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JUAREZ APARECIDO COSTA
SALVAÇÃO E COMPORTAMENTO MORAL.Um estudo dos modelos de discurso teológico moral das IgrejasAssembléia de Deus tradicional e Assembléia de Deus Betesda
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2004
3
JUAREZ APARECIDO COSTA
SALVAÇÃO E COMPORTAMENTO MORAL.Um estudo dos modelos de discurso teológico moral das IgrejasAssembléia de Deus tradicional e Assembléia de Deus Betesda
Dissertação apresentada à BancaExaminadora da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo, como exigência parcialpara obtenção do título de MESTRE emCiências da Religião, sob a orientação do Prof.,Doutor Jung Mo Sung.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
2004
4
Comissão Examinadora
__________________________________
__________________________________
__________________________________
5
DEDICATÓRIA
À Eliana, porto seguro feito de amor, carinho, compreensão e companheirismo,
sempre renunciando suas vontades para que meu navegar em mar tranqüilo me fizesse ao
longe, permitindo perseguir sonhos distantes, sem que ao menos eu tivesse chance de
agradecê-la.
Para Victor Matheus, filho que está sempre ao meu lado e Thaís Marques que
aprendi a amar e ter como verdadeira filha.
À Thais Caroline que mesmo distante de meu olhar, me faz sonhar com sua doce
presença de filha.
A todos os pastores e crentes evangélicos pentecostais que de alguma forma
encontraram abrigo e segurança em sua fé.
6
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Jung Mo Sung, que com sua paciente orientação, contribuiu de forma
significativa ao desenvolvimento e conclusão desta dissertação.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pelo
apoio e financiamento da pesquisa, sem o qual não seria possível transformar o sonho em
realidade.
Aos Professores do programa de Estudos Pós-Graduação em Ciências da Religião,
pela acolhida e apoio neste caminhar, em especial ao Dr. Fernando Londoño e Dr. Ênio
José da Costa Brito.
Ao Pastor João Eunilson de Jesus Caetano, da Assembléia de Deus tradicional do
Jardim Marajoara – Mauá ( SP), ao Pastor Ricardo Gondim, da Assembléia de Deus
Betesda, que com presteza me receberam e forneceram informações úteis a esta pesquisa
A Gedeon Freire, diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos
Contemporâneos, que colocou seu tempo e importantes documentos da Igreja Assembléia
de Deus Betesda a disposição de minha pesquisa.
Aos membros e participantes da Comunidade Evangélica Antioquia por apoiarem
meu trabalho.
Ao Padre Márcio Fabri, que se colocou a disposição em ajudar-me e indicou obras
relevantes a minha dissertação.
7
As professoras que, com o passar do tempo, se tornaram amigas e que tanto
apoio prestaram à construção do meu conhecimento, especialmente Drª Marilda
Soares que foi minha professora na graduação e incentivou meus passos na pós-
graduação, Drª Vitalina que me motivou a cursar o mestrado, a Elita, Sueli e Claudia
Valéria que, incansavelmente, leram meus textos sem nunca reclamarem.
Aos meus amigos, professores e alunos da escola pública, que indiretamente fazem
parte de minha vida tornando-a mais suave diante da problemática que o mundo nos coloca.
À minha esposa Eliana, a quem devo muito, por sempre me apoiar e saber
compreender meus momentos difíceis, sendo amiga e companheira.
8
RESUMO
A Igreja Evangélica Assembléia de Deus, uma das representantes do
pentecostalismo clássico, é considerada uma das maiores entre as denominações que
compõe esse segmento no Brasil. Preservando suas tradições doutrinárias com um discurso
moral rígido, na área dos usos e costumes de santidade, surgindo assim divisões no seu
interior de grupos que não mais admitia essa tradição, constituindo outras igrejas com um
discurso menos rígido. Entre estas a Assembléia de Deus Betesda.
Procuro neste trabalho analisar e comparar o discurso teológico moral desenvolvido
pela Assembléia de Deus tradicional e o discurso da Assembléia de Deus Betesda,
representada pelo pastor Ricardo Gondim, que surgiu no âmbito da Assembléia de Deus
tradicional como uma missão e tornou-se uma igreja independente.
Minha conclusão é que a Assembléia de Deus Betesda transformou as tradicionais
concepções pentecostais dos usos e costumes de santidade em uma experiência concreta da
salvação baseada no caráter cristão de uma moral personalista, enquanto que Elinaldo
Renovato permaneceu na velha tradição moral essencialista na qual os usos e costumes de
santidade ainda é o caminho para manter o cristão fiel à santidade e a salvação eterna.
Palavras – chave: Assembléia de Deus, pentecostalismo, comportamento moral,
essencialista, personalista, salvação, usos e costumes.
9
ABSTRACT
The Evangelical Church Assembly of God, one of the representatives of the classic
pentecostalism, is considered one of the largest of this segment in Brazil. Preserving its
traditions doctrinaires with a rigid moral speech, in the area of the uses and habits of
holiness, appearing like this divisions in its interior of groups that not more admitted that
tradition, constituting other churches with a less rigid speech. Enter these Betesda's
Assembly of God.
I here aim to analyze and compare the moral theological speech developed by the
traditional Assembly of God and the one Betesdas´s Assembly of God, represented by the
minister Ricardo Gondim. It was initially a mission within the traditional Assembly of God
and and later became an independent church.
My conclusion is that Betesda's Assembly of God transformed the traditional
pentecostal conceptions about the uses and habits of holiness in a concrete experience of
salvation based on the Christian character of a personalist moral, while Elinaldo Renovato
remainded in the old essentialist moral tradition, which the uses and habits of holiness is
still the path to keep the Christian faithful to the holiness and to the eternal salvation.
Key – Words: Assembly of God, pentecostalism, moral behaviour, essencialist, personalist,
salvation, uses and habits.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
CAPÍTULO I
HISTÓRIA E CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIAL DAS ASSEMBLÉIASDE DEUS 20
1- BREVE HISTÓRIA DO PENTECOSTALISMO 20 1-1- O Início nos Estados Unidos 24 1-2- O Pentecostalismo no Brasil 27
2- A ASSEMBLÉIA DE DEUS NAS ONDAS DO PENTECOSTALISMO 33 2-1- A Origem 33
2-2- A Expansão 38 2-3- Os Desafios Contemporâneos 41
3- IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS BETESDA 51 3-1- A Origem 51 3-2- Trajetória de Ricardo Gondim e a Expansão da Igreja Assembléia
de Deus Betesda 55 3-3- A Organização da Igreja Assembléia de Deus Betesda 58
CAPÍTULO II
TEOLOGIA MORAL DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS 64
1- A MORAL CONSERVADORA DA ASSEMBLÉIA DE DEUS 65
2- TRANSIÇÃO E ORIGEM DE DOIS DISCURSOS TEOLÓGICOS MORAIS 75
3- TEOLOGIA MORAL DE ELINALDO RENOVATO DE LIMA 84 3-1- A Relação do Crente com o Mundo 87 3-2- Família e Igreja 90
3-3- A Interpretação Bíblica dos Usos e Costumes de Santidade 94
4- TEOLOGIA MORAL DE RICARDO GONDIM 99 4-1- Leitura Bíblica e Interpretação do Mundo 101
4-2- Interpretação dos Usos e Costumes de Santidade 106
11
CAPÍTULO III
MODELOS TEOLÓGICOS MORAIS E ANÁLISE DO
DISCURSO TEOLÓGICO 111
1- DOIS MODELOS DE MORAL 111 1-1- Moral Essencialista 117 1-2- Moral Personalista 123
2- O DISCURSO RELIGIOSO COMO ESTRUTURANTE DO CRENTE 131
3- DOIS MODELOS DE MORAL E UMA MESMA ARGUMENTAÇÃO RELIGIOSA 136
4- CONVERSÃO E COMPORTAMENTO MORAL 142
CONSIDERAÇÕES FINAIS 155
ANEXOS 161
1- Anexo I: Entrevista com Pastor João Eunilson de Jesus Caetano 1612- Anexo II: Entrevista com Pastor Ricardo Gondim 166
BIBLIOGRAFIA GERAL 180
E-mail do autor: [email protected]: (11) 4513-4962
12
INTRODUÇÃO
A escolha do tema apóia-se na constatação de que o fenômeno pentecostal vem
crescendo expressivamente na América Latina – em especial no Brasil –, e é cada dia mais
difícil definir e compreender esse fenômeno face à opacidade dos preconceitos associada ao
ímpeto de crescimento e diversificação que vem demonstrando, tanto em nível nacional
como internacional razão pela qual se apresenta como tema de grande interesse para
teólogos e cientistas sociais. No passado, era freqüente atribuir-lhe uma significação
genérica, de ser apenas um movimento de tradição protestante, fundado nos Estados Unidos
no início do século XX, formado por indivíduos que acreditavam na contemporaneidade
dos dons do Espírito Santo. Nos dias atuais, entretanto, essa significação soa por demais
simplista. A extrema heterogeneidade e a multiplicidade de feições assumidas pelas
agremiações e denominações religiosas, marcadas na prática por uma grande diversidade
teológica e ritual, adverte-nos para o perigo das generalizações. Limito-me, por isso, a
registrar algumas peculiaridades internas concernentes a apenas duas de suas
denominações: a Assembléia de Deus, ligada à Convenção Geral das Assembléias de Deus
no Brasil – CGADB, que surgiu em 1911 em Belém do Pará e se espalhou por todo o país,
e a Assembléia de Deus Betesda, fundada e organizada a partir de 1981 em Fortaleza, no
Estado do Ceará.
O estímulo para realizar tal pesquisa nasceu de minha própria experiência de vida.
Apesar de ter nascido em um lar católico praticante, minha família transitou pelo
candomblé e, por fim, quase todos os seus membros acabaram por se converter a uma
Igreja pentecostal sem expressão no Brasil. Em meu percurso acadêmico, quando cursava
13
Teologia na Faculdade Batista, fui convidado a lecionar em um seminário teológico de uma
Igreja da Assembléia de Deus ligada a CGADB, em 1991. Lá, deparei com um discurso
totalmente conservador e autoritário; os participantes não tinham liberdade para questionar
as doutrinas colocadas pelos pastores e pela própria convenção nacional que organiza as
Igrejas Assembléias de Deus. Meu dilema foi o de não poder ensinar algo diferente daquilo
que estava previsto pelo regimento de tal Igreja. O desejo de pesquisa cresceu ainda mais
no decorrer de meu trabalho como professor no ensino público, em 2001, lecionando a
disciplina de História e Ensino Religioso, quando deparei com grupos de alunos
evangélicos pentecostais que apresentavam uma doutrina confessional e demonstravam
uma certa resistência às aulas. Por meio das discussões sobre história, religião e cultura foi
possível perceber que havia algumas restrições na maneira de se comportar, de se vestir, de
vocabulário, e uma resistência a participar de certas festividades da escola. Estes alunos
fundamentavam a proibição de participar de festividades na experiência de um discurso
moral religioso e na leitura da Bíblia como verdade absoluta de Deus. Percebi que era hora
de desvendar este discurso que tanto atrai como, de certa forma também cria uma repulsa,
que faz com que alguns membros se rebelem contra as doutrinas impostas, provocando
rupturas e fazendo surgir novas Igrejas pentecostais. Todas essas questões acabaram me
encaminhando para a pesquisa.
A partir de constatações empíricas nas Igrejas Assembléias de Deus (a Tradicional1
e a Betesda), que preservam o pentecostalismo clássico e pertencem ao mesmo tronco
pentecostal, foi possível compreender como ocorrem as relações de poder na construção do
1 Usarei aqui a categoria “tradicional” para indicar que esta Igreja foi a origem de todas asAssembléias de Deus no Brasil, sofrendo cisões no decorrer do tempo e dando origem a outrosministérios, como o de Madureira, o Ministério do Ipiranga e a própria Betesda.
14
ideal religioso evangélico pentecostal, a saber, quais os limites na definição da moral na
relação do crente com o mundo. Na realidade, o que se pode perceber é que, na Igreja
Assembléia de Deus tradicional, a maior parte do grupo manifesta por meio da fé uma
obediência às doutrinas e ao discurso realizado pelo pastor. Pode-se observar também toda
uma literatura produzida por um setor da Igreja Assembléia de Deus tradicional, a CPAD –
Casa Publicadora das Assembléias de Deus, que contribui para a manutenção da estrutura
doutrinária, colocando em destaque alguns autores com seus livros sobre ética e moral
cristã e comentários nas revistas Lições Bíblicas das Escolas Dominicais.
Partindo desse ponto, começei a freqüentar os cultos das duas Igrejas e a fazer um
levantamento dos discursos pentecostais. Na Igreja Assembléia de Deus tradicional estes
discursos, pregados para pessoas simples e pobres da periferia, eram sensivelmente
carregados de atributos morais, e a leitura da Bíblia era apresentada de forma literal. Na
Igreja Assembléia de Deus Betesda, o discurso era diferente, mais contextualizado, liberava
o indivíduo das doutrinas legalistas voltadas para os usos e costumes de santidade – um
discurso dirigido predominantemente à classe média.
Em seguida, passei a analisar um grande número de trabalhos desenvolvidos na
sociologia da religião sobre o pentecostalismo. Pude perceber que a grande maioria dos
pesquisadores privilegia o chamado neopentecostalismo. O pentecostalismo foi visto, de
início, como periférico à sociedade urbana, onde se desenvolveu principalmente às custas
do crescente movimento migratório e da população marginalizada.
Ao perceber que vivemos em um mundo que passa por um processo de
transformações sociais e declínio das ideologias tradicionais e dos sistemas de valores, foi
15
possível observar que os indivíduos que freqüentam os cultos da Assembléia de Deus
tradicional ainda conservam uma doutrina voltada a exteriorização que são os “usos e
costumes de santidade”, procurando preservar fielmente a tradição do passado, quando aqui
se instalou com os primeiros missionários suecos. Por outro lado, a Assembléia de Deus
Betesda, com um discurso moderno e liberal, se preocupa com a transformação do caráter
do crente, fornecendo a ele a liberdade de participação nos cultos e no mundo. Esta Igreja
não só cresceu como também ingressou na sociedade de classe média.
A partir disso surgiu-me uma indagação: qual a razão teológica doutrinária que leva
duas denominações da mesma tradição pentecostal, ou seja, Assembléia de Deus tradicional
e Assembléia de Deus Betesda, a ter posturas morais tão divergentes ?
Parti primeiramente da hipótese de que o discurso teológico moral da Igreja
Assembléia de Deus tradicional deriva da convicção de possuir com exclusividade a
verdade divina revelada, que constitui o conceito básico da moral essencialista, na qual os
atos são bons e maus em si, proporcionando um moralismo como parte essencial para a
santidade. A ordem estabelecida não pode ser quebrada porque a moral é configurada
dentro do grupo para assegurar não somente os limites, mas, também, para ideologicamente
manter o poder. A Igreja Assembléia de Deus Betesda, ao contrário, mantém um discurso
teológico moral seguindo uma visão personalista, que ocupa um lugar central na busca de
uma maior autonomia e liberdade dos indivíduos perante as instituições. Segundo este
princípio, cada pessoa deve ser livre para escolher os próprios objetivos, significando o
reconhecimento do valor intocável do indivíduo enquanto este se coloca como pessoa,
destacando-se, portanto, por uma moral concreta da experiência religiosa.
16
Para o desenvolvimento dessa dissertação, serão analisados os dois ministérios
evangélicos: a Assembléia de Deus tradicional, que nasceu em Belém do Pará em 1911 e é
ligada à Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil; e a Assembléia de Deus
Betesda, liderada pelo pastor Ricardo Gondim Rodrigues, em São Paulo. Será analisada,
respectivamente, a literatura desenvolvida por essas duas denominações, das quais irei
destacar, da primeira, as obras: “Ética cristã: confrontando as questões morais do nosso
tempo”2 e “Aprendendo diariamente com Cristo: como viver a vida cristã em um mundo
em conflito”3 ambas publicadas pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus – CPAD,
do autor Elinaldo Renovato de Lima, que é pastor e integra o ministério da Assembléia de
Deus no Rio Grande do Norte, e é também comentador das Lições Bíblicas Dominicais das
Assembléias de Deus e professor universitário, bacharel em Ciências Econômicas. Ele
representa a ala mais radical da Assembléia de Deus tradicional.
Farei uma correlação desse discurso com a literatura desenvolvida pela Igreja
Assembléia de Deus Betesda, em São Paulo, que é constituída por escritos do pastor
Ricardo Gondim Rodrigues, publicados pelas editoras Abba Press e Mundo Cristão,
destacando-se o livro: “É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe”.4 Neste livro,
o autor analisa as condutas permitidas e proibidas, os rigores legalistas e os usos e
costumes, levantando, assim, uma crítica aos setores mais tradicionais do pentecostalismo,
entre eles a própria Assembléia de Deus tradicional.
2 LIMA, Elinaldo Renovato de. Ética cristã: confrontando as questões morais do nosso tempo. Riode Janeiro: CPAD, 2002.3 Idem. Aprendendo diariamente com Cristo: como viver a vida cristã em um mundo em conflito.Rio de Janeiro: CPAD, 2003.4 GONDIM, Ricardo. É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe. São Paulo: MundoCristão, 2001.
17
A pesquisa se limita a fazer uma análise das obras citadas para, então, confrontar as
doutrinas morais elaboradas por esses dois grupos, analisando a linguagem e a interação
com o público, entre outros aspectos. Para tanto, foram realizadas entrevistas com pastores
das respectivas Igrejas, entre as quais se destaca a do pastor João Eunilson de Jesus
Caetano, da Assembléia de Deus tradicional do município de Mauá - São Paulo, e a do
pastor Ricardo Gondim, líder da Betesda. Foi possível, desse modo, obter uma visão mais
abrangente do tema em questão.
Espero que a pesquisa possa contribuir significativamente para um estudo do
fenômeno pentecostal e das Igrejas Assembléias de Deus, apontando o moralismo como a
especificidade de sua experiência religiosa, ressaltando as diferenças entre as duas
denominações e possibilitando o acesso a ambos os discursos que trazem dois modelos de
moral religiosa: o essencialista e o personalista.
Ricardo Gondim, que a partir do ano de 1982 passou a ser presidente da Assembléia
de Deus Betesda e não a considera uma dissidência da Assembléia de Deus tradicional,
propaga um discurso livre do conservadorismo, no qual, segundo ele, a censura e a
proibição não produzem santidade, mas conduzem ao pecado; já o autor Elinaldo Renovato
tem como preocupação principal a manutenção do discurso nas tradições dos usos e
costumes – fator essencial para a salvação e a santidade.
A proposta dessa pesquisa é analisar o discurso moral das Igrejas Assembléias de
Deus no processo de salvação e santidade no mundo. Trata-se de um esforço para investigar
com vitalidade dois modelos de discursos teológicos morais para desvendar quais
elementos são destacados no processo de compreensão do fenômeno pentecostal como
18
experiência religiosa, que não se restringe apenas à função de adequação ou ajustamento
social, nem tampouco, à de válvula de escape. Parti do princípio de que, embora existam
elementos alienantes, ela produz um sentimento singular para a existência das pessoas
ligadas a esse segmento religioso, podendo gerar esperança em suas vidas. Para tanto, no
primeiro capítulo, apresento um levantamento da história do pentecostalismo, mostrando
como surgiu a Igreja Assembléia de Deus tradicional em solo brasileiro, sua expansão e seu
processo de nacionalização, a preocupação com sua identidade estruturada na expressão dos
usos e costumes de santidade, bem como sua divisão, que deu origem a outros ministérios,
entre eles, a Igreja Assembléia de Deus Betesda aqui analisada.
No segundo capítulo, procuro conhecer o conservadorismo como matriz teológica
das Assembléias de Deus, no qual o pentecostalismo clássico, doutrina que estrutura tais
Igrejas, herdou do protestantismo seu puritanismo e seu pietismo, resultando no dualismo
histórico, no moralismo e no imediatismo que tipifica a relação dos fiéis com Deus.
Trabalhei os conceitos de sociedade tradicional e de sociedade moderna para entender o
processo de transição e a origem de dois discursos teológicos morais nas Assembléias de
Deus: o de Elinaldo Renovato de Lima, que defende a tradição dos usos e costumes como
essencial para a santidade; e o discurso de Ricardo Gondim, que se distingue por uma moral
concreta da experiência religiosa, na qual a santidade não é resultado da observação às
normas dos usos e costumes, mas sim, da transformação do caráter do indivíduo que possui
uma autonomia maior diante da instituição religiosa.
O terceiro capítulo de minha dissertação visa analisar os modelos teológicos da
moral que permeiam os discursos de Elinaldo Renovato e de Ricardo Gondim: o da moral
essencialista e o da moral personalista, respectivamente. Ressalto que os discursos
19
elaborados pelos dois pastores, embora de teologias morais diferentes, baseiam-se no
mesmo tipo de argumentação religiosa que tem a Bíblia como padrão de autoridade,
imbricados nas relações de poder e de estrutura da vida do crente para que realize sua
trajetória no mundo em busca da salvação.
20
CAPÍTULO I
HISTÓRIA E CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIAL DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS
Neste primeiro capítulo procuro compreender como surgiu e se desenvolveu o
pentecostalismo em solo norte-americano. Como se deu a sua chegada ao Brasil e quais as
suas características doutrinárias, bem como o perfil social daqueles que aderem a essa
doutrina. Elaborei, portanto, um histórico da Igreja Congregação Cristã, a primeira a trazer
o pentecostalismo, e especialmente da Igreja Assembléia de Deus, seu crescimento diante
das crises sociais e econômicas, sua preocupação em manter sua identidade em uma
sociedade de constante transformação, enfrentando as contradições diante de sua realidade.
Analisarei também a Igreja Assembléia de Deus Betesda, que de início era uma
missão da Igreja Assembléia de Deus tradicional com o objetivo de evangelizar
universitários e profissionais liberais, mas que alcançou um crescimento fenomenal,
tornando-se uma Igreja independente com um discurso moral diferente de sua Igreja de
origem.
1 – BREVE HISTÓRIA DO PENTECOSTALISMO
O pentecostalismo é conhecido pela importância que vários segmentos evangélicos5
5 Para Ari Pedro Oro, “o termo evangélico é genérico e cobre o conjunto das igrejas protestantes,isto em razão da importância atribuída ao Evangelho. O campo evangélico histórico é formadopelas tradicionais denominações resultantes da Reforma protestante iniciada na Alemanha porMartinho Lutero, em 1517. As principais são as luteranas, calvinistas, batistas, presbiterianas,anglicanas e metodistas. O campo evangélico pentecostal, derivado especialmente do metodismo,iniciou-se nos Estados Unidos em 1906, chegando ao Brasil em 1910 (com a Congregação Cristã doBrasil e a Assembléia de Deus)”. ORO, Ari Pedro. Avanço pentecostal e reação católica.Petrópolis: Vozes, 1996, p.19.
21
dão ao fato narrado na Bíblia no livro de Atos dos Apóstolos, o evento marcado pela
efusão do Espírito Santo quando os apóstolos estavam em Jerusalém reunidos no cenáculo,
onde segundo os pentecostais, aguardavam a confirmação da promessa de Jesus de que
“enviaria o Consolador” e este desceria sobre eles anunciando as promessas de Deus:
Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar;de repente, veio do céu um ruído semelhante ao soprar de impetuosovendaval e encheu toda a casa onde estavam. E apareceram línguas de fogo,que se distribuíram e foram pousar em cada apóstolo. Todos ficaram cheiosdo Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, segundo o Espíritolhes concedia que falassem.6
Pentecostal deriva de “Pentecostes”.7 As igrejas que hoje afirmam reviver esse
episódio do “derramamento do Espírito Santo” são chamadas de pentecostais. Através
desse conceito, tende-se a classificar de forma generalizada todos os grupos religiosos cuja
prática litúrgica ou organizacional se distancia da Igreja Católica ou do Protestantismo
histórico, porém, há uma certa dificuldade em atribuir às igrejas pentecostais essa
característica, dado seu caráter multiforme em relação à doutrina e ao comportamento.
Mesmo assim, destaco algumas características que classifico como generalizantes:
O falar em línguas ou glossolalia, como sinal da atuação do Espírito Santo sobre o
fiel, no qual é reconhecida a atuação direta do poder8 de Deus sobre os fiéis na
6 BÍBLIA SAGRADA. Atos dos Apóstolos. 2: 1-4.7 O termo “pentecostes” surgiu no Antigo Testamento como uma ordenança de Deus ao povo deIsrael. Tratava-se de uma festa de alegria, também conhecida por festa das primícias da produção(eminentemente agropastoril), fazendo parte do conjunto de três festas anuais dos judeus: Páscoa,Pentecostes e Tabernáculos – conforme relatos Bíblicos de Deuteronômio – 16: 9-12; Êxodo – 23:14-15; 34-18; e Levítico – 23: 4-8.8 Antônio Gouveia Mendonça, escrevendo a respeito da “marginalização social” e do “misticismono pentecostalismo”, assegura que a experiência espiritual do dom de línguas, característica doêxtase pentecostal, é uma recuperação do poder perdido socialmente, uma vez que sua relação coma sociedade abrangente é de subordinação e marginalização. Como essa recuperação do poder nãose estende à sociedade, porque não é por ela reconhecida, ela se manifesta no reconhecimento da
22
atualidade. Para os pentecostais, o batismo com o Espírito Santo9 é uma das
promessas de Deus para todos os crentes, tornando assim, uma segunda experiência
que têm com Cristo, sendo a primeira a conversão para obter a salvação. A
experiência do batismo com o Espírito Santo é importante para os pentecostais; ela
fornece ao crente o poder para testemunhar a respeito de Jesus Cristo e de seu
Evangelho, e também, segundo eles, o poder sobre a carne, sobre o mundo e sobre o
Diabo.
Rígidas normas morais e éticas, em uma busca incessante de santidade. Para os
pentecostais, o pecador vem à igreja e traz consigo todos os costumes do mundo,
tais como vícios, linguagem imprópria, superstições, natureza impulsiva, atração
para o sexo ilícito, roupas indecentes; ele tem, enfim, tudo o que é natural a um
mundo de pecado. Por isso, segundo os pentecostais, são necessárias normas rígidas
de santificação para uma mudança de comportamento em todos os sentidos.
Uma forte rede de relacionamento interno, afirmando a idéia de família da fé. Para
os pentecostais, não importa o nome da igreja ou placa, importa apenas a doutrina
que se prega em seu interior, que irá propiciar uma grande irmandade entre as
igrejas e uma unificação no cumprimento de um crente para com o outro; a
expressão mais abrangente neste cumprimento é a saudação: “a paz do senhor,
irmão”.
Abordagem milenarista,10 na qual as instituições do presente se encontram
corrompidas e somente à espera escatológica da volta de Jesus e seu reino que irá
trazer de volta a normalidade, tendo como conseqüência o abandono dos valores do
congregação através de prestígio e acesso às lideranças. Cf., MENDONÇA, A. G. & VELASQUESFILHO, P. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 247.9 Em minha pesquisa empírica pude notar que, nos discursos realizados pelos pentecostais até osdias de hoje, as expressões “batismo do Espírito Santo”, “batismo no Espírito Santo” e “batismocom o Espírito Santo”, são geralmente comuns, referindo-se ao fenômeno ocorrido no livro Atosdos Apóstolos 2:1-4. Lanço mão, portanto, do termo “batismo com o Espírito Santo”, expressãomais usada tanto no Manual de Doutrinas das Assembléias de Deus no Brasil como na literatura daprópria Assembléia de Deus editada pela CPAD. Cf., CGADB, Conselho de Doutrinas da. Manualde doutrina das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 48.10 MENDONÇA, Antônio G. & VELASQUES FILHO, op. cit., p.125.
23
mundo presente. Essa promessa é a que mais tem alimentado as igrejas pentecostais.
Tomando como base várias passagens bíblicas do Antigo e do Novo Testamento,
afirmam que haverá um arrebatamento da Igreja e a implantação do milênio, e que o
mundo passará por grande tribulação sendo governado pelo anticristo. Para os
pentecostais, a segunda vinda de Jesus resultará no grande julgamento final. Essa é,
portanto, uma das perspectivas mais assustadoras com respeito ao futuro daqueles
que não fazem parte desse movimento, pois, para estes, segundo os pentecostais,
haverá o juízo final; os fiéis, ao contrário, aguardam o fato com alegria, pois
reinarão com Cristo.
Liderança carismática, liberdade para inovação no grupo, batismo com o Espírito
Santo, curas, manifestações de dons, livramentos de perseguições, revelações e
fundação de igrejas.
Grande crescimento entre adeptos de baixa renda, embora haja também grande
número de cismas e deslocamentos interdenominacionais, e ainda, nos últimos anos,
uma elevação da faixa de renda da clientela atraída.
O pentecostalismo sempre se caracterizou por ser uma doutrina religiosa ligada aos
oprimidos e marginalizados11 que se relacionam diretamente com Deus, que produzem seus
bens simbólicos, e que não se estruturam como um corpo sacerdotal hierarquizado segundo
os moldes da Igreja Católica, da qual herdaram alguns elementos rituais e de onde – mesmo
que ainda paire alguma relutância em aceitar o fato – provém a grande maioria de seus
adeptos: “Considerando-se que, nos últimos anos, o pentecostalismo é a face mais evidente
11 Cf., CAMPOS JR., Luís de Castro. Pentecostalismo: sentidos da palavra divina. São Paulo:Ática, 1995, p. 23; Cf., CORTEN, André. Os pobres e o Espírito Santo: o pentecostalismo noBrasil. Petrópolis: Vozes, 1996.
24
e agressiva da expansão dos cultos não católicos, não há dúvida que os temores de um
proselitismo anticatólico se voltam para o pentecostalismo”.12
Para Beatriz Muniz de Souza, a doutrina pentecostal "constitui uma das maneiras
pelas quais as pessoas compreendem a realidade e encontram quadros de referência para a
ação na vida prática”13. De alguma forma, ela orienta a conduta dos indivíduos mesmo nos
aspectos mais primários. “A ‘moral puritana’, preconizada pela liderança e reforçada
através dos mecanismos de coesão do grupo, fornece à comunidade religiosa indicações
precisas sobre modos de agir e relacionamento social para todas as ocasiões”.14
1-1 – O Início nos Estados Unidos
O resgate de suas origens, entretanto, é uma tarefa árdua, face às variadas versões
que se contrapõem. Sob o ponto de vista histórico, o movimento pentecostal
contemporâneo tem sua origem na aridez da vida religiosa que, conjugada ao cerceamento
do campo e às migrações urbanas, retrata a conjuntura de transformações sociais que
acompanhou a formação do proletariado inglês15, no final do século XVIII. Esse contexto
foi propício para o surgimento de numerosos movimentos de reavivamento religioso do
12 VALLE, Rogério & SARTI, Ingrid. O risco das comparações apressadas. In: ANTONIAZZI, A.Nem anjos, nem demônios. Petrópolis: Vozes, 1991, p.18.13 SOUZA, Beatriz Muniz. A experiência da salvação: pentecostais em São Paulo. São Paulo:Livraria Duas Cidades, 1969, p. 163.14 Ibid., p. 163.15 E. P.Trompsom mostra em sua obra que, durante muitos anos, o ingresso na comunidademetodista adquiriu uma conotação de caráter fetichista; para o trabalhador migrante, issopossibilitava o acesso a uma nova comunidade que prestava um auxílio mútuo entre seus membros.Cf., TROMPSOM, E. P. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1987. Eric Hobsbawm, ao discutir a formação da classe operária inglesa e asseitas religiosas, salienta que as seitas normalmente se ocupavam dos problemas do proletariado,iludindo-os ou solucionando-os não como problemas de classes, mas de indivíduos ou de grupos
25
tipo milenarista,16 que tiveram por mérito levar os homens à aceitação do conceito
wesleyano17 de perfeição cristã como uma segunda obra da graça distinta da salvação,
convicção sustentada por protestantes puritanos migrados para os Estados Unidos, aos
quais aderiram os pregadores operários que interpretavam a Bíblia como autodidatas.
Nesse empreendimento destacaram-se os norte-americanos Charles Parham que, ao
sintetizar a doutrina em torno da crença de ser a glossolalia, a evidência do batismo com o
Espírito Santo, concedeu identidade própria ao pentecostalismo; e seu discípulo W. J.
Seymour, batista, que atribuiu a Deus uma terceira bênção, o batismo com o Espírito Santo.
Pregando em Los Angeles, no início da década de 1900, no Oeste americano, região em
crescimento demográfico acelerado, com minorias étnicas e ethos de fronteira, mesmo
sendo ele negro, logo atraiu os brancos, formalizando o movimento pentecostal com ênfase
no emocionalismo, no espontaneísmo e na doutrinação em detrimento à reflexão teológica.
escolhidos de eleitos. Cf., HOBSBAWM, Eric J. Os trabalhadores: estudos sobre a história dooperariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 37-49.16 Para Prócoro Velasques Filho, a crença na época futura, denominada milênio, se baseia na leituradescontextualizada da Bíblia. Mesmo assim, gerou duas tendências: o pós-milenismo, recessivo nomeio protestante, que afirma que Cristo estabelecerá seu reino na Terra após o final do períodochamado milênio; e o pré-milenismo, prevalecente entre os fundamentalistas, que aguardam oretorno de Cristo para antes do milênio. Cf., MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P. op.cit., p. 125.17 João Wesley foi responsável pelo desenvolvimento da teologia de conversão individual, originadade uma variação do calvinismo, dominante durante a época missionária. “A salvação consistia naconsciência de culpa seguida de ato voluntário de aceitação da oferta de salvação, sucedido pelajustificação e pela santificação progressiva. A fé era determinada pela experiência pessoal eemotiva”. Ibid., p. 32. A ênfase da teologia de Wesley está na doutrina da perfeição cristã, ou seja,da completa devoção a Jesus Cristo expressa em todas as ações do indivíduo, exigindo-lhe totalsubmissão à sua vontade. Para André Corten, a contribuição de Wesley não é principalmentedoutrinal. Ela reside na sua concepção da religião como experiência do encontro humano com Deus,reabrindo aos sentimentos um espaço dentro da fé. O metodismo, portanto, torna-se aberto, ummovimento de evangelização que quer compartilhar a “santa emoção”. O metodismo é proselitista;o apelo à santificação é um apelo à participação contínua, que não se limita ao momento de fervorda justificação e da conversão. É um método de recurso à prece, um método de uso da emoção. Cf.,CORTEN, André, op. cit., p. 50-1.
26
Aos primeiros tempos de convivência entre negros e brancos, adveio a separação
ditada pela difícil integração racial, comum na formação social norte-americana, e o
movimento religioso, originalmente concebido como uma renovação das igrejas
protestantes existentes, começou a se estruturar em grupos independentes divididos por
questões doutrinárias. Antes que a glossolalia assumisse a centralidade da teologia
pentecostal e permitisse sua difusão, o adventismo – a expectativa da volta eminente de
Cristo – surgiu como elemento que norteou os primeiros passos do movimento em direção
à sua divulgação, em vez de se preocupar com a estruturação das Igrejas:
A Rua Azusa transformou-se em poderosa fogueira divina, onde centenas demilhares de pessoas de todos os pontos da América, ao chegarem atraídaspelos acontecimentos e para ver o que estava se passando ali, eram batizadascom o Espírito Santo, e ao retornarem para suas cidades levavam essa chamaviva que alcançava também outras pessoas.18
As reuniões organizadas por Seymour na Rua Azusa, em Los Angeles, eram
freqüentadas em sua maioria por negros. O culto tinha como característica os cânticos
alegres e informais e as orações em voz alta, simultaneamente.
Esse fenômeno, ocorrido em 1906, na rua Azusa, constituiu o ponto de partida do
movimento pentecostal que se espalhou pelos Estados Unidos e que hoje atinge vários
continentes. Embora tenha surgido no Oeste norte-americano, foi em Chicago, cidade
industrial com um quadro social marcado pelas precárias condições de trabalho, pela
violência urbana e pelo forte movimento operário, que o pentecostalismo ganhou
impulso nos primeiros anos principalmente entre os imigrantes, como Luigi Francescon,
presbiteriano e fundador da Congregação Cristã em solo brasileiro, em 1910; Daniel Berg e
18 CONDE, E. História das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2000, p. 21
27
Gunnar Vingren, suecos e batistas, que chegaram ao Brasil para fundar a Igreja Pentecostal,
que hoje conhecemos como Assembléia de Deus, em novembro de 1910.
Francescon, Vingren e Berg, em Chicago, foram influenciados por William H.
Durham, cuja peregrinação teológica o havia levado do meio batista para o movimento de
santificação. A missão na Rua Azusa, em Los Angeles, estava exercendo profunda força no
mundo protestante. Ela funcionava como um potente ímã – atraindo líderes de diversos
segmentos do protestantismo, desejosos de conhecer o que ali estava ocorrendo –, e como
centro irradiador da mensagem pentecostal, enviando grupos para diversas localidades no
país.
1-2 – O Pentecostalismo no Brasil
Em relação ao Brasil, o fenômeno pentecostal data da primeira década do século
XX, quando surgiu a Congregação Cristã, em 1910, em São Paulo, fundada por Luigi
Francescon, nascido em família católica na província de Údine, Itália, em 1866. Francescon
imigrou para os Estados Unidos, chegando à cidade de Chicago em 1890, convertendo-se
ainda jovem ao protestantismo. Foi membro-fundador da Igreja Presbiteriana Italiana, em
Chicago. Em 1903, foi batizado por imersão, desligando-se dos presbiterianos. Reuniu-se
com um grupo holiness até descobrir a mensagem pentecostal na igreja do Pastor William
H. Durham. Após receber a experiência do batismo com o Espírito Santo, recebeu uma
profecia de Durhan para que levasse o pentecostalismo à colônia italiana.
Em março de 1908, diz Francescon “o Senhor fez saber a mim e ao irmão G.
Lombardi que deixássemos o nosso trabalho material para nos dedicarmos inteiramente à
28
obra que Ele nos havia preparado; ambos nos encontrávamos em má situação financeira e
cada um com seis filhos menores.”19 A obra era a evangelização do mundo italiano em
geral, e assim, puseram-se a viajar – Francescon pelos Estados Unidos e Lombardi para a
Itália. Juntos, novamente em Chicago, receberam em 1909 uma “santa revelação”,
dirigindo-os à Argentina e depois ao Brasil. Sua missão era iniciar um trabalho pentecostal.
Em março de 1910, Francescon e Lombardi chegaram a São Paulo. O início não
fora promissor, e, pouco depois, Lombardi voltou para a Argentina e Francescon foi a
Santo Antônio da Platina, no Paraná, para visitar um italiano que conhecera em São Paulo.
Lá, conseguiu conversões. Voltando a São Paulo, em junho de 1910, pregou em italiano na
Igreja Presbiteriana do Brás, provocando um cisma na igreja. Logo, formava a Igreja
Congregação Cristã, com 20 membros, compostos de presbiterianos, alguns batistas,
metodistas e alguns católicos.20 Permaneceu com esses membros até setembro, quando
partiu para o exterior. Porém, com suas freqüentes visitas e com o patriarcalismo da colônia
italiana que foi a base inicial, ele conseguiu estruturar a Igreja. Quando chegou ao Brasil,
Francescon tinha 44 anos e fez sua última visita ao país com 82 anos, morrendo em
Chicago, com 98 anos de idade.
A Congregação Cristã teve seu início em São Paulo, e o seu desenvolvimento deu-
se primordialmente entre imigrantes italianos e descendentes. Sua expansão geográfica
seguiu a trilha do café, que havia empregado largamente a mão de obra imigrante, e que
havia facilitado a penetração do presbiterianismo no interior de São Paulo e de Minas
19 FRANCESCON, L. Histórico da obra de Deus, revelada pelo Espírito Santo, no século atual. 4ªed., São Paulo: 1977, p.17-8.20 Ibid., p. 24.
29
Gerais. Estabeleceu-se expansivamente nas dinâmicas áreas cafeeiras do interior de São
Paulo, do sul de Minas Gerais e do oeste do Paraná. Ela já foi considerada a maior igreja
pentecostal do Brasil, sendo deixada para trás pela Assembléia de Deus no fim dos anos de
1940. Hoje, seu tamanho é inexato, sendo seu crescimento experimentado com maior
intensidade nas regiões interioranas onde a divulgação se dá com maior facilidade e sem
necessidade de uma técnica mais aperfeiçoada.
