E SíTIOS DE LIGAÇÃO INERTES

Para funcionar como receptor, uma molécula endógena deve ini­cialmente ser seletiva na escolha dos ligantes (moléculas de dro­gas) para ligar; em segundo lugar, deve modificar a sua função como processo de ligação, de modo a alterar a função do sistema bio­lógico (célula, tecido etc.). A primeira característica é necessária

para evitar a ativação constante do receptor pela ligação promís­cua de grande número de ligantes diferentes. A segunda caracte­rística é claramente necessária para que o ligante produza algumefeito farmacológico. Todavia, o corpo contém numerosas molé­culas que têm a capacidade de ligar drogas, e nem todas essasmoléculas endógenas consistem em moléculas reguladoras. A li­gação de uma droga a uma molécula não-reguladora, como a al­bumina plasmática, não resulta em qualquer alteração detectávelna função do sistema biológico, de modo que essa molécula en­dógena pode ser denominada sítio de ligação inerte. Entretanto,essa ligação não é totalmente desprovida de importância, visto queafeta a distribuição da droga no organismo e irá também deter­minar a quantidade de droga livre presente na circulação. Ambosesses fatores têm importância farmacocinética (ver adiante, bemcomo o Capo 3).

Princípios de Farmacocinética

N a prática terapêutica, uma droga deve ter a capacidade de che­gar a seu local efetivo de ação após a sua administração por algu­ma via conveniente. Em alguns casos, uma substância química,que sofre rápida absorção e distribuição, é administrada e, a se­

guir, convertida na droga ativa por processos biológicos no inte­rior do corpo. Essa substância química é denominada pró-droga.Somente em algumas situações é que existe a possibilidade deaplicar diretamente uma droga a seu tecido-alvo, como, por exem­plo, através da aplicação tópica de um agente antiinflamatório à

pele ou mucosa inflamada. Com mais freqüência, a droga é ad­ministrada em determinado compartimento corporal, como, porexemplo, o trato digestivo, a partir do qual deve deslocar-se até o

seu local de ação em outro compartimento, como o cérebro, porexemplo. Isso exige a absorção da droga no sangue a partir de seulocal de administração e a sua distribuição até o local de ação,permeando através das várias barreiras que separam esses compar­

timentos. Para que uma droga administrada por via oral produzaalgum efeito no sistema nervoso central, essas barreiras incluem

os tecidos que compõem a parede do intestino, as paredes doscapilares que perfundem o intestino e a "barreira hematoencefá­

lica", formada pelas paredes dos capilares que perfundem o cére­bro. Por fim, após produzir seu efeito, a droga deve ser eliminada

numa taxa razoável por inativação metabólica, excreção do corpoou combinação desses processos.

A. PERMEAÇÃO

A permeação de drogas ocorre através de quatro mecanismos pri­mários. A difusão passiva em meio aquoso ou lipídico é comum,porém os processos ativos desempenham um papel no movimentode muitas drogas, particularmente as moléculas que são demasiadograndes para sofrer difusão rápida.

1. Difusão aquosa - A difusão aquosa ocorre no interior dos gran­des compartimentos aquosos do corpo (espaço intersticial, citosoletc.) e através das junções ocludentes das membranas epiteliais eporos aquosos no revestimento endotelial dos vasos sangüíneos, que

INTRODUÇÃO / 5

- em alguns tecidos - permitem a passagem de moléculas comPM de até 20.000/30.000.*

A difusão aquosa das moléculas de drogas é habitualmente im­pulsionada pelo gradiente de concentração da droga permeante,um movimento "descendente" descrito pela lei de Fick (ver adi­ante). As moléculas de drogas que se ligam a grandes proteínas

plasmáticas (por exemplo, a albumina) não irão permear atravésdesses poros aquosos. Se a droga tiver alguma carga elétrica, seu

fluxo também é influenciado pelos campos elétricos (por exem­plo, o potencial de membrana e - em partes do néfron - opotencial transtubular).

