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Uma leitura da “Circularidade” entre culturas em Carlo Ginzburg Adilson da Silva Mello Otávio Candido da Silva Junior

Circularidade Cultural

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Uma leitura da “Circularidade”entre culturas em Carlo Ginzburg

Adilson da Silva MelloOtávio Candido da Silva Junior

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Este artigo pretende refletir sobre um conceito importante utilizado por muitos pesquisadores quan-do refletem sobre as diferenças culturais e a tramitação de vários elementos culturais comuns em diferentes classes sociais que convivem, de uma forma ou de outra, em realidades históricas similares. Levantamos a idéia de que a utilização deste conceito rompe com a velha e superada dicotomia existente entre cultura elitista e cultura popular.

cultura, sociedade, relações culturais, história, antropologia.

Palavras-Chave

resumo

A questão da “circularidade cultural” sempre chamou atenção desde o primeiro contato com a obra de Carlo Ginsburg. Em um primeiro momento fechamos a análise da questão no próprio autor, posteriormente amplia-mos o leque de leituras de algumas obras do autor não lidas anteriormente, bem como de alguns trabalhos sobre o autor de “O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição” e outros autores que fizeram uma abordagem da cultura muito próxima à sua.

Cabe ressaltar que esta obra (O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição) será a referência principal do trabalho, embora não sendo a única, uma vez que é nela que o autor trabalhará mais diretamente com o “[...] termo circularidade: entre a cul-tura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo [...]” (GINZBURG, 1987, p. 13), que é o resumo do que foi proposto por Mikhail Bakhtin. A circularidade, ou seja, o “[...] influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica, particularmente intenso na primeira metade do século XVI” (GINZBURG, 1987, p. 13), será captada através da análise da figura de um camponês, o moleiro friulano Menocchio, como um leitor muito peculiar de obras da “cultura hegemônica” com que manteve algum tipo de contato.

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Ainda que possa dar margem a interpretações simplificadoras, essa abordagem é de um grau elevado de complexidade pois em Menocchio encontra-se

[...] obscuros elementos populares [...] enxertados num conjunto de idéias muito claras e consequentes, que vão do radicalismo religioso ao naturalismo tendencialmente científico, às aspirações utópicas de renovação social. A impressionante convergência entre as posições de um des-conhecido moleiro friulano e as de grupos intelectuais dos mais refinados e conhecedores de seu tempo repropõe com toda força o problema da circularidade da cultura formulado por Bakhtin (GINZBURG, 1987, p. 25-26).

Concretamente podemos perceber a circularidade nas posições de Menocchio que

[...] Por um lado, elas reentram numa tradição oral antiqü-íssima; por outro, evocam uma série de motivos elaborados por grupos heréticos de formação humanista: tolerância, tendência em reduzir a religião à moralidade etc. Trata-se de [...] uma cultura unitária em que não é possível estabelecer recortes claros. [...] suas afirmações [...] apresentam um tom original e não parecem resultado de influências externas passivamente recebidas. [...] (GINZBURG, 1987, p. 30).

É interessante explicitar, ainda que esteja implícito, que Ginzburg ao admitir a circularidade entre culturas faz um opção por “[...] Uma análise de classes [...]”(GINZBURG, 1987, p. 32) em detrimento de uma análise “interclassita” tão comum à história das mentalidades, citando espefica-mente Lucien Febvre.

Com isto não se está de maneira alguma afirmando a existência de uma cultura homogênea, comum tanto aos camponeses quanto aos artesãos da cidade [...] Apenas se está querendo delimitar um âmbito de pesquisa no interior do qual é preciso conduzir análises particularizadas (GINZ-BURG, 1987, p. 32-33).

Com relação á problemática mentalidade (interclassista) versus cultura (classista) é bom chamar a crítica de Raminelli a Ginzburg, ainda que eu discorde da mesma, entendo que ela possa lançar alguma luz sobre esta

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questão. Diz Raminelli (1993, p. 85):

Nesta caracterização o estudioso demonstra o quanto sua concepção de mentalidade é obtusa. [...] pois a existência de um substrato cultural comum a todos os segmentos sociais não invalida, a priori, as diferenças classistas. A partir desse prisma, existiria um pool informativo comum (mentalidade = estrutura), como a língua por exemplo, convivendo com níveis culturais e sociais profundamente diversos e, às vezes, antagônicos. Vale dizer que uma pesquisa que não leve em conta ambas as perspectivas tende a simplificar a trama social e perder a idéia de totalidade.