O pentecostalismo brasileiro, desde a sua origem, seguiu o mesmo modelo da matriz
norte-americana, com ênfase no batismo com o Espírito Santo, no dom de falar línguas
estranhas e no dom de profecias, além do estímulo à participação emocionada e espontânea
nos rituais, no proselitismo religioso e na rigidez moral. Sua inserção deu-se, entretanto,
não pela via da postura reivindicatória exercida na prática do evangelho social dos negros,
vítimas do preconceito racial do sul dos Estados Unidos, mas por dissidentes brancos,
oriundos de áreas de imigração com grande influência de outras culturas – a sueca, por
exemplo –, dissociados de qualquer compromisso político e voltados para um projeto
exclusivamente religioso, calcado na experiência da oração e dos cultos dos brancos
americanos – fato a ser considerado na análise sobre as práticas religiosas e sociais dos
crentes da Assembléia de Deus. O “batismo com o Espírito Santo, crença no poder de Deus,
crença e esperança no milênio, cultos espontâneos e cheios de devoção, formavam um
conjunto fechado e sem abertura para o social, já no início do pentecostalismo brasileiro”.21
Caracteristicamente urbano, o pentecostalismo tem sua base social na população de
baixa renda, ou seja, a população pobre, social e culturalmente excluída em relação à
21 ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostalismo: Brasil e América Latina. Petrópolis: Vozes, 1995,p. 24.
30
sociedade norte-americana de onde o movimento pentecostal partiu. Os países nos quais o
pentecostalismo penetrou, quase sempre com características de desigualdades sociais,
situou-se principalmente na periferia dos grandes centros22 e, de acordo com as
estatísticas,23 inseriu-se no processo de modernização que, a partir da segunda metade do
século XX, veio se acelerando nas formações sociais capitalistas periféricas.
O contexto de mudanças e a negação de velhos valores pela premência de adoção de
novos padrões de comportamento, que acompanharam os movimentos migratórios
campo/cidade, favoreceram a expansão pentecostal. Não se descarta sua presença também
no ambiente rural, uma vez que, em diferentes situações, o migrante já chega à cidade
convertido. Considera-se apenas que a religião, ao canalizar a emotividade e a
espontaneidade, propicie condições para a emergência de um espaço religioso de salvação
pelo Espírito Santo que se contrapõe à falta de um plano sócio-político. “O Espírito Santo
santificaria os crentes, o poder de Jesus curaria os males dos brasileiros pobres. Por que
então iriam eles interessar-se em mudar a nossa sociedade se tinham a Jesus como médico
onipotente dos males físicos e mentais?”24
Nos primeiros trabalhos sobre o pentecostalismo, nota-se que os crentes encontram-
se na “camada pobre da população”.25 Francisco Cartaxo Rolim,26 em seu estudo clássico,
apoiou-se em uma amostra de 1.160 entrevistados para mostrar que os pentecostais
22 Cf., CORTEN, André, op. cit., p.70.23 Cf., ROLIM, F. C., op. cit.; Cf., CORTEN, A., op. cit.; JARDELINO, José Rubens L. Asreligiões de espírito. São Paulo: ISER/CEPE, 1994.24 ROLIM, F. C., op. cit., p. 25.25 NOVAES, Regina Reyes. Os escolhidos de Deus, pentecostais, trabalhadores e cidadania. SãoPaulo: Marco Zero, 1985, p. 1626 ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil, uma interpretação socioreligiosa. Petrópolis:Vozes, 1985, p. 169-181.
31
provinham dos meios pobres.
Pesquisas quantitativas realizadas pelo Instituto Superior de Estudos da Religião –
ISER – confirmam a visão geral de que o pentecostalismo é uma opção feita pelos pobres.
Mostram que os pentecostais concentram-se nas faixas de mais baixa renda e de menor
escolaridade e que suas igrejas proliferam nos bairros mais precários, ou seja, na periferia
dos grandes centros, geralmente onde o braço do Estado não alcança, portanto, lugares
longínquos e desassistidos pelos poderes públicos.27
Embora não houvesse dúvidas quanto à condição social dos pentecostais na
literatura acadêmica, praticamente inexistiam pesquisas quantitativas comprovando que o
pentecostalismo cresce nos meios pobres, atraindo preferencialmente os estratos sociais que
vivem em situação de marginalidade social. As pesquisas trazem uma comprovação da
baixa renda e escolaridade dos crentes pentecostais revelada nas pesquisas do ISER. A
pesquisa “Novo Nascimento”, realizada pelo ISER na região metropolitana do Rio de
Janeiro, em 1994, constatou que 57% dos pentecostais recebiam até dois salários mínimos;
32%, entre dois e cinco; e apenas 11% ganhavam mais de cinco salários mínimos (Gráfico
1). Quanto à escolaridade, 40% tinham menos de quatro anos de estudo; 34% entre cinco e
oito anos; e 26% nove anos ou mais de formação escolar (Gráfico 2).28 Quanto maior a
escolaridade do fiel, maior a probabilidade de ele ter nascido e crescido em um lar
27 Cf., FERNANDES, R. C. Governo das almas: As denominações evangélicas no Grande Rio. In:ANTONIAZZI, Alberto. Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo.Petrópolis: Vozes, 1994, p.163-203.; Cf., FERNANDES, R. C. Novo nascimento: os evangélicosem casa, na igreja e na política. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 23-4. Cf., PIERUCCI, A. F.;PRANDI, R. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e política. São Paulo:Hucitec, 1996, p. 211-238.28 Cf., FERNANDES, R. C., op. cit., p. 23.
32
evangélico. Isso significa que a evangelização pentecostal revela-se mais bem-sucedida nos
segmentos menos escolarizados da população.29 A renda e a escolaridade do conjunto dos
evangélicos eram muito inferiores às da população em geral. Como os pentecostais tinham
renda e escolaridade mais baixas que a média evangélica, seu contraste com a população
mostrou-se ainda mais dramático.
Renda entre os Pentecostais
11%32%
57%
recebiam atédois saláriosmínimosrecebiam entredois e cincosalários mínimosrecebiam maisde cinco saláriosmínimos
(Gráfico 1) Fonte: Pesquisa Novo Nascimento - ISER - 1994
Escolaridade entre osPentecostais
26%
34%
40%
menos de quatroanos de estudo
entre cinco e oitoanos de estudo
nove anos oumais deformação
(Gráfico 2) Fonte: Pesquisa Novo Nascimento - ISER - 1994
29 Ibid., p. 24.
33
A luta no cotidiano contra a miséria, por melhores condições sociais, faz com que
um grande número de pessoas pertencentes à classe pobre procure a igreja que tenha um
discurso de consolo e de promessas. Pode-se levantar, portanto, a hipótese de que nesse
estado de emoção, dá-se à ocasião de submetê-los ao poder do discurso moral.
2 – A ASSEMBLÉIA DE DEUS NAS ONDAS DO PENTECOSTALISMO
2-1 – A Origem
Mesmo sendo difícil de classificar, considerando-se a diversidade de situações, é
possível estabelecer um consenso no sentido de incluir a Assembléia de Deus entre os
movimentos evangélicos do pentecostalismo clássico,30 atribuindo-lhe, dadas as suas
condições de institucionalização, sem prejuízo do ímpeto expansionista que lhe é
característico, a conceituação de Igreja.
Entende-se por Igreja uma comunidade local, regional ou nacional, com ummínimo de estabilidade, com certa liderança burocrática razoavelmenteestabelecida e com corpo de doutrinas mais ou menos delineado, situadoacima das vontades individuais.31
30 Antônio Mendonça Gouveia utiliza uma tipologia que obedece ao conceito de ramo ou famíliagenealógica protestante. Cf., MENDONÇA, A. G. Um panorama do protestantismo brasileiro atual.In: LANDI, L. Tradições religiosas no Brasil. Rio de Janeiro: Cadernos do ISER, nº 22, 1989. p.43-44. Paul Freston, citando a classificação do CEDI, utiliza o critério de transplante, antiguidade eteologia. Ambos atribuem à Assembléia de Deus a classificação de “pentecostalismo clássico”. Cf.,FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Campinas:(Tese de Doutorado), UNICAMP, 1993, p. 17. José Bittencourt Filho utiliza a mesma classificação,incluindo ainda os grupos de “cura divina” e os “neopentecostais” ou “pentecostalismo autônomo”.Estes também são referidos como neodenominacionais por não estarem comprometidos com amatriz teológica protestante. Cf., BITTENCOURT FILHO, José. Pentecostalismo, suasterminologias e classificações. In: SOUZA, Beatriz Muniz (Org.). Sociologia da religião no Brasil:revisitando metodologias, classificações e técnicas de pesquisa. Palestra proferida no seminário: Opentecostalismo em debate. PUC/SP, 1996. O termo “pentecostalismo clássico” refere-se às igrejasoriginárias do movimento pentecostal dos Estados Unidos, no início do século XX, de origemmissionária norte-americana, por exemplo, a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã.31 BRANDÃO, C. R. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.109. Brandão classifica aAssembléia de Deus como “igreja de mediação” por situar-se na fronteira entre a religião erudita e a
34
A origem das Assembléias de Deus no Brasil está ligada ao movimento de
reavivamento na América do Norte, deflagrado por volta de 1906, especialmente com o
movimento da Rua Azusa.
Quase que simultaneamente à entrada de Luigi Francescon no sul do país, chegaram
ao Brasil, vindos dos Estados Unidos, os missionários Daniel Berg e Gunnar Vingren, de
origem sueca, que à semelhança de Francescon também receberam profecias que os
trouxeram ao Norte do Brasil, vindo a implantar, em 1911, o pentecostalismo na capital do
Pará.
Gunnar Vingren nasceu em uma região do Sudoeste da Suécia, em 1879, filho de um
jardineiro batista. Teve de interromper sua educação escolar com 11 anos de idade.
Trabalhou como jardineiro até 1903, quando seguiu a trilha de parentes para os Estados
Unidos. Teve vários empregos manuais e freqüentou uma Igreja Batista sueca.
Possivelmente com a ajuda financeira desta, Vingren estudou no seminário da
denominação, em Chicago. Em seguida, pastoreou em Igrejas Batistas. Nesse período,
tornou-se pentecostal e pentecostalizou a igreja que pastoreava.
Foi nesse tempo que conheceu Daniel Berg, que também era do sudoeste da Suécia,
filho de um líder batista que havia emigrado aos 18 anos de idade. Nos Estados Unidos,
especializou-se em fundição de aço. Voltando à Suécia, em 1908, descobriu que um amigo
de infância havia se tornado pentecostal. Ele era Lewi Pethrus, posteriormente líder do
movimento pentecostal sueco. Pethrus, pastor de ovelhas e depois sapateiro, havia perdido
popular, nas quais os socialmente subalternos têm participação, ao passo que, nas pequenas seitas,tem presença o dirigente. Nesse tipo de igreja, a conquista de respeitabilidade traz como obrigaçãoreclassificar os afiliados segundo critérios não muito explícitos de classe.
35
a fé na divindade de Cristo enquanto estudava em um seminário batista em Estocolmo.
Recuperando sua fé, tornou-se pentecostal na Noruega. Em 1910, Pethrus assumiu o
pastorado de uma Igreja Batista em Estocolmo, a qual foi excluída da denominação, em
1913. Esse rompimento foi fundamental para que sua igreja assumisse uma ação
missionária independente no Brasil, apoiando financeiramente o incipiente trabalho do
amigo Berg e enviando outros missionários.
Influenciado por Pethrus, Berg também teve uma experiência pentecostal enquanto
voltava aos Estados Unidos, em 1909. Conhecendo Vingren, os dois se uniram pelo ideal
missionário. Orando em companhia de um profeta pentecostal sueco, este profetizou que
deveriam ir a um lugar chamado Pará. Não sabendo onde ficava o Pará, localizaram-no em
um Atlas da biblioteca pública.
A escolha do Estado do Pará para iniciar a Igreja Assembléia de Deus não foi
racional, porém, acabou tendo uma racionalidade maior – no sentido de se fazer presente
em todo o país – do que se começasse no Rio ou em São Paulo. Havia um determinado
contexto para a profecia. Na realidade, Pará era uma palavra conhecida na região de
Chicago. Desde o aperfeiçoamento do processo de vulcanização, efetuado por Charles
Goodyear em 1839, a borracha havia se tornado um insumo industrial essencial. Entre 1860
e 1910, a Amazônia reinou absoluta como fornecedora de borracha para a indústria
mundial;32 esse é também o período em que Chicago se tornou o centro industrial dos
32 Caio Prado Junior menciona que a exportação de borracha estava em “contínuo aumento desde1827, quando se registra um primeiro e modesto embarque de 31 toneladas, e atinge em 1880 cercade 7.000 toneladas” e em 1887 se eleva para mais de 17.000 toneladas. O crescimento continuaráinterrompido durante mais de vinte anos, de uma parte estimulado pelo crescente alargamento doconsumo mundial e ascensão de preços”. PRADO JUNIOR, C. História Econômica do Brasil. SãoPaulo: Brasiliense, 1984, p.236-40.
36
Estados Unidos e o tipo Pará era considerado o padrão mundial de qualidade dessa matéria-
prima. No início do século XX, longe de ser um local desconhecido no canto do mundo, o
Estado do Pará, assim como Belém (Santa Maria de Belém do Grão-Pará), eram conhecidos
naquela época, abrigando centenas de casas de exportação que estavam em contato com o
mundo todo. O nome Pará era uma constante nos centros industriais como Chicago,
principalmente em 1910, quando o governo brasileiro, por meio da política conhecida como
valorização, forçou o aumento do preço da borracha tipo Pará triplicando o preço em
relação aos anos anteriores. Além do fator da exportação da borracha, havia também o
pastor da Igreja Batista em Belém, que era precisamente um sueco emigrado para os
Estados Unidos aos 7 anos de idade. Tratava-se de Erik Nilsson que, desde 1897,
implantava igrejas em toda a Amazônia. Embora tivesse vindo por conta própria ao
Brasil, inicialmente com vistas a uma carreira como pecuarista, é provável que o nome Pará
já tivesse aparecido em relatos seu enviado à comunidade batista sueca nos Estados Unidos.
Vingren e Berg vieram para o Brasil sem sustento garantido e sem apoio
denominacional. O dinheiro para a viagem fora doado por uma igreja sueca de Chicago. No
Brasil, Berg trabalhou por um tempo numa fundição, venderam Bíblias e, ao que tudo
indica, receberam doações esporádicas de amigos do exterior. Contudo, acreditando na
profecia a eles feita ainda nos Estados Unidos, contribuíram grandemente para o
desenvolvimento do movimento pentecostal brasileiro.
Berg e Vingren chegaram a Belém do Pará em 19 de novembro de 1910, ainda
como batistas, e ficaram hospedados, portanto, no templo da Igreja Batista. Apesar da
presença de imigrantes alemães e suíços de origem protestante, e do grande trabalho de
missionários de igrejas evangélicas históricas, o Brasil era quase que totalmente católico.
37
Através dos dois missionários suecos iniciou-se, então, um movimento que alteraria
profundamente o perfil religioso por meio da pregação sobre o batismo com o Espírito
Santo e dos dons espirituais. As igrejas existentes na época – Presbiteriana, Anglicana e
Metodista – ficaram bastante incomodadas com a nova pregação dos missionários realizada
no porão da primeira Igreja Batista da Rua João Balby 406, pois, apesar do espaço exíguo,
os dois missionários recebiam a visita de muitas pessoas.
A princípio não houve divergência com a Igreja Batista em torno das pregações de
Berg e Vingren porque o pastor da Igreja Batista, Erick Nilsson, com quem os dois estavam
hospedados, era simpatizante do pentecostalismo e inclusive dispôs-se a ser batizado com o
Espírito Santo.33 Sua esposa, porém, temerosa, pediu que parasse com essa doutrina. Desde
então, o pastor Erick Nilsson fez-se inimigo declarado da doutrina pentecostal, o que
acabou resultando na cisão do grupo, já que os pregadores da nova doutrina pentecostal
acabaram criando um mal-estar com os da doutrina tradicional batista, como afirma Luis de
Castro Campos Jr: “A doutrina do batismo no Espírito Santo foi o elemento catalisador da
discórdia entre os missionários suecos e a liderança batista local”.34
33 Cf., OLIVEIRA, J. As Assembléias de Deus no Brasil: sumário histórico ilustrado. Rio deJaneiro: CPAD, 1997, p. 40.34 CAMPOS JUNIOR, L. de C., op. cit., p. 31.
38
Berg e Vingren e mais dezenove pessoas35 acabaram sendo expulsos da Igreja
Batista. Convictos e decididos a se organizar, fundaram a Missão de Fé Apostólica, em 18
de junho de 1911, sendo Gunnar Vingren aclamado pastor da nova Igreja e Daniel Berg,
seu auxiliar. O grupo era formado por: José Plácido da Costa, Piedade da Costa, Prazeres
Costa, Henrique Albuquerque, Celina Albuquerque – a primeira crente a receber o batismo
no Espírito Santo –, Maria de Nazaré, Manoel Maria Rodrigues, Jesus Dias Rodrigues,
Jesusa Dias Rodrigues, José Batista de Carvalho, Maria José de Carvalho, Antonio Mendes
Garcia, Manoel Dias Rodrigues, Emilia Rodrigues, Joaquim Silva, Benvinda Silva, Ana
Silva, Teresa Silva, Isabel Silva e João. Em 1911, inicia-se a Missão da Fé Apostólica e,
somente em 1918, o nome Assembléia de Deus é adotado oficialmente.36
2-2 – A Expansão
Em poucas décadas, a Assembléia de Deus começou a penetrar a partir de Belém do
Pará, onde nasceu, em muitas vilas e cidades até alcançar os grandes centros urbanos, como
São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, fazendo dela, como ainda hoje, a
mais importante Igreja Pentecostal do Brasil. André Corten menciona que é a “mais
35 Há um dado conflituoso em todos os relatos acerca do número de pessoas excluídas da IgrejaBatista, em 1911. Abraão de Almeida cita 19 pessoas. Cf., ALMEIDA, A. História das Assembléiasde Deus no Brasil. Rio de janeiro: CPAD, 1982, p.27. David Berg, 18 pessoas. Cf.,BERG, D.Daniel Berg: o enviado de Deus. Rio de Janeiro: CPAD, 1995, p.97. Emilio Conde registra 17pessoas Cf., CONDE, E. Op. cit., p.32. Ivar Vingren menciona 18 pessoas Cf., VINGREN, Ivar.Gunnar Vingren, o diário do pioneiro. Rio de Janeiro: CPAD,1973, p.33. E Joanyr Oliveira cita 19pessoas excluídas. Cf., OLIVEIRA, Joanyr. Op. cit., p.51. Em todas as obras aqui citadas, há listasdos nomes que não combinam com os números informados, Emilio Conde registra 17 excluídos,mas relaciona 20 nomes. A explicação provável pode estar no próprio Emilio Conde, em sua obraHistória das Assembléias de Deus no Brasil, publicada pela CPAD, quando diz que “dessa lista, 17eram membros ativos e outros menores”. Em minha dissertação, registro uma lista de 19 nomes deexcluídos.36 Cf., OLIVEIRA, J., op. cit., p. 59.
39
importante do mundo em número de fiéis: pelo menos cinco milhões”.37 Para Paul Freston,
a cifra chega a 7 milhões de fiéis.38
De acordo com os dados do Censo 2000, a Assembléia de Deus é a maior
denominação evangélica do Brasil. No ano de 2000, a Assembléia de Deus tinha 8,1
milhões de fiéis – 31% dos 26 milhões de evangélicos brasileiros e 46% dos de origem
pentecostal. Em 1991, tinha 2,4 milhões de fiéis, de acordo com o IBGE. Representava
29,6% dos pentecostais e 18,4% do total de evangélicos do país. Segundo a Revista Veja,
totaliza 22.000 templos e 21.000 pastores.39
A atenção ao padrão rigoroso de treinamento de obreiros leigos, a mobilização total
dos fiéis e a prática de um proselitismo aberto e ostensivo, facilitaram sua organização e
expansão de maneira a torná-la uma igreja protestante nacional por excelência no intervalo
de somente uma geração. Em alguns estados do Norte, o protestantismo praticamente
reduzia-se a ela. Não obstante, podemos considerar que a recepção tenha sido limitada.40
Fazendo da obra missionária a principal meta de suas atividades no país, a Assembléia de
Deus expandiu-se com seu trabalho religioso para outras regiões criando grupos e
possibilitando as condições de seu crescimento. A esse processo, Francisco Cartaxo Rolim
dá o nome de “nucleação”.41
O trabalho religioso se começava com leitura da Bíblia, cânticos, curtaspregações sobre o poder de Deus, executado por um, dois ou três crentes,logo se tornava trabalho religioso dos poucos assistentes. Estes aprendiam os
37 CORTEN, A., op. cit., p. 66.38 Cf., FRESTON, P., op. cit., p. 76.39 EDWARD, J. A força do senhor. Veja. A nação evangélica. São Paulo: Abril, 3/7/2002, p. 89-95.40 Paul Freston mostra que era inferior a 11% o total dos pentecostais de missão, excluídos osluteranos, em 1930. Cf., FRESTON, P., op. cit.41 ROLIM, F. C. O que é pentecostalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 36.
40
cânticos, iam aos poucos conhecendo a Bíblia, os episódios enaltecedores dopoder de Deus entrando-lhes na mente: orar com as próprias palavras eracoisa que agradava e despertava emoção. Se havia dirigente, era o grupoinicial o agente produtor de bens religiosos. Os depoimentos iamdespontando, simpatizantes iam abraçando a nova modalidade religiosa.Participantes do grupo sentiam a necessidade de ajudá-los. Ofertas ou dízimo,trabalho material gratuitamente prestado, tudo isso nascia da base sem serimposto. Nesse processo de nucleação o que contava mais era acontinuidade.42
À semelhança do que ocorrera no Pará, a Assembléia de Deus, em São Paulo,
obedecendo ao mesmo padrão de crescimento urbano em áreas onde se concentravam os
migrantes rurais43 que compõem a população favelada e com elevado potencial de
conversão, estabeleceu seu embrião na periferia da capital. Em 1927, chegavam a São
Paulo Daniel Berg e sua esposa, Sara, quando realizaram o primeiro culto em uma casa
alugada na Vila Carrão, um bairro periférico distante do centro de São Paulo. Surgiu, então,
uma filial da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, ligada ao Ministério Missão – Belém,
que atualmente tem como pastor-presidente o Sr. José Wellington Bezerra da Costa.44
42 Idem. Pentecostalismo: Brasil e América Latina. p. 45.43 A característica migratória da população decorre dos problemas e transformações sociais eculturais, evidenciam um vazio nas pessoas pelo desarraigamento e pela desestruturação da relaçãosocial e afetiva, tornando-se, então, um campo propício à pregação do evangelho. Assim, o mapa dofluxo de crescimento da Igreja acompanha o mapa do fluxo migratório do país. Isto lhe confere aabrangência geográfica que hoje possui. Cf.,VALIM, A. Migraçoes: da perda da terra à exclusãosocial. São Paulo: Atual, 1996, p. 12-42; Cf., MARICATO, Erminia. Habitação e Cidade. SãoPaulo: Atual, 1997, p. 30-40.44 A Assembléia de Deus se encontra atualmente dividida em ministérios, cada um composto porpastores, evangelistas e presbíteros. O “Ministério Missão – Belém” é o tronco principal, oriundo daobra pioneira dos missionários suecos, em 1911. Este se desdobrou em outros ministérios, entreeles, o de “Madureira”, tendo sua própria convenção – CONAMAD – que abrange o Rio de Janeiroe, devido ao seu grande crescimento, ganhou destaque especial. Foi desligado da Convenção Geraldas Assembléias de Deus no Brasil em 1988, na Assembléia Geral Extraordinária que ocorreu emSalvador, presidida pelo pastor José Wellington Bezerra da Costa, na qual o fato mais relevante foio desligamento dos obreiros do Ministério de Madureira. Esta cisão tem alimentado o conflitointerno em que a Igreja se acha envolvida. Há outros ministérios que surgiram devido à ocorrênciade cisões de cunho político ou em relação à “doutrina dos usos e costumes”, tais como: Ministériodo Ipiranga, Ministério da Barra Funda, do Peru, Boas Novas e Assembléia de Deus Betesda, quetambém organizou sua própria convenção.
41
Apesar da manutenção de seu dinamismo, a fase de implantação e expansão mais
acelerada da Assembléia de Deus ocorreu entre as primeiras décadas até os anos de 1940,
período definido por Paul Freston como o da primeira onda do pentecostalismo,45 sendo o
momento da origem e de sua expansão para todos os continentes, caracterizando-se pela
ênfase na glossolalia. Uma segunda onda surgiu entre os anos de 1950 e início dos anos de
1960, coincidindo com o declínio da política desenvolvimentista, provocando um aumento
dos setores intermediários pelo avanço das relações capitalistas no campo. O contexto de
urbanização acelerada e de formação do proletariado que acompanhou o pós-guerra gerou
as condições para a fragmentação e o crescimento pentecostal, capaz de romper com as
limitações dos modelos existentes, especialmente em São Paulo, onde começava a
proliferar os grupos de cura divina.46
A terceira onda – considerada como a do pentecostalismo autônomo, trazendo o
predomínio do trinômio cura-exorcismo-prosperidade – sobreveio a partir do fim dos anos
de 1970, já no declínio do período de modernização autoritária do país, quando a
urbanização já atingia dois terços da população e o milagre econômico havia se exaurido.
Esse novo modelo de pentecostalismo ganharia, entretanto, um impulso maior na década
seguinte, um fenômeno que irradia e se firma a partir do Rio de Janeiro, dentro do quadro
de violência urbana e política populista que acompanhou sua decadência econômica. A
45FRESTON, na sua tese de doutorado: Protestantes e política no Brasil, pela UNICAMP em 1993,desenvolve uma classificação metafórica do movimento pentecostal, retratando os ímpetosexpansionistas como ondas sucessivas de implantação de igrejas e/ou seitas. Diferentesclassificações e/ou tipologias foram desenvolvidas por outros pesquisadores. Cf., BITTENCOURTFILHO, J. Pentecostalismo autônomo. In: Alternativas dos desesperados: como se pode ler opentecostalismo autônomo. Rio de Janeiro: CEDI, 1991.; Cf., MENDONÇA, A. G. Um panoramado protestantismo brasileiro atual. In: LANDI, L. Tradiçoes religiosas no Brasil. Rio de Janeiro:Cadernos do ISER, nº 22, 1989.; Cf., MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P., op. cit.
42
todas essas ondas a Assembléia de Deus tem sobrevivido sempre com fôlego renovado, o
que contribui para destacá-la perante outras denominações religiosas.
2-3 – Os Desafios Contemporâneos
A nacionalização da Igreja Assembléia de Deus, por ter ocorrido quando a Igreja
ainda tinha o predomínio nortista-nordestino, contribuiu para estruturar uma característica
que subsiste até hoje, ou seja, uma proporção elevada de nordestinos na cúpula nacional,
geralmente de origem rural, que carrega as marcas dessa dupla origem, isto é, da
experiência sueca de marginalidade cultural das primeiras décadas do século e da sociedade
patriarcal e pré-industrial do Norte-Nordeste que vigorou entre os anos de 1930 e de 1960.
Paul Freston assinala isso como de grande importância para entender a trajetória da
Assembléia de Deus no Brasil afirmando que “a Assembléia de Deus tem um ethos sueco-
nordestino. Começou com os nórdicos e passou para os nordestinos. Sem entender as
marcas dessa trajetória não se entende a Assembléia de Deus”.47
As Assembléias de Deus no Brasil têm uma relação interna de poder que pode ser
caracterizada por um sistema de governo autoritário, oligárquico e caudilhesco. Surgiu para
facilitar o controle pelos missionários e depois foi reforçado pelo coronelismo nordestino.
Na realidade, é uma complexa teia de redes compostas de igrejas-mães e congregações
dependentes, cada uma com áreas geográficas definidas, mas não necessariamente
contíguas, o que dá margem a controvérsias constantes sobre invasão de campo. O pastor-
46 Cf., SOUZA, B. M., op. cit., p. 56.47 FRESTON, P. Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI, A. Nem anjos nemdemônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p.76.
43
presidente comanda uma rede de 50 a 100 igrejas dependendo do tamanho da cidade,48 o
que facilita uma grande concentração de poder político e financeiro.
Os assembleianos desenvolveram uma consciência de contracultura muito forte.
Uma síndrome de perseguição e de conspiração gerou mecanismos de autopreservação
através da criação de um mundo alternativo, como por exemplo, o casamento endogâmico,
os ritos, a Igreja criando atividades durante toda a semana para manter ali o crente,
fortalecendo e sacralizando o momento histórico do passado. O comportamento puritano,
exigência maior nas pequenas congregações, pressupõe o cumprimento estreito de uma
disciplina moral caracterizada pelo negativismo dos costumes – não fumar, não beber, não
dançar –, levando a um isolamento progressivo da vida mundana. As roupas e os costumes
de quando o pentecostalismo se iniciou são preservados naturalmente, pois, para eles, não
representam o costume de uma época ou lugar, mas são sagrados.
Muito embora receba a influência dos Estados Unidos, a convivência tem sido
marcada desde seu início, por volta de 1934, por dificuldades de aceitação. Estas se referem
não só ao padrão de vida ostensivo dos missionários norte-americanos, destoante da
austeridade dos antigos suecos e nordestinos,49 como à importância atribuída por parte dos
48 Exemplo disso é o Ministério do Belém, em São Paulo, onde o pastor-presidente é JoséWellington Bezerra da Costa, presidente da Convenção Geral das Assembléias de Deus, presidindomais de 70 Igrejas e congregações na Grande São Paulo e interior do Estado, tendo como vice-presidente o seu filho, José Wellington Costa Junior. O mesmo ocorre na cidade de Mauá (GrandeSão Paulo): o pastor Joaquim Marcelino da Silva, que foi o segundo pastor-presidente do campo deSanto André, de 1954 a 1957, voltou a presidi-lo de 1963 até 1981; em 1983, assumiu o campo deMauá e transferiu, em 1986, o poder para seu filho, o pastor Samuel Marcelino da Silva, quepermanece até hoje como presidente desse campo. Com um total de 4 mil membros em 34congregações, situadas todas na periferia da cidade de Mauá, somente a sede de onde ele comandaestá situada no centro da cidade, com 600 membros ativos.49 Segundo Albert W. Brenda, o primeiro missionário vindo dos Estados Unidos chegou ao Brasilem 1934, mas houve dificuldades de aceitação por parte dos suecos e brasileiros. Ele assinala queuma das razões pode ter sido financeira. “Quando um americano chegou, desembarcou com seuChevrolet do ano e alugou um apartamento em Copacabana”. Os missionários americanos passaram
44
americanos à educação teológica e sua atitude mais flexível em relação aos costumes que,
aos poucos, começam a mudar.
A mobilidade social que se vem processando a cada nova geração eleva o nível de
escolaridade e, como conseqüência, acentua o conflito, embora ainda não resulte em uma
diferenciação significativa de classe entre liderança e povo, o que é previsível à medida que
a formação intelectual provoque sensível desnível de consciência entre líderes e liderados.
Assim, se de início a ausência de formação intelectual era compensada pelo fervor
religioso, hoje, o maior acesso de pentecostais às escolas e mesmo às universidades vem
alterando o perfil do crente. Essa geração mais jovem e com melhor nível de instrução
representa o germe da renovação dentro da Igreja e tem servido para alimentar os conflitos
com os pastores mais antigos. Estes reagem alimentando o fervor conservador, pois temem
ceder espaço a um clero mais jovem e crítico, porta-voz de uma teologia política e uma
moral mais sofisticada e liberal, muitas vezes fora do alcance de sua compreensão.
Na Igreja Assembléia de Deus, é possível afirmar que há grande preocupação por
parte da liderança em preservar sua identidade pentecostal, principalmente em se tratando
dos usos e costumes, o que a diferencia de outros grupos pentecostais,50 principalmente
daqueles que se envolvem mais a fundo com o trinômio cura-exorcismo-prosperidade que
a ser vistos como “mundanos”. O crescimento do pentecostalismo nos Estados Unidos, após aexplosão inicial, foi lento, até o seu ressurgimento repentino durante a Depressão. A partir de então,os tabus comportamentais, que no começo atingiam atividades fora dos horizontes sociais dosmembros, passaram a ser disfuncionais e foram relaxados. Esse processo foi bem mais rápido nosEstados Unidos do que na Suécia ou no Brasil. Cf., BRENDA, A. W. Ouvi um recado do céu. Riode Janeiro: CPAD, 1984, p.89.50 Cf., MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:Loyola, 1999.
45
sinaliza mudanças.51 O mesmo acontece com os cultos, principalmente os realizados nas
igrejas-mães que congregam a maioria dos fiéis em ascensão social, os quais tornam-se
mais comedidos e levam o retraimento aos mais humildes; estes se contentam com as
congregações dos bairros de periferia. Algumas características da Igreja que anteriormente
eram tidas como virtude, como a de estar alheio às questões sociais (enquanto seita
conversionista, tinha a promessa de mobilidade após a morte), são hoje vistas de modo
diferente. O conservadorismo que levava a evitar as questões políticas foi substituído a
partir da segunda metade da década de 1980 pelo ativismo político.52
O discurso fácil e penetrante, a canalização dos bens da religião diretamente para os
problemas mais cadentes das classes operárias, como doença, emprego ou, mais
recentemente, o desemprego, os conflitos familiares, a garantia de segurança após a morte e
o incremento de valores tidos como imutáveis, o combate a outras religiões concorrentes e
à personificação do mal – o diabo, personalizado nas dificuldades do cotidiano que as
camadas populares enfrentam – converteram a Assembléia de Deus em um grupo
eclesiástico de alto apelo popular, nesse momento de profunda crise social causada por um
modelo econômico que a cada dia se faz mais acentuadamente discriminatório e
concentrador de renda.
A conjunção desses elementos tem contribuído para a sua transformação. Os
membros economicamente bem-sucedidos deixam-na ou a remodelam segundo sua nova
51 Refiro-me aos grupos neopentecostais, nos quais seus membros são liberados dos usos ecostumes, e praticantes da teologia da prosperidade. Entre esses grupos estão Igrejas como aUniversal do Reino de Deus, a Renascer em Cristo e a Igreja Internacional da Graça de Deus.52 Para Paul Freston, a mudança de postura política por parte da Assembléia de Deus, em 1985, foifundamental para que o fenômeno político protestante tivesse abrangência nacional. Tanto pelo
46
posição social,53 rejeitando não só os elementos disfuncionais do moralismo restritivo, mas
a própria tendência a idealizar teologicamente a pessoa humilde, tornando-a mais parecida
com o protestantismo histórico. Nesse processo, a Assembléia de Deus vem se
diversificando em termos sociais, mas enfrenta opções contraditórias diante de sua nova
realidade. Fazendo-se presente em todas as classes sociais, hesita entre o desejo de aderir
explicitamente a valores burgueses e a preservação da tradição assembleiana de um
determinado populismo religioso que tende a se glorificar na escolha dos humildes por
parte de Deus. “O desejo de respeitabilidade, anátema para os pais fundadores, agora se
justifica estrategicamente: o pobre se entrega mais a Deus quando vê o rico se
entregando”.54
Nos costumes, é flagrante a mudança que vem ocorrendo de forma acelerada em
relação aos trajes e à aparência dos crentes; e mesmo na aceitação de comportamentos antes
prescritos, impulsionados pelas gerações mais jovens e com um padrão mais elevado de
escolaridade e de participação social e política. No entanto, o contexto eclesiástico em que
terão que agir é bastante desfavorável à continuidade de tais atitudes. Os jovens prefeririam
um sistema mais congregacional55 e, naturalmente, mais profissional, o que me permite
concluir que a luta seja entre a autoridade tradicional que apela ao fiel para que cumpra a
tradição assembleiana, e os jovens pastores que querem liberdade para inovar nas
congregações. Como coloca o pastor Geremias do Couto, “está havendo uma deturpação
tamanho (cerca de 35% do campo protestante), como pela dispersão geográfica, era a única Igrejacapaz de imprimir uma dimensão nacional à irrupção política. Cf., FRESTON, P. op. cit., p. 35.53 Na década de 1980, foi criada a Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno –ADHONEP seguindo o modelo norte-americano.54 BRANDÃO, C. R., op.cit., p. 262.55 O modelo congregacional tem como instância máxima à congregação, onde são decididas asquestões que a envolvem.
47
dos postulados histórico-pentecostais das Assembléias de Deus, que [...] hoje sofrem os
efeitos da institucionalização”.56
As principais lideranças da Assembléia de Deus enfatizam que não se deve perder
de vista o modelo deixado pelos primeiros missionários. Com isso, em 1997, criou-se o
Conselho de Doutrina da Convenção Geral para cuidar dos assuntos voltados às questões
morais. Na consolidação da estrutura da Assembléia de Deus no Brasil, a ênfase dos
princípios doutrinários que caracterizam a igreja como autenticamente pentecostal tem sido
uma constante. Entre esses princípios, destacam-se os pontos voltados para os costumes
rígidos, tais como: as mulheres devem usar cabelos compridos, não usar batons,
maquiagens pesadas, calça comprida; e, para os homens: cabelo curto, barbeado, e se for
obreiro, usar terno e gravata etc. O pastor José Wellington, presidente da Convenção Geral
das Assembléias de Deus, declarou: “Não é costume da Assembléia de Deus o uso de
pinturas, brincos etc. Não somos retrógrados, desejamos apenas nos conservar
irrepreensíveis [...] Não danifique a Assembléia de Deus, ame-a ou deixe-a”.57
Nos estatutos da instituição estão registrados os principais objetivos da igreja:
promover a união e incentivar o progresso moral e espiritual das Assembléias de Deus,
manter e propagar o desenvolvimento da Casa Publicadora da Assembléia de Deus –
CPAD sem, no entanto, limitar a liberdade de ação inerente a cada igreja nem determinar
atividades. Além dessas especificações contidas nas Disposições Gerais, há outro artigo
esclarecendo que nenhuma Assembléia de Deus poderá viver isoladamente, “sendo
56 COUTO, G. do. Assembléia de Deus no futuro. Mensageiro da Paz. Órgão informativo dasAssembléias de Deus no Brasil. 7/1989, p. 3.57 COSTA, J. W. B. da. Nossa Identidade. Mensageiro da Paz. Órgão informativo das Assembléiasde Deus no Brasil. 2/1991, p. 2.
48
obrigatória à interligação das Igrejas Evangélicas Assembléias de Deus no Brasil com a
finalidade de determinar responsabilidades perante a Convenção Geral ou perante as
autoridades constituídas”.58
Desde os primórdios da Assembléia de Deus, estava presente em sua liderança a
importância da literatura como veículo doutrinário e evangelístico. Organizou-se então, em
1937, a CPAD que, seguindo os passos da Igreja, tornou-se a maior editora evangélica
pentecostal da América Latina. Ela é administrada por um Conselho representado por uma
diretoria que exerce funções empresariais de editoração, publicando mensalmente o jornal
Mensageiro da Paz. A revista Ensinador Cristão tem como propósito discutir e dar suporte
teológico a professores da escola dominical; a Geração JC está voltada para os assuntos
do Círculo Jovem Cristão, trazendo matérias sobre violência, drogas etc.; a Mulher – Lar
& Família discute o papel da mulher na Igreja e no lar juntamente com a família; a
publicação trimestral das Lições Bíblicas é destinada à escola dominical, unificando o
ensino doutrinário e teológico nas igrejas Assembléias de Deus que são ligadas à
Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil – CGADB. Todas as publicações da
CPAD passam pelo “Conselho de Doutrina” para assegurar a defesa da doutrina
pentecostal.