2. Difusão lipídica - A difusão lipídica constitui o fator limitante

mais importante na permeação de drogas, devido ao grande númerode barreiras lipídicas que separam os compartimentos do corpo. Comoessas barreiras lipídicas separam compartimentos aquosos, o coefici­ente de partição lipídico:aquoso de uma droga determina o grau defacilidade com que a molécula se desloca entre os meios aquosos elipídicos. No caso de ácidos e bases fracos (que ganham ou perdemprótons portadores de carga elétrica, dependendo do pH), a capaci­dade de passar de um meio aquoso para um meio lipídico ou vice­versa varia de acordo com o pH do meio, visto que as moléculas comcarga elétrica atraem moléculas de água. A relação entre forma lipos­solúvel e forma hidrossolúvel para um ácido fraco ou uma base fracaé expressa pela equação de Henderson-Hasselbalch (ver adiante).

3. Transportadores especiais - Existem moléculas transportado­

ras especiais para certas substâncias, que são importantes para afunção celular, porém demasiado grandes ou insolúveis em lipídiospara sofrer difusão passiva através das membranas, como, por exem­plo, peptídios, aminoácidos e glicose. Esses transportadores causammovimento por transporte ativo ou difusão facilitada e, ao contrá­rio da difusão passiva, são passíveis de saturação e inibição. Comomuitas drogas são peptídios, aminoácidos ou açúcares de ocorrên­

cia natural ou a eles se assemelham, podem usar esses transporta­dores para atravessar as membranas.

Muitas células também contêm transportadores de membranamenos seletivos, especializados na expulsão de moléculas estranhas,

como, por exemplo, a P-glicoproteína ou o transportador de re­sistência a múltiplas drogas tipo 1 (MDRl, multidrug-resistancetype 1) encontrado no cérebro, nos testículos e em outros tecidos,

bem como em algumas células neoplásicas resistentes a drogas. Umamolécula transportadora semelhante, a proteína associada à resis­

tência a múltiplas drogas tipo 2 (MRP2, multidrug-resistance­associated protein-type 2), desempenha importante papel na excre­ção de algumas drogas e seus metabólitos na urina e na bile.

4. Endocitose e exocitose - Algumas substâncias são tão grandesou impermeantes que só podem penetrar nas células por endocito­se, processo pelo qual a substância é englobada pela membrana ce­lular e transportada na célula pelo desprendimento de uma vesícu­Ia recém-formada no interior da membrana. A seguir, a substânciapode ser liberada no citosol através da decomposição da membranada vesícula. Esse processo é responsável pelo transporte da vitami­na B12' complexada com uma proteína de ligação (o fator intrínse­co), através da parede intestinal para o sangue. De forma semelhante,o ferro é transportado em precursores eritróides que sintetizamhemoglobina, em associação à proteína transferrina. É necessária a

*Os capilares do cérebro, dos testículos e de alguns outros tecidos caracterizam-sepela ausência dos poros que permitem a difusão aquosa das moléculas ·demuitas dro­gas no tecido. Além disso, podem conter concentrações elevadas de bombas de ex­porração de drogas (bombas MDR; ver o rexro). Por conseguinte, esses tecidos cons­tituem locais "protegidos" ou "santuários" contra muitas drogas circulantes.