Por outro lado, o termo cultura, empregado unicamente a partir do enfoque classista, inviabiliza a circularidade, pois, se não houvesse um substrato informativo comum entre os eruditos e os populares, como seria possível a comunicação entre os dois níveis? Em suma, a ênfase no caráter classista e o desdém pelo estudo das mentalidades invalidam a circula-ridade cultural, ou melhor, as pesquisas deste historiador. Deste modo, entendo que as críticas a Lucien Febvre e à história das mentalidades não passam de mera retórica (RAMINELLI, 1993, p. 85).

Ginzburg retoma, com toda sua força de argumentação, a questão da circularidade quando está discutindo como se deu o processo de leitura de Menocchio.

[...] parece-nos importante a chave de sua leitura, a rede que Menocchio de maneira inconsciente interpunha entre ele e a página impressa - um filtro que fazia enfatizar certas passagens enquanto ocultava outras, que exagerava o sig-nificado de uma palavra, isolando-a do contexto, que agia sobre a memória de Menocchio deformando sua leitura. [...] remete continuamente a uma cultura diversa da registrada na página impressa: uma cultura oral.

[...] pelo menos um livro o inquietara profundamente, levan-do-o, com suas afirmações inesperadas, a ter pensamentos novos. Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral, da qual era depositário, que induziu Menocchio a formular - para si mesmo em primeiro lugar, depois aos seus conci-dadãos e, por fim, aos juízes - as ‘opiniões [...] [que] saíram da sua própria cabeça’ (GINZBURG, 1987, p. 89).

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Mais adiante quando Ginzburg está analisando a tendência, na Itália do século XVI, “em reduzir a religião em a uma realidade puramente mun-dana” novamente a questão da circularidade entre culturas volta a baila, dizendo que “[...] talvez seja possível perceber uma convergência parcial entre os círculos mais avançados da alta cultura e os grupos populares de tendência radical” (GINZBURG, 1987, p. 100).

Ginzburg vai encontrar nos processos contra Menocchio um momento precioso para o fortalecimento de sua tese da circularidade entre culturas, quando o moleiro friulano inverte os papéis no interrogatório pedindo para que o juiz o ouça, tentando convencê-lo de suas idéias. Neste ponto Ginzburg se pergunta

[...] Quem representa o papel da cultura dominante? E quem representa a cultura popular? Não é fácil responder. [...]

[...] Cada vez com mais nitidez, vemos como ali se en-contram, de modos e formas a serem ainda precisados, correntes cultas e correntes populares. [...] (GINZBURG, 1987, p. 114).

Avançando um pouco mais, Ginzburg tenta demonstrar como Menocchio cruza com as correntes cultas, examinando um termo culto (“caos primordial”) que aparece na descrição de sua cosmogonia. “[...] É provável que Menocchio tenha tomado conhecimento desse termo erudito num livro ao qual se referiu incidentalmente durante o segundo processo (mas em 1584, como se verá, já o sabia): o Supplementum supplementi delle croniche, do ermitão Jacopo Filippo Foresti. [...]” (GINZBURG, 1987, p. 118).

A invenção da imprensa foi a grande responsável pela circularidade de cultura na medida em que permite uma real socialização da palavra, rompendo com o monopólio entre cultura escrita e poderosos, pelo menos é essa a minha leitura de Ginzburg.

[...] A invenção do alfabeto - que cerca de quinze séculos antes de Cristo quebrou pela primeira vez esse monopólio - não foi suficiente, contudo, para pôr a palavra à disposição de todos. Somente a imprensa tornou mais concreta essa possibilidade. [...] A idéia de cultura como privilégio fora gravemente ferida (com certeza não eliminada) pela inven-ção da imprensa” (GINZBURG, 1987, p. 128-129).