Elinaldo Renovato de Lima, que é pastor e integra o ministério da Assembléia de
Deus no Rio Grande do Norte, é comentador das lições bíblicas dominicais das
Assembléias de Deus, professor universitário e bacharel em Ciências Econômicas. Ele tem
seus livros publicados pela CPAD, dois dos quais irei analisar nesta dissertação:
58 OLIVEIRA, J., op. cit., p.134.
49
“Aprendendo diariamente com Cristo: como viver a vida cristã em um mundo em conflito”;
e “Ética Cristã: confrontando as questões morais de nosso tempo”. Os mesmos
ensinamentos verdadeiros nos tempos bíblicos são para o autor de igual forma verdadeiros
hoje em dia e aplicáveis às diversas questões da vida do crente, ou seja, defendem uma
aplicação da Bíblia de forma literal.59 Em “Ética Cristã: confrontando as questões morais
de nosso tempo” ele afirma que:
59 Segundo Elinaldo Renovato de Lima, em sua obra Ética Cristã, a Bíblia é a palavra inspirada erevelada por Deus, imutável e infalível, portanto, a revelação da vontade de Deus para o serhumano. Constitui-se, assim, no fundamento para a moral que, segundo ele, pode ser entendidacomo um conjunto de regras de conduta. Cf., LIMA, E. R. de. Ética Cristã, p. 8-27. Nesse aspecto,Elinaldo Renovato de Lima tem uma leitura bíblica do conservadorismo protestante norte-americano que, no final do século XIX, representava uma reação ao liberalismo teológico. Osconservadores pleitearam para si a condição de ter um Cristianismo verdadeiro, passando a fazeruma interpretação literal da Bíblia, na qual esta assumia a condição de fonte exclusiva doconhecimento de Deus. O Conselho de Doutrina da Convenção Geral das Assembléias de Deus noBrasil expõe sua forma de leitura bíblica expressando que “a autenticidade da Bíblia baseia-se nasua infabilidade e inerrância. Os atributos da divindade são por ela revelados. Ela é autêntica emtudo, pelo fato de o próprio Deus ser o seu autor, e o Espírito Santo, seu Inspirador. Nela sãoautênticas e inerrantes as revelações e os fatos narrados. Em face dos mais densos ataques da EscolaAlemã desferidos contra as Escrituras, o fundamentalismo, movimento antiliberal do século XIX,saiu em defesa da inspiração plenária das Escrituras. A inspiração plenária da Bíblia é fatoincontestável porque assuntos vitais como expiação, salvação, ressurreição, recompensa e castigofuturo requerem a direção de um Espírito infalível a fim de se evitar informações que levem aoerro”. CGADB, Conselho de Doutrina da. Manual de Doutrinas das Assembléias de Deus noBrasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2000, p.18-20. A leitura fundamentalista da Bíblia é umentendimento literalista do texto bíblico, que considera sua forma final como a expressão verbatimda palavra de Deus e a vê como clara, simples e sem ambigüidade. Normalmente, recusa-se a usar ométodo histórico-crítico ou qualquer outro suposto método científico de interpretação e não levamem conta as origens históricas da Bíblia, nem o desenvolvimento de seu texto ou suas diversasformas literárias. Essa maneira de ler a Bíblia originou-se, em última instância, de uma ênfase nosentido literal da Escritura na época da Reforma, em reação à interpretação alegórica do fim daIdade Média. Entretanto, no período ulterior ao Iluminismo, surge formalmente entre osprotestantes como baluarte contra a exegese liberal do século XIX. O nome "fundamentalismo"deriva de um documento publicado pelo Congresso Bíblico Americano realizado em Niágara,Estado de Nova York, em 1895. Nele, protestantes conservadores, reagindo contra o darwinismo, oprogresso científico na biologia e na geologia, e a interpretação liberal da Bíblia no século XIX,formularam uma declaração de cinco pontos sobre doutrinas a serem mantidas, mais tardechamados de "cinco pontos do fundamentalismo", que eram eles: a inerrância verbal da Escritura, adivindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação vicária e a ressurreiçãocorporal quando da segunda vinda de Cristo. Para assegurar esses pontos, insistia-se sobre "o que aBíblia diz" em um sentido literal de fato. Segundo Joseph Fitzmyer, a forma de apresentar essasdoutrinas fundamenta-se em uma ideologia que não é bíblica, apesar das alegações de seusrepresentantes, pois exige adesão firme a rígidas atitudes doutrinárias e uma leitura sem
50
a ética não-cristã varia conforme o tempo, o lugar, e o que a maioria dasociedade entende quanto ao que é certo e errado. Com o cristão, esseentendimento não tem acolhida, pois, seu código de ética que é a BíbliaSagrada aponta princípios firmes e permanentes, os quais podem e devem serconsiderados e obedecidos, em todos os tempos, em todas as culturas, e emtodos os lugares.60
O comportamento esperado dos convertidos é que prossiga em uma vida de
crescimento espiritual, de santificação, traduzida por sua dedicação à obra do senhor e à
observância das normas de conduta adotadas pela comunidade assembleiana. Portanto, o
conceito de conversão na Assembléia de Deus tradicional é o abandono de uma vida
passada, ou seja, aquele que se converte “deve mostrar ter morrido para o mundo e
renascido para Cristo, vivendo agora em novidade de vida”61 ainda que a velha vida tenha
trazido fama, dinheiro e posição social, esta deve ser abandonada, pois o mundo é símbolo
de pecado e decadência. Outro aspecto ligado à conversão é que o crente deve ser submisso
às determinações e deveres impostos pelos líderes, sobre o que deve ser cumprido e as
proibições de omissão para realizar o ideal de vida que os crentes propõem dentro da
santidade exigida pelo pentecostalismo da Assembléia de Deus. Determina-se, com isso,
questionamentos ou críticas da Bíblia como única fonte de ensinamento sobre a vida cristã e asalvação. Seu apelo é ao "senso comum", porque a Bíblia não pode conter erros, portanto, nenhumerro histórico. De maneira intolerante, exerce uma influência nas pessoas que é quase a de um"culto" ou "seita" extremista. Ao não levar em conta o caráter histórico da revelação bíblica, aleitura fundamentalista não admite que a Palavra de Deus inspirada tenha sido expressa nalinguagem de autores humanos que podem ter tido capacidades extraordinárias ou limitadas eescreveram em diversas formas literárias. Conseqüentemente, tende a tratar o texto bíblico como seele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e considera o autor humano mero escribaque registrou a mensagem divina. Além disso, dá indevida ênfase à inerrância de detalhes, emespecial os que supostamente dizem respeito a acontecimentos históricos ou questões científicas.Ignora os problemas apresentados pelos textos hebraicos, aramaicos e gregos originais e, muitasvezes, se prende a determinada tradução ou edição da Bíblia. Cf., FITZMYER, J. A. A Bíblia naigreja. São Paulo: Loyola, 1994, p. 65-9.60 LIMA, Elinaldo Renovato de. Ética Cristã, p. 16.61 CGADB, op. cit., p. 44.
51
um conjunto de ações que os fiéis realizam como expressão de sua relação com Deus e de
sua pertença à comunidade.
No discurso da maior parte das Igrejas Assembléia de Deus condenam-se os valores
que julgavam e julgam serem mundanos, provocadores de danos à sua espiritualidade.
Condenação ao mundo atual com suas tentações, corrupções e inovações, que estão muitas
vezes contra os princípios puritanos e principalmente contra os movimentos de santidade
“holiness”, que foram iniciados nos Estados Unidos. Ainda hoje, esses traços se fazem
sentir nos discursos e pregações dos crentes da Assembléia de Deus, tanto nos púlpitos das
Igrejas, como na literatura. É muito utilizado o esquema dos mandamentos62 de Deus para
expor as exigências morais do cristão, permanecendo a matiz legalista dogmática63 em toda
concepção moral. São, portanto, os usos e costumes rígidos que estão intrínsecos na
doutrina e nos valores desse grupo.
3 – IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS BETESDA
3-1 –Origem
A Assembléia de Deus Betesda não nasceu Igreja e nem o pastor Ricardo Gondim
Rodrigues, que hoje é seu presidente, foi seu fundador, embora ele tivesse conspirado
durante muitos anos antes do dia em que ela se iniciou. Ricardo Gondim morava nos
Estados Unidos e, enquanto viajava pelo Brasil como intérprete das reuniões evangelísticas
62 Cf., VIDAL, Marciano. Moral de atitudes: moral fundamental. São Paulo: Aparecida, EditoraSantuário, vol. II. 1978, p.770.63 Ibid., p. 771.
52
lideradas pelo missionário Bernhard Johnson,64 conversava com seu amigo Ademir
Siqueira Gonçalves sobre suas inquietações dentro da Assembléia de Deus brasileira. E
Ademir Siqueira lhe confidenciou: “ainda começo um centro evangelístico que alcance os
universitários e os profissionais liberais”.65 Por vários anos Ricardo Gondim, juntamente
com seu amigo Ademir Siqueira passaram sonhando e idealizando o projeto.
No início da década de 1980, Ademir Siqueira, pregando em uma conferência
missionária na Assembléia de Deus em Fremont, na Califórnia, foi convidado pelo pastor
Robert Goree a iniciar um trabalho de evangelização paraeclesiástica que pudesse alcançar
universitários, profissionais liberais e a classe média com a mensagem do evangelho. Logo
depois, nascia em Fortaleza (CE) a Missão Betesda, em março de 1981, que seria
financiada nos três primeiros anos pelo pastor Robert Goree. O dinheiro enviado ao Brasil
chegava diretamente para Ademir Siqueira, sem passar pelas mãos de Bernhard Johnson,
organizador das missões evangelísticas das Assembléias de Deus no Brasil. Isso deixou
arranhado o relacionamento entre Bernhard Johnson e a Missão Betesda.
Uma reunião evangelística foi organizada, o pastor Robert Goree pregou em
Fortaleza, e um grupo de louvor americano – os The Dewes – cantou durante o louvor. O
culto evangelístico aconteceu na Praça Clóvis Beviláqua e um professor da faculdade de
64 Nascido nos Estados Unidos, chegou ao Brasil em 1957. Foi pastor no sul de Minas Gerais efundou a Convenção Estadual das Assembléias de Deus daquele estado. Em 1964, tornou-semissionário e fundou a Cruzada Boas Novas que, mais tarde, passou a chamar-se Cruzada BernhardJohnson, atuando no Brasil e em mais de 70 países no mundo. Foi fundador da Escola de EducaçãoTeológica das Assembléias de Deus – EETAD, com sede em Campinas (SP), e da Faculdade deEducação Teológica das Assembléias de Deus – FAETAD.65 GONDIM, Ricardo. Nasce uma Igreja. Disponível na internet.http://www.ricardogondim.com.br/artigos. Acessado em 06/08/2003.
53
Arquitetura se converteu. Ele seria o crente número um da missão, mas também seria o
primeiro a se afastar, posicionando-se contra o legalismo da Betesda.
Enquanto esses fatos ocorriam em Fortaleza, Ricardo Gondim ainda morava nos
Estados Unidos, terminando seu curso no Gênesis Training Center.66 Retornou ao Brasil
em julho de 1981, para trabalhar com o missionário Bernhard Johnson, como diretor-
executivo da Escola de Educação Teológica das Assembléias de Deus – EETAD, em
Campinas (SP), uma escola de ensino teológico por extensão. Era um esforço missionário
para dar suporte teológico aos milhares de obreiros leigos do movimento pentecostal.
Durante suas férias, pregando na Missão Betesda, Ricardo Gondim ressaltou:
Antes de rumar para Campinas, paramos em Fortaleza por alguns dias, deférias. Recordo-me que não fui bem na minha mensagem. Eu voltava muitoamericanizado dos Estados Unidos, havia perdido a habilidade de pregar emminha língua materna. Recordo-me que eu mesmo senti minha pregaçãocheia de chavões, pensamentos truncados, anglicismos. Falei e minhaspalavras caíram no vazio. Esse dado é importante porque meses depois seriaconvidado para pastorear a Betesda e as poucas pessoas que freqüentavam oscultos sequer se lembravam de mim.67
Em Campinas, Ricardo Gondim encontrou suas decepções; a primeira, a de ser
rejeitado pelos missionários norte-americanos: por mais americanizado que estivesse, não
poderia considerar-se um missionário dentro da missão; percebia que, mesmo tendo vivido
nos Estados Unidos, havia uma rejeição aos brasileiros, perpetuando a visão colonialista de
que os nacionais não eram dignos dos norte-americanos.68 A segunda decepção foi em
relação ao seu salário. Tratou da quantia que ganharia com Bernhard Johnson, quando
66 Uma escola teológica que preparava homens e mulheres para o trabalho missionário, erainterdenominacional mas seguia a linha pentecostal. Atualmente, esta escola não mais existe.67 GONDIM, R. Nasce uma Igreja.68 Cf., Ibid.
54
ainda estava nos Estados Unidos, porém, quando chegou ao Brasil, ouviu que o valor
combinado não poderia aparecer nem ser contabilizado para não levantar questionamentos.
Oficialmente receberia menos e o restante seria dado secretamente por Bernhard Johnson
para completar o acordo.
Mesmo decepcionado, passou a se envolver na administração da EETAD. Contudo,
foi percebendo a cada dia que não havia nascido para ficar resolvendo problemas
administrativos: “Deus me vocacionara para pregar a palavra, ministrar princípios, para
salvar vidas e ordenar famílias”.69 Apesar de tudo, passou a conviver com os dilemas da
organização missionária de Campinas, que era separada da Igreja local.
Eu e minha família não tínhamos uma comunidade de fé. A Assembléia deDeus em Campinas era retrógrada, legalista e cheia de hipocrisias. Esse climame angustiava. Eu me lembro que na manhã do dia 27 de dezembro de 1981eu e a Geruza choramos na sala de nossa casinha alugada. Estávamos nolugar errado! Mas ir para onde? O que fazer? Mal sabíamos que nossa vidamudaria na manhã seguinte.70
Ademir Siqueira era médico e pastor, havia fundado e dirigia a Missão Betesda,
porém, teve uma morte prematura aos 32 anos de idade, em 28 de dezembro de 1981, em
um acidente automobilístico. Ricardo Gondim ficou chocado com a morte do amigo. Dois
dias depois, estava em Fortaleza para prestar condolências à família de Ademir Siqueira e
substituí-lo em um culto que deveria pregar no dia 1º de janeiro de 1982, na Igreja
Assembléia de Deus de Bela Vista.
Assim como ocorreu com Luigi Francescon, fundador da Igreja Congregação Cristã,
e Gunnar Vingren e Daniel Berg, fundadores da Assembléia de Deus no Brasil, que
69 Ibid.
55
receberam uma profecia ainda quando estavam nos Estados Unidos, antes de fundarem suas
respectivas igrejas em solo brasileiro. O fator profético estava presente quando Ricardo
Gondim, após a morte do amigo, recebeu o convite de um grupo de homens e mulheres
orientados pelo pastor Elias Gonçalves Pinheiro, pai de Ademir Siqueira, para dar
continuidade ao projeto da Missão Betesda em Fortaleza. O próprio pastor Ricardo Gondim
ressalta:
Tremi da cabeça aos pés. Eu precisava de tempo para orar, falar com a Geruza.Naquela mesma noite, a Geruza foi a um culto numa pequena igreja daCongregação Cristã do Brasil. Lá uma mulher foi tomada em profecia, semconhecer a Geruza e sem saber o que se passava, disse-lhe o texto de Josué 1: 1-9. O capítulo começa dizendo: “Meu servo Moisés está morto”. Culminaprometendo: “Não fui eu que lhe ordenei ? Seja forte e corajoso! Não seapavore, nem desanime, pois o Senhor, o seu Deus, estará com você por ondevocê andar”. Quando eu telefonei para Geruza contando-lhe do convite, elacomeçou a chorar. Deus já confirmara: Tínhamos que voltar para Fortaleza e,por ordem divina, e em nome de uma grande amizade, transformar a MissãoBetesda em Igreja Evangélica Assembléia de Deus da Aldeota – que passou aser Assembléia de Deus Betesda dois anos depois.71
Assim, o pastor Ricardo Gondim assumiu a liderança da Missão Betesda em
Fortaleza, em março de 1982, que em seguida passou a ser a Igreja Assembléia de Deus
Betesda, que em hebraico significa “casa da misericórdia divina”. A expansão da Igreja em
Fortaleza foi fenomenal e a partir daí atingiu outros estados do Brasil.
3-2 – Trajetória de Ricardo Gondim e a Expansão da Assembléia de Deus Betesda
Ricardo Gondim era membro da Igreja Presbiteriana Central de Fortaleza desde o
fim da década de 1960 e dela foi expulso em meados de 1970 em virtude da sua
70 Ibid.71 GONDIM, R. Nasce uma Igreja.
56
experiência com o pentecostalismo. Nessa mesma época, travou amizade com Ademir
Siqueira, estudante de medicina e presidente da Aliança Bíblica Universitária – ABU, que
freqüentava uma igreja pentecostal, a Assembléia de Deus. Envolvido nessa experiência,
Ricardo Gondim assim se referia ao amigo:
mentor ministerial, o Ademir Siqueira, estudante de medicina, pregava,lecionava em escolas de preparação leiga para pastores pentecostais e oravapor cura divina. Ele acreditava que o evangelho completo deveria conter amensagem da intervenção de Jesus restaurando a saúde das pessoas. Além daexperiência pentecostal em si, chamada de Batismo com o Espírito Santo,esse era o meu único chão teológico.72
Necessitando de treinamento teológico para se tornar pastor, Ricardo Gondim pediu
a Ademir Siqueira que solicitasse a Bernhard Johnson sua indicação para alguma escola
bíblica nos Estados Unidos. Ele foi indicado ao Gênesis Training Center, na cidade de
Santa Rosa, no Norte na Califórnia. Por esta razão, “na Assembléia de Deus do Ceará,
adquirira um certo respeito por haver estudado nos Estados Unidos e por trabalhar com um
dos mais renomados pregadores pentecostais brasileiros, o missionário Bernhard
Johnson”.73 Dessa forma, Bernhard Johnson também foi seu líder espiritual.
A Assembléia de Deus Betesda retrata a dinâmica e liderança de Ricardo Gondim
Rodrigues, que também é formado em Administração de Empresas e que, em pouco tempo,
atingiu o número de aproximadamente 21 mil membros atuantes e 82 igrejas espalhadas
pelo Brasil.
72GONDIM, R. Alvorecendo teologicamente. Disponível na Internet.http://www.ricardogondim.com.br/artigos. Acessado em 06/08/2003.73Idem. Frustração que se transformou em benção. Disponível na Internet.http://www.ricardogondim.com.br/ artigos. Acessado em 06/08/2003.
57
A chegada da Igreja Assembléia de Deus Betesda em São Paulo deu-se em janeiro
de 1991, trazida pelo próprio pastor Ricardo Gondim e sua esposa, Sílvia Geruza F.
Rodrigues, que também é pastora.74 As primeiras reuniões de oração ocorreram em seu
apartamento na Vila Mariana. Ao atingir um núcleo de 35 pessoas, as reuniões passaram a
se realizar no salão de um hotel na Rua Teixeira da Silva, no Flat Lorena. No dia 14 de
março de 1991, a Igreja Assembléia de Deus Betesda foi inaugurada oficialmente em São
Paulo. Com o seu crescimento, foi necessário mudar várias vezes de prédio e endereço,
sempre para bairros de concentração de uma população de classe média de São Paulo,
como Vila Mariana, Campo Belo, que fica próximo ao aeroporto de Congonhas, Moema,
ao lado do Shopping Ibirapuera, e, por último, em um templo próprio que foi inaugurado no
segundo semestre de 2003, localizado na avenida Engenheiro Alberto de Zagottis, no
número 1000, no Jardim Marajoara em São Paulo, contando hoje com um número de
aproximadamente 2500 pessoas freqüentes. Atualmente, conta com cinco igrejas no estado
de São Paulo: São José dos Campos, Morumbi do Sul, Jardim das Fontes, Tatuapé e São
Paulo. Está explícito em seu manual aos novos convertidos: “Temos o compromisso em
fundar igrejas fortes e que prevaleçam, tanto nos centros urbanos estratégicos como
também em lugares pobres e pioneiros.”75
A ação para o surgimento de novas igrejas dá-se de três formas: a partir da reunião
74 Para a Assembléia de Deus tradicional, ligada à Convenção Geral das Assembléias de Deus noBrasil – CGADB, a consagração feminina ao pastorado é uma verdadeira aberração teológica. Aconsagração feminina é aceita em algumas Assembléias de Deus nos Estados Unidos. ComoRicardo Gondim e sua esposa obtiveram naquele país a sua formação teológica, acabaram porintroduzir essa diferenciação.75 IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS BETESDA. Aos nossos membros: histórico da IgrejaEvangélica Assembléia de Deus Betesda, funcionamento, ministérios e documentos da fé. SérieDoutrinas; Editora Imprensa da Fé, 1998, p. 28.
58
de um grupo familiar que deseja alcançar determinada região com a visão da Igreja
Assembléia de Deus Betesda; a partir de um projeto de implantação da igreja em uma
cidade estratégica; ou, então, de um projeto missionário em cidades pequenas consideradas
não-alcançadas por não terem igrejas evangélicas ou por haver menos de 1% de
evangélicos naquele local.
Preocupando-se com o projeto de missões, a liderança da Assembléia de Deus
Betesda estimula e desafia os jovens a se lançarem no trabalho missionário, e motiva a
Igreja a arcar financeiramente com esse programa, realizando anualmente uma conferência
missionária. Atualmente, o Ministério de Missões vem se expandindo para outros países,
como Inglaterra, Moçambique, Japão, Rússia e Índia, demonstrando o desejo de tornar a
Igreja conhecida no mundo inteiro. Como ocorre com a Igreja Assembléia de Deus
tradicional no Brasil, que tem um programa de missões e é conhecida em vários países dos
cinco continentes.
3-3 – A Organização da Igreja Assembléia de Deus Betesda
A Igreja Assembléia de Deus Betesda tem um ministério – o da “Ação Social” –
que é visto pelos fiéis como de grande importância e que tem como objetivo analisar áreas
necessitadas e levar a justiça social tentando amenizar a dor do carente oprimido
socialmente. Acreditando que através da educação poderá romper com a pobreza, vão
tentando levar escolas às crianças carentes dos bairros periféricos, como também
assistência médica e dentária. Contam atualmente com o Centro Educacional Betesda de
Tauá (CE), com 480 crianças; o Centro Infantil Betesda em Fortaleza, no bairro de Antonio
Bezerra, com 600 crianças; o Sítio Betesda também em Fortaleza, no bairro de Granja
59
Portugal, com 800 crianças; o Centro Infantil Betesda em Boqueirão do Cesário (CE), com
320 crianças; a Casa de Transformação Betesda em Lavras (MG), que atende 30
toxicômanos, recupera drogados e alcoólatras. Todas essas escolas provêem material
didático, ensino, médicos, dentistas e refeições diárias. Em São Paulo, há uma distribuição
de sopa a cerca de mil pessoas semanalmente.76
Foi organizado em São Paulo o Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos –
ICEC – para oferecer cursos intensivos de teologia, que funciona no mesmo prédio no qual
se realizam os cultos semanais, promovendo fóruns sobre prática política, justiça social e
questões éticas como aborto, pornografia, guerra etc. A Assembléia de Deus Betesda
realiza um programa semanal de rádio, “Reflexões”, em São Paulo, pela Musical FM 105,7
e Objetiva Sat FM 93,3; em Fortaleza, pela FM Apostólica 96,5, comandado pelo pastor
Ricardo Gondim; e aos domingos, o programa “Encontro Íntimo” voltado exclusivamente
as mulheres, em São Paulo, pela Musical FM 105,7, realizado por sua esposa, a pastora
Sílvia Geruza.
Para o exercício de cargos, tanto homens como mulheres são aptos,
independentemente do seu gênero. Os novos membros do chamado Corpo Ministerial são
indicados pelos já existentes, sendo que pastores recomendam novos pastores, presbíteros
recomendam novos presbíteros e diáconos recomendam novos diáconos, cuja indicação
para ordenação é discutida e aprovada por consenso da Igreja.
A organização da Assembléia de Deus Betesda dá-se através de um colegiado de
pastores, que é o órgão máximo na Igreja, que tem a seu cargo todas as responsabilidades.
76 IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS BETESDA. Aos nossos membros. p. 55-6.
60
Nele, a consagração de pastores e demais obreiros não ocorre como em outras igrejas da
Assembléia de Deus tradicional, ou seja, como se ganhassem um título ou um cargo para
realizar um trabalho. Na realidade, o que ocorre é o reconhecimento do trabalho que a
pessoa realiza na função de pastor ou presbítero; posteriormente, a partir da aprovação e
desempenho satisfatório diante da Igreja, há a indicação para a consagração definitiva desse
obreiro. Esse princípio é igual para os demais cargos ministeriais dentro da Igreja.
Na igreja Assembléia de Deus Betesda há uma relação muito forte entre o clero e os
leigos, em que a tarefa dos pastores é a de conduzir os membros ao pleno conhecimento de
Deus, equipando-os para o ministério. Há uma rejeição do autoritarismo eclesiástico, bem
como da democracia irrestrita. Portanto, os pastores não devem monopolizar os ministérios,
mas, sim, multiplicá-los, estimulando os outros a usarem seus dons e treinando discípulos
para que tenham condições de formar novos discípulos.
A Convenção é composta por todos os membros do Ministério Betesda, isto é,
pastores, presbíteros e diáconos, que se reúnem ordinariamente uma vez por ano. Tem uma
diretoria executiva, que é escolhida entre os pastores, uma secretaria executiva e uma
assessoria. Há também a secretaria de missões, que tem como objetivo a implementação
das ações missionárias, e a secretaria da ação social, que planeja as ações sociais da igreja
no país.
Acreditando na militância da igreja como agência de Deus na Terra, a Assembléia
de Deus Betesda aceita como co-irmãs quaisquer congregações evangélicas que professem
os princípios fundamentais da fé cristã, tendo a Bíblia como regra de fé e prática, mesmo
que na administração das coisas secundárias possam ser diferentes umas das outras.
61
Repudia, porém, qualquer pensamento, doutrina ou manifestação espiritual que venha ferir
os princípios contextuais da palavra de Deus. O relacionamento com outros ministérios
evangélicos vêm demonstrar que a Betesda não é sectária.
A Assembléia de Deus Betesda não está ligada à Convenção Geral das Assembléias
de Deus no Brasil, portanto, à primeira vista pode-se considerá-la uma dissidente. Ricardo
Gondim, porém, não concorda com essa afirmação:
Nós fizemos questão de, quando nos separamos da Convenção Geral dasAssembléias de Deus no Brasil, manter o nome de Assembléia de DeusBetesda. Atualmente, eu sinto que estamos mais próximos das raízes dasAssembléias de Deus mundiais do que a própria Assembléia de Deusbrasileira, pois esta não reflete os anseios pelos quais a Assembléia de Deusno mundo caminha, como por exemplo, nos EUA e na Europa, no qual suatendência não é a mesma no Brasil; então, eu me sinto mais próximo comaquilo que a Assembléia de Deus é hoje no mundo do que a própriaAssembléia de Deus brasileira. 77
Para Ricardo Gondim, a Assembléia de Deus Betesda tem uma teologia do
pentecostalismo clássico, principalmente quando se refere às classificações feitas hoje em
torno do pentecostalismo brasileiro. Para ele, é de suma importância a preservação dos
valores pentecostais78, e, ao mesmo tempo, ter uma mensagem mais contextualizada,
voltada racionalmente para as questões sociais brasileiras. Como ele mesmo esclarece: “A
Betesda é uma igreja da primeira onda, do pentecostalismo clássico, mas que se
contemporanizou, se abriu e que está tentando dialogar com sua época, com sua cultura.”79
77 GONDIM, Ricardo. Entrevista concedida em 19/12/2003. Vide anexo II.78 A crença nos milagres e no processo de santificação, no batismo com o Espírito Santo e aglossolalia.79 GONDIM, Ricardo. Entrevista. Vide anexo II.
62
Pude perceber que grande parte dos membros que freqüentam a Assembléia de Deus
Betesda pertence a uma classe social mais abastada, à classe média,80 tais como advogados
e médicos. A doutrina dos usos e costumes legalistas não faz parte dos ensinamentos
dominicais ou dos sermões de púlpito. Também o papel da mulher é bem reconhecido,
podendo ela vir a exercer cargos e até chegar ao nível de pastora, o que não é aceito pela
Assembléia de Deus tradicional.
Mesmo não ensinando os usos e costumes legalistas na Igreja, o pastor dá
instruções aos membros para que usem de moderação nos comportamentos práticos, tais
como vestimentas, ornamentos e afins, evitando os exageros desnecessários e contrários à
decência cristã. Os membros devem viver pela palavra de Deus com dedicação e
entusiasmo, e a espiritualidade deve surgir de uma experiência com Deus e não de um
legalismo, que é produto de uma coerção realizada pelos pastores. Portanto, o papel da
Igreja, que segundo os líderes é guardiã da identidade que Deus deu ao ser humano e ao lar,
deve ser o de desenvolver o contato vital com Deus e seus princípios a fim de que estes
possam reger a vida do crente.
Para a Igreja Assembléia de Deus Betesda, os cultos devem ser leves, inspiradores e
inesquecíveis, em que o louvor deva ser capaz de comunicar a mensagem do evangelho
às pessoas. A liturgia deve ser criativa e absorvente. A mensagem desenvolvida pelo pastor
deve ser sólida e centrada nas Escrituras, e, ao mesmo tempo, contextualizada e fácil de ser
entendida tanto pelos crentes quanto pelos descrentes. Há uma preocupação na importância
80 O seu início em Fortaleza tinha como objetivo evangelizar profissionais, universitários e outrossegmentos mais intelectualizados da cidade. Isso não significa, entretanto, que não haja pobres eanalfabetos que freqüentam e fazem parte dessa igreja.
63
da contextualização e renovação dos métodos e esforços evangelísticos. O trabalho de
evangelização deve estar voltado para as necessidades específicas da sociedade a qual
desejam atingir, pois, segundo essa Igreja, os não crentes têm uma cosmovisão diferente da
dos evangélicos. Por isso, sempre é necessário encontrar um meio de fazer conhecida a
mensagem do evangelho.
O desejo da Assembléia de Deus Betesda é o de ser uma igreja pentecostal que
possa refletir e ter uma relevância para a realidade social na qual está inserida. Portanto, seu
conceito de conversão é o de que o sujeito que se converte ao evangelho não sai do mundo,
mas se torna um grande atuante nele, tendo sensibilidade às necessidades do outro, devendo
tomar providências para melhorar a situação daqueles que vivem na privação e que são
negligenciados, tais como famintos, desabrigados e vítimas do preconceito e da opressão.
Deve, porém, viver também uma vida em santidade sem se deixar moldar pelo
mundo. Parte daí que a Assembléia de Deus Betesda tem como objetivo o cumprimento
das obrigações com a sociedade, sendo seus membros cidadãos, ajudando a corrigir as
injustiças sociais e protegendo a santidade em sua vida. Portanto, é necessária a obediência
a Deus e uma forma de ação responsável como cidadãos do país. Deve-se, então, apoiar a
lei e a ordem civil, honrar, respeitar e orar pelos líderes políticos, exercitando sempre o
direito de votar e protestar, principalmente em assuntos relacionados à moral e à justiça.
64
CAPÍTULO II
TEOLOGIA MORAL DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS
Tratei no primeiro capítulo da chegada e desenvolvimento do pentecostalismo no
Brasil e do processo de institucionalização da Igreja Assembléia de Deus, sua expressão
nos usos e costumes de santidade como via do relacionamento com Deus; a obediência à
tradição como preocupação em manter a identidade pentecostal em uma sociedade em
constante transformação, possibilitando com isso o surgimento de outras igrejas por
dissidência política ou por não concordarem com seus métodos ou doutrinas. A Igreja
Assembléia de Deus Betesda é um desses casos, mesmo não concordando em ser uma
dissidente, houve um rompimento com a Convenção Geral das Assembléias de Deus no
Brasil, o que demonstra seu descontentamento com a matriz.
Tentarei pontuar algumas considerações que ajudarão a entender um pouco as
diferenças existentes entre as duas Igrejas que surgiram de um mesmo tronco religioso, ou
seja, do pentecostalismo clássico; como a Igreja Assembléia de Deus Betesda conseguiu
desenvolver um discurso moral diferente, procurando inserir em seu contexto uma
65
interpretação da Bíblia que pudesse satisfazer a classe média e atingir um crescimento
vertiginoso em pouco tempo.
Abordarei neste capítulo a formação do conservadorismo da Assembléia de Deus
tradicional, resgatando os elos entre o pentecostalismo clássico e sua matriz teológica, o
protestantismo. Assim, farei também uma busca na tentativa de dar uma resposta para o
surgimento de dois discursos morais divergentes, a partir de uma mesma tradição teológica,
procurando mostrar os modelos de moral que permeiam tais discursos.
1 – A MORAL CONSERVADORA DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS
Para a compreensão do conservadorismo que sustenta o universo pentecostal e
estrutura o discurso moral da Igreja Assembléia de Deus, precisamos entender a
interpretação da teologia dos avivamentos dada pelo protestantismo em sua feição mais
conservadora, que impulsionou o missionarismo norte-americano, do qual o
pentecostalismo brasileiro fez-se um dos herdeiros. Portanto, pensar a formação do homem
religioso da Assembléia de Deus obriga-nos a resgatar os elos e o distanciamento entre o
pentecostalismo clássico e sua matriz teológica, o protestantismo. Como diz Antônio
Gouveia Mendonça: “A concepção protestante da salvação passou por transformações que
acompanharam as alterações dos diversos contextos históricos. Nesse processo, a relação
com a cultura tornou-se elemento complicador.” 81
Oriundo da reforma do século XVI e aqui aportado a partir de 1850, portanto, quase
sempre posterior aos movimentos avivalistas que proliferavam na Inglaterra e nos Estados
81 MENDONÇA, Antônio Gouveia. Vias da salvação na teologia da Reforma. Rio de Janeiro:Tempo e Presença. Konoinia, n. 289, set/out. 1996, p. 11.
66
Unidos até meados do século XIX, o protestantismo fez-se portador da mentalidade
evangelical, cuja teologia e ideologia tinham o cuidado de difundir por intermédio de
pregadores e agências evangelizadoras.82 Obediente às suas formas convencionais de
penetração (migração83 ou missão84), distinguia-se da tradição católica, gerando uma
variedade de tendências e instituições, entre elas, o pentecostalismo, autêntico herdeiro do
reavivamento tradicional norte-americano, do qual preservou o emocionalismo e a
disposição para a itinerância evangélica 85.
O conservadorismo que sustenta o universo pentecostal – apologia da autoridade,
sujeição do corpo ao espírito e rejeição ao que é diferente – estrutura sua ética em torno de
três importantes eixos:
louvação a Deus em qualquer circunstância, pois só a Ele em sua infinita sabedoria
pertence o conhecimento do caminho para a salvação do homem;
sujeição à autoridade e à ordem estabelecida, que é entendida como divina na
interpretação de epistolas de Paulo, o que implica legitimação da estrutura social e
submissão do homem às instituições sociais;
respeito aos preceitos morais propostos pela Igreja, que formam um rígido e
ordenado código de comportamento ético, bastante centrado na disciplina do corpo,
considerado empecilho para a elevação espiritual.
82 A mais atuante hoje é a Escola Dominical. Como prática ainda em voga, faz largo uso dos meiosde comunicação de massa.83 Luteranos alemães restritos às áreas de colonização do sul do Brasil e sem intenção missionária,atitude não tolerável pelo catolicismo, religião oficial do Império.84 Presbiterianos, metodistas e batistas oriundos do sul dos Estados Unidos.85 Cf., BITTENCOURT FILHO, J. Terminologias classificatórias do pentecostalismo. São Paulo:PUC, 1996; MENDONÇA, Antonio Gouveia. Terminologias classificatórias do pentecostalismo.São Paulo: PUC, 1996; Cf., OLIVEIRA, P. R. Terminologias classificatórias do pentecostalismo.
67
Tal posicionamento teológico não se faz inerente ao universo protestante, nem
estabelece com ele uma relação necessária. Antes, representa uma reação preservacionista à
leitura fundamentalista da Bíblia.
O espírito da modernidade refletido no liberalismo do século XIX anunciava-se pela
secularização progressiva da sociedade: democratização, libertação do indivíduo em relação
à autoridade, progresso tecnológico, separação Igreja/Estado e concepção evolucionista da
sociedade. Substituía-se a idéia de um mundo feito e estático por outra em que ele se
encontrava em mutação e passível de melhoria, e valorizava-se o indivíduo em detrimento
de qualquer outra forma excessiva de poder. A repercussão deste ideário no campo
religioso impunha a necessidade de se redimensionar papéis e funções da religião face à
ciência, cindindo o protestantismo em torno de duas correntes principais: o liberalismo e o
conservadorismo.
O liberalismo teológico surgiu no protestantismo inglês e estadunidense no final do
século XIX, em um contexto que favorecia a expansão de posições modernizadoras, para as
quais os progressos científicos invalidavam a interpretação literal da Escritura. Propunha a
aceitação das teorias das ciências da natureza a respeito da idade e forma da origem do
Universo e da vida. Em destaque, o evolucionismo darwiniano que, ao admitir uma origem
comum a todas as formas de vida, se opunha à doutrina tradicional da criação, baseada nos
escritos do Antigo Testamento.86
São Paulo: PUC, 1996; Cf., ORO, Ari Pedro. O Espírito Santo e o pentecostalismo., Porto Alegre:Telecomunicação, v. 25, n. 107, mar/95.86 Cf., ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no Judaísmo, noCristianismo e no Islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 204.
68
Em contraposição, o conservadorismo atém-se com fidelidade às Escrituras
Sagradas, refutando o emprego de métodos e técnicas originárias das ciências naturais,
sociais e históricas que auxiliam o estudo da Bíblia e de seus manuscritos. A única leitura
admitida é a que se faz literal e acrítica de seus próprios fundamentos, pleiteando para si a
única condição de cristianismo autêntico.87 “A defesa do tipo da civilização cristã ocidental
corporificada na cultura dos países protestantes dominantes justificava a renúncia
intransigente à racionalidade e às ciências”. 88
Como matriz filosófica e teológica, o conservadorismo reporta-se ao empirismo e ao
método indutivo, circunstância em que o indivíduo é percebido desprovido de qualquer
forma de saber que o habilite a um conhecimento antecipado da realidade. Conhecer é a
faculdade dos órgãos dos sentidos, resulta da experiência sensorial com os objetos que
compõem o campo de conhecimento. Não admite, entretanto, o conflito entre o dado
heurístico e o dado científico, uma vez que opera em função da distinção entre a verdadeira
e falsa ciência, cujo critério de determinação é à atitude que o indivíduo assume em relação
à fé. Qualquer dúvida que se coloque à mesma revela a falsa ciência, uma vez que a fé é
considerada sempre racional e verdadeira.
87 Karen Armstrong afirma em sua obra que para os conservadores a verdade literal das Escriturasconstituía uma questão de vida ou morte para o Cristianismo. Para lutar contra os ataques dosliberais e críticos da Bíblia, foi necessária uma campanha contundente fundando uma “associaçãopara promover a interpretação literal das Escrituras e as doutrinas ‘cientificas’ do pré-milenarismo.Em 1919, realizou-se na Filadélfia um congresso do qual participaram 6 mil cristãos conservadoresde todas as denominações protestantes”. As campanhas prosseguiram no sentido de expulsarem osliberais das várias denominações. Cf., Ibid., p. 202-3.88 MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P., op. cit., p. 114.