Page 6: Capítulo 01 farmacologia

6 / FARMACOLOGIA

B. LEI DE DIFUSÃO DE FICK

O fluxo passivo de moléculas ao longo de um gradiente de concen­tração é fornecido pela lei de Fick:

C. IONIZAÇÃO DE ÁCIDOS FRACOS E BASES FRACAS;

A EQUAÇÃO DE HENDERSON-HASSELBALCH

QuaternáriaR

R:N:+R

R

TerciáriaR

R:N:R

SecundáriaR

R:N:

H

PrimáriaH

R:N:H

no. A equação de Henderson-Hasselbalch relaciona a razão entre

ácido fraco ou base fraca protonados e não-protonados com a pK.da molécula e o pH do meio da seguinte maneira:

109 (Protonado) = pKa - pH(Não-protonado)

Essa equação aplica-se tanto a drogas ácidas quanto básicas. Ainspeção confirma que, quanto menor o pH em relação à pK.,maior a fração da droga na forma protonada. Como a forma semcarga elétrica é a mais lipossolúvel, haverá maior quantidade deácido fraco na forma lipossolúvel em pH ácido, enquanto maiorproporção de uma droga básica estará na forma lipossolúvel em

pH alcalino.Uma aplicação desse princípio é observada na manipulação da

excreção de drogas pelos rins. Quase todas as drogas são filtradasno glomérulo. Se a droga estiver numa forma lipossolúvel durantea sua passagem pelo túbulo renal, uma fração significativa será reab­sorvida por difusão passiva simples. Se o objetivo é acelerar a excre­

ção da droga, é importante impedir a sua reabsorção do túbulo. Issopode ser freqüentemente obtido ao ajustar o pH urinário para asse­gurar que a maior parte da droga esteja no estado ionizado, confor­me ilustrado na Fig. 1.1. Em conseqüência desse efeito de separa­ção do pH, a droga ficará "retida" na urina. Assim, os ácidos fracossão, em geral, excretados mais rapidamente na urina alcalina, en­

quanto as bases fracas costumam ser excretadas mais rapidamentena urina ácida. Outros líquidos corporais em que as diferenças depH em relação ao pH sangüíneo podem ocasionar retenção ou reab­sorção incluem o conteúdo do estômago e do intestino delgado, o

leite materno, o humor aquoso e as secreções vaginais e prostáticas(Quadro 1.3).

Conforme sugerido pelo Quadro 1.2, grande parte das drogasconsiste em bases fracas. Essas bases consistem, em sua maioria, em

moléculas que contêm amina. O nitrogênio de uma amina neutratem três átomos associados a ele, juntamente com um par de elé­trons não-partilhados - ver a representação adiante. Os três áto­mos podem consistir num carbono (designado por "R") e dois hi­drogênios (amina primária), dois carbonos e um hidrogênio (ami­na secundária) ou em três átomos de carbono (amina terciária).

Cada uma dessas três formas pode ligar-se reversivelmente a umpróton com os elétrons não-partilhados. Algumas drogas apresen­tam uma quarta ligação carbono-nitrogênio, constituindo as deno­

minadas aminas quaternárias. Todavia, a amina quaternária apre­senta carga elétrica permanente e não tem elétrons não-comparti­lhados para ligar-se reversivelmente a um próton. Por conseguinte,as aminas primárias, secundárias e terciárias podem sofrer protona­

ção reversível e variar a sua lipossolubilidade de acordo com o pH,enquanto as aminas quaternárias estão sempre na forma carregadae pouco lipossolúvel.

Grupos de Drogas

PrótonÂnion de

aspirina

Aspirinaneutra

onde C] é a concentração mais alta, C1 a concentração mais baixa,

a área é a área através da qual está ocorrendo difusão, enquanto ocoeficiente de permeabilidade é uma medida da mobilidade das

moléculas da droga no meio da via de difusão, e a espessura refere­se à espessura (extensão) da via de difusão. No caso da difusão lipí­

dica, o coeficiente de partição lipídico:aquoso constitui um impor­tante determinante da mobilidade da droga, visto que determina ograu de facilidade com que a droga penetra na membrana lipídica apartir do meio aquoso.

A carga eletrostática de uma molécula ionizada atrai dipolos de águae resulta num complexo polar, relativamente hidrossolúvel e inso­

lúvel em lipídios. Como a difusão lipídica depende de uma lipos­solubilidade relativamente alta, a ionização das drogas pode redu­zir acentuadamente a sua capacidade de atravessar as membranas.