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Não obstante, devemos levar em conta as considerações de Davis (1990), ainda que em um contexto diferençado do qual trabalha Ginzburg, no caso a França do mesmo período histórico - século XVI -,que se por um lado confirma tal tese, por um outro lado a critica.

[...] o paradoxo central do impacto da palavra impressa sobre o povo. Por um lado, ela podia destruir monopólios tradicionais de conhecimento e autoria, vendendo e disse-minando amplamente tanto informação quanto trabalhos de criação. Ela pôde, também, criar uma nova relação entre o autor e a audiência anônima. Mas a palavra impressa também tornou possível o estabelecimento de novas for-mas de controle sobre o pensamento popular. [...] (DAVIS, 1990, p. 184).

Precisando um pouco mais a cultura hegemônica de que Menocchio era herdeiro, conclui Ginzburg (1987, p. 132): “[...] Empregando uma ter-minologia embebida de cristianismo, neoplatonismo e filosofia escolástica, Menocchio procurava exprimir o materialismo elementar, instintivo, de gerações e gerações de camponeses”.

Ginzburg vai buscar nas raízes da cultura grega elementos que re-forçem esse entrecruzamento de culturas: “Assim, Menocchio, em sua trabalhosa viagem de volta no tempo, reencontrava sem saber, além da imagem cristã do cosmo, a dos antigos filósofos gregos. Este Heráclito camponês descobrira no fogo, extremamente móvel e indestrutível, o elemento primordial. [...]” (GINZBURG, 1987, p. 199).

O historiador italiano procura identificar como Menocchio estabeleceu contato com a cultura hegemônica, quando começa a comparar Menoc-chio com “um desconhecido camponês de Lucca”, Scolio, que sofrera um processo cerca de vinte anos antes do moleiro friulano.

As semelhanças entre as profecias de Scolio e os discursos de Menocchio são evidentes. Não se explicam é óbvio, pela presença de fontes comuns - a Divina Comédia, o Alcorão -, conhecidas decerto por Scolio e provavelmente também por Menocchio. O elemento decisivo é um estrato comum de tradições, mitos, aspirações, transmitidos oralmente através das gerações. Em ambos os casos, fora o contato com a escrita na escola que fizera esse estrato profundo de cultura oral aflorar. Menocchio deve ter freqüentado uma escola de ábaco; [...] (GINZBURG, 1987, p. 216).

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Ginzburg chega a descrever o modo como Menocchio trava contato com os materiais que lhe forneceu a oportunidade do acesso à cultura hegemônica.

Menocchio comprara o Fioretto della Bibbia, mas tam-bém pedira emprestado o Decameron e as Viagens de Mandeville; afirmara que a Escritura poderia ser resumida em quatro palavras, todavia sentira a necessidade de se apropriar ainda do patrimônio de conhecimentos de seus adversários, os inquisidores. Percebe-se, portanto, no caso de Menocchio, um espírito livre e agressivo, decidido a acertar contas com a cultura das classes dominantes; [...](GINZBURG, 1987, p. 217).

Na conclusão desta obra analisada até o presente momento, Ginzburg (1987, p. 229) vai dizer que “Muitas vezes vimos aflorar, através das pro-fundíssimas diferenças de linguagem, analogias surpreendentes entre as tendências que norteiam a cultura camponesa que tentamos reconstruir e as de setores mais avançados da cultura quinhentista. [...]” Isto segundo ele leva a “[...] uma hipótese muito mais complexa sobre as relações que permeavam, nesse período, as duas culturas: as das classes dominantes e a das classes subalternas”.