69
Uma das variantes mais tangíveis do conservadorismo é o fundamentalismo,89
originado do esforço de fixação das doutrinas cristãs, entre elas a autoridade inspirada na
Bíblia, a deidade de Jesus Cristo e o seu nascimento virginal. Rigidez e intolerância
integram o universo fundamentalista: fechado, voltado inteiramente para o sobrenatural e o
89 O conservadorismo tem sido freqüentemente tomado como sinônimo de fundamentalismo, quasesempre em referência ao pentecostalismo. Embora o primeiro contenha o segundo, faz-se necessáriodemarcar alguns pontos discutindo o que vem a ser o fundamentalismo. Para Ivo Pedro Oro, ofundamentalismo é um conceito ambíguo, sendo “hoje sinônimo de quase tudo o que cheira atradicional, conservador, sectário ou dado a excessos na vivencia religiosa”. Cf., ORO, I. P. O outroé o demônio. São Paulo: Paulus, 1996, p.44. Para Jürgen Moltmann, o fundamentalismooriginariamente designava “determinada corrente do protestantismo americano que se opunha aqualquer adaptação moderna e liberal da igreja invocando os fundamentos bíblicos da fé cristã: ofundamento da fé interpretado de maneira bem arbitrária”. MOLTMANN, J.Fundamentalismo emodernidade. In: Concilium, 1992, p.24. De modo geral, o fundamentalismo se relaciona com oprocesso de modernidade, muitas vezes como reação à mesma, embora possa ser essa apenas umaposição retórica, na medida que, rejeitando a cosmovisão moderna (pluralismo, cosmopolitismo,racionalidade, progressismo e secularismo), o fundamentalismo recorre à tecnologia, bem comopossui traços da modernidade como o individualismo e a aceitação do racionalismo científico.Karen Armstrong examina o termo fundamentalismo argumentando que: “Os primeiros a utilizá-loforam os protestantes americanos que, no início do século XX, passaram a denominar-se‘fundamentalistas’ para distinguir-se de protestantes mais ‘liberais’que, a seu ver, distorciaminteiramente a fé cristã. Eles queriam voltar às raízes e ressaltar o ‘fundamental’ da tradição decertas doutrinas básicas. Desde então se aplica a palavra ‘fundamentalismo’ a movimentosreformadores de outras religiões. Tem-se a impressão de que os fundamentalistas são inerentementeconservadores e aferrados ao passado, e, no entanto, suas idéias são essencialmente modernas einovadoras. Queriam voltar ao ‘fundamental’, porém, os protestantes americanos agiram de ummodo peculiarmente moderno”. ARMSTRONG, K., op.cit., p.10. Paul Freston, citando Moltmann,nota a oposição fundamentalismo/liberalismo, agora acrescida do pluralismo que caracteriza asociedade contemporânea, percebendo que os fundamentalistas “não reagem às crises do mundomoderno, mas às crises que o mundo moderno provoca em sua comunidade de fé e em suasconvicções básicas [...] Diante da moderna subjetividade do homem e das liberdades individuais, osfundamentalistas colocam na autoridade divina a segurança de sua fé”. FRESTON, P. Protestantese politica no Brasil , p. 26. Resulta que por fundamentalismo entende-se comumente o movimentoultraconservador e autoritário, surgido em certos meios protestantes como reação ao modernismoteológico e religioso, que prega como fundamentos inabaláveis da fé verdades tradicionais de suaconfissão. A designação fundamentalismo deriva da preocupação em manter como absolutos osfundamentos doutrinais confessionais, aos quais se agarra literalmente, excluindo toda interpretaçãocrítica – rótulo negativo e pejorativo, comumente generalizante quando aposto aos pentecostais, quepreferem se auto-intitular evangélicos-conservadores. Permanece em questão, sujeito a amplascontrovérsias, o fato de ser a Assembléia de Deus fundamentalista. Leituras, entrevistas, bem comomeu convívio com assembleianos, não me permitiu afirmar serem eles fundamentalistas; emboramuitos se declarem apegados a uma leitura não interpretativa e à aceitação histórica da inerrânciabíblica, há aqueles que se dispõem a uma atitude questionadora e histórica diante dos costumes eque realizam uma leitura bíblica mais interpretativa e contextualizada.
70
a-histórico, não dando margem ao social nem à presença da Igreja no mundo. A crença
milenarista, reforçada pela leitura descontextualizada da Bíblia, alimenta
Uma fé passiva, em busca de sinais. Não favorece a reflexão teológica, umavez que a fé está cristalizada na reta doutrinaria, nem gera utopias pois ainterpretação da Bíblia já está fixada, é um dogmatismo escolástico,autoritário e ultraconservador90.
A filosofia do senso comum forneceu base inquestionável para uma filosofia das
ciências durante o século XIX nos Estados Unidos. O liberalismo, baseando-se na aceitação
de que o conhecimento da verdade é acessível a todos e que a compreensão da realidade
não pressupõe mediações, contribuiu com elementos para a ordem moral nacional e
também confirmou o que havia de racional e de científico nas verdades bíblicas. O
liberalismo manifestou um otimismo humanista: a sociedade avançando em direção à
realização do reino de Deus, que seria um estado ético de perfeição humana. Segundo o
liberalismo, a Igreja é o movimento daqueles que se dedicam a seguir os princípios e os
ideais anunciados por Jesus Cristo, que forneceu o exemplo supremo de uma vida abnegada
de amor, e os membros dessa comunhão cooperam mutuamente para edificar o reino de
Deus.
O protestantismo brasileiro, no entanto, edificar-se-ia em torno de idéias residuais,
minoritárias e vencidas. Melhor dizendo, o liberalismo que aqui chegou não percebia o
Reino de Deus na Terra como uma construção humana, passível de ser alcançada antes da
volta de Cristo, visão divulgada pelos colégios protestantes, instrumentos de difusão
cultural e representante do pós-milenarismo e do liberalismo, cuja expressão mais radical
90MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P., op. cit., p. 131.
71
foi o evangelho social.91 Restou-nos, tão somente, a corrente do desencanto humano, do
pré-milenarismo,92 o cansaço teológico, que atribui a criação do Reino de Deus a um evento
sobrenatural e pós-histórico cuja concretização dar-se-ia pela melhoria da sociedade após a
conversão do maior número possível de indivíduos à fé cristã. Valorizava-se,
conseqüentemente, a difusão da mensagem – o proselitismo.
Tomando cristianizar por colonizar, os protestantes justificavam seu trabalho, entre
outros motivos, pela necessidade de garantir educação e formação moral a quem não fora
permitido ler a Bíblia em seu próprio idioma. Apesar da doutrinação da elite dominante ter
por base práticas modernizantes93 e liberais, não houve uma adesão maciça dos intelectuais,
mesmo entre seus simpatizantes.
91 O evangelho social enfatizava a necessidade de se modificar a sociedade corrompida que, por suavez, estava corrompendo o homem. Os partidários do evangelho social falavam do reino onde oshomens viveriam como irmãos num espírito de cooperação, amor e justiça. A Igreja deve desviarsua atenção da salvação dos indivíduos pecadores para a ação coletiva de salvar a sociedade.Conseguir uma vida melhor na Terra havia sido substituído pela preocupação com a vida no Além,e esperava-se que Cristo e os valores cristãos conquistassem o mundo. O progresso podia ser vistono avanço da democracia política, no movimento em favor da paz mundial e nos esforços para o fimda discriminação racial.92 “Entendem o milênio como período de justiça universal estabelecido na segunda vinda de Cristo.Tal acontecimento será visível e súbito, sem nenhum aviso prévio, precedido apenas do anúncio doevangelho a toda a humanidade. Durante o milênio os justos ressuscitarão e participarão do governouniversal de Cristo. Ocorrerá ainda um período de grande tribulação – são citados freqüentementeAp. 2:27 e Sl. 20 como base – acompanhado da admissão por parte de Israel da messianidade deCristo, da conversão de um grande número de pecadores e, por fim, da vitória final sobre Satanás,que será jogado em um abismo. Passado o milênio, Satanás será solto e tentará mais uma vez avitória. Nessa ocasião, ele, seus anjos e as almas perdidas então ressuscitadas, serão julgados,condenados e lançados para tormento eterno num lago em chamas”. MENDONÇA, A. G. &VELASQUES FILHO, P., op. cit. p. 125-6.93 O termo “modernizante” é atribuído aos ideais missionários, se aplica apenas em referência aocontexto brasileiro do final do século XIX, impregnado do catolicismo ultraconservador domontanismo. “Há um visível descompasso com a sociedade, descompasso que é historicamenteexplicável: no momento em que o protestantismo foi inserido na sociedade brasileira, esta se achavanum estágio de desenvolvimento significativamente anterior à sociedade norte-americana; por issoo protestantismo foi recebido como vanguarda do progresso e da modernidade. Hoje, quandomovimentos neoconservadores e reformistas atingem valores, as Igrejas brasileiras, na esteiradesses movimentos, agitam-se na busca de valores que nunca fizeram parte da sociedade brasileira.Assim, se no passado o protestantismo brasileiro apontou para o futuro, hoje ele aponta para o
72
Herdeira do missionarismo norte-americano que, iniciado no século XIX iria
estender-se até a I Guerra Mundial, correspondendo em termos políticos e econômicos ao
expansionismo do capitalismo mundial, as Assembléias de Deus assimilaram do
protestantismo histórico os aspectos teológicos doutrinários mais conservadores,
desenvolvidos nos movimentos de reavivamento wesleyniano como aconteceu com todo o
pentecostalismo brasileiro, especialmente da Assembléia de Deus tradicional “que
conjugados ao apocalipsismo, hipertrofia pneumológica, ética intransigente,
conservadorismo cultural e mundividência rural formam o quadro que informa o ideário da
denominação”. 94
A teologia dos avivamentos sofrera grandes transformações desde o seu modelo
original, acadêmico e elitista. Centrou-se no medo da punição eterna, na soberania absoluta
de Deus e na doutrina calvinista da eleição, feição com que, no início do século XX, o
pentecostalismo clássico ressurge com a motivação explícita de recuperar a atualidade da
experiência cristã.
O reavivamento que alimentou o missionarismo metodista surgiu na Inglaterra,
porém, foi nos Estados Unidos que ganhou expressão como movimento de santificação
originário do pietismo. Posteriormente, aliado ao puritanismo resgatou o misticismo
criando um ambiente propício ao surgimento de fenômenos espirituais. Tratava-se de
versão protestantizada do ascetismo, que deu origem a um entusiasmo fanático com o qual
passado – aliás, um passado inexistente”. MENDONÇA, ª G. & VELASQUES FILHO, P. op. cit.,p. 13.94 BITTENCOURT FILHO, José. A memória é sempre subversiva: as Assembléias de Deus nocontexto brasileiro. In: Imagens da Assembléia de Deus.Ciências da Religião, Cadernos de Pós-Graduação, UMESP, s.l.d., p. 32.
73
se assemelhou mais tarde o culto pentecostal. Como a teologia do reavivamento metodista
enfatizava o papel do homem, que usa sua liberdade e responsabilidade para responder ao
chamado universal de Deus, aceitando a salvação através de Jesus Cristo,
O batismo do Espírito Santo não é idêntico com a salvação: a salvação sóprovém da fé; o batismo do espírito, entretanto, é uma benção que vem dasalvação. Aceitar a salvação que Deus nos oferece e recusar o batismo doEspírito que Deus também nos oferece é um grande erro que ofende adignidade do Pai Celeste. Irmãos das outras denominações, vós que estaissalvos, buscai o batismo do Espírito Santo.95
Dispensam prejulgamento ou predestinação. O destino final está condicionado à
experiência da fé e não a uma predeterminação divina. O desligamento das coisas do
mundo, a busca da perfeição cristã e a responsabilidade evangélica seriam sinais exteriores
de sua aceitação. Gerou-se, desta forma, uma doutrina de salvação centrada na antropologia
dominada pelo emocionalismo evolutivo.
O puritanismo, originalmente muito próximo do calvinismo, aos poucos se afastou
de sua ortodoxia para receber a predestinação, não mais como teologia universal, mas como
mistério discernível apenas pela fé dos eleitos. O ser humano informado pela fé de sua
salvação deve adotar um tipo de comportamento que o distingue enquanto eleito, não como
sinal visível para si mesmo, mas, sim, para a comunidade. Edifica-se, desse modo, uma
ética puritana na qual o ativismo alcança papel central, enquanto são condenados
comportamentos que desviem as energias do homem para outras atividades que não as de
louvor a Deus.
95 Ibid., p. 29.
74
Em relação ao pietismo, temos a aceitação da justificação pela fé, iniciando o
homem uma nova vivência em Jesus Cristo, ou seja, uma constante busca da perfeição
cristã, só tangível pelo isolamento em relação às questões mundanas, que dão lugar a uma
ética negativista:
A perfeição era simplesmente a completa devoção a Cristo e isso deveria seexpressar em cada atitude ou pensamento. Ela era o sempre presente poder deCristo transformando a natureza humana a fim de que o homem faça apenasaquilo que reflita a sua vontade. A presença de Cristo permeia o ser, como osangue permeia o corpo. Os atos e pensamentos perfeitos são reflexos dessapresença de Cristo. Não pode haver ação ou pensamento perfeito semCristo.96
A liberdade, presente enquanto princípio desde a origem do protestantismo é
exarcebada pelo pietismo. Fundamenta-se pela afirmação do direito de livre interpretação
da Bíblia e o livre acesso a Deus, excluindo os dogmas e os intermediários, e é percebida
como corolário do individualismo.
A salvação é buscada na realidade do presente como realização subjetiva. Compete,
no entanto, ao pregador convencer seus ouvintes dos seus pecados, levá-los ao
arrependimento e torná-los responsável pela aceitação ou rejeição da salvação. Faz-se
necessário criar um clima altamente emocional, em que choros e desmaios são habituais.
“Sempre houve um forte apelo religioso de protestantismo em virtude do incentivo à
piedade individual e da independência pessoal quanto à obtenção da salvação.” 97
Nutrindo-se do pentecostalismo clássico, a Assembléia de Deus herdou do
protestantismo seu puritanismo e seu pietismo, o que resultou no dualismo histórico, no
moralismo e no imediatismo que tipifica a relação do crente com Deus. Ela acentua, ao
96 MENDONÇA, A.G. & VELASQUES FILHO, P., op. cit., p. 97.97 MENDONÇA, ª G. & VELASQUES FILHO, P. op. cit., p. 23.
75
mesmo tempo, à distância entre o natural e o sobrenatural. Enfatiza de dois modos o falar
em línguas estranhas como sinal do batismo com o Espírito Santo98 e como dom de Deus
ao crente. Interpreta o comportamento como sinal externo da salvação, entendendo que o
dom de cura pode ser ocasional ou permanente, e lhe atribui grande importância
significativa.99 Escatológica, vive na dispensação da graça,100 creditando valor mais alto às
epistolas de Paulo que aos evangelhos, à experiência religiosa que à pureza doutrinária. Há
dúvidas quanto a lhe atribuir o rótulo de fundamentalista, mesmo com predominância de
atitudes acríticas em relação à aceitação do texto bíblico.
98 Beatriz Muniz de Souza diz que “a posição doutrinária adotada pelos grupos pentecostais prende-se, no nível psicossocial, à dramaticidade da experiência da salvação, sendo freqüente, durante aspregações, o enfático e emocional apelo à necessidade de que os pecadores se arrependam dos erroscometidos e se convertam ‘aceitando Jesus como único salvador’. Poderá então ser alcançada arecompensa espiritual da santificação completa, marcada pelo ‘batismo do Espírito Santo”.SOUZA, B. M. op. cit., p. 53.99 O “dom de cura” merece destaque tanto nas obras doutrinárias quanto nas declarações de fé dasigrejas pentecostais, sendo, especialmente quando exercido pelos líderes, associado ao dom de“operação de milagres”, em referência às enfermidades mais graves. SOUZA, B. M. op. cit., p. 58-9. Mendonça cita a Assembléia de Deus como sendo administrada por líderes que são a um sótempo autoridade tradicional carismática no sentido weberiano, que atribuem grande ênfase ao domde línguas, entendendo que esse dom se manifesta de dois modos como sinal de regeneração, ouseja, de confirmação do recebimento do batismo pelo Espírito Santo e o dom permanente daglossolalia, dádiva concedida apenas a alguns fiéis para edificação da comunidade religiosa. Nãoinclui, entretanto, o dom de cura divina como atributo da Assembléia de Deus, mas comomanifestação restrita aos movimentos dissidentes do pentecostalismo clássico, que recusam aautoridade tradicional aceitando apenas a autoridade carismática, constituídos quase sempre degrupos de pequeno porte sem nenhuma tradição. Esses posicionamentos refletem a grandedificuldade de classificar e/ou estabelecer tipologias para o pentecostalismo, seja pela carência deestudos acadêmicos ou pela fragilidade dos conceitos, interpretados hoje à luz da sociologia devido,em parte, ao seu próprio dinamismo. Cf., MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P. op. cit.,p.157.100 “A começar pela criação do homem até o Juízo Final, são estabelecidas sete épocas ou‘dispensações’, sendo a última delas a ‘milenar’, caracterizada pelo reino de Cristo na Terra”.SOUZA, B. M. op. cit., p. 60. Para os pentecostais as dispensações são revelações progressivas eassociadas dos procedimentos de Deus para com o homem, na qual, tem como propósito colocar ohomem sob uma especifica regra de conduta. As sete dispensações são: Inocência; Consciência ouResponsabilidade Moral; Governo Humano; Promessa; Igreja e Reino.
76
2 – TRANSIÇÃO E ORIGEM DE DOIS DISCURSOS TEOLÓGICOSMORAIS NAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS
Embora com características urbanas, a Assembléia de Deus tradicional erigiu-se em
meio à marginalidade, enfrentando a proletarização crescente dos grandes centros.
Reacionária face ao racionalismo moderno da cidade, encontra celeiro fácil nas classes
inferiores, em que as concepções racionais são menos acessíveis e o indivíduo é mais
sensível à magia que o pentecostalismo oferece, em contraste com o racionalismo crescente
do protestantismo histórico. Favorece, dessa forma, o desenvolvimento de uma expressão
religiosa, cuja racionalidade ética tem que ser buscada em uma perspectiva de retribuição: a
salvação. A Assembléia de Deus se destaca pela ênfase dada aos dois estágios da salvação,
a saber: em primeiro lugar, à conversão; em segundo, à santificação. Esses dois estágios
também dão a direção para dois discursos na comunidade. Primeiramente, eles objetivam
promover a conversão de pessoas ao grupo; em segundo lugar, procuram manter viva a
tradição do Pentecostes, enfatizando as práticas, os rituais e a adoção de posturas morais
que podem assegurar a permanência da pessoa na corrente dos que atualizam essa tradição.
Estamos vivenciando um período histórico de transição, uma época de mudanças
vertiginosas, profusas e desestabilizadoras que, se corretamente computadas, têm sido
muito mais numerosas, profundas, abrangentes e impactantes nos últimos trinta ou quarenta
anos do que foram durante toda a história das Assembléias de Deus. São mudanças
tecnológicas, culturais, filosóficas, políticas, científicas e sociológicas, as quais têm afetado
cada pequena fibra do tecido social contemporâneo.
Essas mudanças que ocorrem na sociedade a cada dia não são absolutamente
irrelevantes para a Igreja Assembléia de Deus. Ao contrário, criam um dilema que exige
77
uma resposta urgente para que ela se mantenha firme no seu discurso moral: como levar o
sagrado para fora de suas paredes, trazendo problemas profanos para dentro sem, no
entanto, “macular” nem deixar transparecer essa mudança? Deve ela se sentir parte do
mundo moderno globalizado, aguardando o que o futuro lhe reserva, principalmente o que
está previsto em sua escatologia ?
Como respostas alternativas, posso dizer que a Assembléia de Deus tradicional
possa procurar uma fuga ascética do mundo, fechando-se completamente para a
modernidade, não aceitando as mudanças ocorridas. Outra alternativa seria que, para a
Assembléia de Deus se adequar ao mundo contemporâneo, teria de exercer uma atuação
equilibrada diante das mudanças ocorridas, não se fechando totalmente a elas como uma
ostra dentro de si mesma, nem aceitando inconseqüentemente suas implicações como uma
esponja que a tudo absorve. Tal postura representaria, na verdade, ser fiel à sua identidade
do passado, tendo a consciência das necessidades de hoje. E foi isso que percebeu Ricardo
Gondim, em 1982, quando assumiu a liderança da Missão Betesda, transformando-a na
Igreja Assembléia de Deus Betesda e desligando-se da Convenção Geral das Assembléias
de Deus no Brasil. Ele criou uma convenção própria para a nova Igreja, para que esta
pudesse atender as necessidades de um mundo globalizado.
A liderança da Assembléia de Deus tradicional representada por José Wellington
Bezerra da Costa, que preside a Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil, e os
pastores de uma mesma linha de pensamento, ou seja, os conservadores, como é o caso de
Elinaldo Renovato de Lima, analisado nesta dissertação, preferiram permanecer com a
mentalidade e o mesmo discurso tradicional que se faz presente em grande parte das
Assembléias de Deus no Brasil. Eles tentam preservar seus fiéis do modo mais puro
78
possível, ao mesmo tempo em que se distanciam, pelo menos dentro dos muros
eclesiásticos, dos avanços tecnológicos advindos da modernidade.
Como não podemos parar o relógio da História, ou despachar o mundomoderno para outras eras, temos que manter o compromisso para com osvalores que herdamos de nossos pais na fé, a fim de não deixarmos esmaecera nossa identidade. Isso equivale a trazer de volta os ensinamentos da igrejados Atos dos Apóstolos; da igreja da Reforma e da igreja de nossos primeirosmissionários, os quais acenderam uma chama, que apesar de enfraquecida,ainda brilha em solo brasileiro.101
A Assembléia de Deus tradicional, diante da dificuldade de se conduzir na sociedade
em conformidade com os novos valores, deveres e disposições acentuadamente
contraculturais, peculiares e sectários, num primeiro momento, acabou criando para si
verdadeiros monastérios e neles se fechando: a igreja e a casa.102 As exceções ficam por
conta do trabalho e da obra de evangelização. Por várias décadas, tais prescrições legalistas
resultaram na fuga ascética do mundo; a promessa de salvação paradisíaca no
pentecostalismo sempre foi acompanhada de forte rejeição e desvalorização do mundo.
Como Ricardo Gondim teve uma formação teológica mais liberal, fruto de sua vivência nos
Estados Unidos,103 ele pôde perceber as transformações das tradicionais concepções
pentecostais no Brasil acerca da conduta e do modo de ser cristão no mundo e, assim,
contribuiu para o surgimento de um discurso teológico moral diferenciado de sua matriz
religiosa no Brasil.
101 AYRES, Antônio Tadeu. Reflexos da globalização sobre a Igreja: até que ponto as últimastendências mundiais afetam o corpo de Cristo ? Rio de Janeiro: CPAD, 2001, p. 67.102 Cf., BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. p. 142-3.103 A Assembléia de Deus norte-americana não tem doutrinas tão rígidas quanto aos usos ecostumes de santidade exigidos pelos líderes, como acontece nas Assembléias de Deus no Brasil.Nos Estados Unidos, a ascensão social não é só permitida como também estimulada.
79
Para perceber essa transformação do discurso teológico moral é necessário saber
como ocorreu a transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Essa transição
nos ajudará a entender melhor os dois discursos teológicos morais que se desenvolveram na
Assembléia de Deus tradicional e na Assembléia de Deus Betesda.
Nas sociedades tradicionais,104 a religião detinha o poder de fornecer à maioria da
humanidade uma visão e explicação do universo, sendo sua estrutura social baseada no
modelo hierarquicamente divino, ou seja, o céu confere a Terra seu modelo e autoridade,
sendo essa hierarquia aplicada integralmente na Terra pela Igreja. Por ser um modelo
divino, não podia ser questionado, devendo apenas ser aceito e obedecido. O clero, aliado
às monarquias vigentes, legitimava sua autoridade através de uma leitura da ordem e
subordinação dos poderes celestes. Olhavam para os céus e para as escrituras sagradas,
observavam como funcionava a relação de poderes divinos e angelicais e traduziam para os
habitantes da Terra o modelo a ser reproduzido. A graduação de autoridade: Deus e o Filho-
anjos-homens é o modelo escolhido por Deus para governo humano. Rei - clero e nobres-
plebe. Assim, essa imagem central do mundo legitimava com eficácia o poder estabelecido.
Portanto, perplexos e angustiados pelas indagações que faziam à vida, os homens voltavam-
se para a religião buscando respostas.
As relações sociais neste tipo de sociedade se dão através de vínculosfamiliares, dominados por padrões de autoridade patriarcal. A famíliaconstitui a base da sociedade. Os comportamentos e ações sociais sãoprescritos pela tradição e autoridade. São sociedades homogêneas, com uma
104 Segundo Jung Mo Sung, “o conceito de sociedade tradicional é utilizado para designar sistemassociais que, de modo geral, correspondem a critérios de culturas avançadas em relação às formassociais mais primitivas, mas que existiam antes da primeira industrialização no mundo ou que aindanão sofreram o impacto do encontro socioeconômico com o processo de industrialização”. SUNG,Jung Mo. Teologia e economia: repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes,1994, p. 151.
80
união baseada em ‘formas rígidas de vida, indiferenciadas’, prescritas pelacomunidade. Nestas sociedades se dá muita importância à palavra, honra esangue (relações de parentesco).105
Nesse sentido, podemos dizer que a moral está estabelecida nos alicerces da
tradição, significando que a religião é à base da legitimação da ordem estática estabelecida
diante das novas gerações. Desenvolve-se a partir daí um discurso nos padrões de morais
do passado, não podendo dar lugar a inovações. Como diz José Wellington Bezerra da
Costa: “A doutrina, por ser bíblica, não pode sofrer adaptações, conforme as circunstâncias
da época. Na Palavra de Deus não se pode mexer.”106
Na modernidade, esse monopólio foi rompido e o homem, sua razão e sua técnica,
passaram a representar os únicos referenciais possíveis. Segundo Jung Mo Sung, a transição
da sociedade tradicional para a sociedade moderna “caracterizou-se pelo fortalecimento de
três instituições: o Estado nacional, o mercado e a moeda, impulsionados pelo
desenvolvimento técnico”.107 Portanto, ao tornar-se independente da ditadura da religião, a
razão conseguiu expandir-se e desembocar numa explosão da ciência e da técnica que se
processou no desenvolvimento industrial. Com esse desenvolvimento nasceu uma
sociedade voltada para oferecer o maior número de bens, produtos e informações. A
velocidade com que os produtos chegavam às pessoas, bem como o alcance da sua
distribuição, converteram, como afirma Peter Drucker, o capitalismo em “Capitalismo”.108
105 Ibid., p. 152.106 COSTA, J. W. B. da. Doutrinas e Costumes. Disponível na Internet, http://www.cgadb.com.br.Acessado em 26/02/2004.107 SUNG, Jung Mo, op. cit., p.159.108 Cf., DRUCKER, Peter. Sociedade pós-capitalista. São Paulo: Pioneira, 1993. p. 18-9.
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Segundo Francis Fukuyama, a tecnologia tornaria possível o acúmulo ilimitado de
riqueza, e, portanto, de satisfação de um conjunto sempre crescente de desejos humanos.
Esse processo garante, então, uma homogeneização uniforme de todas as sociedades
humanas, independentemente de suas origens históricas ou de suas heranças culturais.
Além disso, a lógica da ciência natural moderna parece ditar uma evolução universal na
direção do capitalismo.109
Essa velocidade produtiva foi, portanto, responsável por todas as elevações do padrão
e da qualidade de vida nos países desenvolvidos. Esse “Capitalismo” necessitava conduzir
as pessoas não apenas à compulsão para compra, mas, também, à provisão de meios para
concretizar seus desejos. Os indivíduos transformam-se em consumidores que exigem
produtos cada vez melhores e mais adaptados às suas necessidades ou desejos. Em uma
sociedade secularizada, a religião deixou de ser o centro da sociedade. Se outrora
legitimava as diversas atividades sociais, hoje, cada tarefa social é justificável por si
mesma.
A diferença é que esta nova legitimação da dominação não desce mais do céuda tradição cultural, mas é soerguida a partir da base do trabalho social. Agora ainstituição do mercado promete a justiça da equivalência das relações de troca.A categoria da reciprocidade usada para fundamentar a nova legitimação é opróprio princípio de organização dos processos sociais de produção ereprodução.[...] Essa inversão não significa o abandono da utopia, da esperançado “banquete celestial”. Mas sim uma profunda transformação no conceito dotempo e da história. Um reposicionamento da utopia.110
Podemos dizer, então, que o paraíso se dá aquém e não mais além da história. O
velho conceito do paraíso no céu, chega a Terra, um projeto a ser concretizado na história
109 Cf., FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco. 1992, p.56.
82
do homem. O banquete celestial será servido àqueles que tomarem o caminho do progresso
rumo ao paraíso. Chega-se até lá, principalmente, pelo aperfeiçoamento do progresso rumo
à perfeição. Uma vez que esse homem moderno é capaz de tudo, naturalmente ele é capaz
de transformar sua sociedade, seu mundo, e não só isso: ele poderá instaurar o tão
prometido paraíso aqui na sua própria Terra, com a ajuda de Deus, pois, este é uma figura
usada para que esse homem conquiste seu desejo infinito.
Na mudança ocorrida na passagem da sociedade tradicional para a sociedade
moderna, destaca-se em especial o deslocamento da utopia cristã do paraíso, que se
concretizaria no além histórico através da ascese religiosa, acompanhada de uma moral
rígida e valores morais aperfeiçoados, para o aquém, em que o banquete celestial será
servido a todos aqueles que, conduzidos pelo aperfeiçoamento técnico, chegarem ao paraíso
do consumo infinito. Essa transformação provocou também mudanças no discurso
religioso, principalmente no meio pentecostal, que passou por um processo de
transformação, tornando-se moderno e contraditório, assim como a própria lógica do
mercado moderno. Com isso, apareceu na religião uma “mentalidade de mercado”,
expressão que Peter Berger111 cunhou por analogia com o que sucede no campo econômico,
em que vários produtos são ofertados obedecendo às leis de compra e venda. Nesse
conceito de mercado, as várias ideologias e religiões são oferecidas aos indivíduos
procurando cativar uma clientela. Eficiência, marketing, relações públicas e capacidade
gerencial passam a ser a obsessão dos que estão no mercado. Esses instrumentos da
administração de empresas, em uma situação de mercado, capacitam ao produtor
110 SUNG, Jung Mo, op. cit., p. 164.111 Cf., BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. SãoPaulo: Paulus, 1985.
83
mercadejar mais facilmente seu produto. Dessa forma, a religião transforma-se em mais um
participante do mercado. Para sobreviver, precisa passar por adaptações constantes. No
mercado, o cliente sempre tem razão e, como o gosto dos clientes muda rapidamente, a
mentalidade da igreja pentecostal é pressionada para adaptar-se com um novo discurso
teológico, mostrando que “a igreja é o sinal mais concreto do reino de Deus na Terra.”112
Antes de ser um espaço para o aprimoramento dos potenciais humanos ouuma instituição social, a igreja necessita enxergar-se como a expressão docorpo de Cristo na Terra. Como Cristo transmitiu Deus, hoje compete à igrejatransmitir Cristo ao mundo. Somente assim ela pode ser um espaçointerativo, pois, quando entender sua tarefa de encarnação, ela verá comocorpo. 113
É bem verdade que, apesar de procurar mostrar-se mais liberal, em especial maior na
área dos usos e costumes de santidade, a Betesda apresenta uma inteiração de sua tradição
religiosa, pois, em vez de manter-se apartado do mundo, esse crente, acima de tudo, está
imbuído de um espírito guerreiro já que, em “nome de Jesus” e com a autoridade por Ele
concedida, dispõe-se intrepidamente a transformar o mundo. E apesar de ciente de suas
limitações e fraquezas, tem a convicção da vitória. Como herdeiro das promessas divinas,
vê-se como mais do que vencedor e crê em todo poder naquele que o fortalece.
Segundo Ricardo Gondim, preservar as tradições de usos e costumes na Igreja é
fechar os olhos para as mudanças sociais e culturais ocorridas no mundo e nas pessoas.
Ficar anacrônico e preso aos ícones e símbolos do passado é praticar de forma velada uma
idolatria. Para a Assembléia de Deus Betesda, o caminho tomado foi o de construir uma
Igreja com pessoas diferentes, sem massificação e homogeneidade, olhando o ser humano
112 GONDIM, R. Fim do milênio: os perigos e desafios da pós-modernidade na Igreja. São Paulo:Abba Press, 2002, p. 59.
84
como provido de uma personalidade própria e de senso crítico, portanto, um espaço de
pluralidade.114
É possível perceber que esses traços proporcionaram o desenvolvimento de dois
discursos: o primeiro, trazendo o moralismo como parte essencial da experiência religiosa,
como poderemos observar no discurso de Elinaldo Renovato de Lima, estruturando seu
discurso nas tradições morais dos usos e costumes como essenciais para a santidade. O
segundo, o discurso de Ricardo Gondim, se distingue por uma moral concreta da
experiência religiosa, na qual a santidade não é o resultado da observação às normas dos
usos e costumes e, sim de uma transformação do caráter do indivíduo que possui uma
autonomia maior perante a instituição religiosa.
3– TEOLOGIA MORAL DE ELINALDO RENOVATO DE LIMA
O discurso teológico moral de Elinaldo Renovato de Lima será um dos objetos de
análise nesta dissertação porque ele é um dos representantes importantes da Assembléia de
Deus tradicional e faz parte da ala mais radical que diz que a Bíblia deve ser lida de forma
literal. Seus livros são publicados pela CPAD, e os mais importantes são: “Ética Cristã:
confrontando as questões morais do nosso tempo”; e “Aprendendo diariamente com Cristo:
como viver a vida em um mundo em conflito”. Seu objetivo principal é estabelecer uma
ligação entre os princípios bíblicos e os problemas do cotidiano dos crentes na atualidade.
Para isso, busca nos antigos personagens da Bíblia modelos a serem seguidos, uma
referência de homem moralmente correto para os dias atuais, mostrando como deve ser a
vida do cristão evangélico.
113 GONDIM, R. Fim do milênio. p. 58.
85
Diante da mobilidade social de parte dos fiéis, das promessas da sociedade de
consumo, dos serviços de crédito ao consumidor, dos sedutores apelos do mundo da moda,
do lazer e das opções de entretenimento criadas pela indústria cultural, Elinaldo Renovato
ainda se prende ao discurso do modelo tradicional e patriarcal dos primeiros anos de
fundação das Assembléias de Deus no Brasil como meio de assegurar os costumes e
hábitos, que, segundo os pentecostais, fazem parte da salvação ou dão certeza de estarem
salvos no outro mundo, libertando-os do sofrimento de uma vida de privações.
O discurso teológico moral de Elinaldo Renovato se distingue pela maneira como
ele apresenta sua argumentação, fundamentando-a em textos bíblicos, transformando sua
interpretação em um centro de valor espiritual, no qual o leitor tem à sua disposição o
padrão bíblico para assuntos que vão desde o posicionamento ético, a vida devocional, o
jejum, os conflitos no lar, a experiência espiritual do Batismo com o Espírito Santo até a
“espera vigilante pela volta de Jesus Cristo”. Sua teologia lida com questões imediatas,
próprias do contexto dos fiéis pentecostais.
Como diz Richard Shall:
Na verdade, em seu mundo a realidade espiritual não está apenas presente,permeando tudo, ela constitui o centro em torno do qual giram suas vidas, olugar em que experimentam mais profundamente os mistérios da vida e domundo. Nada tem mais sentido do que se dirigir a esse reino para solução deseus problemas do dia-a-dia.115
Assim, na espiritualidade pentecostal assembleiana, o espiritual propriamente dito
não se constitui um elemento distinto e fora da realidade concreta do enfrentamento da luta
114 Cf., Ibid., p. 77.
86
pela sobrevivência. Ele penetra em todos os aspectos da vida e fornece energia e inspiração
para superá-los. É uma espiritualidade que oferece respostas às questões mais desafiadoras
dos crentes. Ela é enfatizada como grande virtude para o referencial moral. Nesse âmbito,
entram as normas e tabus comportamentais e os valores morais, em que se destacam os usos
e costumes de santificação. Infunde o desejo de viver o Evangelho de acordo com o mais
puro ascetismo de rejeição do mundo, segundo a definição weberiana, de modo a distanciá-
los de coisas, atitudes, valores e instituições do incrédulo, porém tentador, mundo
circundante. Para tanto, um sistema de proibições, no sentido dos “cultos negativos”
descritos por Durkheim,116 é posto em funcionamento. Logo, o que é produzido pelo
mundo é profano e considerado ilícito para um cristão, como é o caso da música não
evangélica que, segundo Elinaldo Renovato, não traz o louvor a Deus, a santidade bíblica,
ou a glória de Deus, mas, sim, a propagação dos interesses de uma sociedade corrompida
moralmente. Para o crente, o que deve prevalecer é o princípio da glorificação a Deus, no
qual, “um princípio ético abrangente, que inclui não somente o comer e o beber, mas
‘qualquer coisa’ que demande um posicionamento cristão”. 117 Na ótica de Elinaldo
Renovato, o Evangelho é “por natureza contrário ao modus vivendi do homem moderno em
todos os tempos”. 118
Para Elinaldo Renovato, os temas éticos, tais como aborto, eutanásia, planejamento
familiar, sexo, doação de órgãos, clonagem de seres humanos, são polêmicos e por esta
razão exigem respostas claras da Bíblia:
115 CESAR, W. & SHAULL, R. Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Petrópolis: Vozes eSinodal, 1999, p. 202.116 Cf., DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico naAustrália. São Paulo: Paulinas. 1989, p. 363-92.117LIMA, E. R. Ética Cristã. p.20.
87
Procuramos na fonte cristalina da Palavra de Deus as respostas maisapropriadas para que os leitores possam obter um entendimento maisabrangente sobre as inquietantes indagações que trazem estes tempos demudanças rápidas, que não respeitam nem mesmo os mais elementaresprincípios da boa convivência humana. Para esses, a Bíblia tem severacondenação. Sabemos que muitas das perguntas que se fazem, em termoséticos e morais, só terão respostas precisas na eternidade.119
A análise de Elinaldo Renovato para todos os temas éticos seguirá mandamentos que
estão registrados na Bíblia, e não uma postura crítica social ligada à cultura brasileira, suas
evoluções e mudanças ocorridas com o desenvolvimento da sociedade. Para o autor, a
sociedade é corrompida e reprovada por Deus, e o cristão tem que ter um “modo de pensar
e de agir, com base na ética cristã, que tem amplo respaldo na Bíblia Sagrada”120 e que não
sofre mudanças com o passar do tempo, permanecendo com a mesma estrutura no tempo e
no espaço, sem sofrer nenhuma influência do contexto.
3-1 – A Relação do Crente com o Mundo
Tradicionalmente, os pentecostais repudiam o que denominam convencionalmente
de “mundo” ou “mundanismo”. O pentecostalismo herdou a postura de rejeição e
afastamento do mundo diretamente do metodismo e do movimento holiness, dos quais se
originou. Provêm daí às raízes puritanas e pietistas do movimento pentecostal.
Do metodismo e do movimento holiness assimilou o culto, sua teologia básica, com
exceção da glossolalia como evidência do batismo com o Espírito Santo. Desde o princípio,
o pentecostalismo atraía sobretudo as camadas pobres e marginalizadas e sobre essa base
118 Ibid., p. 22.119 Ibid., p. 1.
88
foi difundido. Sectários e ascéticos durante décadas, os pentecostais promoveram forte
desvalorização do mundo. A fim de atingir a perfeição cristã, para onde caminha
espiritualmente aquele que renasce em Cristo, é fundamental que o crente se afaste dos
prazeres, interesses e paixões do mundo. “O apartamento das coisas do mundo deve ser o
denominador comum entre todos os crentes”.121 No caso do pentecostalismo brasileiro, esse
afastamento, naturalmente, desde a primeira década do século XX, expressou-se em radical
anticatolicismo na esfera moral, cultural e religiosa. fator relevante – quem sabe primordial
– para o desenvolvimento do discurso ascético de Elinaldo Renovato.
Na busca da salvação, devem os pentecostais resistir às tentações, ser radicais na
rejeição do mundo. Elinaldo Renovato refere-se à sociedade como corrompida e
participante do reino do mal. O mundo é o reino do pecado e das forças satânicas. O dever
do cristão é afastar-se completamente dele. A intervenção nesse mundo/sociedade perdida
tem que ser espiritual, através da conversão pessoal de cada homem. Os problemas sociais,
como a fome, a miséria e a corrupção, são frutos do pecado individual, portanto, devem ser
resolvidos através da mensagem evangélica que atinge e transforma as almas, e não com
um programa político-estrutural para a sociedade, ou seja, as respostas para todos os males
se encontram na Bíblia Sagrada.122
Purificados dos pecados cometidos antes de renascer no batismo das águas, os fiéis
são instados a trilhar o penoso caminho da santificação. Para que não sucumbam às pulsões,
aos desejos, às próprias inclinações pecaminosas, devem renunciar aos prazeres mundanos,
compreendidos como ciladas do Diabo, por meio da mortificação da carne. Para que o
120 LIMA, E. R. Ética Cristã. p.15.121 NOVAIS, Regina Reyes. Os escolhidos de Deus, p. 82.
89
Espírito Santo lhes preencha a vida, santificando-os, devem morrer para o mundo, o qual,
como causa e lugar de sofrimento, além de rejeitado, deve ser combatido.
Por mais que o cristão esteja bem situado social, política e economicamente no
mundo, segundo Elinaldo Renovato, este cristão deve sempre ter em mente que seu destino
não é permanecer nele. Isso seria uma grande tragédia: “Essa é uma realidade da qual
muitos crentes não têm consciência. Vivem neste mundo, tão arraigados com ele, que
perdem a visão da cidadania celestial. Na verdade, nem somos deste mundo!”123 Portanto,
a participação do crente no mundo deve ser mínima. A sociedade e a cultura têm que ser
evitadas devem ser encaradas como algo “mundano” e depreciativo, uma vida que “é visto
por Deus como reprovável e corrompida”,124 onde os valores morais estão invertidos e seus
referenciais são móveis, instáveis e mutantes, portanto, precisa ser salva pelo poder do
Evangelho.
A partir da crença de que o Diabo está no comando desse mundo, essa teologia têm
fortes razões para justificar procedimentos voltados para a separação do “mundo”. Viver
em ambientes em que imperam atividades e comportamentos considerados tentadores e
pecaminosos, pelo simples fato de virtualmente proporcionarem prazer, exige imenso
sacrifício. Na busca da salvação, o crente, deve resistir às tentações, ser radical na rejeição
do mundo e obedecer aos mandamentos de Deus. Devendo ser virtuoso, ter
autodeterminação e possuir rigidez monástica para não sucumbir ao mundanismo e ser
arrastado pelo caminho largo dos prazeres da carne e das paixões do mundo.
122 Cf., LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p.230.123 LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 199.124 Ibid., p.14.
90
Esse sistema de tentação, chamado mundo, tem atuado de modo avassaladornos últimos tempos. As estruturas do pecado são cada vez mais sofisticadas.Hoje, porém, há toda uma estrutura empresarial que facilita a prática dospecados sexuais. Os motéis diariamente divulgam sua propaganda na TV,mostrando suas instalações e convidando ao pecado. São verdadeirasempresas a serviço do Diabo, oferecem todo o conforto para que alguémpratique o pecado sexual.125
Segundo Elinaldo Renovato, o cristão deve ter o caráter firmado em Cristo para não
ser derrotado pelas tentações impostas pelo mundo. Nenhum cristão tem vida isenta das
tentações, pois, quando Deus permite que tentações e tribulações do mundo venham a
afligir o crente, há um lado positivo, pois, faz crescer a confiança e a esperança em Deus.
A vida de tentação acaba se tornando uma escola de aperfeiçoamento.
As injustiças sociais, a miséria e as guerras que assolam o mundo são avaliadas
como fruto da própria condição de pecadores em que se encontram os seres humanos ou
como conseqüência do distanciamento de Deus. Segundo o autor, “na verdade, Deus fez o
homem para viver plenamente, com saúde física e mental. Entretanto, o pecado modificou a
estrutura psicossomática, causando desgastes que levam a doenças, à velhice e à morte
física”.126 Essa doutrina teológica, vigente entre os pentecostais da Assembléia de Deus,
traz implicações de natureza prática, já que tendem a aceitar, de forma bastante passiva, a
“vontade de Deus” diante da doença, das tragédias pessoais e dos problemas financeiros.
Essa visão escatológica é um apocalipcismo que transforma a fé cristã em uma expectativa
passiva. Quanto aos problemas familiares, há uma persistência maior em resolvê-los, já que
os pentecostais vêem a família como um projeto divino.127 Em sua argumentação, Elinaldo
125 Ibid., p. 213.126 LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 145.127 MENDONÇA, A. G. op., cit., p.138.
91
Renovato não vê o problema social como derivado basicamente do econômico ou político,
mas, sim, do afastamento da família, da oração, e da leitura bíblica.
3-2 – Família e Igreja
Segundo Elinaldo Renovato, somente “a Bíblia deve ser o livro da família”,128 que
pode resgatá-la moralmente. Para o autor, as rápidas mudanças de referenciais para os
sentidos, provocadas por influências fortíssimas como modelos “vendidos” pelos meios de
comunicação de massa, que funcionam como um espelho social; a perda de identidade para
com os valores tradicionais que foram levados de roldão pela chamada nova moralidade; o
altíssimo nível de divórcios e de separações e a adoção de um modelo liberal de educação
dos filhos, transformam os valores da família em conceitos descartáveis, discutíveis e
escamoteantes. Os resultados são filhos sem pais ou com pais múltiplos, mães solteiras por
opção, ausência de canais adequados de comunicação dentro do lar, conflitos e ansiedades,
enfim, todos os sintomas que denunciam a fragmentação dos antigos valores familiares e a
instalação da patogenia familiar.
O autor enfatiza, ainda, que a televisão é a grande responsável pela deterioração da
base familiar, dando como resultado a falta de Deus em muitos lares cristãos, onde a
influência do mundanismo ocupa o espaço espiritual do lar provocando conflitos entre os
membros da família, e estes nem mesmo sabem a razão.
Nos dias presentes, a influência mundana sobre o lar é maior do que se possaimaginar. Há uma verdadeira sede de se abrir às portas para o mundo. E naverdade nem é preciso abri-las. A influência vem através da janela datelevisão, de modo rápido e avassalador. A programação da TV secular
128 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 25.
92
encarrega-se de jogar dentro do lar o que há de mais podre na sociedade semDeus.129
Os problemas de ordem familiar são considerados também “provações”, mas
ganham uma outra conotação, a de que eles advêm da ação maligna que, segundo o autor,
estrutura todo o sistema de tentação do pecado que objetiva desestruturar a família. “A
mídia concentra um enorme poder, do qual quase ninguém consegue escapar, a não ser
aquelas pessoas que são salvas e procuram viver de acordo com os padrões da Palavra de
Deus”.130 Portanto, há um incentivo para que os problemas das tentações e conflitos de
relacionamentos familiares, que são provocadas pelo Diabo, sejam superados através de
estratégias dos conversos que permitam a ação sobrenatural de Deus, restaurando a ordem
tradicional familiar. Estratégias estas tais como a realização de orações, a audição musical e
os hinos cantados na Igreja, a leitura de livros evangélicos e a valorização da leitura bíblica.
É mais fácil, chegando de surpresa num lar evangélico, encontrar os filhosassistindo à televisão do que lendo a Bíblia. As conseqüências têm sidoterríveis. Há uma geração de filhos de crentes que não sabem de cor esalteado os nomes dos 12 apóstolos, mas sabem de cor e salteado os nomesdos artistas de determinada novela. Isso é trágico. Conhecemos o caso de umpai crente que deu de presente a seu filho o livro do feiticeiro mirim, HarryPotter, que tem feito tanto mal às mentes infantis, mas não deu uma Bíblia ouum livro evangélico a qualquer dos filhos. É a inversão de valores cristãos.131
A Bíblia e os livros de autores evangélicos são enfatizados como elementos
principais à vida da família cristã assembleiana. O que vem de fora dessa esfera é visto
como mau e atrasado, exemplo disso é o livro de Harry Potter que, em sua ótica, pode
trazer influências diabólicas na família cristã. A Bíblia e a literatura produzida pela Igreja
129 Ibid., p. 190.130 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 213.131 Ibid., p. 26.
93
são consideradas pelo autor como essenciais para a formação do caráter, da personalidade
e para o desenvolvimento moral e social de uma família. Seu discurso mostra claramente
que “a Bíblia é a revelação da vontade de Deus para com o ser humano”.132
Tudo que não seja bíblico ou da Igreja evangélica é visto como uma má influência à
formação moral, criando um conflito entre o “mundo” e a “Igreja”, no qual o mundo é visto
como algo pervertido e o que se origina neste meio serve para corromper a família, e a
Igreja como aquela que produz coisas boas. Em seu discurso, Elinaldo Renovato coloca
que o grande apoio à família advém da Igreja, principalmente da Escola Bíblica Dominical
que propicia formação ao crente. “A Igreja é a única instituição em que o cristão e sua
família podem apoiar-se neste mundo de mudanças e incertezas, sendo abençoada por Deus
em todas as áreas da vida”.133 Quando ele menciona que a Igreja é a única instituição
saudável, percebe-se em seu discurso que o mundo no qual a igreja está inserida está em
crise, pois, as demais instituições estariam falidas, no seu entender. Por exemplo, para ele a
escola secular tem sido fonte de influências negativas para a família, contribuindo para sua
deterioração com ensinos materialistas.
A conhecida (e não comprovada) Teoria da Evolução tem levado muitos adeixarem de crer em Deus, portanto, reafirmamos que só resta a Igreja,mesmo em seu sentido local, como ponto de apoio verdadeiro para a famílianão sucumbir, destruída pelos valores do modernismo e do relativismo.134
Sua abordagem é a de que a Igreja deve ser colocada como prioridade, como
instrumento de formação da moral, do caráter e da personalidade do crente. Como
estratégia de seu discurso, ele utiliza um vocabulário simples que ocupa lugar de destaque
132 Ibid., p. 28.133 Ibid., p. 80.
94
no cotidiano das pessoas, incorporando sempre um dualismo, “a luta do bem contra o mal”.
Diante desse conflito, ele insiste em ressaltar que o crente deve ter amizade com aqueles
que não fazem parte do grupo, pois esse relacionamento traz grandes resultados no
processo de proselitismo. Somente nessa esfera é permitidos a amizade e o relacionamento
com os não evangélicos. Quanto ao namoro ou casamento, devem ser evitados para que não
haja um “julgo desigual”135 com os infiéis.
3-3 – A Interpretação Bíblica dos Usos e Costumes de Santidade
Para a Assembléia de Deus tradicional, a salvação é um dom de Deus, mas o homem
começa a experimentá-la imediatamente quando entende sua razão de ser. Em vez de
simplesmente aceitá-la e regozijar-se por ela, deve estabelecer uma forma de
comportamento que assegure sua posse. Elinaldo Renovato argumenta, portanto, que o
comportamento é um sinal externo da salvação.
Sendo o mundo tentador, viver nele negando seus prazeres exige do fiel grande força
e resistência moral. O crente crê que o Diabo está presente nos mais ínfimos espaços da
vida. “O mundo, que ‘jaz no maligno’, está sendo guiado pelos valores deturpadores dos
guias materialistas do nosso tempo que, por sua vez, são guiados por Satanás. Os cristãos,
ao contrário, ‘são guiados pelo Espírito de Deus’”.136 Logo, a ética de proibições legalistas,
voltada para os usos e costumes, reforça a rejeição do mundo. Como ele diz:
134 Ibid., p. 80.135 Refere-se aos casais em que um dos cônjuges é evangélico e o outro não é. O envolvimento emum relacionamento que implique namoro ou casamento do crente com alguém que não pertença aogrupo evangélico é visto na Assembléia de Deus como risco para a fé. Na visão de ElinaldoRenovato, esse tipo de união contribui para resultados desastrosos na relação que o crente tem coma igreja.136 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo, p. 105.
95
Já podemos verificar que não somos um povo qualquer. Do meio de todos ospovos, Deus nos tirou para sermos um ‘povo seu, especial, zeloso de boasobras’. Dessa forma, devemos adotar usos e costumes que se coadunem comnossa condição, por sermos um povo diferente de todos os povos.137
Tal como no puritanismo, para mostrar-se santificado o crente pentecostal
assembleiano precisa exteriorizar sinais, por meio de comportamentos ensinados e exigidos
pela comunidade religiosa, que o diferencie da sociedade. Assim procedendo, ele denota
sua condição de salvo em Cristo, pois, a seu ver, Deus se preocupa com a santidade
expressa exteriormente, na qual “o corpo é considerado o templo do Espírito Santo, que
deve ser conservado tão irrepreensível como a alma e o espírito”. 138 Assim, a postura moral
se manifesta na conduta cotidiana, por atos que demonstram, de modo inequívoco, a
aceitação dos preceitos estabelecidos e preconizados pela liderança desde quando a
Assembléia de Deus se iniciou no Norte do Brasil.
O pastor, muito além de ter e exercer o poder representa o próprio poder; ele é, em
si, um símbolo de poder. No pentecostalismo, principalmente na Assembléia de Deus, um
símbolo ultrapassa a realidade. Um pastor é um “ungido de Deus”, 139 tem a “visão de
Deus para o povo”, em suma, tem a resposta; resposta definitiva, inquestionável e vitalícia.
Pode-se observar que o discurso de Elinaldo Renovato caminha nesse sentido, ou seja, o
autoritarismo tradicional patriarcal do “ethos sueco-nordestino” está sempre presente, não
existindo lugar para o questionamento do crente, mas, sim, somente a obediência.
137 Ibid., p. 247.138 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 245.139 “Não toqueis nos meus ungidos” até hoje é um chavão forte na AD para tentar legitimar todas asações de liderança. O “preceito” teológico nasce do episódio em que Davi é incitado a se vingar deSaul mas se escusa por ser “ungido de Deus”( I Samuel, 24:6).
96
Elinaldo Renovato argumenta que preceitos que ocorrem em mais de um texto
bíblico, respaldado por outros textos paralelos, podem ser considerados como uma doutrina
para a Igreja. Para fundamentar a doutrina dos usos e costumes de santidade, ele cita textos
das Epístolas dos apóstolos Paulo e Pedro.
Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto, com pudor emodéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos preciosos’(2Tm 2:9). Pedro também ensinou a respeito do traje feminino: o enfeitedelas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de jóias de ouro, nacompostura de vestes, mas o homem encoberto no coração, no incorruptíveltrajo de um espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus. Porqueassim se adornavam também antigamente as santas mulheres que esperavamem Deus e estavam sujeitas a seu próprio marido (1 Pe 3: 3-5).140
Seu discurso dá grande ênfase para as questões dos usos e costumes, determinantes
para “remir de toda iniqüidade e purificar um povo especial, zeloso de boas obras”.141
Estabelece, assim, uma lista de normas excessivamente rígidas quando contrastadas com as
regras que norteiam a conduta de pessoas na sociedade. Por exemplo, vestes e jóias, cortes
de cabelos para homens e mulheres, devem ser de tal modo que não venham a causar um
descompasso religioso, ou seja, despertar a sensualidade na igreja. Quando se fala em
vestimentas e jóias, logo se dá ênfase à mulher, que é vista como símbolo de fraqueza e de
desejo sexual.142 As interpretações de passagens bíblicas favorecem a hegemonia
masculina sobre o sexo feminino. As cartas paulinas, de forma especial às destinadas aos
coríntios, dão a base para o discurso da superioridade masculina. Como se pode observar no
140 LIMA. E. R. Aprendendo diariamente com Cristo, p. 241.141 Ibid., p. 229.142 Segue sempre o modelo pelo qual, através da mulher, entrou o pecado no mundo, ou seja, amulher foi a primeira a ser escolhida para ser tentada pela serpente (Diabo), submetendo-se à suavontade. Logo levaria seu companheiro à mesma tentação. Sendo assim, as mulheres são vistas nomeio pentecostal como o ser mais fraco, no qual a maioria delas é relegada a segundo plano, tantono aspecto de direção quanto nos trabalhos regulares.
97
discurso de Elinaldo Renovato, parece que somente a mulher sente desejo sexual e comete
pecados e é influenciada pelos meios de comunicação.
O ensino Bíblico neotestamentário nos mostra que o traje da mulher deve tertrês características: ‘honesto, com pudor e modéstia’. Hoje, há um espírito desensualidade querendo dominar o comportamento de muitas irmãs, jovens oucasadas, que se deixam levar por modismos e influências malignas. E, emnossa cultura, em que o sexo é considerado elemento de atração carnal,exacerbado pela mídia, nas novelas, nos filmes, em revistas, etc., cada vezmais o pecado da lascívia tem se manifestado no meio cristão. 143
No tocante ao corte de cabelo para os homens, ele fundamenta a sua posição na carta
do apóstolo Paulo à Igreja de Corinto: “Ou não vos ensina a própria natureza ser desonroso
para o homem usar cabelo comprido (I Co 11:14)?”. No livro bíblico do profeta Ezequiel
(44:20): “Não raparão a cabeça, nem deixarão crescer o cabelo; antes, como convém,
tosquiarão as cabeças”. Elinaldo Renovato faz uma interpretação de que o cabelo do
homem deve ser cheio e cortado; quando o homem usa o cabelo idêntico ao da mulher ou
vice-versa, estão sendo contrários à “Palavra de Deus”, portanto, cometem uma
transgressão ao texto bíblico.
Quanto ao cabelo da mulher, sua posição está na interpretação da carta apostólica
paulina de I Co 11:5-6: “Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu,
desonra a sua própria cabeça porque é como se a tivesse rapada. Portanto, se a mulher não
usa véu, nesse caso, que rape o cabelo. Mas se lhe é vergonhoso o tosquiar-se, ou rapar-se,
cumpre-lhe usar o véu”. O cabelo deve ser comprido para que cubra sua cabeça, pois, ele é
visto como um véu para que a mulher possa chegar até Deus em oração, dispensando assim
um véu de tecido. Nessa questão, Elinaldo Renovato diz que atualmente há um
143 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo, p. 240-1.
98
afrouxamento em algumas igrejas quanto a esse preceito em virtude do argumento dos
liberais de que o apóstolo Paulo escrevia a uma Igreja que estava situada em uma cidade,
Corinto,144 que era cosmopolita, cheia de costumes pagãos, de prostituição, de mulheres
pervertidas, que se convertiam e queriam continuar com seus maus costumes, portanto, uma
questão cultural a ser corrigida nessa igreja, não uma doutrina para a atualidade. Mas ele
afirma que, “tendo constatado de modo enfático, no Novo Testamento, cremos que o ensino
sobre uso do cabelo, por parte do homem e da mulher cristã, deve ser respeitado”145, ou
seja, é uma doutrina.
Utilizando I Co 11: 14 – 16, (Ou não vos ensina a própria natureza ser desonroso
para o homem usar cabelo comprido? E que, tratando-se da mulher, é para ela uma glória?
Pois o cabelo lhe foi dado em lugar de mantilha. Contudo, alguém que quer ser
contencioso, saiba que nós não temos tal costume, nem as Igrejas de Deus.) ele argumenta
que não há apenas um ensino sobre costumes ou cultura dos tempos de Paulo, ou
simplesmente uma palavra dirigida apenas à Igreja de Corinto, mas uma doutrina sobre o
uso do cabelo do homem e da mulher em que não é necessária “uma exegese profunda, nem
uma hermenêutica sofisticada”.146 Não é apenas recomendação para os tempos apostólicos
e, sim, uma doutrina para a igreja seguir em todos os tempos e lugares, pois, se isso não
144 Leon Morris, em sua obra, mostra que Corinto era uma colônia romana, “da cidade grega amenos grega, era por esse tempo a menos romana das colônias romanas”. Era uma cidade em quegregos, latinos, sírios, asiáticos, egípcios e judeus compravam e vendiam, trabalhavam e sedivertiam juntos, na cidade e nos seus portos, como em nenhuma outra parte da Grécia. Por essarazão é chamada de “cidade cosmopolita”. Portanto, uma cidade importante e próspera com grandeprestígio social. Era a capital da província romana da Acaia. Os Jogos Ístmicos eram celebrados aliperto, e sob a égide da cidade, nos quais os mais excelentes atletas eram convocados. MORRIS,Leon. I Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1983, p.11-23.145 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. P. 242.146 Ibid., p. 244.
99
fosse importante, segundo Elinaldo Renovato, “teríamos que rasgar muitas páginas da
Bíblia que orientam o comportamento social e ético dos cristãos”.147
Em seu discurso teológico, há uma preocupação em manter a fidelidade à tradição
assembleiana e aos escritos bíblicos e sua aplicação na vida dos fiéis para que não haja a
chamada “extravagância, mundanismo, provocações sexuais, desafios e anarquia espiritual
e ministerial”. Se ocorrer uma liberação, principalmente dos usos e costumes de santidade,
“sempre alguém vai querer aproveitar-se para demonstrar sua vaidade cada vez mais”148
podendo haver assim uma decadência moral e um desvio da fé, que irá resultar na perda da
salvação, pois, o cristão tem de se preparar para a vinda de Jesus Cristo,149 preocupando-se
com o ser integral, ou seja, com o corpo, a alma e o espírito.
O pecador vem a Jesus, trazendo consigo todos os costumes do mundo: vícios,
linguagem imprópria, superstições, idolatria, natureza impulsiva, ira fácil, um forte
sentimento de vingança, atração para o sexo ilícito, roupas indecentes, enfim, ele tem em si
tudo que é natural ao mundo de pecado. Com a conversão, esses hábitos devem ser
deixados para trás. Uma vez convertido, é necessário que regras e normas sejam
internalizadas. O conhecimento adquirido através da Bíblia em termos morais, segundo
Elinaldo Renovato, oferece um conjunto de referenciais seguros fixados no passado e cuja
147 Ibid., p. 245.148 LIMA, E. R. Aprendendo com Cristo. p. 249.149 O manual de doutrina das Assembléias de Deus cita a doutrina escatológica que “na vinda deJesus, haverá duas coisas importantíssimas: a ressurreição dentre os mortos e a transformação doscrentes que estiverem vivos (o arrebatamento da igreja). Esses dois fatos não ocorreram ainda, masacontecerão no dia da vinda de Jesus (1º Ts 4:16 – 18). A vinda de Jesus, ainda que oculta aos olhosdo mundo, será literal e pessoal. Enquanto a vinda de Jesus será motivo de glória para aqueles que oesperam, será de sofrimento e agonia para os ímpios.” CGADB, p. 58.
100
obra é continuada, pelos crentes, no presente e que acabará no futuro, no Juízo Final, onde
todas as injustiças serão reparadas.
4 – TEOLOGIA MORAL DE RICARDO GONDIM
Antes do surgimento da Assembléia de Deus Betesda em Fortaleza (CE), Ricardo
Gondim era membro das Assembléias de Deus ligadas a CGADB e trabalhava como
intérprete nas reuniões evangelísticas lideradas pelo missionário Bernhard Johnson no
Brasil; em 1981, assumiu como diretor-executivo da Escola de Educação Teológica das
Assembléias de Deus em Campinas (SP). Desde essa época, já se podia perceber suas
inquietações dentro da Assembléia de Deus tradicional brasileira. Ricardo Gondim já
possuía experiência transcultural, pois, já havia viajado pela Europa e também morou por
alguns anos nos Estados Unidos. Suas inquietações eram o legalismo pentecostal, os
estereótipos litúrgicos, os chavões homiléticos; e isso fazia crescer as críticas e as angústias
com sua participação e vivência nas Assembléias de Deus tradicional no Brasil.
Ricardo Gondim teve sua formação teológica nos Estados Unidos, no Gênesis
Training Center, no Norte da Califórnia, que, acredito, o tenha levado a uma mentalidade
pentecostal diferente daquela que se desenvolveu e permanece até hoje no Brasil.
Certamente, uma mentalidade mais liberal, buscando algo que mantivesse a tradição
carismática de uma religião entusiasta, mas sem os tabus legalistas e os códigos de
doutrinas.
A partir do surgimento da Missão Betesda, em 1981, e após a morte de Ademir
Siqueira, seu organizador, a participação de Ricardo Gondim fez-se presente na liderança
101
do grupo, transformando a Missão Betesda na Igreja Assembléia de Deus Betesda, a partir
de 1982. A partir de então, Ricardo Gondim começou a desenvolver nas pregações que
realizava – e mais tarde através de seus livros – um discurso sem as expressões do
legalismo e dos estereótipos pentecostais. Isso fazia com que se sentisse mais próximo da
Igreja Assembléia de Deus dos Estados Unidos do que das Assembléias de Deus no Brasil.
Em 1998, escreveu o livro “É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe”, no
qual seu discurso teológico ficou transparente para a comunidade evangélica pentecostal.
Ele traz a discussão sobre arbítrio eclesiástico ou, em uma linguagem mais simples, a
ditadura pastoral em questões relativas à conduta do crente, como a proibição do uso de
calças compridas, o corte de cabelos, o uso de jóias, de batom ou pinturas para as mulheres,
a proibição de ir ao cinema ou à praia, de assistir televisão ou mesmo de bater palmas
durante o culto. Em sua análise das condutas permitidas e proibidas, dos rigores legalistas e
dos usos e costumes, ele critica os setores mais tradicionais do pentecostalismo.
Em sua ótica, o movimento pentecostal brasileiro – e o evangélico de um modo
geral – tem muita dificuldade para enxergar a graça comum, ou seja, a graça de Deus
distribuída a todos os homens e que os capacita a fazer coisas boas. Embora seja
participante da “natureza caída”, esse homem não deixou de ser a imagem de Deus.
4-1 – Leitura Bíblica e Interpretação do Mundo
Segundo Ricardo Gondim, a Igreja Evangélica tem a tendência de rotular pessoas,
costumes e certas práticas no meio cristão, e de isolar-se do diálogo. Ainda hoje, o
evangélico brasileiro típico é conhecido como aquele que pode ou não fazer certas coisas,
porque ainda existe uma ditadura dos costumes, principalmente com respeito a ornamentos,
102
à indumentária – principalmente a feminina – e até ao diálogo cultural com as artes. Ainda
persiste a famosa frase: "Evangélico não ouve música do mundo", como se houvesse uma
departamentalização entre aquilo que pode ou não ser consumido pelo crente só porque foi
produzido por uma pessoa que não é evangélica. Portanto, a expressão "é proibido” ainda é
muito utilizada, literalmente. Para ele, o que existe é uma dificuldade de interpretação da
Bíblia por parte dos evangélicos, principalmente dos pentecostais. Por causa da falta de
uma fidelidade à hermenêutica,150 os textos são lidos e interpretados de modo a se
encaixarem na doutrina de uma denominação, sem uma contextualização dos textos
bíblicos.
Essa concepção advém da incapacidade de ler a Bíblia como um livrocultural. A Bíblia não é um código de doutrinas, não é um catecismo que foicodificado para que nós o obedecêssemos como um regulamento religioso. ABíblia é a história da interação de Deus com a cultura humana. No meu livro‘É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe’ fiz um esforço paramostrar às pessoas que a Bíblia não é uma dogmatização teológica, mas umasaga humana onde existem coisas bonitas e feias. Enfim, assim é a vida comoum todo.151
Diante dessa constatação, para Ricardo Gondim é necessário que o pentecostalismo
adquira uma capacidade maior de adaptação aos contornos culturais, possibilitando uma
igreja de princípios sólidos e sem receio da interação e comunicação com a sociedade. O
comportamento do cristão não deve ser o de cumprir um catálogo do que pode e do que não
pode fazer, mas o de conviver com essa cultura e, no exercício de um crescimento de
maturidade, olhar para a cultura à qual pertence e perceber a imagem de Deus na produção
humana. Nessa lógica, o que deve ser rejeitado é “o adoecimento de toda produção humana
e a manifestação do desejo doentio de poder. Que está em relevo na ânsia obcecada por
150 Método que visa a interpretação de textos religiosos, filosóficos etc.
103
prosperidade”.152 Portanto, “o mundo está cheio de maldade não por estar cheio de mentes,
corpos, raciocínios, paixões semelhantes às do Diabo, mas porque os homens decidiram
voltar seus corpos, mentes, raciocínios, e inclusive seus espíritos contra Deus”.153
Em seu discurso está implícito que sua maior preocupação é reavivar a “Teologia da
Graça” e não assumir uma postura eticamente liberal.154 Para tanto, segundo Ricardo
Gondim, não é necessário isolar-se do mundo, pois essa atitude não é o caminho para a
santidade. A realidade do mundo contemporâneo é que as pessoas diferentes, com culturas
e até condutas éticas distintas, compartilham os mesmos espaços. A preocupação em fazer a
vontade de Deus e o desejo de ver toda a sociedade refletindo essa vontade tem levado
muitos grupos religiosos a uma postura de intolerância religiosa, de imposição de uma
crença e de um determinado padrão de comportamento aos seus seguidores.
O desafio do verdadeiro cristão não consiste em esconder-se dos perigos domundo como um caramujo, mas em saber conviver entre pecadores como sale como luz. Jesus jamais se furtou de comparecer a atividades sociaispromovidas por pessoas comuns. Nunca tentou isolar seus discípulos emmosteiros para que eles se mantivessem imunes às tentações. Pelo contrário,lançou-os num mundo hostil, em que teriam de demonstrar uma fé forte osuficiente para influenciarem e não serem influenciados. Ele próprio nãotemia comer, beber e conviver com pessoas espiritualmente desqualificadas.Quando Jesus comparecia a festas, como a das bodas de Caná, ele partilhavado mesmo ambiente que os pecadores.155
Para Ricardo Gondim, a vida cristã compõe-se do grande desafio de viver em um
ambiente hostil sem contudo participar de seus pecados. O crente deve ter maturidade cristã
que lhe forneça o espírito crítico para escolher com livre arbítrio quais ambientes devem
151 GONDIM, Ricardo. Entrevista concedida no dia 19/12/2003. Vide Anexo II.152 Idem, É proibido, p. 76.153 Idem, O evangelho da nova era: uma análise e refutação bíblica da chamada teologia daprosperidade. São Paulo: Abba Press, 2001. p. 64.154 GONDIM, R. É proibido p. 16.
104
ou não freqüentar com a obrigação de influenciar o mundo positivamente. Para ele, proibir
o crente de ir a certos locais considerados impuros é uma forma de tirar a liberdade cristã e
possibilitar um grande atraso em seu amadurecimento. Ficando claro em seu discurso que
“a censura e proibição taxativa a que não se freqüentem ambientes ‘suspeitos’ não gera
santidade. Ao contrário das expectativas dos conservadores, a proibição causa curiosidade,
que, por sua vez, conduz ao pecado”.156
Ricardo Gondim se baseia na “Teologia da Graça” para propor aos crentes que
tenham compreensão da capacidade divina, para que saibam como obedecer e se comportar
conforme a vontade de Deus. Conhecendo o conteúdo dos evangelhos e percebendo a face
mais real e simpática do cristianismo podem desprezar o legalismo pregado por alguns
pastores. A igreja deve ser o lugar onde as pessoas não devem sentir-se reprimidas, mas,
sim, amadas e felizes.
Para ele é necessário compreender a graça de Deus, pois ela é central nos
evangelhos, aliviando o crente das tensões religiosas e permitindo que Deus não seja uma
ameaça e nem mesmo um emaranhado de leis e regulamentos onde acaba escondendo sua
face. Para Ricardo Gondim, o Novo Testamento exalta que somente a graça é que torna o
cristão capaz de agradar a Deus, sem cumprimentos de ordenanças, simplesmente na
compreensão dos valores eternos.
155 Ibid., p.106.156 GONDIM, R. É proibido. p. 107.
105
O olhar do autor para o legalismo doutrinário é o de que ele não tem valor contra o
desejo interior do crente mas que possibilita somente uma subordinação dos indivíduos à lei
produzida no interior do grupo, pois, ”o esforço de acrescentar à graça de Deus a lei é
fortemente repelido nos escritos paulinos, principalmente nas epístolas aos Gálatas e aos
Colossenses”,157 segundo as quais o legalismo dos usos e costumes não produz santidade
nem amadurecimento cristão. O que é produzido na realidade é um fundamentalismo
religioso, ao qual as pessoas obedecem cegamente, criando comunidades de pessoas
obedientes, separando grandes segmentos pensantes da sociedade e um evangelho sem
reflexão lúcida.
Nota-se, então que, para Ricardo Gondim, a forma de entender a santidade é quando
se encoraja o crente para assumir o mundo com suas limitações e ambigüidades,
interagindo como instrumento de Deus na história, ou seja, cada indivíduo pode ser livre
para escolher os seus próprios caminhos, o que significa o reconhecimento do valor
intocável desse indivíduo enquanto pessoa. Buscando participar de uma sociedade na qual
os valores do Reino de Deus – justiça e paz – sejam modelos para todas as dimensões da
vida, este enfoque de santidade mantém a necessidade pessoal da ação social, exigindo que
os fiéis assumam sua condição de seres sociais, comprometendo-se com o mundo, mas
rejeitando sua mundanidade.158
Em sua argumentação, ele propõe que os usos e costumes não são valores espirituais
em si mesmos, não fazem parte da lei moral de Deus, mas devem ser concebidos como
valores culturais. Para ele, os usos e costumes fazem parte da cultura de cada sociedade,
157 Idem, Entrevista. Vide Anexo II.
106
devendo ser respeitados. É necessário saber que a cultura exerce poder no comportamento
de cada sociedade ou grupo e que “a ética evangélica sobre a cultura deve discernir com
precisão o que é produto do pecado e o que é fruto da graça comum de Deus.”159 Diz ele
que o número de pessoas afastadas da Igreja e receosas de conhecer Deus demonstra que a
proclamação do Evangelho não tem demonstrado a graça mas, sim, o legalismo.
Quando se tem a percepção da graça, que a seu ver está acima das leis e preceitos impostos
pelos pastores, ela dissolve a culpa e abranda os sentimentos que as pessoas sempre tiveram
em relação a Deus, pois, “quanto menos ensino sobre a graça, mais desfigurada é a
compreensão que as pessoas terão de Deus. Menos conhecido ele será das pessoas”. 160
4-2 – Interpretação dos Usos e Costumes de Santidade
Para Ricardo Gondim, a cultura brasileira foi influenciada por muitos padrões de
comportamento, sofreu mudanças com o passar dos anos e basicamente com o processo de
globalização, que trouxe um novo conceito de cultura global pelo qual as pessoas passaram
a aderir aos costumes de outros países.
Quando a questão é roupas e músicas, pode-se salientar que estas participam das
relações sociais nas quais um povo se expressa culturalmente. Logo, segundo o pastor-
presidente da Igreja Assembléia de Deus Betesda, há uma dificuldade para desenvolver
uma teologia sobre os usos e costumes sem levar em conta as manifestações culturais. Para
ele, o legalismo pode indicar uma visão errada e preconceituosa ao atribuir valores morais
158 Mundanidade seria tudo aquilo que está identificado como pecado que promove uma vida moralnão digna, portanto, contra a vontade de Deus.159 GONDIM, R. É proibido. p. 39.160 GONDIM, R. É proibido. p. 159
107
ao modo como um grupo social se veste. No seu entendimento não há cultura sagrada. “A
Bíblia está repleta de exemplos de evangelistas e missionários que, chegando a um contexto
cultural diferente do seu, respeitaram a maneira de ser daquele povo e procuraram adaptar-
se aos seus ouvintes”.161
Observa-se, então, que sua visão a respeito da Bíblia é que esta não é um livro de
codificação doutrinária, mas a história de um povo, e que os valores do povo bíblico são
diferentes dos valores do povo brasileiro, necessitando, assim, de uma contextualização dos
textos a serem aplicados na cultura brasileira. No seu modo de entender, as proibições são
frutos do autoritarismo inconseqüente de homens que dirigem a Igreja hoje, e que, na
Bíblia, Deus não assume a postura de condenar quando a questão é o uso de jóias, roupas e
adornos, sendo que os valores estéticos da Bíblia não estão ligados sempre à moralidade.
Certamente, o que determinará o que convém não é só a consciência do cristão, mas a
cultura na qual ele está inserido. “As proibições de nossas igrejas foram importações
culturais que uma mentalidade missionária forçou sobre nós e que aceitamos sem
questionar”.162 Segundo Ricardo Gondim, cabe à Igreja o comprometimento de resguardar
os valores da família e do indivíduo em um mundo que está dividido e perde seus
referenciais com imensa rapidez. O fato de a Igreja Assembléia de Deus Betesda não se
ater aos usos e costumes humanos não implica que não se atenha aos princípios bíblicos de
uma vida santa diante de Deus.
Fica explícito no discurso de Ricardo Gondim que a Bíblia não traz aprovação ou
condenação em relação ao uso de roupas. Somente em determinados momentos, estas
161 Ibid., p. 37.162 GONDIM, R. É proibido. p. 66.
108
poderiam ser consideradas dignas, ou não. Isso significa, segundo ele, que Deus não atrela
necessariamente o pecado ao desejo de vestir-se bem ou de acordo com a moda. As roupas
ou uso de jóias não estão associados ao pecado das pessoas, mas fazem parte da produção
cultural.
A expressão “vaidade no vestuário”, segundo Ricardo Gondim, encontra-se
carregada de valores espirituais e éticos em muitas denominações evangélicas do ramo
pentecostal, nas quais a maioria das proibições visa sempre as mulheres que, geralmente,
sem poder de contestação, sofrem diante dos discursos que exigem delas submissão e a
simplicidade do traje, esquecendo-se de que a maneira de se vestir atualmente oferece uma
forma de ornamento, que traz prazer e felicidade aos indivíduos.
A lei sobre o uso de roupas e adornos como forma de agradar a Deus, em sua ótica é
inútil e pode levar a um conceito de salvação pelas obras, além do que é a necessidade
social e não moral que provoca mudanças no comportamento das pessoas. Para Ricardo
Gondim, “uma das mais perniciosas tendências da religião é associar a fé ao cumprimento
de regras e leis”.163 Sua preocupação está voltada para muitos líderes pentecostais que não
têm estruturado os crentes com sua fé na graça de Deus, porém, têm acrescentado fórmulas
e exigências doutrinárias e proibições comportamentais à mensagem da salvação.
Em pesquisa empírica no interior das Assembléias de Deus ligadas a CGADB
observei que grande parte das lideranças evangélicas é masculina, e as maiores proibições
visam sempre as mulheres, principalmente quanto ao vestuário, à proibição do uso de jóias
ou pinturas e ao corte de cabelo. Todas essas proibições, para Ricardo Gondim, não têm
163 Ibid., p.154.
109
fundamentação bíblica, pois o trato na Bíblia dessas questões é meramente cultural,
principalmente em I Co 11: 14 – 16, que fala a respeito do cabelo do homem e da mulher.
Segundo Gondim, o apóstolo Paulo pede “que esses preceitos sejam respeitados apenas
no contexto de Corinto. Ele não poderia exigir que essas normas fossem
obedecidas hoje, pois o véu e os cabelos compridos já não possuem a mesma significação
daqueles dias”.164 Portanto, em seu discurso, tais questões como cortar o cabelo para os
homens e mantê-los compridos para as mulheres, proibir o uso de jóias ou pinturas, não
podem ser tomadas como morais ou imorais.
Esse jugo pesado, quando não aliena, gera também uma outra excrescência: ahipocrisia. Existem muitos que se acomodam ao sistema religioso e mostram-se coerentes com as exigências do pastor somente quando estão na igreja.Longe da fiscalização religiosa, porém, vivem noutra realidade. Esse largocontingente de evangélicos conseguiu desenvolver uma duplicidadecomportamental. Na esfera privada agem e convive com mais liberdade,brincam e riem, vestem-se de acordo com as últimas novidades da moda.Mas, quando vão para a igreja, passam por uma metamorfose impressionante.Assumem um ar mais grave. Agem dentro do ambiente religioso de acordocom os códigos impostos pela liderança, mas com revolta.165
Para o pastor Ricardo Gondim, essa situação produz críticas no meio daqueles que
freqüentam a igreja e participam intensamente dos cultos, criando, assim, um mecanismo
de defesa ao desprezarem os sermões legalistas que ouvem. Os códigos pregados não lhes
dizem respeito, transformando a vida cristã numa espécie de hipocrisia involuntária, que os
agride. “O rigoroso discurso de alguns líderes hoje, mal sabem eles, faz parte do cardápio
dos encontros entre os membros de suas igrejas”.166
164 GONDIM, R. É proibido. p. 99.165 Ibid., p. 11.166 Ibid., p. 12.
110
A essência do legalismo, segundo Ricardo Gondim, é a oferta de regras de como o
crente deve ser santo, ditando, assim, os regulamentos da igreja a serem seguidos.
Argumenta que os líderes desse seguimento se esquecem que se converter não é um
esforço para ter uma nova cartilha de usos e costumes; a conversão engloba uma
compreensão jurídica do processo em que o pecador é considerado justo nos méritos de
Cristo, no qual se inicia um processo gradual de transformação em sua natureza. Observa,
então, que a santificação não é o resultado da observância a normas eclesiásticas ou de
assiduidade aos cultos, mas, sim, da relação particular com Deus.
Pode-se dizer, então que, ao procurar mostrar-se mais liberal – em especial na área
dos usos e costumes de santidade – o discurso da Igreja Assembléia de Deus Betesda
apresenta uma inteiração maior com o mundo vigente, criando novas possibilidades de
participação social, de conquista e exercício da cidadania por parte dos crentes que a
freqüentam. A santidade não está implícita nas proibições colocadas pelos líderes, mas,
sim, no relacionamento e compreensão das Escrituras e também na atuação do Espírito
Santo, que transforma os crentes de uma maneira sobrenatural.167 Logo, a experiência do
crente com Deus se fazem necessária para que ele tenha uma vida moldada e equilibrada
moralmente, não interpretando o comportamento e a exteriorização dos usos e costumes
como sinal da salvação.
167 GONDIM, R. É proibido. p. 178.
111
CAPÍTULO III
MODELOS TEOLÓGICOS MORAIS E ANÁLISE DO DISCURSO TEOLÓGICO
Neste capítulo procurarei apresentar uma análise dos modelos de moral, definindo o
conceito de ética como referência teórica sobre a prática moral. Nos dois discursos
teológicos apresentados no segundo capítulo, é possível notar que eles são permeados por
dois modelos de moral, o essencialismo e o personalismo, que têm por finalidade moldar
tipos específicos de comportamento, utilizando a Bíblia como referencial.
Abordarei o discurso religioso como elemento fundamental de estratégia no campo
pentecostal, como forma de atingir a experiência da salvação, e de produzir força e coragem
no crente para enfrentar as dificuldades do cotidiano. Procurarei, portanto, mostrar dois
modelos de moral e um mesmo tipo de argumentação religiosa apresentado pelos dois
pastores aqui analisados.
Busco aqui compreender o discurso como caminho para a conversão e
comportamento do crente assembleiano. Analiso categorias de poder e saber, como fonte de
controle para a manutenção da tradição dos usos e costumes de santidade e separação do
mundo, mas que também proporcionam liberdade e compreensão do valor personalista
cristão que pode ter uma experiência religiosa sem isolar-se do mundo.
1 – DOIS MODELOS DE MORAL
112
Se levarmos em consideração que a religião muda expectativas, modela
comportamentos, altera desejos e frustrações e também ensina a como se relacionar com
o mundo,168 então podemos pensar que o indivíduo que se torna adepto de uma
denominação religiosa tem uma nova visão-de-mundo, que se mostra na sua vida cotidiana,
na interpretação que constrói sobre sua crença e nas expectativas que coloca para si em
relação ao futuro.
A experiência religiosa impele o indivíduo a rever seus valores, com base nos
princípios religiosos introjetados e a adotar, juntamente com o grupo religioso do qual faz
parte, um universo simbólico cujos significados norteiam a maneira de viver no mundo e de
explicá-lo. Além disso, a Igreja torna-se uma resposta para os conversos no sentido de lhes
conceder certezas diante das incertezas, que advém das crises e dilemas que permeiam a
realidade.
O conjunto de normas criado pelo grupo dá ao crente a segurança e a sensação de
estar inserido na normalidade e, por essa razão, ter uma identidade. Esse conjunto de
normas é composto de valores morais de caráter normativo, pois, o homem é um ser moral
e os grupos sempre criaram sistemas de valores e normas morais para possibilitar sua
própria convivência.
A moral se caracteriza por sua dimensão social e tem nos costumes sua primeira e
mais aparente manifestação. O conjunto moral de costumes aceito por um grupo constitui o
ethos da comunidade humana. Segundo Marciano Vidal há dois grupos de termos na
língua portuguesa referidos à mesma realidade – a ética e a moral – utilizados às vezes de
113
forma diversa. A palavra ética vem do grego ethos, que pode significar costume e/ou
caráter; a palavra moral vem do latim mos, que significa costume."O termo ‘ethos’ foi
utilizado no mundo helênico com notável carga expressiva. Escrito com ‘epsilon’ o ‘ethos’
designava o conceito de costume (daí ‘etologia’ etc.); enquanto que escrito com ‘eta’ o
ethos se referia ao conceito de caráter".169 A ética é reservada para a aproximação racional
ou filosófica; e a moral, para a consideração religiosa. Em outras ocasiões, a ética indica o
estudo fundamental do problema enquanto que a moral se refere aos códigos concretos do
comportamento humano. Segundo Marciano Vidal, “a diversa etimologia de ética e moral,
grega e latina, respectivamente, não é causa de diversidade semântica, mas de riqueza de
significância”.170
Os costumes se referem aos usos sociais repetidos; por outro lado, o caráter tem um
referencial pessoal, é resultado das ações da pessoa internamente, ou seja, é o ser interno. O
ético, tal como usamos atualmente, está relacionado ao significado ethos-caráter. De modo
geral, é comum utilizar o conceito de ética e moral como sinônimos ou, quando muito,
definir a ética como um conjunto de práticas morais de uma determinada sociedade ou,
então, de princípios que norteiam essas práticas. Desde os tempos mais remotos, o homem,
vivendo em sociedade, estabeleceu regras de conduta e impôs limites a fim de levar em
conta o seu semelhante. A partir do momento em que foi estabelecido um conjunto de
regras tidas como incondicionalmente válidas, precedidas de larga tradição oral, estava
criada a moral.
168 Cf., PRANDI, Reginaldo. Um sopro do espírito: a renovação conservadora do catolicismocarismático. São Paulo: Edusp e Fapesp. 1997, p.270.169 VIDAL, Marciano. Moral de atitudes. Vol. I. São Paulo: Editora Santuário, 1986, p. 19.170 Ibid., p. 18.
114
Quando se procura diferenciar a ética da moral, visa-se geralmente distinguir o
conjunto das práticas morais cristalizadas pelo costume e a convenção social dos princípios
teóricos que as fundamentam ou criticam. Portanto, o conceito de ética aqui utilizado
refere-se à teoria sobre a prática moral. Ética seria então uma reflexão teórica que analisa e
critica ou legitima os fundamentos e princípios que regem um determinado sistema moral,
ou seja, a dimensão prática.
Para Elinaldo Renovato, a realidade humana não é regida unicamente por leis
autônomas nem se constrói segundo modelos previamente incorporados a um devir cego e
irreversível. Pelo contrário, as realizações humanas dependem das decisões de um Deus que
é o criador.171 O converso pentecostal busca a ordem oferecida por um Deus moral descrito
na Bíblia.
A argumentação de Ricardo Gondim sobre a moral é de que ela vem do poder de
liberdade de escolha, da maturidade emocional cristã, intelectual e espiritual de cada
cristão; e a Bíblia não é um livro de proibições e censuras; ao contrário, está repleta de
textos anunciando a liberdade dos indivíduos. Portanto, a moral deve partir da consciência
de cada um, percebendo o que vem ser lícito e o que convém realizar na vida.172
Os valores aceitos pelos indivíduos determinam as finalidades estabelecidas em sua
atividade cotidiana, dando-lhes, assim, o sentido da vida. Nesse caso, a Igreja enquanto
instituição religiosa e representante de Deus influi na formação do caráter pela mediação do
sistema de valores que transmite ao indivíduo.
171 LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 08.172 GONDIM, R. É proibido. p. 113.
115
Juan Martim Velasco argumenta que não há religião sem ética. A religião tem em si
um código básico para delinear a ação do crente; código, este, útil e necessário ao grupo
para a preservação da comunhão com Deus. Na realidade, “são as obrigações relativas ao
culto e à manutenção da comunidade religiosa, de suas instituições e ministros”.173
Em razão desse caráter da realidade do crente surgem as instâncias normativas, as
quais, através da proposta de fins e ideais, tratam de construir a história humana segundo
modelos configurados na Bíblia, principalmente no Antigo Testamento e nos escritos
paulinos. Entre as instâncias normativas, sobressai-se a instância moral que procura
conformar as realizações humanas com a consciência moral e referir-se a valores morais
objetivos fundamentados na Bíblia.
A realidade e o conceito de pessoa têm uma carga axiológica irrenunciável. Os dois
modelos de moral mais presentes, que percebemos nos dois discursos apresentados no
segundo capítulo, são: a moral essencialista, que tem como herança às tradições greco-
latina e judaico-cristã, e a moral personalista, fruto do diálogo com a cultura moderna. Com
efeito, a dimensão moral brota da pessoa e o valor moral se referem à pessoa.
Nos discursos morais religiosos pode-se perceber que ele tem por finalidade moldar
um tipo específico de comportamento. A Igreja Assembléia de Deus tradicional tem como
um de seus deveres fundamentais a tarefa de regular o comportamento moral dos
indivíduos, a sexualidade, os costumes etc. Portanto, o comportamento e as sanções passam
pelo crivo da palavra bíblica pregada, “que fundamenta a validade da decisão ética, não em
173 VELASCO, Juan Martim. Religião e Moral. In: VIDAl, Marciano. Ética Teológica: conceitosfundamentais. Petrópolis:Vozes, 1999, p. 169.
116
conformidade com uma nova ordem superior, mas na obediência a um mandamento
divino”.174 A Assembléia de Deus Betesda, no entanto, centra mais sua atenção na
liberdade religiosa dos indivíduos; realiza uma interpretação contextualizada dos textos
bíblicos e proporciona aos membros a decisão do amadurecimento por uma moral concreta
da experiência religiosa. Percebe que as proibições e censuras não geram a experiência da
santidade e da salvação, mas que somente a transformação do caráter do indivíduo é capaz
de proporcionar a autonomia dos sujeitos participantes do culto na Igreja e a atuação na
sociedade.
No discurso de Elinaldo Renovato de Lima, a luz do referencial ético e moral é a
palavra de Deus. Segundo ele, em meio a uma sociedade reprovada e corrompida perante
Deus, é na Bíblia que se encontram os referenciais éticos indispensáveis para um viver
santo e digno. Em sua concepção, a Bíblia é o manual perfeito para a vida cristã. O cristão
não precisa recorrer a paradigmas humanos ou lógicos para posicionar-se quanto aos seus
atos; se estes estão fundamentados ou estão de acordo com a Bíblia, o crente não tem com
que se preocupar.175
Assim, o discurso de Elinaldo Renovato tem como base o essencialismo, uma das
vertentes da moral, o qual se estrutura na tradição e nos costumes, pois tudo se legitima em
nome da tradição; as novidades não são bem-vistas porque os valores são legitimados em
nome da moral eterna. A religião passa a ser a base da ordem estática estabelecida perante
as novas gerações. Nosso próximo passo é analisar a moral essencialista que permeia o
discurso de Elinaldo Renovato.
174 Ibid., p. 170.175 Cf., LIMA, E. R. Ética Cristã.
117
1-1 – Moral Essencialista
Trata-se de um conjunto de normas que deve servir de base para o comportamento
moral dos indivíduos em toda e qualquer situação. Este conjunto de princípios está
estruturado geralmente sob a forma de um princípio regulador de fundo filosófico ou
religioso. Essa forma de moral é própria das sociedades tradicionais em que a força dos
costumes e das normas desempenha um papel fundamental na manutenção da coesão de
grupo. As regras de conduta moral – o que é bom ou mau para as pessoas – já estariam
definidas desde sempre, cabendo ao indivíduo somente aceitá-las. A não-aceitação das
regras poderia acarretar sérias conseqüências ao indivíduo e a todo o grupo.
A moral essencialista é baseada em princípios transcendentes, ou seja, as regras de
conduta moral são exteriores ao sujeito. De modo geral, acredita-se que elas foram ditadas
por Deus. Cabe ao ser humano seguir essas regras em sua vida cotidiana, sem poder
reformá-las ou mesmo substituí-las por outras, pois, não sendo seu autor, também não está
em seu poder a possibilidade de mudá-las. Nesse sentido, a argumentação de Márcio Fabri
dos Anjos nos mostra que:
O primeiro fundamento da moral é a ordem universal decorrente do próprioDeus que tudo criou por derivação de sua imagem e essência eterna.Conseqüentemente, todo ser criado tem uma destinação ou finalidade que lheé intrínseca, independentemente da vontade do homem e de suas diferençasculturais.Como sob o ponto de vista cristão o homem é chamado a uma vidasobrenatural, lhe é dada também à revelação divina de uma lei sobrenatural eprevine as más interpretações que o homem decaído (pecador) pode fazer daprópria lei moral natural.
118
A fidelidade quanto à conservação e interpretação da lei moral natural e dalei divina revelada é garantida pela autoridade eclesiástica, a quem cabe aautêntica interpretação da lei moral.176
A moral essencialista exige a subordinação da razão e da lei humana à sabedoria de
Deus e à sua lei, que é apresentada como ordem racional, à qual o homem é chamado por
Deus a dirigir, regular sua vida e os seus atos177 “Nesse sentido, pode-se dizer que o
raciocínio moral do passado é para nós uma herança; é ao menos um ponto de referência
muitas vezes necessário para o raciocínio atual”.178
Esse sistema moral tem um papel fundamental na reprodução da ordem vigente e na
repressão a todas as tentativas de inovações e liberdade. O teólogo moralista Marciano
Vidal coloca que esse modelo de moral se mede conforme a correspondência com a
vontade divina: “É bom o que Deus quer e é mau o que Deus proíbe”.179 Percebe-se no
discurso de Elinaldo Renovato que a moral verdadeira para ele é a que emana de Deus e
não aquela produzida pela consciência humana, já que o homem está corrompido pelo
pecado. Propõe, portanto, que “o referencial seguro, imutável e infalível não é a
consciência humana, mas a consciência de Deus, expressa em sua maravilhosa Palavra, a
Bíblia Sagrada”.180
O discurso moral de Elinaldo Renovato tem por finalidade moldar um tipo
específico de comportamento, ou seja, fazer com que o indivíduo possa ser submisso às
176 ANJOS, Márcio Fabri dos. Moral Tribal e Moral Universal. In: SUESS, Paulo. Queimada eSemeadura: da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova evangelização. Petrópolis:Vozes, 1988, p. 121.177 Cf., Idem. Ética e clonagem humana. São Paulo: Instituto Teológico. Espaços. Ano I, p. 86.178 Idem. Argumento moral e aborto: da argumentação sobre a moralidade do aborto do modo justode se argumentar em teologia moral. São Paulo: Loyola, 1976. p.33.179 VIDAL, M. , op. cit., p. 216.180 LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 27.
119
regras e doutrinas impostas pela igreja e não questione a “Palavra de Deus” pregada pelo
pastor. A igreja através da liderança tem como dever fundamental a tarefa de regular o
comportamento moral, a ética dos indivíduos, a sexualidade e os costumes. O
comportamento e as sanções passam pelo crivo da palavra bíblica.
Diante desse fato, pode-se argumentar que na moral essencialista o cumprimento das
regras morais pode ser assegurado por critérios pessoais ou coletivos. Coletivos quando
existe uma pressão por parte da sociedade para o cumprimento das regras, sob pena de
castigo ou punição com a expulsão da comunidade, dependendo da gravidade da falta
cometida.
Já no caso dos critérios pessoais, o indivíduo segue determinados preceitos por ter a
convicção de estar agindo conforme a vontade de Deus e orientado por princípios de
justiça. Em outro grupo estão as pessoas que se guiam por motivos morais menos elevados,
que agem sem convicção, só pela esperança de receber alguma recompensa de Deus, como
uma vida próspera ou uma vida eterna no céu. Na Igreja Assembléia de Deus tradicional, a
liderança procura imprimir na conduta dos fiéis, desde a conversão, normas e tabus
comportamentais, valores morais voltados para os usos e costumes de santificação como
sinal da salvação eterna.
Com efeito, o sistema dogmático de crenças é imposto aos fiéis como umaobrigação de consciência. Desde esse momento a ortodoxia dogmáticaconverte-se no inevitável horizonte da consciência moral. O funcionamentoda consciência se desenvolverá a partir do pressuposto de uma manipulaçãooriginal. Mais ainda, a ética se converterá numa ortodoxia dogmática, comtodas as falhas que lhe são inerentes: construção totalitária de umadeterminada ordem, dependência de poderes controladores, exclusãodaqueles que se regem por pautas ‘heterodoxas’ etc. 181
181 VIDAL, M. Moral de atitudes. Vol. I, p.76.
120
Na modernidade, com a formalização do direito na maioria das sociedades, o Estado
passou a ter o monopólio da aplicação da justiça. Isso enfraqueceu o poder da comunidade
de controlar e punir seus membros. Passou a ser mais comum a pessoa seguir determinados
preceitos religiosos, na convicção pela fé de recompensa na Terra ou então no céu.
Prevalece, então, a referência contínua à Bíblia como garantia mais eficaz e segura da
autenticidade da vida ética dos crentes e da reflexão teológico-moral.
Assim, o discurso da igreja se caracteriza como a leitura ética iluminada pelo dado
da revelação, no qual ela é revestida de competência para interpretar a repercussão da fé
sobre a razão moral, isto é, ela decifra as implicações éticas da mensagem revelada. Como
argumenta Elinaldo Renovato, “o cristão tem a vantagem de possuir um código de ética
extraordinário, que é a Bíblia Sagrada, por ele aceita como inspirada e revelada por Deus,
através do Espírito Santo”. 182
Cecília Loreto Mariz diz que o apelo do pentecostalismo visa a busca de uma ordem
ou moralidade oferecida por Deus, que aponta modelos e regras a serem seguidas, e que na
conversão a experiência do crente com o Espírito Santo é fundamental para que ele possa
sentir-se um novo cidadão.
O pentecostalismo oferece uma magia moral, com uma moralidade clara,definida e regida por leis universais inexoráveis, num mundo de regrasparticularistas e flexíveis. Oferece uma ordem, uma lógica, que o indivíduonão encontra nem em sua vida, especialmente numa sociedade assolada porcrises econômicas, inflação, criminalidade, com leis frágeis e grandeimpunidade.183
182 LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 9.183 MARIZ, Cecília Loreto. Libertação e Ética: uma análise do discurso de pentecostais que serecuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, Alberto. Nem anjos nem demônios: interpretaçõessociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 220.
121
A desordem moral que se expressa na sociedade através das doenças, do
desemprego, da criminalidade e de outros desvios vistos como espirituais pelo crente é vista
como uma desordem sobrenatural que traria a falta de Deus e que implicaria na presença do
demônio. O converso pentecostal, especialmente aquele que mora na periferia das grandes
cidades e que compõe o quadro das Assembléias de Deus tradicional, constituída por
migrantes pobres que se sentem perdidos e marginalizados em um mundo de rápida
transformação econômica e de valores morais, busca a ordem oferecida por um Deus moral.
Ao defender um Deus absoluto que possui uma ética divina, e ao definir qualquer
sobrenatural que não seja Deus como demoníaco e mau, o crente não apenas crê numa
magia ética, mas atribui um poder mágico à ética. Pois convivendo com a ilegalidade e com
altos índices de violência no cotidiano, o converso da periferia da Assembléia de Deus em
especial não encontra na esfera social uma plausibilidade ou apoio para nenhuma ética,
indo buscar esse suporte na esfera do sobrenatural, do absoluto que produz justiça. Quando
não se espera na Terra, que seja no céu, “onde todos irão prestar contas a Deus”.
Para tornar o indivíduo livre da opressão sofrida pela sociedade mais ampla, o
discurso assembleiano propõe a moral essencialista criando uma pequena sociedade: a
igreja e a família. Essa pequena sociedade coesa de “irmãos” ajuda na segurança dos
marginalizados no mundo desprovido de justiça, prometendo combater a opressão social
com o poder do sobrenatural. Como diz Elinaldo Renovato, “como resultado do ensino da
Palavra às pessoas, Deus promete multiplicar os dias dos seus servos na Terra, além de
bênçãos de vitória contra as injustiças”.184 Nesse aspecto, notamos que a “Palavra de Deus”
soa como aquela que tem poder e que dá o direito, a segurança e a orientação ao crente.
184 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. P. 77.
122
Segundo os pentecostais, em um mundo onde os valores e princípios são totalmente
invertidos e deturpados, há uma orientação de Deus a ser seguida por aqueles que desejam
obter vitórias e serem felizes na vida.
Nesse sentido é possível perceber que há uma preocupação no meio cristão da Igreja
Assembléia de Deus de fazer a vontade de Deus e cumprir seus mandamentos, ou seja, tudo
o que está escrito na Bíblia e que é considerado como “Palavra de Deus” deve ser
seguido fielmente pelo crente; com seu discurso de salvação, ela deseja que toda a
sociedade possa refletir sobre o cumprimento dessa vontade. Isso pode contribuir para uma
postura de intolerância religiosa porque essa atitude impõe uma crença e um tipo de padrão
de comportamento a todos.
A moral essencialista pode ser uma forma de conduta que limita o campo da
liberdade humana. Se o indivíduo não pode questionar as regras nem transformá-las, sua
liberdade se restringe a obedecê-las já que elas estão estruturadas na leitura literal da Bíblia.
Portanto, a moral essencialista não permite soluções novas que possam ser tomadas de
comum acordo pelos membros da comunidade ou que atendam a situações concretas
bastante particulares. As regras morais essencialistas acabam se tornando uma imposição,
em vez de contribuírem para a melhoria da convivência social e para a felicidade dos
seres humanos. Entretanto, o discurso de Ricardo Gondim, vai de encontro com essa
necessidade de apresentar uma moral pela qual o indivíduo possa expressar seus
questionamentos para contribuir na formação do grupo e em um melhor entendimento
social. Dessa forma, Ricardo Gondim traz uma moral personalista em seu discurso.
123
1-2 – Moral Personalista
A Assembléia de Deus tradicional sempre foi, desde seu início, uma Igreja voltada
para as massas, um movimento que nunca esteve preocupado com as elites. “Obviamente
no movimento pentecostal das Assembléias de Deus existem muito mais pobres do que
ricos”.185 Para expandir-se, a Assembléia de Deus aproveitou-se das correntes migratórias
do Norte e Nordeste para o Sudeste, um meio eficiente para quebrar os tentáculos
tradicionais das crenças de um catolicismo rural.186 Os primeiros pastores brasileiros
inspiraram-se no modelo vivido pelos pioneiros suecos, e ainda hoje há um forte discurso
voltado para manter a identidade do passado. Os primeiros “obreiros” não tinham nenhuma
formação acadêmica para iniciar o trabalho voltado à evangelização. Muitos aprenderam a
ler em suas próprias Bíblias.
A Igreja Assembléia de Deus Betesda deu os primeiros passos no sentido de resgatar
os valores pentecostais com uma mensagem contextualizada e com a missão de atrair
profissionais liberais, universitários e segmentos intelectualizados da cidade. Apresentou
uma forma diferente da que foi apresentada pela Assembléia de Deus tradicional que se
esmeraram nos códigos de usos e costumes como elemento da salvação. Ricardo Gondim
diz que
O religioso brasileiro aprendeu que a religião prepara para a vida depois damorte, mas não sabe como enfrentar os embates da vida. Esse preparo paravida depois da morte não faz necessariamente do religioso um bom cidadão,pai exemplar, profissional competente. Essa transcendência tornou as pessoasfatalistas. O homem, preso a forças do destino, aprende na religião a
185 OLIVEIRA, José de. Breve história do movimento pentecostal: dos Atos dos Apóstolos aos diasde hoje. Rio de Janeiro: CPAD, 2003, p. 72.186 Cf., Ibid., p. 72.
124
contentar-se com sua sorte esperando que na outra vida ele possa compensartodo sofrimento de sua existência.187
Em uma sociedade moderna que vive o processo de globalização, a religião deixa de
ser uma dimensão pública da vida passando a restringir-se à esfera privada, na qual as
pessoas querem optar pela sua preferência religiosa sem ser importunadas por opiniões
contrárias. Nesta sociedade, a religião passa a ser uma instituição a mais entre tantas outras,
especializada em questões de culto, sacramentos e vida após a morte. Segundo Ricardo
Gondim, a Igreja deve ser um centro que possa provocar no indivíduo o desejo de pertença,
só assim poderá atingir a esfera inter-relativa onde todos são amados e queridos.188
Em uma sociedade moderna e industrializada há uma reação contra os valores
baseados na tradição e nos costumes. Diante da insegurança e da descrença no governo e
nas instituições sociais e familiares, no meio da grande multidão, o homem torna-se mera
estatística que inflaciona os meios religiosos. Para Ricardo Gondim, as pessoas devem ser
tratadas na pessoalidade, individualmente, para se sentirem amadas por Deus, e não com a
frieza dos guichês das repartições públicas.189 Assim, tornam-se pessoas seguras no
ambiente que freqüentam e não meros crentes massificados. Torna-se necessário o
estabelecimento de uma moral que não venha a limitar a liberdade ou oprimir o crente; que
ele possa, acima de tudo, ter a liberdade para se comunicar, participar e ser criativo.
Ricardo Gondim com sua dedicação à pesquisa dos movimentos espirituais, sociais
e políticos da Igreja Evangélica brasileira e sua experiência trazida dos Estados Unidos,
187 GONDIM, R. O evangelho da nova era. p. 11.188 Cf., Idem. Fim do milênio: os perigos da pós-modernidade na Igreja. São Paulo: Abba Press, p.58.189 Cf., Ibid., p. 77.
125
onde recebeu sua formação teológica foi fundamental para o desenvolvimento da Igreja
Assembléia de Deus Betesda.
Desde o momento em que passou a liderar o movimento da Igreja Assembléia de
Deus Betesda, Ricardo Gondim buscou estabelecer o equilíbrio entre a espiritualidade e a
reflexão bíblica, para que a Betesda pudesse ser uma Igreja Pentecostal que não
abandonasse a sua humanidade nem os processos históricos de suas ações, onde os
participantes pudessem contribuir com sua críticas e opiniões para o crescimento do grupo.
Certamente ele não poderia se fechar na tradição assembleiana e fazer com que todos
estivessem submissos ao seu poder. Isso fica claro nas atitudes dos membros envolvidos
com a Igreja, como Roberto Minczuk, regente e diretor artístico-adjunto da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo – Osesp – e da Filarmônica de Nova York, onde é
regente associado. Ele explica que “a igreja é um lugar em que você compartilha a sua
esperança”.190 Minczuk foi criado na Assembléia de Deus tradicional e deixou de
freqüentá-la por ser uma Igreja muito fechada, que mantinha o legalismo pentecostal. Ele
declara que pertence hoje a Betesda porque encontra ali um canal de diálogo e participação.
Nesse sentido, é possível perceber que as relações humanas, ou seja, o processo de
reiteração no grupo da Igreja Assembléia de Deus Betesda, se fundamentam e se
configuram racionalmente de acordo com os fins dos próprios participantes. Estes
condicionam a comunicação e proporcionam as regras de atuação conjunta para o
funcionamento da Igreja. É, portanto, na comunidade cristã que a pessoa convive e
desenvolve sua auto-estima e expectativas, tanto pessoais – de relação consigo mesmo –
190 DIAS, E. C. SP 450. Folha de São Paulo, São Paulo, 14 de Dezembro 2003. Cotidiano, p. 9.
126
como também sociais, ou seja, o papel que irá desempenhar no contexto de sua sociedade.
Por isso, pensar, apreender e compartilhar é desenvolver racionalmente as estruturas da
convivência humana.
O espaço de realização pessoal não é um lugar dado de antemão, mas uma criação
que vai tomar forma na relação pessoal, em que a concepção que uma pessoa tem de si
mesma e dos outros desempenha um papel fundamental e condiciona ao mesmo tempo a
base da criação das regras e normas que vão determinar o comportamento coletivo.
O modelo personalista de moral reconhece que, no trabalho de composição entre os
valores do todo e do indivíduo, brilha um valor dominante, uma constante axiológica do
justo, que é o valor da pessoa humana. O indivíduo deve ceder ao todo até e enquanto não
for ferido em seus valores, ou seja, na plenitude do homem enquanto homem. Todas as
vezes que se ultrapassa a esfera da personalidade haverá arbítrio.
A moral personalista ocupa um lugar central na busca de uma maior autonomia e
liberdade dos indivíduos diante das instituições. O princípio é o de que a pessoa não se guie
pela tradição ou por um conjunto de verdades preestabelecidas, mas que escolha o que é
melhor para si e para a sociedade. Ela tem como estrutura a consciência, e esta é um
elemento dinamizado dentro do grupo em que o sujeito está inserido. É dada a ele a
liberdade de pensar, de escolher e agir. Marciano Vidal afirma que, na moral personalista,
a decisão moral brota do núcleo autônomo da pessoa. Decisão ética só temsentido quando é “responsável”, ou seja, quando constitui “resposta” do eu àsexigências de sua própria realização.De outro lado, se expressa à decisão moral prevalentemente mediante opçõese atitudes, e não mediante atos atomizados e casuísticos. O discernimentoético instala-se preferentemente na opção fundamental da pessoa e orienta apartir dela todo o dinamismo moral humano. [...] A verdadeira visão
127
personalista da decisão moral situa o discernimento ético no lugar marcadopela “reciprocidade das consciências” e pelas exigências do projeto históricosocialmente compartilhado.191
A virtude reflete um padrão de moralidade intrapessoal. Sob o ponto de vista
teológico, a liberdade torna-se necessária, pois, cada pessoa tem um destino além da
sociedade em que vive neste mundo e só pode realizá-lo sob condições de liberdade. Isso
significa que cada indivíduo é um fim em si mesmo e jamais deve ser tratado como simples
meio para se atingir determinado fim. Tratá-lo assim constitui forte violação à sua natureza,
à sua condição e à sua dignidade.
A subjetividade criativa da pessoa humana está relacionada com a idéia de que
todos, indivíduo e sociedade, tanto no plano natural como no sobrenatural, são chamados a
responder e a cooperar, direta ou indiretamente, para a vocação universal de realização por
meio das formas sociais e individuais do bem e do conhecimento de Deus. O personalismo
significa o reconhecimento do valor intocável do indivíduo enquanto este se põe como
pessoa.
Para a moral personalista, cada indivíduo deve ser livre para escolher os seus
próprios objetivos, isso significando o reconhecimento do valor intocável do sujeito.
Distingue-se, portanto, por uma moral concreta da experiência religiosa, na qual a santidade
“não é resultado de observância a normas eclesiásticas ou de assiduidade aos cultos” 192
mas uma transformação do caráter do indivíduo trazendo-lhe a liberdade. Como afirma
Ricardo Gondim:
191 VIDAL, M. Moral de opção fundamental e atitudes. São Paulo: Paulus, 1999. p. 103-4.192 GONDIM, R. É proibido. p. 168.
128
O poder moral de discernir e recusar o que é torpe vem da liberdade deescolha, maturidade emocional, e intelectual e espiritual. Nunca, porém, dacensura e patrulhamento da nossa liberdade crítica. A Bíblia afirma, emdiversas circunstâncias, que o evangelho não se propõe a coibir a liberdadedas pessoas, mas a fornecer-lhes a capacidade de eleger o que for nobre emcontraposição ao que é inconveniente.193
O discurso de Ricardo Gondim pode ser considerado personalista, pois, ele acredita
em um Deus pessoal e na experiência religiosa interior da cada ser, e sua compreensão a
respeito da conversão é que essa ocorre sem nenhum esforço humano, sem regras ou
cartilhas de usos e costumes, mas com grande investimento de Deus no plano da salvação
da humanidade. A pessoa é considerada primordialmente um ser racional dotado de
vontade própria, de livre arbítrio, e que, portanto, se realiza no exercício da sua liberdade.
O humano é valorizado pela defesa de sua autonomia.
A estrutura personalista da ética cristã aceita como pressuposto a autonomia da
razão ética em relação às proposições do Novo Testamento. Nessa compreensão da moral
cristã, pode-se aceitar a ordem humana com sua normatividade consistente e autônoma.
Segundo Marciano Vidal, ao considerar o homem a partir da perspectiva da criação, é
possível pensar em Deus como alguém que dá sentido à autonomia do homem e a
fundamenta194. Percebe-se, assim, que a ética personalista é a expressão da relação
normativa de Deus com o homem, e essa relação não contradiz a sua normatividade; ao
contrário, dá-lhe a possibilidade de autonomia.
Não deixa de ser significativo que o personalismo, como filosofia que‘reivindica a dignidade ontológica, gnosiológica, moral e social da pessoa’,tenha encontrado no cristianismo o terreno propício onde se assenta de formaadequada. Os motivos para uma inspiração personalista do Cristianismo
193 Ibid., p. 113.194 Cf., VIDAL, M. Moral de opção fundamental e atitudes. P. 44.
129
encontram-se em cada página do Novo Testamento. Por isso, as fibras maisessenciais do tecido antropológico cristão são as que introduzem na própriacompreensão constitutiva de pessoa o princípio de abertura, de ser dialogal,de responsabilidade e reciprocidade do ser pessoa.195
Dispondo de si mesmo como opção fundamental, o ser humano alicerça individual,
social e religiosamente a sua própria identidade e personalidade moral. Essa opção, que o
envolve em um compromisso que afeta todo o seu ser, qualifica nuclearmente o seu
dinamismo ético e, caracterizando sua intencionalidade mais profunda, define assim a
condição moral da pessoa.
O personalismo é uma orientação predominante da estrutura básica da moralidade
humana que se traduz em uma prefiguração constante e distinta do agir de cada ser; serve
de base para o sentido radical que a pessoa dará à sua vida – sentido que é mais importante
que a própria vida –, influindo decisivamente na resposta vital às perguntas-chave da
existência. Estabelece no ser humano uma consistência essencial que influi de modo
determinante em seu sistema de motivação e em sua capacidade de escolha; imprime uma
marca precisa na história de cada pessoa de tal modo que, exprimindo a sua insubstituível
singularidade, inspira eticidade de seus múltiplos comportamentos e configura a sua
conduta habitual com um estilo característico de vida. Proporciona-lhe um horizonte
definido de referência em seu devir, de forma que seu itinerário pessoal possa realizar-se
com solidez, coesão, coerência e continuidade; passa a ser filtro valorativo de todas as
expressões de sua consciência e de sua liberdade. Possibilita, assim, a identidade dinâmica
da pessoa humana, fazendo com que inicie sua vida moral propriamente e comece a ser um
adulto responsável. Situada na dimensão especificamente cristã e a partir de sua concreção
195 Idem. Ética Teológica: conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 301.
130
positiva, essa opção acarreta para o seguidor de Jesus uma verdadeira coexistência com sua
vida e mensagem.
Segundo Ricardo Gondim, a vida cristã compõe-se de um grande desafio: a não
estruturação da maturidade e da educação do cristão nas censuras e proibições que não
geram santidade. Isso significa que a base da formação cristã é o amor a Cristo e ao
Evangelho, e que “proibir não ajuda. Quando se impede o livre-arbítrio, mais do que tolher
a liberdade cristã está roubando das pessoas processos de amadurecimento que lhes
possibilitariam saber discernir o que é bom e o que deve ser reprovado”.196
Nesse aspecto percebemos que “quem ama não precisa de outra norma para agir
bem; seu amor é mais exigente do que poderia ser qualquer código de normas objetivas;
estas podem pedir que não se mate ou não se roube”.197 Segundo Marciano Vidal, a atitude
estruturada no amor contribui para a importância da pessoa, ou seja, ela quer por si mesmo
o bem de cada um. Uma ética que faz disso um princípio, ao mesmo tempo em que é mais
exigente, será mais prazerosa e constituirá o crente em uma autêntica liberdade. Essa ética
pode ser mais fundamental situada como está, no conjunto de uma fé religiosa. Portanto,
quem aceita Deus como Pai na fé, aceita logicamente a básica atitude ética religiosa que
consiste em querer selecionar as máximas de conduta desde o supremo princípio do amor,
isto é, olhar todas as pessoas como irmãos.198 Nessa opção o cristão se acha diante da
decisão principal de sua existência.
196 GONDIM, R., É proibido. p.108.197 VIDAL, M. Ética Teológica., p. 161.198 Cf., Idem. Moral de atitudes. p. 491-5.
131
2 – O DISCURSO RELIGIOSO COMO ESTRUTURANTE DO CRENTE
O discurso realizado pelos pastores é reconhecido pelos membros das respectivas
Igrejas como uma contribuição para a formação cristã, estruturando uma nova realidade de
vida, definindo uma nova forma de se relacionar no mundo perante as dificuldades do
cotidiano. Nos devidos discursos a conduta pessoal está intimamente relacionada à
experiência religiosa. Na verdade, os valores que norteiam a vida dos crentes estão
perpassados pela experiência do sobrenatural. Quando o crente faz ou deixa de fazer algo,
tal atitude é um desdobramento da relação que ele tem com o núcleo fundamental de sua fé.
Por ser um fenômeno histórico e produtor de discursos, com registros concretos, a
religião constituiu-se como um campo de pesquisa que merece análise. A religião é a
epifania da palavra. Partindo da premissa de que a religião se manifesta na e pela palavra,
podemos perceber que o discurso religioso, resultante da religião, se constrói como ato de
linguagem. O discurso pentecostal possui a capacidade de estabelecer equivalência entre fé
e vida. Para Waldo César, talvez seja possível dizer que, mais do que linguagem existe uma
língua pentecostal, visto que ela abrange todas as formas de comunicação, tais como
palavras, gestos, símbolos:
Cada participante parece mergulhado em si mesmo, mas a comunicação totalestabelecida por uma linguagem comum cria comunhão e confiança que sereflete sobre a totalidade dos presentes – todos os sentidos participam dafreqüência do discurso e de seus efeitos repetitivos. [...] A faculdade com quese usam as formas vocabulares e a freqüência com que se trocam os sinais desua significação superam a linguagem comum e dão voz àqueles cuja falaestava submissa e conformada com o glossário de sua marginalidade edesesperança [...] A produção de sentido que provém do uso livre e ilimitadodos sons – onde a voz de cada um se perde e se soma ao conjunto de outrasvozes na multidão – oferece um signo, um sinal que se traduz e se materializatanto na libertação pessoal quanto coletiva. Essa forma de comunicação, queaparentemente nada comunica, torna-se profundamente comunicativa e
132
estabelece forte conexão com o social como instrumento multiplicador doeu.199
A mensagem escrita é um elemento de importância vital na igreja Assembléia de
Deus. Sua função, além de doutrinária, é inspirativa no viver do cristão. Assim, o discurso
escrito bem como as palavras dirigidas do púlpito representam componentes úteis à
estrutura da vida social e religiosa do crente. Waldo César observa que a experiência
religiosa promove um continuum entre o interno e o externo, 200 no qual a aparente
passividade dos membros sentados nos bancos das igrejas é rompida com os apelos
concernentes à vida fora do templo, pois, a mensagem envia os crentes para o mundo para o
combate das forças malignas.
Para Elinaldo Renovato, seu discurso tem a força de produzir uma estabilidade na
vida cristã de cada membro participante das Assembléia de Deus. Ele está sempre frisando
em seu discurso temas direcionados a uma vida devocional diária do cristão: o jejum como
reforço à oração, relacionamento familiar, relacionamento doméstico e social do crente,
vitória nas tentações e por fim a espera do retorno de Cristo a Terra. Estes temas estão
ligados ao cotidiano do crente e tem como objetivo ensiná-lo a se comportar no seu dia-a-
dia, pois, suas vitórias e a salvação eterna dependem de seu comportamento.201
Sempre inspirados nos grandes heróis da Bíblia, os discursos são de enfrentamento,
e, claro, de possibilidade de vitória do crente. Todo crente quando sincero pode vencer toda
e qualquer tentação, seja qual for sua origem. Para tanto, adverte Elinaldo Renovato,
199 CÉSAR, W. & SHAULL R., op. cit, p. 80-3.200 Cf., Ibid., p. 99.201 Cf., LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 258.
133
“precisa seguir fielmente o que orienta a santa Palavra de Deus”,202 significando que,
quando há derrotas, a falha está no sujeito crente e não em Deus. É necessário, então,
consertar-se diante da Igreja e da palavra de Deus para que não haja dúvidas e ele não
venha a temer Satanás.
Alegar que o crente é fraco, que isso é próprio do homem, é argumentofalacioso. O cristão tem todas as armas e todos os meios para vencer. ‘Possotodas as coisas naquele que me fortalece’. [...] Se o cristão não tiver caráterfirmado em Cristo, será derrotado pelas tentações do mundo. A vitória sobreo mundo advém da atitude mental e espiritual que rejeita o mundanismo.Podemos vencer o mundo, conforme diz a Bíblia. Neste mundo, enquantonão passarmos para a eternidade, estaremos sempre numa guerra espiritual.Nela, as batalhas são travadas em todos os lugares em todo o tempo. Masformamos o maior e mais bem equipado exército que o mundo jamaisconheceu.203
Esse discurso é uma estratégia que permeia o campo pentecostal, a palavra ocupa
lugar de destaque, o pastor atua como um grande animador pronunciando frases que
provocam nos fiéis confiança e coragem de vencer. O discurso baseia-se de forma especial
nas dificuldades enfrentadas pelos crentes no seu dia-a-dia, com ênfase acentuada na luta
contra o mal.
O processo de inserção do pentecostalismo no mundo secularizado e também a
utilização de seus meios têm provocado um grande impacto em seu vigor escatológico. A
expectativa de realização plena com a chegada do reino de Cristo é, de certa forma,
antecipada nas experiências concretas de manifestação do Espírito Santo no cotidiano dos
crentes favorecendo uma relação com Deus.
202 Ibid., p. 220.203 Ibid., p. 222-4.
134
Não adianta ser crente dentro das quatro paredes da igreja: de nada valem os‘Aleluias’ intramuros, para, logo na calçada, contradizê-los com atitudesimpróprias. De nada vale um culto dissociado da contingência diária. Nãodevemos buscar uma vida marcada por picos de sensações espirituaisextraordinárias. E nem por uma carga exageradamente pesada de leis,estatutos e normas religiosas. A peregrinação do crente é marcada pela buscade querer viver humildemente e sensatamente diante de Deus.204
Dessa forma, a experiência religiosa da salvação no meio pentecostal das
Assembléias de Deus deve ser entendida como um fenômeno que possui expressões ou
manifestações sensíveis e significado na vida das pessoas. Ela pode influenciar as ações e a
personalidade dos praticantes, moldando-a ou sendo moldada.
No contexto pentecostal, a experiência religiosa é qualificada pelos crentes como a
forma visível da força do Espírito Santo movendo a Igreja. Ela produz a espiritualidade
pentecostal a partir de quatro noções que se fundem de maneira interdependente, a saber: a
convicção de que a experiência atual é fruto da manifestação de Deus, por intermédio do
seu Espírito que irrompeu em Pentecostes; a certeza de que a comunidade realiza no ato do
culto o prolongamento dessa experiência fundante; a construção de uma identidade própria
à luz desse evento; e, por último, a certeza de que a experiência do Pentecostes possui a
capacidade de permear diversas classes sociais freqüentemente antagônicas e processos
históricos radicalmente opostos.
Francisco Cartaxo Rolim destaca que a experiência religiosa oferece aos crentes o
sentimento de proteção e de pertença ao grupo, constituindo-se uma experiência
estruturadora, no qual.
204GONDIM, R. É proibido. p. 182.
135
Os crentes produzem um imaginário sob cuja influência experimentamsimultaneamente o aspecto de proteção e de existência do grupo. Proteçãoporque de um lado a crença no Espírito Santo é a crença no poder divinoabsoluto, e por outro lado o grupo é percebido como espaço por excelência damanifestação desse poder, no qual se reproduz e re-atualiza a manifestaçãoprimitiva desse mesmo Espírito.205
A argumentação de Ricardo Gondim é que a Igreja tem a responsabilidade de
amparar o cristão e sua mensagem provocar um encorajamento para se obter a vitória sobre
o pecado, no qual o cristianismo toma o homem interior, transformando o que há de mais
íntimo em sua natureza, de maneira que este não precisará de outras pessoas para impor
regras, mas, auxiliado por Deus, ele poderá por si mesmo distinguir o que é verdadeiro e
fazer o que é direito. Sendo a igreja um organismo vivo e não uma instituição disputando o
mercado, suas afirmações têm que vir do coração de Deus e ter sua identidade no
Evangelho, para poder tratar das pessoas individualmente, possibilitando o
desenvolvimento de um pluralismo para que assim os crentes possam ter profundas
convicções em sua fé. Pois sem convicções pessoais, este se fecha no tradicionalismo e
legalismo religioso, ou então, cai no desvio da “Palavra de Deus” indo de encontro com o
apego às ideologias e doutrinas criadas por uma instituição. 206
Nossas comunidades têm-se fechado em um dogmatismo tanto teológicocomo político asfixiante. Qualquer um que expuser posicionamentosdiferentes em qualquer área sofrerá retaliações. Infelizmente, ainda existempastores que lutam desesperadamente para formar igrejas com um perfilpolítico único. Acreditam que sua percepção da política é completa e, sequalquer crente pensar diferente, infligirão ostracismo.207
No discurso de Ricardo Gondim o crente não necessita realizar esforços para obter a
205 ROLIM, F. C., op. cit., p. 225.206 Cf., GONDIM, R. Fim de milênio. 2002.207 Ibid., p.77.
136
salvação ou vitória, é somente esperar com sua fé em Deus que com sua graça santifica e
capacita-o a fazer sua vontade, fornecendo o desejo, a força moral e os ímpetos de virtude.
Segundo Gondim, “a graça de Deus aguça no crente a percepção dos princípios da lei moral
de Deus, e não da letra”. 208
3 – DOIS MODELOS DE MORAL E UM MESMO TIPO DE ARGUMENTAÇÃO RELIGIOSA
Procuro analisar o discurso dos dois autores, no qual possuindo teologias morais
diferentes utilizam-se do mesmo tipo de argumentação religiosa. Pois, tanto Elinaldo
Renovato como Ricardo Gondim deixam claro que a Bíblia é o padrão a ser seguido. A
forma como procuram interpretar os textos sagrados para fundamentar suas posições
teológicas deixa evidente que estão revestidos da autoridade de Deus, portanto, se tornam
instrumentos no qual a voz de Deus se torna ouvida pelos crentes. Observarei, portanto,
suas tendências e características. Não tenho como objetivo aqui elaborar uma síntese do
conceito de teologia, nem percorrer de modo abrangente os campos e tendências que o
termo sugere. O termo discurso teológico é empregado aqui para designar as marcas
lingüísticas, por intermédio das quais os crentes exteriorizam a moral e sua experiência com
Deus.
O discurso religioso (ou teológico) se caracteriza por ser aquele “em que fala a voz
de Deus”, cujas características especificas são: o desnivelamento na relação entre locutor e
o ouvinte; o domínio do mundo espiritual sobre o temporal; a mistificação; a apropriação da
voz de Deus; a obscuridade e a reversibilidade ilusória. Além dessas características deve-se
208 Idem, É proibido. p. 161.
137
acrescentar a ausência de autonomia, pois aquele que fala em nome de Deus não pode
alterar o que lhe foi determinado. Assim, o texto bíblico sendo ele interpretado ou sendo
visto como dado da revelação, os rituais e as determinações do grupo contêm as regras
pelas quais o crente se apropria da voz de Deus209. No discurso teológico, a interlocução
com o sagrado têm formas especificas; a fala é ritualizada e as fórmulas por intermédio das
quais se pode falar com Deus são previamente determinadas. 210
Por esse motivo, o discurso religioso possui uma tendência à monossemia, ou seja, o
processo interpretativo não pode transgredir certos postulados que são preservados pelo
grupo como sendo sua identidade elementar. No caso do pentecostalismo clássico das
Assembléias de Deus, a monossemia é caracterizada pelo pneumatocentrismo que a
experiência com Deus e as falas adquirem. A relação com Deus se dá por intermédio da
vivência do derramamento do Espírito Santo na vida do crente, entretanto, essa experiência
possui um código próprio de legitimação; existem parâmetros objetivos para se definir o
momento em que cada crente é alcançado com a graça do enchimento do Espírito, bem
como o momento de seu distanciamento. Na Assembléia de Deus tradicional essa
experiência é marcada pelo falar em línguas estranhas, e a partir de então, inicia-se um
processo de doutrinação a respeito das normas e tabus comportamentais, valores morais
209 Cf., ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,1999, p. 245.210 Elinaldo Renovato, em seu livro “Aprendendo diariamente com Cristo”, e Ricardo Gondim em:“É proibido: o que a Bíblia permite e a igreja proíbe”, descrevem as posturas que os crentes – apóssua experiência de conversão e serem dominados com o Espírito Santo – devem seguir e fazer paraatender o caminho da santificação e de uma vida moral integra com Deus. É certo que RicardoGondim mostra com clareza que o crente não deve realizar o caminho dos usos e costumes paraagradar a Deus, mas viver uma consistência cristã da experiência com o Espírito Santo esperandoque Deus possa realizar sua vontade. Desse modo, o discurso de ambos tende a evoluir para umacristalização dogmática.
138
voltados para os usos e costumes de santidade como sinal da salvação. Já na Assembléia de
Deus Betesda é marcada por uma experiência de transformação no interior do crente, ou
seja, “a santificação é uma exigência bíblica para os filhos de Deus e um imperativo da vida
cristã” 211 e que ocorre como relacionamento, como compreensão das Escrituras e também
pela atuação sobrenatural do Espírito Santo sobre os crentes transformando-os, dispensando
assim os tradicionais rigores legalistas.
Dessa forma, é possível caracterizar o discurso teológico no ambiente das
Assembléias de Deus tradicional ou Betesda como sendo um discurso que se caracteriza
por apresentar as marcas do desnivelamento. Ou seja, o locutor (o próprio Deus/sujeito)
situa-se no plano espiritual e o ouvinte no plano temporal. Duas diferentes categorias de
mundo interagem tendo como referência à desigualdade na relação. O espiritual ou
imutável domina o temporal. Trata-se de uma relação assimétrica entre os sujeitos, pois o
lugar de Deus jamais será ocupado pelo ser humano.
É possível dizer que no discurso teológico de Elinaldo Renovato e Ricardo Gondim
ocorrem um processo de subsunção, ou seja, estar no lugar, de uma voz pela outra. As
descrições sobre a vontade de Deus ou as expressões doutrinárias realizadas pelos autores
evidenciam muito bem esse elemento. Quando Elinaldo Renovato afirma que “o referencial
seguro e infalível não é a consciência humana, mas sim a consciência de Deus, expressa em
sua palavra, a Bíblia Sagrada, hoje pregada pelos servos de Deus” 212, ou então, quando
afirma Ricardo Gondim, “Deus não deseja estabelecer com ninguém um relacionamento
211 GONDIM, R. É proibido. p. 165.212LIMA, E. R. Ética Cristã. p. 27.
139
proibitivo; ele almeja que sejamos íntimos e livres para desfrutar de sua companhia”213, eles
ocupam o lugar de Deus e a voz de Deus se confunde com suas próprias vozes.
Normalmente as sentenças doutrinárias quando estruturadas na “Palavra de Deus” adquirem
maior legitimidade quando obedecem a essa dinâmica. Esse processo é chamado de
mistificação porque oculta o mecanismo por intermédio do qual uma voz se mostra na outra
ou a pessoa se apropria da voz da outra.
A forma taxativa com que Elinaldo Renovato recorre aos textos bíblicos para
evidenciar a prática dos usos e costumes de santidade como experiência da salvação
mostra o importante papel que o texto sagrado possui em seu discurso, pois o autor
procura fundamentar seus argumentos em citações do texto bíblico, tendo assim, uma
autoridade divina diante de seu público. Assim também Ricardo Gondim, mesmo
discordando em muitos aspectos da forma interpretativa – especialmente em relação dos
usos e costumes de santidade – da Assembléia de Deus tradicional, também busca apoiar-se
nos textos bíblicos sua autoridade pastoral e de representante de Deus em sua Igreja. Pois
como relata no manual aos membros da Betesda: “acreditamos que a Igreja deve honrar e
respeitar seus pastores como homens de Deus (Hb 13:17; Rm 13:7)”.214
É possível observar uma característica que se atribui ao discurso como apropriação
da voz de Deus. Nesse sentido, o livro de Ricardo Gondim, “É proibido: o que a Bíblia
permite e a igreja proíbe” mostra-se paradigmático. Ele procura mostrar como o movimento
pentecostal se mantém distante do verdadeiro Pentecostes, pois, em sua crítica, o
movimento pentecostal com sua “cartilha do que pode e não se pode fazer” tem contribuído
213 GONDIM, R., op. cit., p. 61.214 Igreja Assembléia de Deus Betesda. Aos nossos membros. p. 25.
140
para o crescimento de inúmeros “desviados” que cresceram nas Igrejas, mas, por não
suportarem o fardo do legalismo, acabaram deixando o evangelho. 215 Segundo ele, os
pentecostais têm dificuldade de entender a “graça comum de Deus”; por essa razão, se
afastam ou condenam a cultura de ser perniciosa aos crentes por medo de cederem ao
mundanismo. Para ele, “a intenção de Deus não é que formássemos guetos culturais, mas
que fôssemos sal e luz dentro de nossa própria realidade”. 216 Dessa forma, fica claro que há
uma apropriação da voz de Deus pelo pastor.
Assim, há também uma característica no discurso da Assembléia de Deus
tradicional que é a obscuridade de significação decorrente do desnivelamento entre o dito
de Deus e o dizer humano. A comunidade resolve esse problema através da fé, ou seja,
como não compreende, crê e obedece. Como fica evidenciado nas palavras de Elinaldo
Renovato, “sabemos que muitas das perguntas que se fazem, em termos éticos e morais, só
terão respostas precisas na eternidade”.217 O mistério deve permanecer mistério, o qual
somente o sobrenatural pode revelar.
Destaca-se, portanto, nos discursos o caráter de reversibilidade. Trata-se da
dinâmica segundo a qual os lugares de locutor e ouvinte não são fixados categoricamente
ou, melhor dizendo, da “troca de papéis na interação que constitui o discurso e que o
discurso constitui”. 218
Para Eni Orlandi, a reversibilidade é a condição prioritária para a existência do
215 Cf.,GONDIM. R. É proibido. p. 11.216 Ibid., p. 39.217 LIMA, E. R., op. cit., p. 2-3.218 ORLANDI, Eni P., op. cit., p. 239.
141
discurso. Na inexistência dessa dinâmica na relação entre os interlocutores, “o discurso não
se dá, não prossegue, não se constitui”. 219 Essa categoria está presente, seja no discurso
lúdico, polêmico ou autoritário; ela é também a condição necessária para que o discurso
aconteça. Entretanto, como o discurso religioso se mostra autoritário, a condição discursiva
se mantém pela ilusão da reversibilidade.
O termo ilusão diz respeito aqui à passagem de um plano para outro ou de um
mundo para outro. Deus partilha com os seres humanos suas propriedades: santidade,
poder, fé, unção, benção etc., por outro lado, o ser humano lança-se até Deus buscando
adquirir essas qualidades atemporais. Concretamente, quando o crente vive a experiência da
conversão, do batismo com o Espírito Santo e do processo de santificação, ele realiza essa
ilusão da reversibilidade, pois, de maneira simbólica, assume mesmo o papel de Deus. “Ser
representante, no discurso religioso, é estar no lugar de, não é estar no lugar próprio”. 220
O discurso autoritário é a forma persuasiva mais evidente, na qual se instalam todas
as condições de dominação pela palavra. Adilson Citelli afirma que uma das formações
discursivas mais explicitamente persuasivas é a religiosa, na qual seu enunciador não pode
ser questionado ou analisado, pois representa a voz de Deus, e esta dará forma a todas as
outras vozes, incluindo a daquele que fala em seu nome: o pastor. Logo, é um discurso de
autoria sabida, porém, não determinada, visto que a fala do pastor se constrói como verdade
– não sua mas do outro –, aquele que por ser considerado a determinação de todas as coisas
engloba todas as falas do rebanho. 221
219 Ibid., p. 239.220 Ibid., p. 252.221 Cf., CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2000, p. 48.
142
Portanto, diante desse discurso não se pode questionar, pois, se o fizer, estará
questionando Deus e sua vontade, ou, quando se pode questionar, deve fazê-lo com
fundamento bíblico e amparar-se na “Palavra de Deus”, senão poderá incorrer na
especulação da Bíblia.222 A ordem estabelecida também não pode ser quebrada. Nesses
discursos estão implícitas a ética e a moral, configuradas dentro do grupo para assegurar
não somente os limites mas as objetivações ideológicas de manter a disciplina sobre
aqueles que se convertem. Podemos observar também que não se dá apenas uma imposição
da Igreja, que define e enquadra o que deve ser dito; há o consenso dos fiéis que se
reconhecem no discurso e acabam por criar uma rede que se reforça mutuamente. A Igreja
prega o discurso bíblico, que é incorporado pelos fiéis na fala cotidiana,
institucionalizando-se simbolicamente.
É através desse discurso que os crentes se sentem mais preparados para atuar no
mundo e na sociedade como cidadãos ou enfrentar as relações de poder, que se configuram
na sociedade global, opondo pontos de resistência e pontos de conformidade com a
sociedade na qual estão inseridos.
4 – CONVERSÃO E COMPORTAMENTO MORAL
Para o crente, a palavra ou o discurso é muito mais do que uma simples expressão
verbal. Neles, ele observa alguma coisa da dinâmica que propicia mudança. Ele acredita na
Igreja e em seu discurso, seja ele realizado no púlpito ou escrito, como sendo a “Palavra de
Deus”. Este discurso revela a intenção da pregação, a conversão; revela também aquele que
prega: o sujeito. A identidade deste sujeito se revela no discurso, ela se constitui nessa
222 Cf., GONDIM, R. Fim de milênio. p. 147.
143
operação. A linguagem faz parte das instituições culturais nas quais os indivíduos se
encontram ao serem socializados. Ao se converter, o crente reelabora essa linguagem
original e, através do discurso bíblico, adquire novas práticas discursivas que se revelam
mais eficazes na sua vida cotidiana. Para Cecília Loreto Mariz, o fator fundamental do
pentecostalismo é que ele articula a magia e o sobrenatural com a ética, levando o crente a
se conceber como indivíduo. 223.
É através do discurso que o crente é reconhecido e cria sua identidade de sujeito
coletivo. Ao reelaborar uma linguagem nova a partir daquilo que já lhe era comum em sua
religiosidade, e com o acréscimo do discurso bíblico, ele estrutura uma nova realidade e um
novo imaginário que definem uma nova maneira de viver e de se relacionar socialmente.
Cria, portanto, novas relações de força e de poder diante das dificuldades do cotidiano.
O discurso enquanto se obstina em uma ordem, em um sistema de regras, em uma
escolha de temas, cria poder e cria saber. Poder tem o sentido que Michel Foucault lhe dá:
não é só repressão e interdição, é também estímulo ao discurso e produção de saber. O
poder não é uno, não é composto, não é processo unidirecional entre uma entidade que
comanda e os próprios sujeitos.
É preciso admitir que este poder é antes exercido que possuído, que não éprivilégio adquirido ou conservado pela classe dominante, mas efeitoconjunto das suas posições estratégicas. Efeito que se manifesta e por vezesreflete a posição daqueles que são dominados. Por outro lado este poder nãose aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição àquelesque não o possuem; ele os investe, impõe-se por meio deles através deles,apóia-se sobre eles exatamente como eles próprios, na luta contra ele apóiam-se por sua vez sobre as conquistas que o poder exerce sobre eles. 224
223 Cf., MARIZ, C. L., op. cit., p. 205.224 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 259.
144
É possível observar que os pentecostais, especificamente os da Assembléia de Deus
tradicional, além de sofrerem a dominação dentro da sociedade – os fiéis são quase sempre
oriundos das classes mais pobres – submetem-se também às diretrizes que ela impõe
através dos cultos de doutrinas e também da escola dominical.
O discurso pentecostal da Assembléia de Deus tem como dever fundamental a tarefa
de regular o comportamento moral, a ética dos indivíduos, a sexualidade, os costumes. O
comportamento e as sanções passam pelo crivo da palavra bíblica. Há que se disciplinar os
convertidos para que não ocorra a perda gradativa de um referencial de valores morais e
éticos; esses valores estão cada vez mais obscuros no contexto de um processo compulsório
de liberalização dos costumes por parte de outras denominações evangélicas, o que gera
insegurança e abala sensivelmente as relações do grupo.
Segundo Beatriz Muniz de Souza, em sua obra “A experiência da Salvação”, a
doutrina tem sua base no nível psicossocial que pode ser observado no apelo dramático em
torno da questão da salvação, bem como na exigência do arrependimento, da santificação e
do batismo com o Espírito Santo. Há predominância da ênfase emocional; a experiência
religiosa pentecostal produz uma qualificação moral para os fiéis, ou seja, o fato de ser
identificado com um determinado grupo produz no indivíduo um processo de redefinição
de sua própria identidade e valores. A autora explica que o ponto central na caracterização
do fiel é que sua conduta seja moldada segundo um padrão julgado como moralmente
exemplar pela comunidade religiosa. 225
225 Cf., SOUZA, B. M., op. cit., p. 74.
145
José Bittencourt Filho enfatiza que no pentecostalismo são numerosas as
possibilidades de reprodução da proposta religiosa porque seu proselitismo se desenvolve
também através de outros meios além da palavra. O discurso desempenha a função
principal de estabelecer um conjunto de valores básicos que as pessoas podem guardar e
reproduzir quando questionadas. Segundo Bittencourt:
É oportuno sublinhar que esses valores adestram as pessoas para cumpriremfielmente seus papéis sociais. Disso decorrem as conquistas dos convertidosquanto à restauração de relações familiares e harmonia subjetiva. Contribuemainda para a ascensão social, porquanto produzem trabalhadores“exemplares” e patrões mais “generosos”. 226
Mediante as exortações morais e religiosas, faz-se do comportamento da família
uma conduta econômica e politicamente produtiva. O comportamento do crente passa pela
teia do discurso bíblico, impondo um novo saber e intensificando o poder religioso. Parece
que a moral acentua uma exigência maior de austeridade exatamente onde as interdições
codificadas são mais coercitivas. A austeridade moral constitui, assim, uma confirmação
das interdições; confirma e reforça seu poder coercitivo. A disciplina da igreja vai
influenciar através de uma ética religiosa as atitudes dos fiéis e este comportamento vai
influir no trabalho, na escola e em outros ambientes sociais.
O poder disciplinar é uma técnica, um dispositivo, um método que permite o
controle minucioso das operações do corpo e que assegura a sujeição constante de suas
forças e os transforma em indivíduos dóceis. A Igreja tem o instrumento, a Escola
Dominical, que tem o poder para fabricar o homem necessário ao funcionamento e
226 BITTENCOURT FILHO, J., op. cit., p. 32.
146
manutenção da doutrina moral religiosa. Logo, a disciplina imposta no grupo começa por
atuar no corpo do converso e se estende no controle do espaço e do tempo.
A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder quetoma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos deseu exercício. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao usode instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e suacombinação num procedimento que lhe é específico, o exame. 227
Na produção da verdade, vontades e corpos são controlados por meio da
normatização. Norma, corpo e saber são conceitos centrais para a análise das técnicas
modernas do poder, que atuam por intermédio da canalização produtiva de forças e do
disciplinamento da ação. Esta se torna rotineira, produz costumes estáveis e cria a
normalidade social que constrange e obriga como realidade social em vigor. Mais que as
maneiras culturais de pensar, são os corpos físicos e suas manifestações vitais o lugar
primeiro do exercício moderno do poder. Como na microfísica, o poder regulamenta e
disciplina os corpos em vista de ações automaticamente disponíveis, produtivas.228
A hierarquia, o poder e a autoridade estão presentes no discurso sobre a figura do
marido e da mulher. A hierarquia começa na família. O discurso bíblico, segundo Elinaldo
Renovato, faz da família a base de autoridade e poder para a Igreja229. A submissão à
hierarquia condiciona o crente para as relações com a sociedade em geral. O poder que se
estabelece dentro da família crente não é um poder que se traduz por violência, mas é um
poder positivo. Como argumenta Elinaldo Renovato, “o Espírito Santo acentua
grandemente a liderança do crente no lar, no casamento e na família, isto é, o obreiro deve
227 FOUCAULT, M., op. cit., p. 143.228 Cf., Idem. Microfísica do poder.229 Cf., LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 113-35.
147
ser um exemplo para a família de Deus, especialmente na sua fidelidade à esposa e aos
filhos. Ele não pode falhar diante da sociedade”.230 Percebe-se que esse cristão tem de
possuir um posicionamento ético de acordo com o discurso empregado pela igreja diante da
comunidade onde vive, trabalhando para modificá-la. Esse comportamento é exercido
através do discurso bíblico que aparece como o poder mais sutilmente disseminado nas
relações cotidianas da comunidade. Por meio de tais discursos, multiplicam-se as relações
dos desvios com o pecado, com a marginalidade. Surge a presença constante do demônio,
de satanás, sempre como responsável por tais desvios degenerativos. Para os pentecostais,
o discurso moralista e repressor têm como preocupação assegurar as formas de relações
sociais da comunidade e proporcionar comportamentos que sejam úteis e conservadores.
O crente torna-se uma nova pessoa a partir do momento em que aceita Cristo como
senhor e salvador. Deve manter-se fiel a esse princípio adotando um modo diferente de ser
em relação ao que era antes. No meio pentecostal há uma mentalidade na qual o crente deve
passar por provações para que possa amadurecer e discernir a vontade de Deus e entender a
importância de ter uma vida santificada. Ele se torna um missionário, alguém que proclama
com todas as suas forças a novidade do evangelho. A partir desse princípio, que funciona
como um centro de valores, o crente constrói sua identidade. Desse modo, a doutrina se
manifesta como um centro de poder que gera a fé no Deus da retidão, no qual a experiência
do crente com o Espírito Santo faz gerar uma santificação. A fé determina uma nova visão
de mundo e uma nova identidade que é determinada pela fidelidade ao Espírito Santo.
Nesse processo, a descoberta de um marco categorial singular – a fé – potencializado por
230 Idem. Ética do comportamento cristão: uma abordagem pastoral. Disponível na internet.http://www.cgadb.com.br. Acessado em 26/02/2004.
148
um conjunto de relações com o transcendente – o Espírito Santo – atua como agente
orientador de todas as forças que, em conjunto, formam a pessoa – a personalidade. Essa
experiência não só estabelece os limites da existência, mas, em última instância, decide
aquilo que a pessoa é em profundidade.
É interessante notar que no discurso de Elinaldo Renovato deve haver um grande
esforço por parte do crente para se manter como salvo e seguir o padrão imposto pela
igreja, ou seja, “pode-se exigir um pouco mais aos crentes com relação aos usos e costumes
adotados pela igreja local, desde que sejam ensinados sobre o assunto, com base na Palavra
de Deus”. 231 Os usos e costumes de santidade fazem parte da grande mudança que ocorreu
na vida do crente, sendo que as primeiras se verificam na aparência. As mulheres passam a
usar saias ou vestidos longos, abolindo qualquer tipo de adereço ou maquiagem e
deixando o cabelo crescer. Para os homens, o cabelo curto, barba feita, terno e gravata. Não
é só a sobriedade que caracteriza a aparência do crente, mas também uma respeitabilidade
que se traduz no vestuário até então utilizado pelos bem-sucedidos na vida. 232 Entretanto, o
pastor fica encarregado de manter seu discurso sempre lembrando as rígidas normas
doutrinais para se manter santificado e separado do mundo.
Na Igreja Assembléia de Deus Betesda de Ricardo Gondim, o discurso é de que o
Espírito Santo é o guia-mestre encarregado da santificação, pois, “estamos incapacitados
pelo pecado. O progresso de nossa vida espiritual acontece como desdobramento da ação
do Espírito Santo, que nos coloca a caminho do modelo, que é Jesus”.233 Ricardo Gondim
231 LIMA, E. R. Aprendendo diariamente com Cristo. p. 251.232 MARIANO, Ricardo, op. cit., p. 195.233 GONDIM, R., É proibido. p. 176.
149
argumenta que é um processo de transformação que ocorre mesmo que o crente não esteja
consciente do que está acontecendo; uma operação interna, secreta, produzida por Deus.
Anula, portanto, o papel do pastor no sentido de recordar o que os crentes devem ou não
fazer. Abole qualquer tipo de doutrina em relação aos usos e costumes de santidade
mostrando que a mudança no convertido não é externa, mas, sim, um processo interno.
Pode-se, então, perceber que as pessoas são mais aptas para decidir sobre sua vida cristã.
Isso é o que acontece quando nos convertemos. [...] Houve um antes e umdepois em mim; uma influência externa operou alguma coisa de diferente emmim. Não se trata de mudança de religião. Ou da renovação de atoscomportamentais. Quando alguém se rende a Cristo, ele não se limita a umasimples transferência religiosa. [...] Uma vez que o velho homem écrucificado com Cristo, o Espírito Santo implanta uma nova natureza nocoração, fazendo desse homem uma nova criação.234
O crente que se sentiu atingido pelo poder do Espírito Santo passa a agir como um
“santo”. Segundo Ricardo Gondim, o processo de “santificação vem como relacionamento,
como compreensão das Escrituras e também pela atuação sobrenatural do Espírito de Deus
no crente. Ele transforma os filhos de Deus de uma maneira sobrenatural”235, direcionando,
portanto, suas atitudes no mundo. Neste momento ele rompe com a história com a qual até
então se identificava. Rompe com o passado religioso e se inscreve em outra dinâmica de
significação da vida. Essa experiência coloca a pessoa em contato com uma religiosidade
que oferece respostas. Tudo tem sentido claro e definido. Desse modo, todo cotidiano é
possuído pelo religioso. Essa teologia articula a convicção plena de que os crentes de hoje
revivem o Pentecostes, conforme narrado no livro dos Atos dos Apóstolos, e adotam um
modo de ser ou de existir fundamentado na experiência com o Espírito Santo.
234 Ibid., p.168.235 Ibid., p. 178.
150
Nessa nova realidade, o que interessa basicamente não é expulsar os homens da vida
social, impedir o exercício de suas atividades, e, sim, gerir a vida dos homens aproveitando
suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de
suas capacidades, cumprindo o mandato do Evangelho. Como diz Ricardo Gondim, “o
papel de um pastor ou líder é desenvolver novas lideranças, capacitando-as para o
cumprimento da Grande Comissão”. 236
Para Michel Foucault, o poder não tem somente uma função repressiva. Ele é
também produtivo na medida em que produz saber. A força do poder vem justamente do
fato de que ele não se opõe ao saber, mas o promove. Por outro lado, a análise das práticas
e formações discursivas aponta para as funções sociais do conhecimento, enquanto
estratégia de poder. Por meio das técnicas modernas de fabricação da verdade regula-se a
produção, a distribuição e a circulação de alguns discursos em detrimento de outros. 237
O valor e a dignidade da pessoa humana só podem ser garantidos onde a sociedade e
a pessoa reconhecem um Deus pessoal que, segundo Ricardo Gondim, age no interior de
cada ser, concedendo a liberdade de escolha. Do contrário, a pessoa humana corre o risco
de ser vítima do poder, seja do poder pessoal de alguém ou de determinada classe social.
Na moral personalista do discurso de Ricardo Gondim, o poder possui uma eficácia
produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que
explica o fato de que tem como alvo o ser humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para
236 IGREJA ASSEMBLÉIA DE DEUS BETESDA, op. cit, p. 29.237 Cf., FOUCAULT, M. Microfísica do poder. p.146.
151
aprimorá-lo.238 É possível dizer que a disciplina implica registro contínuo de conhecimento.
Ao mesmo tempo em que exerce um poder, produz saber.
Conhecimento e saber estão implícitos na forma da Igreja Assembléia de Deus
Betesda olhar a vida cristã nos indivíduos, ou seja, para ela é fundamental que as pessoas
sejam alfabetizadas, pois, assim, terão uma capacidade maior de viver uma vida liberta das
imposições religiosas e poderá conquistar uma maior santidade. Ricardo Gondim afirma:
“quanto mais entendimento das Escrituras, da Palavra de Deus, mais condições de viver
uma vida santa”.239
A moral calcada na elaboração dos usos e costumes de santidade não consegue
responder à necessidade de um sujeito moral, para o qual a relação com o domínio está
cada vez mais ligada à forma de igualdade e reciprocidade, e que a manifestação da própria
superioridade sobre si e sobre os outros está inserida em um jogo mais complexo de
relações de poder.
Ricardo Gondim argumenta a respeito do legalismo imposto aos membros de igrejas
que pertencem à periferia, por serem na sua maioria pobres e analfabetos, deixando claro
que há um grande preconceito em relação a essas pessoas. A Assembléia de Deus
tradicional cria, portanto, dois evangelhos: o da graça, para os socialmente abastados e
cultos; e o legalista, proibitivo, para os pobres e analfabetos. Ele declara que há uma
explicação para a defesa do legalismo nessas igrejas; uma delas é a de que:
Há certo tipo de pessoa que necessita de cabrestos e leis proibitivas. Entenda-se que esse tipo de pessoa seja o pobre e o simples. Esse argumento reforça a
238 Cf., GONDIM, R. É proibido. p.176.239 Ibid., p. 178.
152
idéia de que os pobres e os simples não têm condições de participar doevangelho da graça. Aqueles que defendem esse argumento acreditam que hápessoas sociais e culturalmente atrasadas e que precisam de cabrestos, leisrígidas e muita proibição.240
Esse argumento deixa explicito que a liberdade que o indivíduo deveria ganhar
conhecendo o Evangelho lhe é negada, como explica Ricardo Gondim: “o crente não tem
necessariamente que satisfazer as exigências das leis do pastor, não precisa se adequar a um
código rígido de proibições, que lhe rouba a alegria de viver”. 241 É necessário, porém,
manter as proibições para que as pessoas não partam para o extremo da carnalidade, rebate
o pastor João Eunilson de Jesus, da Assembléia de Deus tradicional, que explica que “as
pessoas da periferia não têm uma conduta refinada, uma doutrina que possa corrigir sua
vida, então se faz necessário que Deus use a Igreja com uma palavra de cobrança, mais
rigorosa para o povo acordar para a realidade da vida. Pois todos podem alcançar a
vitória”.242 Segundo Ricardo Gondim, há líderes que se firmam em seus cargos
incutindo medo nas pessoas e agindo como legisladores de pesadas exigências religiosas,
estabelecendo-se como autênticos “messias”. Dessa forma, a situação é duradoura porque,
ao elaborarem um sistema tão implacável, ninguém se sente isento de culpa para poder
questioná-los; assim, esses líderes permanecem na direção das igrejas por muito tempo. 243
Enfim, através desses mecanismos criam disciplinas que permitem o controle do
comportamento do crente e produzem o homem necessário ao funcionamento e manutenção
da igreja e do poder.
240 Ibid., p. 61.241 GONDIM, R. Entrevista concedida. Vide Anexo II.242 Afirmação de João Eunilson de Jesus Caetano, pastor da Assembléia de Deus tradicional.Entrevista concedida em 20/10/2003. Vide Anexo I.243 GONDIM, R. Entrevista. Vide Anexo II.
153
Percebe-se que as duas denominações evangélicas têm a preocupação de moldar um
tipo de comportamento. A Assembléia de Deus tradicional, restrita ao essencialismo, tem
um discurso no legalismo doutrinário da experiência religiosa nas tradições morais dos usos
e costumes como essencial para a santidade, em que a ordem estabelecida não pode ser
questionada ou quebrada, pois é vista como uma ordem de Deus, que possibilita, portanto, a
sensação de segurança e esperança aos seus membros e dá aos dirigentes a oportunidade de
se manterem no poder por longos anos. A Assembléia de Deus Betesda, estruturada no
personalismo, faz um discurso livre das proibições doutrinárias dos usos e costumes de
santidade, permitindo aos seus membros que tenham uma vida cristã mais livre e aberta
para a experiência religiosa, sem isolá-los do mundo e das outras pessoas; eles podem
decidir e questionar as formas doutrinárias e de poder impostas pela Igreja.
É impensável uma organização ou instituição sem relações de poder e de controle. É
possivel perceber que as Igrejas Assembléias de Deus enquanto instituições organizadas
têm suas relações de poder, assim como qualquer outra instituição social como a família, o
trabalho, a prisão, a escola244 etc. Uma com maior rigidez para o cumprimento das
doutrinas e a outra permitindo a liberdade e os questionamentos no grupo. Assim como o
discurso científico, o discurso religioso também se apresenta como lugar de exercício de
poder e de transformação do saber, assegurando a preparação do crente no mundo.
Apontando a realidade cristã na sociedade em que estão inseridas, as duas
denominações procuram estruturar o valor moral de seus discursos na Bíblia Sagrada, que
244 Cf., FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.
154
através da conversão e da experiência com o Espírito Santo e da palavra pregada espera um
novo comportamento, íntegro, na vida do crente.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa pôde expor a complexa realidade do movimento pentecostal, bem
como o crescimento vertiginoso que o movimento alcançou desde sua fundação até os dias
atuais. Tal movimento tem promovido debates e levantado teses diversas. Essa realidade
torna-se uma advertência para as conclusões simplificadoras da questão. Assim como a
ação do Espírito, o movimento pentecostal tem no seu âmago a marca da diversidade, da
surpresa e da novidade.
O caráter intimista e místico que essa religiosidade sugere parece encontrar ecos na
cultura brasileira. Tem-se a impressão de que a cultura brasileira fornece o sulco pelo qual a
religiosidade pentecostal corre e se determina. O sentimento de apego aos símbolos
religiosos, a crença absoluta nas promessas divinas, a dedicação e o sacrifício, a
sacralização da vida a partir da experiência religiosa etc., nos fornecem uma pequena
demonstração dos elementos impregnados nessa religiosidade.
Estudar a Assembléia de Deus como grupo específico dentro do pentecostalismo se
faz necessário pelo fato de essa Igreja ter dado grande evidência do seu esforço para
distinguir-se dos demais grupos pentecostais. Ela é hoje a maior comunidade pentecostal no
cenário brasileiro. Seus limites se estendem para além do Brasil e da América Latina. Sua
relação com a política nacional tem sido cada vez mais assumida. Ninguém bem informado
deixaria de reconhecer a importância dessa Igreja para a compreensão da religiosidade
brasileira.
156
Desse modo, situá-la dentro do próprio pentecostalismo é um procedimento
necessário para se compreender melhor as especificidades e contribuições que ela pode
oferecer. Essa opção metodológica possibilitou-me optar por um objeto específico de
pesquisa que evidencia a complexidade e a vastidão do pentecostalismo brasileiro. A
hipótese levantada é a de que a Assembléia de Deus, embora faça parte do bloco
pentecostal, tem construído uma maneira própria de vivenciar sua religiosidade e de
relacionar-se com a sociedade. Embora possam ser encontrados traços característicos da
cultura brasileira nas ênfases, bem como na maneira de experienciar o religioso, o discurso
assembleiano é taxativo quanto à rejeição das práticas religiosas que evidenciam
proximidades com o catolicismo ou com os cultos afro-brasileiros.
Em seu início, criou modalidades de contato primário existentes na sociedade
tradicional, firmou laços de solidariedade entre os irmãos de fé, incentivou o auxilio mútuo,
promovendo ampla participação e ressocialização do fiel nos cultos, reorientando sua
conduta, seus valores e sua interpretação do mundo conforme os estritos preceitos bíblicos
impostos pela liderança sectária, os quais seriam funcionais em relação às normas de ação
da sociedade emergente. A função social da Igreja Assembléia de Deus seria cumprir o
papel de capacitar o crente para enfrentar a pobreza, as agruras dos empregos de baixa
qualificação, os efeitos angustiantes das mudanças socioculturais e da impessoalidade típica
das relações interpessoais dos grandes centros urbanos.
Ocorre, porém, que a suposta integração social propiciada pela igreja, em vez de
levar o crente a estabelecer um compromisso com esse mundo, tinha uma contrapartida
fortemente contracultural, sectária e ascética, fundamentada na crença do iminente “retorno
de Cristo a Terra” e na radical dicotomia entre os reinos material e espiritual. Imerso nessa
157
cosmologia dualista e apocalíptica, o fiel, na condição de “nova criatura”, não apenas
deveria isolar-se e apartar-se das coisas, interesses e paixões mundanos, como até mesmo
morrer para o mundo. Portanto, o preço pago em troca do conforto espiritual, da certeza na
salvação, é o viver uma moral ascética e observar toda uma série de proibições, prescrições
legalistas e tabus comportamentais.
A falta de sintonia com as mudanças sociais e culturais teve como conseqüência as
divisões no movimento da Assembléia de Deus no Brasil, provocando dois discursos
teológicos morais. Elinaldo Renovato, dentro da tradição assembleiana, mantém seu
discurso moral no puritanismo, representando uma ala radical da igreja que luta pela
preservação da identidade tradicional desde sua fundação. Em seu discurso, os usos e
costumes de santidade e a separação do mundo ainda são necessários para a obtenção da
salvação e da santidade na vida do crente. Enquanto que Ricardo Gondim, líder da
Assembléia de Deus Betesda, transformou as tradicionais concepções pentecostais dos usos
e costumes de santidade em uma experiência concreta de salvação baseada no caráter
cristão acerca da conduta e do modo de ser cristão no mundo. Ser cristão na Assembléia de
Deus Betesda tornou-se o modo primordial para que se permaneça liberto do pecado e se
obtenha uma interação com o mundo. Ou seja, manter uma boa relação com Deus passou a
significar o mesmo que ser atuante no mundo como forma de modificá-lo e torná-lo mais
justo para as pessoas, que podem gozar de uma vida livre e feliz.
A Assembléia de Deus tradicional e a Betesda são igrejas que preservam no seu
cotidiano a doutrina pentecostal, mas divergem nos chamados usos e costumes de
santidade, no estilo de culto e também no discurso desenvolvido em seu púlpito e na
literatura. Com um discurso moral personalista, a Assembléia de Deus Betesda
158
desenvolveu-se mais amplamente entre as pessoas da classe média, enquanto que a
Assembléia de Deus tradicional, desde seu início no Brasil, está mais voltada para as
classes pobres e periféricas das grandes cidades, permanecendo com um discurso moral
essencialista.
Procurando mostrar-se mais liberal na área dos usos e costumes de santidade, o
discurso moral de Ricardo Gondim apresenta uma interação maior de sua tradição religiosa.
Por conta dessa e de outras formas de inserção e acomodação à sociedade, cresce o número
de conversões de pessoas da classe média, de empresários e de uma variada gama de
profissionais, os quais, antes da contextualização doutrinária e comportamental praticada na
Betesda, talvez não fossem alcançados, ou teriam que mudar seus hábitos se quisessem ser
batizados e prosseguir como fiéis em uma igreja da Assembléia de Deus tradicional. Tal
abertura ao mundo descortina novas possibilidades de participação social, de conquista e
exercício da cidadania por esses pentecostais.
As mudanças demonstram que a Igreja da Assembléia de Deus Betesda passou a
interessar-se por orientar sua mensagem para este mundo, não para transformá-lo
subitamente por meio de qualquer tipo de revolução de cunho milenarista, nem para
desqualificá-lo, mas para ajustar-se às demandas sociais das pessoas interessadas não
somente na salvação eterna, mas também em encontrar uma forma de lidar com seu
cotidiano a partir da sua experiência religiosa pentecostal. Isso demonstra que os fiéis estão
mais afinados com o que se passa à sua volta, isto é, com as informações rápidas via mídia
e com um mundo interligado globalmente. Isso representa uma transformação significativa
na identidade desses religiosos: a queda por terra da velha e esteriotipada identidade
pentecostal, ou de sua distinção social.
159
O crente era anteriormente reconhecido de longe, a metros de distância. Com o
processo de modernização do Brasil, o processo de adaptação e contextualização da
mensagem pentecostal, a demarcação da identidade do crente da Assembléia de Deus
Betesda tornou-se problemática, algo a ser indefinidamente redefinido e reconstruído em
outras bases. O que quero dizer é que esse crente à primeira vista passa facilmente por um
descrente no visual, pois nada há na aparência que possa identificá-lo como membro da
Assembléia de Deus. Isso vem mostrar a grande diferença entre as duas denominações e
seus respectivos discursos morais em relação aos usos e costumes de santidade.
Em ambos os discursos os dois pastores procuram interpretar os textos bíblicos para
fundamentar suas posições teológicas, trazendo dois modelos de moral, mas contendo
lógicas discursivas semelhantes, pois, para suas comunidades estão revestidos da autoridade
de Deus, como instrumentos receptores de um discurso que deve ser colocado em prática.
Esse discurso possui um processo interpretativo que não transgride certas posições
que são preservadas pelo grupo como parte de sua identidade elementar; nesse caso, o
discurso possui a monossemia, seguindo a dinâmica da mistificação, na qual a sentença
doutrinária quando estruturada na Bíblia adquire maior legitimidade.
Pode-se concluir que o discurso teológico moral de ambos traz a experiência que o
crente tem com Deus através da conversão. Com um comportamento rígido ditado pela
doutrina evangélica nos usos e costumes de santidade, no caso da Assembléia de Deus
tradicional, a relação de poder é realizada para a criação de regras e doutrinas impostas aos
crentes. Na Assembléia de Deus Betesda, a conversão é marcada pela experiência de
transformação no interior do crente pela atuação sobrenatural do Espírito Santo, e o poder
160
tem uma relação na produção do conhecimento e saber, permitindo a liberdade dos
indivíduos.
É importante ressaltar que toda organização seja ela política, econômica ou
religiosa, tem suas relações de poder que ora tem o seu aspecto opressor, ora libertador,
porém, o que interessa destacar aqui são os aspectos promotores de esperança que as
igrejas das Assembléias de Deus possibilitam. Pensar uma teologia moral que parte da
experiência é pensar na realidade concreta do povo brasileiro com seus sucessos e
fracassos, com seus risos, lágrimas, sonhos, mitos e expectativas. Nesse sentido, o
pentecostalismo assembleiano aponta horizontes significativos de esperanças possíveis.
Para mim, o estudo da experiência religiosa da salvação e de usos e costumes nas igrejas
Assembléias de Deus possibilitou tornar evidente que o papel da religião é promover um
novo sentido na vida das pessoas que as procuram.
161
ANEXOS
1 – Anexo – I: Entrevista Concedida por João Eunilson de Jesus Caetano 20/ 10/
2003. Pastor da Igreja Assembléia de Deus tradicional, localizada no Jardim
Marajoara – Mauá, SP.
Juarez Ap. Costa: Na opinião do senhor porque a Assembléia de Deus cresce maisna periferia, no meio pobre ?
João Eunilson de Jesus Caetano: Eu entendo que nós aplicamos a Palavra de Deus de
acordo com a necessidade do povo, e a periferia é o local onde se encontra o povo mais
pobre, a classe mais desfavorecida. Essa pessoa vem à Igreja pela necessidade e isso a
gente não pode negar, pois elas possuem uma necessidade de ser amada, o ser humano é um
ser gregário, vivendo em comunidade, tem necessidade de ser amado e compreendido, ser
notado. As pessoas querem ter uma vida livre das opressões, a maioria vem para a Igreja
com essa concepção de que aqui ela vai ter de tudo. Só que o evangelho na verdade é
passado para as pessoas de uma forma diferente, de uma forma errada. O evangelho não é
um meio de se adquirir bens materiais, o evangelho é o poder de Deus para restaurar o
homem que foi gerado em pecado, pois o homem tem uma conduta toda irregular, no seu
relacionamento familiar, no trabalho ou na escola. O homem é um ser todo complexo, até
mesmo pela situação em que vive. Então, por isso, na verdade é que ele vem a Igreja, pois
ele quer se encontrar com si mesmo. E no meio evangélico encontra-se com charlatões que
usa esse meio para prometer coisas que nunca irá cumprir.
O que a Igreja tem que pregar é a equidade, a justiça igual para todos e mostrar ao
homem que ele tem uma alma e que ela precisa ser salva. E ele só vai conseguir uma
salvação através de uma aproximação com Jesus, e através dessa aproximação as demais
162
coisas irão acontecer como milagre, pois a partir do momento em que ele tiver um
conhecimento da verdade ele vai fazer uma análise de vida, uma reciclagem. Então, ele
vem do mundo com vícios das drogas e a partir do momento que aceita Jesus sua vida vai
mudar completamente, ele vai ter uma compreensão de que as drogas não aliviam, e se tem
um alivio é temporário, é efêmero, passageiro. Por esta razão deixa de usar as drogas
quando vem a Igreja. Deixando de usar drogas ele vai poupar sua saúde, não vai ter um
gasto com a medicina, não vai correr o risco de ficar preso e pagar um advogado. Ele vai
usar o dinheiro para ajudar a sua família, nisso ele vai ter uma prosperidade, que na verdade
o evangelho deu para ele. Uma coisa que com o tempo ele vai ter que descobrir, e isso não
faz parte da teologia da prosperidade. Pois quando ele vem para a Igreja aquele
procedimento errado de conduta ele deixa para trás, porque deixa de beber, de fumar, de
usar drogas, deixa a prostituição, deixa de roubar e deixa de ter uma segunda mulher na rua.
Tudo isso é economia e que irá beneficiar para que ele possa andar mais bem vestido, vestir
melhor a família. Não usando drogas não tendo amantes ele passa a ter um relacionamento
mais aberto com a família, vai amar mais, vai se tornar mais amado pela esposa e família e
a vida dele vai melhorar. Então, isso é a proposta do evangelho, não a teologia barata da
prosperidade, mas uma conscientização de vida. O ser humano como ser gregário que
precisa ser amar e ser amado é um ser que é corpo, alma e espírito, que se relaciona no
mundo social com corpo e alma e com o espírito se relaciona com Deus, ele o homem
precisa disso.
J.A.C.: Qual a diferença que o senhor vê entre a Assembléia de Deus tradicional, que o
senhor lidera, com a Assembléia de Deus Betesda do pastor Ricardo Gondim ?
163
J.E.J.C.: O que muda é a camada social. A mensagem do pastor Ricardo Gondim até pelo
público que ele tem em sua Igreja tem que ser mais refinada, o que ele prega é uma
mensagem com mais teologia, com mais conhecimento. E nós com uma linguagem talvez
mais grosseira, pois as pessoas da periferia não têm uma conduta refinada, uma doutrina
que possa corrigir sua vida, então, se faz necessário que a Igreja use de uma palavra de
cobrança, mais rigorosa para o povo acordar para a realidade da vida. Pois todos podem
alcançar a vitória. Já na Igreja do pastor Ricardo Gondim as pessoas pertencem ao nível
econômico mais alto e que tem seus vícios, mas já tem uma conduta de vida melhor, pois
muitos estudaram e tem títulos de universidades, são pessoas que já possuem regras, tem
uma conduta mais refinada uma doutrina de vida, uma disciplina então não precisa das
proibições, das imposições.
Muitas vezes Deus nos usa na Igreja para trazer uma mensagem com mais
correção, uma mensagem de alerta, deixa de fazer isso, deixa de fazer aquilo. Não é uma
proibição, mas fazendo uma conscientização às pessoas para que elas possam acordar para
a vida, pois assim como o Lula se tornou presidente da República o povo aqui na periferia
pode chegar a altos postos na vida, mas para isso ele precisa se reciclar precisa dos valores
absolutos da vida, não relativizar, aquilo que é absoluto como a família, a honestidade,
preservação do próprio corpo físico dele. Acredito então, que esse é um dos motivos das
diferenças entre as Assembléias de Deus e a Igreja do pastor Ricardo Gondim, porque me
parece que na periferia Deus vem com uma palavra um pouco mais dura, mais rigorosa.
Precisamos de uma disciplina um pouco mais forte para fazermos a vontade de Deus.
164
J.A.C.: O senhor acredita que as pessoas chegam a Igreja interessadas na salvação eterna,
e para atingi-la tem que ouvir um discurso moral de proibições ? Ou as pessoas só vêm
para a Igreja amenizar sua dor ?
J.E.J.C.: Vem para resgatar a identidade como homem, pai de família, enfim resgatar essa
identidade perdida através dos vícios. Na verdade sem uma conduta moral não tem como se
adquirir a vida eterna, uma vida desregrada, por exemplo, não será abençoada, salva no dia
do juízo. O dilúvio aconteceu porque o povo levava uma vida totalmente afastada de Deus,
completamente amoral, Sodoma e Gomorra também foram destruídas porque lá existia o
homossexualismo liberado, então, por tudo isso é que a Igreja tem que ter um discurso
inspirado por Deus, para sustentar uma conduta moral. Cada homem com sua esposa, cada
mulher com seu marido, tem que haver uma honra entre a família, isto é, entre homem,
mulher e filhos se respeitando, para que se tenha uma comunidade. A sociedade precisa de
uma família sadia, pois a sociedade está doente porque a família está sem moral. Qual o
valor absoluto da sociedade hoje? É a liberalização de que tudo pode. Pode haver
casamento entre pessoas do mesmo sexo, pode ter relações sexuais fora do casamento, não
precisa se casar para fazer sexo. Quando o homem sai do padrão da Bíblia e pratica essas
coisas, sai do padrão de Deus, se tornando imoral. Pois o referencial moral dentro de uma
casa é o pai e a mãe, na Igreja é a Bíblia. Sem a conduta moral de Deus é impossível atingir
a vida eterna. Temos, portanto, que primar por uma vida regrada, disciplinada. Para
preservação da humanidade, para previnir doenças sexualmente transmissíveis como a aids
e outras.
Então, precisamos de um evangelho que impõe a verdade, que conscientize, que
mostre para o povo que é necessário uma conduta moral para se adquirir a vida eterna. Se o
165
evangelho não tiver esse principio fica difícil Deus atuar em um lar onde o marido é infiel
ou a mulher é infiel, os filhos não respeitam o pai. Esse lar seria uma bagunça, onde
ninguém se entende. Por isso acredito que Deus é moral e disciplinador.
J.A.C.: A questão de a família ser desregrada, sem moral vem de onde ?
J.E.J.C.: O próprio homem é um ser mau em si, mas não podemos descartar nunca que por
traz de toda essa problemática da imoralidade está o ocultismo. Acredito que existe uma
força oculta, existe demônios, espíritos malignos que querem atuar, encontrar brechas, pois
o homem foi gerado no pecado, então ele é despertado, sua vontade é aguçada através da
licenciosidade que está presente. Quem vai para a mídia ? Quem coloca as mulheres nuas
na televisão ? Hoje não precisa ter cultura, basta ter um corpo bonito para fazer sucesso.
Tem somente que apresentar seu corpo nu. Então, atrás de tudo isso existe uma perversão
primeiro do próprio homem que tem essa forte tendência imoral, agora por trás de tudo
isso tem o Diabo, os demônios, aqueles que não querem o bem estar, então, não há amor,
não há moral.
O que se ensinamos na Igreja é que se você já tem uma tendência, você deve fugir
daquilo, você ficar olhando a pornografia está despertando uma prática dentro de si
mesmo. Quando se aceita Jesus não se deixa de ser homem ou mulher; indo para a Igreja o
indivíduo alcançará um domínio, um controle, podendo saber excluir de sua vida algumas
práticas que não são benéficas para a família, para a sociedade como um todo. Somos
cidadãos brasileiros, enquanto cidadão tenho que produzir coisas boas para o crescimento
do meu país, então tenho que ter uma vida regrada, sadia, porque a sociedade depende de
mim, pois tenho que ter uma família que possa produzir o bem para a sociedade.
166
2 – Anexo – II: Entrevista Concedida por Ricardo Gondim 19 / 12 / 2003. Pastor -
Presidente da Igreja Assembléia de Deus Betesda – São Paulo.
Juarez Ap. Costa: O senhor vê alguma diferença entre a Igreja Assembléia de Deus
Betesda e a Assembléia de Deus tradicional ?
Ricardo Gondim: Sim, em várias dimensões. A Igreja Betesda tem profundas diferenças
com a Assembléia de Deus tradicional, principalmente no que tange a liturgia, no que tange
sua concepção e sua percepção de valores teológicos, que considero que são muito
importantes para a vida da fé. E que acabam resvalando e mostrando mais claramente no
que diz respeito aos usos e costumes, são as diferenças fundamentais entre a Betesda e a
Assembléia de Deus tradicional. Essa diferença não é apenas cosmética, ela não diz apenas
a respeito de uma mudança estética, mas ela diz respeito a uma mudança mais profunda.
Nossa concepção é de um evangelho da graça que se dá e pode afetar a vida das pessoas. A
Assembléia de Deus tradicional tem uma visão do evangelho ressaltando muito mais as
obrigações, e eu tenho a concepção muito mais da graça de Deus. De que nós não
precisamos fazer as coisas para sermos aceitos por Deus. Então, é uma diferença sutil e
teológica mais do que comportamental eu diria.
Nós temos uma visão de culto litúrgico que difere muito da Assembléia de Deus,
porque eu tenho uma visão de que o culto tem que ter a cara da Igreja local. O culto tem
que ter os contornos ditos pela própria comunidade, não pode ser formatado, enlatado, não
pode ser uma perpetuação daquilo que foi recebido de outros. Então, a liturgia da
Assembléia de Deus está muito engessada porque ela se prende muito a perpetuar o
sistema na tradição. Nós sentimos que na direção do louvor, de adoração, do culto em si
não precisamos ficar encabrestados por uma tradição, mas termos muito mais latitude, mais
167
jogo de cintura. Então, a Betesda, também difere muito da Assembléia de Deus nessa
dimensão. Quem não conhece a Betesda e assiste a um culto aqui, pode achar que ela tem
programaticamente feito um culto para ser diferente da Assembléia de Deus tradicional.
Esse não é o sentido, o sentido não é que queremos ser em si uma dissidência, queremos ser
um contra ponto à Assembléia de Deus tradicional. É uma questão de postura, de
concepção de como se dá o culto a Deus, de como se presta um culto a Deus.
J.A.C: O senhor fala de dissidência, a Betesda se considera uma dissidência da Assembléia
de Deus ?
R. G. : Não. Eu não me considero uma dissidência da Assembléia de Deus. É tanto que
nós fizemos questão de quando nos separamos da Convenção Geral das Assembléias de
Deus tradicional, de manter nosso nome de Assembléia de Deus Betesda. Eu sinto que
estamos mais próximos das raízes das Assembléias de Deus mundial do que a própria
Assembléia de Deus tradicional brasileira, pois esta não reflete os caminhos pelos quais a
Assembléia de Deus no mundo caminha. Nos Estados Unidos, na Europa, a tendência da
Assembléia de Deus não é a tendência desenvolvida no Brasil. Portanto, eu me sinto mais
próximo com aquilo que a Assembléia de Deus é hoje fora do Brasil do que a mesma
Assembléia de Deus tradicional no Brasil.
Nós temos a teologia da Assembléia de Deus Betesda, ela é uma teologia do
pentecostalismo clássico, nós acreditamos nos pressupostos do pentecostalismo, pois,
cremos na segunda benção, na evidência do falar em línguas estranhas, na
contemporaneidade dos dons espirituais. Somos uma igreja envolvida com missões, nós
temos um sistema de implantação de igrejas semelhante ao sistema da Igreja Assembléia de
168
Deus tradicional, ou seja, com igrejas filiadas, congregação com padrão da igreja mãe, as
igrejas satélites e as igrejas filhas. Nós mantemos muito das características que estão bem
próximas do movimento pentecostal clássico das Assembléias de Deus tradicional.
J.A.C.: Qual a razão teológica doutrinária que leva duas denominações da mesma tradição
pentecostal a terem duas posturas morais diferentes ?
R.G.: Eu diria que a diferença fundamental, e isso eu tento mostrar em meu livro “È
proibido”, que a postura moral da Assembléia de Deus tradicional é um erro de leitura da
Bíblia, que ela, quando lê a Bíblia ela já lê com as lentes da moral legalista,
fundamentalista americana na virada do século (século XIX para XX), ela já vai ao texto
com esta leitura. Ela descarta toda questão cultural da Bíblia, não consegue perceber que é
um livro em sintonia com a cultura. Quando a Bíblia relata as intervenções de Deus na
história de Israel, as intervenções de Deus não violentam a cultura, pelo contrário, as
intervenções de Deus na cultura de Israel valorizam os traços culturais que são bonitos, e
condenam os traços culturais que estão adoecidos. Essa impossibilidade de ler a Bíblia
vendo que a cultura de um povo não é necessariamente demoníaca, não necessariamente
adoecida, pecaminosa, faz com que as pessoas lêem a Bíblia com os olhos do legalismo,
por exemplo, a questão dos usos e costumes da Assembléia de Deus tradicional, tem uma
postura ostensivamente contrária de tudo aquilo que eles consideram vaidades. Vaidades do
corpo, jóias, adornos, principalmente das mulheres.
E eu procuro mostrar no meu livro que isso é uma incapacidade de ver a cultura.
Quando houve adornos, beleza estética nos relatos do Antigo testamento, eles não
necessariamente são condenados por Deus, mas sim pela postura do coração e esta não tem
nada a ver necessariamente com adornos. Eu mostro para eles que essa é uma dificuldade,
169
uma incapacidade de entender a cultura. Nós precisamos entender a cultura, nenhuma
cultura e nenhum povo são em si mesmo ruim ou bom, ela tem coisas ruins e coisas boas,
mesmo na cultura judaica. O povo também tem uma leitura e uma tendência em divinizar a
cultura judaica. A cultura judaica tinha muitas coisas erradas e feias, comportamentos que
foram adotados pelo povo judeu nos quais Deus não aprovava, só porque eram judeus. E
assim, os gregos, os romanos e os babilônios todos eles tinham coisas boas e coisas ruins,
feias e bonitas. Essa é uma diferença fundamental da Betesda.
Outra diferença é a incapacidade da teologia legalista, principalmente da teologia da
Assembléia de Deus tradicional de verem a “imago Dei” imagem de Deus no ser humano.
Tem a incapacidade de entender, mesmo independentemente da pessoa ser convertida ou
não ela tem a imagem de Deus, e essa imagem de Deus no ser humano é que o capacita,
mesmo não sendo cristão a praticar coisas bonitas, louváveis, coisas que são dignas de
serem elogiadas de serem inclusive vivenciadas por nós cristãos. Um autor para escrever
um texto louvável ele não precisa necessariamente ser cristão, um juiz para sentenciar uma
sentença justa ele não precisa ser cristão, um cantor para compor uma música bonita, não
precisa necessariamente ser cristão. Minha tarefa não é identificar o cristão ou não cristão.
Ou somente consumir, ler, louvar o que é feito pelo cristão e rechaçar o que não é feito pelo
não cristão. Não é esse o nosso papel, nosso papel é identificarmos naquilo que foi
produzido o que tem de louvável, o que tem de bonito, o que tem de digno,
independentemente de quem o tenha feito. Têm-se valores do reino de Deus há coisas
bonitas ali e, eu tenho que necessariamente que aplaudir, não importa se veio da boca, da
pena, ou da escrita ou do texto de um cristão ou não, o texto em si ele têm valores do reino
de Deus. E de onde vem à capacidade do não cristão produzir coisas louváveis? È porque
170
todos os seres humanos carregam em si mesmo a imagem de Deus, aquilo que os teólogos
da Idade Média chamavam em latim de “imago Dei”.
Então eu posso ler um texto de Gilberto Dimenstein que não é cristão, mas de
tradição judaica e dizer puxa vida que coisa bonita, digna. Isso aqui eu como cristão tenho
que louvar este escrito e dizer é algo que como cristão assino embaixo, estou junto.
J.A.C.: Elinaldo Renovato chama atenção em seu livro “Aprendendo diariamente com
Cristo: como viver a vida cristã em um mundo em conflito” que cantores evangélicos da
Assembléia de Deus não devem cantar em Igrejas Católicas por ter imagens e
representações de santos. Segundo ele, cantores que desobedecem as ordens devem ser
repreendidos e punidos pelo pastor da Igreja local, pois eles cometeram algo que desagrada
a Deus. O senhor como pastor de um mesmo seguimento evangélico, o que acha dessa
posição ?
R.G.: Coitado, ele não leu o capítulo 17 do livro de Atos dos Apóstolos, em que o apóstolo
Paulo pregou no Aéropago , onde havia um panteão de deuses, e ele não se sentiu
intimidado, a grande dificuldade é que os pastores da Assembléia de Deus lêem a Bíblia
com as lentes do legalismo, da proibição e da tradição assembléiana. Nada podem, tudo é
proibido.
J.AC.: Na sua opinião a Assembléia de Deus no Brasil é fundamentalista ? Ela interpreta a
Bíblia literalmente ?
R. G.: Ela é fundamentalista, tem um cabresto da Teologia Sistemática muito forte, quero
dizer que a Teologia Sistemática ela é a rainha na leitura da Bíblia, então, não é a Bíblia
que está fazendo com que eu defina minha teologia, mas minha teologia é que define minha
leitura da Bíblia. E essa Teologia Sistemática vem do fundamentalismo norte americano
171
que é muito forte e infelizmente perde muito na criatividade. É uma igreja que não
consegue ser criativa, ela não consegue fazer, ser inovadora na sua abordagem teológica,
então, se ha muitos gramáticos e poucos poetas e isso se torna problemático.
J. A. C.: O senhor acredita que através de seus discursos, de suas pregações pode ocorrer
uma estruturação do cristão que freqüenta a Assembléia de Deus Betesda, criando assim
uma identidade de sujeito coletivo, preparado para enfrentar as relações de poder em nossa
sociedade ou na sociedade global ?
R. G.: Eu acho que uma das grandes contribuições, se é que posso falar de mim mesmo e
da Betesda sem parecer ufanista ou soberbo, mas eu diria que uma grande contribuição que
a Betesda tem dado é que você não precisa cometer suicídio intelectual. Eu acho que a
contribuição da Betesda é que não é proibido pensar e eu acho que esta estruturação tem
sido muito nessa dimensão. Quando a gente pensa, usa do bom senso, que temos liberdade
para questionar, não rompemos com a tradição cristã, não magoamos Deus, não fere, então,
esta capacidade de gerar pessoas que pensam sem se sentir patrulhados, que pensam sem
sentirem cabrestados por dogmas, eu acho que é uma contribuição no sentido de começar
estruturar homens e mulheres para serem livres. É um caminho perigoso, difícil, pois você
solta a pessoa, libera a pessoa. Talvez eu não veja, eu não consiga colher todos os frutos
dessa caminhada, mas eu acho que pelo menos uma próxima geração vai caminhar com
mais liberdade, com menos medo, com a capacidade maior de ser senhor de sua própria
história de suas próprias decisões. Poder tomar decisões morais sem que ele precise do
cabresto de uma igreja, de uma lei, de um livro que me diga o que eu posso fazer ou que
não posso fazer. Que tenhamos a capacidade, maturidade para decidir e tomar decisões que
172
sejam dignas, que sejam louváveis, sem que eu precise dessa tutela, dessa bitola me
orientando e conduzindo na vida.
J.A.C.: Quando o senhor diz em seu livro “É proibido” na pagina 113, “ que o poder moral
de discernir e recusar o que é torpe vem da liberdade de escolha, maturidade emocional,
intelectual e espiritual. Nunca da censura e patrulhamento da nossa liberdade critica”, isso
significa que o pastor não tem que ficar impondo à sua comunidade o que é certo ou errado,
mas deixar o cristão à vontade e livre para escolher o que é certo e errado ?
R. G.: Lógico, lógico. O apóstolo Paulo diz isso quando ele trabalha lá em Gálatas ou
Colossenses, quando ele diz que essa doutrina do não pode, não deve, não toque, não tem
valor nenhum contra a sensualidade, não muda nossas estruturas. Você corrige
comportamentos, não corrige valores, você não muda os valores da pessoa. As pessoas
ficam fazendo determinadas coisas, mas fazendo não porque entendeu, não porque
escolheu, não porque decidiu que não quer aquele caminho, mas porque ele foi imposto. E
no fundo, dentro do coração dele continua desejando, então, não tem valor nenhum. Que
valor me tem de proibir você de fazer alguma coisa, de adulterar, de matar, roubar, ou fazer
qualquer coisa, se dentro de seu coração você continua desejando, querendo isso, eu não
mudei nada. Não houve maturidade, a maturidade é as escolhas que fazemos a partir dos
nossos valores que incorporamos em nosso viver e, esses valores formam nosso caráter.
Então, o cristianismo lida não com mudanças circunstanciais, ele lida com o caráter, a
grande preocupação do cristianismo é trabalhar nossos valores, nosso caráter.
J.A.C.: Então há uma diferença em ser cristão na Betesda e ser cristão na Assembléia deDeus tradicional ?
173
R. G.: Eu vejo que o cristão na Betesda ele é solto, ele é livre, ele não vive debaixo de uma
neurose religiosa, que o infantiliza, que oprime, ele é livre. Ele não tem necessariamente
que satisfazer as exigências das leis do pastor. Eu não sou mais a alma seca do crente. Eu
digo sempre o seguinte: se me perguntam se o cristão da Assembléia de Deus tradicional é
cristão, eu digo que sim, mas ele é mais triste, não tem uma religião crítica, é uma religião
sem festa, sem liberdade. Eu diria que o cristão da Betesda pode ser mais feliz, mais alegre,
ele pode fazer mais festa na presença de Deus, porque ele está livre. Ele não está precisando
se adequar a um código rígido de proibições, que roubam a alegria de viver.
J.A.C.: A Assembléia de Deus tradicional permanece entre as mais conservadoras das
igrejas pentecostais hoje. Ao que se deve esse conservadorismo principalmente dos valores
morais voltados para os usos e costumes ?
R. G.: Eu diria que houve um tempo que era uma questão só de interpretação literal e
fundamentalista das escrituras, mas diria que hoje há uma vertente de poder nesta questão.
Existe uma necessidade de perpetuação dessas estruturas de poder dentro da igreja
Assembléia de Deus tradicional. Eu diria que hoje a questão do legalismo tem uma
estrutura de poder fincada, ou seja, o pastor jovem tem uma percepção diferente, mas eles
se adequam a esse poder, pois sabem que só conseguem galgar dentro da hierarquia da
Assembléia de Deus se eles perpetuarem o discurso do legalismo, se eles derem
continuidade ao discurso das elites que estão dominando o poder. Essas elites dominam o
poder em cima do discurso do encabrestamento, da proibição. É como um regime
ditatorial, a ditadura se estabelece, os que estão lá tem toda uma estrutura montada e os que
querem chegar no topo precisam repetir, reforçar o discurso dos que estão no poder. Se
eles não reforçarem o discurso dos que estão no poder, são vistos como uma dissidência e
174
as dissidências neste edifício monolítico não são bem vindas, então você tem que ser
sempre “sim senhor, não senhor”. Só é tolerável nessa estrutura do poder os que repetem o
monólogo daqueles que já estão encastelados no poder.
Eu diria que hoje as Assembléias de Deus não mudam não é porque não tem
percepção, é porque hoje existe toda uma elite que domina a igreja, que estão embriagados
com a exuberância do exercício do poder político dentro da Assembléia de Deus, gosta
desse domínio político, que está calcado dentro do legalismo proibitivo.
J.A.C.: Na visão do senhor o que é necessário para a igreja manter uma atitude ética, moral
comprometida com os valores Bíblicos, sem precisar do determinismo e legalismo ?
R. G.: Ela precisa em primeiro lugar se arejar, precisa ter pessoas que venham, que entram
na igreja com uma visão nova. A igreja precisa de novos convertidos e que entram na igreja
sem o ranço do passado e aqueles que estão na elite, que dominam a igreja, saibam dialogar
com pessoas que estão entrando. Essas pessoas novas, às vezes conseguem ver coisas que
nós da liderança não conseguimos mais ver. Eu estou na Betesda há vários anos e não
consigo mais ver certas e determinadas coisas. Já me acostumei a fazer certas coisas do
meu jeito e vou continuar a fazer, a única maneira de eu conseguir ver diferente é que entre
uma pessoa nova que nunca participou da Betesda, que tenha uma outra cultura, outra
cabeça, que não tenha um ranço religioso que a gente já criou, e quando ele chegar aqui
comece a questionar, perguntar. “Por que tem que ser feito assim ?”. E eu não tenha medo
da pergunta dele. Eu muitas vezes conversando com pastores da Betesda digo isso a eles e
tenho repetido essa frase: “nenhuma tradição nossa precisa ser perpetuada a não ser que
tenhamos uma boa razão para perpetuarmos a ela, o dia que não tivermos uma boa razão
para fazermos do jeito que estamos fazendo, não precisamos mais fazer.”.
175
Por que eu preciso fazer desse jeito para sempre ? Não sou necessariamente
obrigado eu fazer desse jeito, só porque a gente sempre fez assim. Então precisamos ter a
capacidade de abrir para o novo, para as pessoas que estão chegando, para os
questionamentos. Por que estamos fazendo desse jeito ? Essa é uma razão.
Uma outra razão é não termos que apegar a estrutura de poder. Eu acho que a igreja
precisa ter uma estrutura leve, precisa ter uma estrutura de poder que fuja o máximo
possível do jogo político intenso, então, ela tem que se firmar muito mais na base dos
relacionamentos do que nas relações institucionais. Nós precisamos criar uma igreja onde
os líderes tenham uma relação muito mais forte com as pessoas, do que uma relação
institucional. E que as pessoas possam me ver muito mais como amigo, os pastores que
coordenam a igreja, que me rodeiam dentro da Betesda me vejam mais como amigo do que
como pastor presidente. Isso é muito importante para nós. E não podemos ter medo de
sermos livres, de ousarmos, caminharmos no reino de Deus sem que nós necessariamente
precisemos da segurança da lei e do legalismo. A lei nos dá uma segurança, os contornos,
as margens dentro do qual eu possa andar. Mas é uma segurança falsa, por que a vida não
caminha sempre dentro dessas molduras, então, a gente vai encontrar com realidades para
as quais o faça não faça não tenha previsto, quando eu deparar com isso não vou ter
recursos, ferramentas para lidar com esse tipo de coisa, portanto, eu tenho que educar
muito mais do que disciplinar, do que proibir, censurar. Tem muito a ver, por exemplo, com
a censura colocada em um país, dentro de um regime ditatorial é muito mais fácil dizer para
sua população que esse livro você pode ler, esse livro não pode ler, isso é bom, aquilo não
é bom. É muito mais fácil agir assim, mas o que você ganha em domesticação, você perde
em capacidade criativa, em humanidade, em vida verdadeira.
176
J.A.C.: No livro “Ética Cristã: confrontando as questões morais do nosso tempo” Elinaldo
Renovato de Lima diz que “temos de fechar todas as questões concernentes à moralidade e
a santidade da vida” e que “nessa área nenhuma condescencia é possível; a Bíblia lida com
valores absolutos e nenhuma espécie de relatividade admite.” O senhor concorda com ele ?
R. G.: É lógico que não, logo na primeira frase não consegue ser coerente. O que ele diz na
primeira frase ? Qual é o ser humano, qual é o sistema, qual é a legislação que consegue
fechar todas as questões ? Cada ser humano é um universo em si mesmo. E as relações
entre seres humanos são infinitas, somos um universo infinito. Portanto, nós não
conseguimos fechar todas as questões. Não iríamos criar direito um livro canônico que
conseguisse abranger todo escopo das relações humanas. Essa é a grande falácia do
legalismo, no qual ele quer doutrinar, ele quer abranger todas as relações humanas, isso é
impossível, não tem como. Outra coisa é dizer que a Bíblia trata exaustivamente de
comportamentos humanos, também é outra falácia, pois a Bíblia é um livro que foi escrito
há 2000 anos atrás, e há comportamentos humanos hoje se quer estavam previsto na Bíblia.
Nós temos hoje a bioética, temos a engenharia genética, que são questões que estão
surgindo e que não estavam previstas na Bíblia. Não temos se quer como legalisticamente
nos posicionar diante destas questões. Principalmente sobre questões que dizem respeito a
comportamentos morais hoje, absolutamente novos como pedofilia, sado masoquismo, são
questões que não estão previstas na Bíblia, e que hoje diante da complexidade do viver
humano nós temos que lidar com isso. É um esforço inútil querer fazer um livro dizendo
que ele trata do absoluto, vai acabar no simplismo. Dentro desse livro que ele trata do
absoluto ele vai ter que transcender o texto bíblico, então, esse é o grande problema do
legalismo. Outra dificuldade do legalismo é que ele não consegue ser coerente, não
177
consegue manter-se coerente. Ele vai se dizendo absoluto em uma coisa, e vai ter que ser
relativo em outra, então é inútil.
J.A.C.: Elinaldo Renovato também menciona que uma das leis da hermenêutica é que
quando a Bíblia trata de um assunto em vários textos isso se torna uma doutrina para a
Igreja, principalmente em Corinto a respeito das mulheres cortarem o cabelo e se vestirem.
Como o senhor analisa essa questão ?
R. G.: A questão hermenêutica que ele esta dizendo, é a mesma hermenêutica que diz que
não podemos pegar texto fora do contexto. Quando ele diz que está pegando vários textos e
fazendo deles uma doutrina, ele está se valendo de um dos princípios da hermenêutica e
desprezando todas os outros princípios dela. Ora, se este é um princípio da hermenêutica
que vários textos fazem uma doutrina, esse princípio tem outros princípios que precisa ser
colocado no contexto dos outros. Existe um princípio na hermenêutica que nenhum texto
pode ser lido fora do seu contexto, e que na leitura do texto deve se levar em conta
principalmente o contexto histórico, esse é um principio da hermenêutica. Quando eu vou
ler um texto seja de uma lei, um poema, um romance, qualquer texto, o princípio universal
da hermenêutica é que o texto deve ser colocado no seu contexto histórico. Temos que ter a
percepção que a Bíblia é um livro de história, e não posso ler a Bíblia como uma
sistematização doutrinária, ela é um livro histórico e tem que se levar em conta à história.
Se pegarmos o raciocínio dele teremos que legitimar, por exemplo, a poligamia,
temos mais de um texto na Bíblia, inúmeros textos onde ela legitima relações poligâmicas.
A Bíblia legitima a poligamia de Abraão, de Jacó, de Davi, Salomão. Ela legitima a
poligamia nos mais diversos períodos.
178
J.A.C.: O senhor acredita que a experiência religiosa pentecostal possa produzir uma
qualificação moral, na qual os fiéis sejam identificados com um determinado grupo ?
Produz no individuo um processo de redefinição de sua própria identidade e valores ?
R.G.: Eu diria que a experiência pentecostal convoca a uma mudança de postura de
definição moral. Pois a experiência pentecostal, ou o batismo com o Espírito Santo,
evocado por todo movimento pentecostal tem sim uma vertente de convocação a uma vida
mais integra, mais santa diante de Deus. Ela é uma porta, para um estilo de vida que seja
digno dos filhos de Deus. Eu diria que a experiência pentecostal não é em si mesma uma
mágica para uma vida santa com Deus. Não é porque tenho uma experiência pentecostal
que a partir desse momento tenho uma vida santa. Mas a experiência pentecostal é uma
convocação para vivermos uma vida santa, integra, com valores, com princípios do reino
de Deus que são absolutos. Agora o comportamento do homem não tem como absolutizar,
o homem passa por aprendizados e aprende valores que vai ter pelo resto da vida, e que
vão ter que ser dirigidos por estes princípios do reino de Deus.
J.A.C.: Quantos membros a Igreja Assembléia de Deus Betesda tem hoje ?
R. G.: Não tenho um numero exato, mas calculamos que a Betesda tem hoje em torno de 20
a 21 mil membros no Brasil todo. Em São Paulo temos aproximadamente uns 2500
membros na sede, Tatuapé e Morumbi do Sul.
J.A.C.: Ao que se deve esse fenômeno da Betesda em um espaço curto de tempo crescer
dessa forma ?
R.G.: Eu diria que a Betesda hoje é uma Igreja que faz um contra ponto pentecostal a
teologia da prosperidade, ao neo-pentecostalismo. Ela é uma Igreja que tem se mantido
179
graças a Deus nesses 10 ou 15 anos na margem do movimento da teologia da prosperidade.
Portanto, somos um referencial saudável de que é possível ser uma Igreja pentecostal sem
ser preciso descambar para a teologia neopentecostal e que nem perpetue os valores
engessados do legalismo clássico.
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