Uma parcela muito grande das drogas em uso consiste em ácidosfracos ou bases fracas (Quadro 1.2). No caso de fármacos, um áci­

do fraco é mais bem definido como uma molécula neutra capaz de

sofrer dissociação reversível num ânion (molécula de carga negati­va) e próton (íon hidrogênio). Por exemplo, a aspirina dissocia-seda seguinte maneira:

presença de receptores específicos das proteínas de transporte paraa atuação desse processo. O processo inverso (exocitose) é respon­sável pela secreção de muitas substâncias das células. Assim, porexemplo, muitas substâncias neurotransmissoras são armazenadas

em vesículas delimitadas por membrana nas terminações nervosas,a fim de protegê-Ias da destruição metabólica no citoplasma. A ati­vação apropriada da terminação nervosa causa fusão da vesícula dearmazenamento com a membrana celular e expulsão de seu con­

teúdo no espaço extracelular (ver Capo 6).

Uma droga que é uma base fraca pode ser definida como molé­

cula neutra capaz de formar um cátion (molécula de carga positiva)através de sua combinação com um próton. Por exemplo, a piri­metamina, um agente antimalárico, sofre o seguinte processo deassociação-dissociação:

C,2HllCIN3NH3+~ C'2H"CIN3NH, + H+

Cátion de Pirimetamina Prótonpirimetamina neutra

Fluxo (moléculas por unidade de tempo) =Área x coeficiente de permeabilidade

((1 - (2) x -------Es-p-e-s-su-r-a-----

Observe que a forma protonada de um ácido fraco é a formaneutra mais lipossolúvel, enquanto a forma não-protonada de uma

base fraca é a forma neutra. A lei de ação das massas exige que essasreações se movam para a esquerda em ambiente ácido (pH baixo,excesso de prótons disponíveis) e para a direita em ambiente alcali-

Aprender cada fato pertinente acerca de cada uma das muitas cen­tenas de drogas mencionadas neste livro seria um objetivo imprati­cável e, felizmente, desnecessário em qualquer caso. Quase todas asdrogas atualmente disponíveis, cujo número atinge vários milha­res, podem ser classificadas em cerca de 70 grupos. Muitas das dro­gas em cada grupo são muito semelhantes nas suas ações farmaco-

Page 7: Capítulo 01 farmacologia

Quadro 1.2 Constantes de ionização de algumas drogas comunsI

Droga pK~ pK~ Droga

INTRODUÇÃO / 7

pK.'

Ácidos fracos Bases fracas (cont.)Bases fracas (cont.)Acetaminofeno

9,5Amilorida8.7IsoproterenolAcetazolamida

7,2Amiodarona6,56Lidocaína

Ácido etacrínico2,5Anfetamina9,8Metadona

Ácido salicílico3,0Atropina9.7Metanfetamina

Ampicilina

2,5Bupivacaína8,1Metaraminol

Aspirina

3,5Canamicina7,2Metildopa

Ciprofloxacina

6,09,8,74'Ciclizina8,2MetoprololClorotiazida

6,8, 9,4'Clonidina8,3Morfina

Clorpropamida

5,0Clordiazepóxido4,6Nicotina

Cromoglicato

2,0Clorfeniramina9,2Noradrenalina

Fenitoína

8,3Cloroquina10,8,8,4'Pentazocina

Fenobarbital7,4Clorpromazina9,3Pilocarpina

Furosemida3,9Cocaína8,5Pindolol

Ibuprofeno

4,4, 5,2'Codeína8,2Pirimetamina

Levodopa

2,3Desipramina10,2Procaína

Metildopa

2,2,9,2'Diazepam3Procainamida

Metotrexato

4,8Difenidramina8,8Promazina

Penicilamina

1,8Difenoxilato7,1Prometazina

Pentobarbital8,1Díidrocodeína3Propranolol

Propiltiouracil

8,3Efedrina9,6Pseudo-efedrina

Sulfadiazina

6,5Epinefrina8,7Quinidina

Sulfapiridina

8,4Ergotamina6,3Terbutalina

Teofilina

8,8Escopolamina8,1Tioridazina

Tolbutamida5,3Estriquinina8,0,2,3'Tolazolina

Warfarina5,0Fenilefrina9,8

Bases fracasFisostigmina7,9,1,8'

Albuterol

9,3Flufenazina8,0,3,9'

(salbutamol)

Guanetidina11,4, 8,3'

Alopurinol

9,4, 12,3Hidralazina7,1

Alprenolol

9,6Imipramina9,5

'A pK, é o pH em que as concentrações das formas ionizada e não-ionizada são iguais.'Mais de um grupo ionizável.

8,67,98,410,08,610,69,87,97,9,3,1'8,67,96,9, 1,4'8,67,09,09,29,49,19,49,88,5,4,4'10,19,510,6

dinâmicas e, com freqüência, também nas suas propriedades far­macocinéticas. Para a maioria dos grupos, é possível identificar um

ou mais protótipos, que exemplificam as caracrerísticas mais im­portantes do grupo. Isso permire a classificação de outras drogasimportantes no grupo como variantes do prorótipo, de modo que

só precisamos conhecer detalhadamente o protótipo e reconhecerapenas as diferenças em relação ao protótipo para as drogas rema­nescentes.

Fontes de Informação

Os estudantes que desejam rever o campo da farmacologia para a

preparação de um exame devem consultar Pharmacology:Examina­tion and Board Review, de Trevor, Katzung e Masrers (McGraw­Hill, 2002) ou USMLE Road Map: Pharmacology,por Katzung eTrevor (McGraw-Hill, 2003).

As referências apresentadas ao final de cada capítulo deste livroforam selecionadas para proporcionar informações específicas emcada um dos capítulos.

A melhor maneira de responder a perguntas específicas relativas

à pesquisa básica ou clínica consiste em recorrer a periódicos defarmacologia geral e especialidades clínicas. Para o estudante e omédico, podemos recomendar três publicações como fontes parti­cularmente úteis de informações atualizadas sobre drogas: The NewEngland Journal o/ Medicine, que publica muitas pesquisas clínicasoriginais relacionadas a drogas, bem como freqüentes revisões detópicos de farmacologia; The' Medical Letter on Drugs andTherapeutics, que publica revisões breves e críticas de terapias no-

Membranas

Sangue

do nélronUrina

pH7,4~ pH6,0

1,0~M

DIFUSÃO

1,0~M

HH

II

R-N-HL1PíDICAR-N-H

W11

IrH

HI

I

R-W-H)(R-N+-H0,4 ~!M ~

~10'0 ~M

1,4 ~M

11,0~M

Fig. 1.1 Aprisionamento de uma base fraca (pirimetamina) na uri­na, quando esta é mais ácida do que o sangue. No caso hipotéticoilustrado, a forma da droga sem carga elétrica e passível de difusãoentrou em equilíbrio através da membrana, porém a concentraçãototal (com carga e sem carga) na urina é quase oito vezes maior quea do sangue.

Page 8: Capítulo 01 farmacologia

8 / FARMACOLOGIA

Quadro 1.3 Líquidos corporais com potencial de "aprisionamento" de drogas através do fenômeno de partição do pH

líquido Corporal Faixa de pH

Relações de Concentraçãonos líquidos Totais: Sangue para a

Sulfadiazina (ácido, pK. 6,5)'

Relações de Concentração noslíquidos Totais: Sangue para

a Pirimetamina (base, pK.7,O)'

0,21 3,25-1,0, .

0,114 2.848-452

Urina

Leite materno

Conteúdo do jejuno, íleo............................................

Conteúdo do estômago.....................................

Secreçôes prostáticas

Secreções vaginais

5,0-8,0

6,4-7,6'

7,5-8,03

1,92-2,59'........... , " " .

6,45-7,4'

3,4-4,23

0,12-4,65............... , .

0,2-1,77........ ,...............................••....................................

1,23-3,54.....................

72,24-0,79..... , .

3,56-0,89..................... " .

0,94-0,79•••• " ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• O"

85.993-18386

'As relações entre droga protonada e não-protonada nos líquidos corporais foram calculadas ao utilizar cada um dos extremos citados de pH; foi utiíizado um pH sangüíneo de7,4 para a relação sangue:droga. Por exemplo, a relação urina:sangue em estado de equilíbrio dinâmico para a sulfadiazina é de 0.,12 em pH urinãrio de 5,0.; essa relação atinge4,65 com pH urinãrio de 8,0.. Por conseguinte, a sulfadiazina é separada e excretada com muito mais eficiência na urina alcalina.'Lentner C (editor): Geigy Scientilic Tables, vai 1, 8th ed. Ciba Geisy, 19813Bowman WC, Rand MJ: Textbook 01 Pharmacology, 2nd ed. Blackwell, 1980..4Alteração insignificante nas relações dentro da faixa de pH fisiológico.

vas e antigas, em sua maior parte farmacológicas; e Drugs, que pu­blica extensas revisões de drogas e grupos de drogas.

É preciso mencionar também outras fontes de informações per­tinentes aos Estados Unidos. A "bula do produto" é um resumo das

informações sobre o fármaco que o fabricante é obrigado a colocarna embalagem; o Physicians, Desk Reference (PDR) é um compên­dio das bulas publicadas anualmente, com suplementos duas vezespor ano; o Facts and Comparisons é uma publicação em folhas sol­

tas mais completa sobre informações de drogas, com atualizaçõesmensais; e o USP DI (voI. 1, Drug Information for the Hea!th Care

Professiona~ é um grande compêndio sobre drogas, com atualiza­ções mensais, que atualmente é publicado na internet pelaMicromedex Corporation. A bula consiste numa breve descriçãoda farmacologia do produto. Embora contenha muitas informaçõespráticas, é também utilizada como meio de transferir a responsabi­lidade por reações adversas ao fármaco do fabricante para o médi­co. Por isso, o fabricante tipicamente relaciona todos os efeitos tó­xicos já relatados, independentemente de sua raridade. Um manu­al útil e objetivo que fornece informações sobre toxicidade e inte­

rações farmacológicas é o Drug Interactions. Por fim, a FDA possuium site na Interner World Wide Web, que traz notÍcias a respeitode drogas recentemente aprovadas, retiradas do mercado, avisos etc.

Esses dados podem ser obtidos com um computador pessoal equi­pado com um software para internet em http://www.fda.gov.

Os endereços a seguir são fornecidos para uso de leitores quedesejarem obter qualquer uma das publicações anteriormente ci­tadas:

Drug Interactions

Lea & Febiger600 Washington SquareFiladélfia, PA 19106

Facts and Comparisons111 West Porr Plaza, Suite 300St. Louis, MO 63146

Pharmaco!ogy: Examination 6- Board Review, 6th ed

McGraw-Hill Companies, Inc2 Penn Plaza 12th Floor

Nova York, NY 10121-2298

USMLE Road Map: Pharmaco!ogyMcGraw-Hill Companies, Inc2 Penn Plaza 12th Floor

Nova York, NY 10121-2298

The Medica! Letter on Drugs and Therapeutics56 Harrison Street

New Rochelle, NY 10801

The New Eng!and Journa! o/ Medicine10 Shattuck Street

Boston, MA 02115

Physicians' Desk ReferenceBox 2017

Mahopac, NY 10541

United States Pharmacopeia Dispensing InformationMicromedex, Inc.

6200 S. Syracuse Way, Suite 300

Englewood, CO 80111