Vai um pouco mais além ao afirmar que além de complexa é “[...] im-possível de demonstrar. O estado da documentação reflete, óbvio, o estado das relações de força entre as classes. Uma cultura quase exclusivamente oral como a das classes subalternas da Europa pré-industrial tende a não deixar pistas, ou então deixar pistas distorcidas”. Por isso vai dizer que o caso Menocchio é importante, pois escancara “[...] as raízes populares de grande parte da alta cultura européia, medieval e pós-medieval. [...] Todavia, fecharam uma época caracterizada pela presença de fecundas trocas subterrâneas, em ambas direções, entre a alta cultura e a cultura popular. [...]” (GINZBURG, 1987, p. 230)

Seguindo as pegadas de Raminelli (1993, p. 85) ao afirmar que,

Em ‘Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica do século XVI’, o mesmo historiador introduz uma outra concepção de circularidade, desta vez menos esquemática. [...] Ginzburg demonstra o quanto a troca de níveis culturais é complexa, afastando-se um pouco da versão de Bakhtin. [...] fui buscar neste capítulo da obra Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história, a

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originalidade no trato da circularidade dentro de toda obra ginzburgueriana.

Ginzburg (1989, p. 121) afirma que era através das imagens que se travava a relação circular entre culturas diferençadas. “[...] Acima de tudo havia a consciência, cada vez mais nítida, da função decisa das imagens, ‘idiotarum libri’ (livro dos ignorantes), numa propaganda voltada as massas compostas predominantemente de iletrados. [...]”.

Ginzburg (1989, p. 122) vai além ao afirmar, apoiado num “teólogo sem preconceitos” de nome Politi que “[...] o denominador comum entre as imagens eróticas e imagens sacras era a eficácia. Umas estimulavam o apetite sexual, outras a piedade religiosa. [...]”. A respeito disso veja o que nos fala Davis (1990, p. 182): “[...] Os jesuítas contuaram o trabalho ao fixar o sentido de um texto devocional, acompanhando-o de uma figura ou emblema religioso uniforme. [...]”.

Em busca da “fonte inspiradora” de Ticiano, Ginzburg (1989, p. 127) coloca em xeque a teoria de Panofsky, segundo a qual Ovídio seria o grande inspirador da obra de Ticiano. “[...] Mas essa tese interpretativa, amplamente ilustrada por Panofsky, na realidade é insustentável. Pode-se demonstrar, pelo contrário: 1) que Ticiano não sabia latim; 2) que ele leu as Metamorfoses exclusivamente nas vulgarizações; 3) que suas inovações em relação à tradição iconográfica se remetem às vulgarizações e não ao texto ovidiano”.

Depois de um longo percurso, analisando minuciosamente estas vulgarizações, Ginzburg (1989, p. 137) chega a seguinte conclusão: “[...] Isso significa que a vulgarização das Metamorfoses lida por Ticiano passara através de uma dupla, talvez tripla, mediação (Giovanni del Virgilio - Gio-vanni Bonsignori - Nicolò degli Agostini?) [...] A demonstração precedente sobre a relação exclusiva de Ticiano com textos vulgarizados dá-nos porém uma imagem da sua cultura muito diferente da geralmente aceita”.

Isto posto, podemos concluir com Raminelli (1993, p. 86), “[...] a originalidade atribuída a Ticiano por Panofsky tornou-se um indício da cir-cularidade e, logo, da interpretação vulgarizada de uma obra erudita”.

Ginzburg (1989, p. 138) vê na imagem um elemento que colaborará ainda mais com a palavra impressa para o intercâmbio entre culturas. Identifica no século XVI

[...] dois circuitos icônicos, o público e o privado: amplo e socialmente indiferenciado o primeiro, circunscrito e socialmente elevado o segundo. [...] trata-se de uma con-

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traposição sumária sumária: subvertê-la, adviera a difusão da imprensa. Graças a ela, um público de contornos para nós ainda indefinidos, mas de qualquer maneira compree-endendo classes sociais subalternas (artesãos e até campo-neses), entrou em contato não só com a página impressa mas também com as imagens que muitas vezes a acompa-nhavam. A existência de livros a preço relativamente baixo, normalmente ilustrados, aumentou imediatamente, em sentido tanto quantitativo como qualitativo, o patrimônio de palavras e imagens dessas classes sociais.[...]

Neste ensaio o autor conclui a questão da circularidade na icono-grafia erótica do século, explicitando de maneira prática como se dava o processo.

[...] No entanto, o mundo refinado e complexo das divinda-des pagãs recriadas pelos humanistas era traduzido pelos ilustradores dos livros impressos sob formas freqüentemente humildes e rudimentares - a não ser que realizassem depois um percurso inverso, como no caso de Andrômeda de Ti-ciano. Mas a circularidade das imagens eróticas no século XVI deve ainda ser explorada. Certamente, não só Filipe II na sua sala de banhos privada, mas muitos leitores anônimos das Metamorfoses vulgarizadas haviam projetado, como o personagem de Terêncio, as suas fantasias mais secretas nos gestos amorosos dos deuse antigos.” (GINSBURG, 1989, p. 140)

Segundo Raminelli (1993, p. 84), Ginzburg em sua obra Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII “(...) consultou vários processos envolvendo os benandanti e descobriu que, ao longo dos anos o Santo Ofício e seu aparato repressor induziram a transformação das crenças próprias do grupo. Oque era exógeno à demonologia, tornou-se parte dela. Nas palavras do próprio Ginzburg (1988, p. 8)

[...] modelando as confissões dos acusados graças aos dois instrumentos [...] a tortura e os interrogatórios ‘sugestivos’ [...] mostrando como um culto de características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos benandanti, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inqui-sidores, para finalmente assumir os lineamentos da feitiçaria tradicional. [...] um estrato de crenças genuinamente po-

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pulares, depois deformado, anulado pela superposição do esquema culto. [...] (GINSBURG, 1988:08)”

Raminelli diz que é justamente a partir desta obra, bem como desta problemática acima citada que Ginzburg iniciou o estudo sobre a circula-ridade cultural. (RAMINELLI, 1993:91)

Em um outro ensaio, Ginzburg volta a retratar o entrecruzamento de culturas nos interrogatórios dos inquisidores especificando um pouco mais como se dava este processo.

[...] Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas - que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os esteriótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc. (GINSBURG, 1991, p. 206).

Em uma outra obra, História Noturna: decifrando o Sabá, Ginzburg (1991, p. 22) também discute a questão da circularidade entre culturas ao dizer que “[...] No esteriótipo do sabá, considerei ser possível reconhecer uma ‘formação cultural de compromisso’: resultado híbrido de um conflito entre cultura folclórica e cultura erudita.

Raminelli (1993, p. 87), ao analisar esta obra diz que Ginzburg “[...] entende o complexo do sabá como síntese erudita realizada a partir da observação e perseguição da cultura popular”.

Concluindo este amplo quadro reflexivo em torno da circularidade entre cultura, nada mais coerente fazê-lo com as palavras deste historiador italiano, uma vez que delas me servi durante todo este artigo e, nem teria como ser diferente pois, segundo Ginsburg, mediante a introjeção (parcial ou total, lenta ou imediata, violenta ou aparentemente espontânea) do estereótipo hostil proposto pelos perseguidores, as vítimas acabavam per-dendo a própria identidade cultural. Deve - se atribuir maior importância aos raros casos em que a documentação tem caráter dialógico isto é, que sejam identificáveis fragmentos (relativamente imunes a deformações) da cultura que a perseguição se propunha cancelar (GINSBURG, 1991, p. 24)

Cabe, ainda, ressaltar a busca de perspectivas que tragam ao olhar historiográfico uma capacidade maior de complexificar o objeto e retirá-lo do lugar comum das leituras simplificadoras da realidade.

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ABSTRACT

This article aims to reflect on an important concept used by many researchers when they reflect on cultural differences and handling of several common cultural elements in different social classes who live in one way or another, in similar historical realities. The use of this concept breaks with the old and overcome dichotomy between elitist culture and popular culture.

REFERêNCIAS

DAVIS, Natalie Zemon. O povo e a palavra impressa. In: ______. Cul-turas do povo: sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

GINZBURG, Carlo. Introdução. In: ______. história noturna: decifran-do o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.

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______. Prefácio e Pós-escrito de 1972. In: ______. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

______. Prefácio/Sinais: raízes de um paradigma indiciário/ Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica no século XVI. In: ______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

RAMINELLI, Ronald. Compor e decompor: ensaio sobre a história em Ginzburg. Revista Brasileira de história, São Paulo, n. 13, p. 25-26, set./ago. 1993.

Adilson da Silva Mello

Doutor em Ciências Sociais - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências da Religião - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila.